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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM ESTUDOS EM LITERATURA COMPARADA ASLAN BRUNO DA SILVA A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE NATAL 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

ESTUDOS EM LITERATURA COMPARADA

ASLAN BRUNO DA SILVA

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

NATAL 2018

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ASLAN BRUNO DA SILVA

A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como um dos requisitos para obtenção

de título de Mestre em Estudos da

Linguagem, área de concentração Estudos

em Literatura Comparada, sob a orientação

do Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira

Lima.

Natal/ RN

2018

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Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Sistema de Bibliotecas - SISBICatalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências

Humanas, Letras e Artes – CCHLA

Silva, Aslan Bruno da.

A paixão segundo G.H. : a alegria da alteridade / Aslan Bruno

da Silva. - Natal, 2018.

120f.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem.

Orientador: Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima.

1. A paixão segundo G.H. - Literatura - Dissertação. 2.

Clarice Lispector - Dissertação. 3. Sartre - Dissertação. 4.

Alteridade - Dissertação. I. Lima, Samuel Anderson de Oliveira.

II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 81:141.32

Elaborado por Heverton Thiago Luiz da Silva - CRB-15/710

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A PAIXÃO SEGUNDO G.H.: A ALEGRIA DA ALTERIDADE

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da

Universidade Federal do Rio Grande do

Norte, como um dos requisitos para obtenção

de título de Mestre em Estudos da

Linguagem, área de concentração Estudos

em Literatura Comparada, sob a orientação

do Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira

Lima.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________ Prof. Dr. Samuel Anderson de Oliveira Lima

Orientador

________________________________________ Profa. Dra. Marta Aparecida Garcia Gonçalves

UFRN – examinadora interna

________________________________________ Prof. Dr. Wellington Medeiros de Araújo

UERN – examinador externo

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A minha esposa e a minha filha, que me alegrou com sua vinda ao mundo ainda quando escrevia este trabalho. Juntas, ambas me fazem ser o homem mais feliz do mundo. A minha mãe, que sempre acreditou em mim e me forneceu as bases para me constituir como um ser humano mais ético, honesto e consciente do papel de cidadão.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e pelo destemor da busca pela inteligência, que me ajudou a encarar as dificuldades próprias da realização desta dissertação. A minha mãe, que, apesar de todas as dificuldades, não poupou esforços em oferecer uma educação de qualidade e por sempre se pôr à disposição de me cobrar o melhor de mim. A minha esposa, por me encher de vida e me fornecer a alegria de seguir em frente mesmo quando as dificuldades apareceram. Por todo o amor me doado gratuitamente, eternamente estarei agradecido. Ao meu orientador, Dr. Samuel Anderson, que me acompanhou com orientações, ensinamentos, bibliografias, indicações de alguns livros e que nunca se poupou em me ajudar em nenhum momento em que foi solicitado. Pela confiança em meu trabalho, meu muito obrigado. A todos os colegas da graduação e da pós, que acreditaram em mim e vibraram com as minhas conquistas no mundo acadêmico. As minhas professoras e meus professores do ensino básico, em especial a Tia Rosilma com quem soletrei minhas primeiras letras e com quem comecei a viajar no mundo da leitura. Com vocês adquiri bases suficientes para chegar até aqui. Os primeiros rabiscos logo se transformaram nas primeiras letras daquilo que agora tomam forma nesta dissertação. A todos vocês, meu eterno obrigado. Não poderia deixar de agradecer ao eterno Bruxo do Cosme Velho, por ter me apresentado o mundo da literatura. Com suas histórias, seus personagens, seu sarcasmo, sua ironia, seu humor, sua criticidade, sua poesia aprendi a viajar no magnífico e fantástico mundo da leitura. Machado de Assis, você sempre será minha referência não só na literatura, mas também no mundo da intelectualidade em geral.

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Aceito que eu existo, aceito que os outros

existam porque sem eles eu morreria, aceito

a possibilidade do grande Outro existir

apesar de eu ter rezado pelo mínimo e não

me ter sido dado. (...) Sinto que viver é

inevitável. (...) Ser às vezes sangra. Mas não

há como não sangrar pois é no sangue que

sinto a primavera (LISPECTOR, 1999,

p.141).

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RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo analisar a construção do Eu que se dá na obra de Clarice Lispector, mais precisamente no romance A paixão segundo G.H.. A fragmentação do Eu é uma marca do indivíduo da modernidade, o que faz com que tenhamos cada vez mais a necessidade de nos conhecermos e tomarmos consciência do mundo que nos rodeia, para assim atribuirmos um sentido para a existência. O que vemos nesse romance é a necessidade que G.H. apresenta de encontrar-se consigo mesma; a mesma necessidade apontada por sua autora. Mas esse processo de construção do Eu só se estabelece por meio do olhar do Outro, que é quem nos observa por completo em todos os aspectos. Para estabelecer essa relação entre literatura e alteridade iremos recorrer às ideias de Jean-Paul Sartre estabelecidas em seu tratado fenomenológico O ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Por meio de um Outro, muitas vezes inusitado e estranho, G.H. estabelece uma compreensão de si, cujo processo de construção da identidade apresenta-se como sendo tumultuado, desgastante, violento, desolador e inquietante. Abordaremos as ideias de Benedito Nunes, quem primeiro atribuiu a característica de existencialista à obra de Clarice. A partir do que disse esse estudioso faremos uma aproximação entre a literatura e a filosofia. Nesse processo de escrita, que é escritura de si, a narrativa de G.H. é também a narrativa da própria autora, Clarice, que por meio de sua personagem, vive a alegria atormentada da descoberta da existência. Elas descobrem juntas a alegria de viver, ainda que essa seja uma alegria “difícil". Palavras-chave: A paixão segundo G.H. Clarice Lispector. Sartre. Alteridade.

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RESUMEN

Esta investigación tiene como objetivo analizar la construcción del Yo que se da en la obra de Clarice Lispector, más precisamente en la novela “A paixão segundo G.H.” La fragmentación del Yo es una marca del individuo de la modernidad, lo que hace que tengamos cada vez más necesidad de conocernos y tomar conciencia del mundo que nos rodea, para así atribuir un sentido a la existencia. Lo que vemos en esta novela es la necesidad de G.H. de encontrarse consigo misma, una necesidad también presentada por su autora. Pero ese proceso de construcción del Yo sólo se establece por medio de la mirada del Otro, que es quien se nos observa por completo en todos los aspectos. Para establecer esa relación entre literatura y alteridad recurriremos a las ideas de Jean-Paul Sartre establecidas en su tratado fenomenológico “El ser y la Nada: Ensayo de Ontología Fenomenológica”. A través de un Otro, a menudo inusitado y extraño, G.H. establece una comprensión de sí, cuyo proceso de construcción de la identidad se presenta como tumultuoso, desgastante, violento, desolador e inquietante. Discutiremos las ideas de Benedito Nunes, aquél que primero trató como existencial la obra de Clarice. Haremos, por medio de lo que enseña ese experto, un acercamiento entre la literatura y la filosofía. Discutiremos en este proceso de escritura de si, la narración de G.H. que es también la narración de la propia autora, Clarice, quien, por medio de su personaje, vive la alegría atormentada de la existencia. Ellas descubren juntas la aleria de vivir, aunque esa sea una alegría “difícil”.

Palabras clave: A paixão segundo G.H. Clarice Lispector. Sartre. Alteridad.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

2 CLARICE E A CRÍTICA ........................................................................................... 25

2.1 ANTONIO CANDIDO: “UM FUTURO PROMISSOR” PARA CLARICE

LISPECTOR .................................................................................................................. 27

2.2. SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA” ....................................... 30

2.3. MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS

TREVAS” ....................................................................................................................... 37

2.4. BENEDITO NUNES: “LITERATURA EXISTENCIAL” ........................................ 41

2.5. OLGA DE SÁ: A ESCRITA COMO MANIFESTAÇÃO EPIFÂNICA ................. 58

3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A

EXISTÊNCIA ................................................................................................................. 61

3.1 FILOSOFIA E LITERATURA: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA ........ 61

3.2 ALGUNS CONCEITOS FILOSÓFICOS IMPORTANTES .................................. 65

4 CLARICE E OS OUTROS ............................................................................................ 68

4.1 JANAIR: O OUTRO SOCIAL ................................................................................. 69

4.2. A BARATA: O OUTRO ANIMAL .......................................................................... 77

4.2.1 G.H. e a barata: uma literatura animal-humanizadora ......................... 81

4.3 O LEITOR: A TESTEMUNHA DO RELATO; A TERCEIRA PERNA DE G.H.; A

ALMA JÁ FORMADA DA ALTERIDADE .................................................................... 89

4.3.1 A ressureição do autor: ressurgimento pela alteridade entre autor e

leitor ................................................................................................................... 90

4.4 LITERATURA: LINGUAGEM DE ALTERIDADE ............................................... 101

4.4.1 A linguagem: uma atitude para com o Outro ...................................... 103

4.4.2 Questão de estilo: o império do silêncio ............................................. 110

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................. 114

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 119

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1 INTRODUÇÃO

“Delicada e humana”, “boa”, “simples e sem mistérios”, “intocável”,

“belíssima”, “sedutoramente atraente”, “antissocial”, “esquisita”, “complicada”,

“difícil”, “mística”, “bruxa”, “distante”, “vaidosa”, “mãe dedicada”, “sofrida”, “diferente”,

“aventura espiritual”, “personalidade lisérgica” (GOTLIB, 2013)1. Esses são os

adjetivos com os quais seus amigos mais próximos tentam definir a personalidade

de Clarice Lispector (doravante, CL). Mas como definir aquela que se apresenta com

uma identidade tão mutável? Aquela que se vê com “várias caras. Uma é quase

bonita, outra é quase feia. Sou o quê? Um quase tudo” (LISPECTOR, 2008, p. 15).

Clarice é um enigma para si mesma. Um “quase”, uma estranha nisso que

chamamos vida.

Este trabalho não objetiva traçar um perfil biográfico dessa personalidade tão

misteriosa e responsável pela introdução de um novo estilo nas letras do Brasil.2 No

entanto, como vai ficar claro no decorrer desta dissertação, entender um pouco da

literatura de CL requer que se faça uma relação entre autor e obra, uma vez que a

condição de existir, nessa autora apresenta-se, também, inerente a sua produção

literária. Ainda que sua obra não se traduza em simples autobiografia, mas sim em

literatura de vida, literatura de existência. Aqui, vida e literatura se traduzem em

forma que desvenda os mistérios da existência. É o que podemos ver ao se analisar

seus contos, suas crônicas e seus romances.

O primeiro autor - conforme nos apresenta Olga de Sá (1979) - a relacionar a

literatura de CL com a filosofia existencialista foi Benedito Nunes. Precisamente no

ensaio A existência absurda (NUNES, 2009b, p.119), o autor afirma que a autora

compõe personagens com o Eu à mostra, isso é decorrente das constantes

ameaças e provocações sofridas por eles. Com o Eu ameaçado, acabamos

encontrando a “existência pura” que jorra nas suas composições. Nunes ainda deixa

1 Esses adjetivos foram retirados de depoimentos de amigos, funcionários, secretárias e parentes de Clarice

Lispector, contidos no primeiro capítulo intitulado “Perfis” da biografia da autora, organizada por Nádia Battella Gotlib e publicada em 1995 pela Editora Ática. Hoje esse trabalho já se encontra na 7ª edição pela Editora da Universidade de São Paulo. 2 Inúmeros autores são unânimes em apresentar o estilo de Clarice como inédito na literatura brasileira do

início do século XX. Segundo esses autores, a geração de 1930, com sua literatura regionalista, encontrava-se saturada, impondo, assim, a necessidade de uma nova forma literária, o que foi alcançado com a literatura clariceana. Dentre esses estudiosos, podemos citar: Antonio Candido, Olga de Sá, Benedito Nunes, Sérgio Milliet. Os textos estão indicados nas referências ao final desta dissertação e estão citados e comentados no Capítulo 1 desta dissertação, quando farei um apanhado crítico da obra da autora.

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claro que o que move os personagens nas histórias clariceanas é justamente o

“sentimento da existência”, responsável por desenvolver todas as demais sensações

sentidas por essas personagens. Mais adiante, no próximo capítulo, abordaremos

um pouco mais essa questão trazida pelo filósofo e ensaísta, quando faremos um

levantamento crítico da obra clariceana.

Esse e outros trabalhos que tratam da relação entre as obras de Clarice e a

filosofia do Existencialismo serão de muita utilidade para esta nossa dissertação,

uma vez que será utilizada essa teoria filosófica na construção de uma análise do

romance A paixão segundo G.H., publicado em 1964, pela Editora do Autor.

Durante todo esse estudo que se traçará aqui sobre esse romance, levaremos

este fato em consideração: CL usa sua vida como mote para sua produção literária.

É o que se pode identificar a partir das várias “pegadas” deixadas em seus textos,

quer seja em seus romances, quer nos seus contos, passando ainda pelas suas

crônicas, onde Lispector se sente mais à vontade para se mostrar a seus leitores e a

si mesma.

Essa marca de estilo é única e complexa na autora porque ela não faz

simplesmente relato do que viveu, mas sente, experimenta, revivifica, ressignifica,

compreende o profundo mistério de sua existência. Como disse Antonio Candido:

“Clarice escrevia simplesmente. Como quem vive. Por isso todas as vezes que foi

tentada a deixar de escrever, não conseguiu. Dizia: „Não tenho vocação para o

suicídio‟” (CANDIDO, 1984, p. XXII). E ao propor essa experimentação individual, a

autora acaba fornecendo bases para o leitor compreender sua própria existência.

Esse é o jogo literário criado por essa autora tão singular da literatura brasileira. Um

jogo existencial da literatura.

Para a compreensão deste trabalho que ora se inicia, faz-se necessário

entender a relação entre autora e sua obra, para compreendermos o que fazia ela

da literatura (e por sua vez o que a literatura lhe causou). Para iniciar, serão

explicitadas essas “pegadas”, para verificarmos, por meio de exemplos práticos a

presença do ser chamado Clarice Lispector em sua arte literária.

CL já demonstrava preocupação com essa questão de se mostrar nas suas

crônicas. Afirma ter relutado muito antes de aceitar esse ofício, o que só se

concretizou por imposições da necessidade financeira pela qual passava na época.

A preocupação de ter sua identidade revelada nas crônicas, a levou a refletir sobre

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essa questão várias vezes no início de sua carreira como jornalista: “assinando,

porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me um pouco como se estivesse

vendendo minha alma.” (LISPECTOR,1999a, p.29). Seria um defeito falar de si por

meio da literatura? Pura modéstia. O falar-se é a grande questão que move a

produção literária de CL.

Não será demais afirmamos que esse medo advém da crítica da época. CL,

no início de sua carreira como escritora, foi constantemente acusada de cometer

alguns defeitos em sua produção literária. Não queria, portanto, ser vista como

autora autobiográfica. Seria um argumento muito fácil de ser disseminado e bastante

difícil de ser refutado, diante de análises superficiais de seus escritos.

Se recorrermos às suas primeiras crônicas, veremos enfaticamente a sua

insistência nesse ponto. Mas por que, mesmo sabendo que os críticos enxergariam

como defeito, CL sempre se apresentava ao seu leitor por meio de sua escrita?

Simplesmente porque falar de si, traduzir-se a si mesma, escrever-se, falar-se eram

consequências inevitáveis do seu ato de escrever. Escrita e vida andam nesse estilo

literário intimamente ligadas, como os dois lados de uma moeda: um inexiste sem o

outro.

A relação de Clarice com a escrita é muito forte, começou muito cedo e se

fortaleceu graças a uma cultura tradicional preservada pelo pai. Pinkas, apesar de

muito pobre, dedicava-se à leitura, principalmente de periódicos: recebia jornais de

New York e possuía um gosto muito especial por música. A mãe escrevia poemas e

diários, o que Clarice só descobriu depois de muito tempo por ocasião do casamento

do seu filho, Paulo. Suas irmãs Tania e Elsa também escreviam livros técnicos e

literários, respectivamente. Elisa escreveu romances, contos e uma autobiografia.

De todas as produções de sua irmã a mais aclamada é No exílio (1948), obra na

qual ela conta toda a história de luta, sofrimento e “salvação” de sua família. Como

vemos, Lispector não foi a única de seu clã a utilizar a linguagem de maneira

artística..

Clarice, desde muito cedo, foi fissurada por histórias. Fabulava antes mesmo

de saber ler e escrever: “Bom, antes de ler e escrever eu já fabulava. Inclusive eu

inventei com uma amiga minha meio passiva uma história que não acabava mais.

Nunca. Era o meu ideal que uma história nunca acabasse.” (LISPECTOR,

Entrevista, MIS-RJ, 1976). Por que uma história que nunca se acaba? Porque a

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história preferida dessa autora é a história da vida, e vida nunca se acaba. Isso

demonstra a profundidade da relação entre ela e a literatura: vida e escrita se unem

construindo um ser em constante transformação, um ser que aprende com a

dinâmica da escrita a difícil arte de viver.

Transformação que só é possível quando se possui conhecimento de si,

nesse caso conhecimento que só se adquire por meio da revelação da intimidade

conseguida na escrita literária. Assim está CL, revelada por completo, com sua

intimidade à mostra, ainda que essa não seja uma intimidade supérflua de segredos

que contamos aos mais próximos com medo de que alguém os descubra, por

exemplo. Por mais que tente disfarça, é nítido que seu esforço incorre em um

grande fracasso, o que se pode perceber em algumas tentativas, nas quais a autora,

certamente por medo de ver seus textos acusados de literatura fraca, biográfica,

tenta camuflar sua presença.

Em A hora da Estrela (1998b), o narrador é masculino e dissociado da

personagem. Em A maçã no escuro (1961), há um personagem masculino, Martim.

Em A paixão segundo G.H. (2009a), a personagem principal assina com duas letras,

assim como CL, na dedicatória do romance. Enfim, várias são as tentativas de não

se mostrar no texto que produz. No entanto, o leitor que se debruçar na tarefa de

leitura de tais textos logo verá que naquelas linhas o que existem, na verdade, são

expressões do mais íntimo de uma autora que desde a primeira palavra escrita tenta

transformar, por meio da literatura, a vida em existência pura.

É importante dizer que os momentos de introspecção da narradora no meio

da narração não se tratam de digressões. Não acontece “o momento” em que CL se

apresenta no texto narrado, desfocando a atenção do leitor para algo que destoa do

conteúdo que estrutura a história narrada, porque o que se narra são experiências

vividas, reais e não, simplesmente, história ficcional. Desde a primeira palavra

escrita, a vida da autora é que está sendo escrita e quem a escreve acaba existindo

também sob forma de literatura. O que acontece é que, conforme avança na

narração, a autora acaba perdendo o controle da situação e a escrita de si acontece,

por mais que se tente disfarçar, como vimos anteriormente, tornando inevitável a

autorrevelação na história que está sendo composta.

Essa presença se dá porque Clarice não só produziu literatura, simplesmente.

O processo de escrita da autora é bem mais complexo do que os autores que

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apenas transformam o mundo real em ficção. Ao contrário desses, que inventam um

universo paralelo com suas histórias, CL não inventa nada, ela sente (esse processo

é sinestésico) a vida por meio de seus escritos, que mais do que história, são

“pulsações” de vida, um modo de tornar mais tolerável a vida. Escrever era

experimentar a existência, o momento em que a vida se dá. Como ela mesma falou

em uma célebre entrevista, escrever era viver, pois “quando não escrevo, estou

morta”. Mas aqui é preciso entender o significado dessa palavra “viver”. Não se está

utilizando de forma romantizada. Viver era mesmo escrever, e escrever era viver, um

modo distinto de encontrar o sentido da vida, o momento no qual a existência

acontece. Com a escrita, a autora significa ao máximo a existência do ser chamado

Clarice Lispector. Por isso, ao tratarmos da literatura dela não podemos deixar de

lado a sua existência, seus momentos vividos, suas experiências sentidas, sua vida.

