UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO … · Vozes Sociais em diálogo : uma análise...

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES DEPARTAMENTO DE LETRAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO: UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO. RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA NATAL-RN 2013

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

    CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

    DEPARTAMENTO DE LETRAS

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

    VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:

    UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS

    POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO.

    RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA

    NATAL-RN

    2013

  • RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA

    VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:

    UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS

    POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

    Dissertação apresentada ao Programa

    de Pós-Graduação em Estudos da

    Linguagem da Universidade Federal do

    Rio Grande do Norte, como requisito

    parcial para a obtenção do título de

    Mestre em Letras. Área de

    concentração: Linguística Aplicada.

    Orientadora: Profa Dra. Maria da Penha

    Casado Alves

    NATAL-RN

    2013

  • Catalogação da Publicação na Fonte.

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

    Lima, Rhena Raíze Peixoto de.

    Vozes Sociais em diálogo : uma análise Bakhtiniana dos diários de

    leituras produzidos por alunos do ensino médio / Rhena Raíze Peixoto de

    Lima. – 2013.

    163 f. : il.

    Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

    Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Departamento de Letras.

    Programa de Pós Graduação em Estudos da Linguagem, 2013.

    Orientadora: Prof.ª Drª. Maria da Penha Casado Alves.

    1. Linguística Aplicada. 2. Diários de leituras. 2. Gênero discursivo. 3. Vozes sociais. 4. Polêmicas discursivas. I. Alves, Maria da Penha

    Casado. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

    RN/BSE-CCHLA CDU 81’33

  • RHENA RAÍZE PEIXOTO DE LIMA

    VOZES SOCIAIS EM DIÁLOGO:

    UMA ANÁLISE BAKHTINIANA DOS DIÁRIOS DE LEITURAS PRODUZIDOS

    POR ALUNOS DO ENSINO MÉDIO

    Dissertação de Mestrado, defendida por Rhena Raíze Peixoto de Lima, aluna

    do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, na área de

    Linguística Aplicada, aprovada pela banca examinadora, em 17 de abril de

    2013.

    BANCA EXAMINADORA

    _______________________________________________________________

    Profa. Dra. Maria da Penha Casado Alves (Orientadora)

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr João Maria Paiva Palhano (Examinador Externo)

    Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia

    _______________________________________________________________

    Prof. Dr Rodrigo Acosta Pereira (Examinador Interno)

    Universidade Federal do Rio Grande do Norte

  • Aos meus pais, principais responsáveis por

    todas as minhas conquistas, independente

    da grandeza delas.

  • AGRADECIMENTOS

    A toda minha família ― tios, primos, avós ― que sempre se fizeram

    presentes em todas as fases da minha vida, mesmo quando longe fisicamente;

    por me ajudarem, principalmente, com o exemplo de vida e de superação, a

    chegar onde cheguei.

    Aos meus pais, principais responsáveis por todos os obstáculos

    vencidos; pela segurança que me acolhe em todas as minhas decisões.

    Aos meus irmãos, pela felicidade e apoio sinceros em cada momento

    compartilhado.

    Ao meu tio Ailton, pelo exemplo de responsabilidade, ética e

    competência com o seu trabalho; por sempre servir de referência e por

    modificar o meu pensamento sobre ser professor; pelo suporte cuidadoso e

    amoroso que tem se mostrado em todos os momentos.

    A Gilvando, pela colaboração na pesquisa cedendo diários de seus

    alunos; por sempre me pôr em dúvidas; pelos incontáveis conselhos; pela

    amizade sempre constante.

    A Palhano, pela atenção, humildade e generosidade com que sempre

    esteve à disposição; por me mostrar que a academia é muito mais do que

    podemos enxergar.

    À professora Maria da Penha Casado Alves, ou simplesmente Penha,

    pelos ensinamentos, desde a graduação, sobre como devemos valorizar nossa

    profissão. No mestrado, pelo empenho, paciência e cobranças oportunas.

    A Orlando, pela atenção e paciência na revisão linguística; pelas críticas

    e sugestões; pelo interesse que demonstrou em discutir comigo minhas

    dúvidas teóricas e pelo companheirismo sem tamanho nos momentos mais

    angustiantes da pesquisa.

    Aos meus alunos do IFRN, pela troca de experiências, pela convivência,

    pelo carinho, pelo respeito e pelo sincero interesse em minha pesquisa.

    Aos colaboradores da pesquisa, alunos do IFRN, que muito gentilmente

    autorizaram a utilização dos seus diários e não se preocuparam em expor

    aquilo que foi escrito para ficar entre eles e o professor.

  • A todos que, espontaneamente, fazem parte do GELP, por não me

    abandonarem no momento mais perturbador de minha vida profissional; por me

    mostrarem o que é trabalhar em grupo e confirmarem a importância de

    defender nossas (in)certezas.

    Aos professores do IFRN, em especial, Elizete e Marília, que me

    acompanharam durante o período em que estive trabalhando na instituição,

    com muita generosidade, carinho, respeito, companheirismo e paciência.

    Às amigas, Ienanda, Kássia e Beatriz, pela torcida, pelo apoio e pela

    compreensão nos momentos em que precisei me fazer ausente.

  • RESUMO

    O trabalho tem como objetivo principal analisar enunciados produzidos

    por alunos do Ensino Médio, no gênero discursivo diário de leituras, partindo da

    concepção de linguagem proposta pelo Círculo de Bakhtin. O gênero discursivo

    em questão possui características peculiares que justificam sua escolha para

    este trabalho, sobretudo, no que diz respeito às marcas de subjetividade, que

    revelam, por meio do embate ideológico, posicionamentos sobre os temas mais

    diversos. A partir dos enunciados selecionados para o corpus, foram criadas

    categorias, durante a pesquisa, conforme orientações de Guba e Lincoln

    (2006), Mazzotti e Gewandsznajder (1998) e Amorim (2002), para quem a

    pesquisa na área de humanas não pode basear-se em categorias

    preestabelecidas. Consideramos o diário como um gênero discursivo

    (BAKHTIN, 2010a), que traz em si as características de composição, de estilo e

    de conteúdo. Outros conceitos do Círculo, que dizem respeito ao enunciado, às

    relações Dialógicas, às vozes sociais, à responsividade e à exotopia também

    serviram de base para o estudo. Além disso, durante a análise dos enunciados

    que compõem o corpus da pesquisa, utilizamos os conceitos de polêmicas

    discursivas (BAKHTIN, 2010b) e Enquadramento (2010a). Ao término da

    pesquisa, percebemos que a situação de avaliação em que os alunos se

    encontravam; o fato de estarem em uma instituição cuja política segue os

    documentos nacionais, embasados pela diversidade e pela pluralidade; e

    conviverem em um espaço de sala de aula em que há diversidade de classe

    social, faixa etária, enfim, de realidades diferentes, não foram fatores

    suficientes para que essa diversidade fosse bem aceita em seus

    posicionamentos. Assim, seus enunciados trazem vozes que demonstravam

    uma dificuldade em aceitar o outro que é diferente de si. Diante disso,

    concluímos que os professores precisam estar preparados para lidar com

    esses discursos, criando estratégias para a mediação dessas vozes

    destoantes, com as quais precisa travar contato cotidianamente no ambiente

    escolar.

    Palavras-chave: diário de leituras; gênero discursivo; vozes sociais; polêmicas

    discursivas.

  • ABSTRACT

    The work aims to analyze high school students utterances, in reading

    diary discursive genre, starting from the language concept proposed by the

    Bakhtin Circle. The genre in question has peculiar characteristics which justify

    its choice for this work, especially with regard to subjectivity marks, that reveal,

    through the ideological clash, positions on various issues. From the utterances

    selected for the corpus, categories were created, during the research, according

    to the guidelines of Guba and Lincoln (2006), Mazzotti and Gewandsznajder

    (1998) and Amorim (2002), for whom the research in human sciences cannot

    be based on pre-established categories. We consider diary as a discursive

    genre (BAKHTIN, 2010a), which carries the characteristics of composition, style

    and content. Other concepts of the Circle, concerning to utterance, dialogical

    relations, social voices, responsiveness and exotopy also formed the basis for

    the study. Moreover, during the analysis of the utterances that compose the

    corpus of research, we used the concepts of discursive polemics (BAKHTIN,

    2010b) and Framework (2010a). At the end of the research, we realized that the

    assessment situation of students, the fact that they are in an institution whose

    policy follows national documents, based on diversity and plurality, and live

    together in a classroom space where there are differences of social class, age,

    and finally, different realities, were not sufficient factors for this diversity be well

    accepted in their positions. Thus, their utterances bring voices that

    demonstrated a difficulty in accepting others that are different from themselves.

    In view of this, we conclude that teachers need to be prepared to handle these

    discourses, creating strategies for mediating these dissonant voices, with which

    must make contact every day at school.

    Keywords: reading diary; discursive genre; social voices; discursive polemics.

