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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MARIA HELENA VALENTIM DUCA OYAMA O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant Niterói-RJ 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MARIA HELENA VALENTIM DUCA OYAMA

O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant

Niterói-RJ 2009

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MARIA HELENA VALENTIM DUCA OYAMA

O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Estudos Literários. Subárea: Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural.

Orientador: Professora Doutora EURÍDICE FIGUEIREDO

Niterói-RJ 2009

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

O98 Oyama, Maria Helena Valentim Duca. O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant / Maria Helena Valentim Duca Oyama. – 2009.

165 f. Orientador: Eurídice Figueiredo. Tese (Doutorado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Letras, 2009. Bibliografia: f. 158-165.

1. Literatura comparada. 2. Literatura comparada – Antilhana e francesa. 3. Caribe. 4. Identidade. 5. Haiti – História – Revolução, 1791-1804. I. Figueiredo, Eurídice. II. Universidade Federal Fluminense. III. Título.

CDD 809

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MARIA HELENA VALENTIM DUCA OYAMA

O Haiti como locus ficcional da identidade caribenha: olhares transnacionais em Carpentier, Césaire e Glissant

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Instituto de Letras da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor. Área de concentração: Estudos Literários. Subárea: Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural.

Aprovada em 28 de abril de 2009.

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________ Profa. Dra. Eurídice Figueiredo - Orientadora

Universidade Federal Fluminense - UFF

______________________________________________ Profa. Dra. Diva Barbaro Damato Universidade de São Paulo - USP

______________________________________________

Profa. Dra. Jovita Maria Gerheim Noronha Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF

________________________________________________

Prof. Dr. Edson Rosa da Silva Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

________________________________________________

Profa. Dra. Lívia Maria Teixeira de Freitas Reis Universidade Federal Fluminense-UFF

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À minha mãe in memoriam, que está comigo em todas as horas e cujo sorriso me alegrará sempre.

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AGRADECIMENTOS

Em especial, à Professora Doutora Eurídice Figueiredo pela confiança,

paciência e sinceridade, ao mostrar as inúmeras possibilidades do comparativismo

literário interamericano.

À Professora Maria Bernadete Porto pela participação na banca examinadora

do Exame de Qualificação.

Aos Professores Lívia Teixeira de Freitas Reis, Edson Rosa da Silva e Jovita

Maria Gerheim Noronha pela participação na banca examinadora final.

À professora Diva Damato, pelo carinho, pela amizade de sempre, por ter me

apresentado à obra de Édouard Glissant e pela participação na banca examinadora

final.

Aos amigos do DLEM e do CENCEL da Universidade Federal de Roraima,

pelo apoio dado para desenvolver este trabalho.

Aos amigos da UFF, do Colégio Universitário Geraldo Reis/COLUNI e da

secretaria da Pós-Letras, pela torcida.

À Maísa Navarro, amiga de sempre.

Aos meus familiares sempre amados Liamar Kahoru, André Luiz Yoshio e

Edison Oyama.

À CAPES, pela concessão da bolsa do programa PICDT (cota da

Universidade Federal de Roraima) para o desenvolvimento desta pesquisa.

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RESUMO Este trabalho de pesquisa apresenta um estudo comparativo do romance El

reino de este mundo, de Alejo Carpentier, com outros textos: a peça La tragédie du

roi Christophe e o ensaio Toussaint Louverture, de Aimé Césaire, a peça Monsieur

Toussaint, de Édouard Glissant, a peça Toussaint Louverture de Alphonse de

Lamartine e o romance Bug-Jargal, de Victor Hugo. Todas estas obras caribenhas e

francesas tematizaram a Revolução da colônia de Saint-Domingue, atual Haiti,

revelando os conflitos encontrados pela nova nação e os dramas vividos pelos

personagens históricos que prepararam a independência política do país, em 1804.

O objetivo da pesquisa é fazer uma análise da representação do Haiti e seus heróis

a fim de mostrar como este país se tornou o locus ficcional da identidade caribenha.

Na tese serão utilizados elementos da História assim como conceitos fundadores da

identidade antilhana como o real maravilhoso, a negritude, a antilhanidade e a

poética da relação.

Palavras-chave: Caribe; identidades; maravilhoso; relação; Revolução Haitiana.

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RÉSUMÉ Ce travail de recherche présente une étude comparative du roman El reino

de este mundo, d´Alejo Carpentier, avec d´autres textes: la pièce La tragédie du roi

Christophe et l´essai Toussaint Louverture, d´Aimé Césaire, la pièce Monsieur

Toussaint, d´Édouard Glissant, la pièce Toussaint Louverture, d´Alphonse de

Lamartine et le roman Bug-Jargal, de Victor Hugo. Toutes ces oeuvres caribéennes

et françaises ont traité de manière fictive la Révolution de la colonie de Saint-

Domingue (Haïti actuellement), en dévoilant les conflits rencontrés par la nouvelle

nation et les drames vécus par les personnages historiques qui ont préparé

l´indépendance politique du pays, en 1804. Le but de ce travail de recherche est de

faire une analyse de la représentation de Haïti et ses héros pour montrer comment

ce pays est devenu le locus fictionnel de l´identité caribéenne. Dans la thèse seront

utilisés des éléments de l´Histoire ainsi que les concepts fondateurs de l´identité

antillaise comme le réel merveilleux, la négritude, l´antillanité et la poétique de la

relation.

Mots-clés: Caraïbe; identités; merveilleux; relation; Révolution Haïtienne.

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SUMÁRIO Pág. APRESENTAÇÃO................................................................................................ 10 INTRODUÇÃO...................................................................................................... 12 1. PROCESSOS INACABADOS E VISÔES HISTÓRICAS................................. Algumas visões precursoras da identidade caribenha.........................................

22 22

Caliban ou Ariel?.................................................................................................. 24 Visão de “falta” a ser compensada e a tarefa de (re)fazer................................... 26 Visão de frutos das intempéries naturais, do caos e da relação.......................... 29 Os “mestres da palavra” e as vanguardas........................................................... 33 Do surrealismo das vanguardas ao país natal..................................................... 34 As vanguardas no continente americano............................................................. 35 Os “mestres da palavra” no Caribe...................................................................... 37 De dentro para fora: Indigenismo como precursor das vanguardas no Haiti e no Caribe...................................................................................................................

39

Da negritude de Aimé Césaire à crioulização de Édouard Glissant..................... 48 Alejo Carpentier – surrealismo e real maravilhoso............................................... 58 O Real maravilhoso.............................................................................................. 66 O realismo maravilhoso dos haitianos.................................................................. 74 2. UMA ATERRISSAGEM NA BOCA DO CAÏMAN: AYITI - SAINT- DOMINGUE - HAITI: sonho e pesadelo.......................................................

80

O maravilhoso na história de Saint-Domingue .................................................... 80 A pré-revolução.................................................................................................... 80 A revolução e as primeiras lideranças políticas .................................................. 82 A liderança de Toussaint Louverture.................................................................... 85 A independência ou o nascimento da nação haitiana.......................................... 88 A ambigüidade da nação recém-nascida ou o percurso do trágico...................... 90 De volta à pré-revolução....................................................................................... 93 3. OLHARES E TRAVESSIAS PARA O HAITI : DA BUSCA DE LIBERDADE NA HISTÓRIA À BUSCA DE IDENTIDADE NA LITERATURA ENTRE AS AS HISTÓRIAS ...............................................................................................

97

De El reino de este mundo ou o maravilhoso mundo americano......................... 97 Dos caminhos do trágico haitiano........................................................................ 101 Do ensaio Toussaint Louverture........................................................................... 103 De Toussaint ou o herói precursor........................................................................ 105 Do tripé da fé cristã, da família e do homus politicus .......................................... 106 De Bug-Jargal como o negro rebelde ou o bon-nègre......................................... 108 Entre tempos maravilhosos.................................................................................. 109 Entre relações e poderes: crioulização e superposição cultural.......................... 116 Poderes dos líderes dirigentes............................................................................. 117 Projetos políticos – ideologias – negrofilias – francofilias..................................... 122 Do bon-nègre ao negro revoltado......................................................................... 125 As representações identitárias femininas, ou os poderes das mulheres.............. 135 A representação discursiva de Toussaint e de Christophe................................... 139 4. (IN)CONCLUSÕES........................................................................................... 153 5. REFERÊNCIAS................................................................................................. 158

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APRESENTAÇÃO Os dados

Esta pesquisa nasceu a partir de discussões básicas sobre

“Representações da alteridade” e “Vanguardas européias na construção de

identidades na América Latina e Caribe” que constituíram duas disciplinas no

nosso programa de pós-graduação da Universidade Federal Fluminense, no ano de

2005. Nessas discussões, um texto de “circunstância” como diria Aimé Césaire, ou

um texto de juventude, de jovem pesquisadora, como diriam Alejo Carpentier e

Victor Hugo sobre os seus primeiros romances, deu-nos uma primeira idéia de aliar

a experiência obtida no Mestrado, com o Projeto do Doutorado. Se o arcabouço

teórico estava definido a partir daquelas discussões, restava-nos definir um corpus

ficcional que nos levasse ao projeto propriamente dito. El reino de este mundo, de

Alejo Carpentier, parecia ter todos os elementos necessários para ser o eixo da

nossa pesquisa: a coexistência do mundo dos negros, dos brancos e dos mulatos,

nos permitia avaliar a representação da alteridade, as relações de uns e outros

pelos olhos de escritor/narrador crioulo cubano, de pai francês e mãe russa,

visitante do Haiti, e exilado na Venezuela durante a redação da obra... Não existia

situação mais mestiça ou híbrida do que esta.

Mas o delineamento das questões da representação da alteridade ainda

necessitava de um amadurecimento que só viria com a leitura de outras obras que

pudessem confirmar as descobertas “maravilhosas” sobre a Revolução de Saint-

Domingue. Com efeito, o desejo de entender a história da representação literária do

Haiti levou-nos a buscar em Césaire e em Édouard Glissant o que nos faltava. Por

outro lado, nossos questionamentos em torno do trabalho nos guiaram para a

Europa, com o objetivo de entender a razão pela qual a França dos direitos

humanos “silenciou”, abafou, a Revolução de Saint-Domingue. A reposta poderia vir

pela história oficial, mas queríamos ver as posições dos ficcionistas, onde cremos

estar uma outra verdade. Assim surgiu a inclusão do poema dramático de Alphonse

de Lamartine e do romance de Victor Hugo no corpus.

Este trabalho busca respostas para os seguintes questionamentos: como a

revolução dos negros daquela colônia é abordada na ficção, quais heróis históricos

são preferidos e quais os preteridos, e por fim, como os escritores escolhidos, no

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caso, três caribenhos e dois franceses (três originários de ambientes colonizados e

dois oriundos da metrópole) vêem as atitudes dos revolucionários como Toussaint

Louverture e Henri Christophe? Outras perguntas surgiram, como por exemplo, em

que os personagens de obras românticas históricas, como os dos franceses

escolhidos, podiam contribuir para a nossa tese?

As respostas estavam entrelaçadas com a temática das vanguardas

européias e as influências que exerceram sobre os intelectuais caribenhos a partir

da década de 1920. Logo, os conceitos que apareceram como tentativas de se

delinearem identidades culturais da região diziam respeito ao Indigenismo de Price-

Mars, à negritude de Césaire, ao realismo maravilhoso americano de Carpentier, à

antilhanidade e à crioulização de Glissant. Restava-nos partir para as análises da

obras, cujo rumo a ser tomado dizia respeito à história de Saint-Domingue,

primeiramente, e depois, à cronologia e à eficácia dos conceitos destes intelectuais

caribenhos, ou seja, como os conceitos daqueles escritores vanguardistas

permeiam as obras escolhidas?

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INTRODUÇÃO Processando

O passado não deve somente ser recomposto de maneira objetiva (ou mesmo subjetiva) pelo historiador. Deve também ser sonhado de maneira profética, para as pessoas, comunidades e culturas cujo passado precisamente foi ocultado.

Édouard Glissant

Quando o poeta, romancista, dramaturgo e ensaísta martinicano Édouard

Glissant defende que “o passado deve ser sonhado” (GLISSANT, 1996, p.102-3),

conforme a epígrafe citada, ele sugere ao historiador e ao ficcionista a tarefa de

(re)escrever as “condições iniciais” que (des)figuram o presente de determinada

comunidade, de determinado país. O problema que se evidencia na proposta do

autor é que, ao se retornar a estas condições iniciais, se está obrigatoriamente

(re)visando a história oficial e, conseqüentemente, recuperam-se os estragos no

inconsciente daqueles que foram desfavorecidos, ou seja, os povos colonizados.

Esta revisão, que já foi amplamente avaliada como um processo doloroso, também

foi considerada necessária para a superação, para o nascimento de novas formas,

de novos ganhos e de soluções de problemas futuros.

A busca de identidade cultural para o Caribe, no âmbito das ilhas

francesas, está além da fase dolorosa do enfrentamento de temáticas igualmente

dolorosas como a conquista do continente, a escravidão negra, as migrações

forçadas, como já afirmava Frantz Fanon, na conclusão de Peau noire, masques

blancs : “Je ne suis pas esclave de l'esclavage qui déshumanisa mes pères. O mon

corps, fais de moi toujours un homme qui interroge!”1 (FANON, 1952, p.186-188).

Parar de ser escravo da escravidão significaria, neste contexto, questionar

o presente em função da herança deste passado, sem parar no tempo, sem culpar

os compradores e vendedores de escravos nem seus herdeiros. Entretanto,

depreendemos das palavras de Glissant que, para se chegar à fase do

questionamento, como quer Fanon, é inevitavelmente necessário revelar o que foi

ocultado pela história oficial. Concordando com esta reflexão, e tendo em vista

1 Não sou escravo da escravidão que desumanizou meus pais. Ó meu corpo, faz de mim sempre um homem que questiona! (Tradução minha, assim como todas as outras retiradas de textos teóricos que aparecerão; as citações dos textos do corpus serão mantidas na língua original).

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nosso primeiro trabalho sobre tema caribenho (OYAMA, 1999), entendemos que a

pesquisa sobre a identidade cultural caribenha passa pela compreensão daquelas

“condições iniciais” das quais falou Glissant. Assim, postulamos neste trabalho que

o Caribe ainda tem inúmeras histórias (locais) que precisam ser (re)contadas para

superar “perdas inconscientes”. São histórias que refletem os modos de viver num

ambiente de constantes “mestiçagens”, “transculturações”, negritudes e

crioulizações, de diversas misturas, onde novas formas de resistência são

necessárias diante das intempéries tanto naturais, provocadas pelos terremotos,

inundações, erupções vulcânicas e furacões, quanto históricas e sociais, marcadas

pelas insurreições dos africanos transplantados, em lutas pela liberdade, pela

construção de identidade(s). Para Irlemar Chiampi, “o discurso sobre a identidade

do Caribe é, certamente, mais uma visão do que uma teoria” (CHIAMPI, 2007).

Nestas visões, há elementos variados, naturais, como a uniformidade ecológico-

geográfica e históricos, que estão representados poeticamente nos textos de

escritores caribenhos que vêem na região o começo, a boca, o laboratório em

constante funcionamento, do continente americano.

A tese aborda a temática da identidade cultural caribenha a partir da

Revolução Haitiana, que preferimos chamar de Revolução (da ex-colônia) de Saint-

Domingue. Tratamos da representação identitária deste tópico da história caribenha

na literatura a partir desta Revolução, em obras de autores não haitianos e que têm

uma percepção projetiva sobre o tema. A Revolução de Saint-Domingue foi

promovida pelos escravos contra a metrópole, a França, durou doze anos (1791-

1803) e só acabou com a independência política celebrada nos primeiros dias de

1804. Este feito, considerado de grandes proporções tanto para os historiadores

quanto para os escritores haitianos também o é para intelectuais e artistas de

outras ilhas caribenhas, da América Latina e da França. Os martinicanos Glissant e

Aimé Césaire, os cubanos Alejo Carpentier e Roberto Fernández Retamar, o

trinidadiano C.R.L. James, o guadalupeano Daniel Maximin, o argentino Walter

Mignolo e os românticos franceses Alphonse de Lamartine e Victor Hugo são

alguns destes intelectuais que viram a Revolução de Saint-Domingue como um

elemento histórico que se desdobrou em diversos outros elementos para a

compreensão dos séculos que se sucederam.

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Mignolo (2003), por exemplo, vê a Revolução de Saint-Domingue como

um elemento crucial para a formação da modernidade caribenha e latino-

americana, por ter imprimido na região a imagem de resistência de forma ampla, ou

seja, resistência de negros, trabalhadores e escravos contra brancos, patrões e

senhores, mas com uma dimensão internacional, na medida em que foi uma

revolução bem sucedida de uma colônia contra a metrópole.

Entretanto, apesar de a Revolução de Saint-Domingue ter sido precursora

na cristalização da imagem do Caribe como o espaço de questionamentos contra a

metrópole colonizadora, Mignolo destaca o silenciamento que o feito histórico

sofreu na região. Segundo o autor, este silenciamento teria sido provocado pelo

surgimento de duas ideologias geopolíticas e lingüísticas dominantes: “a Anglo-

Americana e a América Hispânica”. Estas ideologias fizeram emergir tanto a língua

inglesa quanto a língua espanhola nas intervenções políticas da região, causando

um “apagamento” das ilhas de língua francesa e, conseqüentemente, do Haiti que,

além de falar o francês como língua oficial na esfera das elites, também falava (e

fala atualmente) o créole, que é a língua do povo.

Em outras palavras, o Haiti teria sido ignorado em toda a sua diversidade

após a independência. As ilhas de língua espanhola estavam naturalmente ligadas

ao espaço hispano-americano continental. As de língua inglesa, logicamente

ligavam-se à Inglaterra, apesar de estarem próximas dos Estados Unidos, também

falantes de inglês. Outro isolamento que o Haiti sofreu e que parece ser o mais

significativo diz respeito ao bloqueio econômico imposto pela França e ao fato de

ela ter cobrado indenização sobre suas “perdas”. Assim, não fazendo parte do

bloco hispânico, nem do anglo-saxônico e sem elos com as outras ilhas

francófonas, ainda dependentes da França, os primeiros dirigentes da nova nação

tiveram de buscar sozinhos as soluções para seus problemas

Também podemos afirmar que a história dos países caribenhos oferece os

elementos necessários para se buscar e sonhar o passado, na expressão de

Glissant. Em outras palavras, as manifestações culturais atuais estão intimamente

ligadas à história. Consideramos, assim, que as diversas visões ou propostas que

surgiram para a reflexão sobre a(s) identidade(s) caribenha(s) estão ligadas à

Revolução de Saint-Domingue, ao Haiti, fazendo desta ilha o que chamamos de

locus ficcional desta(s) identidade(s).

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Neste trabalho, fazemos uma análise da representação identitária

simbólica dos heróis haitianos (Mackandal, Bouckman, Toussaint Louverture, Jean-

Jacques Dessalines e Henri Christophe) que são tematizados em diversas obras de

escritores não haitianos que vêem na rebeldia daqueles (ex)escravos um ato

heróico, que marcou não somente o Haiti como primeira nação negra, mas também

todo o Caribe, espaço povoado por pessoas oriundas de outros continentes,

portanto, espaço da crioulização, como aponta Glissant.

O objetivo da pesquisa é mostrar como o Haiti e seus heróis foram

representados nas obras literárias do corpus que escolhemos que é composto por

obras de Carpentier, dos martinicanos Césaire e Glissant, e dos franceses

Lamartine e Victor Hugo. São obras de gêneros diferentes que tornam nosso

trabalho coerente com as teorias modernas que defendem a abolição das fronteiras

entre gêneros literários.

O romance El reino de este mundo, de Carpentier (escrito em 1948, mas

publicado em 1949), tem o famoso prólogo que teoriza a sua proposta de real

maravilhoso. É um romance considerado pela crítica como um romance histórico,

precursor da chamada “nova narrativa latino-americana”, já amplamente estudada

como o romance do “maravilhoso”. De Césaire, há duas obras: o ensaio Toussaint

Louverture. La Revolution Française et le problème colonial (1962) e a peça La

tragédie du roi Christophe (1963). De Glissant, foi escolhida a peça Monsieur

Toussaint (1961), cuja primeira versão data de 1959. E finalmente, dos franceses,

escolhemos o poema dramático de Lamartine, Toussaint Louverture (1963), escrito

entre 1839 e 1850 (quando foi levado ao palco) e o romance hugoano Bug-Jargal

(1912), escrito em 1818, revisado e publicado pela primeira vez em 18262.

Ao vincularmos a proposta desta pesquisa à representação identitária

caribenha, a partir dos personagens históricos da Revolução de Saint-Domingue,

abordamos inevitavelmente os projetos literários nitidamente poéticos e políticos

dos autores das obras do corpus. São visões ou reflexões sobre identidade cultural

aplicáveis ao espaço caribenho. Neste sentido, seus projetos podem ser

considerados o que Mignolo chama de “histórias locais”, porque respondem aos 2 Sempre que citadas, as obras do corpus serão referenciadas a partir das respectivas formas reduzidas: El reino. La Tragédie, M.Toussain, Bug (para não confundir com o personagem Bug-Jargal); o ensaio de Césaire e o poema de Lamartine terão as referências destes autores seguidas com as respectivas datas.

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“projetos globais” que “homogeneízam” o mundo colonial. São projetos que

questionaram e influenciaram a situação colonial do Caribe e da América Latina e

que, conseqüentemente, irromperam na modernidade. Para tanto, torna-se

fundamental utilizarmos um corpus complementar teórico destes próprios autores.

Textos fundamentais de Carpentier, como o próprio prólogo, considerado o

manifesto do real maravilhoso, que abre El reino, assim como textos publicados

antes de 1949, na França e na Venezuela, que foram revisados nas décadas de

1960 e 1970.

O Cahier d´un retour au pays natal, de Césaire, bem como os poucos

números da revista Tropiques, fundada também por Césaire, na Martinica, também

são estudados. Tropiques circulou entre 1941 e 1945, com importantes ilustrações

dos primeiros momentos da negritude, o que a torna relevante para este trabalho.

As reflexões fundamentais de Glissant como antilhanidade, relação, caos, rizoma,

arquipélago, que enriquecem o conceito de crioulização, são fundamentais. Elas

estão presentes nos ensaios Intention Poétique (1969), Le Discours Antillais (1981),

Poétique de la Relation (1990), Une Introduction à une Poétique du Divers (1996,

traduzido para o português em 2006) e Traité du Tout-Monde (1997), e são

ilustradas na obra ficcional glissantiana, como mostrou Diva Damato (1996). Cabe

lembrar que estas reflexões, ou “noções”, como prefere Glissant, foram gestadas no

final da década de 1950 e no início da seguinte, e que, independentemente dos

desdobramentos que as aprofundaram ou em contraposição explícita à negritude

de Césaire (com ampliações e ressemantizações [FIGUEIREDO, 1998; 2007]), elas

se abrem para revisões constantes que ilustram outras conceituações como a

crioulidade (BERNABÉ, CHAMOISEAU; CONFIANT, 1989), o caos a que se refere

o cubano Antonio Benítez Rojo e a geopoética caribenha, na conceituação de

Daniel Maximin. Também consideramos que os contextos histórico e político que

predominavam no início da carreira dos escritores caribenhos em questão se

imbricam na própria biografia deles. Ou seja, a trajetória de vida destes escritores

se reflete na sua obra de forma geral, principalmente na ensaística.

Para a análise das obras, são igualmente consierados os conceitos de

discurso, “estereótipo” e sua agregada “ambivalência”, no âmbito dos estudos

literários, tratados pelo crítico Homi Bhabha. Vale ressaltar que ele foi introduzido

na década de 1990 no Brasil, no início das abordagens ditas “pós-coloniais”,

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aplicadas inicialmente nas colônias de língua inglesa. Em O local da Cultura

(BHABHA, 2003), ele se refere com freqüência à obra de Fanon, que refletiu sobre

os traumas da colonização presentes no inconsciente dos martinicanos, na obra

Peau noire, masques blancs (1952). Bhabha aplica o conceito de discurso aos

estudos literários e o define como um:

aparato que se apóia no reconhecimento e repúdio de diferenças raciais/culturais/históricas. Sua função estratégica predominantemente é a criação de um espaço para ‘povos sujeitos’ através da produção de conhecimentos em termos dos quais se exerce a vigilância e se estimula uma forma complexa de prazer/desprazer. Ele busca legitimação para suas estratégias através da produção de conhecimentos do colonizador e do colonizado que são estereotipados mas avaliados antiteticamente. (BHABHA, 2003, p. 111)

O discurso colonial, nas obras que Bhabha analisa, prende-se às fórmulas

ambivalentes e estereotipadas que classificam os colonizados e os colonizadores

no universo colonial. Estas fórmulas, apresentadas sempre em pares, dizem e

contradizem as classificações, mas as fixam nos inconscientes e aparecem nas

relações sociais, nas obras literárias, para formar um bloco, o bloco colonial. No

âmbito do nosso trabalho, o conceito de discurso colonial se aplica na análise das

obras a fim de detectar os estereótipos que classificam os personagens com base

na origem racial. Estes estereótipos foram combatidos com a produção de contra-

discursos em obras que desfazem aqueles estereótipos.

Com relação às obras literárias do corpus, achamos necessário tecer

alguns comentários. Os dois romances são de diferentes gêneros: El reino é

norteado pela estética do realismo maravilhoso, da segunda metade do século XX

enquanto Bug se insere numa estética romântica do século XIX.

As três peças também se diferenciam entre si. O poema dramático de

Lamartine foi escrito em alexandrinos e segue as características do teatro

romântico, e M.Toussaint, primeira obra teatral de Glissant, se caracteriza pela

completa transgressão ao modelo francês romântico ou às tragédias grega ou

inglesa. Pode-se afirmar que a peça segue o modelo teatral de Bertold Brecht, que,

ao invés de sensibilizar o público leitor e/ou espectador, provoca questionamentos

por parte do espectador (BRECHT, 1972, p. 131; Apud FIGUEIREDO, 1998, p.39).

Como Brecht, Glissant vê o teatro como uma forma de auto-análise coletiva que

contribui para a criação de uma nação. Ao refletir sobre os acontecimentos, o teatro

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constrói a consciência do povo. Ou seja, o teatro “desfolcloriza”, cria consciência

coletiva (GLISSANT, 1981, p. 396). Para tanto, é indispensável a aceitação do

passado, que constitui um passo fundamental para a identidade de uma nação.

Neste sentido, o teatro, na visão de Glissant, seria uma forma ideal para

“desalienar” os povos colonizados, mostrando os problemas que enfrentaram e

continuam enfrentando.

Enfim, para Glissant, somente um movimento coletivo poderia mudar um

quadro de alienação também coletiva que foi produzida pelo discurso colonial. O

teatro seria uma forma de viabilizar esta nação. Entretanto, ele ressalta que “o

trágico moderno não necessita mais de um herói sacrificial” e, dialogando com

Brecht, Glissant crê que, no mundo moderno, no Ocidente, passou-se “de uma

representação trágica sacrificial a uma reflexão política dada na modernidade”

(GLISSANT, 1981, p.413). Sob este ponto de vista, na realidade caribenha,

especialmente na martinicana, Glissant prevê, ainda, na década de 1960, o drama

(que a nosso ver é tragédia) que impera na região, que é o fato de a história oficial

ter ocultado o negro marron3, como herói coletivo, pelo discurso estereotipado de

inferiorização, de coisificação. Para Glissant, a reabilitação do negro marron é

fundamental para a questão identitária antilhana, pois esta figura histórica simboliza

a resistência.

Não diferente de Glissant, Césaire vê o teatro como o melhor meio artístico

de se aproximar do povo, “das massas”, como afirmou numa entrevista a Maryse

Condé (CONDÉ, 2006). Sua concepção de arte popular aplicada ao teatro se

coaduna com a de Glissant. Para Césaire, o teatro seria um meio artístico eficaz de

levar poesia ao povo. Na peça La Tragédie ele segue o modelo grego de tragédia,

principalmente no de Ésquilo, como afirma Eurídice Figueiredo (FIGUEIREDO,

1998, p. 40), mas está adaptado para a realidade da África. É uma peça

essencialmente histórica, ou seja, apresenta e reconstrói personagens reais, como

em Une saison au Congo, (com versões publicadas em 1966, 1967 e 1973).

É interessante observar que em La Tragédie, especificamente, também se

observa a influência do teatro shakespeareano, principalmente na representação do 3O negro marron corresponde ao quilombola no Brasil; no Caribe, o termo também gerou derivados como o verbo marronner e o substantivo marronnage, com o sentido de empreendimento de fugas para os locais de difíceis acessos e, em sentido mais metafórico, como movimento de resistência cultural.

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personagem Hugonin que é o bufão, que mescla ironia, sabedoria e comicidade ao

mesmo tempo. O bufão, em geral, embriaga-se de verdades indesejáveis, in vino

veritas. Em outras palavras, o bufão tem a verdade na ponta da língua e por ser

considerado um louco, tudo pode dizer, sem ser punido.

O ensaio de Césaire segue as normas do ensaio histórico, mas mantém as

características que Theodor Adorno (ADORNO, 2003) apresenta em “O ensaio

como forma”, ou seja, a abertura e o rigor, ligados à liberdade de interpretação do

leitor. Para Adorno, o caráter aberto do ensaio não é vago, pelo contrário, é

delimitado por seu conteúdo, referindo-se a algo já criado. O ensaio jamais se

apresenta como obra terminada, nem aspira a uma amplitude cuja totalidade fosse

comparável à da criação (ADORNO, 2003, p. 36). No entanto, o ensaio, e neste

caso, o ensaio histórico de Césaire, é também mais fechado, porque trabalha

enfaticamente na forma da exposição, ou seja, ele traz de fora seus referenciais

teóricos (ADORNO, 2003, p. 37).

Postulamos que a representação identitária do Haiti, e de seus heróis

haitianos, no corpus, apesar de ser composto de obras de gêneros literários

diferentes, é delineada pelo fio histórico da Revolução de Saint-Domingue. Este fio

condutor permite-nos afirmar que, se tomarmos cada obra cronologicamente, uma

complementa, aprofunda ou expande a outra. Podemos afirmar que Glissant foi

leitor de Césaire e de Carpentier e é por este motivo que trataremos de M.

Toussaint após a análise das outras obras.

Com relação à análise de Bug e da peça de Lamartine, é importante

esclarecer que estas duas obras compõem um corpus complementar à análise das

outras, devendo-se ao fato de ambas terem sido produzidas no século XIX e

seguirem a estética romântica, o que as difere da literatura caribenha que surgiu

inserida em projetos específicos de contra-discurso com relação à literatura

européia.

Metodologicamente, associamos o tempo ficcional ao tempo histórico, os

personagens históricos aos fictícios. As relações possíveis entre estas obras são

tecidas com o realismo maravilhoso, de Carpentier, com a negritude, de Césaire, e

com as noções glissantianas de relação/crioulização para depreender a

superposição cultural nos personagens Toussaint Louverture e Henri Christophe

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assim como nos personagens secundários (Mackandal, Dessalines, Biassou,

Paulina Bonaparte e esposas).

No primeiro capítulo, Processos inacabados e visões históricas,

resgatamos uma reflexão teórica sobre visões identitárias que fecundaram a

produção literária da região caribenha e da América Latina e que constituem

projetos poético-políticos de Césaire, Carpentier e Glissant. Além de reconhecer a

importância das propostas de cada escritor, através das quais o continente

americano passou a ter voz, valorizamos neste capítulo o discurso destes escritores

que, como “herdeiros de Caliban”, enfrentaram e destronaram a razão européia,

mas também sugeriram meios de reconstrução da identidade dos colonizados nos

espaços delimitados pela escravidão negra, a partir das chamadas vanguardas

européias. Também enfocamos e discutimos neste capítulo as visões de Césaire,

Carpentier, Glissant, dos haitianos Jean Price-Mars, Jacques Roumain, Jean-

Stéphan Alexis, consideradas como “frutos dos ciclones”, das intempéries naturais,

como afirma Daniel Maximin (2006). Postulamos que a partir destas visões se

estabelece o que este autor chama de “geopoética caribenha”: o real maravilhoso, o

indigenismo de Price-Mars e Roumain, o realismo maravilhoso do haitiano Alexis, a

negritude de Césaire e a crioulização de Glissant, todos em busca de diálogo com

alguns teóricos europeus.

O segundo capítulo retoma a história da Revolução da colônia de Saint-

Domingue respeitando suas diversas fases, a partir do recorte depreendido em

cada obra do corpus. Apresentamos um percurso para buscar conhecer a história

oficial e, ao mesmo tempo, refletir sobre a sua reutilização nos textos do corpus.

Com esta reflexão, faz-se uma interface da narrativa com sua historicidade sem,

logicamente, a pretensão de se fazer um tratado sobre a ex-colônia francesa.

Intitulamos este capítulo Uma aterrissagem na boca do Caïman: Ayiti - Saint-

Domingue - Haiti: sonho e pesadelo em alusão à geografia da ilha, que parece

ter a configuração de um caïman, um jacaré/crocodilo, com a boca aberta, e em

alusão à floresta, também denominada Caïman, onde teria ocorrido a cerimônia

vodu onde os insurretos juraram participar do levante contra a escravidão. Além

desta analogia geopoética, classificamos os acontecimentos que antecederam a

independência como sonhos a serem realizados e aqueles que a sucederam, como

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pesadelos, mostrando que os primeiros projetos de nação, ao serem inviabilizados,

tornaram-se sonhos frustrados. Assim, as constantes turbulências que ocorreram

na ilha, da história da sua conquista, passando pelo tráfico negreiro e chegando às

lutas pela libertação dos escravos, são consideradas sonhos mantidos pelo desejo

de liberdade e pela ação efetiva das diversas maneiras de resistir, de marronner, de

acordo com o escritor cubano René Depestre. Ainda neste capítulo, são abordados

tópicos relevantes da biografia de Toussaint Louverture e de Henri Christophe,

como líderes da luta pela independência política e pela liberdade não somente dos

escravos, mas também dos mulatos. Esta abordagem respalda a análise dos

personagens históricos como figuras ambígüas, ditadoras e visionárias na tentativa

de criar a nação haitiana. Os pesadelos são ilustrados aqui com os esboços dos

primeiros projetos de nação e os fatos que os inviabilizaram.

O terceiro capítulo, intitulado Olhares e travessias para o Haiti : da busca de liberdade na história à busca de identidade na literatura entre as histórias, tem dois momentos. No primeiro, fazemos uma apresentação de cada obra a ser

comparada com El reino, levando-se em conta os fatos ficcionalizados. Esta

apresentação tem um caráter pedagógico, cuja intenção maior é enfatizar os

projetos poético-políticos dos autores. Com esta apresentação, também queremos

estimular o leitor a entrar no magnífico comparativismo literário interamericano. No

segundo momento, aprofundamos nossas análises sobre a questão cultural em

cada obra mostrando relações possíveis destas obras com o realismo maravilhoso,

a negritude, a crioulização e a superposição cultural, nas figuras históricas de

Toussaint Louverture e Henri Christophe com suas esposas, bem como nas figuras

de Mackandal, Dessalines e Paulina Bonaparte.

Por último, nossas considerações finais, que chamamos de (in)conclusões,

não pretendem fechar a tese. Pelo contrário, nossas reflexões ficam abertas, na

expectativa de serem questionadas em contextos em que as descobertas de novas

obras possam estabelecer relações rizomáticas.

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1. PROCESSOS INACABADOS E VIAGENS HISTÓRICAS Algumas visões precursoras da identidade caribenha

A profusão de visões, conceitos ou noções não fecha a questão da

identidade cultural caribenha. Muitos ensaios, manifestos, poemas, romances,

contos e até tratados buscaram delinear convergências e divergências das

características caribenhas com relação às da Europa, dos Estados Unidos (em

função das intransigências do bloqueio a Cuba e da imigração) e da América

Latina. A UNESCO promoveu um debate sobre este assunto e em 1972 publicou

seus resultados na coletânea de ensaios intitulada América Latina en su literatura,

traduzida para o português, em 1979, discutindo principalmente a visão do

continente como um bloco homogêneo ou heterogêneo. A intenção da UNESCO,

como explica o organizador desta obra, era de focalizar a América Latina como “um

todo integrado por suas atuais funções políticas nacionais” bem como um todo que

em sendo necessário, deveria “remontar o passado para compreender o presente”

(MORENO, 1979, p. xxiii).

Em um dos ensaios desta obra, o jamaicano George Robert Coulthard faz

uma análise da pluralidade cultural do continente com relação à contribuição

indígena, africana e outras não ibéricas no âmbito da imigração e das influências

literárias. Embora queira abordar a questão profundamente, ele o faz de forma

ampla e ao mesmo tempo concentra sua análise em apenas alguns ícones que

colaboraram para a emergência da literatura latino-americana. Com relação à

região caribenha, o autor concentra-se basicamente na contribuição dos

movimentos negros das Antilhas francesas e de Cuba, apontando a negritude e a

poética do Cahier d´un retour au pays natal, de Césaire, como elementos de

renovação dos movimentos negros ou “negristas” que existiam na região até aquela

data. O autor não discute os desdobramentos que a negritude teve, mas coloca o

poema de Césaire como o marco do rompimento da lógica européia como um “ato

de rebeldia”, e por que não dizermos, um ato de marronnage, que é o processo de

fuga para os espaços de difícil acesso nas colinas, mas é igualmente um processo

intelectual que questiona e propõe soluções para a questão identitária.

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O Caribe é o espaço de denúncias contra a experiência da colonização e

do sistema de plantação que, segundo Depestre, utilizou o homem como

“combustível biológico” (DEPESTRE, 1980, p.239), sem o privilégio de ser

defendido pela Igreja, como os índios foram protegidos pelo padre Bartolomé de las

Casas. O Caribe também é o espaço das revoluções: a de Mackandal, de

Bouckman, de Toussaint, de Christophe, de Biassou, de Dessalines, mas também a

dos mulatos, dos latifundiários brancos, dos colonos, e é o espaço da derrota de

Napoleão, da Revolução Cubana, das línguas crioulas, do vodu, do real

maravilhoso. Logo, o Caribe é um grande laboratório de idéias férteis.

Para Carpentier, o Caribe também é o local em que o negro foi o “germe da

idéia de independência” (CARPENTIER, 2006, p.141). O cubano afirma que a

primeira grande sublevação negra foi deflagrada na Venezuela, “nas minas de

Buría”, cujo líder, chamado Miguel, criou um reinado independente, com corte e

bispado. Ou seja, o Caribe é o espaço da resistência. Despestre acrescenta que a

resistência caribenha reflete a capacidade de transformar os sofrimentos, e seria

um processo de marronnage ideológica que permite “não re-interpretar a Europa da

espada, da cruz e do chicote (...), mas fazer prova de heróica criatividade, para

reelaborar dolorosamente novos modos de sentir, de pensar e de agir.”

(DEPESTRE, 1980, p.99). Foi um processo “cognitivo” que, desenvolvido na

sociedade escravagista, transformou o drama existencial do estado de servidão em

“explosão de saúde criadora”. (DEPESTRE, 1980, p. 100). Seria um esforço de

legítima defesa que se manifestou em todos os momentos da vida cotidiana dos

novos americanos, ou seja, na religião, na magia, na música, na dança, na literatura

oral, na vida sexual e na família.

No caso haitiano, a marronnage teve algo muito mais representativo com

relação aos outros países pois ela se ampliou para o plano político. Enquanto nos

outros países as rebeliões foram contidas, arrasadas, no Haiti elas culminaram

com a independência nacional.

Para Glissant, o Caribe é o espaço do caos, mas não o caos negativo. Pelo

contrário. O caos cultural é belo, para Glissant, pois mexe com todos os tipos

humanos que compõem a região.

Talvez seja o momento de interpretar, de fazer a mediação, pois como

afirmou Maximilien Laroche: “Les documents, c´est le passé. Je suis le présent qui

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en les considérant doit tenir compte du futur. Voilà la médiation à faire.”4

(LAROCHE, 1996, p. 21).

Caliban ou Ariel ?

A visão de identidade do caribenho rebelde, Caliban, é defendida por

Retamar, em alusão explícita ao personagem da peça A Tempestade, de

Shakespeare, escrita por volta de 1610. Nesta peça, Caliban é descrito como um

ser disforme, indolente e é explorado por Próspero, que o vê como “canibal”,

“bárbaro”, o “mau selvagem”, que ousou rebelar-se contra sua autoridade.

Entretanto, Caliban reivindica sua identidade e sua língua. Retamar defende que os

escritores caribenhos são Calibans e que devem lutar para não serem dominados.

O crítico defende a superação de Caliban no nível da língua, da cultura e da

reversão da história. Do mesmo modo, para Laroche e Glissant, o intelectual deve

superar os traumas do passado e trabalhar o presente, como profetas do futuro.

Glissant vê Caliban como um lugar simbólico de encontros e de conflitos

representados por escritores caribenhos como Retamar, Césaire e Frantz Fanon

(GLISSANT, 1981, p. 231), mas que também se expande para todos os lugares em

que a luta de classes é necessária para a construção de uma nação e para a busca

de identidade coletiva. São situações conflituosas e não harmônicas, mas é,

sobretudo, o lugar do détour, do desvio, que permite ao africano transplantado

confiscar a língua imposta, numa linguagem simplificada, apropriada às exigências

do trabalho, com inúmeras implicações estereotipadas. A repetição caracterizaria a

expressão da língua créole como uma marca de infantilidade, por exemplo. Para

Glissant, o contexto da dominação no ambiente da plantação levou os escravos a

adotarem a repetição como estratégia diante dos senhores brancos. A repetição,

que seria no discurso dos brancos uma marca de “infantilidade” ou “gagueira”,

seria, na verdade, uma camuflagem, um recurso de enfrentamento da dominação.

No caso do créole haitiano, especificamente, o détour é mais que um desvio,

porque a língua se tornou “a língua de responsabilidade produtiva da nação

haitiana” (GLISSANT, 1981, p. 33), diferentemente do créole martinicano. Assim, os

desvios são interpretados pelos europeus conforme a necessidade da dominação,

4 Os documentos são o passado. Sou o presente que os considera e que deve levar em conta o futuro. Eis a mediação a ser feita.

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conforme o discurso estratégico que querem defender. Como discurso, a invenção

da América começa com os relatos de viagem de Cristóvão Colombo e de seus

tripulantes que, literalmente “assombrados” com o que viam na nova terra, ficaram

atônitos e buscaram nomear tudo o que viam, aproximando os novos significantes

aos antigos significados cristalizados no velho continente. Os conquistadores não

contavam com a reação dos autóctones, que também se “assombraram” com

aqueles novos homens, vestidos, portadores de uma parafernália diferente, falantes

de outras línguas, parecendo deuses!

O discurso sobre os índios do Caribe como valentes, rebeldes, “eram os

mais valentes, os mais batalhadores habitantes das terras que agora nós

ocupamos” (RETAMAR, 2000, p. 22), teria propiciado a criação da imagem de

Caliban como contraponto à imagem dos tainos cubanos, mansos, “covardes”, o

que teria colaborado para criar o estereótipo da passividade destes, justificando as

atitudes violentas generalizadas com relação aos autóctones de forma geral. A

origem disto remontaria aos séculos XVI e XVII, quando foram publicadas a Utopia,

de Thomas Morus e A Tempestade, de Shakespeare. De um lado, a noção de

paraíso está atrelada ao indígena pacífico, de outro, as intempéries do Novo Mundo

estão fatalmente ligadas à imagem do indígena rebelde, bestial, selvagem. Na

peça, vale ressaltar que o escritor inglês joga com o anagrama de canibal para dar

nome ao seu personagem, ou seja, Caliban é igual a Canibal.

No âmbito francês, Michel de Montaigne também contribuiu para esta

reflexão no famoso capítulo “Dos Canibais”, contido nos seus Ensaios (1580).

Neste texto, o filósofo ajuda a criar a imagem de passividade do índio, o “bom

selvagem”, ao divulgar que a bestialidade estaria na própria Europa, manifesta nas

diversas guerras que se sucediam naquela época.

Césaire reverte o discurso de A Tempestade shakespeareana na peça

intitulada Une Tempête. Nela, embora o autor apresente um Próspero também

colonizador, ele inova ao criar ou adaptar Caliban e Ariel como negro rebelde e

mulato respectivamente (ambos representantes da luta de classes tão freqüente na

região caribenha, e com mais intensidade no Haiti).

A busca de identidade cultural é apresentada na peça de Césaire pela

reivindicação do nome original do rebelde. No trecho abaixo, Caliban recusa o

nome imposto por Próspero:

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Eh bien, j´ai décidé que je ne serai plus Caliban (…) Caliban n´est pas mon nom. C´est simple! (…) Appelle-moi X. Ça vaudra mieux. Comme qui dirait l´homme sans nom. Plus exactement l´homme dont on a volé le nom. (…) tu m´as tout volé et jusqu´à mon identité! Uhuru!

(CÉSAIRE, 1969, p. 27-28) A recusa do nome seria o primeiro grito de conscientização da negritude, a

recusa da dominação, a busca da liberdade.

O personagem Ariel, de Césaire, é um mestiço, um mulato assimilado

culturalmente que dialoga com o negro rebelde e com Próspero, fazendo jus ao seu

estatuto hifenizado de meio-branco/meio-negro. Contudo, o que realmente subverte

o discurso do britânico é o personagem Eshu, uma espécie de “deus e diabo”, que

sempre questiona a ordem, a lógica e reverte o discurso colonial em favor do

colonizado.