Ela mesma deixa claro na crônica Outra Carta (LISPECTOR, 1999a, p.79):

“quanto a eu me delatar, realmente isso é fatal, não digo nas colunas3, mas nos

romances. Estes não são autobiográficos nem de longe, mas fico depois sabendo

por quem os lê que eu me delatei.” Nádia Gotlib, na biografia que produziu sobre

Lispector, acena para esta questão: “ficção e autobiografia fundem-se no

imponderável. Uma imita a outra.” (GOTLIB, 2013, p.411). Escrever para CL sem

sombra de dúvida era muito mais importante do que até mesmo viver, pois, a vida se

dava e se concretizava por meio da expressão artística da linguagem. É o que

afirma a pesquisadora Berta Waldman:

há autores em relação aos quais os dados da vida entremeiam com a obra, compondo um único objeto. Para Clarice Lispector, no entanto, o fato importante, o acontecimento maior foi certamente o texto. Nele e a partir dele é possível levantar não os seus dias, mas o seu modo de viver os dias. E de morrer. (WALDMAN,1992, p. 14)

O romance A paixão segundo G.H. foi escrito em 1964. Sobre esse período

da escrita do livro a própria autora afirma: “é curioso, porque eu estava na pior das

situações, tanto sentimental como de família, tudo complicado, e escrevi A paixão...,

que não tem nada a ver com isso.” (LISPECTOR, Entrevista, MIS-RJ, 1976). Mais

uma tentativa de se desvincular do texto produzido, mas essa é, como as outras,

uma tentativa inútil. Ao se aprofundar um pouco mais na leitura da narrativa ver-se-á

que a autora se faz presente como criadora da história que temos em mãos, história

3 Clarice estava escrevendo para a sua coluna no Jornal do Brasil.

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na qual o autor objetiva encontrar o leitor para, junto com ele, compreender a

experiência transformadora que aconteceu num passado recente.

O romance já começa mostrando-se diferente pela dedicatória de CL. Ela, ao

contrário da normalidade literária da época, resolve dedicar seu romance não a

alguém em específico, com quem teve fortes ligações. Escolhe, pois, dedicar a um

leitor:

A POSSÍVEIS LEITORES Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria. C.L. (LISPECTOR,2009a,).

Para muitos, essa dedicatória é apenas um detalhe. É mais que isso, é um

forte indício de que o que Clarice procura com a escrita desse romance é construir

uma alteridade com o leitor, um alguém com quem, por meio da linguagem, viaje

com ela na experiência pela qual passou no dia anterior. E não é simplesmente

porque ela necessite de uma companhia ou deseje ter o leitor ao seu lado, já que

está escrevendo um livro. A presença do leitor em seus escritos é a necessidade

que ela tem de encontrar o sentido de ser na sua vida, não nos esqueçamos de que

ela está produzindo literatura de vida, está produzindo a sua própria vida com a

escrita da literatura, o que só é possível por meio da visão que o Outro apresenta de

si.

Antonio Candido (1970) parece que estava certo quando prenunciava o

surgimento de um estilo inédito, como, desde Machado, não se via no cenário

literário brasileiro, naquela época (época da publicação do romance de estreia de

Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, 1944). Parece-nos que a autora

apropria-se do estilo inovador com o qual Machado de Assis inicia seu célebre

romance, Memórias póstumas de Brás Cubas. Se Machado de Assis inovou a

literatura brasileira no século XIX, Clarice propõe um novo caminho para a arte

literária brasileira no século XX. Parece um pouco ousado atribuirmos a

característica de inovação a Clarice em um período no qual existiram autores tão

consagrados, como João Guimarães Rosa, Rachel de Queiróz, entre outros. No

entanto, sem diminuir a importância e incalculável relevância desses outros autores

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no projeto do Modernismo literário brasileiro, acreditamos que a ousadia de Mário de

Andrade e Oswald de Andrade ecoa nos escritos de Clarice, sobretudo no que diz

respeito à utilização do plano da expressão. Esses três autores usaram a língua até

as últimas possibilidades de significação e junto com ela (a língua), Clarice chegou

ao cume da montanha da representatividade linguística da mente humana. Dentre

todas, essa é a grande contribuição dessa autora, que sem dúvidas, apresentou à

literatura brasileira um novo estilo de escritura.

A inovação de “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver

dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas” (MACHADO DE

ASSIS, 2010) ressurge em Clarice quando do seu apelo para que seu livro não seja

lido por qualquer pessoa. Em uma dedicatória que mais parece um apelo, a autora

dedica seu romance a “pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a

aproximação do que quer que seja, se faz gradual e penosamente (...). Aquelas

pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém”

(LISPECTOR, 2009a, dedicatória). Enfim, a autora parece definir o perfil do público

que almeja para o seu romance.

Estaria, com essa dedicatória, a autora em um ataque de megalomania?

Estaria ela, prepotentemente, escolhendo seu público? Não. Prepotência e

megalomania não são, nem de longe, características da escrita de Clarice. Então,

por que, sabendo ela que a obra de arte não pertence ao criador e que, depois de

concluída é patrimônio de todos e quantos a desejem, Clarice seleciona seus

leitores?

Não se trata de uma seleção. Trata-se de um aviso. A autora, nessa

dedicatória, alerta seus leitores que quem decidir ler o que se segue precisa estar

livre de preconceitos. G.H. precisa de uma “mão” segura com quem caminhará na

magnífica experiência que está por se iniciar.

Além disso, não é qualquer pessoa que procura um livro da autora para ler.

Isso porque, de maneira equivocada, disseminou-se a ideia de hermetismo como

marca registrada de sua escrita, o que está mudando graças ao interesse,

sobretudo, de inúmeros pesquisadores que tentam desconstruir com seus trabalhos

essa mistificação. De qualquer forma acreditamos que a dedicatória do romance não

é uma seleção da própria autora, mas sim um desejo de que o leitor comece a

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mudar sua essência, pois ao terminar a história que possui em suas mãos, ele não

mais será o mesmo.

A paixão segundo G.H., único romance de CL escrito em 1ª pessoa, trata-se

da história de uma mulher de classe média alta identificada apenas com as iniciais

G.H. Ela acorda, um dia depois de ter demitido a empregada e vai tomar café. Na

mesa, entre um gole e outro de café e algumas bolinhas feitas com o miolo de pão

que acompanha a bebida, essa personagem decide ir ao quarto de sua funcionária,

situado no final do apartamento.

Durante o percurso até chegar ao local, G.H. vive um verdadeiro calvário

interior, inicia-se aí uma perturbadora desconstrução do eu. Ela espera adentrar um

local sujo, desarrumado, sem vida, mas para sua surpresa encontra um ambiente

impecavelmente limpo, arejado, iluminado e, por isso, desconcertante. Tamanha

organização causa em G.H. uma tormenta profunda, uma verdadeira

desorganização interior, “meu coração embranqueceu, como cabelos embrutecem”

(LISPECTOR, 2009a, p.46). A sensação estranha aumenta quando a personagem

se depara com um desenho, uma inscrição, que mais se parece com uma pintura

rupestre. Trata-se de três seres: dois humanos, um com formato de homem, outro

com formato de mulher, os dois acompanhados de um animal, um cão. Tal desenho

fora feito pela empregada, Janair.

O único elemento destoante da organização implacável que configura o

quarto surge de um armário vazio. É uma barata, um animal nojento, sujo, com odor

forte e característico, um inseto ancestral que causa em G.H. repulsa, medo, nojo,

asco, tormenta:

De encontro ao rosto que eu pusera dentro da abertura, bem próximo de meus olhos, na meia escuridão, movera-se a barata grossa. Meu grito foi tão abafado que só pelo silêncio contrastante percebi que não havia gritado. O grito ficara me batendo dentro do peito. (LISPECTOR, 2009a, p.46)

Os sentimentos em CL são complexos e paradoxais. Ao mesmo tempo em

que a barata causa repulsa, desperta na narradora também uma atração fatal. Ao

descobrir-se diante do inseto, depois de passado o momento do impacto do primeiro

contato, ela se vê atraída pela maravilha que é o animal, cuja ancestralidade

remonta a tempos anteriores ao surgimento do homem na terra, ou seja, “quando o

mundo era quase nu elas já o cobriam vagarosamente” (LISPECTOR, 2009a, p.47).

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É a barata a responsável pela empreitada de G.H. de viajar em seu próprio interior.

O inseto é a via de acesso ao mundo enigmático que é a existência humana. Essa é

outra face da literatura de CL, quando os humanos se animalizam e se igualam à

condição inumana desses seres.

A paixão segundo G.H. é um livro de descobertas. A principal delas é sobre o

ser: “Como é que se explica que o meu maior medo seja exatamente: a ser?

(LISPECTOR, 2009a, p.11). Descobrir o que se é e também encontrar o grande

mistério que é a vida, o que é existir, como se dá a existência: “como é que se

explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for sendo?”

(LISPECTOR, 2009a, p.11). O que sou? é a grande questão que move CL a produzir

literatura, pois por meio da linguagem ela consegue se mostrar a si mesma e com

isso encontrar respostas para suas indagações. Esse processo está inteiramente

presente na constituição do romance que se está analisando aqui. Aliás, A paixão

segundo G.H. parece ser um manual de bordo de uma viagem inesquecível ao

interior humano. Ao lê-lo, seus leitores estarão iniciando uma autodescoberta por

meio do processo de descobrimento de si mesmo vivenciado por uma personagem

que está, durante toda a narrativa tentando descobrir o que é.

Descobrir o que se é só é possível por meio do Outro, cujo papel fundamental

é o de “explicar” ao eu o significado de ser. Só se consegue descobrir por inteiro o

que se é com o auxílio do Outro, pois é ele quem me vê por completo, somente o

Outro pode me fazer compreender com exatidão o que é isso que se chama “eu”. O

romance do qual se propõe uma leitura já é desde o início, portanto, um processo de

alteridade4. Como podemos perceber já na dedicatória, onde há uma delimitação de

uma espécie de leitor, onde a autora idealiza um outro para satisfazer seu desejo de

ser.

Somente o Outro é capaz de me ver por completo; somente ele pode me ver

pelas costas e mais, somente o Outro pode ver a minha face, que é a minha

identidade. Ou seja, é por meio da leitura que o Outro faz de mim que tomo

consciência plena do que sou e de qual a minha essência na existência. O eu só é

em função do Outro, portanto.

4 O conceito de alteridade será deixado claro durante a leitura deste trabalho. No entanto, no Capítulo 2,

apresenta-se o conceito filosófico do termo Alteridade segundo o Dicionário filosófico de André Comte-Sponville.

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Será analisada a existência (o existencialismo) em CL e isso implica pelo

menos duas atitudes: analisar como se dá a presença da autora em seu escrito,

como se verá de modo mais detalhado no capítulo quatro deste trabalho. Depois, é

necessário entender que a resposta para a pergunta “O que sou?”, que se desdobra,

por sua vez em outra indagação: “O que é ser?, ou seja, o que significa existir?,

necessita do Outro para ser construída.

Para o auxílio nessa análise do processo de alteridade em CL, utilizar-se-á a

teoria existencialista de Sartre, que afirma, em O ser e o nada: “o Outro é o

mediador indispensável entre mim e mim mesmo: sinto vergonha de mim tal como

apareço ao Outro.” (SARTRE, 2015a, p.290).

Sartre apresenta essa relação eu-Outro como uma relação de objetos: “e,

pela aparição mesmo do Outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo

sobre um objeto, pois é como objeto que apareço ao Outro.” (SARTRE, 2015a,

p.250). Isso não quer dizer, como deixa claro o próprio autor, que essa relação se dá

em espelhamento, ou seja, o eu não se enxerga no Outro como se estivesse, para

usar o exemplo do próprio filósofo, diante de uma fotografia na qual eu não estivesse

do meu agrado.

Para que a alteridade aconteça, para Sartre, é necessário que o eu reconheça

que é como o Outro o vê. Esse reconhecimento causará naquele um entendimento

do que é. O que acontece é que o eu não consegue colocar-se na função de objeto

para se ver a si mesmo, fazendo-se, portanto, necessário tornar-se objeto para o

Outro que lhe dará um retorno do que viu. A certeza do que se é acontecerá com a

apropriação e reconhecimento do que o Outro viu por parte do eu, um processo de

reconhecimento que se dá por meio da vergonha, causada pela visão estabelecida

nessa relação.

Mas isso não significa, porém, a aceitação passiva da ideia de si, pelo eu, do

que o Outro viu. É possível que haja conflito nessa relação. E sempre há. O eu pode

não aceitar como verdade o que o Outro diz dele. Mas como saber se o que o Outro

diz de mim é verdade? Pode acontecer de o eu não aceitar? Como o eu pode saber

que existe outra visão de si que não seja a do Outro? A resposta a essas

indagações é a concretização de um conflito ocasionado pela leitura feita de mim

que pode não agradar. Em CL, o eu, passivamente, aceita ou, para melhor

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utilizarmos o termo existencialista, o eu se apreende no Outro. Porém, o que há é

um estranhamento do Outro que carrega do eu uma visão.

A náusea sentida não é na visão que o Outro expõe do eu, mas sim em quem

é esse Outro. Causa nojo, por exemplo, que o eu seja traduzido a partir de

informações trazidas por uma barata. A hostilidade toma conta desse momento: “a

hostilidade me tomara. É mais do que não gostar de baratas: eu não as quero. Além

de que são a miniatura de um animal enorme. A hostilidade crescia.” (LISPECTOR,

2009a, p. 49)

Não há controle sobre o Outro. Qualquer um é livre para me ver e não há

como o eu impedir o Outro de o ver, simplesmente porque não existem meios a

serem utilizados para o eu não existir diante do Outro, ou seja, diante do outro nunca

deixarei de ser olhado. Consequentemente, serei obrigado a sempre me reconhecer

na visão construída de mim, mesmo quando fingem que não me veem. Não há,

portanto, como se ver livre da visão do Outro. G.H. tentou se livrar desse processo

quando estava no quarto e se deparou com a barata: “não, eu não arrumaria nada –

se havia baratas não. A nova empregada que dedicasse seu primeiro dia de serviço

àquele escrínio empoeirado e vazio.” (LISPECTOR, 2009a, p.48), o que não ocorreu

dada a força de atração que o outro já impusera sobre ela.

O quarto, metáfora para o encarceramento provocado no eu com a visão do

Outro, se já não pertencia a G.H., agora (no encontro da personagem com a barata)

é que não pertence mesmo. Esse ambiente tornou-se o invólucro da identidade do

eu, nesta bolha existem o eu e o Outro, que se torna uma parte do eu por construir

uma leitura dele. Não há mais como fugir desse processo: “Eles [Janair e a barata]

me impediam de sair e apenas com este modo simples: deixavam-me inteiramente

livre, pois sabiam que eu já não sairia mais sem tropeçar e cair” (LISPECTOR,

2009a, p.48). G.H sentia medo, o medo de cair e chegar ao chão e se igualar à

posição da barata.

A relação do eu com o Outro irá permear toda a narrativa de G.H. Toda ela

será o relato da construção/descoberta do eu a partir do olhar do Outro. Essa

relação constitui-se do ponto chave deste trabalho. Entender quais são esses Outros

e como eles se constituem, nessa multiplicidade e sua relação com o Eu será o

objetivo desta dissertação. Propõe-se o seguinte. A construção da identidade de

autora de Clarice Lispector se dá, em A paixão segundo G.H., por um processo de

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alteridade constituído de quatro Outros; a linguagem, por meio da qual o eu se torna

o objeto e assim se deixa ver por si mesmo; o leitor, que constitui o ser para quem a

autora “se fala” e que a acompanha na incrível descoberta pela qual passou e é

também o ser que confirma a identidade de autora de CL, afinal um autor escreve

para alguém o ler; a barata, ser responsável por despertar a náusea

desencadeadora do processo epifânico5 gerador da descoberta do eu; e a literatura

propriamente dita, a arte de utilizar a linguagem para refletir a vida.

Escrever é para Lispector conhecer a essência humana e descobrir a

arquitetura interna do ser humano, necessidade que a motivou em todas as suas

produções. Esse conhecer-se a si, não se faz, reiteramos, sem a presença do Outro.

Não há como construir uma análise verdadeira do processo de alteridade presente

nos escritos dela se não se analisar a presença do Outro nas linhas que os

compõem. Escrever, para ela, era uma arte, mas estar na presença do outro era

uma necessidade quase como matar a sede, pois a busca de si é constante.

Assim é que, leitor, linguagem, barata (que representa a animalização do

homem) e literatura constituem-se, na verdade, de um todo: a linguagem artística

utilizada por CL para desvendar os mistérios da existência e, principalmente, foram

inevitavelmente utilizados pela escritora para uma leitura de si mesmo. Leitura

alcançada graças a um projeto existencialista que transforma a linguagem em

expressão de si. Descobrir-se a si mesmo, desvendar os mistérios do eu por meio da

linguagem, por mais doloroso que se faça – como podemos comprovar com o

sofrimento de G.H. – é o caminho mais eficaz para a existência plena.

E esse caminho – escolhido por ela – é o amor. O amor no qual CL vivia

perpassa todas as suas realizações. Sua escrita, portanto, não poderia ficar isenta

desse “tempero” tão eficaz. Não se trata aqui do amor piegas, banal, do amor

romântico, esse amor é ágape, é doação total, dedicação e cuidado absolutos. Uma

entrega total de si mesma na busca daquilo que os psicanalistas chamam de desejo,

o objeto a, a causa de sua realização enquanto sujeito: mulher, esposa, escritora,

5 Trata-se de um conceito importante para entendermos um pouco a escrita de A paixão segundo G.H. Para

Olga de Sá (1979) “embora não exista em Clarice nem sequer a menção da palavra epifania, contudo pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante, essencialmente ligada à linguagem, enquanto questiona o próprio ato de nomear os seres”.(p.201). A estudiosa de Clarice ainda diz mais, no mesmo trabalho: “seus momentos epifânicos não são necessariamente transfiguração do banal em beleza. Muitas vezes, como marca sensível da epifania crítica, surge o enjôo, a náusea. A transfiguração não é radiosa, mas se faz no sentido do mole, do engordurado e demoníaco”. (p.199)

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jornalista, amiga, irmã, escritora... Em toda a sua obra Lispector é toda amor, é

cuidado. Amor porque “amar os outros é a única salvação individual que conheço:

ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”

(LISPECTOR, 1999b, p.56).

CL foi mulher, escrevendo. Foi mãe, escrevendo. Foi amiga, escrevendo.

Profissionalizou-se, escrevendo. Foi “gente”, escrevendo. E aqui se pode

perfeitamente explicar a frase que talvez marcou definitivamente a relação dela com

a escrita: “quando não escrevo, estou morta”6. É sobre essa face que se pretende

observar neste trabalho. É sobre a escrita de Clarice que irão tratar essas páginas

que agora tomam forma.

Analisar a obra de Clarice não é tarefa das mais simples, isso porque a sua

escrita é a escrita do silêncio, do oculto, do não dito. Seus livros não são para serem

lidos de uma vez, deglutidos como o doce preferido, quando se é criança. O leitor

clariceano precisa de concentração, de conectar-se com o mais profundo de sua

alma. Quem decidir se debruçar na leitura de Clarice precisa ser como pessoas “de

alma já formada” (LISPECTOR, 2009a, dedicatória).

Não é à toa que os escritos clariceanos há muito vêm sendo pesquisados,

analisados, interpretados à luz dos vários pensamentos científicos, como a

psicanálise, filosofia, a teoria literária. Esta análise pretende observar a construção

da alteridade. Sob o viés da filosofia existencialista, na escrita de CL especialmente

no livro A paixão segundo G.H., mas não nos limitaremos a esse romance, sempre

que necessário recorreremos a outros escritos da autora. Trata-se de uma pesquisa

bibliográfica, portanto.