  • LISTA DE GRÁFICOS, QUADROS E ORGANOGRAMAS

    Gráfico 1: Divisão dos alunos por sexo ........................................................... 26

    Gráfico 2: Divisão dos alunos por faixa etária ................................................. 27

    Gráfico 3: Divisão dos alunos por renda salarial ............................................. 28

    Quadro 1: Quantidade de alunos por turma .................................................... 45

    Quadro 2: Grupos de categorias ................................................................... 104

    Organograma 1: Critérios utilizados para seleção dos diários ........................ 47

    Organograma 2: Divisão dos diários por ano, por curso e por sexo ............... 48

    Organograma 3: Divisão de categorias ......................................................... 103

  • SUMÁRIO

    1 INTRODUÇÃO .............................................................................................. 13 1.1 GÊNESE DA PESQUISA ........................................................................... 13 1.2 EXPOSIÇÃO SOBRE O CORPUS DA PESQUISA .................................... 16 1.3 CONTEXTO ESPACIAL DA PESQUISA: A POLÍTICA DE ENSINO DO IFRN ................................................................................................................. 19

    1.3.1 Contexto institucional e o ensino de Língua Portuguesa ......... 19 1.3.2 Ensino Médio Integrado – estrutura curricular e formas de

    ingresso .......................................................................................................... 23 1.3.3 Perfil das turmas selecionadas .................................................. 26

    1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA NA ÁREA DE CIÊNCIAS HUMANAS ....................................................................................................... 29

    2 CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS .......................................... 35 2.1 ORIENTAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS ....................................................... 35 2.2 PESQUISAS INTERACIONISTA E DIALÓGICA: O PAPEL DOS SUJEITOS PARTICIPANTES ............................................................................................. 39 2.3 PERCURSO METODOLÓGICO ................................................................ 43 2.4 O TRABALHO COM O GÊNERO DIÁRIO DE LEITURA EM SALA DE AULA ............................................................................................................... 49

    2.4.1 O que as vozes que nos antecedem dizem sobre os diários .... 50 2.4.2 O diário como gênero discursivo: estilo, composição e

    conteúdo temático ......................................................................................... 54 2.4.3 O diário íntimo: o legado da subjetividade ................................. 59 2.4.4 O gênero diário de leituras e o contexto escolar ....................... 62 2.4.5 A linguagem verbo-visual nos diários de leituras ..................... 68

    2.5 A CONCEPÇÃO DIALÓGICA DA LINGUAGEM ........................................ 72 2.6 RELAÇÕES DIALÓGICAS: RENOVAÇÃO DO MUNDO E DOS SUJEITOS ......................................................................................................................... 78 2.7 ENUNCIADO E PALAVRA VALORADA: LUGARES ONDE OS SUJEITOS SE TOCAM ....................................................................................................... 82 2.8 POSICIONAMENTO AXIOLÓGICO E VOZES SOCIAIS ........................... 89 2.9 CONCEPÇÕES DE LEITURA E DE ESCRITA .......................................... 93 2.10 DA TEORIA À ANÁLISE DOS ENUNCIADOS ......................................... 98 2.10.1 Divisão de categorias do enunciado: entre a polêmica velada e a polêmica aberta ............................................................................................ 101 3 ANÁLISE DOS ENUNCIADOS – POLÊMICA ABERTA ........................... 105 3.1 CHOQUE DIALÓGICO ............................................................................. 105

    3.1.1 Enunciado I – “Meu emocional com a atividade em questão” 105 3.1.2 Enunciado II – “Se você não gosta, azar o seu” ...................... 108 3.1.3 Enunciado III – “Para o tucano que a carregue” ...................... 111 3.1.4 Enunciado IV – “A melhor parte de mim” (Parte I) ................... 116 3.1.5 Enunciado IV – “A melhor parte de mim” (Parte II) .................. 122

    3.2. DIZERES SOBRE SEXUALIDADE ......................................................... 123 3.2.1 Enunciado V – “O mundo está chegando ao fim” (parte I) ..... 123 3.2.2 Enunciado V – “O mundo está chegando ao fim” (parte II) .... 126

  • 4 ANÁLISE DOS ENUNCIADOS – POLÊMICA VELADA ............................ 128 4.1 DIZERES SOBRE SEXUALIDADE .......................................................... 128

    4.1.1 Enunciado VI – “Sobre vampiros e purpurinas” (Parte I) ........ 128 4.1.2 Enunciado VI – “Sobre vampiros e purpurinas” (Parte II) ....... 131 4.1.3 Enunciado VII – “Talento não muito garantido” ....................... 132

    4.2 DIZERES SOBRE O COMPORTAMENTO FEMININO............................ 134 4.2.1 Enunciado VIII – “Quero aparecer!” (parte I) ............................ 134 4.2.2 Enunciado VIII – “Quero aparecer!” (parte II) ........................... 137 4.2.3 Enunciado IX – “Safadeza gratuita” (parte I) ............................ 139 4.2.4 Enunciado IX – “Safadeza gratuita” (parte II) ........................... 143 4.2.5 Enunciado X – “Acerte no visual” ............................................. 144

    5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 148 REFERÊNCIAS .............................................................................................. 153 ANEXOS ......................................................................................................... 158

  • 13

    1 INTRODUÇÃO

    1.1 GÊNESE DA PESQUISA

    Assim como o gênero diário de leituras provém do gênero diário íntimo,

    meu contato com diários, que começou cedo, deu-se primeiramente com este

    e, logo após, com aquele. O gosto pela escrita, o qual não se satisfazia com os

    cadernos e com as atividades escolares, fazia com que, desde a infância, fosse

    presenteada com cadernos/diários que proporcionavam uma escrita intimista e

    descompromissada. O hábito da escrita nesses diários tornou o gênero sempre

    presente, apesar de ter convivido com a crescente opção por parte dos jovens

    pelos blogs e demais gêneros surgidos com a internet.

    Já na graduação, por meio da professora orientadora desta pesquisa,

    tive acesso, de forma rápida, a um trabalho com diários de leitura, desenvolvido

    por ela em outra turma de graduação. Esse primeiro contato com o diário de

    leituras e com a possibilidade de desenvolver um trabalho por meio dele com

    os alunos uniu a necessidade de criar novas metodologias para a sala de aula,

    a paixão pelo gênero e a empolgação do início da carreira profissional. Assim,

    mesmo sem muito conhecimento sobre o diário de leituras, arrisquei

    desenvolver um trabalho com alunos de uma turma de 2º ano do Ensino Médio,

    em que predominavam adultos com idade que variava de 21 a 60 anos.1 As

    aulas ocorriam em uma escola estadual do município de Natal, no período

    noturno, e grande parte dos alunos trabalhava durante o dia. Essa realidade

    prejudicava grande parte dos trabalhos, que eram levados para casa, ou que

    exigiam reuniões de grupo fora do horário da aula. Diante disso, propus à

    turma o trabalho com os diários, que seriam produzidos em sala de aula, em

    momento reservado para isso.

    A intenção principal da atividade era que os alunos escrevessem

    constantemente e valorizassem um pouco mais os textos trabalhados nas

    aulas, uma vez que teriam como atividade regular comentar sobre esses textos

    1 Os diários escritos nesse período não foram utilizados neste trabalho, pois todos foram

    avaliados e devolvidos aos alunos.

  • 14

    em seus diários. Além disso, os estudantes teriam outra opção de atividade

    além da prova escrita que os avaliava bimestralmente.

    Quatro anos mais tarde, tive a oportunidade de lecionar no Instituto

    Federal de Educação, Ciência e Tecnologia — IFRN, na condição de

    professora substituta. Na instituição, descobri que um dos professores de

    Língua Portuguesa trabalhava com o gênero em turmas de 1º ano do Ensino

    Médio. O mesmo professor, que acabou tornando-se colaborador desta

    pesquisa, incentivou-me a aprofundar os estudos sobre o gênero e a

    desenvolver um projeto de pesquisa sob viés teórico apropriado para o estudo.

    Essa possibilidade deixou-me bastante empolgada devido à relação que

    eu mantinha com os meus diários íntimos, gênero discursivo do qual provém o

    diário de leituras. Seria, então, uma oportunidade de trabalhar com um gênero

    que muito me agradava e que fazia parte tanto da minha vida pessoal, quanto

    da vida profissional.

    A partir de então, detive-me à preparação do projeto e pude aprofundar

    o conhecimento sobre o gênero, o que me levou a descobrir que o diário de

    leituras desempenhava um papel em sala de aula que transcendia a prática da

    leitura e da escrita; ou seja, a escrita diarista proporcionava o registro de um

    posicionamento subjetivo sobre temas diversos. Para mim, essa descoberta

    teve papel decisivo na escolha pelo gênero como corpus de trabalho, pois a

    exposição da opinião de alunos quanto a determinados temas fica restrita, na

    maioria das vezes, ao momento da enunciação nas discussões em sala e

    perde espaço para a voz do professor ou para a falta de tempo, tão escasso

    diante da quantidade de conteúdos exigidos pelos programas das disciplinas.

    Dar voz a esses sujeitos, diante dessa realidade, pareceu-me de

    extrema necessidade, considerando igualmente o que, para Moita Lopes

    (2009), constitui a pesquisa em Linguística Aplicada (L.A.). Segundo o autor, é

    urgente e necessário que os trabalhos representem a voz daqueles a quem

    geralmente não se ouve na academia. Por conseguinte, é “crucial pensar

    formas de fazer pesquisa que sejam também modos de fazer política ao

    tematizar o que não é tematizado e ao dar voz a quem não tem” (MOITA

    LOPES, 2009, p. 22), não só como forma de produzir conhecimento sobre o

    outro, o sujeito pesquisado, mas “principalmente pelo interesse de entender

  • 15

    como suas epistemes, desejos e vivências podem apresentar alternativas para

    nosso mundo” (IDEM, p. 21).

    Com relação à escuta dessas vozes, especificamente sobre o ensino de

    leitura, Machado (1998), a partir de sua experiência com o gênero em sala de

    aula, relata que o diário cria

    condições para que todos os sujeitos leitores envolvidos numa situação de comunicação escolar específica exponham, confrontem e justifiquem suas diferentes interpretações e suas diferentes práticas e processos de leitura. (MACHADO, 1998, p. 8).

    Conforme veremos adiante, o diário de leituras consiste em um espaço

    em que o aluno pode sentir-se mais à vontade para expor seu ponto de vista

    sobre diversos temas. E esse sentimento tem grande implicação na construção

    de discursos dos quais muitas vozes que andam na contramão do discurso

    oficial emergem.

    Compreendi que, apesar de a voz do sujeito aluno já possuir espaço no

    meio acadêmico, o diário trazia outras vozes, ou seja, posicionamentos

    produzidos por um sujeito menos envolto pelas amarras dos direcionamentos

    das atividades avaliativas convencionais.

    Tive a oportunidade de ouvir algumas dessas vozes quando optei

    trabalhar o diário com alunos do 1º ano na instituição; dessa vez, de maneira

    mais sistematizada e orientada pelo professor colaborador e pelas orientações

    presentes na bibliografia referente aos diários de leitura, utilizadas na atual

    pesquisa. Alguns desses diários de minhas turmas compõem o corpus da

    pesquisa, como veremos adiante.