A questão da identidade de Caliban foi levantada por outro intelectual, o

uruguaio Enrique Rodó, que, no seu ensaio Ariel (1900) defendia a adoção de uma

postura de Ariel voltada para a Europa e não para os Estados Unidos. Este último

país seria um Caliban, um materialista, um capitalista, que queria conquistar

territórios. Ou seja, entre ficar com Caliban e com Próspero europeu, Rodó optava

por um “herói civilizador” (IANNI, apud RODÓ, 1991, p. 10).

Ao se inverterem papéis e ideologias, as discussões se acirraram naquela

época. Octavio Ianni afirma, no prefácio à edição brasileira de Ariel (1991) que, “ao

metaforizar Ariel como ‘jovem, idealista, inteligente, europeizante”, Próspero como

“herói civilizador” e Caliban como o “utilitarista sem idéias” (Apud Rodó, 1991, p.

10), Rodó estaria reabilitando Ariel e denunciando Caliban/Estados Unidos como

um tirano, por haver invadido Cuba e Porto Rico.

Visão de “falta” a ser compensada e a tarefa de (re)fazer

A visão de falta a ser compensada na identidade caribenha é abordada por

Carpentier e Glissant com relação à história. O Caribe seria o espaço de simbiose,

para o escritor cubano, o palco da primeira simbiose, do primeiro encontro

registrado na história entre três raças que nunca haviam se encontrado

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(CARPENTIER, 2005, p. 140). Neste sentido, a região seria o espaço a ser

nomeado e estaria inacabado, à espera do romancista a quem ele atribui a tarefa

de nomear, fixar e mostrar, descrever o mundo circundante, algo a ser preenchido.

Entretanto, a tarefa do romancista não acaba aí, na nomeação. Cabe-lhe também

segundo o autor, a invenção, a reinvenção para conseguir a universalidade.

Alinhando-se a este pensamento, Glissant analisa a questão caribenha a partir da

Martinica e da Guadalupe, mostrando a situação de alienação em que vivem seus

cidadãos. Um exemplo estaria numa análise de Glissant sobre a participação dos

caribenhos na Carifesta, uma festa onde se reúnem milhares de pessoas para

comemorar um tema comum à região, principalmente com danças, concertos,

exposições e desfiles carnavalescos. A versão desta festa, em 1976, que na

verdade foi a primeira com este nome, homenageou os heróis caribenhos Toussaint

Louverture, José Marti, Simón Bolívar, Marcus Garvey e outros. A crítica de

Glissant recai exatamente na percepção da falta de heróis martinicanos neste e em

outros eventos em que as identidades se manifestam. Percebendo-se como

martinicano, neste momento, ele também constata que a alienação leva seus

compatriotas a buscar outros heróis de forma obsessiva.

A Carifesta de 1976 celebrou a figura de Toussaint como revolucionário

mas na verdade ele era antes de tudo um negro rebelde, um ex-escravo haitiano e

principalmente um marron. Na análise glissantiana, os martinicanos aceitam o herói

marron da independência dos outros, ao mesmo tempo não têm a consciência de

aceitar os seus verdadeiros heróis, igualmente marrons. Agindo assim, eles

mostram que sofrem inconscientemente do que se chamou “complexo de

Toussaint”, ou seja, valorizam a imagem de Toussaint numa tentativa de “tentar

compensar por adoção dos heróis dos outros a ausência na Martinica de um grande

herói popular.”(GLISSANT, 1981, p.135). A prática de homenagear Victor

Schoelcher como o libertador dos escravos não traduz a heroicidade do ato. Para

Glissant, esta atitude demonstra que os martinicanos estão cada vez mais

assimilando os valores franceses. A heroicidade dos escravos nas revoltas pela

própria libertação, nestas ilhas, foi substituída, literalmente, pelo que Glissant

chama de “schoelchérisme”, pelo ideal de cidadania francesa atrelado ao ensino

obrigatório, na língua francesa ou seja, teria havido o que ele chama de “curto-

circuito do país real” (1981, p.154). Para resgatar as lutas de libertação, é

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necessário partir de um projeto de pesquisa que vá de encontro à história oficial,

que montou seu discurso de negatividade para apagar o passado africano dos

habitantes na época da colonização. Como observou Diva Damato:

A história oficial procurou sempre minimizar a freqüência e a extensão das revoltas de escravos e a conseqüente fuga: a marronagem. Apresentada sempre como fruto de ressentimentos particulares ou reações a excessos por parte dos feitores, a marronagem não conseguiu permanecer na memória da população como uma manifestação legítima de resistência de uma coletividade ameaçada. (DAMATO, 1996, p. 174-5)

Para Glissant, a coletividade da Martinica, Guadalupe e Guiana Francesa,

perdeu muito com o processo de departamentalização, em 1946, quando passaram

a ser Departamentos da França, o que, segundo o autor, faz parte da lista das

“occasions ratées”, juntamente com a marronnage, ou fuga dos escravos para os

morros, e a “libertação de 1848”.

Para ilustrar esta alienação, também existe um texto de Carpentier em que

ele aborda a visão da falta a ser compensada. Ele comenta como figuras européias

são reverenciadas na Martinica e na Guadalupe e estão ligadas ao Caribe,

chegando a fazer parte do “patrimônio mitológico destes espaços”. Sem explicitar

propositalmente sua crítica à Martinica nem à Guadalupe, Carpentier denuncia

veladamente, talvez não intencionalmente, o “complexo de Toussaint” do qual falou

Glissant. Ele mostra a figura da esposa de Napoleão, Joséphine de Beauharnais,

motivo de disputa entre martinicanos e guadalupeanos que discutiram por anos e

anos se a imperatriz tinha nascido numa ou noutra ilha. E acrescenta:

Depois de muitas pesquisas e consultas a numerosos documentos, chegou-se à conclusão de que a futura imperatriz Joséphine tinha nascido na Martinica. Mas nem por isso os historiadores da Guadalupe deram o braço a torcer, pois afirmaram: ‘”A imperatriz Joséphine também nos pertence, por uma razão muito simples: embora tenha nascido da Martinica, ela foi concebida na Guadalupe”. (CARPENTIER, 2005, p. 136-7)

Enfim, se a atitude dos martinicanos e guadalupeanos, para Carpentier,

significa uma “disputa pitoresca e divertida” (CARPENTIER, 2005, p. 136), para

Glissant, seria mais uma demonstração do complexo de falta de heróis dos

antilhanos.

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O Caribe também é visto como um espaço da marronagem coletiva,

símbolo da resistência por ter um herói coletivo que serviria de “catalizador” social.

O Haiti seria este espaço.

Visão de frutos das intempéries naturais, do caos e da relação

Toute enfance doit affronter les éléments : l’air, la terre, l’eau, le feu, pour y trouver la vitalité qui édifiera l’adulte, et en même temps les affronter dans les malheurs et les douleurs... Il s’agit d’une sorte de voyage initiatique pour cet enfant qui a vu avant ses 10 ans un cyclone pour l’air, une éruption volcanique pour le feu, un tremblement de terre terrifiant pour la terre et un raz-de-marée à Basse-Terre pour l’eau5. (Daniel Maximin)

O cubano Antonio Benítez Rojo, na obra La isla que se repite (1998), acha

desafiador estabelecer uma identidade caribenha. Ele afirma que a aventura

intelectual dedicada a investigar o caribenho está destinada a ser uma busca

contínua (ROJO, 1998, p.07), que se coaduna, a nosso ver, com a reflexão de

Glissant sobre o Caribe como um espaço do caos cultural, gestada inicialmente na

sua Poétique de la Relation (1990) e depois em Le Chaos-Monde (1997).

O ensaísta da Guadalupe Daniel Maximin (2006) atribui à geografia da

região caribenha a matriz de uma geopoética que se reflete na literatura produzida

pelos escritores da região. Deste modo, o modo de viver e o modo de fazer seriam

fruits du cyclone, frutos das intempéries, já que os antilhanos passam por uma

espécie de viagem iniciática ao presenciarem, desde cedo, os efeitos do furacão,

de um vulcão em erupção, dos terremotos e das inundações. O que poderia ser

aplicado também a todas as regiões do mundo que sofrem os efeitos destas

intempéries.

A geopoética da região seria expressa no esforço destes escritores para

produzir obras de todos os gêneros que mostram sua cultura, seus modos de ser,

de viver e de escrever. Ainda que tenham seguido inicialmente o modelo europeu, o

que interessa é que eles estão na fase de redefinição, de reestruturação, como

acontece após os furacões, as inundações, os terremotos e as erupções dos 5 Toda infância deve afrontar os elementos ar, terre, água, fogo, para neles encontrar a vitalidade que edificará o adulto, e ao mesmo tempo afrontá-los nas desgraças e nas dores... Trata-se de um tipo de viagem iniciática para esta criança que viu, antes dos seus dez anos, um ciclone como o ar, uma erupção vulcânica como fogo, un tremor de terra aterrorizante como terra e um tsunami em Basse-Terre como água.

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vulcões, ou seja, a reestruturação está intimamente ligada à resistência dos “fruits

du cyclone” e ao que resta das intempéries. Assim, recompor os estragos causados

pelas catástrofes naturais que arrasam as ilhas, significaria, na proposta de

Maximin, aderir à poética da relação de Glissant, onde os elementos como flora,

fauna, rios, paisagens e, principalmente, os modos de viver e de conviver dos

caribenhos com a culinária, a música, a arquitetura, etc. são elementos importantes

de identidade rizomática, em contraposição à identidade única que não aceita

relação. Colocando Maximin em diálogo com Glissant e com Benítez Rojo, vê-se

que a poética caribenha se manifesta no âmbito da fauna reiteradas vezes. Para

Maximin, o beija-flor, pássaro leve e persistente, seria um símbolo de resistência. O

“Conte colibri”, recolhido e publicado por Lafcadio Hearn no final do século XIX e

publicado na revista Tropiques mostra o beija-flor vitorioso em três investidas dos

inimigos (o boi, o peixe e o cavalo) que, a mando de deus, querem tomar seu

tambor. A cada tentativa fracassada empreendida pelos inimigos, o beija-flor fica

mais forte, e sua plumagem mais colorida. Sua capacidade de se reerguer, bem

como sua rapidez e sua esperteza, se coadunam com as características da ilha

arbusto, como o caribenho que reconstrói sua casa após as intempéries naturais.

A analogia da resistência caribenha (marron) se fundamenta mais ainda

pela capacidade que o beija-flor tem de construir seu ninho com os mais diversos

materiais, linhas, restos de algodão, gravetos finos e fitas, que dão à sua morada

um tom improvisado, um tom crioulo. Maximin também enfatiza que os habitantes

do Caribe usam os mais diversos materiais para construir suas casas, resultando

em modos de viver peculiares. O uso de materiais em madeira, plástico, aponta

para modos de viver que dialogam com o vestir, o falar, o ornar os ambientes, que

não imitam os modelos europeus.

O prazer dos caribenhos de viver em liberdade, em comunhão com os

elementos naturais, sem a preocupação com a lógica opressora, leva o caribenho

ao que Maximin chama de “modernité aventurée”. Esta concepção faz crer que

este modo aberto de viver em relação com outros elementos caracterizaria uma

predisposição à renovação, logo, à busca contínua do outro, como prevê a poética

do caos nos pensamentos de Glissant e Rojo. Para ambos os autores, o caos se

associa à identidade inacabada, que não permite a imposição de limites, nem de

contornos, logo, ambos formam, com Maximin, um grupo que vê no Caribe a

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poética da relação como a poética da identidade rizomática. A poética da relação se

caracteriza pela busca incessante do outro, sem a possibilidade de existir a

identidade de raiz única que se alimenta do pensamento do “um” absoluto. Pelo

contrário, a poética da relação se expande em defesa da identidade crioula, da

identidade rizomática (à luz da filosofia de Deleuze e Guattari), do pensamento do

Diverso. Sendo plural, a identidade caribenha estaria em formação contínua.

Caracterizado por Glissant como o espaço da entrada das Américas, onde

aportaram os conquistadores, os africanos, os indianos, os chineses, o Caribe é o

espaço do caos cultural, da crioulização generalizada que exemplifica o que

acontece no mundo.

É interessante pensar o caos como algo positivo. No senso comum, o caos

faz alusão à desordem, à confusão, com o sentido negativo de falta de ordem, de

organização:

Nous tournions autour de la pensée du Chaos, pressentant qu’elle circule elle-même à contresens de l’acception ordinaire du “chaotique” et qu’elle ouvre sur un donné inédit: la Relation, ou totalité en mouvement, dont l’ordre flue sans cesse et dont le désordre est à jamais imaginable.6 (Glissant, 1990, 147)

Entretanto o caos aponta para uma ordem que respeita a diversidade, sem

fronteiras, sem tornar os participantes transparentes, mas sim, opacos, solidários e

não redutores. Daí repetir insistentemente nas suas obras que a poética da

relação, ou seja, o imaginário que permite a convivência de todos, sem pretensão

de lideranças esmagadoras nem a tendência a viver em espaços fechados,

respeitando a diversidade, pode ser a poética do espaço que ele chamou de Tout-

Monde no final da década de 1990:

J’appelle Chaos-monde le choc actuel de tant de cultures qui s’embrasent, se repoussent, disparaissent, subsistent pourtant, s’endorment ou se transforment, lentement ou à vitesse foudroyante (....)7 (GLISSANT, 1997, p. 22)

O espaço do Caribe e das regiões onde houve a imposição do sistema de

plantação seria o berço desta poética, pois tanto os sobreviventes indígenas quanto

os “engagés” europeus, os africanos transportados e os asiáticos foram colocados 6 Girávamos em torno do pensamento do Caos, pressentindo que ele circula elle-même em sentido contrário da acepção ordinária do “caótico” e que ele se abre para um dado inédito: a Relação, ou totalidade em movimento, cuja ordem flui incessantemente e cuja desordem é eternamente imaginável. 7 Chamo de Caos-mundo o choque atual de tantas culturas que se iluminam, se repelem, desaparecem, mas subsistem, adormecem ou se transformam, lentamente ou a uma velocidade fulminante (...)

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em relação numa convivência que gerou, de acordo com esta noção do caos,

produtos imprevisíveis, que não podem ser acabados. Na relação, os pretensos

elementos universais se desestabilizam e forçosamente movimentam-se em

direção ao outro. Rojo sugere a idéia de repetição onde a “ilha que se repete”

constantemente parece ter a mesma conotação da proposta de Glissant, embora

sua visão parta do contexto geográfico propriamente dito. Para ele, o Caribe é um

arquipiélago, es decir, un conjunto discontinuo (¿de qué?): de condensaciones inestables, turbulencias, redemolinos, racimos de burbujas, algas deshilachadas, galeones hundidos, ruidos de rompientes, peces voladores, graznidos de gaivotas, aguaceros, fosforecencias nocturnas, mareas y resacas, inciertos viajes de la significación; en resumen, un campo de observación muy a tono con los objetivos de Caos.8 (ROJO, 1998, p. 18).

As turbulências do caos do Caribe são marcadas, na concepção de Rojo,

por uma estética em que o ritmo caracteriza a própria dinâmica geográfica da

região. Pode-se depreender que o ritmo da vida, do mar e da natureza de forma

geral estaria ligado ao prazer de viver: “la naturaleza puede producir una figura tan

compleja e intensa como la que capta el hojo humano al mirar un estremecido

colibrí bebiendo de una flor.”9 (ROJO,1998, p.19).

Na perspectiva do nosso trabalho, pode-se afirmar que os caribenhos

seriam igualmente frutos das intempéries da história oficial e das histórias locais.

Como já prefigurou Glissant, Rojo enfatiza que a produção literária caribenha (em

alusão direta às obras do cubano Fernando Ortiz, C.R.L. James, Césaire, Kamau

Brathwaite e Wilson Harris, e Glissant, que lhe inspiraram o ensaio La isla que se

repite) é o retrato do próprio caos, pois esta produção fala, no rastreamento que ele

faz, de fragmentação e de instabilidade o tempo todo. Há a instabilidade

del negro que estudió en Londres o en París, la del blanco que cree en el vodú, la del negro que quiere encontrar su identidad en África, la del mulato que quiere ser blanco, la del blanco que ama a una negra y vice-versa; la del blanco rico y el blanco pobre, la de la mulata que pasa por blanca y tiene un hijo negro, la del mulato que dice que las razas no existen, (…) resultados todos de las correntes

8 arquipélago, ou seja, um conjunto descontínuo (de quê): de condensações instáveis, turbulências, redemoinhos, cachos de bolhas, algas desfiadas, galeões naufragados, ruídos de arrebentação das ondas, peixes voadores, grasnidos de gaivotas, chuviscos, fosforecências noturnas, marés e ressacas, viagens incertas da significação; em resumo, um campo de observação que sintoniza muito com os objetivos do Caos. 9 a natureza pode produzir uma figura tão complexa e intensa como aquela que o olho humano capta ao ver um trêmulo beija-flor bebendo d euma flor.

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y resacas más violentas de la historia moderna10 (ROJO, 1998, p.45).

Esta fragmentação e esta instabilidade que geraram os conflitos identitários

dos caribenhos na luta pela libertação da dialética binária mestre/escravo,

colonizador/colonizado corresponde a uma tarefa que Glissant chamaria de

desalienação, com a qual faz emergir uma identidade que supera as contradições,

as diferenças. Podemos concluir que o maior desafio que restou aos frutos das

intempéries, na expressão de Maximin, foi eliminar a visão de vencidos imposta

pelos europeus aos descendentes dos africanos. O passo seguinte, no caso dos

ficcionistas, foi se tornarem “mestres da palavra”.

Os “mestres da palavra” e as vanguardas

Carpentier, Césaire e Glissant, “mestres da palavra”, foram

comprovadamente influenciados pelas vanguardas européias e latino-americanas,

cada um a seu tempo e como escritores não haitianos, buscaram nos personagens

históricos da Revolução de Saint-Domingue e no espaço do Haiti, o locus ideal para

seus projetos literários.

As vanguardas, na Europa, correspondem ao período de renovação e à

modernização das cidades, do pensamento e sobretudo das artes, no período do

início do século XX até os anos 1920. É interessante observar que o contexto

histórico europeu da época alimentou as inovações. Assim, como observa o crítico

Jorge Schwartz, na obra Vanguardas Latino-Americanas (1995), as vanguardas

européias surgiram em conseqüência da “ascensão do capitalismo”. Foi a partir das

invenções como o telefone, o telégrafo sem fio, o cinema, a bicicleta, e

principalmente o automóvel e o avião, que os setores populares começaram a se

organizar com mais rapidez e a questionar a exploração a que eram submetidos

para alimentar fábricas e indústrias. Ao mesmo tempo os artistas promoviam uma

“efervescência” que influenciava os estudantes que freqüentavam as universidades

10 do negro que estudou em Londres ou em Paris, a do branco que crê no vodu, a do negro que quer encontrar sua identidade na África, a do mulato que quer ser branco, a do branco que ama uma negra e vice-versa; a do branco rico e o branco pobrea da mulata que passa por branca e tem um filho negro, a do mulato que diz que as raças não existem, (...) todos resultados das correntes e ressacas mais violentas da história moderna

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francesas, em Paris, que se revelou como “a capital literária da América Latina” por

concentrar jovens provenientes de vários países do nosso continente e da África.

Do surrealismo das vanguardas ao país natal

De todas as manifestações literárias das vanguardas, o surrealismo foi o

movimento literário e artístico mais significativo para o Caribe e para Carpentier e

Césaire. É bom lembrar que o surrealismo se respaldava no sucesso que o

dadaísmo obtinha em criticar a “falta de conteúdo” e a “morte da beleza” (Tristan

Tzara) que, na verdade, contribuía para desconstruir as idéias tradicionais de arte e

expressava o “niilismo”, em contraposição às transformações tecnológicas. Como

afirma Ponge (2002), o surrealismo se destacou entre os movimentos da

vanguarda, ainda que lhe tenha angariado reservas e até mesmo reações

adversas, por parte de artistas e setores burgueses franceses, porque o seu

objetivo maior era lançar uma revolução cultural que questionasse os modos

vigentes de se expressar, sentir e pensar. Para Carpentier e Césaire, que estavam

em Paris nos anos 1930, o surrealismo parecia ser a via ideal para começarem

suas carreiras.

A rebeldia dos surrealistas fica explicitada nos objetivos que defendiam, tais

como “buscar autonomia da linguagem artística”, “exaltar a revolução”, “buscar a

essência humana”, “apegar-se à fantasia, ao sonho e à loucura”, com a ajuda da

psicanálise que emergia à época, bem como “anular a fronteira entre teoria e

prática artística” através do “uso da escrita automática”, sem a preocupação com a

lógica, com o racionalismo, conforme o primeiro Manifesto do Surrealismo, em

192411 (Apud DUPLESSIS, 1969).

A adesão dos artistas caribenhos ao surrealismo se justificava pela própria

condição em que viviam em Paris, a de intelectuais colonizados, e também pelos 11O surgimento do Bureau de Recherches Surréalistes e a Revue Surréaliste, que circulou até 1929, divulgando relatos de sonhos, textos automáticos, respostas a enquête sobre o suicídio, sobre o amor, bem como poemas diversos, levava os surrealistas a querer ir sempre além do que descobriam e descreviam, para expressar uma nova arte (DUPLESSIS, 1969). As brigas agitaram os integrantes do grupo surrealista, ocasionando expulsões de uns, novas adesões de outros e principalmente, o exílio de muitos deles para as Américas, durante a guerra. Até foi feito o enterro simbólico de Breton pelos poetas dissidentes do surrealismo, com a publicação do panfleto intitulado Un cadavre, no final da década de 1920. Entretanto, Breton já estava em outra fase. Lançou o segundo Manifesto do Surrealismo, publicou o livro Surréalisme et peinture e a revista Au service de la Révolution, mas, como afirma Duplessis, sem uma adesão fanática que retirasse do poeta, do artista, sua liberdade criadora.

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acontecimentos políticos que fervilhavam na Europa. Deve-se considerar que esta

condição de colonizados era acentuada pela ascensão do comunismo, pelas

guerras, pelas turbulências provocadas pelo capitalismo (queda da bolsa de Nova

York, em 1929).

Durante a guerra, Breton e vários colegas, inclusive dissidentes que o

“enterraram”, e escritores dos países colonizados, tiveram que sair da França.

Breton, inclusive, ficou fora do circuito parisiense de 1942 a 1946, quando visitou

vários países americanos, e de volta, deu um novo contorno ao surrealismo, onde

“a magia primitiva” e o conhecimento oculto do universo deram as novas regras.

As vanguardas no continente americano

Os escritores e artistas, que vivenciaram as vanguardas em Paris e que

voltavam ao país de origem, desenvolveram ações que favoreceram uma

renovação cultural e estética a partir das realidades nacionais. A América Latina

passava por um processo de transformação como um todo, sendo que o Caribe

enfrentava as investidas dos Estados Unidos: Cuba e Porto Rico sofreram

influência norte-americana desde seus processos de independência no século XIX

e o Haiti esteve efetivamente ocupado pelas tropas americanas no período de

1915 a 1934, cujas conseqüências foram desastrosas para o país. O Haiti havia

recusado negociações para a instalação de base militar estratégica na península de

Môle Saint-Nicolas. No ano das comemorações do primeiro centenário da

independência do Haiti, na França, publicava-se a Primeira Antologia de literatura

haitiana (LAROCHE, 1995). Laroche lamenta o paradoxo evidente que mostra a

França aceitando a independência cultural do Haiti ao mesmo tempo em que os

Estados Unidos agiam como as velhas metrópoles séculos antes, querendo

dominar o país.

Neste período de assédios imperialistas sobre a América Latina, os

intelectuais americanos debatiam o modelo cultural e econômico ideal para o

continente. O modelo anglo-saxônico proposto pelos Estados Unidos era bem

agressivo, pois este país já estava se tornando um império. O modelo latino/

hispânico visava uma mudança cultural e a Europa, principalmente a França,

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exercia grande fascínio sobre os intelectuais e artistas latino-americanos, fazendo-

os se deslocarem constantemente para Paris.

Os intelectuais latino-americanos passaram a criar revistas literárias,

exatamente como o fizeram os ícones das vanguardas européias na Europa, e

inauguraram as chamadas vanguardas latino-americanas. Com o evento, as

revistas publicadas permitiam a discussão de novas idéias, seguidas de

conferências e palestras sobre os elementos americanos diferenciadores das

vanguardas européias. Esta efervescência provocou a valorização dos elementos

culturais, populares e aumentou as possibilidades de modernização do continente.

Segundo Viviana Gelado, os movimentos de vanguarda propuseram “a ruptura

dos gêneros e o ataque à arte e à cultura como instituições, através do diálogo

entre diversos códigos, gêneros e registros de linguagem” (GELADO, 2006, p. 65).

Deste modo, as revistas eram veículos de múltiplos assuntos relacionados à cultura

e seus signatários levavam em conta as questões polêmicas da época em torno

dos elementos populares registrados pelas “práticas orais (religiosas, estéticas,

políticas) plasmadas em diversos códigos (pictórico, gestual, musical)” (GELADO,

2006, p. 65).

As primeiras revistas que surgiram e que tiveram grande repercussão no

início da década de 1920, segundo Schwartz (1995), foram Actual e El Machete

(1924), do México; Martín Fierro (1924), de Buenos Aires, e a Amauta (1926), no

Peru. Essa ação foi uma prática muito comum nas Américas de forma geral, a

ponto de haver uma circulação regular umas das outras nas capitais de diferentes

países.

Quanto a uma periodização das vanguardas latino-americanas, o crítico

Hugo Verani sugere “a fixação do ano de 1922 como o annus mirabilis das

vanguardas internacionais latino-americanas” (VERANI, 1990, p.11). Entretanto,

outro evento concorre como registro de nascimento das vanguardas no além-mar:

trata-se da leitura do manifesto Non serviam, feita em 1914, por Vicente Huidobro,

no Ateneu de Santiago do Chile (SCHWARTZ, 1995, p. 32). Além do fator

cronológico que elege este evento, com relação ao ano de 1922 brasileiro, o que

pesaria para privilegiar aquele em detrimento deste seria o próprio conteúdo do

texto. A inovação de Huidobro teria sido a defesa da base teórica do criacionismo

com a tática de “leitura pública”, ambas inovadoras. O próprio Schwartz afirma que

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este seria o evento cuja data é “mais apropriada para a inauguração das

vanguardas latino-americanas, embora ainda distante dos anos 1920”

(SCHWARTZ, 1995, p. 32).

Entretanto, o crítico Jorge Schwartz enumera eventos que podem ser

considerados o marco das vanguardas em quase todos os países latino-

americanos. O primeiro, para ele, é que pelo fato de muitos intelectuais americanos

terem buscado Paris como um novo local para viver ou como um centro de estudos

temporários no período, as vanguardas teriam chegado à América Latina no mesmo

ano do lançamento do futurismo marinettiano, 1909. O autor sustenta que neste

mesmo ano, surgiu a primeira tradução do texto de Marinetti, e que a publicação de

uma crítica irônica a este texto, feita por Ruben Darío, considerado o representante

maior do modernismo hispano-americano e publicada no jornal La Nación (edição

de 05/04/1909, em Buenos Aires), teria despertado uma discussão sobre o que

acontecia na Europa.

Quanto às vanguardas no Brasil, Schwartz cita a publicação de um artigo

intitulado “Uma nova Escola Literária” em um jornal da cidade de Salvador, já no

final de 1909. Neste artigo, o autor, Almacchio Diniz, faz menção ao futurismo no

Brasil (apud SCHWARTZ, 1995, p.31). Apesar de citar estas publicações de 1909

em decorrência do futurismo, mostrando a rapidez com que os acontecimentos

chegavam ao continente americano, parece haver uma tendência a privilegiar o ano

de 1922 como marco das vanguardas na América Latina.

Os “mestres da palavra” no Caribe

Césaire e o escritor da Guiana Francesa Léon Gontran Damas encontraram

outros estudantes em Paris, como Léopold Sédar Senghor, do Senegal. Juntos,

formavam um grupo cujo desejo de promover mudanças teve a seu favor

sucessivos acontecimentos relacionados às colônias francesas e que hoje são

avaliados como eventos basilares das vanguardas do mundo colonizado. O

primeiro acontecimento diz respeito à descoberta da África, que se deu pela leitura

das obras de funcionários enviados às colônias e que realizaram estudos

etnográficos sobre a África, como Les civilisatios négro-africaines, Les noirs

d´Afrique, L´âme nègre, Haut Senegal-Niger, do francês Maurice Delafosse e

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História da civilização africana, do alemão Léo Frobenius. Estes livros davam conta

da existência de culturas extremamente avançadas na África Oriental provando,

pela própria ciência colonizadora, que as culturas africanas deveriam não somente

ser reconhecidas positivamente, mas também poderiam servir de instrumento de

combate às tentativas de sua eliminação pela assimilação da cultura francesa

(DAMATO, 1996).

É importante observar que a valorização da temática africana interessava a

todos os artistas da época, e não somente aos surrealistas, na medida em que as

descobertas tiveram repercussão nas artes, de forma geral. No âmbito das artes

plásticas, descobriu-se em Paris a “art nègre” pela estatuária e as máscaras

africanas. Os pintores cubistas como Picasso e Braque viam-se inspirados na

descoberta das novas formas que renovaram a estética ocidental. No quadro

Demoiselles d´Avignon, Picasso pintou máscaras africanas no lugar do rosto. Este

acontecimento seria o que marcou a inauguração da chamada arte moderna

(DAMATO, 1996; FIGUEIREDO, 1998).

Com relação à música, a arte negra não deixou de ser representada em

cenário parisiense. No estudo de Damato (1996), afirma-se que tanto o jazz norte-

americano quanto a música clássica são vistos na Europa como arte. A cantora e

bailarina americana Joséphine Baker se apresentou no Teatro Champs Elysées

com o espetáculo La Revue Nègre e Darius Millhaud apresentou o balé La création

du monde (1923), com o cenário de Fernand Léger, montado com máscaras

africanas e com o argumento de Blaise Cendras.

No âmbito da produção literária com temáticas africanas muitas obras foram

publicadas colaborando, mais uma vez, para a tomada de consciência dos afro-

antilhanos. Foram algumas delas: Anthologie Nègre ou Anthologie de la poésie

nègre (1927) e Les petits contes nègres pour les enfants des Blancs (1928), de

Blaise Cendras, Voyage au Congo (1927), Retour du Tchad (1928), obras

anticolonialistas de André Gide, Le Nègre (1927) de Philippe Soupault, Magie Noire

(1927) e Hiver Caraïbe (1928), de Paul Morand.

Além destas obras, um outro acontecimento importante para os intelectuais

negros foi a realização do Primeiro Congresso Pan-Africano, em 1919,

congregando norte-americanos, caribenhos e africanos como W.B. Du Bois, Gratien

Candal e Blaise Diane. Dois anos depois, o segundo congresso, em 1921, em outra

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capital européia, Londres, consagra, por assim dizer, a emergência intelectual

negra, abrindo literalmente os caminhos para as gerações seguintes.

Neste sentido, pode-se afirmar que as vanguardas surtiram um efeito muito

positivo para a construção das identidades caribenhas. A proposta surrealista de

“buscar no inconsciente” a definição e a realização do ser, coadunou-se com a

descoberta do que é ser negro. As vanguardas promoveram uma reviravolta no

mundo negro, incluindo o Caribe, na medida em que mudou a concepção de que a

África era o continente dos “povos sem história”. Elevada a categoria de espaço de

povos com cultura, a África passou a ser vista como elemento imprescindível para

acabar com a alienação imposta pelo processo colonial. Ou seja, foi através das

vanguardas, principalmente pela mediação da metrópole, como argumenta Monegal

(apud QUIROGA, 1984, p. 23-4), que os latino-americanos se depararam com a

ambigüidade de pertencer a dois mundos e de descobrir o próprio através de um

esforço de reflexão, mesmo estando longe. Assim, ao elegerem Paris, a “cidade

luz”, capital de uma metrópole colonizadora, conheceram melhor a sua terra natal e

perceberam que Paris, apesar de congregar tantos americanos, a ponto de ser

considerada a capital literária da América Latina, ironicamente, também funcionou

como um centro de “descolonização” literária, como aponta Figueiredo (2001).

Neste sentido, pode-se afirmar que a trajetória intelectual dos escritores caribenhos

se confunde com a própria biografia individual, com a própria vida pessoal, quando

em alguns casos, muitos deles foram obrigados a deixar a terra natal por motivo

político.

Veja-se a partir de agora, a contribuição individual dos escritores

caribenhos Price-Mars, Carpentier, Césaire e mais tarde a(s) de Glissant.

Mantendo o nosso objetivo de ver como o Haiti, a Revolução de Saint-

Domingue e os heróis entram nos projetos poéticos de Carpentier, Césaire e

Glissant, podemos analisar, ainda que rapidamente, a trajetória deles, a partir do

indigenismo haitiano que consideramos o precursor de todos os movimentos de

valorização da cultura negra caribenha.

De dentro para fora: Indigenismo como precursor das vanguardas no Haiti e no Caribe

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Depestre (1980), Laënnec Hurbon (1988), Maximilien Laroche (1991B) e

Régis Antoine (1992) concordam que, ao conquistarem a independência do país, os

haitianos passaram a se preocupar com a preservação da sua cultura. Entretanto, a

descolonização intelectual parece ter sido tão árdua quanto a descolonização

política. Em ambas, a questão da cor da pele sempre esteve presente, causando

turbulências que repercutem até hoje.

O primeiro Estado negro tinha que decidir entre viver por si, guiar-se sem

medo, retomando suas tradições africanas, ou simplesmente mostrar ao mundo que

ele era uma nação “civilizada” e para isto, deveria assimilar a cultura ocidental, ou

seja, a cultura francesa. A sociedade apresentava dois eixos políticos divergentes:

o da elite mulata, considerada a mais capacitada para administrar o poder, e o da

elite negra, considerada representante da maioria da população e suficientemente

inteligente para aprender a administrar o poder. Enquanto estas elites se

enfrentavam pela obtenção do poder, a população sofria.

Pode-se afirmar que a conquista da independência não significou a

resolução dos problemas sócio-culturais da ilha, pelo contrário. Os problemas se

intensificaram e tiveram eco na produção cultural e “civilizada” da época mas,

segundo Hurbon (1988), já se refletiam nas preocupações dos intelectuais haitianos

do século XIX, quando o positivismo “depreciava” os negros de um modo geral,

principalmente nas questões ligadas às crenças populares. Assim, a elite negra viu-

se obrigada a se posicionar sobre os grandes temas da antropologia ocidental, ou

seja, ela devia preencher os pré-requisitos impostos pelas nações civilizadas que

eram: ter e seguir uma lei, seguir a religião católica, ter uma organização familiar e

ter uma língua moderna, ou seja, a língua da metrópole.

Por esta razão, os ensaios publicados naquele momento tiveram muitas

conotações políticas, uma vez que a principal dialética enfrentada foi a atitude do

‘senhor negro’ que queria suplantar a atitude do ‘senhor branco’: “Si ‘le Blanc’ se

définit comme ‘maître’, et ‘le Noir’ comme ‘esclave’, une seule tâche est désormais

nécessaire: rendre et montrer le Nègre rigoureusement maître à son tour.”12

(HURBON, 1988, p. 54). À elite intelectual coube então provar a capacidade dos

12 Se ‘o Branco’ se define como ‘senhor’, e ‘o Negro’ como ‘escravo’, uma única tarefa é necessária daquele momento em diante: tornar e mostrar o Negro rigorosamente ‘senhor’.

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negros face à civilização ocidental, ou seja, “reabilitar a raça negra”, refutando a

pretensa predisposição à tirania, ao canibalismo e à superstição.

Para Maximilien Laroche (1991B), a ensaística e a poesia do século XIX no

Haiti representam a nacionalidade. Os ensaios13 da época, como os de Antenor

Firmin, de Louis-Joseph Janvier e de Hannibal Price, todos do final do século XIX

(apud HURBON, 1988), tentaram provar a não inferioridade dos negros, mas

levantaram um conflito com relação aos mulatos: priorizar heróis negros ou heróis

mulatos? O conflito perpassa a história haitiana. Os mulatos não reivindicavam

tanto o heroísmo revolucionário, estando mais interessados em conquistar o poder

político e econômico. Seu argumento de serem considerados mais capacitados

para administrar a nova nação devido ao sangue branco que possuíam nas veias

foi facilmente rebatido pelos negros que tentaram mostrar que, apesar de não terem

sangue branco, ao se tornarem intelectuais, poderiam se libertar da suposta

inferioridade racial. No entanto, este aperfeiçoamento passava pelo equivocado

apagamento da africanidade pois os intelectuais se propunham a evitar a prática

dos costumes africanos com a ajuda de padres católicos. Tal era o tipo de resposta

que pretendiam dar à metrópole.

Os costumes renegados eram sobretudo as práticas do vodu e da língua

crioula, que faziam parte da cultura dos negros, inclusive dos líderes da revolução:

“Presque tous les intelectuels haïtiens de cette époque, de quelque tendance qu´ils

soient, s´entendent pour voir dans le vodu, la langue créole, des pratiques

retrogrades...”14 (HURBON, 1988, p. 60). Como os ensaístas imbuídos do

pensamento europeu do século XIX acreditavam que estas práticas

impossibilitavam o progresso do mundo negro, eles não reconheciam o vodu nem a

língua crioula como marca de identidade haitiana. Viam o vodu como um culto de

charlatães, como legado da “selvageria africana” que não queriam herdar. Logo, se

eles só reconheciam a reabilitação da raça negra pelo desaparecimento do vodu e

da língua crioula, a única saída parecia ser a assimilação à cultura ocidental. A

13Antenor Firmin, De l´égalité des races humaines (Anthropologie Positive), de 1885, as de Louis-Joseph Janvier, L´égalité des races, de 1884, e Un peuple noir devant les peuples blancs- Étude de politique et de sociologie comparées: la République d´Haïti et ses visiteurs, 1840-1882 (...) bem como a de Hannibal Price, De la réhabilitation de la race noire par la République d´Haïti, de 1891 (HURBON, 1988). 14 Quase todos os intelectuais haitianos desta época, de qualque tendência, viam o vodu, a língua crioula como práticas retrógradas...

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única forma de reabilitar o país, defendê-lo, era aproximá-lo da França pelas vias

do cristianismo e da pureza da língua, o que os levou a afirmar que “o Haiti era a

França negra” (JANVIER, 1883, p. 57, apud HURBON, 1988, p. 62).

Os mulatos, de tendência liberal, rivalizavam com os negros de tendência

nacionalista. No entanto, esta rivalidade se tornava mais complexa porque havia

intelectuais negros que partilhavam da tendência liberal. As duas tendências eram

assimilacionistas, ou seja, ambas queriam o liberalismo europeu, a edificação do

Estado, provando que o Haiti era um país civilizado. Queriam formar um corpo de

intelectuais capazes de dialogar com a França e com a Europa, formando alianças

(HURBON, 1988, p.63) e transformavam a problemática racial numa obsessão

advinda da herança da escravidão. Beaubrun Ardouin (apud Hurbon) sustentava

que a democracia no Haiti só se realizaria sob o comando dos mulatos, o que era

endossado pela Europa. Mas todas as tendências eram ambíguas, pois apelavam

para a interferência estrangeira para obter desenvolvimento.

Escritores e historiadores não invalidam os conceitos presentes nos

ensaios dos intelectuais haitianos do século XIX. Para Maximilien Laroche, o mérito

destes ensaios foi de “préparer l´avènement de l´indigénisme haïtien de 1928”15

(LAROCHE, 1991B, p. 59). Hurbon (1988) reconhece a obra de Firmin como a

única que ofereceu resposta às teses racistas européias, principalmente às de

Gobineau, que tinham o objetivo de justificar a escravidão. Nem mesmo Depestre,

crítico ativo da negritude caribenha, deixa de reconhecer o valor destas obras. Para

ele, a obra de Firmin, por exemplo, tornou-se uma precursora de poetas e artistas

das gerações do século XX: os seguidores do movimento da negritude em seu

início estariam passando por esta fase de pré-combate, como observa Depestre:

La vision que Firmin eut du rôle d´Haïti aida sans nul doute la génération qui le suit immédiatement – Massillon Coicou, Amédée Brun, Fernand Hibbert, Frédéric Marcelin, Justine Lhérisson, Antoine Innocent, Pauléus Sannon, Occide Jeantry, etc., à mieux articuler la poésie, le roman, le théâtre, l´essai, la musique, aux réalités bien spécifiques de notre pays. (...) Bien que De l´égalité des races humaines, surtout dans ses premiers chapitres, ait été dépassé par le progrès de la génétique et de la sociologie modernes, le livre forme un massif de six cent soixante-deux pages d´où l´on peut

15 preparar a ascensão indigenismo haitiano de 1928.

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aisément tirer au moins deux cents feuillets d´excellente anthologie.16 (DEPESTRE, 1980, p. 123)

Questões ligadas à raça, ao racismo e ao ostracismo que vitimavam os

haitianos também eram abordadas na poesia no final do século XIX. Era patriótica a

ponto de ressaltar o orgulho haitiano pela conquista da liberdade contra as forças

escravagistas com as próprias mãos (LAROCHE, 1991B), mas também era uma

“literatura militante”, onde “le feu d´artifice, l´explosion, l´éclair, le coup de feu, le

tonnerre, l´orage, sont les images des écrivains haïtiens”17 (LAROCHE, 1978).

A exaltação do país, da paisagem, das mulheres e dos fatos históricos

alimentava a inspiração dos poetas da época. O famoso poema intitulado

“Choucoune” (1883), de Osvald Durand, foi musicado e é celebrado tanto nas

camadas populares quanto nas elites haitianas. Segundo Maximilien Laroche, a

poesia de Durand poderia servir de marco divisor entre a poesia dita colonial e a

poesia dita nacional:

c´est avec lui [Osvald Durand] que, selon l´expression d´Antonio Candido, s´effectua cette ‘formation de la littérature’ qui marque le passage d´une littérature coloniale ou encore d´une littérature d´imitation à une littérature nationale, originale dans ses thèmes comme dans ses modes d´expression.18 (LAROCHE, 1991B, p. 60)

Além dele, outros poetas conseguiram o feito de ter reconhecimento nas

duas camadas sociais haitianas: Émilie Roumer, com “Marabout de mon coeur”

(1925) e Othelo Bayard, com “Haiti chérie” (1930). Para Laroche, o problema da

identidade nacional no Haiti passava pela exaltação da independência política e

pelos motivos que a viabilizaram:

Le problème de l´identité nationale, en Haiti, était réglé. (...) Il y avait un point de vue national dont l´indépendance politique et les motifs

16 A visão que Firmin teve do papel do Haïti ajudou sem nenhuma dúvida a geração que o sucedeu imediatamente – Massillon Coicou, Amédée Brun, Fernand Hibbert, Frédéric Marcelin, Justine Lhérisson, Antoine Innocent, Pauléus Sannon, Occide Jeantry, etc., a articular melhor a poesia, o romance, o teatro, o ensaio, a música, com as realidades bem específicas do nosso país. (...) Embora De l´égalité des races humaines, sobretudo nos seus primeiros capítulos, tenha sido ultrapassado pela sociologia e pelo progresso da genética modernos, o livro forma um maciço de seiscentas e sessenta e duas páginas de onde se pode facilmente ter pelo menos duzentas páginas de excelente antologia. 17 O fogo de artifício, a explosão, o relâmpago, o tiro, o trovão, a tempestade, são as imagens dos escriitores haitianos 18 Foi com ele [Osvald Durand] que, segundo afirmou Antonio Candido, efetuou-se esta ‘formação da literatura’ que marca a passagem de uma literatura colonial ou ainda de uma literatura de imitação a uma literatura national, original nos seus temas como nos seus modos de expressão

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qui y avaient conduit permettent de fixer le contour.19 (LAROCHE, 1991B, p. 61)

Ao contrário da poesia, a produção romanesca não representava, naquele

período, a nacionalidade haitiana. Era considerada uma produção abstrata,

totalmente voltada para a francofilia. Demesvar Delorme, Damocles Vieux e Etzer

Vilaire são os mais citados pelos críticos atuais como escritores que copiavam os

modelos romanescos franceses como “perroquets de la culture qui répétaient des

leçons apprises dans les livres venus d´ailleurs “20 (LAROCHE, 1991A, p. 37).

Esta mentalidade alienada que só se explica como sendo conseqüência do

processo colonial, passou a ser questionada durante a ocupação norte-americana

(1915-1934). Com a chegada dos marines americanos, com o objetivo de “civilizar”

o país, ou seja, impor o modelo norte-americano, surgiu um sentimento de defesa

da cultura haitiana que foi alimentado pelos vanguardistas. Nesta época, formou-se

a “génération de la gifle haïtienne” (DEPESTRE, 1980, p. 195) pois a ocupação

norte-americana serviu de tomada de consciência para os intelectuais locais ao pôr

“em xeque” a alienação dos mulatos que, como apontou Figueiredo, foram

afastados do poder pelos ianques, para os quais negros e mulatos se igualavam

(FIGUEIREDO, 2006, p. 375-6). Assim, humilhados, grandes produtores rurais

mulatos partiram para a Europa e só retornaram durante as crises relacionadas ao

comércio do café. No período em que estiveram na Europa os filhos desta

burguesia mulata foram influenciados pelas idéias vanguardistas que diziam

respeito à art nègre, aos estudos etnológicos sobre a África e, principalmente, aos

intelectuais negros americanos e africanos que se encontravam na Europa. Esta

descoberta do país de origem em espaço europeu e pela mediação das vanguardas

francesas foi o mesmo itinerário que Carpentier, Césaire, Oswald de Andrade, e

tantos outros artistas latino-americanos percorreram para contribuir para o

reconhecimento e independência literária de seu “país natal”. No Haiti, o

Indigenismo surge com o retorno de intelectuais e artistas mulatos que passaram

por este processo.