No capítulo seguinte, faremos um apanhado crítico da obra da autora.

Buscaremos os trabalhos de crítica mais significativos realizados sobre ela.

Recorreremos aos textos de Antonio Candido, Sérgio Milliet, Benedito Nunes e Olga

de Sá. Escolhemos esses autores por motivos diversos. Com Candido e Milliet

teremos uma noção de como a crítica recebeu CL como nova escritora no cenário

literário brasileiro daquela época, uma vez que eles foram os primeiros a criticar os

seus romances. Esses dois autores, em nossa visão, conseguiram expressar em

seus estudos o que significou o surgimento de um estilo de obra tão diverso do que

6 Entrevista concedida ao jornalista Júlio Lerner, em 1 de fevereiro de 1977, para o programa “Panorama”, da

TV Cultura, de São Paulo.

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as letras do Brasil estavam acostumadas. Benedito Nunes foi um dos primeiros

críticos a aproximar a obra de CL ao existencialismo, característica que serve de

motivo a esta pesquisa. Olga de Sá realizou um dos mais completos trabalhos sobre

a escritura de CL, analisando questões como, por exemplo, epifania, tempo,

linguagem, além de realizar um dos mais completos apanhados críticos sobre a obra

de Lispector.

No capítulo três faremos uma síntese entre a relação da literatura e da

filosofia. É importante sabermos como esses dois campos de saberes se aproximam

e se interligam por meio da linguagem, produzindo os caminhos necessários para a

expressão do eu, da individualidade humana. A importância dessa abordagem deve-

se à pesquisa filosófica que engendramos nesta dissertação da obra literária de

Clarice Lispector. Apoiaremos nossa discussão sobre essa relação entre os dois

saberes, no pensamento de Benedito Nunes.

No capítulo “Clarice e os outros”, verificar-se-á como o pensamento de

alteridade de Sartre se configura na escrita clariceana. Verificaremos como se dá o

processo de construção do eu em A paixão segundo G.H. a partir do Outro. Quem é

o Outro para CL? Como ele é apresentado no texto? Como ele atua no processo de

alteridade com a autora no texto? São algumas das questões elucidadas nesse

capítulo. Apesar de apresentados de maneira individual em nossa organização,

esses Outros – responsáveis pelo processo de interação da personagem com

aqueles que a observam – são inteiramente intrínsecos dentro do processo de

alteridade literária.

No último capítulo, teceremos nossas considerações finais. Não são palavras

que tentam encerrar a leitura da obra de Clarice. Configuram-se como mais uma

possibilidade de reflexão sobre a escritura desse fenômeno de escritora chamado

Lispector. Optou-se, em todo este trabalho, por uma linguagem simples e sem

enfeites desnecessários.

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2 CLARICE E A CRÍTICA

Este capítulo será dedicado a um levantamento crítico da obra de Clarice

Lispector. Ao longo desses 73 anos (a contar da 1ª publicação da autora, o romance

Perto do coração selvagem (1943)), várias foram a vozes a se pronunciarem sobre a

escrita dessa autora baseando-se principalmente em suas marcas de estilo e suas

concepções de mundo. Os mais renomados críticos, dentre eles, Antonio Candido,

Sérgio Milliet, Massaud Moisés, Álvaro Lins, Benedito Nunes, só para citar alguns,

se debruçaram na análise do enigmático e inspirador mundo literário dessa

“personalidade lisérgica”, inserindo-a no universo literário brasileiro do século XX.

Clarice Lispector é, sem dúvida, uma das escritoras brasileiras mais

estudadas no universo acadêmico. Vários são os estudos realizados sobre a sua

vida e sua obra, sob formas de artigos, ensaios, teses, dissertações, biografias,

livros etc. O fato é que suas obras ainda têm muito a nos dizer. Seus vários

romances, contos e crônicas parecem estar mergulhados num universo infinito de

conteúdos, mesmo escrevendo pelas entrelinhas, como costumava dizer: “Mas já

que se há de escrever, que ao menos não esmaguem as palavras nas entrelinhas”

(LISPECTOR, 1999b, p.201). Aliás, é justamente no silêncio que sua obra mais fala,

quando a autora silencia e o leitor é convidado a experienciar o mistério da narrativa

no lugar da escritora: “sei que a mudez, se não diz nada, pelo menos não mente,

enquanto as palavras dizem o que não quero dizer.” (LISPECTOR, 1999b, p. 80).

Sobre isso ainda diz a autora,

Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando esta não palavra morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se pescou a entrelinha, podia-se com alívio jogar a palavra fora. Mas aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O que salva então é ler distraidamente (LISPECTOR, 1999b, p.295).

O primeiro livro escrito por Clarice foi Perto do Coração selvagem. Publicado

pela editora A Noite em 1943. Esse romance chega num momento de saturação da

literatura brasileira. A prosa histórica de cunho regionalista não estava mais dando

conta de sugerir reflexões acerca do nosso país, o que fez com que os críticos,

leitores, editores e autores buscassem uma inovação para as letras do Brasil. Se na

poesia estávamos vivendo o apogeu literário, com poetas como Carlos Drummond

de Andrade, Vinícius de Moraes, Murilo Mendes, Jorge de Lima e Cecília Meireles,

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dentre outros; a prosa estava já entrando em decadência, com seu modelo falido de

descrição histórica, ambiental, psicológica e social do homem sertanejo - no caso da

prosa regionalista nordestina – e do gaúcho, no caso da literatura regionalista

sulista. Surge, então, nesse período, Clarice Lispector, com um romance inovador

no que diz respeito à estrutura temática e no trato com a linguagem literária para a

época.

Com todo esse contexto de inovação, os críticos não demoraram em

reconhecer no novo romance uma renovação literária com força de apontar novos

rumos a serem seguidos nas letras brasileiras. Esses ventos de renovação recebem

nova corrente de ar com a estreia de João Guimarães Rosa com seu livro de contos,

Sagarana, em 1946. Os dois autores juntos, cada um ao seu estilo, definitivamente

impuseram uma reconstrução literária da prosa no Brasil do final do século XX. Essa

revolução, que preferimos chamar de inovação, não ficou restrita apenas a esse

período. Clarice segue sendo uma das mais importantes autoras da nossa literatura,

com seu estilo único e desestabilizador até hoje.

Embora não seja objetivo deste trabalho, antes de apresentar alguns textos

críticos sobre o romance A paixão segundo G.H., corpus desta dissertação, faz-se

importante comentar as principais críticas publicadas na estreia da escritora. São

escritos importantes para entendermos como CL se configurou no cenário literário

nacional como importante escritora. Selecionamos os mais relevantes dentro do

conjunto imenso de análises das narrativas da autora: os trabalhos elaborados por

Antonio Candido, Sérgio Milliet, Benedito Nunes e Olga de Sá.

Dentre tantos, esses foram os escolhidos para este trabalho por motivos

diversos. Candido foi um dos primeiros a publicar artigo de crítica literária sobre a

autora e um dos primeiros a destacar as inovações estilísticas da então jovem

escritora. Sérgio Milliet será lembrado aqui por também ser um dos pioneiros a tratar

sobre o assunto e insistir em alguns “defeitos” que enxergava nos escritos

clariceanos. Apesar de o crítico aceitar a nova autora como renovação literária, ele o

fazia com algumas ressalvas. Não que a literatura produzida por CL fosse tão

perfeita que não precisasse de observações, mas acontece que a crítica da época

não possuía condições suficientes de observar essa nova literatura sem a lupa

tradicionalista. Juntos, ambos os críticos, Candido e Milliet, também serão

importantes por oferecerem um pouco de entendimento de como foi recepcionada

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esse novo tipo de literatura. Benedito Nunes possui sua importância aqui por ser um

dos primeiros, e quem mais exaustivamente, aproximou a literatura de Clarice à

filosofia existencialista, tema desta dissertação. Já Olga de Sá será citada devido ao

brilhante e mais completo trabalho sobre a escritura clariceana já realizado, além de

nos fornecer o mais completo apanhado crítico da obra de Lispector dos anos 40

aos anos 70.

2.1 ANTONIO CANDIDO: “UM FUTURO PROMISSOR” PARA CLARICE

LISPECTOR

Uma das críticas mais importantes feitas sobre o livro de estreia de CL, Perto

do Coração Selvagem (1944), foi a de Antonio Candido em artigo intitulado No raiar

de Clarice Lispector, publicado inicialmente no jornal Folha da Manhã, em 16 de

junho de 1944 e depois reeditado em 16 de julho do mesmo ano; finalmente,

Candido, com algumas alterações, publica-o novamente em Vários Escritos (Duas

Cidades, 1970). Os comentários elaborados por ele foram de extrema importância

para a inserção definitiva de CL no mundo da literatura brasileira. Não só porque o

autor tece positivas críticas sobre a escrita dela – o que era de se esperar por quem

estreia na literatura –, mas, e principalmente, por ele elevar o romance inaugural

dela ao degrau dos bons romances brasileiros. Ele prenuncia um promissor futuro

para CL:

a intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e sobretudo, mais originais da nossa literatura, porque esta primeira experiência já é uma nobre realização (CANDIDO, 1977,

p.131)

Antonio Candido destaca no romance analisado a capacidade da autora de

“pensar efetivamente o material verbal” (CANDIDO, 1970, p.126), de pensar a

língua, de usá-la para adentrar “alguns labirintos mais retorcidos da mente”

(CANDIDO, 1970, p.126). Para ele, Clarice vai muito mais além da simples

ficcionalização da vida, o que costumavam fazer os autores brasileiros da época.

CL, ao passo de Oswald e Mário de Andrade, “procura estender o domínio da

palavra sobre regiões mais complexas e mais inexprimíveis, ou fazer da ficção uma

forma de conhecimento do mundo e das ideias” (CANDIDO, 1970, p. 126).

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O autor destaca que a romancista, em seu texto inaugural, distorceu a

normalidade literária do Brasil da época e o fez justamente por quebrar os

paradigmas da expressão. É isto que ele destaca em Clarice: sua linguagem

transforma afetivamente o cotidiano da vida levando seus leitores a observá-lo de

um ângulo introspectivo que, muito além da simples “recriação da realidade”, nos

obriga a utilizar a profundidade do eu para enxergar a existência. Nos romances da

autora, prevaleceu o princípio do estranhamento do objeto literário. Essa sensação é

causada justamente pela marca estilística, se não desenvolvida por ela, pelo menos

exaustivamente e de maneira mais completa utilizada pela romancista: a

transfiguração da palavra, a investigação significativa plena do significante

linguístico, o que foi alcançado quando a autora atingiu exatamente o ponto em que

a palavra foi capaz de ressignificar o pensamento.

No entanto, apesar de apresentar Perto do coração selvagem como romance

de estilo inaugural na literatura brasileira, Candido parece não estar plenamente

seguro da capacidade de Clarice Lispector. É o que percebemos quando ele afirma

não estar totalmente confiante da autenticidade do romance. O crítico diz que ainda

não se pode deixar de lado as hipóteses de “influências estrangeiras de inspiração”

(CANDIDO, 1977, p.128). Parece estar se referindo às várias críticas endereçadas a

Lispector, nas quais se afirma que a autora nada mais é do que uma releitura de

James Joyce e de Virgínia Woolf, acusação que conviveu durante muito tempo no

pensamento crítico da época e que a deixava muito irritada e decepcionada, pois

sempre afirmou não ter estabelecido contato com esses autores até o lançamento

de seu primeiro romance.

De fato, o romance inaugural possui uma epígrafe de James Joyce sugerida,

segundo Clarice, por um amigo seu, Lúcio Cardoso. Foi essa epígrafe a responsável

por reforçar a ideia de plágio tida pelos críticos da época. Sobre isso, irritada, a

própria CL dispara:

descobri essa legenda, o título do livro e o próprio Joyce quando o livro estava bem pronto. Escrevi-o em oito ou nove meses, enquanto estudava, trabalhava, e noivava – mas ele não tem influência direta do estudo, do noivado, de Joyce, do trabalho (MOSER, 2011, p.222).

Depois de elaborar um contundente comentário sobre a utilização inédita da

expressão linguística feita por Clarice, Antonio reluta em assumir a maestria da

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autora estreante. Ele conclui o artigo afirmando que o livro não pode ser enquadrado

no rol das “grandes obras”, mas “poucos como ele têm, ultimamente, permitido

respirar numa atmosfera que se aproxima da grandeza” (CANDIDO, 1970, p. 131)

Ele só não esclarece o que impede o romance de ser considerado como “grande

obra”, o que nos leva a concordar com Olga de Sá (1979) quando ela diz faltar

maturidade aos críticos da época. Não é que eles estivessem errados em suas

leituras, o problema é que eles estavam realizando suas críticas sobre um novo

romance seguindo um modelo já superado de crítica. Ou seja, CL também forçou a

mudança dos críticos a fim de que romances como o dela fossem melhor lidos e

interpretados.

Olga de Sá, ao apresentar a crítica de Antonio Candido, reforça a exaltação

do crítico à nova autora que se formara. Sá (1979, p.26) complementa sua

observação afirmando que

a ficção não é só uma aventura da imaginação. Pensamento e linguagem se duelam, em círculo. Enunciação e enunciado se afinam mutuamente (...) Clarice Lispector se anuncia como escritora que não se resigna à rotina literária e faz da descoberta do cotidiano uma aventura possível.

Ao lado de Antonio, Olga de Sá tece comparações do estilo único de Clarice

com os autores modernistas Oswald e Mário de Andrade. Candido vai ainda mais

longe ao aproximar a força literária da nova autora com a do mestre Machado de

Assis. De fato, para esses críticos, o trabalho literário realizado por ela se deu com

uma inovação no plano expressivo da linguagem, o que fizeram, com propósitos

diferentes, os autores do Modernismo e o mestre do Realismo brasileiro.

Em CL também encontramos mais do que a inovação, uma verdadeira

transformação na produção literária brasileira. A linguagem nela ressignifica o

mundo real, exaure-se até seu limite máximo para expressar a emoção e os

sentidos, ao passo que ela própria, a linguagem, se transforma em êxtase de

sensações, no próprio sentimento, em um jogo lógico no qual o plano verbal traduz o

plano da mente.

Machado de Assis transformou a literatura do Brasil com seu estilo único

marcado pela análise psicológica do indivíduo, que é visto como um ser social, ao

passo que os autores modernistas, sobretudo, transformaram a linguagem

petrificada que estava sendo utilizada pelos autores de sua época. Oswald e Mário

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mostraram como a língua poderia dominar “regiões mais complexas e mais

inexprimíveis” (CANDIDO, 1977, p.126). É nesse cenário que se insere CL,

inaugurando outro ciclo nesse movimento de renovação. Ela foi a responsável por

esgotar a palavra até a sua máxima significação, a ponto de significante e

significado se amalgamarem no momento exato da expressão linguística.

Significante torna-se, pois, o próprio significado deixando a palavra muda, sem dizer

mais, sem aproximar o eu do real. Essa é uma das grandes contribuições do

fenômeno literário chamado Clarice Lispector para a literatura brasileira.

Olga de Sá, encerrando a exposição crítica de Antonio Candido, baseia-se

nas palavras de Roland Barthes, para quem o escritor, por meio da palavra, é um

descobridor do mundo. Nesse descobrir, o autor apresenta um mundo às avessas,

desconcertante, uma vez que a literatura não apresenta respostas, apenas formula a

grande pergunta de interesse dos homens: o que é o mundo? “Uma pesquisa

enunciada numa pergunta [...] acerca do homem e do mundo, pergunta jamais

respondida e que se chama literatura” (SÁ, 1979, p.26). É exatamente isso que faz

Clarice: transforma-se em pergunta para indagar-se a si mesma e aos outros em

busca da resposta ao grande questionamento sobre o que é a vida. É o que ela nos

diz:

às vezes tenho a impressão de que escrevo por simples curiosidade intensa. É que, ao escrever, eu me dou as mais inesperadas surpresas. É na hora de escrever que muitas vezes fico consciente de coisas, das quais, sendo inconsciente, eu antes não sabia que sabia (LISPECTOR, 1999b, p. 254).

2.2. SÉRGIO MILLIET: “A ALEGRIA DA DESCOBERTA”

Outro crítico literário a tecer comentários sobre a obra de Lispector foi Sérgio

Milliet. Seus textos foram todos publicados em Jornais e depois compilados em uma

coleção chamada Diário crítico, que alcançou vários volumes.

No volume 2 (MILLIET,1944, p.27), Milliet se mostra muito contente por ter

encontrado um livro “cheio de qualidades” depois de vários anos de repetição

literária no Brasil de então. Diante do texto de CL, que para o autor é um “nome

estranho e desagradável pseudônimo sem dúvida” (MILLIET, 1944, p.27), o crítico,

com Perto do coração selvagem, diz serem interrompidos “dez anos de sossego sem

novos livros, sem editores sem rodapés” (MILLIET, 1944, p. 27). Enfim, o novo livro

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surgiu mostrando para o crítico que um novo estilo precisava acontecer. Vale a pena

revivermos a euforia com a qual o ele inicia o texto de opinião sobre o romance

inaugural da autora:

raramente tem o crítico a alegria da descoberta. Os livros que recebe dos conhecidos consagrados não lhe trazem mais emoções. Já sabe o que contêm, seria capaz de sobre eles escrever sem sequer folheá-los. Quando, porém, o autor é novo há sempre um minuto de curiosidade intensa: o crítico abre o livro com vontade de achar bom, lê uma página, lê outra, desanima, faz nova tentativa, mas qual! As descobertas são raras mesmo. Pois desta feita fiz uma que me enche

de satisfação (MILLIET, 1944, p.27).

Mas por que tamanha satisfação de Milliet? Quais argumentos utiliza para

justificar o ineditismo do romance que possui em mãos? Às respostas.

Ao folhear o livro por acaso ele se depara com a página 160 e por motivo

qualquer se dá ao trabalho de lê-la, talvez para quebrar o aborrecimento da

mesmice literária que o acompanhava há dez anos. É aí que, de cara, é tomado pela

força da escrita de Clarice. Sérgio acompanha a discussão de Joana, a protagonista

do romance, sobre o amor. Essa peronagem ainda não havia sido tomada pela

força avassaladora desse sentimento. Ainda não era capaz de enxergar a vida sob a

ótica do amor. Milliet acha o trecho que leu na já referida página, um misto de “estilo

nu” e “riqueza psicológica” (MILLIET, 1944, p. 28).

O crítico, então, enquadra CL numa nova categoria de escritores: os que

produzem o romance introspectivo, uma nova categoria de romance que propõe um

diálogo interior, ou melhor, o novo romance que surgira, “é todo ele um diálogo

interior” (MILLIET, 1945, p. 29). Sobre isso Milliet deixa claro que ela foi, pela

primeira vez na literatura brasileira, a responsável por introduzir esse estilo de

romance no Brasil.

A obra de Clarisse (sic) Lispector surge no nosso mundo literário como a mais séria tentativa de romance introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai além, nesse campo quase virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio o problema intelectual, vira o avesso, sem piedade nem concessões, uma vida eriçada de recalques (MILLIET, 1945, p. 32)

Entretanto, não é apenas na introspecção que se concentra a força do novo

romance. No plano linguístico também é visível a potencialidade desse fenômeno de

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escritora, aliás, é o estilo de linguagem adotado por ela que cria o tom introspectivo

da obra.

Clarice surge no cenário literário da época trazendo questões dos

modernistas no que diz respeito à utilização da linguagem. No entanto, ao contrário

daqueles que problematizaram a utilização da língua no fazer literário, a romancista

colocou à prova a máxima potencialização da expressão verbal. Isso resultou em

uma linguagem “única, fácil, poética, que não hesita em tomar pelos mais

inesperados atalhos, em usar as mais inéditas soluções, sem jamais cair, entretanto,

no hermetismo nem nos modismos modernistas” (MILLIET, 1944, p. 30)

A força da personagem Joana, no romance Perto do coração Selvagem, está

justamente na apresentação que ela faz, por meio da introspecção, da condição

humana. O que a personagem quer é alcançar o selvagem coração da vida, repleto

da “trágica e rica aventura da solidão humana” (MILLIET, 1945, p.30). Nessa

aventura incomum, Joana é capaz de dar vida e significados às suas próprias

experiências e isso é conseguido porque a autora atribui uma nova performance à

linguagem literária. A personagem transforma-se em coisa ao apresentar a coisa.