    Concomitante ao trabalho com os alunos do IFRN, conheci a teoria do

    Círculo de Bakhtin, que deu clarividência a alguns questionamentos iniciais,

    como também provocou muitos outros. Porém, após as discussões, algo que

    me pareceu bastante claro sobre a teoria do Círculo foi a dinamicidade dos

    pontos de vista, que trazem em si características de momentos histórico-sociais

    específicos. Outra questão que surgiu nesse processo foi o fato de que não

    devemos procurar respostas definitivas para os questionamentos de nossa

    pesquisa. Essa descoberta dialogava com outras teorias que embasam a

  • 16

    pesquisa em L. A. adotadas neste trabalho, conforme abordaremos mais

    adiante.

    Consciente disso, apresento a atual pesquisa como um estudo que

    procura contribuir, da forma como foi possível neste espaço, neste tempo, para

    os estudos sobre um gênero pouco estudado no Brasil. Por entender que o

    diário de leituras trata-se de um gênero relativamente novo, veremos, na

    próxima seção, alguns aspectos que o compõem como atividade de avaliação

    e como esse gênero discursivo foi trabalhado em sala de aula.

    1.2 EXPOSIÇÃO SOBRE O CORPUS DA PESQUISA

    Abordamos agora um pouco sobre o gênero diário de leituras e sobre

    como foi desenvolvido o trabalho com os diários que foram utilizados como

    corpus neste trabalho.

    Segundo Machado (1998), o diário de leituras consiste em uma atividade

    escolar em que predomina a subjetividade, isto é, o produtor escreve, periodica

    ou cotidianamente, a partir de suas impressões pessoais. A sua produção é

    endereçada, em primeiro lugar, para si mesmo2, com objetivos diversos que

    variam conforme a situação, o indivíduo; ou seja, não existem “objetivos

    predeterminados pelo gênero” (MACHADO, 1998, p. 24). Essa indeterminação

    e a permissão à subjetividade é o que podem deixar muitos professores

    desconfiados quanto ao diário, conforme Machado (1998) já apontava. Porém,

    é possível desenvolver um trabalho sob orientação teórica, uma vez que, no

    Brasil, já existem orientações para que atividades com o gênero sejam

    desenvolvidas em sala de aula3.

    Para melhor esclarecimento, apresentamos como foi desenvolvido o

    trabalho com os produtores dos diários selecionados para a atual pesquisa. Os

    professores colaboradores iniciaram a atividade com o diário no segundo

    2 Machado utiliza a expressão “em primeiro lugar” para sinalizar a existência de um outro

    destinatário inevitável, o professor. A presença de sua avaliação exerce influência sobre a

    escrita dos diaristas. Sobre isso, falaremos na seção 2.4. 3 Além da bibliografia sobre o diário utilizada até aqui, podemos ver outros textos sobre o

    gênero na seção 2.4.

  • 17

    bimestre de cada ano letivo (2009 e 2010). A partir da utilização de um roteiro

    (anexo 1), a orientação era de que os alunos escolhessem um número de

    textos, definido pelo professor (entre 10 e 20), de gêneros diversos,

    encontrados em revistas, que poderiam ser também escolhidas pelo professor

    ou pelos próprios alunos, conforme era estipulado pelo docente da disciplina de

    Língua Portuguesa em cada bimestre.

    As revistas iam desde aquelas direcionadas para o público jovem, como

    Superinteressante, Mundo Estranho, Galileu, até as que apresentam um

    conteúdo mais direcionado ao público adulto, como Época, Istoé, Veja, entre

    outras. A partir dessas escolhas, os alunos seguiriam os passos para a

    produção do diário (anexo 1), entregue pelo professor em uma espécie de

    roteiro que orientou a produção e contextualizou o gênero discursivo, ainda

    desconhecido pela grande maioria dos alunos. Uma das exigências da

    atividade é o registro diário de, no mínimo, uma análise e, para que isso

    acontecesse, o docente de cada turma procurou iniciar a atividade em uma

    determinada quantidade de dias que antecediam o fim do bimestre, suficientes

    para a produção da quantidade de textos solicitada por ele.

    No primeiro contato com a revista, os estudantes iam escrevendo à

    medida que liam os textos analisados, ao mesmo tempo, avaliavam os

    aspectos composicionais e estruturais da revista como um todo, observando a

    capa e anotando as impressões, as expectativas sobre o conteúdo, as

    avaliações sobre como essa capa apresenta-se para o público a quem está

    direcionada. E assim, os leitores iam descobrindo/aprimorando capacidades de

    crítica e de análise que nem eles sabiam que possuíam, muitas vezes por não

    terem a oportunidade de refletir sobre esses aspectos. Em seguida, os

    diaristas4 registram, juntamente com a análise, um breve resumo dos textos

    escolhidos; de forma que, em cada dia de registro, encontremos um resumo

    acompanhado de análise de um desses textos.

    Como podemos ver no roteiro e nas observações feitas pelo texto que

    lhe serviu de base ― Abreu-Tardelli; Lousada; Machado (2007) ―, o diário de

    leituras deve conter os registros referentes ao processo da leitura, ou seja, as

    4 Termo utilizado por Machado (1998) e por Abreu-Tardelli; Lousada; Machado (2007).

  • 18

    reflexões surgidas durante esse processo que, na maioria das vezes, são

    desconsideradas ou ficam apenas no rascunho, uma vez que grande parte das

    atividades escolares exige, geralmente, apenas o produto final. Vemos

    também, nessa orientação, que não existe uma estrutura fixa para a construção

    dos diários. Isso permite que o professor insira, ao longo do ano, em cada

    bimestre, partes adicionais como epígrafes, apresentação, conclusão,

    avaliações da disciplina e do trabalho que vem sendo desenvolvido com o

    gênero, por exemplo. Essas variadas possibilidades tornam o gênero um

    campo ainda mais fértil para pesquisas diversas.

    Os alunos também percebiam essa flexibilidade e, estimulados pelo

    professor e pela autorização da presença da subjetividade, deixavam, em seus

    diários, marcas pessoais que o identificavam. Assim, nos diários femininos,

    encontramos poemas, declarações de amizades escritas pelos amigos, fotos

    de pessoas queridas, adesivos, desenhos. As capas aparecem muito bem

    decoradas, muitas delas com trabalhos artesanais que iam desde colagens

    simples até trabalhos mais elaborados com pelúcia, emborrachados (E.V.A.) e

    tecidos delicados. Os diários masculinos não ficaram de fora. Apesar de grande

    parte apresentar-se de maneira mais desorganizada e grosseira, é muito

    constante o aparecimento de figuras de personagens de videogames, letras de

    música, símbolos de times, de bandas, fotos de séries preferidas e até mesmo

    intervenções de outros colegas, comentando análises ou falando sobre o

    produtor do diário (muitas dessas intervenções ocorriam sem a permissão do

    dono do diário, que o deixava à mostra e acabava sendo vítima de brincadeiras

    dos colegas).

    Entre as figuras, desenhos e colagens presentes nessas atividades,

    percebemos que um número bem reduzido de ocorrências dessa linguagem

    visual confirmava o posicionamento assumido pelos alunos no texto

    configurado na linguagem verbal. Isso constituía um diferencial em meio a

    tantas imagens meramente ilustrativas. Mais à frente, vemos que, embora a

    linguagem visual estivesse fora dos nossos objetivos de análise iniciais, essa

    característica acabou orientando um de nossos critérios de análise.

    Portanto, em meio às características aqui listadas, os diários constituem-

    se como um espaço no qual os alunos posicionam-se abertamente sobre os

    mais variados temas. Isso foi o que nos motivou à verificação e à análise dos

  • 19

    discursos que circulam entre esses jovens e que integram seus pontos de vista.

    Os posicionamentos presentes nesses diários consistem no objeto da atual

    pesquisa, aos quais atribuímos a nomenclatura vozes sociais, referenciada

    pelo Círculo bakhtiniano.

    Na próxima seção, expomos algumas diretrizes que compõem o ensino

    no IFRN, como instituição federal de ensino; como essas diretrizes norteiam o

    ensino de Língua Portuguesa na instituição; a política que rege a forma de

    ingresso nos cursos médios integrados do instituto e dados que nos

    apresentam um perfil das turmas de 1º ano em que os sujeitos participantes

    estudaram na época da escrita dos diários.

    1.3 CONTEXTO ESPACIAL DA PESQUISA: A POLÍTICA DE ENSINO DO IFRN

    Esta seção tem como objetivo apresentar como se encontrava o IFRN,

    em termos de leis, de diretrizes e de público, no momento de produção dos

    diários. A importância dessa contextualização para a pesquisa deve-se à

    contextualização do ambiente em que os diários foram produzidos, necessária

    para que se compreenda em que momento institucional os produtores do diário

    encontravam-se e quais políticas nacionais e locais direcionavam o ensino das

    disciplinas desde o ano de 2009, ano em que os diários mais antigos foram

    escritos.

    1.3.1 Contexto institucional e o ensino de Língua Portuguesa

    Tendo em vista que trabalhamos com diários dos anos de 2009 e 2010,

    vemos que a lei nº 11.892 já estava sendo implantada. A referida lei

    regulamenta que o antigo Centro Federal de Educação Tecnológica do Rio

    Grande do Norte (CEFET-RN) seja transformado em Instituto Federal de

    Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte (BRASIL, 2008). O

    Instituto, então, encontrava-se em um período de transição, que provocou

  • 20

    mudanças na instituição e incentivou seus profissionais a reverem os

    documentos que embasavam seu ensino, ancorados nos documentos

    nacionais oficiais

    Segundo Pacheco (20--), os Institutos Federais ampliam a autonomia

    dos antigos Centros Federais, articulando os ensinos básico, superior e

    profissional, com caráter pluricurricular e multicampi. Isso significou para as

    Instituições uma ampliação em termos de ensino, currículo, além da expansão

    física, uma vez que diversos campi foram abertos ao redor do país. Outro

    aspecto é a importância que é dada ao “bem social” da população, que pode

    ser representado por meio da preocupação das necessidades de cada região.