O Movimento defendia, então, uma “tomada de consciência por parte dos

escritores e artistas, no sentido de incorporar a cultura popular, até então relegada 19 O problema da identidade nacional, no Haiti, estava resolvido. (...) Havia um ponto de vista nacional no qual a independência política e cujos motivos que a viabilizaram permitem fixar o limite 20 papagaios da cultura que repetiam lições aprendidas nos livros vindos de fora

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à margem da sociedade” (FIGUEIREDO, 2005, p. 323) e foi marcado por duas

obras fundadoras: a Revue Indigène, em 1927, fundada por Jacques Roumain, Carl

Brouard, Philippe Thoby-Marcelin e Émile Roumer entre outros (FIGUEIREDO,

2004, p. 296), e a coletânea de ensaios Ainsi parla l´oncle, de Jean-Price Mars,

publicado um ano depois da Revue. Os indigenistas buscavam redefinir a cultura e

a identidade coletiva dos haitianos através da revalorização dos elementos culturais

populares e da tradição oral. Neste sentido, a contribuição das pesquisas

antropológicas promovidas por intelectuais do século XIX no Haiti, bem como

aquelas produzidas pelos etnólogos e funcionários franceses sobre a cultura

africana, contribuíram significativamente para estruturar as manifestações culturais,

para fortalecer o imaginário popular e para conceber a presença dos elementos

africanos no Haiti como traços de diversidade.

A Revue Indigène teve apenas seis números e trouxe o manifesto dos

indigenistas onde pregavam a incorporação dos elementos culturais populares tais

como religião, costumes e música, à literatura. Adotavam como título a palavra

indigène que, como alertou Figueiredo, não diz respeito ao índio:

O termo não evocava, portanto, ‘indígena’ ou o ‘índio’ natural da América, sendo empregado nos textos haitianos da época como sinônimo de nacional, podendo ser associado a nativismo, particularmente reativado por causa da ocupação americana, episódio traumático na história do país (FIGUEIREDO, 2006, p.379).

É interessante observar que o lançamento da Revue se deu no mesmo ano

da publicação da Revista de Avance, em Cuba, e o Indigenismo haitiano é

contemporâneo do indigenismo peruano, cujo maior representante foi José Carlos

Mariátegui.

Depestre considera Jacques Roumain o escritor que mais aprofundou a

busca de uma nova identidade haitiana (DEPESTRE, 1980, p. 95). Anos após o

lançamento da Revue, em 1934, ele fundou o Partido Comunista haitiano e sua

militância contra a ocupação americana na ilha o levou à prisão diversas vezes e ao

exílio. Entre seus feitos, está a criação do Bureau National d´Éthnologie, em 1941,

uma espécie de centro de estudos onde se discutiam e se concentravam assuntos

relacionados a problemas do homem negro haitiano e chegou a ser diplomata no

México, em 1942, deixando a direção do Bureau para Price-Mars. Entre suas obras,

o ensaio Les griefs de l´homme noir (1939), o romance Gouverneurs de la Rosée

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(1944) e o livro de poesias Bois d´ébène (1945) são os mais famosos. Este

romance é considerado pela crítica como o romance de fundação da literatura

haitiana por inaugurar “uma linhagem em que dois elementos da cultura popular

são incorporados : a tematização do vodu e do crioulo” (FIGUEIREDO, 2006, p.

388).

Price-Mars dirigiu o Bureau até 1944. Havia estudado medicina em Porto

Príncipe e na França, bem como antropologia. Suas idéias já haviam veiculado

antes do lançamento da Revue, em conferências públicas e em artigos (1910 a

1921) mais tarde compilados e publicados com o título Ainsi parla l´Oncle. Segundo

Roger Gaillard, no prefácio da re-edição deste livro, Price-Mars também

representou o Haiti diplomaticamente (PRICE-MARS, 1998, p. viii) na França, como

Carpentier representou Cuba. O que se destaca na contribuição de Price-Mars é,

sobretudo, o fato de desenvolver pesquisas etnográficas com objetivos

pedagógicos sobre a religiosidade haitiana bem como sobre a literatura oral e a

língua crioula.

Ainsi parla l´Oncle21 tem um estilo ensaístico diferenciado, onde um

narrador utiliza estratégias do discurso oral, do contador de histórias, para melhor

alcançar o imaginário do público. O objetivo principal do autor, como afirmou

Figueiredo, era o de “conceder ao vodu o caráter de religião, o que a tornaria digna

de ser aceita como qualquer religião, e de reconhecer o crioulo como língua

nacional do Haiti” (FIGUEIREDO, 2004, p. 296).

É preciso ressaltar que, para a época de sua publicação, Ainsi parla l´Oncle

representou o que Roger Gaillard chamou de “frisson de nouveauté”22, uma vez

que o vodu e a língua crioula eram renegados pelas classes letradas, em favor do

catolicismo e da língua francesa. Além do mais, estas manifestações de identidade

aconteciam no momento histórico da intervenção americana no país, quando se

promovia uma campanha contra as superstições populares e mais precisamente

contra o vodu, com o argumento de evitar a barbarização do país. Neste período, 21É provável que este livro, ou pelo menos os objetivos do indigenismo tenham exercido influência sobre as reflexões de Carpentier e de Glissant. Considere-se a descrição do vodu em El reino de este mundo, onde o escritor cubano expõe ritos, cantos e o coloca como elemento de força que teria levado os negros a vencerem rebeliões contra os brancos. Considere-se, ainda, o fato de Carpentier ter viajado ao Haiti para conhecer o “real” da história haitiana ao visitar as ruínas de La Ferrière e o Palácio de Sans Souci, o reino de Henri Christophe, para escrever El reino de este mundo como um romance reconhecido como histórico. 22 arrepio de novidade

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conforme Hurbon, desenvolveu-se uma psicose com relação ao vodu,

proporcionando uma associação deste com o reino de Satã, à bruxaria (HURBON,

1998, p.80), alimentada por uma literatura local e americana que buscou justificar a

obra civilizadora dos Estados Unidos.

Em Ainsi parla l´Oncle, Price-Mars, além de cumprir seu objetivo de

revalorizar os elementos populares, contribui para desalienar a elite haitiana que,

desde o século da independência visava a “se rapprocher de son ancienne

métropole, à lui ressembler, à s´identifier à elle. Tâche absurde et grandiose! Tâche

difficile”23 (PRICE-MARS, 1998, p.xxxvii). Romper com mais de um século de

tradição imitativa significava romper com “la faculté d´une société de se concevoir

autre qu´elle n´est”24, ou seja, com o que chamou de “bovarismo coletivo” a partir

de M. de Gaultier, que diz respeito aos sonhos que uma sociedade tem com o

inviável e o impossível, numa alusão direta ao personagem flaubertiano Madame

Bovary.

Neste sentido, Price-Mars pretendeu acordar a sociedade haitiana para ver-

se a si própria no espelho, sem se esconder nos valores franceses que sempre a

massacraram, seja desvalorizando a parte africana que compunha sua cultura, seja

ditando as regras de escrita literária e de convivência entre homens e mulheres.

Fazendo um balanço do Indigenismo haitiano, Depestre avalia

positivamente o Movimento quando afirma que Ainsi parla l´Oncle é o ponto de

partida de uma revisão crítica dos valores responsáveis pela crise nacional

(DEPESTRE, 1980, p.194). No entanto, como ressaltou Figueiredo (2006), alguns

críticos mais rigorosos condenam os indigenistas por não terem desenvolvido um

conteúdo político no Movimento. Como observou também Depestre, Price-Mars,

que teve uma vida longa, nunca protestou contra os terríveis escândalos da vida

política de seu país, sobretudo no período duvalierista.

De qualquer forma, o Indigenismo, ou a “negritude de Price-Mars”, foi a

chave para o surgimento de outras teorias ou conceitos, de outras formas de arte.

O realismo maravilhoso haitiano, por exemplo, conceito desenvolvido por Jacques

Stephen Alexis nos anos 1950, teria inspiração em Price-Mars na medida em que 23 se aproximar de sua antiga metrópole, assemelhar-se a ela, identificar-se com ela. Tarefa absurde e grandiosa! Tarefa difícil 24 a faculdade de uma sociedade de conceber como outra que ela não será

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valoriza os contos, o real haitiano, tal qual o real maravilhoso americano de

Carpentier, como será visto mais adiante.

Da negritude de Aimé Césaire à crioulização de Édouard Glissant

A influência das vanguardas francesas na Martinica é registrada no início

dos anos 1940, com a publicação da revista Tropiques, por Césaire, que acabava

de regressar de Paris. Tropiques trazia nas suas páginas o conceito de negritude

do poeta martinicano, formada organicamente nos anos 1930, quando ele ainda

estava na Europa.

Sem dúvida as manifestações de valorização da cultura negra de forma

geral, como o afro-cubanismo e o indigenismo haitiano, impulsionados pela

valorização das manifestações populares locais, inspiraram de alguma forma a

gênese da Negritude cesairiana, mas é importante ressaltar como surgiu este

conceito e como ela repercutiu no Caribe e em outras partes do continente.

A crítica admite que Césaire se viu fortalecido primeiramente por uma “rede

de solidariedade” existente entre intelectuais, artistas e escritores dos continentes

americano, europeu e africano. Esta solidariedade se tecia pela valorização das

culturas e conhecimentos das civilizações africanas, além da independência do

Haiti. Do mesmo modo, reconhece-se a contribuição do líder americano William

Edward B. Du Bois na luta pela defesa dos direitos dos negros americanos, a

emergência da arte negra no Harlem, em Nova York, bem como o projeto de

Marcus Garvey, um jornalista jamaicano que dirigiu o movimento em favor do

retorno dos negros americanos para a África (Back to Africa). Além destes dois

precursores da valorização da africanidade nas Américas, também se admite que

Césaire encontrou no surrealismo os meios para fazer emergir a poesia

revolucionária que tanto defendeu em Tropiques e nas suas obras posteriores a

1940.

Tudo o que dizia respeito à África interessava aos estudantes negros,

levando-os a devorar os estudos etnológicos de Maurice Delafosse e de Léo

Frobenius. Como ocorrera no Haiti, a partir da publicação de Ainsi parla l´Oncle, de

Price-Mars, os estudos sobre a África parecem ter sido a chave que serviu de

esclarecimento para a inquietação dos estudantes afro-antilhanos que procuravam

saber o que era “ser negro” ou as características da “personalidade negra”. Vale

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salientar que, como afirmou René Depestre (1980), os estudantes afro-antilhanos

se muniram de conceitos marxistas, surrealistas, freudistas e etnológicos, para

atacar o capitalismo, o colonialismo e principalmente, o racismo.

A influência desses elementos históricos sobre os poetas da Negritude se

efetivou em Paris, onde, aos poucos, perceberam as rivalidades entre as potências

européias. Eles se conscientizaram também das contradições existentes na política

de assimilação das metrópoles: no Haiti, o povo enfrentava uma nova colonização,

imposta pelos Estados Unidos e nas Américas em geral, predominavam o racismo

e a exploração dos negros. Assim, os jovens negros se desencantaram com o mito

da civilização ocidental como modelo absoluto. Logo, começaram a se reunir e

rapidamente passaram a tomar importantes iniciativas relacionadas a uma

consciência racial.

No contexto norte-americano, Du Bois (1868-1963) empenhou-se em

defender os direitos dos homens negros do seu país e criou a Associação Nacional

para o Progresso dos Homens de Cor (NAACPH), em 1910. O objetivo desta

associação era o de defender a preparação de estudantes negros para o mercado

de trabalho. Ele mesmo se engajou politicamente por uma África independente.

Segundo Lilyan Kesteloot, uma das primeiras estudiosas da negritude, Du Bois

ne s’est pas contenté d’un africanisme sentimental. Il sera secrétaire du tout premier congrès pan-africain organisé à Londres par le juriste Henry Sylvester William, et à la mort de celui-ci, Du Bois prendra, de 1919 à 1945, la direction de ce mouvement qui protestait contre la politique impérialiste en Afrique, qui luttait déjà, avant les Africains, pour l’indépendance africaine.25 (KESTELOOT, 1981, p. 15)

A emergência da arte negra no bairro do Harlem, em Nova York, foi um

momento que ficou conhecido como Renascimento Negro, que teria se originado no

final da I Guerra Mundial. Nele se destacaram escritores de expressiva criatividade,

tais como Claude Mckay, Langston Hughes e Countee Cullen, cujo objetivo era de

denunciar a discriminação racial, mas também o de sublinhar o elemento cultural

africano em suas vidas: “Je suis un nègre: / Noir comme est la nuit / Noir comme les

profondeurs de mon Afrique” (Langston Hughes, apud LECHERBONNIER, 1977,

25Não se contentou com um africanismo sentimental. Ele será secretário do primeiro congresso pan-africano organizado em Londres pelo jurista Henry Sylvester William, e com a morte deste último, Du Bois, de 1919 a 1945, dirigirá este movimento que protestava contra a política imperialista na África, que já lutava, antes dos africanos pela independência africana.

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p.12). A emoção com que assumiam sua africanidade nas poesias e nas

apresentações em Paris contagiou os poetas da negritude. Marcus Garvey

conseguiu mobilizar a consciência negra americana despertando-a pelo menos

para o debate sobre as possibilidades de retorno. Além do mais, Garvey também

conseguiu vitalizar certas atitudes que eclodirão bem mais tarde, após a Segunda

Guerra Mundial: “O jamaicano Bob Marley, as seitas religiosas dos Rastafari

revelam quanto seu aparecimento tinha raízes muito mais profundas” (DAMATO,

1983, p. 114.).

Em Paris, os martinicanos Etienne Thélus Lero, Jules Monnerot, René

Menil, Maurice S. Quitman, buscavam se reunir em “salões”. O salão promovido

pelas irmãs martinicanas Paulette e Andrée Nardal e o médico haitiano, Docteur

Sajou, promovia a publicação de uma revista bilingüe (inglês-francês), La Revue du

Monde Noir (1931) que, segundo Figueiredo (1998), reunia poetas como Langston

Hughes e Claude Mckay e cumpria o objetivo de buscar uma consciência racial

através da exploração da riqueza histórica do passado africano. Outra publicação,

Légitime Défense (1932), fundada por Étienne Léro, tem em seu editorial do único

número um manifesto “contra o mundo capitalista, cristão e burguês”, bem como

contra a alienação do negro, principalmente o da Martinica. Os colaboradores da

revista reivindicavam uma nova forma de criação e criticavam severamente os

poetas antilhanos que faziam uma imitação servil dos parnasianos. Segundo Lilyan

Kesteloot

même en France, plus personne ne songeait à écrire comme les parnasiens! (...) En France, la poésie était libérée de toutes les conventions et aux Antilles on s’appliquait toujours, par conformisme, à ciseler des vers à la manière de Leconte de Lisle.26 (KESTELOOT, 1981, p. 75)

Após a publicação do único número de Légitime Défense, surgiu a revista

L’Étudiant Noir (1935). Foi Césaire quem criou o substantivo negritude, na

publicação da primeira versão do poema Cahier d’un retour au pays natal, na

revista parisiense Volontés, em 1939:

ma négritude n’est pas une pierre sa surdité ruée

26 Até mesmo na França, ninguém mais sonhava escrever como os parnasianos! (...) Na França, a poesia estava livre de todas as convenções e nas Antilhas ainda havia, por conformismo, quem se dedicasse a aprimorar versos à Leconte de Lisle.

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contre la clameur du jour ma négritude n’est pas une taie d’eau morte sur l’oeil mort de la terre ma négritude n’est ni une tour ni une cathédrale. (CÉSAIRE, 1983, p. 46-7)

Através desta palavra, Césaire assume integralmente o fato de ser negro e

defende os valores dos povos africanos, recusando a negatividade que lhes fora

imputada. Desse modo, ser negro e expressar sua negritude seria valorizar as

raízes africanas. Vale lembrar que numa explicação do próprio Césaire para chegar

ao termo negritude, ele afirma que sofreu resistência por parte dos afro-antilhanos

com relação ao uso da palavra “nègre”: “nous avons pris le mot nègre comme um

mot défi. (...) Certains pensaient que le mot nègre était trop offensant, trop agressif:

alors, j´ai pris la liberté de parler de négritude“27 (Apud DEPESTRE, 1980, p. 142).

A intenção era realmente a de provocar a reflexão dos intelectuais e da população

negra e, neste sentido, as vanguardas francesas nutriram a negritude.

De todos os “ismos” da época, o surrealismo parece ter sido o que mais

ajudou na sustentação da Negritude. Primeiramente, porque os surrealistas

defendiam nos seus manifestos uma posição de condenação à civilização ocidental

e cristã, a racionalidade, a lógica, bem como o capitalismo e a ideologia burguesa.

Esta posição se coadunava com a visão dos afro-antilhanos sobre a interferência

das metrópoles colonizadoras na vida das colônias. Em seguida, porque o próprio

André Breton descobre em Césaire, através do Cahier, um poeta mais surrealista

do que um surrealista francês durante a guerra28. Esta descoberta rendeu um artigo

de Breton na revista Tropiques no qual enaltece a poesia de Césaire.

A eclosão da II Guerra Mundial leva Césaire de volta à Martinica. Formado

na École Normale Supérieure, ele passou a ensinar no Liceu Schoelcher. Lá,

juntamente com sua esposa Suzanne, René Ménil e Aristide Maugée, resolveu dar

novo impulso à produção literária da ilha. Inicialmente publicou a revista Tropiques

(CÉSAIRE, 1978), cujo primeiro número, em 1941, traz uma reflexão sobre o que

ele chamou de “vide culturel” da ilha: “Terre muette et stérile. C’est de la nôtre que

je parle.” O vazio cultural, constatado e assumido pelos colaboradores da revista,

27 Nós tomamos a palavra negro como uma palavra desafio. (...) Alguns pensavam que a palavra negro era muito ofensiva, muito agressiva: então, tomei a liberdade de falar de negritude 28Em 1941, André Breton faz uma escala na Martinica, em viagem para os Estados Unidos e, por acaso, lê um trecho do Cahier publicado na revista Tropiques.

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seria o resultado do servilismo do intelectual martinicano. Paradoxalmente, é esse

mesmo vazio cultural que servirá de estímulo para implementar mudanças na

Martinica: La franchise du poète est poésie. Nous, Martiniquais, nous ne sommes pas encore à l’âge d’or de la Poésie. Nous sommes à l’âge de la critique et notre franchise, aujourd’hui, sera une critique d’art.29 (CÉSAIRE, 1978, p. 61)

Algumas reflexões da Tropiques se reportavam não somente à situação

martinicana, mas também à de dependência e servilismo de todo o Caribe, numa

tentativa explícita de valorizar a produção literária da região. Tem-se, por exemplo,

a Lettre Vénézuélienne, demonstrando um certo interesse pela integração cultural:

“Pays coloniaux ou sémi-coloniaux, pays qui se cherchent. /(...) tendent à affirmer

leur originalité propre. Et dans cette fièvre, debout, lá, ‘le nouvel Indien’, ici le Nègre

nouveau.”30(CÉSAIRE, 1978, p. 52)

A negritude não ficou imune às críticas de pensadores de países também

colonizados e da própria França. No ensaio Orphée Noir, prefácio do livro de

Léopold Sédar Senghor, Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de

langue française (1948), Sartre primeiramente reconhece a relevância da

negritude, principalmente através da poesia de Césaire, cuja originalidade é

d’avoir coulé son souci (...) puissant de nègre, d’opprimé et de militant dans le monde de la poésie la plus destructrice, la plus libre et la plus métaphysique, au moment où Éluard et Aragon échouaient à donner un contenu politique à leurs vers.31 (SARTRE, 1948, p.xxviii) 1965

Essa poesia teria fornecido elementos essenciais para reativar a inspiração

dos poetas surrealistas franceses que jamais poderiam se expressar e sentir como

os poetas negros. Em seguida, o filósofo francês aborda o caráter dialético da

negritude. Por um lado, ela teria tomado uma posição radical de combate ao

racismo, servindo-se de um racismo contra os brancos, “um racismo antiracista”

(SARTRE, 1948, p. xi). Nesse sentido, os seguidores do movimento corriam o risco

de se tornarem igualmente racistas em relação ao branco. Por outro lado, a 29 A franqueza do poeta é poesia. Nós, martinicanos, ainda não estamos na idade de ouro da Poesia. Nós estamso na idade da crítica e nossa franqueza, hoje, será uma crítica de arte. 30 Países coloniais ou semicoloniais, países que se buscam. /(...) tendem a afirmar sua originalidade propre. E nesta febre, de pé, lá, ‘o novo indio’, aqui o Negro novo. 31 ter direcionado sua preocupação potente de negro, de oprimido e de militante no mundo da poesia mais destruidora, mais livre e a mais metafísica, no momento em que Éluard e Aragon fracassavam ao dar um conteúdo político a seus versos.

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negritude possibilitou o nascimento de uma consciência livre: de mito doloroso teria

passado a anunciadora da esperança, um mal que teria vindo para o bem. Esta

postura dialética, como sugere Sartre, faz crer que a negritude seria superada, ou

seja, ele prevê que aquele conceito seria revisado, contestado. Haveria um

progresso de pensamento que culminaria com o nascimento de uma sociedade

sem raça, o que seria apenas uma possibilidade, uma esperança de realização de

uma nova sociedade, onde a cor da pele não influenciasse nas decisões sérias.

Sem falar que ele também critica os intelectuais da negritude em adotar a língua

francesa como língua de reivindicação. Para ele, é contraditório negar e reafirmar

ao mesmo tempo a superioridade do colonizador.

Outro ponto visado na negritude foi o teor generalizante de suas idéias. A

negritude não teve repercussão nos países africanos de língua inglesa e alguns

escritores destes países, como Wole Soyinka e Chinua Achebe a contestaram, por

postularem uma África utópica, inocente e pura. Daí parece ter surgido a célebre

frase atribuída a Soyinka Le tigre ne proclame pas sa tigritude, il saute sur sa proie.

Na Martinica, Glissant reconhece o saldo positivo da negritude, mas afirma que a

tentativa de universalizar o homem negro não convence. Para o ensaísta,

reconhecer as origens africanas não significa voltar para a África. O saldo positivo

da negritude é reconhecido: o homem negro passou a perceber que tinha um

passado e uma história, vinculados às culturas africanas.

Glissant iniciou sua carreira inovando; suas primeiras reflexões teóricas

relacionadas a um nível local (a Martinica) assumiram uma ampliação para o nível

universal, fazendo com que ele seja considerado um importante pensador e

ficcionista na contemporaneidade. Sua colaboração para a emergência da Martinica

no cenário cultural caribenho e francês passa pela noção de antilhanidade, no final

dos anos 1950 e seus desdobramentos poéticos como “relação”, “crioulização”,

“caos-mundo”, “diverso”, entre outras que lhe serviram de suporte filosófico.

Para ver neste tópico a antilhanidade, o contexto em que surgiu e sua

aplicabilidade, à época, é necessário considerar alguns pontos da bibliografia de

Glissant. No seu estudo sobre Glissant, Michael Dash (1993) explicita seu itinerário

intelectual de forma bastante concisa. Quando Césaire já havia praticamente

encerrado a publicação da revista Tropiques, Glissant ainda terminava os estudos

secundários no Liceu Schoelcher em Fort-de-France. Em 1946, quando a Martinica

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foi transformada legalmente em Departamento Ultramarino (D.O.M.) da França, ele

seguiu para Paris, para estudar filosofia na Universidade da Sorbonne e etnologia

no Museu do Homem.

A década de 1950 foi um período muito produtivo na sua carreira, pois além

de participar como crítico literário na revista parisiense Les Lettres Nouvelles, (1953

a 1959), publicou, além das coletâneas de poemas — Un champ d’Îles (1953), La

terre inquiète (1954), Les Indes (1956), Le sel noir (1959) — seu primeiro ensaio,

intitulado Soleil de la Conscience (1956), e seu primeiro romance, La Lézarde

(1958), que lhe rendeu o prêmio literário francês Renaudot.

Seu retorno à Martinica, em 1960, foi marcado pela atuação poética e

política (DAMATO, 1996) em favor da independência. Ele chegou a fundar o Front

Antillo-Guyanais, cuja repercussão política o levou a deixar a ilha no período de

1961 a 1965, quando publicou a peça Monsieur Toussaint (1961) e o romance

também premiado Le Quatrième Siècle (1964).

A partir do seu segundo retorno à Martinica, em 1965, Glissant iniciou uma

série de ações visando a mudanças nas atividades culturais desenvolvidas na ilha.

A primeira delas diz respeito à fundação do Institut Martiniquais d’Études (IME) no

início dos anos 70, que buscava congregar a comunidade antilhana na tentativa de

despertá-la para uma consciência da “cultura coletiva”, estimulando atividades

como colóquios, concertos, exposições e reflexões sobre literatura, que eram

publicadas na revista do IME, a Acoma, aberta aos intelectuais de todas as

Antilhas. Foi nessa efervescência cultural que Glissant publicou seu segundo

ensaio, L’Intention Poétique (1969), que segundo Dash, marcou a emergência de

Glissant como teórico. Nesta obra estão reunidos tanto textos escritos quando

ainda estava na França, como os que ele redigiu na Martinica, enquanto durou o

IME.

Vale lembrar que nos anos 1970, foi iniciado o processo de modernização

da Martinica. A transformação física da ilha, com a construção de estradas e

prédios, veio acompanhada de transformações culturais. Le Discours Antillais

(1981), uma coletânea de ensaios que lhe permitiu divulgar suas idéias, na esfera

mundial, dá conta de suas preocupações naquele período.

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A noção de antilhanidade surgiu no final dos anos 1950, quando Glissant

percebeu que as idéias da negritude, de valorização do ser negro, eram

generalizantes e essencialistas. Glissant considerava que o povo antilhano estava

doente e desequilibrado em decorrência dos traumas provocados tanto pela

escravidão quanto pela cidadania francesa prometida pela lei de

departamentalização que, ao adotar um paternalismo com as subvenções

destinadas à ilha, provocava a falta de iniciativa em buscar resolver os problemas

com os meios locais, além do isolamento em relação às ilhas vizinhas.

Assim, a antilhanidade surgia como uma solução para a união política e

cultural das ilhas caribenhas, já que a região era um verdadeiro arquipélago

também no sentido histórico, cultural e econômico. Glissant defendia a idéia que os

caribenhos, independentemente do tipo de colonização, tinham uma história

comum. A antilhanidade seria um novo olhar, uma nova forma de conceber as ilhas

do Caribe, como um espaço comum, com história e poéticas comuns e problemas

cuja solução estaria na aceitação destes fatores que unem as ilhas.

Para o ensaísta, qualquer tentativa de renovação deveria passar pela

análise e aceitação da situação real de pobreza histórica, econômica, lingüística,

geográfica e social das Antilhas. Imaginou que poderia haver uma unidade na

região, o que ocasionaria a reunião das ilhas: “Aux Antilles, d’où je viens, on peut

dire qu’un peuple positivement se construit. Né d’un bouillon de cultures, dans ce

laboratoire dont chaque table est une île”32 (GLISSANT, 1956, p.15). Em outras

palavras, esta busca coletiva do real antilhano abarcava tanto a terra como a

história e a língua, além da conscientização do povo de cada ilha para encontrar

soluções para seus problemas, sem a intervenção da metrópole.

Em Le Discours Antillais, há três momentos em que o autor cita a palavra

antilhanidade. No primeiro, ele afirma e defende que a Martinica poderia viver sem

a ajuda da França. No segundo, ele busca a idéia de antilhanidade considerando a

relação de amor e ódio entre martinicanos e franceses como uma questão a ser

superada. No último, ele faz a seguinte colocação sobre a antilhanidade:

Plus qu’une théorie, une vision. La force en est telle qu’on en dit n’importe quoi. J’ai entendu en deux ou trois occasions proposer

32 Nas Antilhas, de onde venho, pode-se dizer que um povo está se construindo. Oriundo de um caldo de culturas, neste laboratório onde cada mesa é uma ilha

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l’antillanité (sans autre précision) comme solution globale à des problèmes vrais ou fantasmés.33 (GLISSANT, 1981, p. 495)

Para Glissant, seria necessário pensar a antilhanidade como uma possível

solução para os problemas dos antilhanos. Entretanto, ele parece alertar que o

termo não poderia ficar apenas no âmbito teórico mas deveria também atingir o

real, considerando-a como um sonho a se realizar: “La notion d’antillanité surgit

d’une réalité que nous aurons à interroger, mais correspond aussi à un voeu dont il

nous faudra préciser ou fonder sa légitimité”34 (GLISSANT, 1981, p. 422).

É pertinente observar que, quando Glissant escreve Monsieur Toussaint

(1961), ele aplica a antilhanidade. Ele conheceu a realidade histórica haitiana numa

resenha de El reino de este mundo, como se pode observar no texto “Alejo

Carpentier et l´autre Amérique”, publicada em março de 1956 e que faz parte da

sua coletânea de ensaios Intention Poétique (1969). Ao retomar a história dos

heróis da revolução de Saint Domingue, antes mesmo de Césaire, com a Tragédie

du roi Christophe (1963), ele se apropria da história do Haiti, que é história

antilhana. Também parece ser significativo que seus primeiros romances, La

Lézarde e Le Quatrième Siècle, tratem de uma temática particular da Martinica mas

que pode ser aplicada a todas as ilhas pela própria formação populacional histórica

das ilhas.

Glissant tinha consciência de que era necessário dar tempo para a

descolonização do imaginário dos antilhanos que sofreram séculos de dominação.

Outros antilhanos, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant seguem

sua reflexão proclamando-se “crioulos” no Éloge de la Créolité (1989). Neste texto,

os autores retomam as reflexões de Glissant sobre a antilhanidade e a negritude de

Césaire, e propõem a crioulidade:

“Nem Europeus, nem Africanos, nem Asiáticos, nós nos proclamamos Crioulos. Isso será para nós uma atitude interior, ou melhor: uma vigilância, ou, ainda, uma espécie de invólucro mental em cujo interior se construirá nosso lugar em plena consciência do mundo” (BERNABÉ, CHAMOISEAU e CONFIANT, 1989).

33 Mais que uma teoria, uma visão. Sua força é tamanha que dela se diz qualquer coisa. Em duas ou três ocasiões ouvi a proposta da antilhanidade (sem nenhuma outra precisão) como solução global para problemas reais ou imaginários. 34 A noção de antilhanidade surgiu de uma raalidade que devemos questionar, mas corresponde também a um voto, um desejo, cuja legitimidade necessitaremos precisar ou fundar

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Para estes escritores, que na época viam a civilização caribenha ainda

“balbuciante e imóvel”, a crioulidade

é o agregado interacional ou transacional dos elementos culturais caraíbas, europeus, africanos, asiáticos e levantinos que o jugo da história reuniu sobre o mesmo solo. Durante três séculos, as ilhas e as áreas do continente que esse fenômeno afetou foram verdadeiras forjas de uma humanidade nova, onde línguas, raças, religiões, costumes, maneiras de ser de todas as faces do mundo, encontraram−se brutalmente desterritorializadas, transplantadas em um contexto onde tiveram que reinventar a vida. (CHAMOISEAU, BERNABÉ, CONFIANT, 1989).

Ao buscar congregar não só os elementos de formação populacional do

Caribe mas também as línguas, as religiões e os costumes no conceito de

crioulidade, os autores do Éloge seguem as pegadas da obra ensaística de

Glissant. Ao prefigurarem que a mistura destes elementos diversos anunciam o

nascimento de um outro elemento, além de estarem se reportando à mestiçagem,

amplamente anunciada por Carpentier, também se reportam à antilhanidade e à

negritude. Entretanto, ao reafirmarem também que a crioulidade “é o cimento” da

cultura caribenha, tanto no campo lingüístico quanto no cultural, eles são revisados

por Glissant já em 1990, em Poétique de la Relation, ao propor a crioulização como

processo, como um fenômeno em movimento que abarca e amplia a antilhanidade

e a crioulidade e que, vista pelo âmbito cultural, aplica-se não só ao âmbito

caribenho, mas também ao mundo inteiro. Para Glissant a crioulização é

non seulement une rencontre, un choc (...) un métissage, mais une dimension inédite qui permet à chacun d’être là et ailleurs, enraciné et ouvert, perdu dans la montagne et libre sous la mer35 (GLISSANT, 1990, p. 46)

Como vemos, Glissant parece equiparar crioulização à mestiçagem, mas

atentou para o movimento, o dinamismo, sugeridos pela primeira. Glissant afirmou

que crioulização é uma mestiçagem com um elemento a mais que é a

imprevisibilidade dos resultados:

Si nous posons le métissage comme en général une rencontre et une synthèse entre deux différents, la créolisation nous apparaît comme le métissage sans limites, (...) les résultantes imprévisibles.36 (GLISSANT, 1990, p. 46)

35 Não somente um encontro, um choque (...) uma mestissagem, mas uma dimensão inédita que permite a cada um estar aqui e noutro local, enraizado e aberto, perdido na montanha e livre no mar. 36 Se considerarmos a mestiçagem como em geral um encontro e uma síntese entre dois diferentes, a crioulização

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Se a apropriação do espaço, assim como a da língua e a da história, é a

chave para a crioulização glissantiana, como defende Damato (1996), entende-se

que o espaço do Caribe é o espaço de abertura, que dialoga com outras realidades

e que firma relações. Ao contrário do Mediterrâneo que é um mar fechado, o mar do

Caribe é aberto, suas ilhas representam realidades diversas, de culturas

compósitas, que sobrevivem em movimentos contínuos e imprevisíveis.

Alejo Carpentier – surrealismo e real maravilhoso americano

La posición de Alejo Carpentier en la literatura latinoamericana del siglo veinte ya no es materia de disputa. Junto con Neruda y Borges, se le reconoce como figura clave de una tradición literaria de la que él mismo es uno de los fundadores. Las contribuciones de Carpentier como musicólogo y como estudioso de la historia y el arte latinoamericanos, y el papel decisivo que desempeño en los inicios del movimiento afrocubano y del vanguardismo también han sido reconocidos.37

(ECHEVARRÍA, 1993, p. 21)

A principal contribuição de Carpentier para as construções identitárias do

Caribe é, sem dúvida, a elaboração do conceito de real maravilhoso americano. A

sua importância para a chamada “nova narrativa americana” é comprovada por

muitos críticos. Otto Maria Carpeaux enaltece a figura de Carpentier na

apresentação da edição de 1985 da tradução brasileira de El reino, ao afirmar que o

cubano era uma “personalidade de muitas facetas: homem de cultura européia e

americana, nacionalista latino-americano e revolucionário.” (CARPEAUX, apud

CARPENTIER, 1985, p. iii). A alusão à pluralidade cultural de Carpentier relaciona-

se à erudição do escritor por ter exercido várias atividades profissionais como o

jornalismo e o ensino da teoria musical. Mas pode também aludir à sua dupla

nacionalidade, (filho de europeus instalados em Havana ou ainda ao fato de ter sido

representante do governo cubano de Fidel Castro na Europa, a partir dos anos

1960).

_____________________ seria a mestiçagem sem limites, cujas resultantes são imprevisíveis. 37 A posição de Alejo Carpentier na literatura latino-americana do século vinte já não é questionada. Juntamente com Neruda e Borges, ele é reconhecido como figura chave de uma tradição literária da qual ele mesmo é um dos fundadores. As contribuições de Carpentier como musicólogo e como estudioso da historia e da arte latino-americanas, e o papel decisivo que desempenhou nas origens do movimento afro-cubano e do vanguardismo também foram reconhecidos.

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O mexicano Roberto Echevarría, no seu Alejo Carpentier: El peregrino en

su patria, evidencia a grandeza da obra do cubano: “Es un archivo iconográfico, un

monumento – el fundamento de la casa de la ficción latinoamericana”38

(ECHEVARRÍA, 1993, p. 345). Ele faz alusão à produção “nacionalista” do cubano,

como a vê Carpeaux, pela temática histórica que repercute os conflitos políticos e

identitários do continente americano.

Sua participação como diretor da revista Carteles e como membro do Grupo

Minorista, responsável pela fundação da Revista de Avance (já nos anos 1927-8)

abre caminho para um engajamento artístico importante para época. O Grupo era

formado por diversos intelectuais, tais como Jorge Manach, Juan Marinello,

Francisco Ichazo, Martí Casanovas, bem como Nicolas Guillén, e refletia sobre

temas importantes no início dos anos 1920, pois o Grupo “rompia com a tradição no

âmbito da invenção de formas, experiências literárias, teatrais, “animado por um

jovial e impetuoso desejo de originalidade.” (CARPENTIER, 1989, p. 6). Havia

regularmente a promoção de conferências, debates e exposições tais como a Ars

Nova que inaugurou a vanguarda na América Latina (SCHWARTZ, 1995, p. 285).

Havia uma circulação de informações advindas de outros países da

América Latina, ou seja, uma solidariedade intelectual que favorecia a chegada de

revistas de vários países. Não por acaso, o texto que serviu de manifesto ao

primeiro número da Revista de Avance, em 1927, “Ao levantar Âncora”,

metaforizava um barco zarpando tal como em Proa (1924), uma das revistas que

marcaram a vanguarda em Buenos Aires, segundo Schwartz. Percebe-se que os

Minoristas se inspiravam nos signatários da revista argentina até mesmo na criação

e exposição dos objetivos do grupo de forma geral: “Queremos movimento,

mudança, avanço, até no nome! E uma independência absoluta – até do Tempo!”

(Revista de Avance, 1927, Apud SCHWARTZ, 1995, p.285).

Carpentier (1987) afirmou que a Amauta e El Machete, publicadas por José

Carlos Mariátegui (1926), no Peru, e por Diego Rivera (1924), no México,

respectivamente, já traziam as idéias vanguardistas européias em suas páginas.

Também afirma que o grupo conhecia essas idéias tanto por intermédio delas como

por uma outra revista, a L´Esprit Nouveau, dirigida pelo arquiteto Le Corbusier, na

38 É um arquivo iconográfico, um monumento – o fundamento da casa da ficção latino-americana.

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França. Nesta última, o grupo podia apreciar obras de Picasso, Braque e demais

artistas do período, o que sugeria temas para debates em torno da arte que estava

sendo produzida na Europa e no continente americano.

Além de refletir sobre questões estéticas, o grupo Minorista defendia uma

posição política em relação aos problemas sociais que preocupavam os intelectuais

da época. Eles questionavam a “invasão do capitalismo americano nas terras

cubanas, as ‘ditaduras’, a ‘reforma do ensino’ ” (CARPENTIER, 1987, p.151) e

refletiam sobre a idéia de “unidade” que era atribuída ao continente por José Martí,

autor do ensaio Nuestra América, publicado ainda no século XIX. Este último tema

de reflexão seria, nas décadas seguintes, a chave da discussão sobre a identidade

da América Latina.

A participação de Carpentier no grupo tornou-se, talvez, o fato mais

importante no início de sua carreira conforme Schwartz:

De 1927 a 1930, a Revista de Avance se firmou como o órgão mais importante de renovação estética e de preocupação política em Cuba. Uma das novas vertentes exploradas na revista foi a da reivindicação de cunho proletário e socialista, além da poesia negra. (SCHWARTZ, 1995, p. 285)

Mas o “divisor de águas” teria sido a interferência do ditador Gerardo

Machado no grupo. Atitudes arbitrárias de censura às reivindicações de caráter

progressista da Revista de Avance levaram Carpentier e outros membros à prisão.

Foi neste período que ele escreveu o seu primeiro romance, Ecué-Yamba-O,

publicado apenas em 1933, na capital espanhola. Para sair do país, Carpentier

contou com a ajuda de Robert Desnos, que estava temporariamente instalado em

Havana (SCHWARTZ, 1995, p. 387) e que o convidou para trabalhar numa

emissora de rádio em Paris e que lhe emprestou seu passaporte para que deixasse

Cuba clandestinamente. Este fato inusitado marcou o início da carreira

propriamente dita de Carpentier, que pode ser vista rapidamente em três etapas

importantes: o exílio na França, o exílio na Venezuela, e a carreira diplomática na

Europa.

Na primeira etapa, postulamos que o contato que Carpentier manteve com

os poetas surrealistas franceses como Antonin Artaud, Jean-Louis Barrault,

Raymond Queneau e André Breton, foi extremamente importante. Dele, foi possível

a publicação de alguns artigos escritos em francês nas revistas Documents, dirigida

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por Georges Bataille, e Biffure, dirigida por G. Ribemont-Dessaignes. Apesar de

afirmar que fez poucas poesias surrealistas por preferir dedicar-se à escrita do seu

primeiro ensaio, cujo título era “Os pontos cardeais do romance na América Latina”,

é nessa época que ele se aproxima do conceito de maravilhoso.

Acreditamos que foi este ensaio que inaugurou sua disposição de conhecer

a América, ainda na Europa. Trata-se de uma análise comparativa e crítica de

quatro obras latino-americanas: Don Segundo Sombra, de Ricardo Güiraldes, La

Vorágine, de José Eustasio Rivera e Doña Bárbara, e Las lanzas coloradas,

respectivamente dos venezuelanos Rômulo Gallegos e Antonio Uslar Pietri

(CARPENTIER, 1987, p. 153). Para Carpentier, a análise destas obras serviu-lhe

de roteiro da América, pois conheceu os nomes dos rios de localidades que ele não

encontrava nos mapas, os quais pôde visitar anos mais tarde, quando começou a

escrever Los Pasos Perdidos (1953).

Na Europa viajou por vários países. Jorge Quiroga registra a participação

do escritor cubano em eventos culturais tanto na Alemanha (1932) quanto na

Espanha, onde participou do Congresso de Escritores (1937) (QUIROGA, 1984, p.

94). Estes contatos com os escritores espanhóis o aproximaram dos republicanos e

dos artistas que apoiaram a República, tal como García Lorca.

No início da II Guerra Mundial, como aconteceu com inúmeros latino-

americanos e afro-antilhanos, Carpentier retornou ao país natal. Viaja ao Haiti com

a companhia de teatro dirigida pelo ator e diretor francês Louis Jouvet. Esta viagem

fortuita, como afirma em vários textos teóricos, serviu-lhe de inspiração para

escrever El reino e para consolidar a idéia de real maravilhoso.

A segunda etapa importante da carreira de Carpentier, talvez a mais

significativa, diz respeito ao período de quatorze anos em que esteve exilado na

capital da Venezuela (1945 a 1959). Suas atividades profissionais se concentraram

no âmbito do jornalismo falado e escrito, possibilitando-lhe trabalhar em emissoras

de rádio e publicar regularmente inúmeros artigos no El Nacional (ECHEVARRÍA,

1993). Segundo Luisa Campuzano, no seu Alejo Carpentier entonces y ahora

(CAMPUZANO, 1997), onde busca resgatar a colaboração do escritor na revista

Orígenes, que circulou no território cubano de 1944 a 1956, Carpentier colaborou

com artigos relacionados com a música, embora ainda não fosse considerado um

narrador: “(...) cuando llega a las páginas de Orígenes, Alejo Carpentier es un

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periodista y crítico cultural famoso, un (co)autor de obras musicales y un escritor

que está prácticamente empezando su carrera” 39(CAMPUZANO, 1997, p. 12).

Deve-se destacar que os anos 1940 são fundamentais para a literatura do

Caribe e a da América Latina uma vez que, como afirmou Echevarría, constituem

el período de la búsqueda de la conciencia americana, del esfuerzo por desentrañar los orígenes de la historia y del ser hispanoamericano para fundar sobre ellos una literatura propia distinta de la Europa40 (ECHEVARRÍA, 1993, p.128).

O projeto de Carpentier para viabilizar o que chamou de “consciência

americana” consistia em “sentir a América”, “buscar sua história”, o ser latino-

americano, para “fundar” uma literatura que não mostrasse apenas um mas vários

elementos que compõem o continente. Esta tarefa não seria tão fácil, se não

tivesse se baseado em estudos antropológicos que estavam em voga na época. Ele

mesmo afirma que El reino é seu primeiro romance e não considera que Écué-

Yamba-O represente “seu estilo pessoal”, por ser um romance “imaturo” e trazer

as características da literatura das vanguardas que envolvem “metáforas

arriesgadas, adjetivos inusitados, onomatopeyas, ritmo entrecortado” 41(ECHEVARRÍA, 1993, p. 132). Carpentier mesmo chegou a afirmar que ele se

opôs

a sua reimpressão porque depois do meu ciclo americano que se inicia com El reino de deste mundo eu via Ecué-Yamba-O como uma coisa bisonha, pitoresca, sem profundidade – escalas e arpejos de estudante. (CARPENTIER, 1989, p. 7)

É particularmente interessante relembrar, ainda que rapidamente, que no

contexto cultural cubano em que Écué-Yamba-O foi escrito, as idéias positivistas

ainda estavam em voga. Assim, quando os antropólogos latino-americanos

escreviam sobre os negros, detinham-se na descrição de suas origens e ignoravam

ou não valorizavam (ainda) o legado da cultura africana para a América.

O texto de Fernando Ortiz do Contrapunteo Cubano del Tabaco y el Azúcar

(1940), teria ajudado na formação da base das discussões de Carpentier. Como se

sabe, o conceito de transculturação, visando inicialmente apenas Cuba, como

39“(...) quando chega às páginas da Orígenes, Alejo Carpentier é um jornalista e crítico cultural famoso, um (co)autor de obras musicais e um escritor que está praticamente começando sua carreira 40O período da busca da consciência americana, do esforço para arrancar as origens da história e do ser hispano-americano para fundar sobre estes uma literatura propria diferente da Europa 41metáforas arrscadas, adjetivos inusitados, onomatopéias, ritmo entrecortado.