Por meio de um estilo que mescla forma e conteúdo, Clarice atribui à língua uma

“harmonia preciosa e precisa” (MILLIET, 1944, p.30), ela

tem o dom de dar às palavras uma vida própria. Ela as cria, nesse sentido de emprestar-lhes um conteúdo novo, inesperado, que acaba espantando a criadora e lhe enche o espírito de fantasmas. Não as domina mais, então, elas é que tomam conta dela (MILLIET, 1944, p.87).

Já no volume VII de seu Diário crítico (1981), Sérgio, apesar de reconhecer a

“originalidade de uma química sintática”, não vê com bons olhos o terceiro romance

publicado por CL, A cidade sitiada. O autor enxerga nesse livro defeitos de estilo

concentrados justamente no campo que apresentou Clarice como uma autora de

estilo inédito quando da publicação de Perto do coração selvagem, o campo

linguístico.

O rococó, imagens sem soluções de continuidade, um requinte que é um fim

em si mesmo, língua descosida e relaxada, verbiagem, exibicionismo insistente, são

alguns defeitos que estão presentes no terceiro livro da autora, conforme afirma

Milliet. O autor reconhece que CL possui um potencial e “grande talento”, no entanto,

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a preocupação da joia rara que ameaçava adelgaçar a visão da romancista acabou por subverter por completo a escrita, o rococó mascarou com sua interminável seriedade de ornatos a estrutura da obra, impedindo-nos de perceber e penetrar-lhe o espírito. E, o que me parece mais grave, a forma virou fórmula (MILLIET, 1981, p. 33).

O que nos parece é que – e aí não apenas Sérgio Milliet, mas a crítica em

geral daquela época –, os críticos literários não assumiram, de fato, seus

posicionamentos críticos apresentados na estreia da escritora. No caso de Milliet, o

interessante é o vermos afirmar, ao criticar Perto do coração selvagem, que a autora

empresta um conteúdo novo às palavras a ponto de não mais as dominar, mas ser

dominada por elas, e agora, nesse outro romance, apresentar a linguagem utilizada

pela autora como sendo rococó, imagens sem soluções etc.

Como pode uma autora desconfigurar sua escrita tão rapidamente e levar seu

estilo a níveis tão antagônicos entre um livro e outro? O que acontece é que, como

vimos, faltou aos críticos de Clarice um pouco de coerência em seus pensamentos.

Ao apresentarem-na como uma inovação nas letras do Brasil de então, o mínimo a

se esperar é que se recebesse sua nova forma de produzir literatura de maneira

integral e sem imposições de condições de forma e estilo. Se sua linguagem era

inovadora seria necessário que o público crítico da época abandonasse as lentes

tradicionais utilizadas nas análises dos romances da escritora brasileira e, assim,

organizasse uma crítica comprometida com o rompimento de barreiras do

tradicionalismo literário como propunha a literatura brasileira do final da primeira

metade do século XX.

Sobre a questão de forma e conteúdo utilizaremos a crônica de CL, intitulada

Forma e conteúdo, para respondermos a crítica de Milliet.

Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo, em matéria de escrever; até se diz: o conteúdo é bom, mas a forma não etc. Mas, por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha. Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não

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saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única (LISPECTOR, 1999b, p. 254-5).

Nessa crônica, como fez em várias outras produções, Clarice, chateada,

parece responder à crítica da época que insistia, por meio de alguns críticos

literários, impor condições e limites para aceitar sua obra. Nesse texto, ela deixa

claro que para se debruçar em sua obra é necessário quebrar os paradigmas

tradicionalistas e impor novas condições para as leituras dos textos que escrevia.

Para melhor ilustrar esse “estilo novo” e a forma inaugural composta por

Lispector, pode-se utilizar a personagem Lucrécia, em A cidade sitiada (1998). Essa

personagem é totalmente transformada pela autora ao longo da narrativa. Ela é

moldada e se transforma em coisa por meio da palavra. O estilo de Clarice

apresentado nesse romance é o de descaracterização e coisificação da palavra. A

língua aqui já não diz mais, ela concretiza o objeto artístico no mundo real. E a

protagonista, nesse movimento, torna-se, pois, objeto, coisa. O segundo parágrafo

do quinto capítulo do romance (1998d, p. 82) pode ilustrar o que se está afirmando:

pela varanda soprava o vento da chuva. As coisas estavam exorcizadas, divididas, extremamente pálidas...a cortina voava quase levada e o quarto hesitava como se alguém acabasse de desaparecer pela janela. Havia um momento na imobilidade dos objetos que assombrava numa visão... Na sonolência, Lucrécia Neves se eriçou diante das coisas físicas. A luz estava apagada. O aposento porém se aclarava pela exalação mortiça de cada objeto e a própria cara da moça tornou-se tocante. Fitar as coisas imóveis por um momento a solevou num suspiro de sono, a própria imobilidade a transportou em desvairamento: bocejando cuidadosa, errante entre os objetos do espaço – os brinquedos da infância espalhados sobre os móveis. Um camelinho. A girafa. O elefante de tromba erguida. Ah, touro, touro! atravessando o ar entre os vegetais carnudos de sono.

Os objetos – agora exorcizados, ou seja, sem a presença do mal – exalam

aromas e assim conseguem tocar a protagonista que, arrepiada, sai do controle da

cena e passa a ser observada pelos objetos. Lucrécia transporta-se, por meio de um

processo sinestésico, ao mundo da imobilidade dos objetos, torna-se objeto –

humano com “alma” de objeto. Esse processo é sinestésico, pois a metamorfose de

humano em coisa perpassa os sentidos (visão, tato, olfato). O verbo “eriçar”,

segundo o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2010, p.309) significa “tornar-

se arrepiado”. No período seguinte temos a informação de que os objetos exalam

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algum odor. Lucrécia foi então tocada pelos objetos por meio do cheiro. O toque, o

arrepio sentido, tornaram-na um objeto.

A Cidade sitiada eleva ao máximo o que Clarice tentou fazer desde seu

romance inaugural: aproximar o mundo real à coisa, coisificando o ser para que ele

se torne coisa também. A crítica de Milliet, portanto, parece não ter entendido esse

propósito da autora, que deixou claro “se eu tivesse que dar um título à minha vida

seria: à procura da própria coisa” (LISPECTOR, 1999d, p. 221).

Sérgio Milliet chega a sugerir que a autora passe a se dedicar a um outro tipo

de composição: o poema em prosa, afirmando que nesse novo gênero literário ela

teria maior liberdade de expressão, o que estava sendo impossibilitado de acontecer

devido às limitações da prosa. Como se CL se prendesse a enredos; como se na

prosa mesma ela não já alcançasse o limite máximo da liberdade: a concretização

do pensamento. Como vemos, sempre houve uma preocupação, em se tratando da

escrita de Clarice, em relação à forma literária, quando ela mesma dispensava esses

assuntos estruturais e os punha à margem de sua produção literária.

Pelo que vemos, Milliet não aceitava muito bem a escrita romanesca de

Clarice, apesar de apresentá-la como inovadora, promissora e de bom estilo literário.

A crítica tradicionalista da época impediu a aceitação de qualquer quebra de

paradigmas na forma literária já estabelecida.

O crítico finaliza afirmando que “enquanto seu romance permaneceu nos

domínios mais ou menos velados da autobiografia, tais qualidades e defeitos não o

prejudicaram” (MILLIET, 1981a, p. 34). Restou uma explicação por parte do autor do

que ele entende por autobiografia em se tratando de Clarice. Como já dissemos

anteriormente, a escrita de Clarice é uma extensão da sua vida, uma forma de tentar

traduzir e compreender o grande mistério que é a existência. Por isso, na romancista

e contista a obra é a vida e a vida é a matéria com a qual é feita a sua obra, e isso

não é defeito, ao contrário, é a alta performance de um estilo que acabara de ser

estreado em nosso meio artístico-literário.

Já se viu, na introdução deste trabalho, que a autobiografia presente na obra

de Lispector é diferente do que conhecemos convencionalmente pelo termo

“romance autobiográfico”. O romance de CL é existencial porque é construído a

partir do fluxo de consciência, da introspecção, do tempo psicológico, artifícios

capazes de traduzir o mundo e o sentido da existência dentro do projeto literário

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construído por CL. Não se configura, pois, como relato de vida, mas como narrativa

norteada pelo fluxo de consciência, o que faz de seus romances uma verdadeira

experiência intimista. Isso não é defeito, ao contrário, é a marca da qualidade

literária de Clarice Lispector. A literatura aqui não é catarse, não é exteriorização de

recalques: “eu nunca desabafei num livro. Aí servem os amigos! Eu quero a coisa

em si!” (GOTLIB, 2013, p.80).

Em 1951, por ocasião da publicação de uma coletânea de contos organizada

e publicada pelo Ministério da Educação, Sérgio Milliet tece uma crítica aos escritos

de Clarice em artigo publicado no Diário Crítico (volume VIII). Novamente o autor

chama a atenção para alguns problemas de estilo apresentados pela autora. Esses

problemas são, nas palavras do crítico, ocasionados por “uma constante deformação

sintática e vocabular” (MILLIET, 1981b, p. 235), o que acaba mergulhando a

linguagem em preciosismo.

Esses problemas de linguagem são tão fortes e aparentes, na visão do crítico,

que chegam a impedir a plenitude da compreensão do leitor, que se vê diante de um

texto paradoxal. Segundo Milliet, sob uma “técnica malandra”, a autora busca

soluções mágicas para a construção de imagens poéticas, o que leva a criação de

uma falsa poesia. Esses argumentos são suficientes para, definitivamente, o

estudioso construir sua opinião de preferência a Clarice romancista em detrimento

aos contos, o que já vinha ensaiando em críticas anteriores:

é mesmo curiosa e paradoxal essa contradição em Clarice Lispector, capaz de adensar sua expressão em metáforas contundentes e de todo incapaz de estruturar, solidamente, em poucas palavras, o que tem a dizer (MILLIET, 1981b, p. 237).

A dificuldade levantada por Milliet está justamente na falta de capacidade em

sintetizar seu pensamento em imagens inventivas que cabem dentro do conto.

Novamente Milliet sugere a adoção, pela autora, do gênero poema em prosa:

“parece-me que nesse gênero teria sua melhor realização, se exprimiria mais

completamente, sem peias. Porque, na realidade, Clarice Lispector é principalmente

um poeta” (MILLIET, 1981b, p. 237).

Apesar de não apresentarem crítica diretamente ao romance A paixão

segundo G.H., acreditamos serem as palavras desses especialistas de fundamental

importância dentro do estudo crítico da obra clariceana. Esses autores nos mostram

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como o Brasil recebeu os romances e contos produzidos em um estilo totalmente

diferente do que até então se tinha visto na literatura brasileira.

A partir desses e de outros textos críticos, podemos perceber como CL foi,

por vezes, mal compreendida em seu propósito literário. Os críticos se viram diante

de uma literatura destoante do que estavam acostumados e insistiram em analisá-la

pelo olhar preconceituoso e resistente à mudança da crítica literária tradicional.

Os vários críticos de CL apresentaram a escrita dela como inovação, no

entanto, por falha da teoria crítica utilizada na época, não conseguiram apresentar

com consistência o novo estilo praticado por ela. Hoje, pode-se perceber a Falta de

argumentos convincentes que justificassem as “falhas” apontadas por eles e

sobraram tradicionalismo e rigidez nas abordagens feitas sobre a produção literária

desse fenômeno de autora.

Agora será vista a crítica de Massaud Moisés feita nas décadas de 1960 e

1970. Ele foi um dos primeiros críticos, juntamente com Benedito Nunes, a

relacionarem a obra de CL com questões existenciais.

2.3. MASSAUD MOISÉS: “A ILUMINAÇÃO INSTANTÂNEA DE UM FAROL NAS

TREVAS”

Assim como Sérgio Milliet, esse novo crítico não enxerga muitas qualidades

nos contos produzidos por Clarice. Moisés acredita que as narrativas curtas dela são

apenas uma preparação para seus romances, relegando, pois, os textos curtos à

condição de literatura de baixa qualidade no conjunto da obra clariceana. Somente

nos romances é que o autor enxerga marcas de originalidade e características

excepcionais, a ponto de apresentar a escritora e suas obras como criações

inovadoras puramente brasileiras.

O que chama a atenção nas palavras de Massaud, dentre outras coisas, é

que, a despeito de críticas anteriores, ele argumenta contrariamente aos que

utilizam a ideia de influência estrangeira na literatura de Lispector. Em um país

acostumado com uma literatura social e regionalista, de forte engajamento político-

social, seria natural atribuir a essa nova forma de narrar o status de cópia do

estrangeiro. No entanto, esse pensamento “é ilusório, pois se trata, se assim se

pode dizer, de uma coisa brasileira, de um modo de sentir muito nosso, cheio duma

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finura e dum lirismo que radica suas bases em nossa índole histórica psicológica”

(MOISÉS, 1964. apud. SÁ, 1979, p.43-44).

Massaud Moisés também chamou a atenção para a poeticidade expressa por

CL. Sobre isso, Olga de Sá (1979, p. 44-45) tece o seguinte comentário.

Massaud Moisés também se refere à poetisa que se esconde em Clarice. Essa nota poética imprevista, que surpreende o leitor, é um dos pontos altos de sua narrativa. [...] Atinge-se o tom épico e mitológico, decorrente do tom da fábula. Esse tom ligado a um sentimento do gratuito ensopa as personagens, transformando-as em criaturas, símbolos, sonâmbulas, mecânicas, despida de sua humana condição, e apenas vivendo pelo nauseante ofício de viver, anestesiados do sentido de percepção das coisas.

Em 1970, em artigo publicado no suplemento literário de O Estado de São

Paulo e intitulado Clarice Lispector: ficção e cosmovisão, Massaud Moisés volta

atrás no que disse antes e assume nova postura diante das narrativas curtas de

Lispector. Desdizendo a sua afirmação anterior, de 1961, o autor agora acredita que

as narrativas curtas de Clarice Lispector, longe de construir mero exercício para os romances, enquadram-se perfeitamente nos moldes do conto. A semelhança entre as duas manifestações principais do seu fazer literário não denota que os contos estejam escapando de ser contos, mas certas virtualidades suas apenas se explicam e se concretizam no desdobramento permitido pelo espaço físico de romance: dir-se-ia que o pleno aproveitamento das intuições da ficcionista se processa no romance, sem prejuízos das invulgares qualidades de seus contos (SÁ, 1979, p.46).

Também nesses escritos, Massaud, agora já conhecedor da crítica de

Benedito Nunes (1969) e Luís Costa Lima (1966) sobre os textos de CL, aborda a

questão do “instante existencial”, que para o crítico, é o responsável pela lógica

interna da escrita da autora. É nele que se desenvolvem as ações internas

responsáveis pela progressão da narrativa na escrita de CL, apresentando-se como

uma “explicação” para a falta de lógica que, se lido de maneira desavisada, pode-se

encontrar no texto clariceano.

Esse “instante existencial” toma forma quando, de maneira instantânea, os

personagens “são tomados por uma súbita revelação interior, que dura um segundo

fugaz, como a iluminação instantânea de um farol nas trevas, e que, por isso

mesmo, recusa ser apreendida pela palavra.” (MOISÉS, 1970 apud. SÁ,1979, p.47).

É o momento em que as personagens tomam consciência da existência, se enchem

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de uma lucidez plena responsável por apresentar o mundo aos personagens de

maneira realística, mas não de qualquer modo, mas sim, por meio de um realismo

violento, selvagem e desnorteador porque retira das coisas do mundo o véu que nos

impede de ver, naturalmente, a natureza das coisas.

Essa análise desenvolvida por Maussaud Moisés – dos contos que compõem

as coletâneas Laços de Família e A legião Estrangeira – é de extrema importância

para este estudo. Esse crítico, juntamente com Nunes e Lima, aproximou a literatura

de Lispector ao pensamento fenomenologista do existencialismo, teoria filosófica

que servirá de suporte na análise sobre o romance A paixão segundo G.H. que será

feita neste trabalho.

Olga de Sá expõe alguns pontos da análise crítica de Massaud Moisés que

fazem essa união entre a literatura e tal corrente da Filosofia. Acreditamos ser útil

reproduzir esses pontos por entendermos que eles possuem forte influência nas

análises posteriores da literatura clariceana que assumem um caráter filosófico. A

esses pontos seguirão breves comentários de nossa própria autoria.

1º - “As personagens são destituídas de imaginação ou vida interior profunda,

atentas ao ir-sendo diário.” (SÁ, 1979, p.47)

As personagens de Clarice não possuem consciência plena de sua existência.

O que lhes motiva à vida é o cotidiano banal no qual acontecem alguns “flashs” de

epifanias responsáveis pelo conhecimento, por parte desses personagens, de que a

vida acontece, existe de fato.

Elas não apresentam consciência anterior ao “instante privilegiado” no qual se

encontram no momento da narração. Essas personagens também são ingênuas e

refletem apenas o que sentem, segundo suas sensações.

2º - “A contista [lembremo-nos de que Massaud faz uma análise de contos da

autora] registra a espessura trágica do cotidiano de vidas internas. (...) [As

personagens] são, antes, símbolos, personificações, índices de mediania e sua

verossimilhança deve ser referida a eus-coletivos, eus-cidades ou eus-

humanidades” (SÁ, 1979, p.48).

Assim, as personagens são representações dos grandes enigmas vividos pelo

homem moderno. Ou seja, pode-se concluir que a introspecção não é das

personagens, mas sim da própria autora. Ela é quem sente tais dramas e os

apresenta em suas narrativas por meio de personagens ficcionais que não

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representam a realidade, mas “constituem mais modos de ser ou situações-

paradigmas do homem no mundo, que representações ficcionais de pessoas reais”

(SÁ, 1979, p.48).

3º - “Por isso, mantém entre si um diálogo sem comunicação, ou em que a

comunicação só se estabelece indiretamente” (SÁ, 1979, p.48).

A escrita clariceana é um diálogo em forma de monólogo. Essa comunicação

a qual se refere Moisés é a conversação entre o eu com o outro de si mesmo, o que

confirma o processo de alteridade que está presente na narrativa de Clarice

Lispector. É um diálogo consigo mesma, embora na condição de outro de si mesma.

É uma interlocução individual do drama existencial da própria autora, que pode ser

perfeitamente verificado quando, dentro da história, a autora e refere a si mesma na

3ª pessoa.

4º - “Apesar disso, o projeto existencial dessas personagens é sempre um

projeto linguístico. O ir-sendo existencial se revela e se constrói por meio de

palavras. O ir-sendo pela linguagem se une com a noção de finitude irreversível do

tempo. O ser toma consciência de caminhar para a morte e o nada”. (SÁ, 1979,

p.48)

Esse ponto é, talvez, o que mais interessa, por trazer à tona todo o projeto

escritural da autora, que utilizou a linguagem para materializar a existência. A

expressão verbal em Lispector é a responsável por traduzir o mundo à sua volta ao

mesmo tempo em que foi utilizada para traduzir a pessoa, o humano chamado

Clarice Lispector. À linguagem, portanto, é atribuído o papel de ser o elo de ligação

entre o ser e a existência, cuja plenitude se encontra no jogo de palavras. Este

trabalho também visa explicar como Clarice significou a existência no poder da

palavra, uma vez que, em sua literatura, palavra é vida e a vida é ressignificada na

palavra. A linguagem também assume nessa visão o papel de Outro, uma vez que

mostra ao eu quem ele é.