    Assim, os Institutos passam a oferecer cursos que atendem às necessidades

    de cada área em que uma unidade é construída, em prol do desenvolvimento

    local e regional.

    Essa preocupação com o “bem social” é manifestada nas demais

    diretrizes apontadas para esse novo modelo institucional, que objetiva, entre

    outras coisas,

    ir além da compreensão da educação profissional e tecnológica como mera instrumentalizadora de pessoas para o trabalho determinado por um mercado que impõe seus objetivos. É imprescindível situá-los como potencializadores de uma educação que possibilita ao indivíduo o desenvolvimento de sua capacidade de gerar conhecimentos a partir de uma prática interativa com a realidade. Ao mergulhar em sua própria realidade, esses sujeitos devem extrair e problematizar o conhecido, investigar o não conhecido para poder compreendê-lo e influenciar a trajetória dos destinos de seu locus de forma a se tornarem credenciados a ter uma presença substantiva a favor do desenvolvimento local e regional. (PACHECO, 20--, p. 8).

    Dessa forma, a proposta está atrelada ao desenvolvimento da

    Instituição, mas sempre mantendo esse diálogo com o local em que está

    situada para que seja possível compreendê-la e, a partir disso, responder às

    suas necessidades. Quando falamos em necessidades, podemos pensar em

    necessidades de mercado, mas a proposta enfatiza, juntamente com a

    preocupação em formar o profissional, a formação humana do indivíduo.

    Assim, a instituição deve capacitar e formar profissionais aptos para o trabalho,

    mas sem deixar de lado a formação ontológica, responsável pela propagação

  • 21

    de “princípios e valores que potencializam a ação humana em busca de

    caminhos mais dignos de vida” (PACHECO, 20--, p. 11).

    Então, podemos afirmar que nessa dupla missão de preparar para o

    mercado de trabalho e para a vida consiste o papel do Ensino Médio Integrado

    dos Institutos Federais. Essa característica, porém, já havia sido instituída

    desde a regulamentação do decreto nº 5.114, o qual define que a educação

    técnica de nível médio deve ser desenvolvida de forma articulada com o Ensino

    Médio nas instituições federais (BRASIL, 2004).

    Os cursos nos quais os autores dos diários estavam matriculados são

    classificados, conforme regimento federal, como cursos técnicos de nível médio

    na forma integrada. Compreendemos, nesse sentido, que esses alunos

    conviviam com essa dualidade e com o objetivo institucional de trabalhar a

    formação humana juntamente com a formação profissional.

    Assim, a proposta organizadora desses cursos apresenta-se

    numa matriz curricular integrada, constituída por uma base de conhecimentos científicos, tecnológicos e humanísticos de: Formação geral, que integra disciplinas das três áreas de conhecimento do Ensino Médio (Linguagens e Códigos e suas tecnologias, Ciências Humanas e suas tecnologias e Ciências da Natureza, Matemática e suas tecnologias), observando as especificidades de um currículo integrado com a educação profissional [...]. (IFRN, 2009, p. 9).

    Nesse contexto, a disciplina de Língua Portuguesa na instituição,

    coexistindo com as demais disciplinas, deve propiciar o acesso à multiplicidade

    e diversidade, o que, neste caso, implica na presença de textos de diversos

    gêneros, discursos e linguagens. Nessa perspectiva, os planos dos cursos

    integrados projetam o perfil de um aluno concluinte dessa modalidade.

    Segundo, o plano do curso de Informática, por exemplo, um aluno concluinte

    desse curso deve estar apto a

    Ler, articular e interpretar símbolos e códigos em diferentes

    linguagens e representações, estabelecendo estratégias de solução e

    articulando os conhecimentos das várias ciências e outros campos do

    saber; [...] conhecer e utilizar as formas contemporâneas de

    linguagem, com vistas ao exercício da cidadania e à preparação para

    o trabalho, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da

    autonomia intelectual e do pensamento crítico; [...]. (IFRN, 2009, p.

    8).

  • 22

    Dessa forma, vemos que a proposta de ensino do IFRN vai ao encontro

    do que propõem os documentos nacionais direcionados para as práticas do

    Ensino Médio. Sobre essa articulação entre o ensino de Língua Portuguesa na

    Instituição e esses documentos, Lima (2011) mostra como ocorre o diálogo

    entre as teorias educacionais vigentes e as práticas dessa instituição de

    ensino. Como professor da disciplina no Instituto, o autor analisou seis manuais

    selecionados pelo MEC para serem submetidos à escolha dos professores do

    Ensino Médio em 2005. A indicação dos manuais deu-se via PNLEM

    (Programa Nacional do Livro do Ensino Médio).

    A partir dessa análise, o autor verifica que, mesmo de forma lenta, as

    reflexões acerca do ensino de Língua Portuguesa vão sendo encontradas

    nesses manuais. Afirma, sobre o IFRN que, antes mesmo da LDB entrar em

    vigor, o Instituto já promovia mudanças curriculares no Ensino Médio que

    condiziam com o discurso dessa lei:

    Em 1995, a então Escola Técnica Federal do Rio Grande do Norte

    (ETFRN), hoje denominada Instituo Federal de Educação, Ciência e

    Tecnologia (IFRN), [...] inicia a implementação de um novo projeto

    pedagógico pautado na concepção de educação como instrumento

    de reconhecimento. As bases filosóficas defendiam uma formação

    omnilateral do educando. Buscava-se, dessa forma, a superação da

    dicotomia teoria-prática por meio de uma articulação entre as bases

    científicas e tecnológicas e do fomento de atitudes interdisciplinares

    por parte dos docentes da instituição. (LIMA, 2011, p. 22).

    Com base nisso, podemos afirmar que o espaço em que os alunos

    produtores dos enunciados estão inseridos é um espaço onde, há algum

    tempo, circulam discussões atuais no que diz respeito à disciplina a qual a

    atividade dos diários está submetida.

    Dessa forma, estão presentes no programa dessa disciplina conteúdos

    que proporcionam discussões sobre diferentes registros de linguagem,

    contextos de produção, intenções de comunicação, por meio de uma

    diversidade de textos, pertencentes aos diferentes gêneros. Isso significa

    apresentar ao aluno as possibilidades de se utilizar a língua no seu cotidiano,

    informando-o sobre como deve fazer suas escolhas lexicais, de acordo com o

  • 23

    objetivo que pretende alcançar, por meio da adequação correta da língua ao

    seu ambiente de comunicação.

    Nesse caminho, a disciplina de Língua Portuguesa direciona-se para a

    “busca de soluções para os problemas de seu tempo, aspectos que,

    necessariamente, devem estar em movimento e articulados ao dinamismo

    histórico da sociedade em seu processo de desenvolvimento” (PACHECO, p.

    17).

    A seguir, vemos como os alunos do técnico integrado, de nível médio,

    ingressam no Instituto.

    1.3.2 Ensino Médio Integrado – estrutura curricular e formas de

    ingresso

    O Projeto Político Pedagógico (PPP) do IFRN, ainda em processo de

    construção e disponibilizado no site do Instituto, acompanha as diretrizes

    nacionais. Segundo o projeto, essa modalidade de ensino tem como objetivo

    formar cidadãos que sejam capazes de atuar como profissionais técnicos de

    nível médio, tendo como base uma formação sólida no que diz respeito à

    educação básica, articulando trabalho, ciência, cultura e tecnologia. Essa

    formação, de acordo com o projeto, pretende, entre outras coisas, superar a

    “dualidade histórica entre os que são formados para o trabalho manual e os

    que são formados para o trabalho intelectual e a histórica separação entre o

    pensar e o fazer, característica sedimentadora do modelo capitalista” (IFRN,

    2012, p. 112).

    O PPP apresenta, sobre esses cursos, a estrutura curricular, a prática

    profissional e os requisitos e formas de acesso. No caso da estrutura curricular,

    o documento afirma que os cursos estão organizados em sistema seriado

    anual, com duração de 4 anos letivos e distribuição de disciplinas divididas

    entre disciplinas de Ensino Médio e disciplinas de formação técnica, de

    periodicidades anual e semestral. As disciplinas estão divididas em uma carga

    horária de 2.400 horas, para as disciplinas do Ensino Médio, e de 800, 1.000

    ou 1.200 horas, para as disciplinas técnicas, de acordo com o curso. Além

  • 24

    desse tempo reservado a esses dois tipos de disciplina, é estabelecida a carga

    horária de 400 horas dedicada à prática profissional.

    Com relação a essa prática, as horas utilizadas para que ela seja

    desenvolvida procuram conciliar a teoria e a prática, no desenvolvimento de

    projetos integradores/técnicos, de extensão e/ou de pesquisa; e/ou estágio

    curricular supervisionado (estágio técnico), a partir do início da segunda

    metade do curso.

    Enfatizamos a questão dos requisitos e formas de acesso neste

    momento, pois julgamos importante para este trabalho que se obtenha um

    perfil do aluno ingressante no IFRN, assim como do aluno que cursa o primeiro

    ano do Ensino Médio Integrado.

    Para ingressar na instituição, os alunos precisam obter o certificado de

    conclusão do Ensino Fundamental. A forma de ingresso pode ser via processo

    seletivo ou por meio da transferência de um curso para outro. Neste caso, o

    estudante precisa estar matriculado regularmente no segundo período de um

    dos cursos integrado e manifestar desejo, perante a instituição, de transferir-se

    de um curso para outro.

    A primeira forma de ingresso citada proporciona duas oportunidades

    para os alunos dessa faixa etária: a) por meio do Proitec ― Programa de

    Iniciação Tecnológica e Cidadania ―, curso, oferecido pela instituição, na

    modalidade a distância, para alunos da rede pública, com o objetivo de

    preparar os estudantes a ingressarem na instituição, por meio de provas

    destinadas apenas para esses alunos da rede pública; b) por meio do ingresso

    anual no Ensino Técnico Integrado para alunos da rede pública ou particular.

    Consiste na aplicação de uma prova com questões objetivas de Português e

    Matemática, em nível de Ensino Fundamental, e uma prova discursiva de

    Produção textual.5

    Com relação ao Proitec, o edital do programa é aberto no início do ano,

    com informações referentes ao curso e já com as datas das provas definidas.