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pleiteava Ortiz, era definida como um processo de desculturação, inculturação

correspondendo à perda e ao ganho de elementos culturais no contato de

diferentes culturas. Esta visão abria outros horizontes aos intelectuais da época,

que passaram a ver a mestiçagem não com a visão positivista em torno da raça,

mas como cultura. Assim, a obra de Ortiz ajudava os artistas a discutir questões

ligadas ao imaginário popular tal como a bruxaria, cujas práticas causavam impacto

sobre a sociedade recém-independente.

Com a revisão das teorias positivistas do início de sua carreira, Ortiz

promoveu sua entrada na filosofia das vanguardas que previa uma ruptura radical

com o racionalismo. Os jovens afrocubanistas dos anos 1940, como Carpentier,

queriam romper com o preconceito racial como sendo uma missão política e a obra

ortiziana servia de base para eles por apresentar um registro que “subraya los

aspectos sobresalientes de la cultura africana en Cuba y constituye el primer

recuento escrito y sistemático de sus mitos y creencias”42 (ECHEVARRÍA,1993, p.

59).

Carpentier já havia se conscientizado da riqueza da cultura africana nos

países caribenhos ao longo da formação do período que ele chamou “ciclo

americano”. Este ciclo inclui fatos históricos e valores religiosos que contribuíram

para a teorização do “realismo maravilhoso”. Sua viagem ao Haiti, em 1943,

colocou-o em contato com os elementos históricos, culturais e materiais que

marcaram a história haitiana. Carpentier pôde constatar a associação de práticas

do vodu a fatos históricos e a veracidade de episódios que retratam a Revolução de

Saint Domingue.

Formou-se aí o que chamou de “ciclo americano”, onde traçou um paralelo

entre a cultura ocidental e a cultura caribenha e por extensão, entre o Ocidente e a

América Latina, entre a igualdade dos direitos do homem proclamada pela

Revolução Francesa e a luta dos escravos. Este ciclo inclui também as várias

viagens que Carpentier fez pelo território venezuelano. O contato com a selva, com

os ribeirinhos e seus modos de vida e de arte levou-o a conhecer um dos rios mais

importantes do país, o Orinoco. As paisagens montanhosas o “maravilharam”, como

42 enfatiza os aspectos principais da cultura africana em Cuba e se torna o primeiro registro escrito e sistemático de seus mitos e crenças.

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ele mesmo expressa em artigos publicados no jornal El Nacional43 e compilados no

livro Visión de América (2000).

Esta etapa da carreira de Carpentier significou, para muitos críticos, um

mergulho na civilização arcaica, bárbara e mágica. Período necessário de

conscientização, de valorização, mas também a busca de uma origem, de um mito.

Etapa crucial para a publicação das obras subseqüentes: Los pasos perdidos, em

1953, considerado um romance autobiográfico e que trata de uma expedição às

profundezas da Venezuela; Guerra del tiempo, seguido de El acoso. Embora El

Siglo de las luces tenha sido escrito neste período de exílio venezuelano, ele só foi

publicado em 1962, três anos após a Revolução Cubana e quando Carpentier já

havia voltado para Cuba.

O “peregrino” estava de volta à sua pátria, como afirmou Echevarría e tinha

a temática da luta revolucionária e da reconstrução política do país a explorar nas

suas obras (ECHEVARRÍA, 1993). O novo governo reintegrou e uniu muitos

escritores que não haviam participado diretamente da revolução. Contudo,

Carpentier permaneceu pouco tempo em território cubano, uma vez que assumiu a

carreira diplomática. Esta seria a terceira etapa importante de sua vida.

Primeiramente, foi designado para representar o governo castrista junto à

UNESCO, na Europa. Posteriormente, Carpentier assumiu sucessivos cargos de

relevância diplomática até sua morte, em 1980. Vale ressaltar que ele continuou a

escrever, tornando o período em seus “productivos años setenta” (RAMA, 1981).

Publicou em 1974, Concierto Barroco e El Recurso Del Método, El arpa y la

sombra”(1979), posteriormente adaptado ao cinema e aclamado no Festival de

Cannes (QUIROGA,1984, p. 95).

O reconhecimento pelo seu trabalho literário é registrado em vários locais,

na América e na Europa. Na Espanha, deram-lhe o Prêmio Cervantes e na França,

o Prêmio Médicis, ambos em 1979. Em Cuba, criaram a Fundación Alejo

Carpentier, em 1993, uma entidade pública, sem fins lucrativos, com o patrimônio

doado por Lilia Andréa Esteban de Carpentier, cujo objetivo principal, entre outros,

é o de desenvolver projetos relacionados à identidade cubana e a projetos culturais.

43 Carpentier escreveu diversos artigos para o jornal El Nacional, mantendo uma coluna intitulada “Letra e Solfa”, sobre música, crítica de arte e literatura, até 1959.

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Em 2004, o centenário de nascimento de nascimento de Carpentier foi

comemorado amplamente em eventos importantes e talvez o mais importante tenha

sido o Congresso Internacional El siglo de Alejo Carpentier, promovido pela Editora

Casa de las Américas, de 8 a 12 de novembro de 2004, em Havana. Os textos

apresentados no evento foram publicados no nº 238 da revista Casa de las

Américas. No Brasil, Carpentier ficou mais conhecido a partir da publicação de El

reino (1965), com a tradução de João Olavo Saldanha. Vinte anos depois, foi

reeditado com apresentação de Otto Maria Carpeaux.

É importante considerar também que não faltaram críticas relacionadas ao

vínculo de Carpentier com a França. Guilhermo Cabrera Infante e Pablo Neruda

fizeram alusão à origem francesa do escritor cubano considerando-o, “más francés

que hispanoamericano”. Todavia, Luíza Campuzano rebate estas observações,

argumentando que a hispanofilia de Carpentier era muito maior, devido às

evidências marcantes que estariam no “período de exílio” da Venezuela, mais longo

que o da França. Além do mais, ela assinala que muitos críticos não perceberam

que a obra carpenteriana sofre de “síndrome de Mérimée” ou “españolidad literária”

(CAMPUZANO, 1993, p.44), ou seja, uma excessiva utilização de referências ao

escritor maior da Espanha, Miguel de Cervantes. No seu estudo, Campuzano cita a

presença cervantina e em especial a de Quixote, em pelo menos cinco das suas

obras: Semejante a la noche (1952), Concierto Barroco (1974), La consagración de

la primavera (1978), El Arpa y la Sombra (1979). Até mesmo em El reino, logo no

Prólogo, uma referência a Cervantes, numa epígrafe extraída de “Los trabajos de

Persiles y Segismunda”.

A importância de Carpentier para a América Latina pode ser apontada nas

palavras de André Trouche, que destaca ter sido ele o responsável pelo “processo

de afirmação do projeto criador hispano-americano, cristalizado pela denominação

de 'Nova Narrativa Hispano-Americana'” (TROUCHE, 2002) ou o que se

convencionou chamar de boom44 da literatura hispano-americana.

44Em análise sobre o conceito de boom e pós-boom, André Trouche assinala de forma bastante crítica que ambos os conceitos teóricos são forjados pela teoria econômica para analisar a performance de venda e marketing de um determinado produto, em modernas sociedades de consumo. Sua crítica evidencia, além do mais, que as gerações que se seguiram ao boom, a geração MacOndo, “apenas evoca uma metáfora da América capaz de suscitar o nome de um hambúrguer, ou da maior multinacional de fast-food.” (TROUCHE, 2002)

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O real maravilhoso

O projeto de real maravilhoso americano, como quer Carpentier, está

profundamente enraizado na realidade latino-americana, na noção de “condição

mestiça” do continente, desenvolvida por ensaístas locais, nos anos 1940.

Entretanto, concordamos que há também influências inegáveis das vanguardas

européias: o conceito de maravilhoso defendido pelos surrealistas e de mágico,

aplicado às artes plásticas nos anos 1920.

Refazendo a trajetória do real maravilhoso americano, que ficou mais

conhecido como realismo maravilhoso, levamos em conta, inicialmente, o que

afirmou Irlemar Chiampi no seu estudo de 1980. Para ela, o real maravilhoso

americano é inevitavelmente visto como um “manifesto da nova orientação

ficcional” latino-americana (CHIAMPI,1980, p. 32).

O termo maravilhoso surgiu no ensaio “Lo real maravilloso” (1948),

publicado no jornal El Nacional, retomado um ano depois como prólogo de El reino.

Para Carpentier, o continente latino-americano apresentava um cabedal natural,

cultural e histórico que deveria ser explorado, visitado, descrito, e, sobretudo, que

se revelava inovador com relação às técnicas de criação em voga na Europa da

época. O tom do texto, como quer Chiampi, é o de um manifesto. Primeiramente,

de rompimento com a corrente surrealista francesa e depois, de apelo aos novos

ficionistas para mergulhar nas profundezas da América. Ele mesmo afirma que dois

fatos contribuíram para a formulação do real maravilhoso americano: o rompimento

com surrealistas e a visita ao Haiti.

Para Carpentier, a concepção de maravilhoso defendida no Manifeste

Surréaliste (1924), bem como as técnicas utilizadas para expressá-lo, são

consideradas artificiais. Os surrealistas defendiam a expressão do inconsciente,

podendo recorrer aos sonhos, através da técnica de montagem artificial de figuras,

de imagens. Com isso, o escritor cubano denunciava a decadência pela qual passa

a literatura ocidental:

Teria sido muito fácil para mim, naquele momento, passar a fazer surrealismo. (...) Disse-me a mim mesmo: mas o que acrescentarei eu ao surrealismo, se o melhor do surrealismo já foi feito? Serei epígono, serei um seguidor, seguirei esse movimento que já está feito, que já está maduro? E de repente, me invadiu a idéia de América. (CARPENTIER, 1987, p. 152)

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Com relação à visita ao Haiti, ele conheceu o patrimônio histórico e

arquitetônico da Revolução de Saint-Domingue. As ruínas da cidadela La Ferrière e

o palácio Sans-Souci, ambos construídos pelo presidente e rei Henri Christophe, a

arquitetura da casa de Paulina Bonaparte, esposa do general Leclerc, faziam parte

deste patrimônio. Ele enfatiza que as práticas do vodu, como religião popular,

associavam-se a estes fatos históricos no quotidiano dos haitianos. Assim, cantos e

ritos remontavam à história dos ex-escravos Bouckman e Mackandal, que se

tornara um loa, uma entidade do vodu. Carpentier afirma reiteradamente em seus

textos teóricos que ele conheceu no Haiti os sincretismos culturais, bem como as

marcas da história do povo haitiano, como afirma na introdução do texto do Prólogo

de El reino:

Em fins de 1943 tive a sorte de visitar o reino de Henri Christophe - as ruínas, tão poéticas, de Sans-Souci; a grandeza imponente da Cidadela La Ferrière, intacta apesar dos raios e dos terremotos – e de conhecer a ainda normanda Cidade do Cabo, o Cap Français da antiga colônia, onde uma rua cercada por longuíssimos balcões conduz ao palácio de pedras brancas habitado antigamente por Paulina Bonaparte. Depois de sentir o tão bem propalado sortilégio das terras do Haiti, de ter encontrado as advertências mágicas pelas estradas de terra vermelha da Meseta Central, de ter ouvido os tambores de Petro e Rada, fui tentado a aproximar aquela maravilhosa realidade recém-vivida à exaustiva pretensão de suscitar o maravilhoso que caracterizou certa literatura européia nestes últimos trinta anos. (CARPENTIER, 1985, p. xv).

O manifesto mostrava então duas fórmulas, para ele, relativamente simples:

os intelectuais deveriam descrever a América para se conscientizar das maravilhas

que compunham a realidade do continente. Estava explícita a idéia de que a

apreensão da realidade americana passava pelo conhecimento e descrição

posterior da América profunda, das suas histórias, das suas mestiçagens, do seu

folclore e dos seus mitos, pois:

É evidente, pela virginidade da paisagem, pela sua formação, pela ontologia, pela afortunada presença fáustica do índio e do negro, pela Revelação que constituiu seu recente descobrimento, pelas fecundas mestiçagens que propiciou, que a América ainda está muito longe de ter esgotado seu caudal de mitologias. (CARPENTIER, 1985, p. xix).

O resgate do imaginário americano se daria principalmente pelos mitos e

crenças vivas. Para o escritor, a própria história do continente estaria repleta de

fatos extraordinários que suscitam o maravilhoso, como os rituais vodus que viu no

Haiti, sem a necessidade de recorrer às técnicas surrealistas.

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É interessante que sua argumentação em favor do real maravilhoso se

constrói paralelamente à descrição das técnicas surrealistas para expressar o

maravilhoso. Enquanto os surrealistas pensam em suscitar o maravilhoso com a

simples aproximação de elementos diferentes “Lo maravilloso, obtenido por trucos

de prestidigitación, reuniéndose objetos” (CARPENTIER, 1985, p. ii), a realidade

embebida de crenças e mitos existentes no Haiti estava latente, no dia a dia da

população. Esta mesma realidade também podia ser descrita a partir da história,

recheada de fatos “maravilhosos”, como no caso da Revolução de Saint-Domingue,

cuja marca está impressa na própria arquitetura da ilha ao longo dos séculos. O

Haiti é o modelo, o baú ou a arca onde se encontram mitologias e não é um locus

isolado. Para Carpentier, a ilha reflete a situação do continente inteiro.

O contato direto com a “maravillosa realidad” presente no reino de Henri

Christophe, com as paisagens, a história que alicerçou a cidadela e o palácio real,

com os relatos sobre o vodu, fez com que Carpentier descobrisse a resposta

necessária ao surrealismo. Em outras palavras, se a descoberta histórica e

arquitetônica da cidadela maravilhou, “assombrou” o escritor, ela também o inspirou

para formular sua poética, que serviu de contraposição à poética surrealista a qual

não se adaptava à realidade americana.

O pré-requisito para a existência do maravilhoso é, segundo o autor, a

presença da fé: “Antes de tudo, para sentir o maravilhoso é necessário ter fé.

Aqueles que não acreditam em santos não se podem curar com milagres de

santos” (CARPENTIER, 1985, p. xvii).

A fé que Carpentier reivindica é extensiva a toda a América Latina, mas

parece existir apenas enquanto houver cultura oral. Fazendo o contraponto, o autor

afirma que a Europa ocidental “perdeu” o seu sentido “mágico invocatório” com

relação, por exemplo, ao seu folclore, enquanto na América se conserva seu ritual

na “santería” cubana, no candomblé brasileiro e no vodu haitiano.

No trecho final do prólogo, Carpentier indica os procedimentos adotados na

escrita de El reino. Ele reitera que os dados históricos que se apresentam no texto

tais como datas, nomes de ruas e personagens foram rigorosamente respeitados,

conforme os registros históricos. Mas também alerta que o maravilhoso surge da

própria realidade. Assim, quando os escravos acreditavam nos poderes mágicos de

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Mackandal, eles davam vida ao maravilhoso do quotidiano mas também percebiam

e deformavam a realidade. Segundo Irlemar Chaimpi

a matéria conceitual do prólogo, (...) se desdobra em dois níveis de definição do real maravilhoso americano. O primeiro é constituído pelo modo de percepção do real pelo sujeito. O segundo, pela relação entre a obra narrativa e os constituintes maravilhosos da realidade americana (CHIAMPI, 1980, p. 33).

Carpentier também mostra como oposição entre o velho e o novo mundo

que os mitos europeus não se evidenciam com tanto vigor quanto os da América.

Aqueles já estariam deixando o imaginário popular, enquanto estes ainda estão

vigorosos, ou seja, a Europa “perdeu” seu caráter mágico enquanto a América não

esgotou seu “caudal de mitologias.”

Chiampi afirma que o que sustenta o real maravilhoso é o vodu. O que

respalda esta afirmação é principalmente o fato de que o personagem Mackandal

morre na fogueira mas renasce das cinzas, como uma fênix negra, tornando-se um

loa que sempre volta quando invocado nas cerimônias do vodu.

Para Carpentier, percebe-se o real maravilhoso “quando surge uma

inesperada alteração”, referindo-se claramente ao vodu. Ele mesmo adverte que:

o maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de um destaque incomum ou singularmente favorecedor das inadvertidas riquezas da realidad, ou de uma ampliación das escalas e categorías da realidade, percibidas com particular intensidade, em virtude de uma exaltação do espírito, que o conduz até um tipo de “estado limite”. (CARPENTIER, 1985, p. xvii)

Os verbos “alterar” e “ampliar” relacionam-se a uma ação que modifica o

real, ao passo que os verbos “revelar”, “iluminar” e “perceber” aludem a uma ação

que imita a realidade. Há, sem dúvida, a imbricação dos dois sentidos, o que

parece ser proposital, pois o próprio termo realismo maravilhoso, aplicado à

literatura hispano-americana, está associado à tradição cultural, além de ser

associado ao extraordinário, ao insólito, como afirmou Chiampi, com relação ao

âmbito lexical:

Maravilhoso é o que contém a maravilha, do latim mirabilia, ou seja, ‘coisas admiráveis’ (belas ou execráveis, boas ou horríveis), contrapostas às naturalia. Em mirabilia está presente o ‘mirar’: olhar com intensidade, ver com atenção, ou ainda, ver através. O verbo mirare se encontra também na etimologia de milagre — e de

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miragem — efeito óptico, engano dos sentidos (CHIAMPI, 1980, p. 48).

No âmbito histórico, maravilha está ligada à história da América que é

“maravilhosa” e causa perplexidade no europeu.

É importante destacar que o texto do Prólogo também introduz a concepção

de maravilhoso no sentido de fantástico, tal como seria teorizado por Tzvetan

Todorov: “Num mundo que é bem o nosso, tal qual o concebemos, (...) produz-se

um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar”

(TODOROV, 2003, p.148). Logo no início do texto, Carpentier anuncia que

abordará o tema da licantropia, ou seja, a capacidade humana de transformar-se

em animais, ao eleger como epígrafe um texto de Cervantes, Os trabalhos de

Persiles e Segismunda, escrito em 1617 (“... Entender-se-á com isso de se

transformarem em lobos que existe uma enfermidade à qual os médicos chamam

de mania lupina”). Com esta epígrafe, ele anuncia o sobrenatural, o misterioso.

Se para Carpentier o Haiti é o local adequado para que o maravilhoso seja

suscitado, convém considerar que a oralidade é o elemento que o mantém. A

oralidade é representada principalmente pela prática tanto da língua créole quanto

da religião vodu, que convivem com a língua francesa (em situação de diglossia) e

com o catolicismo. Carpentier mesmo assevera ter encontrado “advertências

mágicas nos caminhos vermelhos da Meseta Central” (CARPENTIER, 1985, p. xv).

Carpentier retomou o conceito no texto “De lo real maravilloso” americano,

publicado em 1964, no seu primeiro livro de ensaios Tientos y diferencias e em

1975, numa conferência intitulada “Lo barroco y lo real maravilloso”, pronunciada no

Ateneo de Caracas. Logicamente ele ratificou as características do realismo

maravilhoso, enfatizando a “idéia de realismo maravilhoso como uma forma de ser

e pensar”. Enquanto no texto do prólogo Carpentier admite a existência do real

maravilhoso somente no Haiti e na América, no texto de 1964 ele o admite em

outras culturas, ainda que saliente que ele difere dos demais por ser mestiço e por

estar presente em todos os lugares do continente latino-americano.

Ainda nesta época, no ensaio “Problemática da atual do atual romance

latino-americano”, ele parece ampliar o real maravilhoso na “virginidade” americana

para as temáticas que surgem nas grandes cidades. Ou seja, ele aborda a

americanidade das obras publicadas no período, recomendando aos escritores

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latino-americanos a utilização desses espaços urbanos, em vez de tradicionais

selvas, pampas, montanhas. Para ele, as cidades americanas

estão desde há muito tempo, em processo de simbiose, de amálgamas, de transmutações – tanto no aspecto arquitetônico como no aspecto humano (…). As nossas cidades ‘não têm estilo’. E no entanto, começamos a descobrir agora que possuem o que poderíamos chamar um ‘terceiro estilo’: o estilo das coisas que não têm estilo (CARPENTIER, 1987, p. 49)

Carpentier mostra que é possível ampliar os horizontes da literatura latino-

americana observando-se os contextos a partir da noção de contexto de Sartre:

raciais – convivência de raças em diversos estádios culturais, num mesmo espaço

geográfico; econômicos – a multiconfluência de interesses estrangeiros que

desestabilizam amiúde as economias nacionais; ctônicos – a sobrevivência de

crenças e práticas religiosas, de mitos e tradições orais de procedências variadas e

remotas; culturais – a mescla da herança hispano-grego-mediterrânea com outras

tradições, autóctones ou não, que dá um status universal à cultura americana;

culinários – com relação aos diversos temperos nas comidas criollas.

O que é inovador neste último texto é que Carpentier associou o

maravilhoso ao barroco e desenvolveu a noção de mestiçagem que ele introduziu

no texto do prólogo. Ele defende que a América Latina é completamente barroca

por ser mestiça e onde “toda simbiose, toda mestiçagem, engendra um

barroquismo” (CARPENTIER, 1987, p.121). No entanto, apresenta uma concepção

de barroco que não se restringe a “um movimento arquitetônico, estético ou

pictórico nascido no século XVII”, mas é “característica de uma cultura, como uma

constante humana” (CARPENTIER, 1987, p. 114). Assim, pode-se depreender que

o escritor cubano reapresenta a noção de real maravilhoso como uma resultante da

mestiçagem cultural da América Latina.

Esteves e Figueiredo (2005), bem como Echevarría (1993), enfatizam que o

termo realismo maravilhoso tem sido usado em concomitância com o termo

realismo mágico nos últimos cinqüenta anos, de forma indiscriminada, caindo,

muitas vezes, em contradição com relação à definição dos termos realismo mágico

e realismo maravilhoso. Ao tentar resgatar a diferença entre os termos, os autores

assinalam três momentos do século XX em que ambos afloram. Em primeiro lugar,

historicamente, o realismo mágico surgiu na Europa, introduzido pelo alemão Franz

Roh. Ele relacionou o termo realismo mágico com o expressionismo alemão por

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volta do ano de 1923 e o divulgou mais amplamente no seu livro, cujo título original

era Nach-Expressionismus (Magischer Realismus): Probleme der Neusten

Europäischen Malerei, publicado em 1925, na cidade alemã de Leipzig (CHIAMPI,

1980, p. 22)45. Tratava-se de uma análise das tendências pós-expressionistas na

pintura produzida na Alemanha e na Europa como um todo dos anos 1920-30,

também catalogadas como pós-expressionistas e mágico-realistas na pintura. É o

mesmo período em que André Breton proclama o maravilhoso como categoria

estética e até como um modo de vida. Cabe salientar que o termo realismo mágico

circulava também pela Itália, onde era usado no âmbito das artes plásticas, para

“superar o futurismo”. (ESTEVES, FIGUEIREDO, 2005, p. 396).

O próprio Carpentier quis explicar numa diferença entre os termos: “Mas

muitas pessoas me dizem às vezes: “Mas afinal, existe algo que se tem chamado

de realismo mágico; que diferença há entre realismo mágico e real maravilhoso?”

(CARPENTIER, 1987, p. 123). Ao tentar esclarecer cada termo, o escritor admite

ter lido a tradução do livro de Franz Roh, dois anos após a publicação do original.

Segundo Carpentier, os artistas que seguiam a tendência mágico-realista apenas

combinavam formas reais de maneira “não condizente com a realidade cotidiana

(...) uma imagem inverossímil, impossível, porém levados a uma atmosfera de

sonho, a uma atmosfera onírica” (CARPENTIER, 1987, p. 123-4). Como se pode

perceber, esta explicação coincide com aquela que o cubano apresenta para

explicar o maravilhoso dos surrealistas (conseguido artificialmente). Já o real

maravilhoso americano, na explicação de Carpentier, “é aquele que encontramos

em estado bruto, latente (...) Aqui, o insólito é cotidiano, sempre foi cotidiano”

(CARPENTIER, 1987, p. 125), o que leva Echevarría a considerá-lo um conceito

ontológico. Em El reino, Mackandal e Henri Christophe são insólitos, mas como

afirmou o crítico venezuelano Aléxis Márquez Rodríguez, Carpentier apenas coloca

sua habilidade narrativa para descobrir tais personagens e reconstruir suas vidas.

Ele reconstrói a vida destes personagens “mediante uma linguagem e um estilo que 45Pós-expressionismo, realismo mágico. Problemas relacionados com a pintura européia mais recente. A tradução deste livro para o espanhol foi publicada por Fernando Vela, pela Revista de Ocidente, de Ortega y Gasset, em 1927, com o título Realismo Mágico. Post-expressionismo. Tratava-se de uma análise das tendências pós-expressionistas na pintura produzida na Alemanha e na Europa como um todo daquela época, também catalogadas como pós-expressionistas e mágico-realistas. Segundo Esteves e Figueiredo, foi o crítico e escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, quem teria reutilizado o termo em 1948, numa publicação no jornal El Nacional de Caracas, no âmbito da literatura hispano-americana, para caracterizar a tendência que os contos produzidos na Venezuela estavam apresentando (ESTEVES & FIGUEIREDO, 2005, p. 395).

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expressam fielmente a realidade intrinsecamente maravilhosa” (RODRÍGUEZ,

1970, p. 80).

Em segundo lugar, no âmbito americano dos anos 1940 o termo já estava

sendo utilizado tardiamente pelos críticos de arte nos Estados Unidos. Assim, o

escritor venezuelano Arturo Uslar Pietri, também em 1948, e coincidentemente no

El Nacional, de Caracas, retomou o termo realismo mágico como característica da

tendência que os contos produzidos na Venezuela estavam apresentando na

época, o que comprova a difusão e repercussão da tradução do livro de Roh.

Finalmente, em terceiro lugar, o realismo mágico adquiriu um caráter crítico-

acadêmico partindo do artigo do crítico Angel Flores, em 1954, durante a

conferência que proferiu no congresso da Modern Language Association, em Nova

York. Mas só chega a ser divulgado com maior impacto nos anos 1960, quando a

crítica quis estabelecer raízes hispano-americanas de alguns romances do boom e

anteriores a este. Flores, citado por Echevarría (1993), não reconhece os

antecedentes de Uslar Pietri nem os de Carpentier e prefere falar de uma literatura

de vanguarda, e atribuindo a Jorge Luis Borges o pioneirismo no uso do termo na

literatura hispano-americana, quando da publicação de Historia universal de la

infamia, publicado em 1935.

Porém, outro crítico, Luis Leal, retomou a temática e reconhece a

contribuição do venezuelano e do cubano. Para este autor, o realismo mágico não

se vale, como o surrealismo o fez, de motivos oníricos, tampouco desfigura a

realidade ou cria mundos imaginários como fazem a literatura fantástica ou a ficção

científica.

Para Echevarría, a influência de Roh sobre Carpentier é apenas para criar o

termo realismo maravilhoso, pois o cubano se baseia no livro La decadencia de

Occidente, de Spengler, para quem as culturas eram organismos que sofriam

transformações análogas até desaparecer (apud ECHEVARRÍA, 1993, 151). Aí

estaria a explicação da oposição constante existente no texto do prólogo de El reino

tais como elementos europeus e primitivos, incredulidade e fé (para Spengler, toda

cultura é religião, a essência de toda civilização é irreligião). Assim, quando o

escritor cubano se propôs a “revelar, descobrir, expressar em toda sua plenitude

essa realidade quase desconhecida e quase alucinatória que era a América Latina,

para penetrar no mistério criativo da mestiçagem cultural” (ESTEVES,

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FIGUEIREDO, 2005, p. 398), ele retoma a noção de imaginação mágica dos

franceses associada à manifestação do maravilhoso.

O realismo maravilhoso dos haitianos

Il y a une manière propre à notre peuple de concevoir les rapports de l´esprit à l´imaginaire. En Haiti, même le sommeil des arbres et des pierres devient, dans l´imagination des êtres vivants, tantôt un long rêve musicien, tantôt la politesse hallucinée de quelque divinité du soir. On écoute la parole des dieux dans les utopies du soleil et de la pluie. Ils parlent aussi dans les bougies allumées entre les cornes d´un bouc, dans les coquillages, les poissons des rivières, les ailes des colibris et des papillons.46 (DEPESTRE, 1980, p. 236-7)

O real maravilhoso americano foi concebido no Haiti, conforme a afirmação

de Carpentier, e ele renasce através dos escritores haitianos dos anos 1950, como

o realismo maravilhoso dos haitianos.

O texto fundador, intitulado “Du réalisme merveilleux des Haïtiens” foi

apresentado pelo escritor Jacques Stéphen Alexis, em 1956, na ocasião do

Primeiro Congresso de Escritores, Artistas e Intelectuais Negros realizado em Paris.

Este texto, que embora o autor tenha afirmado não ser um manifesto (ALEXIS,

1956, p. 248), espelha-se no real maravilhoso americano carpenteriano, embora o

cubano não seja citado em nenhum momento.

Como Carpentier e Price-Mars, Alexis se contrapõe ao racionalismo

ocidental e contempla as mestiçagens produzidas na ilha, valorizando todos os

elementos populacionais e seus legados culturais. Ou seja, ele valoriza tanto a

herança do negro, do indígena, como também a dos soldados poloneses,

espanhóis e alemães, remanescentes das tropas do general Leclerc. Na visão de

Alexis, todos estes elementos são considerados na cultura haitiana, embora haja

uma predominância africana e francesa. O realismo maravilhoso dos haitianos não

hierarquiza nenhuma herança, nem as classes sociais que se manifestam mais

intensamente. Segundo Aléxis, até mesmo a burguesia haitiana, que sempre foi

francófila, conhece e pratica a cultura popular: 46 Há uma maneira própria do nosso povo de conceber as relações do espírito com o imaginário. No Haiti, até o sono das árvores e das pedras torna-se, na imaginação dos seres vivos, ora um longo sonho musical, ora a cortesia halucinada de alguma divindade da noite. Ouve-se a palavra dos deuses nas utopias do sol e da chuva. Eles falam também nas velas acesas entre os chifres de um bode, nas conchas, os peixes dos rios, as asas dos beija-flores e das borboletas.

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Nous disons-nous que les classes dirigeantes haïtiennes sont de culture haïtienne bourgeoise, sous leur vernis tout apparent de leur culture française et leur cosmopolitisme. Toutes les réactions intimes, politiques, artistiques, religieuses, sentimentales, sociales, de ces gens correspondent à la structure particulière semi-féodale et précapitaliste d´Haïti, ils participent aux bandes du carnaval populaire, bien souvent ils sont aussi animistes et vaudouisants que le peuple, en un mot ils réagissent généralement comme les autres Haïtiens.47 (ALEXIS, 1956, p. 256).

Ao contrapor a arte haitiana, de origem africana, à arte ocidental, ele

declara as regras literárias ocidentais, greco-latinas com tendência à intelecção, à

idealização e à criação de cânones, baseadas nos princípios de “Ordre, beauté,

logique et sensibilité contrôlée”48 (ALEXIS, 1956, p. 263), ultrapassadas. Era

necessário renovar as formas através das palavras certas que podiam descrever a

realidade haitiana, considerando as suas belezas e logicamente suas misérias.

Com o manifesto, Alexis propunha uma verdadeira tomada de consciência das

classes populares tanto no âmbito artístico quanto no âmbito social, como rezam os

quatro itens principais do texto:

1º- chanter les beautés de la patrie haïtienne, ses grandeurs comme ses misères, avec le sens des perspectives grandioses que lui donnent les luttes de son peuple et la solidarité avec tous les hommes; atteindre ainsi à l´humain, à l´universel et la vérité profonde de la vie;

2º -rejeter l´art sans contenu réel et social;

3º- rechercher les vocables expressifs propres à son peuple, ceux qui correspondent à son psychisme, tout en utilisant sous une forme renouvelée, élargie des moules universels, en accord bien entendu avec la personnalité de chaque créateur;

4º- avoir une claire conscience des problèmes précis, concrets actuels et des drames réels que confrontent les masses, dans le but de toucher, de cultiver plus profondément et d´entraîner le peuple dans ses luttes.49 (ALÉXIS, 1956, p. 268)

47 Nós nos dizemos que as classes dirigentes haitianas pertencem à cultura haitiana burguesa, sob o verniz aparente de sua cultura francesa e seu cosmopolitismo. Todas as reações íntimas, políticas, artísticas, religiosas, sentimentais, sociais, destas pessoas correspondem à estrutura particular semi-feodal e pré-capitalista do Haitii, elas participam das bandas do carnaval popular, quase sempre são tão animistas e voduístas quanto o povo, em uma palavra eles reagem geralmente como os outros haitianos. 48 Ordem, beleza, lógica e sensibilidade controlada. 491º-cantar as belezas da pátria haitiana, tanto suas grandezas como suas misérias, com o sentido das perspectivas grandiosas que as lutas do seu povo lhe dão e a solidariedade com todos os homens; atingir assim o humano, o universal e a verdade profunda da vida; 2º-rejeitar a arte sem conteúdo real e social; 3º-buscar os vocábulos expressivos próprios do seu povo, os que correspondem ao seu psiquismo, utilizando modelos universais de forma renovada e ampla, de acordo, logicamente, com a personalidade de cada criador; 4º-ter clara consciência dos problemas precisos, concretos atuais e os dramas reais que as massas enfrentam, com o objetivo de atingir, formar mais profundamente e treinar o povo nas suas lutas

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E, refazendo o caminho da descoberta da arte negra no início dos anos

1930, declara a arte haitiana (com sua herança africana) tão bela e criativa quanto

a arte do ocidente:

Cet art ne recule pas devant la difformité, (...) devant l´antithèse en tant que moyen d´émotion et d´ínvestigation esthétique et résultat étonnant, il aboutit à un nouvel équilibre, plus contrasté, à une composition aussi harmonieuse dans son contradictoire, à une grâce toute intérieure née du singulier et de l´antithétique.50 (ALEXIS, 1956, p. 263)

A noção de beleza no realismo maravilhoso haitiano também é atribuída ao

feio, ao insólito, e não devia se desvincular do seu realismo que está enraizado no

“mito, no símbolo, no estilizado, no heráltico e até no hierático”, sem excluir nenhum

elemento cultural da arte popular, tudo que caracteriza a vida real e que é

orquestrado pela imaginação. A receita para se conseguir o maravilhoso estava

vinculada à sensibilidade dos elementos da vida real, principalmente ao vodu.

Desta forma, o maravilhoso se manifesta na experiência do dia a dia de cada

haitiano, nas suas crenças e nas canções que animam o trabalho e os rituais do

vodu que expressam, segundo o autor, a

aspiration à la propriété de la terre sur laquelle il travaille, une aspiration à l´eau qui nourrit les récoltes, une aspiration au pain abondant, une aspiration à se débarrasser des maladies qui l´affligent, une aspiration à un mieux-être dans tous les domaines 51 (ALÉXIS, 1956, p. 266).

Alfred Métraux (1938) já havia assinalado, em Le vaudou haïtien, que a

busca da resolução dos problemas através dos loas do vodu não envolvia apenas a

camada popular. Laënnec Hurbon (1993) enfatiza esta constatação e acrescenta

que o panteão dos loas se diversificou com o tempo para atender os camponeses e

os políticos e explicaria a recorrência de entidades reconhecidos como loas

militares, políticos, exploradores, explorados, sedutores, consoladores sentimentais,

portadores de necessidades físicas, ou seja, cada um desenvolve um papel no

imaginário popular, adequando-se aos anseios dos haitianos. Vale ressaltar que o

vodu, com o transe e seus efeitos contagiantes, sempre foi um desafio para a

50 Esta arte não recua diante da deformidade, (...) diante da antítese enquanto meio de emoção e d einvestigação estética e resultado admirável, ela termina com um novo equlíbrio, mais contrastado, com uma composição tão harmoniosa na sua contradição, com uma graça interior nascida do singular e do antitético. 51aspiração à propriedade da terre sobre a qual ele trabalha, uma aspiração à água que alimenta as colheitas, uma aspiração ao pão abundante, uma aspiração a se livrar das doenças que o afligem, uma aspiração a um melhor ser em todos os sentidos.

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ciência. Métraux tentou sistematizar estudos sobre o assunto na década de 1940, a

partir de determinadas atitudes da pessoa em transe, como por exemplo, tomar

bebida alcoólica, pegar em ferro quente, andar sobre brasas, comer vidro sem

deixar indícios de que o fizera, ou seja, sem sofrer qualquer conseqüência física

diante do público.

Os mitos, como o da licantropia (explorado por Carpentier em El reino, com

a figura de Mackandal) e o do zumbi, ambos alimentados pelo vodu e relacionados

às metamorfoses, ao mundo dos mortos e ao renascimento, também são

valorizados no conceito de realismo maravilhoso dos haitianos. O mito da

licantropia, como observa Eurídice Figueiredo, continuou a ser difundido no Haiti e

nas outras ilhas francófonas do Caribe (FIGUEIREDO, 2006, p. 411), a ponto de

serem facilmente encontrados personagens feiticeiros que se transformam em

pássaros, por exemplo, a partir da década de 1950.

O mito do zumbi, assim como o transe e seus efeitos no vodu, também

provoca inquietações no Ocidente e imprime uma identidade ou uma opacidade

especial ao Haiti e ao Caribe. Os escritores haitianos, tanto os que vivem na ilha,

quanto os da diáspora (FIGUEIREDO, 2006, p. 409) exploram este mito em suas

obras durante a ditadura dos Duvalier (1957-1971) e de seu filho (1971-1986).

Tendo sua voz apagada, eles resistiram através da literatura, denunciando a

perseguição política a partir do processo de zumbificação, ou seja, processo em

que uma pessoa ingere uma mistura preparada por um pai de santo e fica em

estado de catalepsia. Em seguida, sem sinais vitais aparentes, ela é enterrada

como um defunto qualquer, com todas as cerimônias que o ritual exige, mas é

desenterrada à noite, pelo pai de santo que cumpre a última parte da encomenda,

entregando-a ao mandante do serviço. A finalização do processo resulta na

transformação da pessoa em zumbi, um morto vivo que passa a obedecer àquele

mandante, incondicionalmente. O processo só pode ser revertido, segundo os

estudiosos, se o zumbi comer sal puro ou como ingrediente de alguma comida.

Métraux afirma que o zumbi pode comer, ouvir as pessoas, falar, mas fica

desmemoriado, não tem consciência do estado em que se encontra:

Leur docilité est absolue à la seule condition qu´on ne leur donne pas de sel. Si, par inadvertence, ils goûtent d´un plat contenant, ne serait-ce qu´un grain de sel, le brouillard qui enveloppe leur cerveau se dissipe d´un coup et ils deviennent subitement conscients de leur

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affreuse servitude. Cette découverte réveille en eux une immense colère et un incoercible besoin de vengeance. Ils se précipitent sur leur maître, le tuent et ravagent ses biens, puis prennent la route à la recherche de leur tombeau.52 (MÉTRAUX, 1958)

É significativo que a reversão do processo seja feita pelo sal,

simbolicamente o sal da vida. Também parece interessante o fato de o zumbi sofrer

uma conscientização súbita e oferecer resistência ao mandante do serviço.

Depestre se apropria do termo zumbificação para, simbolicamente, descrever o

processo de dominação e de alienação a que são submetidos os haitianos pelos

ditadores. Pode-se depreender ainda deste processo a fé do povo na revolta

armada, na medida em que, no relato de Métraux, o zumbi recém-libertado mata

seu opressor e destrói seus bens, assim como os personagens de El reino que

fizeram a independência de Saint-Domingue.

No que concerne à educação, o realismo maravilhoso dos haitianos

também defendia o ensino da língua francesa, como já ocorria, mas inovou ao

pregar o ensino em língua crioula nas escolas primárias, uma vez que ela é falada

no âmbito familiar. Só assim haveria o que chamou de “desanalfabetização"

(ALEXIS, 1956, p. 270), ou seja, a erradicação do analfabetismo, como defendia

Price-Mars. Para ambos os intelectuais, esta estratégia também valorizaria a cultura

haitiana.

Por fim, no âmbito das artes plásticas, o realismo maravilhoso segue

firmemente revigorado através da pintura primitiva, da chamada “art naïf”. É uma

arte produzida por artistas plásticos haitianos que expressam seus sentimentos

através das cores.

Segundo Depestre, o realismo maravilhoso dos haitianos se tornou um

“renascimento” nas letras e nas artes do país a partir de 1956, embora ele

considere que os romances de Jacques Roumain Gouverneurs de la rosée (1944) e

Compère général soleil (1955) do próprio Alexis, já seriam manifestações do

realismo maravilhoso haitiano que comporta movimentos que se:

52 Sua docilidade é absoluta com a única condição de que não lhe dêem sal. Se, por inadvertência, eles comerem alguma iguaria que contenha apenas um grão de sal, a confusão que envolve o cérebro deles se dissipa subitamente e eles percebem sua terrível servidão. Esta descoberta desperta neles uma imensa raiva e um incoercível desejo de vingança. Eles se revoltam contra o dono, matam-no e arrasam os bens deste último para depois saírem à procura do seu túmulo.

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interpénètrent et se recoupent entre deux dans le naturel et le surnatuel, dans le picaresque, l´érotique, l´ineffable, l´absurde, le burlesque, le magique et le féérique. Son empreinte a marqué organiquement la religion et les mystères politiques de la société, les aventures orales du folk-lore et la littérature écrite en français ou en haïtien (créole), les enchantements de l´amour et de la danse, la musique, et, avec une magnificence stellaire, les arts plastiques.53 (DEPESTRE, 1980, p. 237)

53 interpenetram e se bifurcam no natural e no sobrenatural, no picaresco, no erótico, no inefável, no absurdo, no burlesco, no mágico e no feérico. Seu surgimento marcou organicamente a religião e os mistérios políticos da sociedade, as aventuras orais do folclore e a literatura escrita em francês ou em haitiano (crioulo), os encantamentos do amor e da dança, a música, e com uma magnificência estelar, as artes plásticas

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2. UMA ATERRISSAGEM NA BOCA DO CAÏMAN: AYITI - SAINT- DOMINGUE – HAITI: sonho e pesadelo O maravilhoso na história de Saint-Domingue

La résistance haïtienne à l´esclavage fut ainsi, dans um espace ensorcelant d´épopée, un long rêve éveillé où les masses opprimées ne réculèrent devant aucune prouesse ni aucun sacrifice pour réaliser dans l´histoire mondiale la première victoire du mouvement de la décolonisation.54 (DEPESTRE, 1980, p. 240)

Para Mignolo, além de ter sido uma evidente manifestação de “subversão

social” de escravos contra senhores, a Revolução também foi uma luta anticolonial

porque anunciava a formação de identidade, de nacionalidade haitiana nascente. A

revolução também teria porte internacional por ter sido um evento de

“reconfiguração da modernidade/colonialidade” (MIGNOLO, 2003, p. 339), o que

envolve os continentes europeu e africano.

A grandiosidade, ou o aspecto “maravilhoso” desta revolução realizada em

solo americano, como também observa Hugo, no prefácio a Bug, seria a explicação

para tanta crueldade aplicada para esmagar e silenciar a Revolução. Este

esmagamento teria deixado a imagem de um Haiti aterrorizante, um país cuja

história estaria inacabada. A maravilha da revolução era uma ameaça ao novo

poder colonial que se criava nas Américas.

Observamos que é significativo o fato de Carpentier e Césaire terem

visitado o Haiti no início dos anos 1940, época em que ambos tinham acabado de

retornar da França, após uma longa estada em Paris. É igualmente significativo

Breton ter ido lá, nesta mesma época. Já que estes escritores foram averiguar in

loco o país que lhes forneceria a inspiração que obtiveram para escrever suas

obras, entende-se que uma visita ao real haitiano torna-se fundamental nesta

pesquisa para depreender-se a poética das obras do corpus aqui estudado.

A pré-revolução

54 A resistencia haitiana à escravidão foi assim, num espaço fascinante de epopéia, um longo sonho acordado no qual as massas oprimidas não recuaram diante de nenhuma proeza nem de nenhum sacrifício na história mundial a primeira vitória do movimento da descolonização.

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Após as turbulências ou embates registrados historicamente sobre a época

da conquista espanhola55 da Española ou Hispaniola, no século XVI, sobre o

assédio de aventureiros predominantemente franceses e ingleses à ilha, no começo

do século XVII e a ampliação do tráfico de escravos para garantir as exportações

de açúcar e seus derivados para a Europa, o maravilhoso da pré-revolução se

concentra, a nosso ver, na resistência dos africanos em solo americano.

As turbulências identitárias da colônia de Saint-Domingue se iniciam no

próprio confronto entre Cristóvão Colombo e a população indígena das etnias taina

e arawak na região caribenha. A conquista pode ser considerada o ponto inicial da

crise de identidade da colônia e da América, uma vez que, sendo o primeiro lugar

do Caribe onde os conquistadores chegaram, houve a troca do nome autóctone

Ayiti (que quer dizer montanha na linguagem indígena), para La Española ou

Hispaniola. Esta crise se aprofundou na medida em que os autóctones foram

transformados em mão-de-obra e submetidos à cristianização. Desta crise, outras

surgem, acrescidas da perda de liberdade e do patrimônio natural, pela exploração

de ouro e de tantos outros produtos. Estes dados estudados pelos historiadores são

amplamente conhecidos.

Para este trabalho, o que interessa é que as respostas de resistência

surgiram de várias formas. O suicídio coletivo dos autóctones, ou seja, a forma

mais radical de protesto, respondeu às atrocidades, aos assassinatos, aos ataques

de cães de guarda e à contaminação por doenças, empreendidos pela cobiça

européia. A busca por maravilhas resultou nas freqüentes incursões de

aventureiros, numa demonstração de verdadeira competição entre as potências

européias.