5º - “O “viver” das personagens significa inconsciência, respeito pelo oculto do

ser” (SÁ, 1979, p.48).

Quando tomam consciência da existência, as personagens são coisificadas

na aproximação ao objeto. É por isso que os bichos são tão frequentes na literatura

da contista, pois eles, simplesmente vivem, não possuem consciência plena de sua

existência, nem possuem “a percepção do cotidiano à sua volta” (SÁ, 1979, p.48)

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porque não dominam a linguagem e por isso vivem num profundo estágio de

existência vazia.

6º - “O tom bíblico característico de alguns contos, e música de fundo de

outros, expressa uma das possíveis saídas para a naúsea existencial, que

acompanha a descoberta de que o homem ignora a própria razão de viver e é

condenado a uma solidão incurável.” (SÁ, 1979, p.49)

A representação do sobrenatural nessa literatura é obtida de tal forma a

apresentar-se como uma pseudo-saída para a inefável condição existencial. O

contato com o divino se estabelece em uma via de mão-dupla: o divino se humaniza

e o humano se diviniza na busca das explicações dos fatos da realidade existencial.

7º - “Donde a ficção de Clarice Lispector não interpreta o mundo, anseia

refleti-lo como „aparece‟ e na profundidade psicológica, que sua imaginação sonda

(...) participa do chamado “realismo mágico”, mostrando-nos a face oculta do ser,

revela-nos o perigo maior que nos espreita no recesso da alienação e nos convoca

para, por meio da arte, reconduzir-nos ao rumo certo” (SÁ, 1979, p.49).

A literatura clariceana descortina o eu, escancara a profundidade do íntimo do

ser, trazendo à tona a face reservada do Ser, não mais como um ser que vive, mas

como um ser que explica sua exterioridade. Clarice se desnuda em sua literatura.

Deixou às claras, por meio do objeto artístico, a sua identidade de ser existencial. E

como a matéria para essa descoberta é a arte literária, não tem como aquele que

entrar em contato com essa matéria linguística não se desnudar também, em um

processo de alteridade literária inevitável.

Apesar de ter estabelecido essa análise a partir das narrativas curtas de

Clarice, o pensamento de Massaud Moisés será de extrema utilidade nesta análise

romanesca. A visão negativa do crítico de que os contos da autora são uma

preparação de seus romances esqueceu de levar em consideração que toda a

literatura de CL é uma busca incessante de experimentação da existência. O que se

iniciava nos contos ecoava até seus romances, não para efeitos de

complementação, mas como forma de continuar um ciclo infinito de investigação

existencial.

2.4. BENEDITO NUNES: “LITERATURA EXISTENCIAL”

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Outro crítico importante a analisar a obra de CL foi Benedito Nunes, pessoa

com quem a autora conviveu em entrevistas, recepções, em sua casa e na casa de

amigos e em outros momentos de suas vidas. Nunes foi um dos primeiros e o mais

incisivo crítico a tratar da questão filosófica da arte literária, unindo a filosofia e a

literatura por meio do trabalho com a linguagem.

Para o crítico e filósofo, embora em campos conflituosos e inseparáveis,

Filosofia e Literatura são “aquela união convertida em tema reflexivo único” (NUNES,

2009a, p. 24). A literatura é utilizada pela investigação filosófica como objeto de sua

indagação, servindo assim de instrumento de concretização do abstrato mundo dos

questionamentos. A arte literária, acredita Nunes, descortina o mundo dos mistérios,

sugerindo, portanto, o método mais eficaz para a investigação filosófica (NUNES,

2009a, p.29).

Para o estudioso, o elemento de união entre esses dois campos do saber é a

linguagem, dado que as duas se apresentam como expressão linguística do

pensamento. Por isso, é quase indispensável tratar filosofia e literatura de maneira

indissociada. Juntas, as duas práticas revelam a existência ao ser, que se descobre

inseguro e instável por não possuírem a essência da existência. Ambas as formas

de pensar são responsáveis por apresentar modos de se chegar a essa descoberta,

embora esse não seja um processo simples e glorioso, como não o é no que

acontece com G.H.

É seguindo essa linha litero-filosófica de crítica que o escritor analisa a obra

de CL. Ele não se dispõe a analisar a obra dela pelo viés da filosofia como se esta

fosse a teoria para estabelecer os parâmetros de sua análise. Ao contrário, Benedito

Nunes, em detrimento do estudo estrutural da criação literária, buscou na obra de

Clarice uma interpretação para as concepções filosóficas de seu interesse. O crítico

preocupou-se em “explicar” a criação literária de concepção existencial que ela

possuía de seu mundo.

Olga de Sá (1979, p.50) deixa claro que Benedito Nunes não se preocupou

em traçar um perfil filosófico pessoal da escritora, ao invés disso, focalizou em

associar as principais concepções pessoais da autora com o pensamento teórico da

filosofia.

Os trabalhos de Benedito serão de grande importância para esta dissertação.

Primero pela lúcida e irrefutável aproximação da literatura com a Filosofia, uma vez

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que esse campo de saber serve de base para esta pesquisa uma teoria filosófica.

Em segundo lugar, Nunes foi um dos primeiros e quem melhor traçou uma

aproximação entre a obra de CL e a teoria existencialista de Sartre. Por isso, agora

serão apresentados alguns textos produzidos pelo crítico sobre CL bem como as

principais informações contidas neles.

Benedito Nunes escreveu livros, artigos e ensaios. Sobre CL destacaremos o

ensaio publicado em 1966, pela Editora do Governo do Estado do Amazonas e

reeditado em O dorso do tigre, em 1969 e 1976 (Editora Perspectiva) e em 2009

(Editora 34). Esse texto é intitulado: “O mundo imaginário de Clarice Lispector” e

dividido em cinco partes intituladas: “A náusea”; “A experiência mística de G.H.”; “A

estrutura dos personagens”; “A existência absurda” e “Linguagem e silêncio”. Nele

está contida a análise sobre as cinco obras publicadas por CL até então: Perto do

coração selvagem (1944); Laços de família (1960); A maçã no escuro (1961) e A

Paixão segundo G.H. (1964). Antes de serem organizado naquelas edições, esses

textos foram publicados originalmente no suplemento literário do O Estado de São

Paulo no ano de 1965. Preferimos a versão publicada em livros pelas modificações

realizadas pelo próprio autor a fim de enriquecer ainda mais suas análises. Serão

incluídos, também, outros dois textos reunidos em A clave do poético (Companhia

das Letras, 2009): A paixão de Clarice Lispector e A escrita da paixão.

Em A náusea (NUNES, 2009a, p. 93), o autor inicia sua análise inserindo as

temáticas contidas na ficção de CL na teoria filosófica da existência. São temas

pertencentes ao caráter “pré-reflexivo, individual e dramático da existência humana,

tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem, a

comunicação das consciências” (NUNES, 2009, p. 93. [grifos do autor]).

Confirmando o que se disse anteriormente, o autor deixa claro que não pretende

afirmar que CL tenha recorrido à teoria da filosofia para criar personagens e

situações na tentativa naturalista de pôr à prova alguma teoria. Não se trata disso,

no entanto,

qualquer que seja a posição filosófica da escritora, o certo é que a concepção do mundo de Clarice Lispector tem marcantes afinidades com a filosofia da existência, como no-lo revela, para darmos um só exemplo, a experiência da náusea, que aparece nos contos e romances da autora de Laços de Família (NUNES, 2009a, p.93. [grifos do autor]).

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Prossegue o autor apresentando as definições de náusea estabelecidas por

Kierkegaard, Heidegger e Sartre. Para o primeiro, a náusea, diz Nunes, se

apresenta como uma “vertigem da liberdade”.

É a vertigem da consciência, como ser precário, falho, não idêntico a si mesmo (Para si), oposto ao modo de ser das coisas (Em si), e que cria, devido à sua própria carência, através das possibilidades que projeta no mundo, o sentido da existência (NUNES, 2009a, p. 94)

Para Nunes, os três filósofos apresentam definições semelhantes sobre esse

sentimento. Porém, Heidegger, segundo o professor paraense, a diferencia do

medo. O medo se configura pela consciência do que se tem medo, enquanto a

angústia – resultado da náusea – não se revela ao ser, não se sabe o porquê se

sente isso.

O pensamento sobre esse tema trazido por Sartre, para Benedito, é aquele

que afirma ser “a forma emocional violenta da angústia” (NUNES, 2009a, p.93). É o

sentimento presente no romance de Sartre, cujo personagem principal é Roquetin. O

conceito de náusea apresentado por ele se baseia no pensamento desses três

filósofos por acreditar que os personagens clariceanos passam por momentos

enauseantes, em momentos decisivos de suas vidas, o momento em que os

personagens se deparam com o grande questionamento existencial.

O crítico nos traz, para exemplificar, alguns personagens que viveram esses

momentos de experiências enauseantes: Ana, no conto Amor ; Martim, de A maçã

no escuro; G.H. em A paixão segundo G.H..

Para a personagem do conto, a náusea acontece quando se depara, na volta

para casa, com um cego que masca chiclete. A personagem, organizada, quieta, se

desestabiliza com o ser diante dela e sofre uma profunda crise, que toma conta de

seu corpo.

Com o personagem masculino, Martim, o momento da náusea se dá quando,

no “caminho da conquista de si mesmo, [da] descoberta e [da] tentativa de

assimilação dos elementos sensíveis, brutos, penumbrosos, proliferantes e fortes da

vida” (NUNES, 2009a, p.97-8) se depara com as fezes de vaca presentes num

curral. Nesse espaço, “coisas afins se entremesclam em mistura hostil e repulsiva:

matéria-prima com a sua própria luminosidade, energia com a sua auréola, agitação

obscena com seu hálito e sua fragrância” (NUNES, 2009a, p.98).

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A protagonista de A paixão segundo G.H. experimenta a náusea com o

aparecimento inesperado, no quarto limpo e arejado, da barata, inseto em torno do

qual se avolumam, na personagem, “sentimentos contraditórios”. Segundo o autor,

ao se deparar com o inseto esmagado, ou seja, na condição de vítima, G.H. se dá

conta do ser que existia na barata, que naquele momento passa a ser a própria

G.H., ou seja, a personagem se dá conta de que ela e a barata são um próprio ser,

um participando da vida do outro, um sendo o outro. O estranhamento é se ver em

uma barata, por meio da qual G.H. alcança a ancestralidade de sua própria

existência.

Nunes, (2009a, p.100) compara a experiência da náusea vivenciada pelos

três personagens clariceanos da seguinte forma:

em “Amor”, a náusea é a crise que suspende a vida cotidiana da personagem. A lembrança dos filhos, a presença do marido, ainda têm forças para reter Ana à beira do perigo de viver, que diante dela se abre como um abismo sem fundo. Em A maçã no escuro, o estado nauseante associa-se ao descortínio instintivo que coloca Martim no plano retificado e orgânico da Natureza. Mas já em A paixão segundo G.H., o mesmo estado nauseante significa “desorganização” completa do ser social da enigmática personagem. Os sentimentos comuns (o sentimentário) não acodem, como no conto de “Laços de família”, por nós referido, para reter G.H. à beira do abismo do Ser.

Em A experiência mística de G.H. (NUNES, 2009), Benedito Nunes continua a

observar a náusea na literatura de CL a partir do romance que narra a aventura

mística de G.H. Nesse ensaio, o autor inicia suas palavras estabelecendo a

diferença da experiência da náusea vivida por Roquetin, personagem do romance de

Sartre, A náusea, e a personagem G.H., protagonista clariceana. Para Nunes, esse

sentimento em Sartre não envolve o ser por completo, há uma distância entre o ser

e essa sensação. “Roquetin não adere ao absurdo da existência revelado pela

náusea, nem se entrega ao ser indiferenciado, prolífico, repugnante e sedutor que o

domina, provocando em sua consciência um misto de nojo, de repulsa, medo e

lucidez” (NUNES, 2009, p.103).

Já em CL, o processo se dá ao inverso. G.H. se deixa envolver

completamente pela experiência da náusea. “Clarice Lispector entrega a

personagem de A paixão segundo G.H. ao completo domínio do ser amorfo e vivido

que transparece no estado nauseante” (NUNES, 2009, p. 103-104).

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Como o título do ensaio sugere, Benedito propõe um estudo místico da

experiência vivida por G.H. ao entrar em contato com a gosma, substância dotada

de existência que uniu o inseto à personagem em uma única experiência de Ser.

Para isso, o autor busca exemplos de místicos do Ocidente e do Oriente que

intensamente viveram a experiência inefável do encontro com o divino. Mas é em

São João da Cruz que Nunes busca, talvez, uma “explicação” da experiência de

G.H..

Nunes explica pormenorizadamente o processo inefável de encontro com o

Nada vivido pelos místicos. O crítico literário e filósofo afirma que ao se desprender

do corpo, ao romper todas as ligações com o terreno, o místico permanece na zona

que São João da Cruz chama de noite dos sentidos. É nessa zona que ocorre o

“vazio interior”, o vazio da alma, a libertação total do Ser em relação ao corpo que o

sustenta. Para Nunes essa zona é vivida pela personagem G.H.

O abismo para onde salta G.H. é o próprio abismo da existência, que nada sustenta. Sua participação primeira é o ser indiferenciado, espécie de substância spinozista, sem atributos e sem modos, e, no entanto, dotada de viva atualidade, puro élan, matéria-prima aristotélica, desenfreada, em estado de fusão, suscetível de receber qualquer forma, embora não necessariamente sujeita a forma – maré, lama cosmogônica, caos anterior ao cosmo (NUNES, 2009a, p.105).

Em G.H. a barata foi a responsável por essa “terrível descoberta”. O ser que

pulsava de vida na personagem, em um processo de identificação com o inseto,

encontrou o Nada, onde inexiste o ser. Esse processo acontece em meio a uma

“alegria infernal”.

Ao alcançar o êxtase de toda essa experiência mística, ao se deparar com a

desnudação do eu, G.H. encontra o caminho de volta ao humano, à experiência da

realidade, ao “gosto das coisas dimensionadas pelo cotidiano”. Essa experiência

também é dolorosa porque com ela acontece “a imolação total do Eu”, o sacrifício da

consciência. Esse sacrifício se dá, segundo Benedito, na degustação “totêmica” da

barata, no momento em que a personagem central experimenta da massa branca da

barata; uma experiência paródica da comunhão cristã.

Entretanto, a experiência mística pela qual passa a personagem não é a

mesma vivida pelos santos da igreja. Esses passam por todo um processo inefável

que culmina no encontro ao ser sagrado, portanto, exterior a si. Já a narradora

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encontra-se com o nada que habita o seu próprio ser (portanto, o processo é

interior). O desconforto que gera a náusea encontra sua justificativa na descoberta

de si próprio: o nada. A essência da vida é alcançada e o ser se depara com uma

profunda desilusão: o que fazer? como prosseguir com a vida? O processo místico

em CL, portanto, constitui-se de uma descoberta solitária de si, mesmo ainda que o

outro seja necessário na realização dessa descoberta.

É no relato de todo esse acontecimento, em tom de apelo, de súplica, de

confidência a um personagem oculto, que CL impõe sua marca pessoal de escritora,

fazendo de sua experiência e da materialização dela (a escrita), processos únicos de

experimentação do místico.

Outra questão abordada por Nunes é a linguagem. Já vimos anteriormente, e

não é excedente reforçar, que nessa autora a linguagem é a personificação da

coisa, é meio pelo qual a coisa se transforma, ressignificadamente, em coisa

novamente, agora mergulhada nas concepções pessoais e intimistas da romancista.

Nunes faz uma brilhante explicação desse processo linguístico-existencial. Por sua

importância faz-se necessário apresentar na íntegra as palavras de Nunes (2009a,

p.110):

parece-nos que o conteúdo místico da experiência da personagem, aqui resumida em linhas gerais, é fundamental para compreendermos as intenções da romancista. Precisamos levar em conta esse dado para não corrermos o risco de aplicar à narrativa critérios inadequados, um dos quais seria, por exemplo, exigir que ela obedecesse a um padrão de clareza ou de expressividade direta. Se o objeto de A paixão segundo G.H. é, como vimos, uma experiência não objetiva, se a romancista recriou imaginariamente a visão mística do encontro da consciência com a realidade última, o romance, dessa visão terá que ser, num certo sentido, obscuro. A linguagem de Clarice Lispector, porém, não é nada obscura. Obscura é a experiência de que ela trata. (...) a atitude de G.H., abdicando do entendimento claro para ir ao encontro do que é impossível compreender, lança a linguagem numa espécie de jogo decisivo com a realidade, que mais reforça o sentido místico do romance de Clarice Lispector.

Continuando, em A estrutura dos personagens, a análise do estudioso, como

bem sugere o título do escrito, recai na forma como são esquematizados e

apresentados os elementos narrativos da prosa clariceana, mais precisamente, os

personagens, sem apresentar, no entanto, uma análise estruturalista da narrativa.

Tomando como exemplo novamente os personagens Joana, de Perto do

coração selvagem, e Martim, de A maçã no escuro, Nunes retira esses elementos

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narrativos da ficção de CL do grupo dos chamados tipos psicológicos. Para ele, os

personagens de CL são “esquemáticos, cujos traços individuais, apenas emolduram

a inquietação que os consome e que sobrepõe à identidade pessoal de cada um

deles” (NUNES, 2009a, p. 113).

Sobre o tempo e o espaço, o professor paraense, afirma que eles, em Clarice,

“compõem-se de dados abstratos”. Os diversos lugares citados nos romances de CL

podem pertencer a qualquer cidade. Mas espaço e tempo, enquanto elementos

estruturantes da narrativa, seguem em CL o propósito existencialista. Ou seja,

no universo da romancista, o ambiente é Espaço e o Espaço, meio de inserção da existência. As paisagens naturais e urbanas, que não adquirem importância por si mesmas, mas pela maior ou menor carga de coisas que encerram, são situações equivalentes. Traduzem aspectos parciais de uma só situação global. Exteriorizam, integralmente, em cada caso, o ser no mundo da existência humana. Daí a inevitável abstração de particularidades locais, de dados sociais, e, por fim, dos elementos objetivos da realidade (NUNES, 2009a, p.114).

A sensação despertada de que todos os personagens de Clarice, quer dos

seus contos, quer dos seus romances, parecem um só se deve justamente a essa

configuração existencialista atribuída. Todos os personagens clariceanos estão à

beira do encontro com o Nada, à beira de mergulhar profundamente no vazio da

existência. “Nesse sentido, é sempre o mesmo homem, o mesmo Ser-aí (Dasein),

descobrindo a sua solidão e o seu abandono em meio às coisas” (NUNES, 2009a,

p.114). Homem, mulher, criança, adulto ou idoso, o fato é que as personagens de

CL são um único ser que se veem abandonados e entregues a sua própria sorte.

Seria a própria autora que se representou a si mesma nas várias etapas de sua

vida? É o que se acredita e se pretende deixar claro ao longo deste trabalho.

Os personagens lispectorianos estão destituídos de seu próprio EU, em um

processo de desconfiguração da identidade, de esvaziamento da alma. São seres

que traduzem o Nada. Em CL,

ninguém é ninguém. Cada qual empenhado no fingimento de ser, que a memória estimula e a imaginação conduz, busca a si mesmo para encontrar-se. E o que o homem encontra afinal é quem ele quer ser e não quem ele é (NUNES, 2009a, p.118).

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O outro ensaio de Benedito Nunes, publicado pela Editora 34, é A existência

absurda. Nele o autor trata da questão puramente existencialista das obras de CL.

Através de temas como a construção do Eu, o autor ensaia uma explicação de como

os personagens clariceanos se dão conta da existência que possuem. Esse

processo de tomada de consciência acontece em tais personagens quando o Eu se

sente ameaçado, deslocado do ser que o abriga, é quando o Eu se depara com o

abismo do Nada.