    5 Informações obtidas no site do Instituto, por meio do link

    . Acesso em: 04 mar. de

    2013.

  • 25

    No caso do edital aberto em 20126, as provas foram marcadas para julho e

    setembro. A primeira prova é constituída por 40 questões de múltipla escolha,

    divididas entre as disciplinas Português, Matemática e Ética e Cidadania. A

    segunda prova, por sua vez, além das questões de múltipla escolha, também é

    constituída por uma questão discursiva, que consiste em uma produção textual.

    Mas o programa em questão não envolve apenas as provas. Como já

    mencionamos, trata-se de uma formação continuada e a distância, com carga

    horária total de 160 horas. Seu objetivo principal é proporcionar o

    aprofundamento dos conteúdos por parte dos alunos da rede pública do nosso

    estado. Contemplando as disciplinas que se farão presentes nas provas, no

    Proitec, não há limites de vagas e, para se inscreverem, os alunos podem

    acessar a internet (o Instituto concede espaço para que o aluno que não possui

    acesso à internet possa fazer sua inscrição no campus mais próximo), optando

    por um campus, ao qual ficará vinculado, ao longo do programa, na condição

    de aluno.7

    Durante o curso, segundo o mesmo edital, são disponibilizados para os

    inscritos materiais que os auxiliam nos estudos, como livro, acompanhado de

    DVD contendo as teleaulas e um livro de atividades para subsidiar os estudos.

    Por meio desses dois processos seletivos, todo ano letivo, as vagas de

    cada curso são 50% preenchidas por alunos de escola pública e 50% por

    alunos de escola privada. Esse tipo de seleção inclusiva é um dos fatores que

    fazem com que as turmas do Ensino Médio Integrado possuam uma variedade

    de níveis de conhecimento e, principalmente, de classe social. A título de

    informação, antigamente, alguns alunos, provenientes de escolas particulares,

    ingressavam em uma escola pública no último ano do Ensino Fundamental

    apenas para fazer parte dessa inclusão. Porém, o atual sistema de ingresso só

    permite participar do Proitec os alunos que estudaram durante todo o Ensino

    Fundamental em escola pública.

    6 Edital 03/2012, disponível em . Acesso em:

    04 mar. de 2013.

    7 Segundo o edital, não estão previstas vagas para o campus da Cidade Alta, na cidade de

    Natal.

    http://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-seletivos/tecnico-integrado/itec/proitec-2012/documentos-publicados/edital-03-2012-proitec-2012http://portal.ifrn.edu.br/ensino/processos-seletivos/tecnico-integrado/itec/proitec-2012/documentos-publicados/edital-03-2012-proitec-2012

  • 26

    Como resultado dessa junção dos selecionados pelos dois processos,

    temos turmas com perfis como os que veremos agora.

    1.3.3 Perfil das turmas selecionadas

    Nesta subseção, exibimos os dados das turmas em que os produtores

    dos diários encontravam-se matriculados na época da produção do trabalho.

    Os dados foram fornecidos pela diretoria de cada um dos cursos e, segundo

    funcionários, foram retirados de uma ficha cadastral que os alunos preenchem

    ao ingressar no IFRN. A intenção de apresentá-los nesta pesquisa é situar o

    leitor acerca do perfil das turmas em que os diários foram produzidos.

    Primeiramente, apresentamos o gráfico que mostra quantos alunos do

    sexo masculino e quantos do sexo feminino cursavam a disciplina de Língua

    Portuguesa em cada um dos cursos escolhidos.

    Gráfico 1: Divisão dos alunos por sexo Fonte: Autoria própria, 2013.

  • 27

    A partir do gráfico, é possível perceber que a turma de Edificações é a

    mais equilibrada com relação à presença de homens e mulheres em sala de

    aula, enquanto que, nas turmas de Informática, essa divisão não é tão

    equitativa. Já com relação às turmas de Eletrotécnica e Mecânica, podemos

    perceber uma quantidade elevada de homens que se sobrepõe às mulheres.

    Essa grande diferença, possivelmente, significa que ainda se faz presente,

    entre as pessoas de nossa região, o pensamento de que esses cursos são

    voltados para o público masculino.

    Em seguida, apresentamos o gráfico que mostra como se dava a divisão

    dos alunos por faixa etária em cada turma.

    Gráfico 2: Divisão dos alunos por faixa etária Fonte: Autoria própria, 2013.

    A faixa etária dos alunos matriculados nos cursos é bem diversificada,

    como vemos. Porém, percebemos que predominam as idades de 15 e 16 anos,

    idade em que, geralmente, os jovens ingressam no Ensino Médio. Poucos

    alunos ingressam na instituição com idade menor, são os casos em que os

    jovens começam os estudos mais cedo e, consequentemente, chegam a esse

    nível de ensino antes dos demais.

    Quanto aos mais velhos, as situações são mais diversificadas. Uma

    delas é o caso de reprovação. A título de informação, segundo professores do

  • 28

    Instituto, a disciplina de Língua Portuguesa é uma das disciplinas que mais

    reprovam os alunos no 1º ano; portanto, todos os anos, as turmas desse nível

    são compostas pelos calouros e pelos alunos reprovados na disciplina. Outra

    situação é a de alunos que já cursam o Ensino Médio em outra escola, mas

    que decidem iniciá-lo novamente para poder cursar o Ensino Médio no IFRN.

    Além das situações já citadas, temos também os alunos que, por algum motivo,

    atrasaram os estudos e, consequentemente, chegaram ao E. M. em uma idade

    mais avançada do que o esperado para esse nível de ensino.

    Por fim, veremos o gráfico que apresenta a divisão dos alunos por renda

    salarial.

    Gráfico 3: Divisão dos alunos por renda salarial Fonte: Autoria própria, 2013.

    Como mostra o gráfico, em uma mesma turma, convivem alunos com

    renda familiar de até um salário mínimo e alunos cuja renda familiar ultrapassa

    dez salários. Porém, é predominante, em todas as turmas, os jovens cuja renda

    familiar vai de um a cinco salários mínimos. O que nos chama a atenção neste

    gráfico é a quantidade de alunos, em alguns cursos, que não informam a renda

    salarial. Segundo os funcionários que nos disponibilizaram esses dados, muitos

    deles não estão cientes da renda de sua família no momento do preenchimento

    da ficha cadastral. Esses dados são utilizados, também, pelo grupo de Serviço

  • 29

    Social da escola, que avalia os alunos de baixa renda para que bolsas de

    trabalho sejam disponibilizadas para eles, além de outros benefícios, como

    alimentação, oferecidos pelo governo federal. Portanto, os que permanecem

    sem fornecer a renda de sua família, provavelmente, não estão interessados,

    ou não precisam, desses benefícios.

    Saindo desse contexto institucional, abordamos, agora, como a pesquisa

    se insere na área das Ciências Humanas e na Linguística Aplicada.

    1.4 CONTEXTUALIZAÇÃO DA PESQUISA NA ÁREA DE CIÊNCIAS

    HUMANAS

    Nas últimas décadas, as pesquisas em Ciências Humanas vêm

    trazendo, cada vez mais, uma postura política diante da sociedade. De fato, as

    pesquisas realizadas nas instituições acadêmicas estão voltando-se não

    somente para a compreensão dos problemas que afligem a sociedade e seu

    cotidiano, mas também para procurar desenvolver estratégias para

    enfrentarmos esses problemas. Ou seja, a pesquisa acadêmica está, cada vez

    mais, adquirindo um caráter responsivo, optando por trilhar um caminho que

    nega e denuncia os procedimentos metodológicos positivistas e objetivos

    mecânicos.

    Acreditando ser essa perspectiva a que responde às necessidades

    contemporâneas, muitos teóricos da área reforçam a importância desse modo

    de fazer pesquisa e desenvolvem estudos no intuito de propagá-lo. Entre eles,

    estão as autoras Freitas, Jobim e Souza, e Kramer, para quem a verdadeira

    pesquisa acadêmica precisa, sobretudo,

    Interagir com as concepções construídas no cotidiano das relações sociais, possibilitando uma permanente troca entre visões de mundo que se expressam através de registros de linguagem ou de gêneros discursivos distintos. Os indivíduos e os grupos podem conquistar uma consciência crítica, cada vez mais elaborada, sobre a experiência humana, na medida em que são capazes de permitir que os diferentes gêneros de discurso (desde o discurso acadêmico até as formas cotidianas de expressão, através de ações, opiniões e representações sociais) possam interagir, transformando e re-significando mutuamente as concepções, sobre o conhecimento e a

  • 30

    experiência humanas que circulam entre as pessoas num determinado espaço sociocultural, e num dado momento histórico. (FREITAS; JOBIM E SOUZA, KRAMER, 2007, p. 8).

    Portanto, a pesquisa atual na área de humanas deve estar atenta ao que

    acontece nesse espaço sociocultural que é construído, transformado e

    ressignificado pelos sujeitos por meio da interação; logo, um espaço que sofre

    constantes transformações. E estando atenta ao espaço e aos sujeitos,

    dinâmicos e heterogêneos por natureza, esse tipo de pesquisa, que pretende

    atender aos sujeitos, de uma forma geral, não pode privilegiar pensamentos

    hegemônicos. Ao contrário, deve-se comprometer com a democratização. Mas

    o que significa democratizar o campo da pesquisa acadêmica nos dias de

    hoje? Significa, sobretudo, dar voz aos grupos excluídos das pesquisas

    acadêmicas, ou, nas palavras de Moita Lopes (2009), “ouvir as vozes das

    periferias ou daqueles que foram alijados dos benefícios da modernidade”

    (MOITA LOPES, 2009, p. 21). Ou, como no caso desta pesquisa, permitir que

    as vozes dos alunos ocupem relevante espaço na pesquisa acadêmica.