O assédio dos ingleses e dos franceses proporcionou as constantes “trocas

de proprietários” da ilha. Dados históricos mostram que os franceses conseguiram

permanecer na ilha entre 1659 e 1665 e foi neste período que resolveram cultivar o

gado no território da Hispaniola. Apesar das violentas táticas de defesa espanhola,

que consistia basicamente no aniquilamento do gado dos invasores, a história

55O Velho Mundo sempre estabeleceu cortes nos mapas para evitar ou minimizar (nem tanto!) as guerras metropolitanas: “Pelas bulas do Papa Alexandre VI (1493), os espanhóis eram os únicos a poder navegar a oeste de uma linha situada a 100 léguas dos Açores e Cabo Verde. O Tratado de Tordesilhas de 1494 desloca esta linha 170 léguas para o Oeste. As terras a leste desta linha pertenciam aos portugueses.”(DAMATO, 1996, p. 35)

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também registra que os franceses não recuaram e passaram a cultivar produtos

agrícolas como o cacau, o algodão e a cana de açúcar, que os fixavam cada vez

mais na ilha. Contra esta fixação do inimigo, os espanhóis iniciaram uma arma que

se disseminou através dos séculos, a prática de incendiar as plantações dos

inimigos. A prática incendiária foi a tática maior utilizada pelos escravos para

aniquilar o “inimigo”, durante as insurreições pela libertação.

A reação francesa, paradoxalmente, não foi de recuo. Pelo contrário.

Motivado pela riqueza a ser explorada no território, Louis XIV tomou as devidas

providências administrativas para demarcar definitivamente o território conquistado,

ou seja, fez o que todas as outras metrópoles européias fizeram na época. Assim,

nomeou um representante da coroa em 1665, para desempenhar a função de

governador e permitiu a entrada dos engagés (homens europeus) e o tráfico de

escravos africanos. Assim, a Espanha cedeu e entre 1695 e 1697 (JAMES, 2000) a

paz foi estabelecida com o “Tratado de Ryswick”, que dividiu a ilha. Com esta

divisão, os franceses permaneceram no território oeste da ilha, batizado de Saint-

Domingue (atual Haiti) e os espanhóis, ao leste, em Santo Domingo (atual

República Dominicana).

Esta “legalidade” territorial vinda de fora também legalizou a entrada de

mais engagés e escravos africanos que, mesmo enfrentando as intempéries

climáticas e as más condições de trabalho, adaptaram-se e sobreviveram. São

registrados no período aproximadamente 25.000 colonos e 450.000 escravos

(JAMES, 2000) e já nesta época Saint-Domingue esbanjava riquezas, era uma

colônia “próspera”, chegando a ser cognominada “Pérola das Antilhas” no século

XVIII.

A revolução e as primeiras lideranças políticas

A luta pela liberdade em Saint-Domingue não era apenas a luta dos

escravos. Os colonos, grandes plantadores, queriam o fim do que se chamou

l´exclusif, lei que centralizava o comércio da colônia impedindo-a de comercializar

com outros países. Queriam o livre comércio na região caribenha e com outras

metrópoles. Os affranchis, ou homens livres (incluindo mulatos, que eram

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legalmente considerados “homens de cor livres” e negros libertos), também

reivindicavam igualdade de direitos políticos e sociais com relação ao poder branco.

Contudo, os colonos se recusavam a garantir-lhes quaisquer direitos que os

levassem a competir no âmbito comercial, o que provocou revolta por parte dos

mulatos. No âmbito social, a população vivia as contradições geradas pelo

preconceito e pelo racismo.

Uma famosa revolta foi registrada em 1790, quando seu líder, Vincent Ogé

foi reprimido cruelmente pelos brancos. Ora, se brancos e mulatos, representantes

das classes sociais privilegiadas, não se entendiam, este clima de divergência geral

entre as três classes sociais (negros, brancos e mulatos) ficou ainda mais inflamado

com as notícias da Revolução Americana e da Revolução Francesa, uma vez que

já havia um ambiente revolucionário promovido pelos marrons em toda a ilha, havia

uma insatisfação instalada entre os habitantes negros, brancos e mulatos ao longo

dos séculos. Assim, o ano de 1789 é considerado historicamente como o detonador

da revolução haitiana, uma vez que todos queriam os direitos garantidos pela

Revolução Francesa.

A situação de desordem social era um terreno fértil para a revolução dos

negros. Segundo James, os mulatos “odiavam” os negros por causa da escravidão

e por causa da pobreza que os acompanhava. O resultado desta instabilidade

repercutia em massacres e no enfraquecimento da autoridade colonial.

O ano de 1791 registra diversas rebeliões com saques, pilhagens,

incêndios de plantações, destruição de maquinário e morte de colonos. Cada grupo

interpretava a Revolução Francesa à sua maneira e cada um fazia a sua revolução,

como lembra Depestre, nesta sociedade colonial havia mais de uma guerra e todos

estavam envolvidos: “guerre des Noirs contre les Blancs, guerre des mulâtres

contre les grands et les petits Blancs, guerre des petits Blancs contre les grands

Blancs et les hommes de couleur, guerre des mulâtres contre les Noirs!”56

(DEPESTRE, 1980, p.165). Havia pequenas revoluções quotidianas, articuladas

entre as trinta e seis combinações de sangue do homem branco com a mulher

crioula conforme uma tabela que foi estipulada à época, pelo mais famoso

56 guerra dos Negros contra os Brancos, guerra dos mulatos contra os grandes e os pequenos Brancos, guerra dos pequenos Brancos contra os grandes Brancos e os homens de cor, guerra dos mulatos contra os Negros!

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historiador colonial, Saint-Méry. Segundo esta lista que é mostrada tanto pelos

historiadores como pelos ficcionistas [parcialmente citada por James (2000),

Césaire (1981), Hugo (1912)] e por Depestre:

quarteron, mulâtre, métis, mamelouk, marabou, griffe, sacatra, sang-mêlé, avec leurs combinaisons parallèles, toutes les aventures possibles du sang chaud, qui ignore les mythes et les dogmes raciaux, à l´heure horizontale de l´orgasme!57 (DEPESTRE, 1980, p. 165-6)

Os colonos repudiavam as leis da metrópole e começaram a resistir. Um

ano depois, os escravos de toda a ilha se reuniram e se rebelaram contra os

brancos por não cumprirem as determinações da Assembléia Constituinte da

França (1789-1791) que estabelecia a igualdade de direitos em Saint-Domingue.

Bouckman, o marron, soube das decisões da metrópole e, em 1791, liderou

a insurreição cujo objetivo era destruir as casas, as plantações e matar os brancos.

Seguindo Mackandal, o escravo maneta que liderava os negros, Bouckman se

revelou em Saint-Domingue por ser um pai de santo do vodu e por desempenhar

grande poder de liderança entre os escravos. O mito da cerimônia do Bois Caïman,

no norte da ilha, é famoso na região e é admitido historicamente por James. Afirma

o historiador que, na noite do dia 14 de agosto de 1791, numa cerimônia vodu,

Bouckman e seus correligionários fizeram um pacto de liberdade ou de morte. O

plano incluía, além do extermínio dos brancos, que levaria ao fim da escravidão, a

destruição de tudo que pudesse representá-la ou restabelecê-la posteriormente, ou

seja, a destruição das plantações e dos equipamentos que geravam o sistema

escravocrata e conseqüentemente a riqueza da metrópole. Bouckman deu as

últimas instruções para a revolução, durante uma tempestade com chuva torrencial.

O acordo foi selado com o sangue de um porco que foi sacrificado naquele

momento e bebido por todos os que ali estavam, ao ouvirem o discurso de

Bouckman, cuja tradução da língua créole é:

O deus que criou o sol que nos dá a luz, que levanta as ondas e governa as tempestades, embora escondido nas nuvens, observa-nos. Ele vê tudo que o branco vê. O deus do branco o inspira ao crime, mas o nosso deus nos pede para realizarmos boas obras. O nosso deus, que é bom para conosco, ordena-nos que nos vinguemos das afrontas sofridas por nós. Ele dirigirá nossos braços

57 quadrarão, mameluco, marabu, griffe, sacatra, sang-mêlé (sangue misturado) paralelas todas as aventuras possíveis do sangue quente ignora mitos e os dogmas raciais, na hora horizontal do orgasmo!

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e nos ajudará. Deitai fora o símbolo do deus dos brancos que tantas vezes nos fez chorar, e escutai a voz da liberdade, que fala para os corações de todos nós. (JAMES, 2000, p. 93)

Como Mackandal, Bouckman foi capturado e executado. Porém, os

escravos não se intimidaram e outros líderes foram surgindo. Toussaint Bréda

assumiu a liderança do grupo dos negros e reivindicou liberdade para todos, “com

objetivos claros, precisos e estratégias de guerra inovadoras”, a ponto de ser

nomeado pela Convenção, em 1793, o General da República, quando passou a se

chamar Toussaint Louverture. Foi sob sua liderança que os negros, bem

organizados, lutaram pelo fim da escravidão diante dos colonos que não acatavam

as decisões da Convenção, que havia proclamado a libertação de todos os

escravos nas colônias francesas.

A liderança de Toussaint Louverture

O herói haitiano é normalmente considerado um “homem de visão”. Para

Depestre, Toussaint foi o grande responsável pelo registro “des tempêtes d´où

naquit Haïti. Rien à ses yeux n´avait de pouvoir d´émerveillement en dehors de la

liberté générale des esclaves de Saint Domingue”58 (DEPESTRE, 1980, p. 240-1).

Para Césaire, Toussaint foi um precursor, pois seu combate foi pela

transformation du droit formel en droit réel, le combat pour la reconnaissance de l´homme et c´est pourquoi il s´inscrit et inscrit la révolte des noirs de Saint-Domingue dans l´histoire de la civilisation universelle.59 (CÉSAIRE, 1981, p. 344)

Primeiro dos oito filhos de um escravo que era chefe tribal na África,

designado como capataz na fazenda Bréda, Toussaint Louverture foi alfabetizado

por Pierre Baptiste, um negro idoso da mesma fazenda. O processo de

alfabetização o levou à leitura de duas obras importantes que lhe deram o

conhecimento necessário para ser o líder que foi: a obra do Abade Raynal, História

filosófica e política do estabelecimento e comércio dos europeus nas duas Índias e

A guerra da Gália, de Júlio César. Na primeira, obteve informações sobre as

colônias francesas do Caribe e sobre o estado de revolta a que são levadas as

58 das tempestades que originaram o Haïti. Nada aos seus olhos era mais importante do que liberdade geral dos escravos de Saint Domingue 59 transformação do direito formal em direito real, pelo reconhecimento do homem e é por esta razão que ele se inscreve e inscreve a revolta dos negros de Saint-Domingue na história da civilização universal.

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“massas” e na segunda, sobre estratégias de guerra. Ele obteve também noções de

latim, de desenho e de geometria, conhecimentos que lhe possibilitaram a

elaboração de um dos primeiros mapas da ilha.

O que mais impressiona na biografia de Toussaint parece ser o fato de

suas leituras terem influenciado nas estratégias de guerra que causaram forte

impacto nos líderes franceses que se aventuraram na colônia. Os escravos

escolhiam os locais mais arborizados onde permaneciam em silêncio. Assim,

avistavam e dominavam os inimigos e depois avançavam em grupos. Quanto à

religião, embora Toussaint fosse declaradamente cristão, a força do vodu orientava

os revolucionários no seu grito de guerra. Segundo James, durante os ataques, os

sacerdotes do vodu cantavam o ‘wanga’, tipo de encantamento que supostamente

atrai o mal e torna as vítimas vulneráveis. Com estas estratégias, Toussaint

mobilizou milhares de homens nas batalhas contra os ingleses e os espanhóis que,

como nos velhos tempos, ainda disputavam a ilha.

Seu projeto de criação do Estado Maior previa a utilização de estratégias

mais ousadas que iam além do seu bom desempenho no exército. Ele promovia

uma francofilia que seus soldados não compreendiam. Queria um Estado livre e

soberano que mantivesse o vínculo com a França, sob o argumento de evitar

prejuízos econômicos para Saint-Domingue. Entretanto, ele não teve o apoio

esperado por parte da França e, diante do assédio de outras potências, articulou

alianças internacionais com a Espanha e com a Inglaterra.

Entretanto, havia uma corrente crítica ao modelo de economia que

Toussaint impôs na colônia. Optando pela preservação da monocultura da cana de

açúcar, ele mantinha a estrutura de trabalho escravo. Outras implicações davam a

sensação de continuísmo, tais como o ritmo de trabalho nas mesmas condições de

trabalho escravo, sem o direito de ir e vir, com aplicação de castigos e prisão de

rebeldes.

Em textos de cartas que o líder enviava a Napoleão, tem-se uma idéia do

seu projeto. Pedia mão-de-obra especializada à metrópole e deu postos

estratégicos aos brancos proprietários e aos mulatos, numa tentativa de unir todas

as classes sociais. Elabora e envia a Napoleão, em 1801, um projeto de

Constituição, que, segundo Césaire (1981), era uma “oeuvre de circonstance”.

Logo no primeiro artigo do referido texto, percebe-se, a visão de Toussaint: “Saint-

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Domingue et ses îles adjacentes forment le territoire d´une seule colonie faisant

partie de l´Empire, mais soumise à des lois particulières” (CÉSAIRE, 1981, p. 279).

Para Césaire, a genialidade deste primeiro artigo estaria na possibilidade

de reunião das colônias mantendo o status da França como metrópole e sem

maiores prejuízos financeiros. Nos outros sessenta e seis artigos, Toussaint previa

a liberdade geral dos habitantes, que conviveriam numa completa francofilia, em

todas as formas: a religião francesa, o catolicismo, a nacionalidade. Ele queria

manter a França como aliada para prestar serviços técnicos à nova nação.

Juridicamente, todos os habitantes seriam considerados franceses e gozariam da

igualdade de direitos.

O que incomodava, na análise de Lílian Pestre de Almeida, era o conteúdo

do “Art. 18 – Le régime de la colonie est déterminé par les lois proposées par le

gouvernement et rendu par une assemblée d´habitants.”60 (ALMEIDA, 2004, p. 24).

Com esse texto, embora Toussaint Louverture mantivesse a soberania francesa,

ele estava prevendo a independência da colônia, sem usar a palavra

independência. Assim, Napoleão reagiu drasticamente e enviou seu cunhado, o

general Leclerc, na liderança de um exército de milhares de homens para

“restabelecer a ordem” e a escravidão na colônia.

Toussaint convocou seu exército para resistir, mas caiu na armadilha que

Napoleão armou, simulando um pacto. Fez algumas exigências para se render,

como por exemplo, a manutenção de oficiais nos seus respectivos cargos.

Entretanto, foi preso e enviado para o Forte Joux, no norte da França, onde morreu

isolado em 1803. Conta-se que Toussaint Louverture nunca perdeu as esperanças

de que Napoleão conversaria com ele, mas isto nunca ocorreu.

As tropas de intervenção de Leclerc foram duramente combatidas pelo

general Jean-Jacques Dessalines, que assumiu o comando da revolução

imediatamente após a partida de Toussaint, com a ajuda do também general Henri

Christophe e de Alexandre Pétion, mulato. Após dois anos de lutas constantes, uma

ajuda providencial (e mítica) da natureza, trazida pelas chuvas e a febre amarela,

pôs fim à intervenção de Leclerc. A epidemia levou à morte milhares de soldados,

60 O regime da colônia é determinado pelas leis propostas pelo governo e estabelecido por uma assembléia de habitantes

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outros ficaram gravemente doentes. Dessalines venceu e proclamou a

independência da colônia no dia 28 de novembro de 1803, tendo preferido o dia

primeiro de janeiro de 1804 para comemorá-la:

Au nom des Noirs et des Hommes de couleur, l´indépendance de Saint-Domingue est proclamée. Rendus à notre dignité primitive, nous avons assuré nos droits; nous jurons ne jamais ceder à aucune puissance de la terre61 (Apud CÉSAIRE, 1981, p. 339)

A independência ou o nascimento da nação haitiana

A etapa seguinte à guerra de libertação e à oficialização da independência

exigia um grande empenho para criar um Estado nacional. Era uma nova fase, a

fase de reconstrução, ou seja, os dirigentes da nova nação deveriam resolver,

como apontou René Depestre (1980), os problemas fundamentais existentes na ilha

para garantir a identidade haitiana. A questão agrária, a participação do país nas

relações internacionais, as novas relações envolvendo o conceito de raça e a

afirmação da cultura nacional, como síntese dinâmica de componentes africanos e

franceses, eram as questões que requeriam mais atenção por parte dos novos

líderes que se sucediam.

Esboçaram-se vários projetos mas o que nos interessa são os de

Dessalines e de Henri Christophe, que impulsionaram os ficcionistas caribenhos a

retomar a história dos heróis da revolução.

Enquanto a Constituição de Toussaint era declaradamente francófila,

Dessalines promulgou uma Constituição, no dia 20 de maio de 1805, recusando

qualquer vínculo da nova nação com a França, com os brancos, ou seja, à

francofilia de Toussaint seguiu-se a francofobia de Dessalines.

O primeiro artigo faz a mudança do nome da ex-colônia de Saint-Domingue,

nome cristão, para Haiti (Ayiti, terra montanhosa), restabelecendo vínculos com a

ancestralidade indígena da ilha. Assim, mostrava que ele queria não só acabar com

a presença física francesa na ilha (como aconteceu, ao eliminar os brancos) mas

também o elo histórico. O projeto previa a liberdade definitiva para todo o povo,

com a soberania e a independência da nação. Proclamava a perpetuidade do 61 Em nome dos negros e dos homens de cor, a independência de Saint-Domingue está proclamada. Restituídos à nossa dignidade primitiva, nós asseguramos nosssos direitos; nós juramos nunca mais ceder nenhuma potência da terra.

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governo, assumindo a criação de um império ao se autoproclamar Imperador,

Jacques I. Iniciou-se, portanto, um período de “paternalismo” diante da população,

no qual o governante exercia o papel de pai do povo, o “Papai Dessalines”, que,

sendo um bom soldado, também era um bom pai para a nação (ALMEIDA, 2004).

Apesar de pretender construir uma “nação negra”, a Constituição previa a

“naturalização das mulheres brancas, de seus filhos e dos soldados alemães e

poloneses que chegaram com Leclerc”, mas mudaram de lado.

Com relação à questão agrária, Dessalines prevê a cultura de subsistência,

onde todos os camponeses poderiam cultivar um pedaço de terra. Havia um

grande trabalho de reconstrução a ser feito num país devastado.

Os mulatos, que sempre quiseram tomar o poder, tinham grandes chances

de abocanhá-lo após a independência porque, como as conjunturas mostravam,

eles possuíam o que restava da riqueza econômica do país, ou seja, eram os

proprietários das terras e comandavam o comércio. Não aprovavam a reforma

agrária nem a cultura de subsistência porque perderiam seus bens e riquezas.

Segundo René Depestre, após a declaração da independência, houve uma

verdadeira corrida dos mulatos para obtenção das terras, a ponto de fraudarem

títulos de vendas, doações e testamentos dos últimos brancos que fugiram para a

Europa ou para Cuba:

Cette opération frauduleuse, de caractère contre-révolutionnaire, avait pris une telle proportion que le 24 juillet 1805, Dessalines prit un décret de vérification générale des titres de propriété, complété un an plus tard par un autre décret touchant la validité des actes de cession de biens ruraux.62 (DEPESTRE, 1980, p. 182-3)

Neste clima de insegurança, Dessalines acaba sendo assassinado pelos

mulatos numa emboscada, o famoso episódio do Pont-Rouge:

Dessalines disparu, il n´eut pas le principe d´équité dans la distribution des terres. Le grave conflit agraire auquel elle donna lieu exacerba une survivance typiquement colonialiste: le préjugé racial entre mulâtres et noirs.63 (DEPESTRE, 1980, p. 183).

62 Esta operação fraudulenta, de caráter contra-revolucionário, havia tomado uma proporção tão grande que no dia 24 de julho de 1805, Dessalines baixou um decreto de verificação geral dos títulos de propriedade, completado um ano mais tarde por um outro decreto enfatizando a validade dos atos de cessão de bens rurais. 63 Dessalines morto, não houve o princípio da eqüidade na distribuição de terras. O grave conflito agrário originado por ela exacerbou uma sobrevivente tipicamente colonialista: o preconceito racial entre mulatos e negros.

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A ambigüidade da nação recém-nascida ou o percurso do trágico

Após o episódio do assassinato de Dessalines, as lutas de classes se

acirraram. O governo foi dividido entre mulatos, que dominavam o Senado, e

negros, lideradas respectivamente por Alexandre Pétion e Henri Christophe, este no

norte e aquele no sul do país.

Em 1811, Henri Christophe se declarou rei, e conseguiu se manter até

1820, quando se suicidou. Como observam os historiadores, houve no período uma

verdadeira guerra civil que enfraquecia cada vez mais a nação. Neste período

histórico estariam as raízes dos problemas que a sociedade haitiana enfrenta até

hoje, o confronto entre negros e mulatos:

Il s´établit un parallélisme entre la teinte de l´épiderme et la position sociale. Il se créa dès lors l´illusion que la lutte sociale n´était pas entre la paysannerie révolucionnaire et deux aristocaties rivales, sinon entre les noirs (pauvres et riches) d´une part, et tous les mulâtres, d´autre part.64 (DEPESTRE, 1980, 183-4).

Com riquezas, os mulatos sempre tiveram mais privilégios do que os negros

e a política assimilacionista da França sempre incentivou estes privilégios. Pétion

era mulato, estudou na França, lutou contra os ingleses e os espanhóis entre 1798-

1799. Inicialmente, participou da revolução haitiana juntamente com os negros

porém, depois de se desentender com Toussaint, foi para a França e só voltou em

1801, juntamente com Jean-Pierre Boyer e Rigaud, na expedição de Leclerc.

Embora tenha lutado inicialmente contra Toussaint e Dessalines, em 1802 aderiu à

causa revolucionária.

Registra-se que, ao tomar o poder, Pétion promoveu a reforma agrária e

que, por isso, o povo passou a adorá-lo como um pai, o Papá Bon-Kè. No âmbito

cultural, se apresentou como um presidente letrado, diferentemente de Dessalines

e Henri Christophe, e fundou o Liceu Pétion, em Porto Príncipe, embora,

paradoxalmente, não tenha garantido o acesso do povo à educação. Também se

autoproclamou presidente vitalício, em 1816 mas morreu pouco depois (1818) por

ter contraído a febre amarela e em conseqüência veio a falecer, em 1818, sem

conseguir reunificar o país.

64 Estabeleceu-se um paralelismo entre a cor da pele e a posição social. Criou-se desde então a ilusão de que a luta social não existia entre os camponeses revolucionários e as duas aristocracias, salvo entre os negros (pobres e ricos) por um lado e todos os mulatos, por outro.

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O projeto de nação de Henri Christophe, como os dos seus antecessores,

principalmente Toussaint Louverture, previa a reconstrução do país através da

monocultura, o que já estava provado ser um fiasco diante dos ex-escravos. A

monocultura da cana ainda significava o restabelecimento do trabalho escravo e o

povo não aceitava este “retorno”. Christophe ressuscitou a francofilia de Toussaint

viabilizando a fundação da nação à francesa, numa monarquia. Comandou a

construção de uma cidadela, La Ferrière, e um palácio, o Sans-Souci, e lá se

enclausurou com seus seguidores. Pode-se lembrar que, como apontou MIgnolo,

as novas nações americanas, no final das lutas pela independência, procuraram

copiar modelos europeus ou o modelo norte-americano, visando sempre a

modernização das nações recém-nascidas. Segundo o historiador Pedro Freire

Ribeiro:

Todas as cópias inadequadas foram seguidas de crises mais ou menos graves, até que a experiência levasse a reformas aceitáveis pela realidade local. (...) Os movimentos de independência (...) representam um processo dinâmico que se deixa influenciar, em seu progresso, quer pelas condições locais, quer pela conjuntura internacional, guiado pela realidade, ora por ideologias antigas e modernas, experimentando, inovando (RIBEIRO, 1995, p. xiv)

Ao escolher o modelo francês, Christophe optou pelas fórmulas de

opressão no novo Estado, sem considerar as especificidades locais. Ora, adotar a

monarquia significava adotar os padrões de civilização, ou seja, uma língua e uma

religião ocidentais. As contradições também eram marcantes. O rei Henry I era

popularmente visto apenas como o rei Christophe, tinha a mesma origem do povo

e estava sujeito às mesmas dificuldades dos governos anteriores.

O historiador haitiano Laënnec Hurbon afirma que o antigo escravo, ao

passar a ser o chefe do Estado, transita na ambigüidade de ser ao mesmo tempo

povo e governo. Logo, ao tomar qualquer decisão, considera sua atitude legítima,

porque ele se considera também um membro da população: “Le chef d´État se

prend alors pour le seul lieu de la loi, seul lieu de la vérité, le seul lieu

d´engendrement de la société tout entière.”65 (HURBON, 1988, p. 69). Assim, o rei

Christophe vivia numa ambigüidade que o levava a fazer tudo com as próprias

mãos, por se julgar um profundo conhecedor das necessidades do povo. Do

65 O chefe de Estado se apresenta como o único detentor da lei, da verdade, de engendramento da sociedade inteira

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mesmo modo, pode-se considerar que a esperança que o povo deposita neste

governante também é ambígua, ou seja, ao mesmo tempo em que espera que o

governante seja um líder, também quer que seja um pai, o papá, que tudo fará

para seus filhos. As decisões autoritárias levaram-no a confirmar as representações

discursivas da época de que a elite haitiana não conseguia se livrar do “estigma de

escravo”, como afirmou Hurbon (1988).

O medo de perder o poder acelerou o percurso trágico que pode ser

constatada com a decisão dos vários governantes haitianos de se manterem num

poder vitalício:

avoir été esclave rendrait tellement peu sûre cette légitimité que la surenchère devient une nécessité. Par définition l´ancien esclave au pouvoir ne peut, disait-on, que produire un tyran, non pas parce qu´il est noir, mais parce qu´il n´est pas civilisé, et en tout cas, parce qu´il ne possède pas encore les insignes de la civilisation. (...) Mais cette tentation s´enracine moins, dans un recours à l´archaïque ou à un vieux fond culturel dominé, que dans le fantasme même de civilisation, tel que le colonisateur l´a legué à son départ.66 (HURBON, 1988, p. 68)

Em 1820, os mulatos, representados por Boyer, deram fim à monarquia no

norte e unificaram o governo. Com a intervenção, Henri Christophe se suicidou e

seu palácio foi automaticamente saqueado pelos rebeldes. Apesar de todos seus

esforços de se apresentar como um monarca civilizado, ele não conseguiu fazer

com que a independência do Haiti fosse reconhecida, o que só vai acontecer em

1825, a partir de negociações em que o governo haitiano concordou com o

monarca francês, Charles X, em indenizar a França pelas perdas provocadas pela

revolução. A insistência haitiana em ser reconhecida parece ter sido uma questão

de honra para manter a glória dos revolucionários. Já pelo lado francês, o fato de

protelar o reconhecimento da ex-colônia parece ter sido uma punição exemplar.

Pelo lado das nações latino-americanas, sabe-se que as independências

foram feitas pelas elites crioulas e não pela classe de antigos escravos, nem pelos

indígenas. Segundo James (2000), as nações recém-independentes da América

Latina e as potências européias, ainda na primeira metade do século XIX, fizeram

66Ter sido escravo tornaria esta legitimidade tão pouco segura que o exagero se torna uma necessidade. Por definição, dizia-se que o antigo escravo no poder só poderia produzir um tirano, não porque ele é negro, mas porque ele não é civilizado, e em todo caso, porque ele não conhecia ainda as insígnias da civilização (...) Mas esta tentação se enraíza menos num recurso ao arcaico ou a um velho fundo cultural dominado, do que no fantasma da civilização, tal qual o legado do colonizador ao partir.

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um “boicote” ao Haiti. Um exemplo reiteradamente dado pelos críticos e

historiadores haitianos é a ausência do Haiti na Conferência do Panamá, em 1826,

organizada por Simón Bolívar. A Conferência congregava as novas nações como

uma união americana. Além de negar esta oportunidade à nova nação, Bolívar

também foi politicamente contraditório, uma vez que, quando se exilou no Haiti, foi

amplamente apoiado por Boyer e aceitou dinheiro e armas para continuar sua luta

pelas independências latino-americanas. Se por um lado procurou exílio no Haiti,

demonstrando apoio ideológico à nova nação, por outro, não soube se impor diante

das grandes potências a ponto de reconhecer este apoio. Ou seja, o Haiti, ou

melhor, o povo haitiano, parece ter sido condenado a viver politicamente como um

povo marron, procurando sobreviver com seus próprios meios, sua própria

criatividade. Pelo lado das outras potências, não houve ajuda internacional para o

Haiti. Somente após o pagamento da dívida imposta pela França foi que o governo

dos Estados Unidos reconheceu a independência haitiana.

De volta à pré-revolução

O quadro de miséria no período de 1911 a 1920 levou os camponeses

negros do norte da ilha a se revoltarem armados contra a opressão, mas, ao

contrário do que se esperava, uma solução interna para os problemas internos,

uma insólita decisão levou a famosa revolta dos Cacos a ser utilizada para justificar

a entrada e permanência dos Estados Unidos (de 1915 a 1934), sob o emblema da

intervenção militar na ilha, com o apoio de diversos governantes nativos.

Os americanos se impuseram no país ao massacrarem sua população e

conseqüentemente sua auto-estima. A dissolução do exército nacional, a

equiparação da moeda haitiana ao dólar, a realização, em nome do país, de

empréstimo a juros exorbitantes, pagos para investidores americanos, a anulação

da interdição da posse de terras por estrangeiros (estabelecida no século XIX) e a

aceleração da expropriação das pequenas propriedades, foram alguns dos atos

arbitrários que desrespeitaram a nação haitiana. A população camponesa,

duramente reprimida, conseguiu reagir e mais uma vez, conseguiu desestimular os

opressores culminando com a saída dos “marines”, em 1934.

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As conseqüências desta ocupação foram desastrosas, com saldos de morte

e de miséria. A “traite verte” (tráfico verde), como afirma Depestre (1980), foi uma

destas conseqüências. Consistia na emigração massiva de milhares de

camponeses haitianos pobres e sem terras, para trabalhar nos campos de cana de

açúcar de Cuba e da República Dominicana, em condições de trabalho desumanas:

Sous le Régime que la Révolution cubaine a détruit, on zombifia complètement l´émigrant haïtien. On en fit une bête, et on répandit sur son compte, (…) les légendes les plus aberrantes. Le vieux racisme recuit de l´ancienne société cubaine était ravi de trouver un bouc émissaire de choix en qui incarner sa propre bestialité, héritage de l´esclavagisme espagnol, et qu´avec l´Ammendement Platt le néo-colonialisme yankee s´empressa de faire fructifier.67 (DEPESTRE, 1989, p. 188-9)

Em 1957, o médico François Duvalier (Papa Doc), negro, surgiu disposto a

administrar a nação à sua maneira, ou seja, manipulando o povo através do

imaginário religioso. Dizendo-se sacerdote vodu, apresentou-se como candidato à

presidência e conseguiu se eleger. Para a população negra e pobre, ele se

propunha a lutar contra a opressão dos políticos, dos militares, dos proprietários de

terras e dos comerciantes mulatos. Alimentou a discriminação racial respaldando

seu discurso nas teorias do século XIX sobre a reabilitação da raça negra, e

conseguiu governar de 1957 a 1971. Também instaurou a presidência vitalícia e

hereditária na década de 1960, o que permitiu que seu sucessor, o filho Jean-

Claude Duvalier, permanecesse no poder até 1986, transformando-se, como

observou Antoine, num “Ditador antimulato e anticomunista, submisso ao

Departamento de Estado americano (...) favorável à abertura da ilha aos dólares

dos turistas americanos” (ANTOINE, 1992). Baby Doc parece ter aprendido

rigorosamente as lições do pai para perpetuar o terror. Segundo Hurbon, Duvalier

“aplicou as teses da ideologia racial e nazista na sociedade haitiana” (HURBON,

1988, p. 70), a ponto de criar a polícia secreta, em 1960, os famosos Tonton

Macoutes. Eram policiais especiais que agiam brutalmente e eram mantidos pelo

governo para perseguir, torturar e assassinar prisioneiros políticos. Por um longo

período, segundo Hurbon, iniciaram “um genocídio haitiano”, um regime de terror

67 Sob o Regime que a Revolução cubana destruiu o emigrante haitiano foi completamente zumbificado. Trataram-no como um animal e sobre ele divulgaram-se as lendas mais aberrantes. O velho racismo recozido da antiga sociedade cubana estava contente por encontrar um bode expiatório em quem encarnar sua própria bestialidade, hernaça do escravagismo espanhol, e que com a Emenda Platt o neocolonialismo yankee se apressou para fazer frutificar.

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que resultou na morte de mais de 30.000 haitianos. Ninguém podia se expressar,

dar opiniões, uma vez que o governo criou a censura à imprensa. Como assinala

Antoine, além dos mortos, um milhão de haitianos se exilaram.

A situação de turbulências continuou após a queda da ditadura dos

Duvalier, em 1986. Vários governos interinos foram impostos, como o de Leslie

Manigat (1988-1989), deposto por um golpe militar do general Henri Namphy (1989)

até que Jean-Bertrand Aristide, um ex-padre católico representante da Teologia da

Libertação, foi eleito pela grande maioria da população, em 1991 com a promessa

de olhar para os pobres e reativar os direitos constitucionais. Revelou-se um líder

negro carismático e democrático, o primeiro após 1804, tendo sido o presidente que

teve a maior sustentação popular.

Também sofreu um golpe militar, saiu do país no mesmo ano. Raoul

Cedras, líder do golpe, dissolveu os partidos políticos e promoveu mais uma

turbulência no país que, sofreu sanções econômicas ditadas pelas Nações Unidas

em 1993. Como todo trajeto trágico feito pela “intromissão” americana, as forças

armadas dos Estados Unidos invadiram a ilha em 1994, com a justificativa de

restaurar o sistema eleitoral democrático. Raoul Cedras e sua família se exilaram

no Panamá e Jean-Bertrand Aristide voltou ao poder, mas paradoxalmente retomou

as práticas políticas ditatoriais, provocando em 1995 ações de milícias com

constantes assassinatos.

A partir do ano 2000, o Haiti continuou a mostrar o percurso do trágico ao

ser declarado o país mais pobre do mundo devido ao desemprego, ao

analfabetismo e principalmente aos índices de violência na capital. O presidente

Jean-Bertrand Aristide fugiu para a África e o país foi ocupado pelas “forças de paz”

da ONU, formadas por exércitos de vários países, sob liderança do Brasil.

Paradoxalmente, o país teve que se manifestar com relação às comemorações do

bicentenário da sua independência nacional, em 2004. Mesmo com tantas

turbulências, o povo relembrou a luta heróica de Toussaint Louverture, Jean-

Jacques Dessalines e de Henri Christophe. René Préval, ex-aliado de Jean-

Bertrand Aristide, decidiu lançar-se às eleições presidenciais em 2006 e conseguiu

ser eleito presidente do Haiti, em primeiro turno. Apresentou-se como o homem que

poderá reerguer o país.

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As soluções parecem estar na reestruturação não apenas político-

administrativa do país, mas também na reconstrução do imaginário a partir das

próprias turbulências vividas pelo povo, na prática. É o que estão fazendo os

escritores haitianos exilados no Canadá, nos Estados Unidos e na Europa, segundo

o próprio Depestre. Resta-nos ver o percurso deste trágico e suas implicações nas

obras de Carpentier, Césaire e Glissant, assim como naquelas de Lamartine e

Hugo.

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3. OLHARES E TRAVESSIAS PARA O HAITI: DA BUSCA DE LIBERDADE NA HISTÓRIA À BUSCA DE IDENTIDADE NA LITERATURA ENTRE AS HISTÓRIAS

De El reino de este mundo ou o maravilhoso mundo americano

El reino foi publicado em 1949 e não é um romance volumoso. Está dividido

em quatro partes em que se percebe claramente uma estrutura cíclica, como

consagraram os críticos. Ou seja, o mundo do Haiti é ficcionalizado a partir das

primeiras insurreições na ilha, 1791, e vai até a queda da monarquia negra de Henri

Christophe, quando este se suicida e o presidente Boyer, mulato, unifica o país, em

1820. A estrutura cíclica mostra os constantes eventos que transformaram a

situação política do país, enfatizando-se o percurso de ascensão e queda dos

personagens que detêm o poder no país.

Na primeira parte, tem-se uma subdivisão em oito capítulos onde a colônia é

mostrada com todas as suas dicotomias e contradições através da narração

onisciente do personagem escravo Ti Noel, que forma par com seu senhor, o

Monsieur Lenormand de Mezy, cuja propriedade fica na Cidade do Cabo Francês,

situada no norte da colônia. O progresso econômico da colônia é descrito

amplamente logo no primeiro capítulo, através da arquitetura da cidade e dos

hábitos rotineiros dos habitantes. Esta rotina é quebrada nos capítulos seguintes

para mostrar a história de Mackandal, escravo da mesma fazenda de Ti Noel. Com a

técnica cinematográfica do flashback, o narrador descreve a infância e a juventude

de Ti Noel ao lado de Mackandal, como num verdadeiro ritual de iniciação africana

onde a mitologia é narrada pelos griots, os contadores de histórias. Destes sete

capítulos, o fato histórico e real diz respeito à resistência de Mackandal, que, após

sofrer um acidente no moinho de cana que lhe custou o braço esquerdo, e

considerado inútil para o engenho, é encarregado de pastorear o gado no campo,

onde, livre da fiscalização do senhor, descobre na paisagem as ervas que contêm

veneno e que, após uma estratégica colheita e manipulação, orientado pela mãe-de-

santo Maman Loi, serve para envenenar os franceses. O envenenamento das

águas, do gado e de outros animais das fazendas dos proprietários brancos resultou

na desestruturação social e comercial da colônia. É interessante ressaltar que no

sexto capítulo, Las Metamorfosis, caracterizadamente o capítulo das metamorfoses

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de Mackandal, a figura do camaleão voador é destacada. O camaleão também

recebe o nome de bizango na região caribenha e, segundo Laroche, é um animal

popular mítico, chegando a ser sagrado, na mitologia africana. Em referência a

Mackandal, o camaleão é popularmente conhecido como um ser que “possui forma

humana durante o dia e pode voar como pássaro, durante a noite” (LAROCHE,

1998).

O tempo que atravessa os acontecimentos fica disperso nos capítulos, mas

se podem encontrar pistas de que o ano de 1758 seria a data do suplício e da

execução de Mackandal em praça pública, o que é confirmado em Os jacobinos

negros (JAMES, 2000, p. 380). Mackandal é queimado na fogueira mas fica a

crença popular de que ele usará seus poderes licantrópicos sempre e que ajudará

os negros a conquistarem sua liberdade, que não tardará.

A segunda parte, composta de sete capítulos, também se situa no espaço

da cidade do Cabo, onde o narrador enfatiza o “assombroso” progresso da

arquitetura das casas:

Casi todas las casas eran de dos pisos, (...) Había más sastres, sombrereros, plumajeros, (...). El librero exhibía el último número de la Gazette de Saint-Domingue, (...) Y, para más lujo un teatro de drama y ópera había sido inaugurado en la calle Vaudreuil. (El reino, p. 45)

O progresso que se registra na cidade também inclui a hospedaria La

Corona, espaço onde o ex-escravo Henri Christophe aparece pela primeira vez, um

requintado cozinheiro que consegue comprar a hospedaria de sua antiga patroa (El

reino, p. 62).

Fica evidenciado que o progresso demorou vinte anos para mudar a

configuração da cidade: “Sobre todo esto habían transcurrido veinte años” (El reino,

p. 47). Vinte anos também seria, a nosso ver, o tempo entre a atitude profética de

Mackandal de envenenar a colônia, até a insurreição liderada pelo personagem

Bouckman, “el jamaicano”. Este personagem constitui um divisor de águas no

romance, na medida em que, como negro marron, se insurge contra os

proprietários de terras que se negam a cumprir as decisões da metrópole, que no

caso, é libertação dos seus escravos. Nesta parte, há pistas das conseqüências

desastrosas do não cumprimento das leis de igualdade de direitos em Saint-

Domingue, estabelecidas em 1791, pela Assembléia Constituinte da França. Os

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senhores brancos não cumpriram as leis, resistiram e foram afrontados pelos

negros (JAMES, 2000, p. 380).

A descrição da cerimônia vodu liderada por Bouckman, na floresta do Bois

Caimán, ao sul da ilha, no capítulo Pacto Mayor, também é vista como o símbolo da

resistência negra e o marco das insurreições dos escravos, assim como também é

vista como o local de encontro dos rebeldes, entre eles Jean-François, Biassou e o

próprio Ti Noel, que juraram obediência a Bouckman e cuja ordem era incendiar

tudo que representasse os brancos da colônia. No capítulo intitulado La llamada de

los caracoles, o levante é descrito com as respectivas conseqüências drásticas. Os

brancos, falidos, abandonam as fazendas, uma vez que os prejuízos inviabilizavam

a administração das mesmas: “la colonia iba a la ruína” (El reino, p. 61). A classe

dos colonos falidos é representada pelo personagem Lenormand de Mezy que

perde todas as propriedades, inclusive muitos escravos, e Mademoiselle Floridor,

sua terceira esposa. O personagem Blanchelande, governador, consegue conter o

levante, prende e executa Bouckman, e ordena o extermínio geral dos negros.

Lenormand de Mezy consegue salvar alguns escravos, principalmente Ti Noel, e

em seguida, viaja para Santiago de Cuba. O narrador descreve a rotina destes

exilados naquela cidade que incluía orgias e jogos, que os fizeram perder o que

lhes restava, inclusive os poucos escravos. Sem nada, eles buscam os últimos

recursos ligados à França longínqua, o cristianismo, por exemplo. É o que acontece

com Lenormand de Mezy, derrotado e tendo perdido Ti Noel num jogo de cartas,

passou a ter medo da morte e buscou socorro na religião, ao decidir ir rezar na

catedral da cidade cubana. (El reino, p. 66). Nesta parte, o narrador menciona o

personagem Toussaint como o escravo escultor “ebanista”, sem a força política que

detinha como o “Napoleão negro”, ou o “cônsul de ébano”, como dizia James

(JAMES, 2000). O personagem Toussaint “había tallado unos reyes magos, en

madera, demasiado grandes para el conjunto que nunca acababan de colocarse”

(El reino, p. 35).

Outros personagens são resgatados e descritos ainda nesta segunda parte.

Paulina, irmã de Napoleão Bonaparte, acompanhada por seu escravo Solimán, e

seu marido, o general Leclerc, enviado por Napoleão à colônia para “restabelecer a

ordem”, ou seja, para combater o poder do líder Toussaint. Nesta parte, anuncia-se

a morte de Leclerc como vítima da febre amarela, o “vômito negro”, também

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responsável pela perda de um contingente de mais de vinte mil soldados.

Rochambeau é apresentado como substituto de Leclerc e são narradas as

atrocidades contra os negros. Assim, a introdução destes personagens registra os

levantes de 1792 até a proclamação da independência, em 1804, por Dessalines.

Na terceira parte, o leitor observa o retorno de Ti Noel na Cidade do Cabo,

alforriado pelo dono cubano que, generosamente, lhe dava algumas moedas a cada

festa de final de ano. De volta à terra natal, em busca das origens, o ex-escravo dá

conta do fim do ciclo de Lenormand de Mezy “en la mayor miséria” (El reino, p. 83)

e da abolição da escravatura: “Andaba ahora sobre una tierra en que la esclavitud

había sido abolida para siempre” (El reino, p. 83). Ainda que seja um personagem

ficcional, Ti Noel representa todos os negros sobreviventes que chegam à fase da

independência da ilha.

Os seis capítulos subseqüentes são escritos a partir do ponto de vista de Ti

Noel, livre para ver, descrever e sentir o reino de Henri Christophe. Assim, são

descritos o palácio Sans-Souci, a construção da cidadela La Ferrière e o rei Henri

Christophe (Henry 1er). Ti Noel é capturado e obrigado a trabalhar nas construções,

o que lhe possibilita descrever as relações do novo líder com os trabalhadores. No

entanto, o que prevalece é a descrição das suntuosas construções, as atitudes

ditatoriais do rei e a invasão do palácio pelo povo, que culminou com a morte do

monarca.

Finalmente, na quarta parte do romance, o primeiro capítulo mostra a

esposa e as filhas do rei em espaço europeu, na cidade de Roma. Exiladas,

Atenais, Amatista e a ex-rainha Maria Luisa são protegidas por Solimán, o antigo

escravo de Paulina Bonaparte. Nos dois últimos capítulos, a narração retoma o

cenário haitiano, quando já há um novo comando, o dos mulatos republicanos que

restabelece o regime escravocrata e traz de volta os agrimensores que iniciam a

reforma agrária. O narrador coloca Ti Noel como fio condutor do romance e leva o

leitor a refletir sobre o problema colonial, mais especificamente, o problema da

descolonização, através de inúmeras reflexões sobre os ciclos de poder e de

dominação aos quais a colônia fora submetida. Sem solução, Ti Noel volta à

mitologia africana, mostrando-se discípulo de Mackandal, como no início e, dotado

do poder da licantropia, anuncia novos tempos.