A existência humana, no trabalho de ficção de CL, toma forma a partir do

confronto do humano com a coisa em si, aquela que não necessita dos humanos

para existir. E o que irá diferenciar um do outro é justamente as idiossincrasias do

humano, representado pela subjetividade amplamente explorada pela artista

literária. Em meio a essa descoberta de impotência diante da coisa-objeto o humano

se vê enfrentado pela “natureza orgânica” do objeto, representado, não poucas

vezes pelo animal.

O tema animalístico constitui-se de uma temática muito cara no conjunto da

obra de CL. Diversas vezes, em seus escritos, a existência humana é posta à prova

mediante à existência animal. Os temas da existência e do ser são, pois,

apresentados nas obras da autora por meio da condição animal do ser. Nesse viés o

que acontece é uma animalização do humano e a humanização do animal, um prova

da existência do outro.

O animal nesse tipo de literatura assume o lugar do Outro, cujo papel

fundamental é garantir a existência do Eu. A figura do animal ancestral, presente no

romance, é, por exemplo, a porta de entrada para o mundo interior, da essência, do

ser. Através da barata, G.H. se descobre em um mundo cruel, triste, infeliz e se

sente desamparada para prosseguir. Essa relação entre o humano e o animal se

estabelece plenamente pelo olhar, ou seja, vai bem mais além do que simplesmente

o globo ocular. É o que Sartre afirma: é preciso ser visto para que o eu se descubra

no Outro e assim compreenda a essência de si. Ao se perceber olhada pelo inseto,

que não fala – portanto só o olhar é capaz de estabelecer comunicação nesse

processo –, G.H. se percebe no vazio existencial.

O último dos ensaios de Nunes reunidos em O dorso do tigre (2009a) intitula-

se Linguagem e silêncio. Nele, seguindo a ideia de complementar os cinco textos

dessa coletânea, o autor explica como a linguagem se transforma em forma que

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concretiza todas as temáticas apresentadas nos ensaios anteriores de Benedito

Nunes.

Esse texto inicia com a afirmação de que a autora conseguiu em A paixão

segundo G.H. “levar ao extremo o jogo da linguagem iniciado em Perto do Coração

Selvagem, e já plenamente desenvolvido em A maçã no escuro” (NUNES, 2009a,

p.125)

O jogo ao qual se refere o autor não aceita o valor depreciativo comumente

atribuído a expressões do tipo “jogo de palavras”, “jogo verbal”, como se a autora

flertasse com o material verbal. O autor quer deixar claro que faz referência ao

caráter estético assumido pelas palavras, quando usadas com intenção artística.

A linguagem utilizada por CL não apenas sugere, torna-se a própria coisa, dá

forma ao objeto. Daí resulta a ideia segundo a qual a escrita dessa escritora é a

representação, materialização da existência. Isso pode ser percebido com

o jogo estético [da autora], que suspende ou neutraliza, por meio da imaginação, a experiência imediata das coisas, dá acesso a novas possibilidades, a possíveis modos de ser que, jamais coincidindo com um aspecto determinado da realidade ou da existência humana, revelam-nos o mundo em sua complexidade e profundeza (NUNES, 2009a, p. 125).

Apoiando-se no pensamento de Heidegger, Nunes nos apresenta o elemento-

chave da questão literária de CL: a linguagem como material da existência. O plano

da expressão verbal utilizado exaustivamente pela autora serve, nas obras dela,

como uma espécie de “expressão da existência”.

A identidade pessoal e o Ser são mesclados pela linguagem, em uma união

íntima entre o mundo das coisas, o mundo real e o mundo da linguagem, que é a

expressão daquele.

No jogo verbal praticado por CL o ser é traído pela linguagem: ela consegue

expressar o mundo real, o das coisas, no entanto, esbarra-se na expressão do Ser,

em sua individualidade.

O ser que conquistamos não é, pois, aquele para o qual o nosso desejo tende, mas aquele que a expressão capta e constrói, e que é, de qualquer modo, uma realidade provisória, mutável, substituível, que oferecemos aos outros e a nós mesmos. Daí a relativa falência da expressão, afetando a comunicação entre os homens. Não nos comunicamos plenamente de ser para ser, segundo o ideal da reciprocidade das consciências. Cada qual está se construindo, cada

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qual está fabricando, com auxílio de palavras velhas ou novas, a ideia de si mesmo (NUNES, 2009a, p. 128).

São vivenciados, então, segundo Nunes, dois fracassos na literatura de CL: o

fracasso da linguagem e o fracasso da existência, já que um é a expressão do outro.

Mas é justamente nesse fracasso da linguagem, ou seja, na negação da linguagem

que acontece a transcendência, a revelação do ser. Ser que se revela quando ouve

o silêncio, pois só assim ele é capaz de se ouvir e se compreender a si mesmo.

Essa negação linguística em forma de silêncio foi levada ao máximo pela

autora no romance A paixão segundo G.H. Tentando alcançar o mundo pré-

linguístico, o mundo primitivo, Clarice utiliza a não-palavra na representação da

realidade. O silêncio é representativo do nada no qual a personagem chega com a

narrativa. Nesse mundo, a palavra não é mais capaz de dizer, ela se assume coisa

na apresentação do real.

A palavra é o pós-silêncio. Antes dela há o vácuo, o abismo, o silêncio total.

Mas com a palavra, há a ressignificação do silêncio, a matéria; há, assim, a coisa

representada em sua totalidade. No caso de Clarice, há a palavra-coisa, aquela que

mais do que quebrar do silêncio, ressignifica a palavra tornando-a um objeto. A

busca incessante dela era justamente exaurir o absinto entre o mundo (a coisa) e a

linguagem. Para isso, mais do que a representação, a recriação do mundo se dá por

meio da linguagem, que assume a função de concretizar, materializar o mundo real.

O significante não é apenas uma cadeia fonêmica carregada de significado. Aqui tal

elemento – o significante – transmuta-se no próprio significado.

O que vemos em G.H. é um eu esfacelado, desconcertante, disperso e

angustiado cuja palavra não possui mais o poder de representar plenamente o

mundo a sua volta. A palavra entra num estágio de anti-mimese. Assim, Clarice

inova a relação do indivíduo com a escrita, lançando mão da brutalidade da força da

palavra-objeto.

Em A paixão de Clarice Lispector, Nunes se detém numa análise aprofundada

do último romance de CL publicado dois meses antes da morte dela. O autor

argumenta que dos seis romances publicados – Perto do coração selvagem; O

lustre; A cidade sitiada; A maçã no escuro; A paixão segundo G.H. e Uma

aprendizagem ou o livro dos prazeres – e das centenas de crônicas e diversos

contos publicados, sem dúvida, este último romance de CL é o que reúne todas as

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nuances de estilo literário utilizadas pela escritora ao longo de sua produção. O

romance (novela?) A hora da estrela é o “arremate clarificador a partir do qual

podemos distinguir a linha direcional do processo de criação literária que estabelece

a coesão de tantos escritos diferentes na unidade múltipla de uma só obra” (NUNES,

2009a, p.199).

Seguindo na análise do romance, o crítico e filósofo afirma que esse

romance comporta três histórias entrelaçadas por “dois narradores geminados”.

Primeiro têm-se a história de Macabéa, um ser dotado de vida sem consciência

existencial. Macabá não existe – no sentido estrito da palavra - apenas vive.

Macabéa é

a moça inexpressiva, criatura sem graça nem encantos pessoais, desvalida, solteira e solitária, obtusa e enferniça, comerciária de profissão, pertencente à estirpe dos seres desamparados, frágeis e carentes, peculiar à obra da ficcionista (NUNES, 2009b, p. 201).

Intrinsicamente a essa primeira história – como que uma parindo a outra, uma

possuindo a outra – têm-se a história do próprio narrador, Rodrigo SM.

Ao refletir, porém, a sua vida na da nordestina, acaba por tornar-se dela inseparável, embora ele e a personagem permaneçam distintos num confronto aflitivo, dentro da mesma situação que os une e separa. Essa é a narrativa que está sendo feita, e cuja penosa e conflitante elaboração Rodrigo SM nos conta (NUNES, 2009b, p.201).

Paralela a essas duas histórias, Nunes apresenta uma terceira trama que

corre nas veias narrativas abertas por entre as duas anteriores. É a história da

própria narrativa, realizada pelos narradores, “o autor postiço e o autor declarado”.

Aqui se chega, junto com Benedito Nunes, a um ponto muito importante que

está presente não apenas nesse último livro, mas em toda a obra de CL. CL é autora

de suas histórias, mas também encontra-se nelas, seja como narradora, seja como

personagem mesmo, como já se defendeu na introdução deste trabalho. Isso se

deve ao fato de ela escrever sobre si mesma, reviver as histórias de sua própria

vida, ressignificar, por meio da linguagem artística, seus sentimentos e emoções:

seus medos, suas angústias, suas alegrias (ainda que a “alegria difícil”), sua

existência.

O trecho reproduzido a seguir extraído da crônica A explicação que não

explica (LISPECTOR, 1999b, p. 238), publicada na coletânea A descoberta do

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mundo publicado pela editora Rocco, pode explicar um pouco desse “escrever-se”

presente na obra dessa autora. Nessa crônica, CL apresenta uma explicação para

alguns dos seus textos, fala do seu processo de escrita.

O que me lembro do conto “Feliz aniversário”, por exemplo, é da impressão de uma festa que não foi diferente de outras diferentes de aniversário; mas aquele é um dia pesado de verão, e acho até que nem pus a ideia de verão no conto. Tive uma impressão, de onde resultaram algumas linhas vagas, anotadas apenas pelo gosto e necessidade de aprofundar o que se sente. Anos depois, a o deparar com essas linhas, a história inteira nasceu, com uma rapidez de quem estivesse transcrevendo cena já vista – e no entanto, nada do que escrevi aconteceu naquela ou em outra festa. Muito tempo depois uma amigo perguntou-me de quem era aquela avó. Respondi que era a avó dos outros. Dois dias depois a verdadeira resposta me veio espontânea, e com surpresa: descobri que a avó era minha mesma, e dela eu só conhecera, em criança, um retrato, nada mais. [Grifos nossos]

Não apenas na produção desse conto, mas em toda sua obra, Clarice utiliza

de suas impressões para decifrar os enigmas da existência, da sua existência. A

partir de suas vivências, de suas impressões e “pelo gosto e necessidade de

aprofundar o que se sente”, a escritora produz ficção. Não se trata, é bom ressaltar,

de mera literatura de impressões, como podem supor alguns. No trecho acima, ela

deixa claro que não resume seu trabalho literário à tarefa de colocar no papel o que

viveu, o que faz é, diferentemente, expressar suas vivências, ressignificando a

experiência de existência. O momento vivido toma nova forma, “acontece de novo”

no exato momento da escrita.

A ficção não procura imitar a vida. A arte literária ficcionaliza a existência,

ajudando o ser que a produz a encontrar seu modo de viver. Escrever era para ela

um modo de Ser: “se houver o que se chama de expressão, que se exale do que

sou. Não vai mais ser: „Eu me exprimo, logo sou.‟ Será: „Eu sou; logo sou.‟”

(LISPECTOR,1999b, p. 254). Essa relação entre ser e literatura pode ser

perfeitamente explicável nas palavras de Alceu Amoro Lima, em uma entrevista

concedida a CL: “você, Clarice, pertence àquela categoria trágica de escritores, que

não escrevem propriamente seus livros. São escritos por eles. Você é o personagem

maior do autor dos seus romances. E bem sabe que esse autor não é deste mundo.”

(LISPECTOR, 1999b, p.177)

Em um processo metamórfico constante e inacabável, Clarice se transforma

em autora, narradora e personagem. E em um processo de êxtase linguístico, ao se

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narrar, transforma-se também em coisa. É um processo degradante que leva o ser

Clarice Lispector a tomar consciência de sua própria existência. O caminho doloroso

para essa angustiante, dolorosa, alegre, difícil, transformadora descoberta é a

literatura, a linguagem. E esse processo não se dá apenas em A hora da estrela. Já

se têm fortes indícios para acreditar que G.H. (narradora) e Clarice (autora)

assumem a condição de mesmo Eu em descoberta de si mesmo.

Outros aspectos estruturais do livro A hora da estrela são apontados por

Benedito. Segundo ele, na história de Macabéa, CL “foge às regras do jogo”,

principalmente no que diz respeito ao gênero. A história de Macabéa é

estranho livro, meândrico e tumultuoso, ao contrário dos textos anteriores de Clarice, intitulados romance, conto, novela ou simplesmente ficção, como Água Viva, que o antecedeu imediatamente, não declara vincular-se a nenhum gênero literário, e, trocista, sugere ao sonso leitor treze outros títulos que lhe poderiam caber cm igual validade (NUNES, 2009b, p. 201).

O crítico insere CL no produtivo período de

revolução romanesca operada no século [XX]. Ao lado de Proust, Virgínia Woolf, Joyce, Thomas Mann, Faulkner, Jorge Luís Borges e Cortázar, a literatura produzida por Lispector (já desde seu primeiro romance, Perto do coração selvagem) pessoalizou e singularizou a tendência da ficção moderna (NUNES, 2009b, p. 203).

Para Nunes, a contribuição da autora nesse processo de relocação se dá pelo

fazer literário através da consciência individual, em um processo mimético no qual “a

identidade da narrativa quanto ao gênero problematiza com a identidade individual

da narradora” (NUNES, 2009b, p.206). Esse processo se dá enfaticamente, afirma

Nunes, em A paixão segundo G.H. Aqui é preciso chamar a atenção para um

aspecto crucial da literatura clariceana: a mescla entre a forma e conteúdo.

Nesse tipo de literatura, forma é conteúdo e conteúdo é forma, uma mescla

complexa diante da tarefa difícil: transformar existência em arte e ao mesmo tempo

ser transformada em vida com o resultado desse processo. Essa confusão entre

forma e estilo poder ser melhor explicada pelas palavras da própria autora no trecho

da crônica Estilo (LISPECTOR,1999b, p.142-143), onde é apresentada a

metamorfose entre o que dizer e como dizer e pela qual passa a produção literária

clariceana:

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Como uma forma de depuração, eu sempre quis um dia escrever sem nem mesmo o meu estilo natural. Estilo, até próprio, é um obstáculo a ser ultrapassado. Eu não queria meu modo de dizer. Queria apenas dizer. Deus meu, eu mal queria dizer. E o que eu escrevesse seria o destino humano na sua pungência moral. (...) O que eu escrevesse ia ser o prazer dentro da miséria. É a minha dívida de alegria a um mundo que não me é fácil

(LISPECTOR,1999b, p.142-143).

Aqui se vê que o único desejo da autora: dizer-se, expressar-se, no entanto,

tal desejo se esbarra em um obstáculo: como dizer o que dizer? Uma pergunta

inevitável quando se decide pela expressão verbal, uma vez que a linguagem, nesse

caso, se diz por meio das palavras. O que CL faz é somente dar forma ao que quase

naturalmente está nela: a palavra pulsante, repleta do desejo de dizer.

Novamente a autora, já aparentando certa indisposição (talvez por causa do

foco da crítica da época em questões estruturais) com os críticos da época, aborda,

em outra crônica, esse mesmo assunto. Fiquemos com suas palavras sobre esse

processo recíproco de metamorfose entre forma e conteúdo:

mas por Deus, o problema é que não há de um lado um conteúdo, e de outro a forma. Assim seria fácil: seria como relatar através de uma forma o que já existisse livre, o conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio pensamento: o conteúdo luta por se formar. Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. (...) Parece-me que a forma já aparece quando o ser todo está com um conteúdo maduro, já que se quer dividir o pensar ou escrever em duas fases. A dificuldade de forma está no próprio constituir-se do conteúdo, no próprio pensar ou sentir, que não saberiam existir sem sua forma adequada e às vezes única (LISPECTOR, 1999b, pp.254-255).

Como podemos ver, Benedito Nunes foi um dos poucos que soube

reconhecer verdadeiramente a marca de CL como autora revolucionária das letras

no Brasil. Enquanto os outros críticos apresentaram a inovação da autora com uma

enorme lista de ressalvas e sem aceitar seu novo estilo – o que se torna um

paradoxo -, Nunes, com lucidez e clareza levou as obras da autora ao lugar que é

seu por direito: de literatura de primeiríssima qualidade e refinamento literário, ímpar

nas artes literárias do Brasil.

No ensaio A escrita da paixão (NUNES, 2009b), o crítico e filósofo, à luz do

pensamento de Roland Barthes, explana a questão da literatura e paixão na obra de

CL.

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O sentimento da paixão é inerente a todos os humanos. O humano é por si só

um ser vulnerável à paixão. Nesse quesito, o romance se configura como “a principal

fonte para uma história das paixões no gênero dos microcontos da conduta humana”

(NUNES, 2009b, p.217). O ponto central de todo universo do romance é constituído

justamente das experiências apaixonantes dos humanos, no momento que Benedito

chama, em consonância com Barthes, de “momento de verdade da literatura”,

romance e paixão, portanto, se unem na mimesis das paixões humanas.

Antes de adentrar na análise da literatura de Clarice, o ensaísta se empenha

no trabalho de fazer uma breve digressão sobre a história da paixão. Para isso, o

autor busca os conceitos de paixão nos gregos clássicos, Sócrates, Platão e

Aristóteles e chega até a modernidade, com o Romantismo alemão.

O estudo da paixão começa com os filósofos gregos, para quem a força

avassaladora desse sentimento traz um grande mal ao homem, ainda que com

divergências.

Tanto Aristóteles, como Platão, enxergam a paixão como “mudanças em

nossos juízos”. No entanto, divergindo de Platão, Aristóteles aceita como positiva a

comoção atribuída pela paixão à tragédia. Para esse filósofo, afirma Nunes, a

catarse funciona como “purgação do ânimo do espectador por efeito do balanço

entre os sentimentos opostos de comiseração (elos) e terror (phobus), despertados

pela representação as tragédias.” (NUNES, 2009b, p, 220)

Na Idade Média, a Igreja, com Tomás de Aquino, contrariando os gregos

apresenta uma visão mais positiva da paixão. Essa visão estabelece as relações

afetivas em dois grupos: aqueles que aproximam o homem de Deus e daqueles que

distanciam o humano do divino. O ápice dessa visão do cotidiano é a representação

da paixão de Cristo, nela o Agapé (amor incondicional a Deus) e o charitas (amor ao

próximo) se encarnam na figura de um Deus que vivenciou o clímax da paixão,

entregando seu próprio corpo para sacrifício dos humanos.

Foi o século XVIII, o responsável pela reabilitação das paixões humanas.

Agora até mesmo das paixões más, como avareza e cobiça, para ficarmos nos

exemplos de Nunes, pode-se tirar bom proveito. Essa visão utilitarista da paixão se

justifica pelo modelo econômico vigente nesse período. A burguesia, classe social

em ascensão, teria que lançar mão de todos os artifícios para alcançar o poder, ao

qual se chega por meio do interesse e da cobiça.

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Para finalizar, os românticos alemães introduzem um novo pensamento a

cerca dessa relação afetiva. Para esses românticos, paixão é ilusão. Kierkgaard

apontou esse tipo de paixão como sendo “perpétuo esforço para apreender aquilo

que se desvanece” (NUNES, 2009b, p.221). É aí que se aprofunda a relação entre a

paixão e o romance, pois nessa caracterização das emoções humanas, o centro dos

conflitos se encontra no Eu.

A crítica da ilusão romântica – ilusão que não compromete a essência do romantismo – alerta-nos contra a postura ingênua que reclama da literatura o puro espelhamento das paixões. Qualquer que seja o grau de expressão literária por elas alcançado – o grito, o gesto arrebatado, o surto emocional –, a paixão expressa já é paixão passada, arrefecida, recordada, medida, distanciada (NUNES, 2009a, p. 222).