    Segundo esse linguista e pesquisador, essa mudança do como fazer

    pesquisa passa a ser bem perceptível no Brasil a partir dos anos 90, quando,

    ancoradas nas teorias de autores como Vygotsky e Bakhtin, no tocante à

    compreensão da linguagem como instrumento de construção do conhecimento

    e da vida social, as Ciências Sociais passam a questionar a teorização do

    sujeito social de forma homogênea, responsável pelo “apagamento” das

    diferenças e das singularidades. Esses questionamentos resultaram em uma

    reteorização “em termos de visões pós-estruturalistas, feministas antirracistas,

    pós-coloniais e queer” (MOITA LOPES, 2009, p. 19). Dentro dessa linha de

    pensamento, podemos concluir que todos os trabalhos que pretendem

    contribuir para a pesquisa na área de Humanas devem trilhar por esse

    caminho.

    Como sabemos, trabalhar com o discurso do aluno não constitui uma

    novidade na grande área da Linguística. É muito comum nos depararmos com

    pesquisas que utilizam como corpus entrevistas, trabalhos, exercícios,

    gravações em que encontramos o discurso dos discentes em evidência.

    Sabemos também que tanto a participação em entrevistas, quanto o registro

  • 31

    em atividades escolares estão sendo influenciados pela imagem que o aluno

    pretende passar de si como estudante, como participante de pesquisa.8 A partir

    disso, entendemos que o diário de leituras não está isento dessa influência.

    Porém, entendemos que se trata de um gênero discursivo que confere uma

    maior liberdade9 ao produtor e essa liberdade, embora ande junta com a

    imagem do outro (nesse caso, o professor), traz consequências para a

    produção de um discurso em que podemos encontrar vozes que vão de

    encontro ao que é socialmente estabelecido ou aos discursos hegemônicos da

    atualidade.

    Isto é, essa maior liberdade permitida pelo gênero ainda proporciona

    uma espécie de democratização, da qual tratava Moita Lopes (2009), no

    sentido de que amplia a possibilidade de o aluno falar sobre o que pensa

    acerca dos discursos que circulam na sociedade. Democratizar, nesse caso, é,

    também, permitir que o aluno exponha o seu ponto de vista sobre a sala de

    aula, sobre a escola, sobre o conteúdo, sobre as temáticas dos textos que lê no

    dia a dia, enfim, sobre o que lhe é apresentado nesse espaço escolar.

    Dessa forma, em sintonia com o atual perfil de pesquisa brevemente

    exposto, este trabalho pretende colaborar para os estudos contemporâneos

    sobre linguagem, sobre as práticas discursivas, sobre o gênero diário de

    leituras e sobre os conceitos bakhtinianos de dialogismo e vozes sociais

    representados em enunciados concretos. Conforme Bakhtin (2010a) afirma, os

    discursos presentes no meio social materializam-se nos gêneros. Assim,

    esperamos encontrar, materializadas nesse gênero escolar, vozes circulantes

    no meio social que revelam diferentes pontos de vista.

    Para tanto, nos valeremos das peculiaridades do gênero, principalmente,

    no que diz respeito às considerações subjetivas que são feitas sobre o texto

    analisado, seu conteúdo e sua possível dificuldade de interpretação por parte

    do diarista. O diferencial do diário está no fato de, apesar de ser um gênero

    escolar, apresentar-se como um espaço onde reina “o universo temático da

    experiência pessoal, incluindo-se aí ações, sentimentos, sensações e

    8 A influência do outro sobre o discurso do eu é parte integrante da teoria do Círculo de

    Bakhtin e será abordada na seção que versa sobre a concepção dialógica da linguagem. 9 A utilização do termo “liberdade” para referir-se a uma das características dos diários é

    utilizado por Abreu-Tardelli, Lousada e Machado (2007). As razões para essa utilização podem

    ser encontradas na seção 2.4.

  • 32

    pensamentos relacionados a essa vivência” (MACHADO, 1998, p. 28). Os

    juízos de valor pautados, principalmente, nas impressões pessoais tornam a

    utilização desse gênero propício à manifestação das vozes constituintes dos

    sujeitos participantes, uma vez que estes se encontram fora das atividades

    tradicionais escolares, as quais solicitam respostas objetivas e que, por

    conseguinte, não permitem a opinião pessoal dos estudantes.

    O gênero em questão, portanto, além de exercitar a escrita e a leitura

    crítica dos alunos, constitui um espaço para os comentários empíricos, para a

    individualidade, para aquilo que a academia não pode aceitar como válido por

    não apresentar a obrigatoriedade da presença de argumentos sólidos e

    comprovados cientificamente. Abrir as portas para a individualidade e para a

    subjetividade do sujeito é entrar em contato mais diretamente com sua

    consciência, formada por diferentes vozes que o constituem.

    Como podemos ver, os estudos na área de Ciências Humanas, assim

    como as características do gênero diário de leituras colocam em questão um

    sujeito constituído socialmente e, por essa razão, um ser que comporta em si

    diversos posicionamentos que o fazem único, singular e múltiplo ao mesmo

    tempo. Dentro desse contexto, a vertente da L. A. escolhida para este trabalho

    dialoga com as concepções apresentadas até então. Segundo Menezes, Silva

    e Gomes (2009), um consenso entre estudiosos sobre a L.A. é de que ela é

    a linguagem como prática social, seja no contexto de aprendizagem de língua materna ou de outra língua, seja em qualquer outro contexto em que surjam questões relevantes sobre o uso da linguagem.” (MENEZES; SILVA; GOMES, 2009, p. 25).

    Rajagopalan (2008) afirma que a L.A. deve estar voltada para questões

    práticas, isto é, deve organizar-se como um tipo de pesquisa que se volta aos

    estudos de uma teoria que esteja ligada às necessidades dos sujeitos em sua

    constante utilização da língua no cotidiano. O autor chama a atenção para o

    fator social, dizendo que ele não deve estar para a Linguística apenas como

    um adereço, mas como um elemento indispensável para que se pense

    questões de língua. Nas palavras do autor:

  • 33

    A atividade linguística é uma prática social. Sendo assim, qualquer tentativa de analisar a língua de forma isolada, desvinculada das condições sociais dentro das quais ela é usada, cria apenas um objeto irreal. Longe de ser uma opção teórica ou até mesmo uma condição para conduzir a atividade científica, como costumam dizer os adeptos dessa tendência, tal manobra, sob olhar atento e crítico, se revela um gesto imbuído de conotações ideológicas — precisamente do tipo que seus defensores acreditam estar excluindo de suas práticas científicas. (RAJAGOPALAN, 2008, p. 163).

    Partindo desse pressuposto, consideramos os enunciados analisados

    como representantes de nossa conjuntura política, cultural, social e ideológica.

    E, inseridos nas práticas sociais, os enunciados não apenas a representam,

    mas podem ser considerado como constituintes e constituídos dessas práticas,

    conforme veremos com mais detalhes mais adiante.

    Podemos perceber uma consonância entre esse campo de estudo e o

    que se vem propondo nos demais campos de conhecimento que constituem a

    área humanística. Sobre esse aspecto, Moita Lopes (2009) apresenta o sujeito

    da L.A. como um ser social, heterogêneo, fluido e mutável que constrói sua

    subjetividade no meio social por meio da linguagem que, por sua vez, o reflete.

    E aqui entendemos a importância de compreender nossas práticas discursivas.

    Elas denunciam o que somos. “Somos os discursos em que circulamos, o que

    implica dizer que podemos modificá-los no aqui e no agora” (MOITA LOPES,

    2009, p. 21).

    Diante da multiplicidade de discursos com os quais nos deparamos —

    muitos deles entendidos no passado como ilegítimos —, o autor afirma que é

    crucial

    submeter todas as nossas práticas, inclusive as de pesquisa, a princípios de natureza ética, uma vez que nem todos os significados são válidos. Tais princípios nos devem fazer avaliar as vantagens que levamos em detrimentos de outros, assim como nos devem fazer recusar significados que façam sofrer, um parâmetro do qual não podemos nos afastar. (MOITA LOPES, 2009, p. 22).

    Considerando todo esse contexto, esperamos que esta pesquisa possa

    fortalecer esse novo rumo que a pesquisa vem tomando, assim como o novo e

    adequado tratamento que se tem dado aos sujeitos como objetos de pesquisa.

    A colaboração do diarismo pode ser resumida nas palavras de David (apud

  • 34

    MACHADO, 1998, p. 22): “em face de uma humanidade psiquicamente

    esfacelada, esse gênero talvez seja o único capaz de expressar a civilização

    esfacelada em que vivemos”.

    Para uma melhor organização das informações, dividimos o texto em

    cinco capítulos. O primeiro trata-se desta introdução, na qual objetivamos situar

    a pesquisa; situar o seu espaço e os sujeitos participantes; legitimá-la como

    inserida no campo da L.A e apresentar o corpus.

    Em seguida, temos o segundo capítulo, no qual expomos os

    pressupostos teóricos que orientam todo o percurso da pesquisa, e os

    caminhos percorridos sob essa orientação (escolha do corpus, objetivos e

    questões, critérios de seleção). É neste capítulo também que situamos a

    concepção de linguagem norteadora da pesquisa, assim como os principais

    conceitos da teoria bakhtiniana que serviram de suporte: as relações

    dialógicas, o conceito de enunciado a noção de posicionamento axiológico e

    vozes sociais, entre outros. Coerente com esses conceitos, apresentamos a

    forma como compreendemos os processos de leitura e de escrita no trabalho

    com os diários e como, motivados por essa compreensão, consideramos os

    enunciados produzidos pelos alunos. No final deste capítulo, esclarecemos

    como ocorreu o processo de divisão de categorias e a nomeação dos

    enunciados escolhidos para que possamos introduzir as análises dos dez

    enunciados escolhidos para o corpus.

    Os capítulos três e quatro são destinados às análises. Neste, agrupamos

    os enunciados da Polêmica aberta; naquele, os enunciados pertencentes ao

    grupo da Polêmica velada.

    Por fim, nossas considerações finais, capítulo em que discutimos os

    resultados da pesquisa e direcionamos essa discussão para estudos

    posteriores.