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Dos caminhos do trágico haitiano

Em La Tragédie, Césaire ficcionaliza o momento histórico em que houve a

divisão do país em dois governos, administrados respectivamente por Pétion, ao

sul, e por Henri Christophe, ao norte, após o assassinato de Dessalines. Em

seguida, acontece a coroação de Christophe como rei, instaurando a monarquia, a

guerra civil e o seu fim trágico, o suicídio. No prólogo da peça, Césaire mostra uma

“briga de galo”, um “dézafi”, resgatando um costume popular muito comum não

somente no Haiti mas em todo o Caribe. No combate relatado, há apenas dois

galos e cada um recebe o nome de um líder do país após a morte de Dessalines:

Christophe e Pétion. A multidão que acompanha avidamente o espetáculo se

divide na torcida pela vitória do galo de sua preferência. Mas o que representa

Pétion dá sinais de fraqueza e é considerado temporariamente o perdedor. O galo

Pétion se restabelece mas o autor não declara quem vence o combate. Entretanto,

adverte que Christophe era um cozinheiro e como tal também era um político hábil,

o que leva a crer que ele é o vencedor.

No primeiro ato, Christophe recusa o cargo de presidente, cujos poderes

foram limitados pela nova Constituição. Ele percebe que será rebaixado, não aceita

se submeter e esbraveja: “Tonnerre! Un pouvoir sans croûte ni mie, une rognure,

une râclure de pouvoir, voilà ce que vous m´offrez, Pétion, au nom de la

République!” (Ato I, 1, p. 20). Pétion tenta convencê-lo de que o Senado diminuiu os

poderes do presidente para evitar atos tirânicos, mas Christophe prefere romper

com Pétion e, com a espada em punho: “Pour le reste (...), mon épée et mon droit!”.

Em seguida, ele enfrenta simbolicamente um navio francês que tenta atracar no

país e que representa as investidas das metrópoles para retomarem a ilha. O povo

quer reagir mas o barão Vastey, secretário de Christophe, lembra insistentemente

que a proteção do povo é uma tarefa do rei. “À Christophe de nous proteger, nous,

nos biens, notre liberté” (Ato I, 2, p. 26). O povo compara os dois líderes, assim

como comparara os galos em combate.

Ainda no primeiro ato, Christophe desenvolve suas estratégias para o bem

do povo, segundo sua visão e a do seu secretário, Vastey: nomeia alguns de seus

súditos com novos nomes e lhes atribui títulos de nobreza em cerimônia especial,

dirigida por um representante da TESCO (Technical, Educational, Scientific

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Cooperation Organization), órgão que, segundo Césaire, auxilia as regiões

subdesenvolvidas com ajuda técnica (Ato I, 3, p.30). Em resposta aos pedidos de

Christophe para que enviassem engenheiros, professores e outros profissionais, o

rei recebera um mestre de cerimônias, que ditará as regras na nova corte de

modelo francês: como gesticular, como falar, como receber convidados e como se

comportar. Ainda neste primeiro ato, há o confronto das idéias do rei com as do

personagem Metellus, o herói do povo, da terra, que ousa dizer não ao rei, mas é

silenciado. Também há a participação do personagem feminino, Madame

Christophe, que atua ao lado do rei alertando-o sobre os perigos de exigir demais

do povo.

No segundo ato, são introduzidos alguns questionamentos das atitudes do

rei, mas de forma indireta. São diálogos entre as mulheres nobres ou entre os

trabalhadores, os camponeses submetidos aos decretos de Christophe. Estes

decretos alertando-os das punições a serem impostas caso não obedecessem às

ordens do rei, eram punições iguais àquelas impostas aos militares, ou seja, a pena

de morte a quem não obedecesse; tudo com a justificativa de que a “liberté ne peut

subsister sans le travail.” (grifo do autor) (Ato II, 1, p. 76). Ainda no segundo ato, há

diálogos entre o rei e o arcebispo, Corneille Brelle. Christophe tenta convencê-lo a

permanecer no Haiti, a desistir de voltar para a França e continuar sendo seu

confessor, seu capelão. Como o padre não aceita a proposta real, sua sentença é a

morte, por emparedamento, no arcebispado que Christophe mandara construir.

Outras atitudes de Christophe são ficcionalizadas, como a construção da

cidadela como o símbolo da nova nação da qual todos devem participar,

transportando pedras: “Dix pierres par jour la femme, ça ne les tuera pas! De deux à

cinq l´enfant, selon l´âge” (Ato II , 3, p. 83). Na sua argumentação, a cidadela, além

de servir de berço da nova nação, também serve de fortaleza para proteger a

sociedade dos invasores franceses. Os canhões da cidadela os receberão. “Le

rempart sans quoi il serait loisible au faucon de voler à gibier vu; l´espalier pour

l´arbre fragile et frais éclos.” (Ato II, 3, p. 83).

No terceiro e último ato, o rei recebe alguns convidados na corte para

apresentar o novo arcebispo, substituto de Brelle, o padre Juan de Dios Gonzáles.

Como primeira tarefa, o novo capelão organiza a festa de celebração do dia de

Nossa Senhora da Assunção, dia 15 de agosto. Mas ele argumenta que quer rezar

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a missa numa grande catedral, como se faz na Europa. Christophe rebate e diz

que, como ele deverá estar na cidade de Limonade, neste dia, a festa será lá: “Si

Notre-Dame veut qu´elle soit fêtée, elle n´a qu´à me suivre.” (III, 1, p. 125). A cena

da missa tem início e a cada frase da prece em latim, pronunciada por Juan de

Dios, Christophe invoca um sacerdote ou um deus do vodu, e começa a ter

alucinações. Socorrido pelos súditos e atormentado pela ladaínha do povo pedindo

a saúde do rei, além do “tam-tam” dos tambores, o “mandoucouman”68, Christophe

se dá por vencido, invoca pássaros de diferentes espécies e balbucia que seu

verdadeiro nome é Papa Sosih Baderre. Continua alucinado, vê Boyer, seu

sucessor, com inúmeros soldados, mas como o galo, se restabelece

temporariamente e, invocando a África, se suicida. Na cena seguinte, o

personagem bufão incorpora o deus da morte haitiano, o Baron–Samedi, e anuncia

a morte do rei a todos os que ainda estão presentes no palácio. Os súditos levam o

corpo para o alto da cidadela, onde o corpo é colocado no concreto fresco.

Do ensaio Toussaint Louverture

No ensaio Toussaint Louverture. La Révolution Française et le problème

colonial Césaire se baseia na obra de Saint Méry, historiador da época colonial do

Caribe, para expor sua visão sobre a Revolução de Saint-Domingue, mas focaliza o

problema colonial específico que envolve as classes sociais: os brancos, os

mulatos e os negros.

Na introdução do ensaio, ele apresenta o território haitiano como “la gueule

d´un enorme golfe, avec au sud le prognathisme démésuré d´une mâchoire”69

(CÉSAIRE, 1981, p.21). Poderíamos acrescentar que o maxilar, ou a arcada à qual

se refere o autor, pertenceria a um jacaré, com a ilha de Gonave servindo de

língua e a ilha da Tortuga servindo de sobrancelha bem moderna, o que se pode

confirmar no mapa desenhado no final do século XVIII, no ensaio de Césaire

(1981).

68Césaire grafa “mandoucouman”, enquanto Carpentier grafa “manducumán” Observe-se ainda, que o nome do personagem Cornejo Breille, em El reino, toma a forma escrita francesa em La Tragédie: Corneille Brelle. 69a cara de um golfo enorme com um prognatismo desmedido de uma mandíbula.

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A obra está dividida em três grandes capítulos/livros onde aponta fatos

históricos das revoltas e do domínio alternado das três classes sociais: branca,

mulata e negra. No primeiro livro, ele fala amplamente dos brancos da colônia, suas

reivindicações contra a exclusividade do comércio com a metrópole imposta pela

França. No segundo, ele fala da classe dos mulatos e principalmente de suas

reivindicações para obter o prestígio da classe branca. No terceiro capítulo, ele fala

dos negros e os enaltece como os únicos que conseguiram ter algum resultado

para todos os habitantes da colônia.

Uma primeira observação importante é que Césaire rejeita terminantemente

a afirmação de que a Revolução de Saint-Domingue é um capítulo da Revolução

Francesa. Para ele a Revolução de Saint-Domingue é do tipo colonial, ou seja, é

uma revolução específica originada durante a Revolução Francesa. As exigências

políticas dos brancos se ancoravam nas reivindicações econômicas, logo,

interessavam mais diretamente os colonos (CÉSAIRE, 1981, p. 29). Para

permanecerem como únicos donos do poder, eles desenvolveram uma política de

racismo para separar-se dos mulatos e negá-los através, principalmente, da

classificação racial discriminatória, o que para Césaire era um verdadeiro delírio na

colônia (CÉSAIRE, 1981, p. 33).

Nos dados biográficos de Toussaint, Césaire acrescenta que o “procureur”

da habitation Breda (sic), o Bayon (sic) de Libertas (sic), trabalhava para o Conde

de Noé, o que explicaria o nome de Toussaint (todos os santos). Toussaint

Louverture tinha quarenta e oito anos quando se apresentou a favor da rebelião.

Ele sabia ler e escrever (CÉSAIRE, 1981, p.194) e apresentava um nível intelectual

acima da média. Após a sublevação liderada por Mackandal e a de Bouckman,

Toussaint Louverture entrou em cena com o objetivo de disciplinar a revolta,

elevando seus níveis militar e político. O fim a ser conquistado era a “liberdade

geral” e, para tanto, vai buscar aliança com os espanhóis, através do marquês de

Hermona, com o plano de conquista da colônia francesa se garantisse a liberdade

dos negros (CÉSAIRE, 1981, p. 210). Toussaint não estava satisfeito com a

libertação dos escravos decretada em 1793. Para ele, a decisão só tinha valor local,

era o que chamou de “decisão de circunstância” e seu valor real só existiria se

fosse sancionado pela Convenção e que fosse um princípio geral válido para todas

as colônias. (CÉSAIRE, 1981, p. 259).

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De Toussaint ou o herói precursor Na peça M. Toussaint, Glissant mostra o personagem de Toussaint como

um homem comum, que comete erros. Glissant afirma que escolheu ter “uma

visão profética do passado” (GLISSANT, 1961, p.7), ou seja, uma tentativa de

resgatar a história de Toussaint a partir de sua prisão. Considera que seu intento é

uma ambição poética, visto que a história oficial pára de registrar os fatos a partir

da prisão do líder negro, em 1802 e registra sua morte, em 1803, abandonado, no

calabouço do forte Joux, na França.

A peça está organizada em dois tempos e em dois espaços. Há o espaço

da ilha, Saint-Domingue, onde se passam os levantes, as rebeliões, e o espaço da

França, lugar do exílio do herói. No entanto, não há fronteiras, no desenrolar das

cenas entre o universo da prisão e a ilha natal. Os personagens são

predominantemente históricos, mas o autor sugere que aquelas que não o são

representam o que teriam sido no real, ou o “que eles foram de fato – com outros

nomes.” A peça se subdivide em quatro atos intitulados: “les dieux”, “les morts”, “le

peuple” e “les héros”. Além de Toussaint Louverture, descrito na apresentação

como o herói da Revolução de Saint-Domingue, Glissant mantém o escravo manco

Mackandal, Delgrès (coronel na Guadalupe), Moyse (sic), sobrinho de Toussaint,

Dessalines (apresentado como o libertador do Haiti), Christophe, como um tenente

subordinado a Toussaint, e outros. Alguns personagens fictícios exercem grande

influência sobre Toussaint na peça: Maman Dio, mãe de santo do vodu, e Madame

Toussaint, que recebe o nome de Suzanne-Simone.

Em “Les dieux”, há o questionamento da traição de Toussaint Louverture

bem como a sua conflituosa opção pela religião cristã em detrimento da religião do

povo, o vodu. Todos os personagens da obra, entre eles, Mackandal, Dessalines,

os carcereiros da prisão/forte de Joux, Maman Dio, Madame Toussaint e outros

questionam e fazem pares com Toussaint. O personagem Bayon-Libertat, seu

antigo dono, historicamente chamado de Libertat Bréda, é estrategicamente

colocado em cena representando os brancos franceses, cujos diálogos

representam o discurso francês. O conflito com a religião é tratado por Maman Dio,

que tenta convencer Toussaint de que suas raízes africanas são mais fortes que as

adquiridas no cristianismo. Mackandal faz intermediações entre os personagens,

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ora defendendo, ora acusando Toussaint, mas também lhe é permitido falar de si, o

personagem precursor da busca de liberdade.

Do tripé da fé cristã, da família e do homus politicus

O título inicial do poema Toussaint Louverture, de Lamartine, era Les Noirs,

que foi mantido entre 1836 até 1850, quando houve a primeira encenação da peça,

em Paris. Lamartine elege o personagem histórico Toussaint como herói do seu

poema ingênuo ficcionalizando o conflito do personagem entre a fé cristã, a

dedicação à família e à vida política. Neste sentido, os princípios religiosos são

abordados paralelamente à temática familiar, ou mais precisamente aos dois filhos

que Toussaint reencontra após enviá-los à França para estudar, que é um fato

histórico confirmado por James (2000) e ao título que o personagem detinha de

general da República, desde 1793, devidamente nomeado pela Convenção, como

se pode conferir tanto no ensaio biográfico de Toussaint feito por Césaire quanto no

de James (2000, p. 380).

O poema como um todo é constituído de versos alexandrinos e recria, em

cinco atos, os momentos históricos que antecedem a chegada do general Leclerc

com a esposa, Paulina Bonaparte, e milhares de soldados, à colônia de Saint-

Domingue.

Os personagens são os membros da família do líder: Moïse, o sobrinho que

ele mandou fuzilar, sob a acusação de traição, os filhos Albert e Isaac, e a sobrinha

mulata Adrienne. Os personagens secundários apenas dão um suporte para a

temática principal, de forma ampla: Leclerc, Paulina, Pétion, Rochambeau, Salvador

e outros. O conflito do herói consiste em decidir se luta contra a metrópole para

impedir o restabelecimento da escravidão na colônia, ou seja, restabelecimento “da

ordem”, ou se não cede às “chantagens” que Leclerc lhe faz com relação à guarda

dos filhos, que podem voltar para a França. A possibilidade de perder a família

atormenta o personagem e, diante do dilema, faz várias ponderações que mesclam

os princípios cristãos e, obviamente, a lealdade que sempre quis demonstrar por

Napoleão.

No primeiro ato, há a descrição do cenário e situa Toussaint longe do

“campo de negros”, de homens e mulheres revoltosos. No segundo ato, Toussaint

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toma conhecimento da chegada da frota de Leclerc e recebe uma carta de

apresentação das autoridades, Leclerc e Rochambeau, escrita por Napoleão. No

texto da carta, os generais são apresentados como interventores e os objetivos do

exército são expostos.

No segundo ato, Toussaint vai estrategicamente ao confronto e se

apresenta aos generais sem revelar sua identidade. Para o poeta, ser negro em

Saint Domingue, escravo ou ex-escravo, ou chefe de estado, parece significar uma

massa homogênea imperceptível na sua diferença, pelo olhar francês. Entretanto,

há no seu texto uma tentativa de imprimir ao herói uma capacidade performática de

disfarce físico, algo que chega a ser cômico e até irônico. Tenta convencer os

franceses de que é cego e surdo. Nas primeiras cenas, Toussaint obtém a ajuda

da sobrinha Adrienne. Ao serem abordados pelos soldados, eles são vistos

simplesmente como “um velho” cego qualquer e “uma criança” que lhe serve de

guia. Ao manter seu disfarce percebe que os filhos divergem com relação ao

destino do pai e do povo haitiano. Albert quer a rendição do pai e fala como branco,

enquanto Isaac defende o pai, identificando-se com ele. O conflito do herói se

intensifica na medida em que percebe a assimilação de Albert à cultura francesa e

se depara com o sobrinho Moïse e outros membros do seu exército que procuram

Leclerc. Toussaint mata o sobrinho, o que é um fato histórico, e revela sua

identidade ao empreender sua fuga.

No quarto ato, a questão da bastardia dos mulatos é abordada. O cenário

passa a ser o da prisão onde está Adrienne. Isaac e Albert entram em cena

reconhecendo-a como prima e tentam resgatá-la, mas são impedidos pelo tutor,

Salvador, que assume a paternidade dela providenciando sua ida para a França

(LAMARTINE, 1963, p.1369-73). No quinto ato, há, finalmente o confronto entre o

general Rochambeau e Toussaint. Este lê uma carta de Leclerc e lhe apresenta os

dois filhos. O líder compreende a chantagem e deixa que os filhos resolvam se

querem ficar ou sair da ilha. O drama familiar se intensifica porque Isaac fica com o

pai, mas Albert resolve partir. Adrienne tenta reverter a decisão de Albert, mas não

consegue. Ela, por sua vez, decide ficar no Haiti. Na cena final, Adrienne leva a

bandeira do Haiti ao pico da colina, é alvejada por um tiro e morre. Toussaint toma

o lugar de Adrienne e conclama o povo às armas.

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De Bug-Jargal como o negro rebelde ou o bon-nègre Victor Hugo fez duas versões de Bug, em momentos políticos diferentes. A

primeira foi publicada em 1820, no jornal Le Conservateur Littéraire, seguindo a

tendência romântica da época. Coincidia com o fim da monarquia de Henri

Christophe, que havia se suicidado e a ilha ainda sofria as conseqüências da

unificação do país comandada por Boyer. Já na época da segunda versão, 1826, a

monarquia na França voltava, após a “Restauração”, e o rei, Charles X, acabava de

reconhecer a independência da ex-colônia (1825).

Hugo escolhe trabalhar o personagem Toussaint e reflete principalmente

sobre a questão da escravidão e da abolição propriamente. O herói, que leva o

nome do romance, é um simples escravo, Pierrot, que passa a ser chefe de um

grupo de marrons. Respeitado pelos escravos, Bug-Jargal se depara com a

impossibilidade de ter a mulher amada, personagem branca, Marie. Isto se deve

justamente ao fato de ela ser a futura esposa do personagem branco, d´Auverney,

o que dá a Hugo, a possibilidade de criar um conflito amoroso. O romance também

traz muitas reflexões que classificam os personagens como rebeldes. De escravo

doméstico, chamado Pierrot, Bug-Jargal passa a ser um chefe marron respeitado

pelos negros do Morne Rouge. Há binaridades senhor/escravo, com diversos

desdobramentos a partir da insurreição de 1791 em Saint-Domingue.

A obra é composta de cinqüenta e oito capítulos e três partes. Nos quatro

iniciais da primeira, há uma contextualização do presente, quando o capitão

d´Auverney está num acampamento militar e lamenta a morte de Bug-Jargal e a

perda da sua família. Nos capítulos IV e V, o narrador inicia a sua trajetória pela

colônia. Ele foi ao latifúndio do tio ainda criança, para no futuro, casar com a prima.

A fazenda, situada próximo ao forte Galifet (sic), na planície do Acul, abrigava

oitocentos escravos, em péssimas condições de vida e submetidos ”à l´insensibilité”

do tio que era um déspota de coração duro.

Accoutumé à se voir obéi au premier coup d´oeil, la moindre hésitation de la part d´un esclave était punie des plus mauvais traitements, et souvent l´intercession de ses enfants ne servait qu´accroître sa colère. Nous étions donc le plus souvent obligés de nous borner à soulager en secret des maux que nous ne pouvions prévenir (Bug, p. 24).

Ele descreve um escravo anão que serve de bufão para o tio, um griffe, um

mestiço submisso que faz rir toda a fazenda, sem inicialmente exercer um papel de

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grande importância; é descrito por d´Auverney como um escravo que não transmite

confiança, é desprovido de beleza e de todas as qualidades. Habibrach é descrito

como animal, a partir da cor da pele, teria sido dado ao colono francês por um lord

espanhol, o lorde Effingham, governador da Jamaica, para servir dentro da casa

grande.

A segunda parte vai do capítulo XXV ao XLVI, que compreende o período

em que d´Auverney fica sob o domínio de Biassou e é resgatado por Pierrot, que

declara ser Bug-Jargal. Há muitas descrições das contradições políticas da época,

e reflexões sobre os conflitos de classes que envolviam as autoridades tanto na

colônia quanto na Europa.

A última parte, do capítulo XLVII ao LVIII, há a tentativa de Bug-Jargal de

chegar ao campo de guerra dos brancos antes que matem os dez negros que

garantiram sua ausência do campo dos brancos. Ele chega ao campo em tempo,

mas não se livra do fuzilamento. D´Auverney lamenta a morte do escravo que ele

considera um irmão, mas também lamenta as perdas que os brancos tiveram

durante a insurreição:

On savait que d´Auverney avait éprouvé de grands malheurs en Amérique; que, s´étant marié à Saint-Domingue, il avait perdu sa femme et toute sa famille au milieu des massacres qui avaient marqué l´invasion de la révolution dans cette magnifique colonie. (Bug, p. 17).

Entre tempos maravilhosos

Carpentier relativizou a visão histórica ocidental e sugeriu uma outra visão

da historia, mais compatível com a realidade latino-americana. O contexto em que

El reino surgiu, ou seja, o pós-guerra europeu e a chegada do surrealismo à

América Latina pediam a descolonização do continente, o que acabou evidenciando

as inúmeras temporalidades que o caracterizam.

Em El reino, verifica-se que o tempo linear se entrelaça na noção de tempo

circular, viabilizando a coexistência de várias noções temporalidades. O tempo

mítico, contrariamente ao tempo linear, se repete infinitamente de forma circular.

Basta lembrar alguns mitos ocidentais. Sísifo sofre o castigo eterno de rolar uma

pedra ao cume de uma montanha, mas é obrigado a repetir a ação porque ela

sempre retorna à base. Assim como a tarefa das Danaides, irmãs que nunca

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conseguem encher de água o barril ou o vaso furado, ou Prometeu condenado a ter

o fígado bicado por uma ave de rapina para sempre, uma vez que, por ser um deus

e viver eternamente, o fígado se regenera a cada bicada. Ou ainda a imagem do

tempo representada pela Fênix, o pássaro que após viver por séculos, deixa-se

queimar para renascer das próprias cinzas. Em tais casos, a circularidade é

colocada como um dever, um trabalho sem fim ou um suplício incessante, talvez

insuportável.

O tempo mítico em El reino revela uma nova dimensão através da

recorrência de revoltas e rebeliões. Nos primeiros capítulos da primeira parte, os

brancos são os dominadores, mas nos últimos os negros e os mulatos dominam

alternadamente.

Outro procedimento que Carpentier utiliza para mostrar as diferentes

temporalidades é a caracterização de personagens de acordo com as concepções

de seu grupo social. Assim, no mundo dos brancos, o tempo é linear,

representando a realidade, a lógica formal européia. No mundo dos explorados, o

tempo é mítico, é circular e o negro é a figura que liga os dois tempos, destronando

a hierarquia imposta pelo tempo linear “antítesis de lo cronológico deviene motivo

de naturaleza altamente simbólica que descentra e dejierarquiza, a la vez que

sintetiza con el tiempo del retorno”70 (GONZÁLEZ ECHEVARRÍA, 2003, p. 39).

Neste sentido, para Gérard Genette, “l´analyse de la temporalité d´un texte

consiste d´abord à en dénombrer les segments selon les changements de position

dans le temps de l´histoire”71 (GENETTE, 1972, p. 81). A teoria de Genette, com as

categorias de ordem, duração e freqüência, comprovando que o tempo é o condutor

da narrativa, em que tudo se dá por via temporal, contempla a (a)temporalidade de

El reino, pois para o autor francês: Étudier l´ordre temporel d´un récit, c´est confronter l´ordre de disposition des événements ou segments temporels dans le discours narratif à l´ordre de succession de ces mêmes événements ou segments temporels dans l´histoire, en tant qu´il est explicitement indiqué par le récit lui-même, ou qu´on peut l´inférer de tel ou tel índice indirect.72 (GENETTE, 1979, p. 78-9)

70 antítese do cronológico torna-se motivo de natureza altamente simbólica que descentra e deshierarquiza, ao memso tempo que sintetiza com o tempo do retorno 71 A nálise da temporalidade de um texto consiste primeiramente em identificar os segmentos de acordo com as mudanças de posição nos tempos da história 72 Estudar a ordem temporal de um romance, é confrontar a ordem de disposição dos acontecimentos ou segmentos temporais no discurso narrativo na ordem de sucessão desses mesmos acontecimentos ou segmentos

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Como se postula aqui, tanto o tempo linear quanto o circular estão

imbricados em El reino para dar consistência ao realismo maravilhoso. A título de

exemplo, a estruturação do romance em capítulos, episódios, leva o leitor a fazer

associações entre o desenvolvimento da trama e a idéia de cronologia a partir das

marcas temporais de intertexto que marcam a escritura do romance. O próprio

Carpentier afirma ter seguido rigorosamente a cronologia da história de documentos

oficiais para desenvolver a narrativa; assim, a partir dos episódios narrados, é

possível depreender um fio cronológico como Carpentier explica no prólogo : Porque é mister advertir que o relato que se segue foi establecido com base numa documentação extremamente rigorosa, que respeita a verdade histórica dos fatos, dos nomes dos personagens ― incluindo os secundários ― dos lugares e até das ruas, e que oculta também, sob sua aparente intemporalidade, um minucioso cotejo de datas e cronologías. (CARPENTIER, 1985, p. xviii)

Para alguns críticos, o tempo de El reino não é facilmente captável, ele

pararia em cada capítulo, não havendo um fio aparente que conduza o leitor entre

os capítulos. Em outras palavras, as histórias de cada parte do romance não

avançam como tempo linear. Os capítulos se superpõem e é por isso que

Echevarría afirmou que cada capítulo tem sua “autonomia temporal”. Segundo o

autor, esta autonomia possibilita a utilização de técnicas de imbricações como a

repetição, a reelaboração textual concreta etc.

A superposição de capítulos pode ser observada na parte que mostra a

reescrita da saga e da revolta de Mackandal, da rebelião de Bouckman, da chegada

dos colonos franceses a Santiago de Cuba, bem como da chegada de Leclerc e de

Rochambeau à ilha. A técnica de Carpentier, como assinalou Echevarría, é uma

técnica de “colagem”, ou seja, há uma superposição de textos históricos, cuja

veracidade é constatada nas obras de historiadores.

A narrativa de El reino sugere uma trajetória de insurreições que culminou

com a independência da então colônia de Saint-Domingue e a abolição da

escravidão. Esta trajetória se inicia entre a segunda metade do século XVIII e a

primeira do século XIX. O tempo do relato é o tempo de vida de Ti Noel, o

protagonista ficcional de ações paralelas aos grandes acontecimentos históricos

citados no decorrer do texto. Como pontua Gérard Genette sobre “confrontar a _____________________ temporais na história, enquanto é explicitamente indicado pelo romance mesmo, ou que se possa concluir com tal índice indireto.

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ordem de disposição dos acontecimentos temporais na história”, em El reino os

acontecimentos históricos surgem na narrativa mediados pela ficção e não há

muitas referências temporais precisas, deixando o texto com uma aparente

intemporalidade, o que, Genette chama de anacronias (GENETTE, 1979, p.79), ou

seja, não haveria ordem temporal entre a ordem da história e a do relato.

Pode-se perceber que a narrativa apresenta um intervalo de tempo de

aproximadamente setenta anos. Entretanto, este tempo parece ser muito mais

longo devido à profusão de acontecimentos e ações relatadas. Neste sentido, ficção

e história estão associadas na narrativa e as marcas temporais da história ajudam a

compreender a marcação temporal ficcional.

Nos sete capítulos da primeira parte não se percebem indicações de tempo:

nem datas, nem elementos que evidenciem o tempo decorrido entre os

acontecimentos e até entre os próprios capítulos. A historicidade do fato, em

contrapartida, é mostrada com recursos de atemporalidade representados, por

exemplo, por elementos gramaticais do texto. A utilização marcante de verbos nos

tempos pretérito imperfeito e mais-que-perfeito do indicativo ilustra esta

atemporalidade no início da primeira parte: Ti Noel había elegido sin vacilación aquel semental cuadralbo, de grupa redonda, bueno para la remonta de yeguas (El reino, p.09) había atravesado el barrio de la gente marítima, con sus almacenes olientes a salmuera, ... (El reino, p.09) las negras domésticas volvían del mercado.. (El reino, p.09) el joven esclavo había recordado, de pronto, aquellos relatos que Mackandal salmodiaba en el molino de cañas, en horas en que el caballo más viejo de la hacienda de Lenormand de Mezy hacía girar los cilindros. (El reino, p. 12) había sido instruído en esas verdades por el profundo saber de Mackandal... (El reino, p.13) En el África, el rey era guerrero, cazador, juez y sacerdote; en Francia, en Espana, en cambio, el rey enviaba sus generales a combatir... (El reino, p. 13)

Quanto a Paulina Bonaparte e ao general Leclerc, introduzidos no texto no

terceiro capítulo da segunda parte, eles chegam à colônia em 1802. No capítulo

anterior, há referências às sublevações dos escravos, à abolição na colônia, em

1793, ao personagem Bouckman. As referências ao episódio da abolição aparecem

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atemporalizadas no capítulo intitulado El pacto mayor, na visão do ainda escravo Ti

Noel:

Ti Noel creyó comprender que algo había ocurrido en Francia, y que unos señores muy influyentes habían declarado que debía darse la libertad a los negros, pero que los ricos proprietarios del Cabo, que eran todos hideputas monárquicos, se negaban a obedecer ( El reino, p. 52)

Como diria Carpentier, a dimensão deste acontecimento é de natureza

“maravilhosa”. A presença da própria irmã de Napoleão Bonaparte na colônia

repleta de “rebeldes”, bem como o fato de o exército de 25 mil homens armados ser

enfrentado por escravos negros, organizados por líderes também negros, são fatos

que surpreendem o leitor, acostumado aos estereótipos que enaltecem o

racionalismo do branco e rebaixam a cultura do negro.

Outro personagem com referência histórica na narrativa é Cornejo Breille,

um padre capuchino francês, o duque de Anse (região haitiana da época). Ele

aparece três vezes. A primeira, no capítulo Las Cabezas de cera, na primeira parte,

“El padre Cornejo, cura de Limonade, acababa de llegar a la Parroquial Mayor,

montado en su mula de color burro.” (El reino, p. 14). Na segunda vez, no capítulo

El emparedado, quando Henri Christophe o condena à morte, por querer retornar à

França sabendo dos maiores segredos do rei e da cidadela. A terceira aparição se

dá no capítulo Crônica del 15 de agosto, através do sobrenatural, quando todos

são surpreendidos, principalmente Christophe, durante uma missa em homenagem

a Nossa Senhora da Assunção. O narrador afirma que todos vêem o espectro de

Breille no altar, inclusive Juan de Dios, o padre substituto que rezava a missa

naquele momento da aparição. Juan de Dios representa o saber ocidental, mas

reage à aparição. Sabe-se também que a condenação ao emparedamento era

comum naquela época, principalmente nas colônias. Assim, a narrativa associa

fatos que envolvem diferentes personagens com a justaposição de tempos.

Para ficcionalizar a história, Carpentier parte do “maravilhoso”, não se

restringindo ao referencial histórico no texto ficcional. Subverte a noção de tempo e

de espaço inspirado pela própria história da América Latina, pois como afirma o

autor, ao falar do que vira no Haiti: Meu encontro com Paulina Bonaparte, aí, tão longe da Córsega, foi para mim, como uma revelação. Vi a possibilidade de estabelecer certos sincronismos possíveis, americanos, recorrentes, atemporais, relacionando isto com aquilo, o passado com o presente. Vi a possibilidade de trazer certas verdades européias às nossas

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latitudes, agindo na direção oposta aos que, viajando contra a trajetória do Sol, quiseram levar nossas verdades para lugares onde, ainda há trinta anos, não havia capacidade de entendimento nem de medida para vê-las em sua justa dimensão. (CARPENTIER, 1987, p. 139).

Pode-se perceber que os sincronismos dos quais fala Carpentier são vistos

na narrativa como referenciais históricos. Assim, o sentido proposto pelo real

maravilhoso se evidencia quando as especificidades ou opacidades da América

Latina tomam forma de expressão que é criar sincronismos históricos a partir de

outros dentro de uma narrativa. Os sincronismos de El reino de este mundo estão

ligados àqueles resgatados da história. O romance apresenta, então, fatos

históricos desenvolvidos em tempos ficcionais e ficções situadas em tempos

históricos. Neste sentido, o relato ficcional se imbrica e dialoga com o relato

histórico.

É interessante salientar que, ao retomar episódios históricos, Carpentier

resgata, também, elementos míticos. Vejam-se personagens como Mackandal ou

Bouckman. Ambos se inserem tanto no plano histórico quanto no plano mítico da

obra. Ambos eram negros, participavam do mundo do povo pela crença nos deuses

do vodu e participaram ativamente das insurreições dos escravos em busca da

liberdade: Pisava eu numa terra onde milhares de homens ansiosos pela liberdade acreditaram nos poderes licantrópicos de Mackandal, a tal ponto que essa fé produziu um milagre no dia da sua execução. (CARPENTIER, 1985, p. xvii)

Ambos se converteram em figuras míticas do imaginário popular haitiano

tomando uma dimensão muito maior. Glissant vê Mackandal como um herói

popular, um marron, que representa a rebeldia dos caribenhos. A certeza ou a

confiança dos escravos de poderem conquistar a liberdade através das promessas

de Mackandal e de Bouckman inseriu-os no plano mítico e como assegura o próprio

Carpentier: “De Mackandal, o americano, em compensação, ficou toda uma

mitologia, acompanhada de hinos mágicos, conservados por todo um povo, que

ainda são encontrados nas cerimônias de Vodu.” (CARPENTIER, 1987, p. 142) A

perspectiva mítica destes personagens também anuncia uma visão utópica, pois

eles não representam apenas a memória, mas também uma possibilidade latente

de luta e principalmente uma possibilidade de vitória.

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No âmbito da narrativa, Ti Noel é o herdeiro-mor, o discípulo de Mackandal.

Teve uma infância permeada de mitos africanos ao ouvir os relatos de Mackandal,

ou seja, quer perpetuar aqueles mitos que fazem viver a figura daquele herói: Ti Noel transmitia los relatos del mandinga a sus hijos, enseñándoles canciones muy simples que había compuesto a su gloria, en hora de dar peine y almohaza a los caballos. Además, bueno era recordar a menudo al Manco, puesto que el Manco, alejado de estas tierras por tareas de importancia, regresaría a ellas el dia menos pensado. (El reino, p. 49) Ti Noel, como los demás, juró que obedeceria siempre a Bouckman. El jamaicano abrazó entonces a Jean François, a Biassou, a Jeannot, que no habrían de volver aquella noche a sus haciendas. El estado mayor de sublevación estaba formado. (El reino, p. 53)

No final da narrativa, já velho, Ti Noel assume um caráter mítico-utópico;

passa a viver no mundo da licantropia, confirmação do ritual de iniciação pelo qual

passou quando convivia com Mackandal:

El anciano lanzó su declaración de guerra a los nuevos amos, dando orden a sus súditos de partir al asalto de las obras insolentes de los mulatos investidos. En aquel momento, un gran viento verde, surgido del Océano, cayó sobre la Llanura del Norte, colándose sobre el Valle del Dondón con bramido inmenso. (...) Y desde aquella hora nadie supo más de Ti Noel, ni de su casaca verde (...) salvo, tal vez, aquel abutre mojado, aprovechador de toda muerte que esperó el sol con las alas abiertas: cruz de plumas que acabó por plegarse y hundir el vuelo en las espesuras del Bois Caimán. (El reino, p.144-5)

Enfim, a comunicação com os poderes “do outro mundo” se inscreve numa

dimensão lendária, épica, mítica, que caminha lado a lado da história e da política,

como atesta o autor:

la historia de Adonhueso, del Rey de Angola, del Rey Dá, encarnación de la Serpiente, que es eterno principio, nunca acabar, y que se holgaba misticamente con una reina que era el Arco Íris, señora del água y del parto.” (El reino, p. 12)

A temporalidade em Bug se prende aos fatos históricos que estão

relacionados com os incêndios do dia vinte e dois de agosto de 1791, início das

insurreições. Hugo utiliza a noção de tempo linear, desde os primeiros capítulos

tem-se a informação sobre o tempo presente, que é certamente após o ano que

sucedeu a insurreição. Mas antes, há a pista que d´Auverney havia nascido na

França e tinha sido enviado a Saint-Domingue para viver com um tio e no futuro,

casar-se com a prima, Marie. A idade do personagem/narrador também marca os

fatos históricos em questão, pois a data do casamento no dia vinte e dois de agosto

de 1791 também é a data do seu aniversário.

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Toussaint Louverture, de Lamartine, se passa durante ano de 1802, data

da chegada de Leclerc, Paulina e o exército para restabelecer a escravidão. Já em

La Tragédie o tempo é mais amplo, indo da morte de Dessalines, em 1806, à morte

do rei Christophe, em 1820. Em M. Toussaint, embora Glissant tenha ficcionalizado

a prisão de Toussaint, de 1802 até abril de 1803, a temporalidade é subvertida na

medida em que as constantes retomadas das falas dos personagens remontam a

outras épocas, ligadas às insurreições. Assim, é possível depreender datas

históricas a partir da existência de Mackandal, na tentativa de obter a liberdade

para todos os negros com o envenenamento dos brancos, no ano de 1758.

Entre relações e poderes: crioulização e superposição cultural

O percurso cíclico dos personagens de El reino e de La Tragédie na

reconstrução dos fatos históricos da Revolução de Saint-Domingue é respaldado

pelo real maravilhoso, cujas marcas são a diferença e a opacidade que foram

ocultadas até então. Para Césaire, La Tragédie reflete a problemática da

descolonização africana, como ele mesmo afirmou a Maryse Condé.

Se para Carpentier, o real maravilhoso é proposto como solução no âmbito

do continente americano para marcar a diferença em relação ao surrealismo e ao

realismo mágico europeu, ele poderia ser operado não só na literatura mas na

cultura de modo geral. Ou seja, se Carpentier quis mostrar ao mundo europeu a

nossa diferença a fim de nomear nossa identidade, partindo das misturas,

mestiçagens e crioulidades, então os contrastes destas mestiçagens propriamente

ditas seriam “maravilhosos”. É o que postulamos aqui. Todas as contradições das

relações de poder seriam percepções do real maravilhoso, já que mudariam a

realidade, moldando novas configurações identitárias, transgredindo a norma.

Entretanto, as ilustrações de mestiçagens americanas parecem ser em

determinado momento meras transposições culturais. As cenas iniciais de El reino,

por exemplo, podem ilustrar esta transposição, no sentido definido por Antonio

Candido, em o Romantismo no Brasil (CANDIDO, 2002 p. 96), que “consiste em

passar para um outro contexto, no caso, o brasileiro, as expressões, concepções,

lendas, imagens, situações ficcionais e estilos das literaturas européias, numa

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apropriação que se integra e dá ao leitor a impressão de familiaridade, e ao mesmo

tempo faz sentir a presença das raízes culturais”.

Assim, em determinados fragmentos de El reino, não haveria mestiçagem,

mas superposição ou transposição, como por exemplo, quando o narrador

descreve a Cidade do Cabo Francês, no capítulo “Las cabezas de cera”, ele

superpõe os traços culturais europeus de Monsieur Lenormand de Mezy, na

barbearia, aos traços culturais americanos.

Segundo Antonio Candido, na obra citada acima, a transposição cultural

(que chamamos aqui de superposição cultural) seria um processo de passagem

para um outro espaço de características da cultura européia.

Poderes dos líderes dirigentes

Todos os líderes, de Christophe de Carpentier e de Césaire, a Pétion e

Biassou de Hugo e a Toussaint de Césaire e de Hugo, defenderiam um ideal: obter

a liberdade, combater a opressão contra a escravidão e contra a exploração. A

política de Christophe, em La Tragédie e em El reino, é cruel por ser autocrática e

monárquica, onde os súditos são obrigados a viver em torno do rei. Christophe se

comporta como um senhor, um rei Sol, cujo código de governo é pior do que o

Código Negro, para os negros que já haviam passado pela escravidão.

Em Bug, Biassou é representado pelo narrador como um monarca. Ele

incorpora o comportamento de Cristophe tanto nas atitudes violentas quanto no

desejo de criar uma nação. É interessante lembrar que a estrutura de Bug molda

personagens com estes comportamentos, refletindo questões políticas de sua

época.

Em Bug, os personagens buscam um trono, revelando o desejo

(inconsciente?) de lidar diretamente com a realeza. O herói negro Bug-Jargal se

identifica como um membro da realeza “dos países do Kacongo”, é um rei de

origem africana. Marie é a rainha virgem, virtuosa, uma estátua greco-romana.

Biassou também está sentado no seu trono, representado por uma cadeira, num

reino situado numa caverna, que fica no alto de um monte, no meio da floresta, em

pleno ambiente de marronnage. Está rodeado pelo conselheiro Pétion, pelo padre

capelão, que é o bruxo/obi Habibrah, e tem seus ministros. Vale lembrar que

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Pétion, mulato, está lado a lado de Biassou, que, historicamente, era negro e não

mulato; embora o narrador de Bug afirme: “Je crois avoir dit que Biassou était

sacatra” (Bug,1912, p. 178).

Em La Tragédie, os dois camponeses que refletem sobre a divisão do país

em dois governos representam o povo. O primeiro confia em Christophe, pois o rei

havia restabelecido a liberdade, mas o segundo não é otimista, pelo contrário, é

cético, amargo. Descreve o poder de Christophe como um poder ditatorial. Para ele,

nada mudou; apenas mudaram-se os senhores. O pessimismo o leva a crer que a

liberdade está definitivamente perdida. A liberdade de expressão não é dada ao

povo. Também não há liberdade de culto religioso. O vodu é proibido, só o

catolicismo é visto como religião e tem a bênção do rei.

Em Bug, também não há liberdade de expressão, o mundo colonial é

dicotômico ao extremo e tanto o dirigente branco, tio de d´Auverney, quanto o

dirigente negro ou o mulato, são representados como ditadores, seu poder do cetro

é, na verdade, o poder do chicote ou da bala. O fragmento que mostra o

julgamento, a condenação e a execução dos três prisioneiros de Biassou, sob o

olhar atento do narrador/personagem d´Auverney, ilustra a situação de ditadura e

de ferocidade que é atribuída ao chefe marron, ao rei Biassou, chamado pelo título

sem sentido de généralissime. Biassou é a autoridade máxima, que, com a

orientação de Habibrah, seu feiticeiro, tem poderes sobre a vida dos prisioneiros

brancos, mestiços e negros.

É interessante observar que os questionamentos que são feitos antes da

condenação e da execução dos prisioneiros são, na sua maioria, reflexões em torno

da identidade dos personagens históricos e da situação política que eles viviam na

época. É neste contexto que surgiria a superposição cultural. É significativo que

Biassou necessite de uma cerimônia religiosa cristã no seu castelo imaginário.

Haveria um misto de vodu e de cristianismo que autoriza a predominância do vodu,

embora o narrador utilize estereótipos que desqualifiquem o pai de santo capelão,

Habibrah.

A necessidade de mostrar ao branco que pode ser civilizado não condiz

com a fé que obrigatoriamente o fiel cristão “civilizado” deve demonstrar ter, como

acontece com Christophe de La Tragédie. O poder de Biassou o leva a improvisar o

altar a partir de uma embalagem de açúcar:

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Vous n´avez point d´autel! Eh bien, ne pouvez-vous pas vous en faire un de cette grande caisse de sucre, prise avant-hier par les gens du roi dans l´habitation Dubuisson? (Bug, p. 144) On érigea en autel la caisse de sucre volée, qui fut couverte d´un drap blanc en guise de nappe, ce qui n´empêchait pas de lire sur les faces latérales de cet autel: Dubuisson et Cie, pour Nantes. (Bug, p.145)

A facilidade com que superpõe o altar esvaziado no âmbito do “sagrado” e

faz de um punhal a cruz necessária para caracterizar o cristianismo é a mesma com

que pronuncia as palavras para a cerimônia. Assim, expressões como “Bon Giu” e

“Bon per”, cuidadosamente traduzidas pelo narrador como “Bon Dieu” e “Bon Père”

(Bug, p. 144), respectivamente, se coadunavam com o poder de Biassou e de

Habibrah, que, naquele momento imprimiram nos negros e em d´Auverney a

superposição da missa sagrada sobre o ambiente e os “fiéis” crioulos, como

testemunha o narrador: “En un clin d´oeil l´intérieur de la grotte fut disposé pour

cette parodie du divin mystère” (Bug, p. 144). O respeito que Biassou impunha aos

negros é ilustrado ainda neste fragmento, ao ordenar que todos os soldados

presentes se ajoelhassem para participar da cerimônia. Também é relevante

destacar que o texto pronunciado pelo capelão pai-de-santo transmite a francofobia

ou a brancofobia de Bouckman na cerimônia vodu do Bois Caimán descrita em El

reino, ainda que não sejam as mesmas palavras que tanto Carpentier quanto

Césaire e James atestam ter existido historicamente: “— Zoté cone bon Giu; ce li

mo fé zoté voer. Blan touyé li, touyé blan yo toute” / “Vous connaissez le bon Dieu;

c´est lui que je vous fais voir. Les blancs l´ont tué; tuez tous les blancs” (Bug, p.

146).

Percebe-se que a obstinação do líder Biassou é a mesma de Christophe

em La Tragédie. Adotar a religião dos brancos, da França, poderia tornar o líder

negro mais branco, ou pelo menos, mais cristão: “— On nous accuse de n´avoir pas

de religion, tu vois que c´est une calomnie et que nous sommes bons catholiques”.