Situando a ficção de CL no que chama de narração moderna – ao lado da de

Proust, Joyce e Virgínia Woolf –, Nunes passa a analisar o caráter passional da obra

clariceana.

Na obra de CL podemos encontrar, na verdade, um turbilhão de fortes

sentimentos. Coléra, ira, raiva, nojo, náusea convivem em alternância com o amor e

a alegria, “verdadeiros núcleos afetivos que motivam a história narrada ou

constituem momentos culminantes da narrativa.” (NUNES, 2009b, p. 223)

Esses sentimentos são vivenciados por G.H. durante toda sua aventura de

descoberta de si na busca da significação da existência. A paixão enfrentada pela

personagem se prende na descoberta frustrante do que é o mundo e do que é quem

nele vive, por isso é uma paixão, sinônimo de sofrimento, assemelhando-se a de

Cristo, que também enfrentou a perversidade do mundo ao se doar a ele. G.H., em

um completo despojamento de si, doa-se ao mundo de maneira completa para se

descobrir, só que a descoberta é frustrante: viver é difícil.

Outra marca do phatos na obra clariceana é o sentimento do desejo,

apresentado pelo gosto à subversão apresentado pelas personagens femininas.

Essas, acuadas pela repressão imposta a si mesma, encontram no desejo à

subversão um caminho para encontrarem a liberdade da qual necessitam para

libertarem seu próprio Eu. Esse desejo apaixonante acaba levando-as a

experimentar a frustração, vivenciada quando essas personagens, em contato com a

liberdade, se descobrem com o eu despedaçado, fragmentado, processo que acaba

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gerando uma crise de identidade. A frustração aumenta na impossibilidade de volta.

Não há como retroceder nesse processo. O eu fragmentado não se unifica mais, e o

que era para ser uma descoberta de si torna-se um completo desconhecimento

pessoal. E não foi isso que aconteceu com G.H., por exemplo, que ao tentar

encontrar seu eu, sua identidade, se descobriu uma estranha de si mesma? Se,

como vimos, para os românticos, paixão é ilusão, em CL, na modernidade, paixão é

frustração.

Por tudo isso, não é à toa que os estudos realizados por Benedito Nunes

sobre CL são um dos mais importantes dentro do conjunto de análises realizadas

sobre a obra dessa autora, dentro dessa temática filosófica. Ele soube, com

objetividade e clareza, tocar e aprofundar os principais temas encontrados nas obras

clariceanas. Soube reconhecer de uma vez por todas o que verdadeiramente

significou para as letras do Brasil o surgimento do fenômeno literário chamado

Clarice Lispector.

2.5. OLGA DE SÁ: A ESCRITA COMO MANIFESTAÇÃO EPIFÂNICA

Outra escritora de renome no grupo de analistas da obra de CL chama-se

Olga de Sá. Dela se destaca o trabalho intitulado A escritura de Clarice Lispector

(1979), onde, depois de realizar uma completa fortuna crítica da obra de CL, desde a

década de 1940 até a década de 1970, a estudiosa analisa todo o processo de

escritura da autora a partir dos seguintes pontos: o tempo, a linguagem, o conceito e

o procedimento da epifania e a escrita metafórico-metafísica. Termina Sá

adentrando ao campo da crítica receptiva, analisando a contribuição renovadora da

ficção clariceana para a literatura do Brasil. Por ser de interesse deste trabalho,

serão apresentados apenas os três primeiros pontos esclarecidos pela

pesquisadora.

Ao analisar o fator tempo como elemento narrativo na obra de CL, Olga

assume uma visão existencialista do assunto. Influenciada pelo “vitalismo

existencial” de Bergson e pelo romance de Proust, a pesquisadora apresenta esse

elemento narrativo como sendo um “dado imediato” da consciência. Nesse sentido o

tempo é visto fora da realidade das leis da natureza, o tempo aqui não segue a

cronologia imposta pelas leis naturais, ao contrário, ele faz parte da dimensão

humana.

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A especialista apresenta o tempo como sendo um “problema genérico e difícil

de abranger, no painel da literatura moderna” (SÁ,1979, p.90). “O romance moderno

beneficia-se do conceito bergsoniano da “durée”, que se identifica com o fluir da

consciência e da sensibilidade, jamais idêntico a si mesmo, sempre diverso, cujo

ritmo é o próprio ritmo da vida” (SÁ,1979, p. 91).

Sá apresenta Sterne como “um dos pioneiros a descobrir e a aplicar numa

obra-prima publicada de 1760 a 1767, Tristram Shandy, a dimensão atemporal da

ficção” (SÁ, 1979, p.91). Assuntos truncados, conclusão de um capítulo dentro do

outro, a quebra do tempo linear no romance, prefácios inusitados e, principalmente,

as digressões são apontados por Olga de Sá como diferencial na obra de Sterne,

que progride a partir da técnica de fragmentação. Desse modo, “passado e presente

já não se separam estanques, mas o primeiro se atualiza no segundo pelo processo

de associação de ideias, verdadeira teia responsável pela estruturação da narrativa”

(SÁ, 1979, p.93).

A técnica da intersecção do presente com o passado usada por Sterne é,

Segundo Olga de Sá, ponto-chave também na escritura de CL. Nessa autora, as

digressões existem pelas várias discussões acerca de temas como a arte, a morte e

a linguagem, o que “retardam a narrativa e são responsáveis por aquele caráter

ensaístico, que alguns críticos lhe censuram” (SÁ, 1979, p. 94). Como bem já

apontou Olga, o tempo da consciência – distinto do tempo cronológico – é ponto

fundamental na teoria existencialista.

O próximo ponto abordado por Olga de Sá em seu trabalho é a linguagem.

Segundo a pesquisadora, CL alcançou um processo de desautomatização no leitor,

por meio de um “estranhamento de certas imagens e colocações: a bondade faz

vomitar, a oração é uma espécie de anestesia, a maldade aproxima-se da plenitude

da vida” (SÁ, 1979,p. 132).

Ao lado de Antonio Candido e Sérgio Buarque de Holanda (outro crítico que

destacou o trabalho com a linguagem desenvolvido por CL), Sá apresenta, como

marca registrada dessa autora, o trabalho de pensar o material verbal.

Segundo Olga, CL retoma aquela linhagem de invenção dos raros que

fizeram exploração da palavra, como exemplo a autora cita os autores Oswald e

Mário de Andrade. O que acontece em CL é uma escrita de tensões. A narradora

vive sempre no limite e, dentro do processo de escrita desenvolvido por CL, surge

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uma tensão linguística: “vocábulos que perdem o sentido comum e ganham uma

expressão sutil, de tal forma que a língua adquire o mesmo caráter dramático do

enredo” (SÁ, 1979, p. 130).

Neste capítulo, foram apresentados de forma simples e direta os principais

pontos de alguns críticos que analisaram a obra de Clarice Lispector. Foi um

exercício importante para se conhecer um pouco mais de perto sobre essa literatura

instigante e complexa. Com eles pode-se também tomar conhecimento de como os

seus escritos foram recebidos pelo público da época, que estava carente de uma

literatura tão abrangente e universal feito a dela. No próximo capítulo será feita uma

aproximação entre a Literatura e a Filosofia, dois campos de saberes distintos, mas

indissociáveis em sua apresentação. Segundo Benedito Nunes, um elemento une os

dois campos: a linguagem. Tanto a Literatura quanto a Filosofia tomam forma pela

linguagem. Para melhor compreendermos essa aproximação dentro desta análise,

serão apresentados alguns conceitos filosóficos importantes para entendermos a

leitura filosófica proposta aqui.

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3 FILOSOFIA E LITERATURA: A LINGUAGEM EXPERIMENTANDO A

EXISTÊNCIA

Não é objetivo deste trabalho produzir um tratado filosófico acerca da

literatura, o que seria uma tarefa, ainda que prazerosa, muito duradoura. No entanto,

como será analisada a escritura do romance A paixão segundo G.H., de Clarice

Lispector, à luz de uma teoria filosófica, o existencialismo, faz-se necessário, ainda

que sucintamente, tratar da relação entre filosofia e literatura. Serão apresentados

alguns conceitos-chaves da filosofia como forma de melhor se compreender a teoria

que servirá de base para a análise que aqui se desenvolve. Antes, porém, será visto

como se dá uma possível relação entre filosofia e literatura segundo, a concepção

de Benedito Nunes.

3.1 FILOSOFIA E LITERATURA: DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA

Poesia (literatura) e Filosofia são definidas por Benedito Nunes, em Ensaios

Filosóficos (2010) da seguinte forma: o primeiro termo é compreendido por ele como

“composição verbal, vazada em gênero poético, tal como se entende desde o século

XVIII, mas designando também o elemento espiritual da arte” (NUNES, 2010, p. 01).

Esse termo “poesia” na visão do autor não se resume apenas ao verso, estende-se

ao poético, presente na ficção de modo geral. Já a filosofia, para ele, “designa seja o

pensamento, de cunho racional, seja a elaboração reflexiva das concepções do real

e de seu conhecimento respectivo” (NUNES, 2010, p. 01). Após apresentar suas

concepções sobre os dois termos, o autor passa a apresentar o percurso histórico

da relação entre os dois.

Os estudos da literatura começaram - mesmo ainda sem essa denominação –

há muito tempo, ainda com os gregos, na era clássica. Mas, sem dúvida, os escritos

de Platão constituem-se de um marco para o estudo crítico literário. O filósofo grego,

ao decidir expulsar os poetas da Pólis, como busca de manter a ordem e a

organização social, relegou a poesia à margem da civilização. O artista da palavra,

por não criar nada, por não desenvolver nada – a exemplo do carpinteiro usado pelo

filósofo – e ser visto como simples imitador, assim como o pintor, não são dignos de

participarem da Pólis, portanto. Platão diz o seguinte sobre essa categoria:

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- Quer parecer-me, disse, que a designação mais acertada seria a de imitador daquilo que os outros são obreiros. - Que seja, lhe disse. Dás, assim, o nome de imitador ao que produz o que se acha três pontos afastados da natureza. - Perfeitamente, respondeu. - Ora, exatamente como ele [o pintor], encontra-se o poeta trágico, por estar, como imitador, três graus abaixo do rei e da verdade, o que aliás se dá com todos os imitadores. (PLATÃO, 2006, p.141)

Dessa forma, Platão cria uma escala ascendente de representantes da Pólis,

comandada por um rei, submetido às verdades do pensamento. Abaixo de todos

eles e sem chances de ascensão, estão todos os “imitadores”, que justamente pelo

seu ofício de imitar – e não criar – são desprovidos de razão própria, incapazes,

pois, de articular o pensamento de forma a construir o mundo em que vive. Assim foi

criada a discussão, ou mesmo a querela, como diz Nunes, entre Filosofia e

Literatura, com a supremacia daquela.

A questão parece estar envolta ao significado do termo mimesis. Conceito-

chave para o pensamento artístico grego. Platão (precisamos não esquecer que ele

analisa a arte sob o ponto de vista ético) ao colocar o poeta como simples imitador

da vida põe o artista como ausente de ética, uma vez que quem imita, o faz sem

saber realizar o original; pode imitar a virtude, por exemplo, mas não saber, nem –

mais grave – ser virtuoso. Outro aspecto importante considerado pelo filósofo grego

é a capacidade de reproduzir o objeto imitado que possui o artista, ou seja, como

possui a capacidade de imitar os outros, pode o fazer de maneira

descompromissada com os valores da verdade.

Até que Aristóteles, anos mais tarde, reconfigura o conceito de mimesis.

Diferentemente de seu mestre, o novo filósofo acredita que o artista tem a

capacidade de imitar a realidade, representando-a da maneira como ela pode vir a

ser, e não necessariamente como é. Descarta, portanto, a visão de simples imitador

atribuída aos artistas, que agora serão apresentados como dotados da capacidade

de representar o meio social e apresentá-lo aos próprios indivíduos que dele fazem

parte e não o enxergam, em totalidade, em sua realidade.

Desse modo, a produção artística do que hoje conhecemos como literatura

ganha novo contorno e à palavra é atribuída uma importância significativa dentro da

relação do pensamento. Ao elevar a tragédia ao topo das produções poéticas,

Aristóteles conduz a arte à capacidade de levar o homem a analisar, ou seja, refletir

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sobre sua condição humana. O homem, por meio da produção artística é, pois,

levado a experimentar seus dramas, seus medos, suas dúvidas, suas virtudes, e

suas fragilidades em uma relação de catarse entre a obra e seu apreciador. Filosofia

e Literatura são, pois, postas de um mesmo lado, a fim da consolidação dos

acontecimentos vividos pelo homem.

Os estudos avançam e na Idade Média ganham novos contornos. Surgem,

nesse período, o estudo da retórica e o estudo da Gramática. A poesia é regida pelo

pensamento religioso e escrita em latim clássico pelos clérigos da Igreja Católica.

Mas isso não impediu que os trovadores produzissem poesia profana, escrita em

latim vulgar. Nessa época, o pensamento da verdade estava subordinado aos

preceitos religiosos, ou seja, a filosofia só poderia existir se fosse para confirmar a

base teológica dos ensinamentos católicos.

No século XVIII, os românticos alemães produziram um “nexo entre poesia e

filosofia que justificava um gênero misto de criação verbal, que nos daria obras de

mão dupla, poética sob um aspecto e filosóficas por outro” (NUNES, 2010, p.2). O

surgimento da Metafísica afastou a religiosidade da Filosofia e Kant leva a poesia a

“uma tábua de salvação intelectual” (NUNES, 2010, p. 2). Nesse momento surge

Goethe com seu pensamento de que o poeta deveria ser fiel às suas vivências.

Benedito Nunes propõe três tipos de relações entre filosofia e poesia:

disciplinar, supradisciplinar e transacional. No primeiro caso, a filosofia tem a poesia

como um objeto de investigação, conceituando-a e determinando-lhe sua essência:

formariam, portanto, diferentes universos de discurso, a Filosofia movida por um interesse cognoscitivo, que tende a elevá-la, mediante a elaboração de conceitos, acima da poesia, dessa forma sob o risco de ser depreciada como ficção e, assim, excluída do rol das modalidades do pensamento. A poesia é considerada inferior ao saber conceptual da filosofia, como pensamento que a supera explicando-a ou compreendendo-a (NUNES, 2010, p. 3).

A poesia se subordina, assim, aos conhecimentos da verdade filosófica,

responsável por fornecer as chaves necessárias para a abertura dos mistérios

expressos pela arte poética. O conhecimento se sobrepõe, pois, à poesia, que está

predeterminada pela filosofia. Mas isso não quer dizer, no entanto, que o

conhecimento filosófico seja nocivo à poesia; pelo contrário, a tradição nos mostra

que, em muitos casos de críticos conceituados, a literatura vem sendo explicada à

luz da filosofia.

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A segunda relação, a extra ou supradisciplinar, estabelece a união mútua da

Filosofia e da Literatura, de tal forma: uma fornecendo bases empíricas para a outra.

O ponto central encontrado pelos românticos alemães da união entre as duas

disciplinas é a discussão do Eu, presente tanto nas discussões filosóficas da época,

como também na elaboração da poesia. Filósofos e poetas estão, pois, imbricados e

impelidos a discutir uma única coisa, o eu e sua construção; um fornecendo ao outro

elementos norteadores da discussão em torno dessa temática. Na verdade, esses

dois campos do saber se unem nesse período para tentar explicar a fragmentação

do eu em busca de sua identidade. Isso só é possível porque, como disse o próprio

Nunes, há um elo poderoso e eficaz que une a Literatura à Filosofia, a linguagem:

afinal, o que, de imediato há, em comum, entre filosofia e literatura? A linguagem. Como assim? É que ambas só existem em obras de linguagem, o que significa que só existem operativamente ou poeticamente, no sentido originário da palavra grega poiesis (NUNES, 2009, p. 27).

A linguagem, desde sempre utilizada para a tradução do mundo, faz-se arma

na mão de poetas e filósofos na busca de um entendimento do indivíduo. Filosofia é,

pois, nesse viés, reflexão da vida humana; e Literatura, expressão da alma humana.

Juntas ajudam o ser humano a entender seu papel no mundo em busca das

verdades universais que nunca se esgotam.

Se a linguagem agora é ponto que, mesmo na distância, aproxima esses dois

campos do saber, o que prevalece agora é o discurso. Temos, nesse caso, o

discurso filosófico, que, pelo movimento “emprestado” pelos românticos, torna-se

sempre discurso poético, a ponto de Nunes dizer: “não é descabido afirmar que toda

filosofia é poética” (NUNES, 2010, p.12). Para se chegar a essa conclusão buscou-

se estudar os filósofos pré-socráticos cujos discursos estavam perpassados de

metáforas, assim como a poesia moderna. O filósofo é o artista do pensamento e

sua única ferramenta é a linguagem, isso o torna, então, o artista da linguagem, da

reflexão do pensamento. Por sua vez, a poesia não necessariamente, torna-se

filosófica, como queriam propor os românticos, embora ela possa suscitar reflexões

que poderão ser melhor compreendidas pela filosofia.

A terceira e última relação entre a Filosofia e a Literatura proposta por Nunes

(2010, p.13) é a transacional, ou seja, o movimento de ir de uma para a outra em

busca de reflexões da vida. Nessa relação, o professor paraense nos quer explicar

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que mesmo próximas – e por vezes, mesmo, imbricadas uma na outra –, Filosofia e

Literatura mantém suas idiossincrasias. “A filosofia não deixa de ser filosofia

tornando-se poética, nem a poesia deixa de ser poesia tornando-se filosófica. Uma

polariza a outra sem assimilação transformadora”. Ou seja, os dois campos de

reflexão não se metamorfoseiam em uma única coisa; os dois concorrem, cada um

com sua contribuição, para uma produção: a poiesis.

Isso não tira o caráter científico da filosofia, que busca, como tal, a verdade.

Mas o que é a verdade senão a mentira poética, o fingimento das metáforas? Essa

aproximação sem uma transformação de uma em outra reforça justamente o que

cada uma se pretende a ser: ciência, poesia, arte da palavra. Ambas unidas pela

produção de metáforas que lhe dão vida.

3.2 ALGUNS CONCEITOS FILOSÓFICOS IMPORTANTES

Como se pretende fazer nesta dissertação uma leitura filosófica produzida por

Clarice Lispector, e depois de fazer uma aproximação entre a literatura e a filosofia,

faz-se necessário apresentar alguns conceitos-chaves propostos pela filosofia

existencialista e que são extremamente importantes para o trabalho pretendido. Tais

conceitos são indispensáveis a uma leitura atenta não só de A paixão segundo G.H.,

mas de toda produção literária de CL, uma vez que ela propôs em sua época uma

nova literatura: a existencialista.

O primeiro deles é o Ser. Clarice propõe em seu discurso uma complexa

reflexão, acerca da construção do ser, e sua definição. G.H. durante o relato que

produz se indaga: “mas como é que se explica que o meu maior medo seja em

relação: a ser?” (LISPECTOR, 2009a, p.11).

Segundo o dicionário filosófico de COMTE – SPONVILLE (2011, p.544-545) a

definição de ser se esbarra em uma dicotomia: o ser pode ser visto como um

substantivo ou como um verbo. Em se tratando do substantivo, a definição é

simples. Bastaria, definido o verbo, acrescentar “o ser é o que é, o ente” (COMTE –

SPONVILLE 2011, p.544).

Como verbo, o dicionário propõe dois usos, um absoluto e outro relativo. Para

melhor explicar, o autor nos traz a reflexão de Santo Tomás, para quem o verbo se

designa como ato de existir e pode servir para unir um predicado a um sujeito,

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indicando a estrutura de uma proposição. Dessa forma tem-se, como exemplos, Ser

é existir e Eu sou lindo, respectivamente.