  • 35

    2 CONCEPÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS: RELAÇÃO ENTRE

    CONCEITOS E ATITUDES DIANTE DA PESQUISA

    Este capítulo objetiva apresentar maiores informações sobre as

    concepções teóricas metodológicas que nortearam toda a pesquisa. Sabendo

    que “as visões de homem e de mundo presentes numa determinada

    perspectiva teórica marcam toda a sua organização metodológica e estrutural

    conceitual” (FREITAS; JOBIM E SOUZA; KRAMER, 2007, p. 8), discorremos

    aqui sobre como concebemos, ao longo da pesquisa, os sujeitos envolvidos no

    trabalho, a teoria que será abordada, o gênero discursivo diário de leituras e o

    próprio modo de fazer pesquisa na área de Ciências Humanas atualmente, sob

    a concepção dialógica bakhtiniana.

    2.1 ORIENTAÇÕES TEÓRICAS INICIAIS

    Em primeiro lugar, faremos uma contextualização sobre as atuais

    orientações para a pesquisa na área de Ciências Humanas. Em se tratando de

    metodologia nessa área, é necessário considerarmos que, independente da

    linha teórica, ela sempre visa a uma melhor compreensão do ser humano,

    como sua denominação já aponta. Portanto, antes de mais nada, precisamos

    compreender o homem contemporâneo e, para a pesquisa em questão, o

    concebermos como ser de linguagem, que interage com o mundo e constitui-se

    como sujeito participante de uma sociedade. Essa constante interação é o que

    garante a permanente transformação do homem e dessa sociedade. Tendo em

    vista que tratamos de um trabalho inserido na área de L. A., consideramos

    também o fato de que essa inserção e constituição humana na sociedade

    acontecem por mediação da linguagem. Assim sendo, é por meio dela que

    construímos enunciados, ao mesmo tempo em que ela nos transforma e

    ressignifica.

    Essa concepção de homem e de linguagem influenciou esta pesquisa no

    momento em que entramos em contato com os textos analisados. Nesse

  • 36

    contexto, utilizamos como base também as orientações do Círculo bakhtiniano

    para as pesquisas nessa área (BAKHTIN, 2010a). Portanto, compreendemos

    que os enunciados presentes nos diários materializam o pensamento de um

    grupo da sociedade da época em que foram escritos (alunos, adolescentes,

    estudantes do Ensino Médio do IFRN). Apesar de representarem uma pequena

    parcela desse grupo, os enunciados que foram selecionados para serem

    analisados representam posicionamentos que circulam na sociedade da época.

    Ou seja, o posicionamento desses jovens não pertence somente a eles, não foi

    criado de forma isolada, mas dentro do ambiente social e histórico em que se

    construíram, e permanecem construindo-se, como sujeitos de linguagem.

    Assim, esse caráter de transformação permanente do homem e da

    sociedade conferido por essa abordagem é uma das concepções que orientam

    este trabalho. Sendo o homem um ser que não se caracteriza como previsível,

    ao estudá-lo, não podemos garantir resultados que venham ao encontro de

    determinada expectativa do pesquisador. Portanto, o sujeito pesquisador deve

    adentrar na pesquisa com questões e objetivos formulados, mas com a

    consciência de que as etapas do projeto podem sofrer (re)ajustes durante o

    percurso. Sobre isso, Mazzotti e Gewandsznajder (1998) nos dizem que um

    projeto de pesquisa não é uma “camisa de força” ou algo que deve ser seguido

    necessariamente à risca, mas “um guia, uma orientação que indica onde o

    pesquisador quer chegar e os caminhos que pretende tomar” (MAZZOTTI;

    GEWANDSZNAJDER, 1998, p. 149).

    Guba e Lincoln (2006), ao fazerem referência à “metodologia

    investigativa” também se opõem à construção de um conjunto de regras que se

    encaixem em qualquer tipo de pesquisa. Do contrário, os autores posicionam-

    se em favor da adequação da metodologia à natureza da pesquisa (GUBA;

    LINCOLN, 2006).

    Consonante com essa ideia, Freitas (2007) aponta a importância de se

    compreender os fenômenos sociais em toda a sua “complexidade e em seu

    acontecer histórico”. Para tanto, há que se ir ao encontro da situação no seu

    acontecer, “no seu processo de desenvolvimento” (FREITAS, 2007, p. 27). É

    por essa razão que Moita Lopes (2009) coaduna essa visão por entender que

    em se tratando de algo complexo, múltiplo e heterogêneo como o ser humano,

    não há como basear-se em relações de “causa e efeito”, tendo em vista

  • 37

    também a complexidade das práticas discursivas nas quais esses sujeitos

    estão inseridos.

    Nesse sentido, as categorias nas quais foram inseridas as vozes

    analisadas foram criadas a partir da análise dos enunciados e das vozes que

    deles emergiam. Não há espaço, nessa abordagem à qual nos referimos, para

    categorias preestabelecidas pelo pesquisador, uma vez que isso seria falar

    pelo corpus em vez de ouvi-lo. Podemos afirmar, portanto, que as teorias

    mencionadas, neste capítulo, serviram de aporte teórico para a criação do

    corpus e das categorias, mas não ditaram de forma categórica como essas

    categorias deveriam aparecer, uma vez, que sem a seleção do corpus e o

    constante contato com ele, não poderíamos saber que categorias adotar.

    Sobre isso, Amorim (2002) também alerta-nos sobre o diferencial desse

    pensamento que orienta a concepção de metodologia aqui adotada:

    No que concerne às Ciências Humanas, a questão da voz do objeto é decisiva. Segundo Bakhtin, é o objeto que distingue essas ciências das outras (ditas naturais e matemáticas). Não é porém o homem seu objeto específico, uma vez que este pode ser estudado pela Biologia, pela Etologia etc. O objeto específico das Ciências Humanas é o discurso ou, num sentido mais amplo, a matéria significante. O objeto é um sujeito produtor de discurso e é com seu discurso que lida o pesquisador. Discurso sobre discursos, as Ciências Humanas têm portanto essa especificidade de ter um objeto não apenas falado, como em todas as outras disciplinas, mas também um objeto falante. (AMORIM, 2002, p. 10).

    Nessa perspectiva, analisamos o discurso, do qual emergem

    posicionamentos diversos sobre o mundo, o qual os sujeitos (re)significam

    cotidianamente e com o qual permanecem em constante diálogo, construindo

    seus pontos de vista e, consequentemente, a si mesmos como sujeitos de

    linguagem.

    Sobre a visão de mundo que norteia o modo como consideramos esses

    discursos, Bakhtin (2010a) apresenta-nos a assertiva de que a pesquisa

    precisa enxergar o mundo como acontecimento, em vez de vê-lo como

    estanque e acabado. O autor, ao falar sobre metodologia, também mostra que

    o ponto de partida para compreender um determinado momento histórico é o

    texto. Dialogando com esse pensamento, Freitas (2007) afirma que a fonte de

    dados para uma pesquisa qualitativa é o texto

  • 38

    no qual o acontecimento emerge, focalizando o particular como instância de uma totalidade social. Procura-se, portanto, compreender os sujeitos envolvidos na investigação para, por meio deles, compreender também o seu contexto. (FREITAS, 2007, p. 27).

    É nessa perspectiva que os diários de leitura podem constituir um corpus

    para uma pesquisa nessa área, uma vez que representam enunciados

    carregados de valores que, embora advindos de apenas dez sujeitos, podem

    ajudar-nos a compreender a totalidade da conjuntura social na qual estamos

    imersos atualmente.

    Dentro desse corpo das ciências ditas humanas, encontra-se a

    Linguística Aplicada, cuja preocupação maior é fazer pesquisa de forma a

    trazer respostas para os problemas enfrentados pelo homem em sua interação

    no meio. No entanto, é importante ressaltar que, para Moita Lopes (2009), não

    há como apresentar respostas e soluções fechadas para os problemas na L. A.

    Portanto, o tipo de resposta a que nos referimos trata-se do esclarecimento e

    aprofundamento proporcionado pela pesquisa nessa área. Assim, a atual

    pesquisa, em vez de objetivar explicar fenômenos por meio de respostas

    imediatas, visa aprofundar e interpretar esses fenômenos.

    Essa característica está inserida dentro da pesquisa qualitativa de cunho

    interpretativista, uma vez que enfatiza a compreensão e o aprofundamento dos

    dados e não sua quantidade, conforme nos indica Freitas (2007), ao verificar

    que o critério que se deve buscar nesse tipo de pesquisa “não é a precisão do

    conhecimento, mas a profundidade da penetração e da participação ativa tanto

    do investigador quanto do investigado” (FREITAS, 2007, p. 28).

    Finalizando, ressaltamos que as concepções adotadas para a pesquisa

    e sua inserção na pesquisa qualitativa interpretativista obedece às

    características do objeto escolhido. Temos, como objeto de pesquisa, as vozes

    que emergem dos enunciados produzidos pelos alunos. A concepção de vozes

    na perspectiva bakhtiniana pressupõe, como já mencionamos, os

    posicionamentos que fazem parte da memória discursiva dos sujeitos e que se

    materializam nos enunciados. Esses posicionamentos são sempre valorados e

    estão ligados a um determinado grupo social que confirma e reafirma um certo

    tipo de discurso em um dado contexto social. Assim, esse objeto orienta a

    análise específica no âmbito do discurso, ou seja,

  • 39

    não se trata de um trabalho de análise linguística ou literária, mas de uma tentativa de identificar limites, os impasses e a riqueza do pensamento e do saber que são postos em cena no texto. Preocupação epistemológica, mas também ético-política, na medida em que alguns textos de pesquisa nos dão a perceber a relação entre o pesquisador e o seu outro num contexto cuja dimensão política se impõe a qualquer reflexão. (AMORIM, 2002, p.8).

    Assim, esse modo de fazer pesquisa, ao aprofundar o discurso, terreno

    fértil para compreender o homem e suas relações sociais, acaba priorizando o

    homem antes de qualquer coisa, pois o contato com o texto é o contato com o

    próprio homem e seus valores.

    A importância que procuramos conferir aos sujeitos participantes dessa

    pesquisa é teorizada na seção seguinte, na qual procuramos explicitar o papel

    do sujeito pesquisador e dos sujeitos pesquisados.