(Bug, p. 148). Ou seja, a necessidade de mostrar ao colono branco que os soldados

têm uma religião, a do próprio colono, acende a questão da busca de identidade ou

a criação da nação, como o queria Christophe em La Tragédie. Também se

percebe que em Bug a religião do branco está, paradoxalmente, nas mãos do

feiticeiro, o detentor dos poderes do vodu.

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No entanto, a maneira como Hugo trata esta questão é completamente

enviesada. Não há valorização destes poderes, mas sim, a depreciação,

classificando a mistura como charlatanismo. O feiticeiro fazia o ofício de padre,

feiticeiro, médico e vidente junto aos soldados (Bug, p. 154).

O poder sobre os prisioneiros traduz a ferocidade que é imputada a Biassou

na narrativa pelos próprios qualificativos que buscam ratificar a violência: tigre,

renard, généralissime. A descrição das atrocidades do marron rebelde, com relação

aos diversos modos de sacrificar seus prisioneiros brancos, torna a violência um

personagem na narrativa. Quando Biassou manda executar o prisioneiro que

descobre ter sido o seu primeiro dono, ele usa uma lógica que o torna mais cruel.

Para Laforgue (1999), esta lógica mostra como o discurso europeu é transformado

no contexto haitiano, conforme a profissão, o modo de execução se torna algo

natural. Nesta lógica do poder de Biassou, o fato de o prisioneiro ser carpinteiro e

seu instrumento de trabalho ser um serrote, dá-lhe o mote para usar ritual

semelhante ao do quotidiano do réu. Ter o corpo literalmente serrado mostra uma

lógica (ir)racional que só tem sentido para o próprio líder:

— Qui es-tu, toi? lui dit Biassou. — Je suis Jacques Belin, charpentier de l´hôpital des Peres, au Cap. — (...) je suis ton premier maître. Tu feins de me méconnaître; mais souviens-toi, Jean-Biassou; je t´ai vendu treize piastres-gourdes à um marchand domingois. (...) — Emportez deux chevalets, deux planches et une scie, et emmenez cet homme. Jacques Belin, charpentier au Cap, remercie-moi, je te procure une mort de charpentier. (...) — Oui, dit-il, je dois te remercier, car je t´ai vendu pour le prix de treize piastres, et tu m´as rapporté certainement plus que tu ne vaux. (Bug, p. 174-6)

O fato de um chefe marron mostrar as contradições do mundo colonial não

o isenta de ambigüidades nas suas próprias atitudes. No julgamento e condenação

dos outros prisioneiros, o narrador impulsiona o personagem de Biassou a utilizar

uma lógica que evidencia um preconceito entre as classes sociais que leva à

tragédia:

— Négrophile, (...) qu´est-ce que c´est qu´un négrophile? — C´est um ami des noirs, balbutia le citoyen. — Il ne suffit pas d´être ami des noirs, repartit sévèrement Biassou, il faut l´être aussi des hommes de couleur. (...)

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— Des hommes de couleur, c´est ce que je voulais bien dire, répondit humblement le négrophile. Je suis lié avec tous les plus fameux partisans des nègres et des mulâtres. (...) — (...) qu´est-ce que cela veut dire? Viens-tu ici nous insulter avec ces noms odieux, inventés par le mépris des blancs? Il n´y a ici que des hommes de couleur et des noirs, entendez-vous, monsieur le colon? (Bug, p. 178-9)

Em La Tragédie, assim como em Bug, a violência do terror é um princípio

fundamental da autoridade, ou seja, quem ousa contradizê-lo é eliminado. Assim

como aconteceu com Metellus, o herói agrário de Césaire, e Moïse, tanto na

história, quanto na peça de Lamartine. Como o rei francês, que enviava à

guilhotina, o rei negro condenava todos aqueles que eram contra o rigor do

trabalho. Neste sentido, pode-se afirmar que ao copiarem o modelo monárquico

francês, Christophe e Biassou em Bug também copiaram o rigor do Código Negro.

Christophe e Biassou são respeitados, mas é o medo da população que moldou

este respeito. Quando Christophe cai, um personagem faz um gesto obsceno para

ele, pois não havia mais nada a temer e o povo podia se expressar livremente:

O mesmo ocorre em El reino. O Christophe de Carpentier corresponde ao

modelo de chefe tirânico, de ditador latino-americano que tem sede de poder. O

esvaziamento do sentido de poder, em Christophe, tanto em Carpentier quanto em

Césaire, é ilustrado pela condenação do padre Breille, o próprio confessor/capelão

do reino, ao emparedamento, à morte.

Do mesmo modo, os insultos proferidos contra São Pedro. Nesta cena,

apesar do desejo de europeizar, embranquecer a sua corte, o rei Christophe de

Carpentier crê mais nos atos de rebeldia do povo pelo vodu do que na força das

palavras do padre. Sua sensibilidade ao vodu, por longo tempo sufocada em

detrimento da religião dos brancos, o faz surtar, paralisar diante de todos os fiéis da

igreja.

Há um jogo do discurso do narrador onisciente de Carpentier, que transmite

os pensamentos místicos e o discurso direto em latim do padre. Essa ambigüidade

testemunha mais uma vez a superposição cultural da sua condição de rei negro em

terra créole. Há uma dupla perspectiva que é reforçada pela aparição do espectro

que desafia a Dies Irae. Mesmo acreditando que é vítima do poder do vodu, que ele

tanto recusou, seu castigo chega pela via do deus dos brancos, o deus que ele quer

que sua corte ame e venere. Ele dá as condições físicas porque tem o poder nas

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mãos; a igreja de Limonade é a maior que existe na cidade, os ministros são

favoráveis a ele, o padre recém-chegado para substituir Breille, também obedece a

Christophe, logo, o poder do rei é sagrado.

Mas no mundo mítico, este poder não tem valor, é esvaziado, é traduzido

apenas como uma superposição cultural, porque Christophe deveria cultuar os

deuses do vodu, os deuses negros. A paralisia ilustra a decadência do rei. Ele pode

ver tudo, escutar tudo, mas não pode fazer nada. O seu poder escapa, se esvai

com a população, com os súditos, com o som do Mandoukouman. Em La Tragédie,

na cena final, antes de se suicidar, o rei ouve o canto dos pássaros, o Toussaint

glissantiano, que sempre teve Maman Dio ao seu lado, ainda que ele recusasse a

proteção dos deuses do vodu, reafirma o seu nome e assume a língua créole, sua

antilhanidade.

O egocentrismo de Christophe, em La Tragédie, o distancia do seu povo e

de suas origens e do modelo de corte européia, pois o brilho do palácio é o que

Roberto Schwartz chamaria de “idéia fora de lugar”. O palácio é apenas decoração,

apenas mise-en-scène de uma tragédia anunciada.

Projetos políticos – ideologias – negrofilias – francofilias

La colonisation vola ainsi aux Africains déportés en Amérique leur passé, leur histoire, leur confiance élémentaire en eux-mêmes, leurs légendes, leur système familial, leur croyance, leur art.73 (DEPESTRE, 1980, p.98)

A temática da escravidão está evidente em Bug, assim como em Toussaint

Louverture de Lamartine. Fica claro que Hugo provoca uma discussão sobre as

ideologias ligadas à escravidão e à luta pela libertação dos escravos.

Em Bug, como observou Laforgue (1999), as idéias são explicitadas de

forma ambígua conforme a complexidade das questões. Ou seja, a situação

colonial envolvia os negros, os senhores franceses, mas também os mulatos. A

Revolução de Saint-Domingue servia para enfatizar as questões que ainda

sustentavam os debates nas outras ilhas como o clima de instabilidade

administrativa, por conta do “désastreux décret du 15 mai 1791, par lequel 73 A colonização roubou assim africains deportados para a América, seu passado, sua história, sua confiança elementar neles mesmos, suas lendas, seu sistema familiar, sua crença, sua arte

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l´assemblée nationale de France admettait les hommes de couleur libres à l´égal

partage des droits politiques avec les blancs” (Bug, p. 32). A questão é retomada no

capítulo XVI, quando os incêndios do dia 22 de agosto de 1791 são iniciados, sob o

comando de Bouckman. A assembléia provincial reúne, na narrativa, brancos e

mulatos negrófilos, independentistas e os senhores mais radicais (Bug, p.82-94).

Hugo expõe o ridículo e a crueldade das propostas que surgem durante a tal

assembléia. O cidadão C*** propõe o massacre dos negros de forma insólita:

“Faisons un cordon de têtes de nègres qui entoure la ville, (...). Il faut se sacrifier

pour la cause commune dans un semblable moment. Je me dévoue le premier. J´ai

cinq cents esclaves non revoltés; je les offre” (Bug, p. 91-2). No mesmo capítulo,

este cidadão é reconhecido como um negrófilo, o que o leva a confessar

paradoxalmente que, na prática, a situação se inverte:

— Je croyais pourtant ne pas être suspect. Je suis lié avec des négrophiles; je corresponds avec Brissot et Pruneau de Pomme-Gouge, en France; Hans-Sloane, em Angleterre; Magaw, em Amérique; Pezll, en Allemagne; Olivarius, en Danemark; Wadstrohm, en Suède; Peter Paulus, en Hollande; Avendaño, en Espagne; et l´abbé Pierre Tamburini, en Italie! (...) — Mais il n´y a point ici de philosophe! (Bug, p. 92)

A decisão final dessa assembléia era a de colocar a cabeça de Bouckman a

prêmio para dar o exemplo aos insurretos.

Bug-Jargal permite a Hugo denunciar a escravidão e pleitear a abolição: a

descrição do sofrimento na plantação de cana, do autoritarismo do tio de

d´Auverney, ao condenar a preguiça do escravo. A reflexão do personagem

d´Auverney mostra que ele, alter ego de Hugo, começa a perceber os conflitos.

Para ele, o autoritarismo imposto pelo branco chega a ser uma neurose tanto da

parte do branco quanto da parte dos negros:

J´eus lieu de voir dans cette promenade combien le regard d´un maître est puissant sur des esclaves, mais en même temps combien cette puissance s´achète cher. Les nègres, tremblants en présence de mon oncle, redoublaient, sur son passage, d´effort et d´activité; mais qu´il y avait de haine dans cette terreur! (Bug, 57)

O Código Negro rege a Plantação nas Antilhas. O chicote é a lei para

qualquer atitude contrária à vontade do senhor, do colono. Hugo denuncia a lei da

Plantação, e tenta evidenciar o ódio que existe nas relações entre negros, brancos

e mulatos. Para o branco, o negro sempre odeia seus senhores e querem se vingar

deles. Bug-Jargal encarna o rebelde diante da atitude do senhor, enquanto ainda

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pertence ao branco. Na cena em que o escravo deve ser punido por estar

descansando, Pierrot toma o chicote, enfrenta o mestre em favor do negro

ameaçado e provoca, assim, a fúria do déspota: “Blanc, si tu veux me fapper,

prends au moins une hache….” O fato de perder a autoridade diante dos negros

leva o mestre a enviar Bug-Jargal à prisão e, conseqüentemente, à morte.

Em Toussaint Louverture, o ensaio de Césaire, Toussaint é mostrado a

partir de seus projetos futuros. Como James, Césaire aponta a maior característica

administrativa de Toussaint como ponto negativo para seu governo, logo após a

sua vitória: sua fixação em militarizar o país. Sem especialistas para desenvolver as

atividades mais corriqueiras da colônia, Toussaint Louverture passou a desenvolver

a política “pro blanche”, valorizando a mão-de-obra branca e, paradoxalmente, com

relação aos negros, apresenta uma lista com treze artigos impondo sanções aos

que não trabalhassem. Embora tenha conseguido, sem ajuda da metrópole,

alavancar a economia da colônia (CÉSAIRE, 1981, p. 274), levantando a auto-

estima dos trabalhadores, Toussaint Louverture passa a reprimir qualquer foco de

resistência e manda fuzilar o sobrinho, Moïse (CÉSAIRE, 1981, p.275), general de

seu exército. É neste período de prosperidade que Toussaint Louverture elabora

uma constituição para a colônia (CÉSAIRE, 1981, p. 279-81).

O primeiro ato de independência da colônia seria o tratado de paz

independente da guerra que se travava entre a França e a Inglaterra. Este tratado,

de 31 de agosto de 1798 (CÉSAIRE, 1981, p.259) também levou Toussaint a

recorrer ao presidente dos Estados Unidos à época, John Adams, a fim de obter

apoio e proteção aos navios enquanto estivessem ancorados no território que

administrava. Não havia a quem recorrer, pois a França tinha estipulado o bloqueio

comercial contra a Inglaterra.

Após anos de luta, esperando, em vão, o reconhecimento do Diretório e de

Napoleão, Toussaint Louverture, diante da tropa de Leclerc, aceita a proposta de

rendição. No entanto, Césaire defende sua decisão. Para Césaire, ele só queria

uma trégua e aproveitou o momento para estabelecer politicamente suas condições

de rendição: “Ses officiers conserveraient leurs grades, ses troupes ne seraient pas

licenciées et sa garde le suivrait sur celles de ses propriétés ou il accepterait de se

retirer” (CÉSAIRE, 1981, p.302).

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O projeto de Toussaint Louverture parecia grandioso. Ele queria uma nação

aliada à França fazendo valer os ideais de liberdade e de igualdade da Revolução

Francesa. A nova nação seria moderna. Para resistir no mercado e continuar a ser

próspera, nos moldes da ex-colônia, ele decidiu que o plantio da cana de açúcar

seria a fonte de renda a ser explorada. O povo, entretanto, estava cansado, não

queria lembrar da escravidão representada pelo trabalho das plantações. Toussaint

Louverture teve que obrigar os trabalhadores a enfrentarem o trauma da

escravidão, com a ajuda dos colonos brancos. Ordenou o tratamento escravo

ditatorial. No entanto, Césaire considera que Toussaint queria o bem-estar de

todos, a liberdade geral, inclusive financeira. Ele foi tão nobre na sua decisão de

render-se que, para Césaire, ele foi um mártir, deu a própria vida pela

independência.

Do bon nègre ao negro revoltado

Para Carminella Biondi (1999), Bug é o primeiro romance da literatura

francesa a pôr em cena um herói negro. Pierrot, o escravo “bon nègre”, durante o

dia, que passa a ser Bug-Jargal à noite, quando se reúne com seus “camarades”, é

construído a partir das características de Toussaint, em muitos aspectos: como

conciliador com relação à França, como homem preocupado com o povo, como

chefe respeitado pelos negros, como amigo dos brancos e dos negros, ou seja,

como francófilo. Era respeitado pelos negros, pois era “chef des révoltés du

Morne-Rouge” (Bug, p. 256).

Em Bug há a tipologia do personagem negro fiel, o “bon nègre”, e a do

escravo rebelde, o que nos leva a analisá-lo pela visão caribenha do Caliban. O

modelo de personagem negro fiel teria sido lançado na literatura moderna, na

Inglaterra, no romance Oroonoko (1688), segundo Biondi (1999). Os personagens

negros que surgiram depois tenderam a seguir este modelo, que ela chama de

“negro embranquecido” ou do negro revoltado, que alimenta os estereótipos que

cristalizam as imagens que inferiorizam os negros. O personagem negro desta

época é travestido, mascarado como branco: “Pour que le nègre devienne le héros

de l’histoire, il doit subir un véritable processus de blanchissage et se mouler dans

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le modèle blanc, tantôt du côté physique, tantôt du côté de la personnalité du

héros”74 (BIONDI, 1999).

Contudo, em Bug, há também o “bon maître”, que vive as ambigüidades do

mundo colonial, cuja representação dos personagens engloba tanto crime e

desconfianças como generosidade. Os adjetivos, a caracterização física e as

descrições da natureza, assim como os detalhes das cenas dos capítulos são

excessivos, o que confirma a afirmação de Régis Antoine, segundo a qual nas

obras românticas francesas sobre o Haiti há uma “poética do excesso” (ANTOINE,

1992, p. 91).

O narrador resgata a origem de Bug-Jargal a partir do reino longínquo do

Kakongo. Ele vem de uma linhagem de rei, foi capturado e educado por um

espanhol e depois levado para a parte espanhola da ilha, Santo Domingo. A

nostalgia de Bug-Jargal, ao resgatar sua história, também é uma crítica à

escravidão :

mon père était roi au pays de Kakongo. Il rendait la justice à ses sujets devant sa porte, et, à chaque jugement qu´il portait, il buvait, suivant l´usage des rois, une pleine coupe de vin de palmier. Nous vivions heureux et puissants. (Bug, p. 251).

Critica a imposição cultural a que os escravos foram submetidos, assim

como a valorização de elementos culturais difrentes e que nada dizem para os

transportados. Para ele

Des Européens vinrent; ils me donnèrent ces connaissances futiles qui t´ont frappé. Leur chef était un capitaine espagnol; il promit à mon père des pays plus vastes que les siens, et des femmes blanches; mon père le suivit avec sa famille... Frère, ils nous vendirent! (Bug, p. 251).

Pierrot falava bem a língua do seu dono, o francês, mas também falava o

espanhol e o créole. O narrador afirma “... j´ai remarqué qu´il parlait avec facilité le

français et l´espagnol, et que son esprit ne paraissait pas dénué de culture; il savait

des romances espangoles qu´il chantait avec expression.” (Bug, p. 70). Para o

narrador e para d´Auverney, o escravo tem cultura quando ele mostra ter a cultura

do dono, a cultura da metrópole. Outra cultura não serve.

74 Para que o negro se torne o herói da história, ele deve sofrer um verdadeiro processo de branqueamento e se moldar no modelo branco, tanto do lado físico quanto do lado da personalidade do herói

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Para d´Auverney, era impossível compreender a alteridade a partir do

sentido que as palavras do misterioso homem que cortejava Marie representavam.

A antítese que causa surpresa a d´Auverney refere-se ao fato de a voz declarar

realeza e escravidão ao mesmo tempo para caracterizá-lo: “Et pourquoi

repousserais-tu mon amour, Maria? Je suis roi, et mon front s´élève au dessus de

tous les fronts humains.” (Bug, p. 44)75. Ser rei e escravo ao mesmo tempo era algo

impossível para a compreensão do jovem branco.

Depois, a cena se repete diante dos negros de Biassou, para que o

obedeçam. Para os negros, Bug-Jargal era um rei digno de respeito. Até mesmo

Biassou o respeitava como um rei e sua vontade era respeitada; por exemplo,

quando Bug-Jargal salva d´Auverney que havia sido capturado por

Biassou : “ Alteza, dit-il [Biassou] d´un ton obséquieux, le prisonnier blanc

[d´Auverney] est à vos ordres; vous pouvez l´emmener; il est libre de vous

accompagner” (Bug, p. 239).

Hugo ressalta hiperbolicamente a força, a vitalidade física e a fidelidade de

Pierrot, futuro Bug-Jargal, através do personagem branco d´Auverney

il se leva autant que la voûte, trop basse ne lui permettait, détacha sans effort une pierre enorme placée au-dessous du soupirail, enleva les deux barreaux scéllés en dehors de cette Pierre et pratiqua ainsi une ouverture ou deux hommes auraient pu facilement passer. Cette ouverture donnait de plain-pied sur le bois de bananiers et de cocotiers qui couvre le morne auquel le fort était adossé. (Bug, p. 66)

A narrativa também mostra as qualidades físicas de Bug-Jargal. Os olhos,

as narinas, a postura ressaltam a beleza das formas – mostram a imponência do

escravo, um negro gigantesco, um homem “doué d´une force colossale, c´était un

vrai Gibraltar” (Bug, p. 11) que se opõe ao anão Habibrah. Este escravo sofre uma

ascensão, no início na narrativa. Ele é o bufão da corte, descrito fisicamente com

estereótipos relacionados à parte física e à parte moral. A obediência é, acima de

tudo, um talento do escravo doméstico, como diria James (2000). O

personagem/narrador d´Auverney é o porta-voz destes pensamentos positivistas:

“au moindre signe de mon oncle, il accourait avec agilité d´un singe et la soumission

d´un chien” (Bug, p. 27). Em seguida, ele passa de escravo doméstico a líder 75Bug-Jargal sempre diz Maria e não Marie, ao falar à amada. Vale ressaltar que há palavras em espanhol e em inglês que compõem o quadro multilingüe no romance.

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marron, rebelde que quer se vingar do senhor, e, como Dessalines, prega ódio

eterno à França.

Inicialmente, Habibrah é descrito por idéias positivistas, depreciativas, que

reduzem o homem negro a um animal. No IV capítulo, logo na primeira parte, o

narrador introduz Habibrah na narrativa. Anão, mulato tipo griffe, pertencente à

colônia espanhola, foi dado ao tio de d´Auverney pelo governador da Jamaica.

Servia na fazenda como bufão, cuja função também era fazer rir. Classificado como

monstro (Bug, p. 26), por seu aspecto físico (gordo, barrigudo, cabeça grande,

orelhas grandes), seu tio gostava do humor inalterado que sempre demonstrava. O

narrador o descreve ao longo do IV capítulo, primeiramente como monstro, em

seguida, como animal de estimação que come os restos do senhor, faz o papel de

bufão, sem protestar contra o despotismo do dono. Também o descreve como

alguém desprezível, aviltado pelo trabalho doméstico, pois “la domesticité avilit”, e

finalmente, como um “obi” (Bug, p. 28), um feiticeiro respeitado pelos outros

escravos.

Há referências às humilhações sofridas pelos escravos, às punições

físicas, ao trabalho ininterrupto, bem como às reflexões claramente negrófilas como

estas que aparecem num diálogo/monólogo entre Habibrah e d´Auverney:

Crois-tu donc que pour être mulâtre, nain et difforme, je ne suis pas homme? (...)

J´ai été donné à ton oncle comme un sapajou. Je servais à ses plaisirs, j´amusais ses mépris. Il m´aimait, dis-tu; j´avais une place dans son coeur; oui, entre as guenon et son perroquet. Je m´en suis choisi une autre avec mon poignard! (Bug, p. 280)

Mas o quadro se reverte. O anão inofensivo passa a se vingar do senhor a

ponto de matá-lo. Este quadro de inversão é mostrado nos capítulos que

descrevem a noite de insurreição e os dias de combate entre brancos, negros e

mestiços. Ele se vinga do branco, quer matá-lo e na impossibilidade de ficar vivo,

como se observa numa cena de perigo, d´Auverney e Habibrah ficam à beira de um

abismo, um tentando se desvencilhar do outro. Habibrah suplica por ajuda do

adversário, é atendido, mas trai a confiança do adversário, tenta puxar o seu

inimigo. Neste quadro, mais uma vez, o esquema romântico prevalece, pois

d´Auverney consegue ser salvo pelo cachorro, o Rask:

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Ah, soyez plus généreux que moi! O ciel! O ciel! Je faiblis! Je tombe (...) Tendez-moi la main! Au nom de la mère qui vous a porté! (Bug, p. 292) Je me venge! Répondit-il avec un rire éclatant et infernal. Ah! Je te tiens enfin! Imbécile! (...) tu étais sauvé, j´étais perdu; c´est toi qui rentre volontairemente dans la gueule du caïman, (...) tu es pris au piège, amigo! Et j´aurai un compagnon humain chez les poissons du lac. (Bug, p. 293) Mon oncle, qui ayant longtemps résidé au Brésil, y avait contracté les habitudes du faste portugais, aimait à s´environner chez lui d´un appareil qui répondait à sa richesse. De nombreux esclaves, dressés aux servives comme des domestiques européens, donnaient à sa Maison um éclat de quelque sorte seigneurial. Pour que rien n´y manquât, il avait fait l´esclave de lord Effingham son fou, à l´imitation de ces anciens princes féodaux qui avaient des bouffons dans leurs cours. Il faut dire que le choix était singulièrement heureux. (Bug, p. 26)

A aparência física é inicialmente descrita como algo depreciativo, negativo:

Ce nain hideux était gros, court, ventru, et se mouvait avec une rapidité singulière sur deux jambes grêles et fluettes, qui lorsqu´il s´asseyait, se répliquaient sous lui comme les bras d´une araignée. Sa tête énorme, lourdement enfoncée entre ses épaules, hérissée d´une laine rousse et crépue, était acompagnée de deux oreilles si larges que ses camarades avaient coutume de dire qu´Habibrah s´en servait pour essuyer ses yeux quand il pleurait. (...) (Bug, p. 27).

Habibrah era uma espécie de pajem e gozava dos benefícios de ser um

escravo doméstico:

Tandis que les autres esclaves étaient rudement accablés de travail, Habibrah n´avait d´autre soin que de porter derrière le maître un large éventail de plumes d´oiseaux de paradis, pour chasser les moustiques et les bigailles. Mon oncle le faisait manger à ses pieds sur une natte de jonc et lui donnait toujours sur sa propre assiette, quelque reste de son mets de prédilection. (Bug, p. 27)

A ascensão de Christophe em El reino não segue exatamente a trajetória

de Habibrah. Ele aparece como “maestro cocinero” e na segunda parte, torna-se

proprietário do albergue La Corona e se estabelece como um cozinheiro de

prestígio na colônia:

Esta prosperidad favorecía muy particularmente la calle de los Españoles, llevando los más acomodados forasteros al albergue La Corona. (...) Los guisos del negro eran alabados por el justo punto del aderezo ― cuando tenía que verselas con un cliente venido de Paris ― , o por la abundancia de viandas en olla podrida, cuando quería satisfacer el apetito de un español sentado, de los que llegaban de la otra vertiente de la isla con trajes tan fuera de moda que más

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parecían vestimentas de bucaneros antiguos. También era cierto que Henri Christophe, metido de alto gorro blanco en el humo de su cocina, tenía un tacto privilegiado para hornear el volván de tortuga o adobar en caliente la paloma torcaz. Y cuando ponía la mano en la artesa, lograba masas reales cuyo perfume volaba hasta más allá de la calle de los Tres Rostros. (El reino p. 45-6)

A habilidade de Henri Christophe com a culinária dava-lhe o status de

“maestro-cocinero” que marca o início de uma relação entre comida, revolução e

poder. Christophe é bom cozinheiro, é bom soldado e poderoso como rei,

contrastando com a debilidade de Lenormand de Mezy. Christophe tudo faz, tudo

domina, é o homo faber (FIGUEIREDO, 1998) enquanto Lenormand de Mezy não é

capaz nem mesmo de se readaptar ao ambiente francês, ainda que

temporariamente:

el amo había partido a Paris, inesperadamente, dejando la administración de la hacienda en manos de un pariente. Pero entonces le había ocurrido algo muy sorprendente: al cabo de pocos meses, una creciente nostalgia del sol, de espacio de abundancia, de señorío, de negras tumbadas a la orilla de una cañada, le habían revelado que ese regreso a Francia, para el cual había estado trabajando por largos años, no era ya para él, la clave de la felicidad (El reino, p. 46)

Assim, Carpentier descreve a pluralidade da sociedade colonial e revela

sua estilística que consiste na apresentação da constante oposição de elementos

americanos com elementos europeus, ocidentais. Os personagens se transformam

na narrativa, mas se mantêm polarizados. Na trajetória de Henri Christophe e de

Paulina Bonaparte, no sexto capítulo, La nave de los perros, ainda na segunda

parte, percebe-se que ambos propõem a idéia de convívio e de superposição de

culturas e diferentes noções de espaço e de tempo num mesmo contexto cultural.

Ambos revelam a dinâmica da sociedade em questão que, ao promover a

imposição de uma cultura sobre outra, acaba promovendo, igualmente, um ponto

comum de aproximação entre estas culturas.

Henri Christophe busca assimilar a cultura francesa, a do dominador,

converte-se em monarca de estilo francês. Ao construir a cidadela Laferrière, onde

mantém quinze mil negros trabalhando, Christophe utiliza a estratégia francesa de

dominação pela força. O mesmo ocorre quando obriga seus súditos a exercer a

religião católica sem facultar-lhes o culto aos deuses do vodu.

Henri Christophe faz o percurso inverso de Paulina Bonaparte. De escravo,

passa a cozinheiro refinado, dono da pousada La Corona, torna-se depois um

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general-artilheiro para, em seguida, ser presidente do Haiti, em 1807, e rei no

período de 1811 a 1820. A ascensão de Christophe é algo “maravilhoso”, pois só se

viabilizou por causa do processo de crioulização a que se expôs. O então escravo

só teve o devido reconhecimento como cozinheiro porque agradava o paladar dos

brancos; assim como só chegou a artilheiro pelas estratégias européias de guerra

desenvolvidas por Toussaint Louverture. Finalmente, só chegou a ter uma corte nos

moldes franceses quando quis ser um rei à francesa, com carruagem dourada,

“cubierta con soles en relief” (El reino, p.89)

Como o próprio Carpentier afirmou, a ascensão de Christophe à função de

rei é o maior exemplo de “maravilhoso”, embora a saga do personagem na narrativa

seja muito fragmentada. Não há informações sobre sua vida de escravo. Segundo

James, Christophe era um negro de uma das ilhas de língua inglesa, “amava o

luxo” e aprendeu a falar francês com “uma fluência notável” (JAMES, 2000, p. 236).

No capítulo Sacrificio de los toros, na terceira parte, ele é descrito rapidamente

como “Chato, muy fuerte, de tórax un tanto abarrillado, la nariz Roma y la barba” (El

reino, p. 96). Como proprietário ou cozinheiro, é citado três vezes: na primeira,

quando é descrito o progresso da Cidade do Cabo, no início do capítulo La hija de

Minos y Pasifae. “La Corona, que Henri Christophe, el maestro cocinero, acababa

de comprar a Mademoiselle Monjeon, su antigua patrona.” (El reino, p. 45); na

segunda, quando Lenormand de Mezy descobre e lamenta não existir mais a

pousada: se dirigió a la calle de los Españoles, con el ánimo de beber en la hostería La Corona. Al ver la casa cerrada, recordó que el cocinero Henri Christophe había dejado el negocio, poco tiempo antes, para vestir el uniforme de artillero colonial. (...) no quedaba en el Cabo lugar donde un caballero pudiera comer a gusto. (El reino, p. 62)

e no capítulo, Sans-Souci, da terceira parte, quando Ti Noel percebe de

quem é a residência que o impressiona: rey Christophe, aquel que fuera antaño cocinero en la calle de los Españoles, dueño del albergue de La Corona, y que hoy fundia monedas con sus iniciales, sobre la orgullosa divisa de Dios, mi causa y mi espada. (El reino, p. 90)

O personagem como rei aparece ao longo da terceira parte, como um rei

de muita grandeza e cujos atos são igualmente grandiosos: a construção do palácio

Sans-Souci com suas colunas, terraços, arcadas e jardins deixam Ti Noel

“maravilhado”, pois podia temporariamente contemplar as paisagens. “Habituado a

los sensillos uniformes, Ti Noel descubría de pronto, con asombro, las pompas de

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un estilo napoleónico, que los hombres de su raza habían llevado a un grado de

boato ignorado por los mismos generales del corso.” (El reino, p. 88). Ti Noel

testemunha que a ostentação de Sans-Souci impressionaria igualmente os

membros da corte de Napoleão.

As mudanças nas relações sociais eram enormes. O poder, conforme se

constata através do olhar de Ti Noel, agora era exercido pelo negro, sobre os

negros, e não mais pelos brancos. Ti Noel, antes espectador daquela “maravilha”, e

com o status de homem livre, alforriado, volta a ser um trabalhador forçado, um

escravo de Christophe: “El viejo recibió un tremendo palo en el lomo. Antes de que

le fuese dado protestar, un guardia lo estaba conduciendo, a puntapiés en el

trasero, hacia uno de los cuarteles.” (El reino, p. 90)

Assim se dá a apresentação de Henri Christophe não somente como rei,

mas sobretudo como agente de transformação da realidade. Ti Noel encontra uma

realidade “maravilhosa”, com alterações inesperadas tanto no âmbito das antigas

relações sociais, senhor branco-escravo negro, quanto no das novas relações que

surgiram. A paisagem das montanhas é inferiorizada, de certa forma, pela decisão

de Christophe de fortalecer a argamassa das paredes com sangue de touro. A fé no

“maravilhoso”, mais uma vez, justifica este ato, cujo resultado era a degola de

centenas de touros, cujo sangue tornaria a cidadela “invulnerável” aos inimigos

brancos. A decisão do rei revela concentração de seus poderes: tudo decide, tudo

pensa, mantém uma relação de subordinação onde o senhor é o provedor e o

escravo é o indefeso, o incapaz e dependente do rei. Ele quer criar a nação

haitiana à sua maneira, portanto, não ouve nem os conselheiros, nem a mulher.

Christophe convive com valores das culturas americana e européia, mas

agora trabalha para si mesmo (RODRÍGUEZ, 1970, p. 41). Antes, admirava a

cultura francesa e a imitava, mas agora pratica formas de tirania contra os negros e

chega a superar os colonos brancos no que se refere à crueldade aplicada aos

súditos: Además, en tiempos pasados, los colonos se cuidaban mucho de matar a sus esclavos — a menos de que se les fuera la mano—, porque matar a un esclavo era abrirse una gran herida en la escarcela. Mientras que aqui, la muerte de un negro nada costaba al tesoro público: habiendo negras que parieran— y siempre las había y siempre las habría—, nunca faltarían trabajadores para llevar ladrillos a la cima del Gorro del Obispo (El reino, p. 96).

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Nos três últimos capítulos desta terceira parte, Crónica del dia 15 de

agosto, Última ratio regum e La porta única, são narrados os momentos que

antecedem a morte do rei. São evidenciados os conflitos entre os elementos

americanos e europeus na vida do personagem. Ele vive em dois mundos, o dos

negros e o dos brancos, do americano e do europeu, do escravo e o do homem

livre.

Não eram apenas os negros que sofriam os castigos, os brancos sob seu

comando também estavam sujeitos às sentenças reais. A condenação de Cornejo

Breille não foi evitada nem mesmo pelas súplicas da rainha que “podia implorar en

vano, abrazándose a las botas de su esposo” (El reino, p. 102). Pelo contrário, o

padre foi substituído por outro, Juan de Dios, igualmente branco e europeu. Mas o

novo padre era astuto, gostava de mesa farta e além do mais, o narrador sugere

que ele pode ter conspirado contra Cornejo Breille junto ao rei.

No capítulo da Crónica del 15 de Agosto, o rei é acometido de alucinações

que lhe revelavam um “inexplicable desasosiego”. Toda a tirania que vinha

exercendo na cidadela lhe vem em mente em segundos a partir da fé no

aparecimento do espectro de Cornejo Breille durante a missa, na igreja de

Limonade. O calor que afetava a todos os nobres presentes e os fatos recém-

acontecidos do emparedamento do padre levaram-nos a ver e crer no aparecimento

do espectro do religioso. Mais uma vez, a “fé” moveu esta cena de “maravilhoso”:

"Frente al altar, de cara a los fieles, otro sacerdote se había erguido, como nacido

del aire, con pedazos de hombros y de brazos aún mal corporizados (El reino, p.

106).

Os delírios do rei partiam não somente da esfera religiosa, mas também da

social. Enquanto pensa estar cercado “por fuerzas hostiles” (El reino, p. 105), culpa-

se por provocar as más intenções do povo para com seus poderes: as colheitas

foram perdidas, “sobre una tierra fértil (...) por estar los hombres ocupados en la

construcción de la Ciudadela". (El reino, p.106). Ao mesmo tempo, o narrador

registra a fala do padre, em latim, durante a missa. O esquema cultural europeu (a

missa, o padre) se superpõe ao esquema cultural negro (o vodu, as vozes, as

alucinações).

Christophe passa a viver no exílio no seu próprio poder e reconhece como

inimigos tanto os brancos, de quem sempre quis se proteger, quanto os negros

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livres e os negros escravos da cidadela. A missa rezada em latim se imbrica na

narrativa com as referências ao vodu, presentes no pensamento do rei. O espectro

de Cornejo Breille atormenta-o, amedronta-o, e o espectro das rebeliões e das

vinganças dos seus súditos negros transformam-se em ameaças “reais”.

Christophe não tem a “fé” para com o elemento americano. Pelo contrário.

O fato de ir à missa, mandar rezar a missa para Nossa Senhora da Assunção, no

dia 15 de agosto, bem como o fato de seguir os rituais dessa missa, não quer dizer

que ele acredita. Embora pareça paradoxal, ele está numa igreja para que seus

súditos o vejam como um monarca, como um homem poderoso. A ostentação do

poder é um elemento cultural europeu. Seu palácio, sua cidadela, seus jardins e o

vestuário fazem parte desses elementos culturais europeus.

Ele suspeita que o povo se defenderá, pois “En alguna casa retirada (...)

habría una imagen suya hincada con alfileres o colgada de mala manera con un

cutillo encajado en el corazón.” (El reino, p. 106). O medo da reação do povo o

atormenta porque ele conhece o vodu, conhece as regras. Os tambores soavam

anunciando a vingança enquanto as Ave-Marias eram ditas mas não significavam

um alívio, pelo contrário, as vozes atormentavam o rei a partir das ameaças de

Cornejo Breille. Exclui-se do mundo dos escravos e não consegue permanecer no

mundo dos monarcas. Se o galo cantasse, se os burros relinchassem, poderiam

estar anunciando má sorte, “agouro”, ou sua sentença de morte. Por isso o povo

amedrontado e já temendo represálias, calou os bichos: los campesinos, aterrorizados por el delírio del monarca, comenzaron a bajar gallinas y gallos, metidos en canastras, a la noche de los pozos profundos, para que se olvidaran de cloqueos y fanfarronadas. Los burros eran espantados para evitar malas interpretaciones de relinchos. (El reino, p. 107)

Os tambores continuaram a tocar o manducumán no capítulo Última ratio

regum, mas o batuque que ouvia representava sua sentença, a solidão, o exílio: La ausencia de cortesanos, de lacayos, de guardias, daba una terrible vaciedad a los corredores y estancias. Las paredes parecían más altas; las baldosas más anchas. El salón de los espejos no reflejó más figura que la del rey, hasta el trasmundo de cristales más lejanos. Y luego, esos zumbidos, esos roces, esos grillos del artesonado, que nunca se habían escuchado antes, y que ahora, con sus intermitencias y pausas, daban al silencio toda una escala de profundidad. (El reino, p. 111).

Ao refletir sobre seu governo, avaliando sua trajetória de vida, não estava

fazendo um mea culpa, mas (re) descobrindo seu universo cultural, ironicamente,

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esta é a sua última razão, seu “retour au pays natal”. O Christophe de todos, “el

reformador” (El reino, p. 114), não havia percebido que a cidadela poderia ser

atacada pelo povo, não branco, mas o povo negro, negro como o rei. Não queria

ser povo, quis ignorar o vodu em proveito dos deuses católicos, mas sabia

interpretar corretamente o que significavam os tambores e o manducumán dos

escravos revoltosos. Assim, o rei, acuado, não teve outra saída a não ser perceber

a origem de seus erros: Ahora comprendía que los verdaderos traidores de su causa, aquella noche, eran San Pedro con su llave, los capuchinos de San Francisco y el negro San Benito, con la Virgen de semblante oscuro y manto azul, y los evangelistas, cuyos libros había hecho besar en cada juramento de fidelidad; los mártires todos, a los que mandaba encender cirios que contenían trece monedas de oro. Después de lanzar una mirada de ira a la cúpula blanca de la capilla, llena de imágenes que le volvían las espadas, de signos que se habían pasado al enemigo, el rey pidió ropa limpia y perfumes. (...) vistió su más rico traje de ceremonia. Se terció la ancha cinta bicolor, emblema de su investidura, anudándola sobre la empuñadura de la espada. (El reino, p. 115).

O rei se suicida mas, ao decidir tirar a própria vida, estava entrando para a

posteridade, para a história do Haiti. Seu sepultamento não teve honras fúnebres

de rei branco, ele foi levado “a la manera primitiva” , como um indígena pré-

colombiano ou como um rei africano. O caixão/esquifo compreendia “una rama

alisada a machete, de la que pendía una hamaca cuyo estambre roto dejaba pasar

las espuelas del monarca.” (El reino, p.117) . Seu corpo foi colocado na argamassa

fresca, no alto da montanha. O corpo do rei negro não foi velado como o de um rei

branco, mas está no mausoléu natural: “La montaña del Gorro del Obispo, toda

entera, se había transformado en el mausoleo del primer rey de Haití.” (El reino, p.

121).

As representações identitárias femininas, ou os poderes das mulheres

As representações identitárias femininas também estão carregadas de

sentidos. Na peça Toussaint Louverture, de Lamartine, Paulina Bonaparte (madame

Leclerc) aparece como símbolo da esposa fiel e justa, enquanto Adrienne aparece

como uma “criança”, que necessita de cuidados e que, por ser mulata, busca o pai

branco francês. A questão da bastardia e da luta de classes do contexto haitiano

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após a independência é abordada, ainda que sutilmente, sem realmente

problematizá-la.

Na peça, Paulina e Adrienne são personagens secundários, mas a segunda

representa mais a questão haitiana, na medida em que ela decide não acompanhar

o pai que ela encontra em meio aos soldados de Leclerc. A representação feminina

permanece superficial enquanto em Bug o personagem de Marie tem uma

participação maior na narrativa, ainda que também represente, como Paulina

Bonaparte, a mulher romântica fiel e casta. Entretanto, por se tratar de uma obra

maior, um romance, em Bug a participação de Marie é fundamental para alimentar

a trama que liga d´Auverney e o escravo Pierrot (bon-nègre)/Bug-Jargal (rebelde).

O narrador descreve Marie com adjetivações positivas, de modo a criar uma figura

celeste e virtuosa que contrasta com as mulheres negras descritas em sua maneira

de dançar, de cantar, mas principalmente como “bruxas”, como “monstros”. Em

conjunto, elas recebem adjetivos negativos que caracterizam o espaço do inferno.:

“Je n´ai jamais vu une réunion de figures plus diversement horribles que ne l´étaient

dans leur fureur tous ces visages noirs avec leurs dents blanches et leurs yeux

blancs traversés de grosses veines sanglantes” (Bug, p.129).

Em El reino, as representações femininas são diferentes entre os

personagens brancos e os negros. A Paulina Bonaparte é completamente diferente

da Paulina de Lamartine. A figuração da mulher branca, esposa de um general

francês, Leclerc, que acompanha o marido em missão de guerra a uma ilha

longínqua, só poderia ser definida em torno do real maravilhoso.

A Paulina de Carpentier pertence à classe dominante, mas se predispõe a

conhecer os elementos da cultura local, mestiça, créole. Há um contra-senso

aparente, pois ela prefere adotar as crenças de Solimán, seu escravo, diante da

epidemia de febre amarela e rejeita os procedimentos da medicina ocidental. O

recurso à prática medicinal do dominado insere Paulina no universo do

“maravilhoso”.

A narrativa das cenas em que Paulina aparece com seu escravo Solimán

mostra-a transitando na cultura do outro com um elemento a mais, a sensualidade,

que a diferencia de personagens europeus fictícios (como as esposas de

Lenormand de Mezy) assim como da Paulina Bonaparte de Lamartine e da Marie

de Hugo. No primeiro capítulo da segunda parte há uma descrição da terceira

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esposa de Lenormand de Mezy, flagrada em roupas transparentes. No sexto

capítulo, o narrador descreve Paulina nua. Ambas as cenas transmitem

sensualidade, mas Paulina Bonaparte é sempre descrita com sensualidade nas

suas atitudes e comportamentos, enquanto Mademoiselle Floridor, além de ser

apresentada como atriz frustrada, ela encena um trecho teatral repleto de

crueldades: Nada de lo que confesaba aquella mujer, vestida de una bata blanca que se transparentaba a la luz de los hachones debía de ser muy edificante. (...) Ante tantas inmoralidades los esclavos de la hacienda de Lenormand de Mezy seguían reverenciando a Mackandal. (El reino, p. 48-9) Al alba, el vigía descubrió, con grato desasosiego, la presencia de una mujer desnuda sobre una vela doblada, a la sombra de foque de mesana. Creyendo que se trataba de una de las cameristas, estuvo a punto de deslizarse hacia ella por una marona. (El reino, p.71-2)

Embora em posições polarizadas, em que despertam antipatia e simpatia,

respectivamente, o narrador as coloca num plano cultural da mitologia grega.

Enquanto Paulina é associada a “Galateia” (El reino, p. 72), uma das cinqüenta

ninfas, que simbolizam o movimento do mar, filha dos deuses marítimos Nereu e

Doris76, expressando beleza, Floridor, no capítulo La hija de Minos y Pasifae77, não

exerce fascínio e é associada à maldade, quando recita os versos de Jean Racine

(Phèdre, IV, 6) para os escravos que ela maltrata:

Mes crimes désormais ont comblé la mesure: Je respire à la fois l´inceste et l´imposture; Mes homicides mains, promptes à me venger, Dans le sang innocent brûlent de se plonger. (sic) (El reino, p. 48)

Para os escravos, as palavras de Fedra, recitadas por Mlle. Floridor, nada

significam, são vazias, pois aquele vocabulário não fazia parte da linguagem do

cotidiano deles, a não ser a palavra crime, que conheciam muito bem e

conseqüentemente o castigo que costumavam sofrer quando se rebelavam. Para

eles, Floridor estava na colônia provavelmente “por escapar a la policia” (El reino, p.

48).