    2.2 PESQUISA INTERACIONISTA E DIALÓGICA: O PAPEL DOS SUJEITOS

    PARTICIPANTES

    A concepção de pesquisa que iremos abordar nesta seção diz respeito à

    maneira como tratamos os sujeitos participantes. Conforme veremos nos

    tópicos seguintes, a voz do pesquisador não deve predominar sobre as vozes

    dos alunos participantes. É no diálogo entre essas vozes que a pesquisa vai

    constituindo-se e tomando forma, sem que nenhuma das partes seja

    privilegiada.

    Os conceitos de interação e dialogismo assemelham-se por não

    considerarem o homem fora do contexto social. Isso nos auxilia a pensar

    diretrizes metodológicas no sentido de considerar a importância do outro na

    pesquisa, não apenas como um objeto, mas como real colaborador para que

    esta pesquisa se realize. Desse modo, a interação com os sujeitos passa a ser

    inevitável, uma vez que “[...] nossa natureza social simplesmente não permite

    que escapemos à interação” (MORATO, 2004, p. 313), considerando que “toda

    a ação humana procede de uma interação” (MORATO, 2004, p. 312).

    Porém, para que possamos nomear uma pesquisa como interacionista, é

  • 40

    preciso que saibamos de que tipo de interação estamos falando, pois, segundo

    Morato (2004), muitas pesquisas dizem-se interacionistas, mas não realizam

    um trabalho que deixe claro como esse tipo de interação ocorre, pois os

    sujeitos pesquisados continuam assumindo um papel passivo e inferior dentro

    da pesquisa. Por esse motivo, concordamos com Santos (2010), quando a

    autora afirma que interação é ir além das aparências, reconhecendo o outro

    como único e singular no todo da sociedade. Essa escolha teórica,

    consequentemente, deixa de lado as generalizações. Como vemos, essa

    concepção dialoga com o que vimos anteriormente sobre a pesquisa

    interpretativista e com a visão de pesquisa e de ser humano apresentadas por

    Bakhtin (2010a).

    Para este autor, o objeto das Ciências Humanas é o ser humano,

    expressivo e falante, inesgotável em seu sentido. Além disso, assim como a

    linguagem é dialógica, a pesquisa deve manter esse diálogo com o outro, em

    oposição a uma atitude monológica, que consiste em seu silenciamento,

    quando o pesquisador, em vez de dar voz a esse outro, fala por ele.

    Baseando-se nisso, Freitas afirma que

    O homem não é um objeto, nem algo sem voz: é outro sujeito, outro que eu que interage dialogicamente com seus interlocutores. Dessa maneira pesquisador e pesquisado se constituem como dois sujeitos em interação que participam ativamente do acontecimento da pesquisa. Esta se converte em um espaço dialógico, no qual todos têm voz, e assumem uma posição responsiva ativa. (FREITAS, 2010, p. 17).

    Nesse sentido, não temos um pesquisador que fala sozinho e um

    pesquisado que serve apenas para ser observado, mas, considerando que o

    objeto pesquisado também é um falante, não podemos, a partir dessa

    concepção, deixar de ouvi-lo. No caso desta pesquisa, o contato entre as duas

    partes ocorre por meio dos enunciados analisados. São as vozes presentes na

    escrita dos alunos, participantes e colaboradores da pesquisa, que devem ser

    ouvidas constantemente para que seja apontada uma interpretação desses

    discursos. O respeito à voz desse outro acontece, portanto, a partir dessa

    atitude teórica e metodológica do sujeito pesquisador diante de sua pesquisa.

  • 41

    Por isso, é preciso que, nesta seção, abordemos também o conceito de

    exotopia (BAKHTIN, 2010a), tendo em vista que estamos falamos sobre

    interação dos sujeitos participantes da pesquisa. Falaremos sobre esse

    conceito em outros momentos do trabalho. No entanto, neste momento,

    tratamos do distanciamento da pesquisadora em relação a alguns produtores

    dos enunciados, que foram seus alunos; em relação à atividade escolar diário

    de leituras; e em relação à situação de sala de aula em que os discursos

    (confirmados ou negados nos enunciados) circulavam no cotidiano escolar.

    Assim, compreendemos que, durante todo o processo da pesquisa, mais do

    que um conceito, a exotopia deve ser encarada como uma atitude, na qual o

    pesquisador opta por manter o afastamento de seu objeto e da situação

    vivenciada com os demais participantes da pesquisa, para que ocorra uma

    melhor compreensão desse objeto, dessa situação.

    Nesse sentido, essa relação exotópica é o que mantém o equilíbrio entre

    pesquisador e pesquisado, proporcionando que ambas as vozes sejam ouvidas

    e consideradas. O autor procura esclarecer o conceito no trecho a seguir:

    A diferença volitivo-emocional e concreta e a posição ético-cognitiva da personagem no mundo têm tamanha autoridade para o autor que este não pode perceber o mundo concreto apenas pelos olhos da personagem nem deixar de vivenciar apenas de dentro os acontecimentos da vida dela; fora da personagem o autor não consegue encontrar um ponto de apoio axiológico convincente e sólido. Evidentemente, para que venha a realizar-se um todo artístico, ainda que inacabado, são necessários alguns elementos de acabamento; logo, urge colocar-se de algum modo fora da personagem [...], caso contrário teremos um tratado de filosofia ou uma confissão-relatório pessoal, ou, por último, dada tensão ético-cognitiva encontrará vazão em meros atos-ações éticos da vida. (BAKHTIN, 2010a, p. 15).

    Quando consideramos as personagens como os produtores dos

    enunciados e o autor como a pesquisadora, compreendemos que a autoridade

    dos sujeitos envolvidos solicita ao pesquisador que vivencie o dizer desses

    sujeitos, ou seja, adentre nos dizeres e caminhe lado a lado para compreender

    os seus discursos. Porém, nesse movimento, é preciso também voltar para seu

    lugar de pesquisador e obter uma visão distanciada do seu “todo artístico”.

    Quando esse processo não ocorre, conforme a citação, a pesquisa perde sua

  • 42

    essência a adquire características de tratado filosófico ou de “confissão-

    relatório pessoal”.

    Nesse contexto, a exotopia é um conceito/atitude coerente com a

    proposta de pesquisa dialógica, apontada por Bakhtin, como também com a

    proposta interacionista, que preconiza a interação entre os sujeitos.

    Outro ponto que julgamos importante levantar é a proposta de

    intervenção da pesquisa interacionista, apontada por Freitas (2010). Segundo a

    autora, não há como não falar em intervenção, mesmo que esse termo seja

    posto em discussão, tendo em vista que as alterações e transformações

    provocadas pela interação entre os sujeitos trata-se de uma forma de intervir

    um na vida do outro.

    Diante do que foi discutido até então, a autora aponta algumas

    expressões que definem a palavra “intervenção” nesta pesquisa: “mudança no

    processo”, “transformação”, “re-significação dos pesquisados e pesquisador”,

    “ação mediada”, “compreensão ativa” (FREITAS, 2010, p. 19). São palavras

    que podem ser atribuídas ao próprio processo da pesquisa qualitativa

    interpretativista, que não possui uma ideia de intervir de forma monologizada e

    autoritária, mas compreende que todos os que estão nela envolvidos aprendem

    uns com os outros e dela saem transformados. Outro aspecto importante

    apontado pela autora é a questão da relevância maior conferida ao processo

    de transformação desses sujeitos, ou seja, às mudanças que ocorrem caminho

    da pesquisa; enquanto que o resultado seria apenas uma consequência desse

    processo de intervenção. Nas palavras da autora,

    Em nossas pesquisas está sempre implícita essa compreensão ativa, mas não há explicitamente uma intervenção planejada. Ao procurarmos atingir os objetivos propostos, responder as questões formuladas, estamos conscientes do processo dialógico entre sujeitos que irá acontecer. Processo esse que afetará de alguma forma seus participantes, que provocará mudanças, transformações nas pessoas podendo também interferir de alguma forma no contexto pesquisado. Estamos em nossas pesquisas muito mais interessados nesse processo e no que ele desencadeia do que em buscar resultados mensuráveis. (FREITAS, 2010, p. 20).

    A procura por resultados imediatos pode fazer-nos trilhar um caminho

    oposto ao apresentado na citação, gerando uma priorização por resultados que

  • 43

    respondam a um certo tipo de expectativa e o esquecimento da importância

    maior do processo que desencadeia nesse resultado.

    Sobre essa atitude intervencionista, Souza (2011) conclui que estar

    diante de uma pesquisa significa assumir a responsabilidade e unicidade diante

    dela, não atendendo, portanto, somente a interesses pessoais do pesquisador.

    A partir do conceito de ética bakhtiniano, a autora engloba na pesquisa

    intervencionista atitudes como a não universalidade dos sujeitos, relativização

    de verdades, responsabilidade e escuta do outro. Nas palavras da autora, “há

    no encontro do pesquisador e seu outro um compromisso ético com a produção

    de um conhecimento desinteressado” (SOUZA, 2011, p. 37), no qual esse

    “conhecimento desinteressado” implica fazer pesquisa sem focalizar em

    interesses privados. O conhecimento deve priorizar, antes de tudo, o homem

    em sua singularidade.

    Como vemos, as teorias que direcionam o nosso percurso metodológico,

    em suma, estão coerentes com a união que o Círculo bakhtiniano sugere entre

    arte, vida e cultura, além das propostas de dialogismo, responsividade e

    alteridade. Esses conceitos são abordados com maior profundidade na seção

    2.5.

    Finalizamos esta seção ressaltando a importância da questão ética

    dentro da pesquisa. Moita Lopes (2009) deixa claro que uma pesquisa pode ser

    considerada como ética quando opta por não causar “sofrimento humano” a

    nenhuma das partes envolvidas. Esperamos que o trabalho ora desenvolvido

    represente um exemplar dessa postura, ao conferir voz aos participantes,

    contribuindo para essas vozes com uma reflexão singular acerca dos

    enunciados analisados.

    2.3 PERCURSO METODOLÓGICO

    Ao constatar a presença dos posicionamentos