76 In.: HACHETTE. Le Dictionnaire de Notre Temps. Paris: Hachette, 1989. p.1038. 77Id. Minos, casado com Pasifae, ao morrer torna-se um dos três juízes do inferno, deixando três filhas: Fedra, Ariane e Androgea p. 987

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A predisposição de Paulina com relação à alteridade se revela na narrativa

bem antes de chegar à ilha, pois já havia lido Paul et Virginie, de Bernardin de Saint

Pierre (1788), Atala, de Chateaubriand (1801), e Un nègre comme il y a peu de

blancs, de Joseph Lavallée (1795). Todas estas obras são citadas na narrativa

como leituras de Paulina e que a aproximam ora dos enredos, ora dos

personagens: “Y así, iba pasando el tiempo, entre siestas y desperezos,

creyéndose un poco Virginia, un poco Atala...” (El reino, p.73). Os enredos e/ou os

personagens se identificam com a sua história de descobertas, de paixão, de

(in)fidelidade, de frivolidades ou de alteridade. Além das leituras, ela conhecia a

dança crioula, La Insular, vista em Paris, o que a fazia mais próxima da alteridade.

Também levava na mala lenços da Ilha Maurício, onde tinha estado, e tinha sido

instruída por Madame de Abrantes, freqüentadora da corte de Napoleão e citada na

narrativa: “(...) j´achevais mon discours en lui disant qu´elle serait bien jolie mise en

créole.” (El reino, p. 43). Ela foge para a ilha da Tortuga, o único local onde nem a

febre amarela nem a violência chegavam. Ela não teme o perigo das sublevações

das quais o marido lhe falava, à noite. Gostava de tomar banho nua na piscina, à

sombra dos tamarineiros. Gostava da solicitude de Solimán em cuidar de sua

beleza.

Em contrapartida, Mademoiselle Floridor se embriaga algumas vezes à

noite e obriga os escravos a ouvirem suas “maldições.” Ambos os personagens se

polarizam. Paulina é descrita em cenas de muita sensualidade, dominadora, com o

escravo, Cuando se hacía bañarse por él, Paulina sentía un placer maligno en rozar, dentro del agua de la piscina, los duros flancos de aquel servidor a quien sabía atormentado por el deseo, y que la miraba siempre de soslayo, con una falsa mansedumbre de perro muy ardido.... de la ilustración. (El reino, p. 73)

Neste sentido de aproximação física, Mademoiselle Floridor é vítima, é

estuprada por um negro. Mas o negro que a violenta é o mesmo que busca e

defende a liberdade. O contato com a alteridade dá-se, neste caso, pela violência,

enquanto que no caso de Paulina o jogo de sedução parece ser consentido,

valorizando os elementos americanos. Num primeiro momento, o narrador ratifica a

relação social dominador-dominado, senhora-escravo (Paulina-Solimán), em

seguida, os papéis se invertem, o que se pode comprovar quando ela estimula e

mantém o desejo de Solimán.

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Ainda em El reino, há dois personagens femininos que têm representações

importantes na narrativa. Madame Christophe é o exemplo da mulher caribenha.

Ela acompanha o marido aonde ele for, ainda que ele esteja errado. O mesmo

acontece com as duas filhas de Christophe. Ambas ficam juntas até o final da peça,

mesmo quando vão para a Itália, após a morte do rei Christophe. Também há a

figura da mãe-de-santo Maman Loi. Ela aparece nos capítulos da saga de

Mackandal com a importante tarefa de iniciá-lo nos cultos do vodu, ou seja, ela é

representada como a detentora dos conhecimentos das leis ocultas que serão

reveladas a Mackandal e a Ti Noel, os happy few.

Em La Tragédie e em M. Toussaint, os personagens femininos são vistos

na sua diversidade e na sua importância para a família caribenha. Césaire

representa Madame Christophe como a consciência do rei. Ela sabe dos perigos

que o marido e o Haiti correm se ele exigir além do que o povo pode dar na

construção da nova nação. Ela tem conhecimentos do vodu porque é uma ex-

escrava, ela sabe que é uma mulher do povo e como tal, ela pode ajudar o marido a

ser menos ditador. Em M. Toussaint, Madame Toussaint encarna a representação

feminina de Madame Christophe de Césaire. Maman Dio é também uma mulher

que tem conhecimentos sobre o vodu e exerce um papel fundamental na peça, que

é ajudar Toussaint a reconhecer o vodu como religião nacional. As duas exercem a

tarefa de ajudar os personagens masculinos num ambiente em que todos se

relacionam, todos são personagens “rizomáticos” e participantes da poética da

relação. Na concepção glissantiana, não há hierarquias dos elementos

participantes; no caso da peça, todos os personagens são importantes e suas

participações, ainda que breves, têm importância para o todo da obra.

A representação discursiva de Toussaint e de Christophe

Rastrear as pistas da representação de Toussaint como símbolo da

identidade caribenha é uma tarefa rizomática, ou seja, a história da Revolução de

Saint-Domingue e a realidade atual do Caribe devem ser consideradas em todos os

momentos.

Césaire mostra as especificidades da Revolução a partir de algumas pistas

que respondem à questão do fracasso dos brancos e dos mulatos na insurreição

contra a metrópole, mas mostra porque os negros venceram.

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Segundo Charles-André Julien, Toussaint está no imaginário social coletivo

haitiano como o libertador e há “une dévotion patriotique qui ressemble à une

culture”78 (JULIEN, 1981, p. 7). Ele faz referência ao relato do coronel Nemours e

de sua esposa sobre a visita feita à cela de Toussaint, no castelo de Joux, na

França, e apresenta o prisioneiro como um mártir ao qual ninguém dera água nem

secara o suor do rosto quando necessitara, em alusão à Paixão de Cristo.

Comparando-o aos heróis espartanos como Leônidas, um guerreiro, e como

Licurgo, um legislador, o prefaciador da obra de Césaire reafirma que Toussaint

fora mais do que um simples homem. Ele destaca sua ascensão de escravo

cocheiro da fazenda Bréda a chefe militar e homem de estado que venceu os

invasores ingleses, resistiu às tropas francesas e conduziu o povo à independência.

No século XIX, a representação do personagem Toussaint na literatura

passou pelo viés do branqueamento. O bon-nègre era o personagem que devia

agradar o público leitor. O negro rebelde e violento, com a visão calibanesca, foi

preterido, ainda que não completamente. Com a Revolução de Saint-Domingue, o

bon-nègre devia ceder o lugar ao negro rebelde, pelas próprias circunstâncias de se

estar diante de um feito de enorme relevância para a história dos direitos do

homem.

Na estética romântica, Christophe não tinha os atributos para ser

representado na ficção. Sua trajetória de cozinheiro a artilheiro talvez pudesse ser

aproveitada, mas a de artilheiro a rei ditador talvez não correspondesse ao posto da

época. Dessalines, que já havia sido considerado francófobo, não podia ser

enquadrado no esquema romântico como protagonista. Restava Toussaint que,

declaradamente, era francófilo e queria se atrelar à administração da França.

Assim, o Toussaint de Lamartine parece ter ajudado a moldar a representação de

Toussaint como pacifista. Do mesmo modo, o Toussaint de Hugo, representado

pelo personagem Bug-Jargal, cristaliza, de certa forma, a imagem de um Toussaint

aberto ao diálogo, fiel aos seus compromissos e, sobretudo, não violento, ainda que

tenha perdido sua família no confronto com um colono, no mesmo dia vinte e dois

de agosto de 1791, como atesta a narrativa.

78 uma devoção patriótica que se assemelha a uma cultura

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O Toussaint de Césaire é representado como um homem que previa o

futuro, um visionário que acertadamente propôs a administração política das ilhas

adjacentes a Saint-Domingue, numa suposta harmonia em que a França aceitaria

ceder a perda de escravos. Coincidência ou não, Césaire parece encarnar as

estratégias de Toussaint ao aceitar a departamentalização da Martinica em 1946.

Como criticou amplamente a atitude de Césaire, deputado da Martinica na França,

à época, Glissant também o critica na ficção, ao representar o Toussaint na sua

peça como o herói confuso que faz mea-culpa diante do povo, representado pelos

personagens da Revolução, da sua família e do meio político. Entretanto, ao

preferirem representar Toussaint a Christophe na literatura a partir de 1939, no

Cahier, e em 1961, em M. Toussaint, os martinicanos parecem estar mantendo um

diálogo sobre a identidade cultural caribenha no âmbito da literatura, que não

podem travar num debate sobre o assunto frente a frente. Assim, é significativo que

Césaire tenha partido para outro personagem, Henri Christophe, para escrever La

Tragédie. Também é significativo que esta peça seja direcionada para os países

africanos que estavam obtendo sua independência política naquela década.

Na peça de Lamartine, o personagem Toussaint expressa sua fé no

cristianismo e no drama familiar que envolve os filhos. A fé não inclui o vodu, as

marcas das raízes africanas. Pelo contrário. Lamartine segue ainda o padrão do

“bon nègre” que era utilizado na construção do personagem negro.

O personagem Toussaint, encarnado por Pierrot e Bug-Jargal de Hugo, tem

algumas destas características. A erudição, a beleza física e a infatigabilidade de

Bug-Jargal marcam o branqueamento do personagem, assim como o amor

impossível entre ele e Marie ponta para a impossibilidade das relações amorosos

entre brancas e negros. Marie tem piedade de Bug-Jargal por sua dedicação, por

ser um negro fiel. O narrador de Bug também mostra enfaticamente a amizade que

pode existir entre brancos e negros, a partir do personagem branco d´Auverney. O

amor reprimido de Bug-Jargal é minimizado em função do conflito relacionado à

amizade entre brancos e negros. Não seria exagerado afirmar que Hugo prevê a

impossiblidade de se manterem as classes socias ou as raças separadas. A

amizade, assim como o processo de mestiçagem entre ambas, seria inevitável, o

que se confirmaria no século posterior.

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No âmbito da escrita da história, o Toussaint de James é representado

como um homem obcecado pela concentração das decisões apenas em suas

mãos, é um estrategista, um autoritário pelas circunstâncias. Já o Toussaint de

Césaire cumpre outro objetivo. O autor prioriza as estratégias do herói da revolução

ao não mostrar as atitudes violentas que Toussaint teve de adotar. A imagem de

violência atribuída aos heróis haitianos não combina com o Toussaint de Césaire

que, como político, defendeu a departamentalização dos martinicanos em 1946. Do

mesmo modo, o Toussaint de Césaire não adota o vodu como religião, ele é um

herói francófilo e adota a religião da França, o cristianismo.

A construção de Toussaint como um mártir aparece com bastante ênfase

no capítulo XVII, intitulado “De brumaire a germinal”, que corresponde ao período

de outubro/novembro de 1802 a abril de 1803. O autor valoriza os relatos históricos

do carcereiro chamado Baille, um dos três que tinham a tarefa de vigiar o

prisioneiro: “C´est grâce à Baille, puisque Baille il y a, que nous pouvons suivre, jour

après jour, le calvaire de Toussaint Louverture.” (CÉSAIRE, 1981, p. 324). O

calvário, que remete ao sofrimento de Cristo, na via crucis que vai das provas

dolorosas até a crucificação, é mostrado não somente pela descrição do estado de

saúde física e moral de Toussaint, mas também pela descrição do forte de Joux, da

cela e do clima francês.

A descrição do espaço físico do castelo, como construção de pedra,

espaço lúgubre e fechado, no ensaio de Césaire, difere da construção de pedra de

La Ferrière e de Sans-Souci, de Christophe. O castelo francês construído no alto da

montanha segue o padrão: os fossos, as pontes levadiças, as escadas e a cela. O

espaço fechado da cela, com portas aferrolhadas, também se divide em três

espaços com grades de ferro e paredes espessas, onde fica o espaço do

carcereiro. As portas de acesso existem entre estes espaços representando mais

uma vez a força e a lógica cartesiana francesa, para garantir que o prisioneiro seja

bem guardado, independente da idade ou do crime cometido. A conclusão do

relato do carcereiro assegura a segurança de Toussaint: “Vous pouvez juger, mon

general, que la personne de ce prisonnier, qui a ni armes, ni bijoux que as montre,

ni argent, du moins à notre connaissance, est très en sûreté.”79 (CÉSAIRE, 1981, p.

79 O senhor pode julgar, general, que a pessoa deste prisioneiro, que na tem armas, nem jóias, a não ser seu relógio, nem dinheiro, pelo menos nada sabemos, está em completa segurança

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326). A segurança também incluía os cuidados para que Toussaint não se

suicidasse. O episódio relatado por Baille, no qual afirma que o prisioneiro só podia

se barbear na presença dele, reflete exatamente esta preocupação.

O testemunho do General Caffarelli, encarregado por Napoleão Bonaparte

para extrair de Toussaint confissões sobre o seu patrimônio e sobre os tratados

mantidos com os ingleses, colabora para o julgamento de Toussaint como líder

político e poderoso. Ao buscar estas informações, Bonaparte admite a existência do

líder e principalmente sua força para negociar com outras potências.

Historicamente, ficou constatado, segundo o próprio General, que Toussaint nunca

respondeu a estes anseios do imperador. A busca de tesouros, de planos secretos,

sempre caracterizou os donos do poder. Na concepção francesa de governo, ao se

admitir a genialidade de Toussaint, era necessário complementar este raciocínio de

posses.

O calvário se confirma pelo completo apagamento do passado de Toussaint

e pela retirada de objetos que o humanizem. As ordens do ministro são expressas

para retirar os objetos do prisioneiro: Vous devez faire fouiller partout pour vous en assurer et examiner s´il n´en aura ni caché, ni enterré dans sa prison. Retirez-lui sa montre... je présume que vous avez éloigné de lui tout ce qui peut avoir quelque rapport avec un uniforme. Toussaint est son nom; c´est la seule dénomination qui doit lui être donnée.80 (CÉSAIRE, 1961, p. 328)

Retirar-lhe o direito ao sobrenome também é uma estratégia de

despersonalização do herói, do general Toussaint Louverture, combatida, na visão

do ministro, “pelo profundo desprezo por seu orgulho ridículo” (CÉSAIRE, 1961, p.

328). Também parece ser retirar-lhe a capacidade mental, na medida em que lhe

proíbem de escrever, de pensar.

O clima frio, o fio de luz do sol e o pouco ar que entram na cela provocam o

mal estar de Toussaint; as dores que progressivamente se acumulam, deixando-o

incapacitado: “il me dit tantôt avoir la fièvre avec des maux de tête; un autre jour, il

me dit avoir des maux de reins et des douleurs de rhumatisme qui lui ôtent la faculté

de se lever et de marcher;”81 (CÉSAIRE, 1981, p. 329). A febre, as dores de

80 Vocês devem procurar para se assegurarem disso e ver se ele nada escondeu, nem enterrou na sua cela. Tirem o relógio... presumo que vocês afastaram dele tudo que tenha relação com a farda. Toussaint é seu nome; é a única denominação que lhe deve ser dada. 81 ele me diz que tem febre e dores de cabeça; outro dia, ele me disse que tinha dores nos rins e dores de

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estômago, os edemas na face e as tosses levam Toussaint à morte, completam o

calvário do mártir. A cena final do relato de um outro carcereiro, Amiot, é: je l´ai trouvé mort assis sur sa chaise, auprès de son feu (...) Je l´ai fait enterrer par un prêtre de la commune dans le caveau de l´ancienne chapelle, cote G, au fort Joux, où autrefois l´on enterrait les militaires de la garnison82 (CÉSAIRE, 1981, p. 330).

Césaire valoriza a morte do herói como mitificação pois a população

haitiana passa a reconhecer o valor de Toussaint após a sua morte: “c´est alors

qu´on s´aperçut de vraies dimensions de l´homme; de l´importance de son oeuvre

et qu´elle dépassait infiniment son auteur.”83 (CÉSAIRE, 1981, p.330).

A tendência a valorizar mais Toussaint do que Christophe ou Dessalines é

explícita. Césaire o coloca além de fatos históricos anteriores e posteriores à morte

do herói: “ce qui à Saint-Domingue resista à la puissance française, au feu de ses

canons et à la charge de ses soldats, ce fut l´esprit de Toussaint Louverture, l´esprit

forgé par Toussaint Louverture.”84 (CÉSAIRE, 1981, p. 331).

A justificativa de Césaire é que tudo começou com Toussaint, que seria não

somente uma “articulação histórica”, mas também “o centro da história haitiana e da

história antilhana”. Toussaint teria sido o elo e o aprofundamento do movimento dos

brancos por autonomia e liberdade comercial, o dos mulatos pela igualdade social e

o dos negros pela liberdade. Com a morte de Toussaint, a colônia também

morrera, mas no seu lugar ficou “A primeira de todas as nações negras.”

(CÉSAIRE, 1981, p. 331).

O legado de Toussaint parece contradizer o que afirmara o abade Raynal

“ces hommes stupides seraient incapables de se conduire eux mêmes”85. Toussaint

teria sido o primeiro a combater a transformação do direito formal em direito real. O

autor conclui afirmando que Toussaint, acima de tudo, foi um “precursor” da idéia

de criar um “dominion”, uma espécie de “commonwealth” francês, baseado numa

Constituição que o oficializasse.

_____________________ reumatismo que lhe tiravam a capacidade de se levantar e caminhar 82 encontrei-o morto, sentado na cadeira, junto ao seu fogo (...) Ordenei que um padre o enterrasse na comuna no caveau da antiga capela, llado??G, no forte Joux, onde antigament enteravam-se os militares da garnissão 83 foi então que as verdadeiras dimensões do homem foram percebidas, a importância de sua obra e que ela ultrapassava infinitamente o seu autor. 84 o que em Saint-Domingue resistiu à potência francesa, ao fogo de seus canhões e à tarefa de seus soldados, foi o espírito de Toussaint Louverture, o espírito forjado por Toussaint Louverture 85 estes homens estúpidos seriam incapazes de se conduzirem sozinhos

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A ditadura de Toussaint, para Césaire, era necessária; era uma situação

excepcional, impulsionada pela própria revolução: L´effort qui allait être demandé au pays serait gigantesque. La guerre était en vue, une guerre, comme toutes les guerres coloniales, inexplicable. Pour impulser l´effort, pour coordonner les activités, il fallait un gouvernement tout puissant86 (CÉSAIRE, 1981, p. 279).

Césaire prioriza a participação política de Toussaint na discussão do

problema colonial. O herói irrompe na história pedindo liberdade geral, para todos,

não apenas para os negros. Não seria possível atender apenas uma classe social.

Por isso, a luta de Tousssaint foi para fazer valer a Declaração dos direitos do

homem, desfazendo os estereótipos atrelados às raças, às classes sociais

exploradas. Aí estaria sua genialidade (CÉSAIRE, 1981, p. 311). Ele queria

conciliar as duas raças, as duas nações e as duas classes sociais. Mas evitava a

palavra independência, pois sabia que ela poderia ter um impacto na metrópole,

preferia a palavra liberdade e liberdade para todos.

A rendição ou o autoflagelo, uma vez que Toussaint sabia que seria pego e

nunca mais voltaria à terra natal, parece ser algo que ficou engasgado na história

colonial e no inconsciente haitiano. Segundo Césaire, a psicologia pode explicar tal

atitude. Para ele, Toussaint tinha um senso trágico da vida. Ironicamente, enquanto

Leclerc sofria com as conseqüências da febre amarela que matava seus homens,

Toussaint também sentia febre em pleno inverno rigoroso do norte da França.

Com a morte de Toussaint, como defende Césaire, uma nova consciência

nascia, uma “consciência nacional”. A independência é proclamada em 28 de

novembro de 1803, com a expectativa de que os haitianos jamais seriam

submetidos a nenhuma nação dominadora.

Césaire constata que os haitianos enaltecem mais a figura de Dessalines.

Carpentier escolheu Christophe pela grandiosidade, pelo exagero, que se

coadunavam com sua consciência do real maravilhoso americano.

Com relação à representação identitária de Christophe, Césaire questiona

“como conservar a liberdade, assegurar a integridade do território e manter a

independência sem cair no despotismo”. Parece que, com a Tragédie, ele quer

mostrar que existem outras vias e que o destino do homem pertence, não a um, 86 O esforço que seria exigido ao país seria gigantesco. A guerra era iminente, uma guerra, como todas as guerras coloniales, inexplicáveis. Para impulsionar o esforço, para coordenar as atividades, seria necessário um governo todo poderoso

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mas à coletividade. Já a poética da volta ao passado, de Glissant, aponta para a

possibilidade de corrigir falhas no presente e no futuro. Assim, o Toussaint de

Glissant tem a chance de fazer o que Christophe não fez: conversar com o povo,

ouvir as bases e se restabelecer em relação como um sujeito rizomático, sem

restabelecer a raiz única.

Na Tragédie, Césaire mostra claramente os problemas que o dirigente tem

para administrar a nova nação, ambígüa em todos os aspectos: dividida em dois

governos, república e monarquia, dividida pela luta de classes, sem apoio da

França e das outras metópoles, ao mesmo tempo assediadas por elas, dividida

entre a língua francesa e o créole, entre o cristianismo e o vodu, entre o estilo

arquitetônico do Palácio de Versailles e o de Sans-Souci, entre adotar a cultura

européia sendo Próspero, ou a cultura créole, sendo Ariel ou Caliban.

Algumas cenas na peça mostram os problemas que o dirigente tenta

solucionar. A cena em que ele atribui títulos aos seus conselheiros e ministros para

ter aliados ilustra um destes aspectos e aparece de forma irônica. A confiança na

equipe parece ser fundamental. Na cena, há várias opções de nomes

“maravilhosos” e “insólitos” com alusões à gastronomia de Christophe (duques de

Marmelade, de Limonade, de Bande du Nord, de Trou Bonbon, de Sale-Trou,

Madame de Petit-Trou). No entanto, apesar de terem sentidos “jocosos”

(FIGUEIREDO, 1998, p. 45), são históricos, representam os nomes das regiões nas

quais nasceram ou viviam, são os nomes das “habitations” estipulados pelos

próprios colonos franceses, detentores do poder de nomear. Pode-se ver no

prefácio da obra de Césaire o registro destes nomes no mapa, já citado, que

prevaleceu na colônia durante a revolução: Petit-Trou, no sul e Limonade,

Marmelade, Plaisance, Dondon, Anse, Le Trou e outros no norte, próximos a Le

Cap Français (CÉSAIRE, 1962). No entanto, há um nome especial, não localizado

no referido mapa, mas que é relatado na peça denotando um possível adultério por

parte de Christophe, cujo resultado foi um filho, o “duc des Variétés”: “Et bien, pour

l´étrenner, cet enfant que notre roi a fait à la grosse dame que vous savez, je lui

aurais proposé de l´appeler le duc des Variétés!” (Ato I , 3, p.33)

A corte do rei admira e parodia os títulos franceses, imita a França, aceita a

cultura do outro, mas não completamente: “Ce royaume noir, cette cour, parfaite

réplique en noir de ce que la vieille Europe a fait de mieux en matière de cour!” (Ato

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I, 3, p. 31). A nomeação dos súditos e nobres ao mesmo tempo tem duas funções.

Primeiramente, busca preencher a lacuna criada pela falta do nome original do

africano transplantado, o “migrante nu” de que falou Glissant. A solenidade coroa a

nomeação e simbolicamente mostra o conflito identitário pela busca de nomes

adequados.

Jadis, on nous vola nos noms! Notre fierté! Notre noblesse, on, je dis, On nous les vola! Pierre, Paul, Jacques, Toussaint! Voilà les estampilles humiliantes dont on oblitéra nos noms de vérité. Moi-même votre Roi sentez-vous la douleur d´un homme de ne savoir pas de quel nom il s´appelle? (...) Hélas seule le sait notre mère Afrique! (Ato I, 3, p. 37)

Em segundo lugar, além desta tentativa de compensar a perda do nome, o

rei quer apagar o trauma da escravidão quando ele argumenta que seus súditos

devem substituir os nomes que marcaram séculos de sofrimento. Para ele, trata-se

de um novo nascimento para todos. A preparação dos súditos e nobres também se

dá por conta da cerimônia de coroação propriamente dita do rei, na Catedral da

cidade do Cabo. Cornejo Brelle, o confessor do rei, preside a cerimônia na igreja e

faz sua preleção em latim.

No juramento, os conflitos voltam a aparecer explicitamente. Christophe

reafirma sua condição de pai da nação haitiana e de católico, uma vez que jura

diante do Evangelho:

Je jure de maintenir l´intégrité du territoire et l´indépendance du royaume: de ne jamais souffrir sous aucun prétexte le retour de l´esclavage ni d´aucune mesure contraire à la liberté et à l´exercice des droits civils et politiques du peuple d´Haïti, de gouverner dans la seule vue de l´intérêt, du bonheur et de la gloire de la grande famille haïtienne dont je suis le chef. (Ato I, 4, p. 39)

O coro da igreja começa a cantar dando vivas ao rei recém-coroado,

enaltecendo sua coragem e valentia: “Henry vaillant guerrier/De la victoire ouvre-

nous les portes” (Ato I, 4, p. 40). Deve-se assinalar que o canto se transforma num

hino a Shango e os participantes começam a dançar. A ambigüidade em torno da

religião do outro que apaga a religião local, o vodu, torna-se um problema do povo

e não apenas do rei.

A rebeldia do povo, daqueles que não querem a monarquia, que não

aceitam o jeito firme e autoritário de Christophe, também aparece na peça. Depois

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da coroação, Christophe permite um ato tirânico no seu governo, o fuzilamento de

Metellus, um antigo combatente da época de Toussaint e que denuncia a divisão

administrativa do país. Ao mesmo tempo, Metellus cobra o projeto de nação

prometido durante a guerra de independência. No primeiro ato, na quinta cena,

Metellus afirma, antes de morrer em combate contra Christophe:

nous allions fonder un pays tous entre soi! Pas seulement le cadastre de cette île! Ouvert sur toutes les îles! A tous les nègres! Les nègres du monde entier! (Ato I, 5, p.43)

Metellus, homem do povo e não da corte, proclama sua origem camponesa,

seu sangue agrário e defende a inclusão tanto dos negros do Haiti quanto do

mundo inteiro na nova nação. Ele tem consciência de que um projeto de nação que

exclua os negros, o povo, será inviável no Haiti e denuncia a tirania de Dessalines e

de Christophe:

Christophe! Pétion! Je renvoie dos à dos la double tyrannie Celle de la brute Celle du sceptique hautain Et on ne sait de quel côté plus est la malfaisance! (Ato I, 5, p.43)

Christophe não aceita questionamentos às suas decisões, como Toussaint

também não aceitava. Ele quer ser pioneiro em tudo. Propõe a reunificação do país

antes que Pétion o faça, o que não é aceito pelo Senado. O rei tem pressa. É

impaciente e quer construir seu país a qualquer custo.

Outro problema ou conflito que ele enfrenta é a dificuldade de estabelecer

os produtos nacionais. Na cena da festa da coroação do rei, mais uma vez, ele é

ambíguo, ou visionário. Ele declara o “rum” bebida nacional do Haiti e aprova uma

canção que apresenta a bebida. O “rum” é fabricado a partir da cana de açúcar, é

uma bebida local, logo, é uma bebida popular crioula, pois nasceu na América. A

“rapadou”, rapadura, também (I, 3, p. 32). As “plantas selvagens” que o povo come,

assim como os frutos “sem sabor” (II, 6, p. 94), a mandioca, também representam o

prato e os frutos nacionais.

Atormentado pelos conflitos, o rei não concorda que o amadurecimento de

uma nação deva acontecer com o tempo. Para ele, a solução é mostrar trabalho. O

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povo tem que trabalhar para construir o país, pois ele não tem tempo para esperar,

uma vez que é o tempo “qui nous prend à la gorge”.

Ele também enfrenta sua própria consciência, que é representada na peça

por sua esposa, Madame Christophe, que ousa questionar as atitudes do marido,

pedindo-lhe que não exija muito dos súditos (I, 7, p. 58). Ela não se sente uma

rainha, sua concepção de reinado está em consonância com a África, com a

ancestralidade. Ser a rainha não apagará as origens nem as lembranças de uma

ex-escrava. Os vestígios do passado não lhe permitem aceitar outra identidade que

queira apagar-lhe o passado de sofrimento. Assim, Mme. Christophe também

representa o povo escravo. Sabiamente, ela adverte que as exigências que o rei faz

aos homens poderão levar suas boas intenções ao total fracasso:

Christophe, à vouloir poser la toiture d´une case sur une autre case elle tombe dedans ou se trouve grande! Christophe, ne demande pas trop aux hommes et à toi-même, pas trop! (Ato I, 7, p. 58)

Ela também adverte que, de tanto querer dominar o povo, o tirano poderá

se tornar “le Gros figuier qui prend toute la végétation alentour et l´étouffe!”

Contudo, para Christophe, a edificação da nação não passa pelo retorno às

origens, às tradições africanas, pelo contrário, é preciso “civilizar-se”, o que significa

adotar a cultura européia. Para tanto, é necessária a construção de um patrimônio

que represente a liberdade de todo um povo sacrificado, uma cidadela edificada por

todos, homens, idosos, mulheres e crianças. Sua concepção de civilização como

monumento, como algo fixo, leva-o à tragédia: “À chaque peuple ses monuments! À

ce peuple qu´on voulut à genoux, il fallait un monument que le mît debout” (Ato I, 7,

63).

O problema da família também atormenta o herói. O padre casa vários

casais numa cerimônia coletiva. As ordens de Christophe se justificam porque ele

quer decidir tudo, não há tempo para esperar. Ele pleiteia a criação de um Estado

que tenha estabilidade e para tanto, a organização desejada corresponde ao

modelo familiar europeu monogâmico, diferente da organização poligâmica dos

povos africanos:

Notre État a besoin d´une gîte stable, et il n´y a pas d´État stable sans la famille stable, pas de famille stable sans femme stable. Je

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ne veux pas que mes sujets courent comme ça, braguette ouverte, comme des sauvages. Alors, j´ai décidé que vous vous marierez illico.

(II, 4, p. 89)

A busca de estabilidade familiar, através do casamento, poderia livrar os

nobres da selvageria, como desejava o rei, mas o fato de se casarem não garante a

fidelidade ou a estabilidade, pois a licenciosidade dos homens persiste. Christophe

quer seguir o padrão europeu familiar, mas não respeita o tempo necessário à

formação dos casais. Ainda na cena quatro, o personagem Hugonin, o bufão, tem a

incumbência de formar os casais para o casamento. Ele cria seus critérios para

associar os gordos, os magros, mas sempre utiliza o humor para justificá-los.

Ele tenta justificar a construção da cidadela como sendo o território da nova

nação da qual todos devem participar transportando pedras: “Dix pierres par jour la

femme, ça ne les tuera pas! De deux à cinq l´enfant, selon l´âge” (Ato II , 3, p. 83).

A cidadela, além de servir de berço da nova nação, também serve de fortaleza para

proteger a sociedade dos invasores franceses. Os canhões da cidadela os

receberão. “Le rempart sans quoi il serait loisible au faucon de voler à gibier vu;

l´espalier pour l´arbre fragile et frais éclos.” (Ato II, 3, p. 83). Não deve haver trégua

na construção. O patrimônio em construção é de uma nação inteira. Sua construção

insólita, em forma de cabeça de cachorro, assombrará o lobo, o inimigo francês:

C´est un homme qui a fait la guerre qui vous parle (...) C´est pourquoi j´ai décidé de donner à mon peuple cette bonne parade de pierre contre les buffes, ce bon chien de pierre dont la seule gueule découragera la meute de loups.” (II, 8, p. 105)

Para Christophe, a paralisia do seu corpo significa a morte do futuro da

nação, o fim da sua tragédia. A guerra se inicia pois “le général Boyer a débarqué a

Saint-Marc.” (III, 5, p. 134). Só lhe resta fazer uma espécie de mea culpa:

J´ai voulu leur donner la faim de faire et le besoin d´une perfection”. (Ato III, 6, p.138)

“J´ai voulu leur donner figure dans le monde, leur apprendre à bâtir leur demeure, leur enseigner à faire face.”

(Ato III, 6, p.139)

Os tambores soam o “mandoucouman” e Christophe compreende que há

pouco a fazer. Ao invés de recorrer aos santos europeus, ele invoca os deuses do

vodu, da África, do Congo, em busca de forças:

Dieux d´Afrique Loas!

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Corde du sang sanglé père attacheur du sang abobo

Afrique mon lieu de forces abobo. (Ato III, 7, p.143)

Numa atitude de lucidez, de razão, como o Christophe de Carpentier, ele

invoca pássaros de diferentes espécies e descobre que seu verdadeiro nome é

Papa Sosih Baderre. Continua alucinado, vê Boyer, seu sucessor, com inúmeros

soldados, mas se restabelece e, invocando a África, se suicida:

Afrique! Aide-moi à rentrer, porte-moi comme un vieil enfant dans tes bras et puis tu me dévêtiras, me laveras. Défais-moi de tous ces vêtements, défais-m´en comme, l´aube venue, on se défait des rêves de la nuit... De mes nobles, de ma noblesse, de mon sceptre, de ma couronne.

Et lave-moi! Oh, lave-moi de leur fard, de leur baiser, de mon royaume! Le reste, j´y pourvoirai seul. (III, 7, p. 147)

Neste reencontro com a África ele busca a essência de sua ancestralidade.

O deus da morte haitiano, o Baron–Samedi, aparece, incorporado em Hugonin, o

bufão da peça, que anuncia a morte do rei a todos os que ainda estão presentes no

palácio.

Os súditos levam o corpo para o alto da cidadela e sob a orientação de

Vastey, colocam-no no concreto fresco, de frente para o sul do país, em pé, no

meio da pedra, e se despedem com honrarias.

É interessante assinalar que os últimos nobres que viram o rei Christophe

foram exatamente Madame Christophe, os pajens africanos, Solimán e Vastey, o

secretário mestiço que é proclamado negro por Christophe nas últimas cenas da

peça. Todos representam as tradições africanas, o vodu:

Roi sur nos épaules, nous t´avons conduit par la montagne, au plus haut de la crue, ici. Car ton chemin avait nom: Soif-de-la-Montagne. Et te revoilà roi debout, Suspendant sur l´abîme ta propre table mémoriale. Vous astres au coeur friable Vous nés du bûcher de l´Éthiopien Memnon Oiseaux essaimeurs de pollens Dessinez-lui ses armes non périssables D´azur au phénix de gueules couronné d´or. (Ato III, 9, p. 153)

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A tragédia de Christophe é explicitada, mas é também a tragédia de

Toussaint, que acreditou que o povo haitiano saberia conduzir a nova nação após

sua morte. O martírio que enfrentou na prisão física foi o mesmo que Christophe

enfrentou na prisão simbólica de Sans-Souci, do norte do país. Bug-Jargal também

era prisioneiro nos seus conflitos. Não podia conciliá-los a ponto de fazer valer a

fraternidade entre brancos, negros e mulatos. D´Auverney compreendeu o conflito

pelo qual passou seu “irmão”. A tristeza de d´Auverney, assim como a tristeza de Ti

Noel, no último capítulo de El reino, pode ser a esperança de um futuro melhor. Se

para Carpentier, a nova narrativa devia mostrar o real, sem ocultar os problemas

mais insólitos da América, como previa no seu projeto de realismo maravilhoso,

para Hugo, a ambigüidade política em torno do futuro dos direitos humanos também

era um projeto que Bug mostrou. Para Hugo, a reflexão sobre a escravidão refletia

a própria convivência dos homens após a Revolução Francesa. A reflexão que os

dois provocam nos finais das respectivas narrativas são fundamentais para se

pensar a história do Haiti e do mundo, cada um a seu tempo.

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4. (IN)CONCLUSÕES

Neste trabalho, procuramos contribuir para a compreensão

da escolha do Haiti e da Revolução de Saint-Domingue por escritores não

haitianos, a partir da segunda metade do século XX, como emblemas da identidade

caribenha, ou seja, como locus ficcional do Caribe. No decorrer do texto,

mostramos como o Haiti e seus heróis foram representados nas obras literárias do

corpus e, por tratarmos de uma temática histórica (re)contada, ficcionalizada,

nestas obras, utilizamos uma metodologia do comparativismo literário que associa o

tempo ficcional com o tempo histórico e com os personagens que são resgatados

da Revolução de Saint-Domingue.

Buscamos as relações existentes entre os personagens das narrativas e

dos textos dramáticos do corpus com a história (re)contada pelos historiadores

caribenhos, ou seja, com uma visão caribenha. Postulamos que os projetos

poéticos e políticos dos autores das obras do corpus se entrecruzam, num

verdadeiro processo de relação, de rizomas, na medida em que conceitos ou

noções iniciais se completam e se aprofundam. Para tanto, resgatamos algumas

visões identitárias que fecundaram a produção literária da região caribenha e da

América Latina, na primeira metade do século XX.

Vimos a visão do selvagem, indolente, assim como a do homem fadado à

assimilação cultural, que chamamos de visão “Caliban ou Ariel?” e que dá origem

ao contra-discurso caribenho. Mas também vimos que esta última corrobora com a

visão de “falta a ser compensada atrelada à tarefa de (re)fazer” que foi atribuída

aos intelectuais que emergiram a partir da segunda metade do século XX. Se, por

um lado, estes intelectuais tiveram que imitar os elementos europeus, superpondo

modos de viver e estilos literários, por outro, ao encontrarem seu “soleil de la

conscience”, deixando brilhar sua criatividade, eles passaram a assumir a condição

na qual viviam, a condição mestiça, crioula, e hoje, como frutos das intempéries,

por assumirem sua própria geografia, inventando modos de viver, eles emergem no

mundo como produtores de idéias que se transformaram em projetos mais amplos.

Estas idéias são, sem dúvida, o resultado de uma “visão interior”, tanto do interior

humano, da aceitação da sua condição mestiça, de antilhanidade, de sua negritude,

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de sua crioulidade, quanto de uma visão do interior geográfico e histórico, onde o

real maravilhoso, como delineou Carpentier, como a realidade do Haiti, do Caribe e

da América Latina, deve ser enxergado, percebido, escrito com uma linguagem

igualmente mestiça.

Também mostramos que o Haiti e os heróis da Revolução de Saint-

Domingue estão nos projetos poéticos de Carpentier, Césaire e Glissant. A rebeldia

dos escravos que lutaram contra seus senhores, o sucesso das lutas que culminou

com a independência da colônia, bem como as ações dos principais líderes e

dirigentes da nova nação ancoraram os projetos poéticos destes escritores. Com o

domínio da palavra, tais como Caliban da peça Une Tempête, de Césaire, os

intelectuais caribenhos emergem a partir das vanguardas e passam a mostrar a

criatividade do povo cuja origem está no próprio processo de crioulização.

Eles enfrentam e destronam a razão européia a partir da própria Europa,

com as chamadas vanguardas e, com uma linguagem nova, “antropofágica”,

invertem a representação identitária do Caribe e do continente americano como

“periferia” da metrópole. Ou seja, como Caliban, eles utilizaram a língua e os

conceitos do Ocidente para revelar as “intempéries históricas” ocultadas, a história

dos povos africanos escravizados na América, a história da sobrevivência dos

povos novos, dos povos da crioulização lingüística e cultural, ou seja, os povos

formados da contribuição africana, ameríndia, européia e oriental. Por esta razão,

consideramos nesta pesquisa suas trajetórias intelectuais, suas biografias, que

estão completamente imbricadas nos referidos projetos. Para Lamartine e Hugo, o

Haiti e a história da Revolução transformaram-se em locus ficcional pela própria

conduta política que adotaram. Se ambos criticaram a escravidão, declarando-se

abolicionistas numa época em que a França estava deglutindo a amargura das

perdas financeiras incendiadas pelos negros da colônia, Lamartine buscou construir

uma imagem de um Toussaint estratégico, militarizado, por certo, mas também um

homem cristão, preocupado com a vida familiar e com a política de conciliação que

deveria existir a partir da segunda metade do século XIX. Indo mais além, Hugo

denunciou as ambigüidades da situação colonial e revelou os maus tratos, os

preconceitos, os estereótipos que envolvem o mundo dos escravos e o dos

senhores mas também os que envolvem os políticos que defendiam ou que

condenavam a Revolução.

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Carpentier, em El reino, mostra através de Ti Noel, personagem que

percorre a narrativa, no período que vai da sua infância irrigada pelas histórias

sobre os mitos africanos, contadas por Mackandal, à abolição e ao

restabelecimento da escravidão no Haiti, as ambigüidades do mundo ocidental, o

mundo dos brancos. Mas ele também mostra as contradições do mundo dos

negros, dos dirigentes negros, que representam também dirigentes latino-

americanos. Henri Christophe sobressai-se como cozinheiro, como artilheiro e

como dirigente e acaba se transformando em ditador. Entretanto, suas atitudes

exageradas, suas insólitas construções em meio à população negra são ilustrações

do maravilhoso, da realidade que contrasta com a realidade nacional do século XIX.

Num primeiro momento, o personagem se predispõe à crioulização, imita, cria,

descobre seus dons como cozinheiro e como artilheiro. Ainda como rei, imita a

corte francesa, mas se conscientiza de que a cultura caribenha deve preservar suas

opacidades, suas especificidades, cujo caminho é reconhecer a parcela da cultura

africana em todo o processo de construção do Caribe, o vodu em especial.

Do mesmo modo, a profecia de Carpentier relacionada à mestiçagem na

região parece se mostrar claramente a partir da presença do casal Leclerc na obra,

mais especificamente da presença de Paulina Bonaparte, a sensualidade e a

predisposição à mestiçagem atribuída a ela também expressa o maravilhoso na

obra. O personagem mergulha na cultura caribenha com a ajuda do escravo

Solimán, de onde se depreende que não resta alternativa à cultura européia a não

ser aceitar a cultura do outro.

Em La Tragédie, Césaire também mostra o rei Christophe num contexto

caribenho, mestiço, logo, americano. Entretanto, apesar de se pautar na

comicidade do personagem Hugonin, o bufão, para mostrar o distanciamento entre

dirigente e povo, a imitação da realeza metropolitana e a suposta indolência do

povo, Césaire mostra, pela tragicidade da história do rei Christophe, a situação da

década de 1960 vivida pelas nações africanas que se descolonizavam. Os conflitos,

as ambigüidades que o rei vive sendo ditador e ao mesmo tempo visionário,

explicam-se pela necessidade que tem de transformar a história de humilhação do

povo em história gloriosa, ainda que seja necessário adotar os costumes europeus,

a religião e a língua da metrópole, contra a vontade do povo. Mas o Christophe de

Césaire percebe que a superposição destes costumes não ameniza as dificuldades

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reveladas na busca de meios para sobreviver sem o colonizador. O rei tem a

pressa de fazer tudo para civilizar o povo. Mas a tragédia do rei está no fato de não

poder realizar esta mudança. O povo não quer escravidão, mas sim liberdade; não

quer o cristianismo, mas sim o vodu. Ele fracassa porque o povo não tem o seu

mesmo ideal, o povo quer a cultura crioula, quer viver sem a intromissão da

metrópole. Neste sentido, a tragicidade do rei é clara, ele não pode mudar o curso

da história, mas pode servir de exemplo às novas nações africanas, que deverão

construir algo novo, sem a pretensão de imitar a metrópole.

Nas demais obras do corpus, o personagem Toussaint é mostrado sob

diferentes prismas. A ficção dos autores franceses o coloca como um personagem

assimilado à cultura européia, no âmbito da religião e no da política de conciliação.

Entretanto, eles também evidenciam os conflitos do personagem com relação à

situação política no ano da sua prisão.

Vale ressaltar que especialmente no caso de Bug, Hugo, apesar de sua

juventude ao escrever a primeira versão do romance, quer queira quer não, aborda

a questão da mestiçagem e da crioulização, no âmbito lingüístico. O romance é

permeado pelas diversas línguas nos capítulos relacionados aos escravos marrons.

Tanto o inglês quanto o espanhol e o créole são introduzidos lado a lado do francês,

com as devidas notas de tradução do autor. Também vale destacar que Hugo lança

na segunda metade do século XVIII, ainda que superficialmente, a profecia sobre a

mistura das raças. A contradição exacerbada entre o rebelde Habibrah e o rebelde

Bug-Jargal caracterizam estes posicionamentos de Hugo. Se Habibrah tenta

superpor elementos culturais europeus à cultura crioula, não consegue se crioulizar,

incorporar estes elementos na sua própria cultura, Bug-Jargal, personagem que

representa declaradamente Toussaint, consegue absorver não só a língua, mas

também os princípios ligados aos direitos do homem criados pela cultura francesa.

No ensaio de Césaire, Toussaint é apresentado como um mártir, um herói

vítima, que acertou nas suas tomadas de decisões “de circunstância”. Em M.

Toussaint, o Haiti é um laboratório de experiências da antilhanidade e da poética da

relação, ou seja, os personagens são postos em cena numa reflexão coletiva em

busca de mudanças, a partir do heroísmo não só de Toussaint, mas também dos

outros personagens históricos que foram ocultados pela história. Assim, Mackandal

como um escravo marron, dialoga com Maman Dio, detentora dos mitos, do vodu e

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da cultura africana, mas também participa da discussão sobre as atitudes de

Toussaint como dirigente da colônia.

Na peça, percebemos que as reflexões em torno de Toussaint aplicam-se

igualmente a Césaire como um dos responsáveis pela Lei de Departamentalização

da Martinica, ocorrida em 1946 e amplamente criticada por Glissant, por ter optado,

na prática, pela dependência econômica francesa e não por incentivar a

sobrevivência da ilha pelo esforço dos povos implicados. Na peça, Glissant mostra

que o povo deve assumir sua condição de colonizado, de transplantado, mas

também com os elementos de sua cultura crioula, tanto pela língua quanto pela

diversidade cultural que lhe foi impressa. Só assumindo suas heranças, sua

condição crioula é que este povo pode construir algo novo. Neste sentido, o

Toussaint de Glissant é construído como um dirigente confuso mas no final, rende-

se à sua condição crioula, mensagem da antilhanidade, da crioulização e do real

maravilhoso, que, ao revelarem a diversidade, a heterogeneidade da região

caribenha e do continente americano, possibilitaram novas relações culturais entre

o Velho e o Novo Mundo.

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