Em contrapartida a esses conceitos, o dicionário deixa claro que Kant ensina

que ser não se constitui como predicado, porque ao se acrescentar algo sobre o

sujeito, em uma construção copulativa, não se diria mais nada sobre o sujeito

suposto. Na metafísica, por exemplo, temos a questão de Deus: exista ou não, o

conceito de Deus não se altera. Assim, dizer, por exemplo, Deus é amor, não define

Deus, nem tampouco pode servir para demonstrar que Ele existe.

O dicionário, então, resolve a questão apresentando o ser como sendo, ou

seja, o ser é. É o contrário do nada, é sinônimo de existir. “O ser não é, antes de

tudo, um conceito que se poderia definir; é uma experiência, uma presença, um ato,

que toda definição supõe e que nenhuma definição poderia conter. Daí que o ser é

silêncio, e condição do discurso” (COMTE–SPONVILLE 2011, p. 545).

O conceito de ser leva-nos, então, a outro termo: existência. Apesar de

sinônimos, o dicionário apresenta uma diferença etimológica entre ser e existência:

esse vem de sistere, nascer ou se encontrar; e ex, fora. Ou seja, existir é ser no

mundo, no universo, no espaço e no tempo. Existir é, pois, relacionar-se com o que

está fora de si, logo o homem só existe fora de si, vendo-se no outro que ele não é.

Nesse conceito, não existe, pois, o Ser absoluto. “Existir é ser fora: é depender ou

separar-se” (COMTE–SPONVILLE 2011, p. 230). Se existir, nesse conceito, é

relacionar-se com o que está fora, entendemos como necessária e importante a

relação do ser com o outro que ele não é, pois só nessa dependência é que se

existe.

Chega-se, assim, ao terceiro conceito: relacionar-se com o outro é princípio

de alteridade. “Característica do que é outro, ou um outro. A alteridade,

diferentemente da alteração, supõe uma relação entre dois seres distintos, ou

supostamente distintos. É o contrário da identidade, assim como o outro é o

contrário do mesmo” (COMTE–SPONVILLE 2011, p. 25). É o princípio da solidão,

pois “é o que impende dois seres de formarem um só” (COMTE–SPONVILLE 2011,

p. 25).

Solidão, vista sob o olhar da filosofia é “a nossa condição ordinária” (COMTE-

-SPONVILLE 2011, p. 564). Não é estar livre da relação com o outro – o que é para

o homem mortífero –; é entender que mesmo nessa relação, pagamos um preço por

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“sermos”, uma vez que ninguém pode viver por alguém, sentir o que o outro sente,

amar o que e como o outro ama, enfim, morrer com o outro. A solidão é o que me

mantém e me constitui enquanto ser que sou.

Todos esses conceitos concorrem, no projeto literário de Clarice Lispector,

para outro termo: o eu, “um objeto que se toma por sujeito. Este eu não é uma

substância, nem um ser [...] é tão-só o conjunto das qualidades que lhe são

atribuídas ou das ilusões que tece sobre si mesmo” (COMTE–SPONVILLE 2011, p.

223).

Como ficará claro no próximo capítulo desta dissertação, o projeto de

literatura construído por Clarice visa buscar a construção do eu, um projeto

existencialista que não acontece apenas no romance que por ora se analisa. Todas

as obras escritas por ela questionam o ser, a existência, a alteridade e o eu. No

entanto, ao se fazer um estudo aprofundando de sua escritura, logo se percebe que

em A paixão segundo G.H. todas essas questões foram complexamente abordadas,

tornando esse romance, portanto, uma condensação de toda produção literária de

CL, composta por todas as suas crônicas, pelos seus romances e, também, por toda

sua literatura infantil.

G.H., com seu relato, tenta, a todo o momento, explicar o que lhe aconteceu

no dia anterior, logo se vê sem nenhuma resposta para o fato ocorrido. Começam

então seus questionamentos, que vão se aprofundando à medida que ela avança

em sua fala. Logo se vê mergulhada em um oceano de indagações sem nenhuma

gota de explicações. Seu propósito de contar apenas o que se passou fracassa e ela

se depara experimentando a sua própria existência com a força da linguagem.

A narradora-personagem sabia que era apenas “o que os outros me haviam

visto ser; e assim eu me conhecia” (LISPECTOR, 2009a, p. 23). Ela se tratava

“como as pessoas me tratam, sou aquilo que de mim os outros veem” (LISPECTOR,

2009a, p. 25). E nessa relação com o outro descobre-se “detalhadamente não

sendo”; descobre que apenas era o nada; simplesmente, “que eu era” (LISPECTOR,

2009a, p. 31). Chega enfim, à conclusão de que não há conclusão e o que lhe resta

é apenas ir vivendo como der. Esse drama foi vivenciado por ela através da

linguagem, expressão dos questionamentos filosóficos e matéria-prima da literatura

construída em A paixão segundo G.H.

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4 CLARICE E OS OUTROS

Já vimos um pouco de como foram recepcionadas pela crítica as produções

literárias de CL, cujo talento e maestria reservaram um espaço especial à romancista

no universo das letras no Brasil, em uma época na qual a literatura romanesca

encontrava-se em crise. Mesmo alguns críticos apontando algumas ressalvas nessa

literatura, os escritos dela ganharam o ineditismo literário de então e abriu caminho

para o surgimento de um novo estilo literário marcado pela introspecção, reflexão

filosofia, ausência de enredo, tempo inexistente, linguagem cíclica e abordagem

psicológica.

É esse tipo de literatura que será analisada a partir de agora. Será feita uma

leitura do romance escolhido, a partir do pensamento de Sartre sobre a alteridade.

Dentro do conjunto de ideias fenomenológicas da existência ver-se-á como o filósofo

aponta o processo de alteridade, em quais condições e de que forma se constrói a

relação do eu com o Outro no romance A paixão segundo G.H.

Observar-se-ão agora as formas do Outro que estão presentes na paixão

sofrida por G.H. A proposta aqui é abordar como se dá a construção do eu por

intermédio do Outro na literatura clariceana, para isso explicitar-se-ão quais são

esses Outros e como eles são apresentados no texto, bem como a função que eles

ocupam dentro da concretização da relação de alteridade.

O primeiro Outro é o ser social. Apresentando Janair, a empregada demitida

no dia anterior ao relato, CL adentra em um tema arriscado e sutil em sua produção,

é a temática social. Longe de apresentar seu romance como uma cartilha ideológica,

a autora opta por apresentar a questão de maneira ampla. G.H. é uma mulher rica e

detentora de poder na sociedade – dividida em classes e injusta – na qual vive;

depara-se, a partir de Janair, com o incômodo de se ver em alguém inferior sujo

(G.H. esperava encontrar um quarto sujo), descartável (G.H. demonstra o desejo de

encontrar outra empregada), sem valor, desorganizado e esquecido. Tal estereótipo

não deixa a narradora confortável em descobrir quem verdadeiramente é G.H. Mas

assim acontece, e G.H. se vê mergulhada em um mar de ódio, um das condições de

relacionamento com o Outro estabelecida por Sartre.

O segundo Outro apresentado no romance é o animal: a barata. Com ele,

G.H. se depara com a condição animal que habita o seu ser, deixando clara a

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relação que existe entre o animal e humano. Ao contrário do que a tradição cristã-

ocidental nos faz crer, somos animais antes de assumirmos nossa natureza de

humano. G.H. engendra uma verdadeira expedição em busca dessa animalidade,

descobre que para encontrar sua humanização há que se descobrir sua identidade

animal, que fora assujeitada pela tradição cultural.

Em seu relato, a narradora-personagem deixa claro no início de sua fala que

necessita de uma ajuda: de uma terceira perna para se apoiar; de uma mão que a

acompanhará durante toda a expedição íntima. Essa ajuda virá do leitor, aquele que

de maneira ativa participa do projeto do romance A paixão segundo G.H.,

despertando em si seu próprio descobrimento e atuando como observador daquela

que narra, para assim se concretizar a leitura do eu, dentro do processo de

alteridade.

O quarto e último Outro, na verdade, constitui-se de um desdobramento: é a

linguagem, que se desdobra em sua utilização literária. Além de ser o elo de ligação

entre narrador (autor) e seu leitor, é também o espelho onde o eu se vê, se escuta,

se fala e assim consegue se descobrir a si mesmo. A literatura aparece aqui como

condição para se dar o processo de alteridade necessário para o descobrimento e a

tomada de consciência da existência. G.H. (e como veremos, pela relação que ela

possuía com a literatura, a própria Clarice), encontra na produção da literatura uma

arma de conhecimento de si, a única forma de transcender para o Outro e viver o

doloroso processo de ser.

4.1 JANAIR: O OUTRO SOCIAL

A figura de Janair, utilizada no romance, dentre outras formas, também pode

ser vista como uma imagem alusiva à luta de classes, tão presente no Brasil de

Clarice, assim como – embora de maneira diferente – subsista na nossa sociedade

atual.

Atribuir característica ideológica à literatura de CL é tarefa das mais sensíveis,

pois podemos incorrer no erro de apresentarmos o romance criado por ela como

cartilha político-social, o que não acontece na prática. Esse é mais um dos temas

abordados pela autora da forma com a qual ela desenvolveu todos os seus textos:

dizendo sem falar, no silêncio, nas entrelinhas em busca da reflexão filosófica

acerca da existência.

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A divisão de classes se concretiza na obra quando da condição de G.H.

divergente da de Janair. G.H. – mulher rica, divorciada, independente, de boa

condição financeira, sem filho (veja os traços de mulher moderna) e habitante de

uma cobertura de frente para o mar no RJ – divide o espaço com Janair, pobre e

empregada doméstica (em um período em que essa profissão era menosprezada e

não oferecia boas condições de trabalho). Do luxo do apartamento de sua patroa,

para Janair sobrou apenas um quarto, um cubículo, localizado ao final do corredor,

sujo e úmido e que acumula duas funções: tanto serve de moradia para o ser que

limpa e organiza a casa da madame, como também é utilizado como depósito das

coisas que não se utiliza com frequência no apartamento.

A própria narradora deixa clara essa divisão social e agora até acentua a

hierarquização a partir dos cômodos do apartamento:

Começaria talvez por arrumar pelo fim do apartamento: o quarto da empregada devia estar imundo, na sua dupla função de dormida e depósito de trapos, malas velhas, jornais antigos, papéis de embrulho e barbantes inúteis. Eu o deixaria limpo e pronto para a nova empregada. Depois, da cauda do apartamento, iria aos poucos „subindo‟ horizontalmente até o seu lado oposto que era o living, onde – como se eu própria fosse o ponto final da arrumação e da manhã – leria o jornal, deitada no sofá, e provavelmente adormecendo (LISPECTOR, 2009a, p.33).

G.H. sabe que precisará de forças para adentrar no quarto que até o dia

anterior ao do relato era habitado pela empregada, por isso adia o máximo possível

o trajeto entre a mesa na qual se encontra fazendo bolinhas com o miolo do pão e o

cômodo da casa. Mas por que ela precisa ir até lá? O que a motiva a seguir nessa

caminhada? Por que recua adiando sua chegada ao quarto? Por que ela sabia que

algo iria lhe acontecer naquele espaço, já sentia que uma grande descoberta interior

estava prestes a acontecer.

Lembremo-nos ainda de que “cauda” (citação anterior) remete à última parte

(o fim) de um animal. O apartamento é então apresentado como mais do que um

simples local, ele é visto como um organismo vivo, uma célula que gerará vida: uma

nova G.H. É na cauda também, que fica próxima ao ânus (excretor de fezes), onde

fica o que deve ser expelido. Depois do quarto, G.H. fizera planos de “subir”

“horizontalmente” ao lado “oposto” deixando claro que no apartamento (na vida de

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G.H.) existem dois espaços claramente demarcados: um para os empregados, outro

para as patroas, como em uma pirâmide.

Só desce quem já está no topo. Sendo assim, ir ao quarto da empregada era

para a narradora rebaixar-se ao mais repugnante lugar em que poderia se encontrar

uma dama socialmente reconhecida como ela. Esse é o esforço que a narradora tem

de fazer: descer! O que se transforma em uma tarefa extremamente dolorosa e

angustiante, como sentirá um pouco depois. O que a move é o ódio, combustível da

relação de alteridade que se dá entre G.H. e Janair.

Sartre estabelece essa relação de ódio baseada no reconhecimento, no

Outro, da liberdade que possui: “aquilo que odeio no Outro não é tal ou qual

fisionomia, este ou aquele defeito, tal ou qual ação em particular. É a sua existência

em geral, enquanto transcendência-transcendida. Eis porque a ira encerra um

reconhecimento da liberdade do Outro” (SARTRE, 2015a, p.509). O ódio sentido por

G.H. é apenas pela existência de sua empregada e por se ver obrigada, pelas regras

sociais que condicionam sua posição econômica, a conviver com sua algoz, o olhar

que a intimida. Mesmo na distância, a empregada continua a “olhar” sua patroa.

Esse sentimento (tido pela dona do apartamento) transformou o trajeto até o

quarto em um verdadeiro calvário. No capítulo7 em que narra o momento em que se

levanta da mesa é nítida a aflição sofrida no ato que em alguns minutos irá se

concretizar. A narrativa nos prepara para uma terrível derrocada, e o leitor é, então,

levado a também se preparar, pois a queda de G.H. é também a sua.

O apartamento é apresentado como uma pirâmide erguida por “centenas de

operários práticos” (LISPECTOR, 2009a, p.35). Ao jogar o cigarro pela janela, ela se

dá conta do despenhadeiro no qual se encontra seu apartamento. G.H. olha para

baixo: “treze andares caíam do edifício” (LISPECTOR, 2009a, p.35).

Semanticamente os vocábulos pirâmide, despenhadeiro e caíam reforçam o

movimento de descida sofrido pela narradora-personagem, uma descida pior do que

todas as outras, uma vez que essa a levará para a base da pirâmide social: ao

quarto da empregada, local inapropriado para uma mulher rica e bem sucedida.

7 O romance não foi dividido por Clarice em capítulos. Há o espaço em branco que demarca uma pausa entre

um momento e outro a ser narrado. Em nossa visão, essa pausa consiste em uma tomada de fôlego para o prosseguimento do conteúdo a ser narrado. A experiência é sinistra e necessário é, pois, “aliviar” o corpo e a alma nessa empreitada. Decidimos, como já é consensual, considerar essas pausas como capítulos. Esse ao qual nos referimos, por exemplo, se fosse obedecida essa organização em capítulos, seria o 3º.

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A alteridade entre a patroa e a empregada que se analisa aqui é construída,

também, pela concepção de corpo estabelecida por Sartre na relação do Ser-para-

Outro.

Para o filósofo, o corpo constitui-se como a complementariedade de duas

ideias: 1 – “O centro de referência indicado em vazio pelos objetos utensílios do

mundo”; 2 – “Contingência existida pelo Para-si” (SARTRE, 2015a, p.426). Isso

significa que o ser não é visto como simples órgão fisiológico, ou seja, o corpo é a

possibilidade de existência do Outro e é reconhecido posteriormente à consciência

da existência do Outro como ser que me faz ser: “o corpo não é o que primeiro

manifesta o Outro a mim” (SARTRE, 2015a, p.427). A relação que se dá entre o eu e

o Outro não é, portanto, relação de exterioridade (concretizada pela presença do

corpo do Outro diante de mim); mas sim, uma relação de interioridade: “o Outro

existe para mim primeiro, e capto-o como corpo depois; o corpo do Outro é para mim

uma estrutura secundária” (SARTRE, 2015a, p.427).

O que existe primeiro é o olhar que me vê e me constitui ser. Após essa

consciência é que me dou conta do corpo do Outro. Isso significa que o Outro não

precisa existir primeiro enquanto corpo para me ver, uma vez que, assim como o

corpo, o olhar não se trata de um ser fisiológico. O Outro existe, pois, como olhar a

me observar nos objetos – utensílios do mundo, como relação de ausência. Janair

não se encontra mais com G.H. em seu relato, mas as coisas preservam a presença

da empregada, que continuava, mesmo ausente, a olhar G.H..

Janair, analisada na perspectiva de sua condição social, ganha mais poder

enquanto Outro quando, mesmo na ausência, mostra-se como olhar observador de

G.H. Essa primeira relação de alteridade estabelece-se no vazio.

O quarto está vazio, o guarda-roupa está vazio, as figuras representadas na

parede contornam e tomam forma em um vazio, o que representa o vazio existencial

vivido por G.H. que mergulha no seu próprio vazio: o nada existencial.

O próprio vazio do quarto é a presença de Janair indicada na própria

ausência, juntamente com os objetos (cama, guarda-roupa e a janela utilizada pela

moradora do quarto para observar a vista do apartamento – veja a indicação de

Janair enquanto olhar observador) que me fazem aparecer como corpo diante do

corpo do Outro e me fazem, então, ser transcendência-transcendida do Outro,

concretizando, assim, a relação de alteridade. A presença de Janair está marcada

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nesses objetos-utensílios. É a cama utilizada por ela; é o local onde ela guarda suas

roupas; é a janela na qual ela teve acesso ao mundo de fora. Tudo no quarto é

presença da empregada.

Mas se a luta de classes na visão ideológica é representada no eixo vertical,

indo do mais poderoso para o mais vulnerável, a relação entre G.H. e sua

empregada é horizontal. Apavora à madame o fato de ter de conviver no mesmo

plano que sua funcionária; ela sabe que a alguns passos encontrará um ambiente

inóspito e inadequado a sua posição e que sempre fora habitado por uma mulher de

condição inferior. Até que, como possuída por uma obsessão, a narradora, enfim,

resolve ir em direção ao quarto. Quando entra, a surpresa foi inevitável: ao encontrar

um ambiente inteiramente limpo, G.H. se enche de um desagrado físico.

O gesto de abrir a porta do quarto (ação adiada desde o início do relato) é

mais do que uma simples ação. G.H. estava iniciando ali seu processo de

autodescoberta, um procedimento de inicialização do descobrimento de si própria, o

que se reforça pela sensação de oco expressa por ela, oco que não é apenas do

quarto, mas também do vazio que existe em seu ser, o nada que nela habita. Revirar

esse nada é que gera o desconforto e o conflito existencial.

A ação de adentrar o ambiente repugnante é movida, como já se disse, pelo

ódio, que reforça a luta de classes a que se alude nesta dissertação. Ela se sente

incomodada com a limpeza deixada pela empregada e, pior, uma limpeza não

autorizada: “não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse

arrumado o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse

espoliado de sua função de depósito” (LISPECTOR, 2009a, p.36). O orgulho de G.H.

foi brutalmente ferido pela liberdade de Janair, pois o poder exercido sobre essa por

aquela, confirmado pela demissão (G.H. possuía, ou pelo menos pensava possuir

Janair em suas mãos) não foi suficiente para eliminar, derrotar a figura da

empregada. Com o poder que possui, G.H. demite Janair, no entanto, a empregada

ainda encontra condições de arrumar seu quarto, um pedaço de G.H. que ela

(Janair) possuía. Sem permissão, a funcionária interferiu no espaço de sua patroa;

mais do que no quarto, a mulher pobre – portanto inferior – mexeu no “ser” de sua

madame, o que gerou nessa um grande desconforto.

Ao entrar no quarto (ação que simboliza a descida, a queda), G.H. ainda se

sente incomodada com o fato de ter descido até a ala dos empregados, o que a faz

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tentar mudar a posição simbólica do quarto, primeiro elevando-o ao “nível

incomparavelmente acima do próprio apartamento” (LISPECTOR, 2009a, p.37). Em

seguida, logo o transforma em um minarete (torre – parece star, pois em um

castelo), lugar de onde, além de ficar mais elevada em relação aos outros, terá uma

visão ampla de tudo o que deseja ver.

A degradação ocasionada pela “incursão” em si esma se acentua quando ela

se depara com o desenho deixado por Janair na parede do quarto. Trata-se de uma

imagem à carvão de três figuras: um homem, uma mulher e um cachorro. G.H. logo

se dá conta de que ali é a representação dela mesma: “olhei o mural onde eu devia

estar sendo retratada [...] a figura na parede lembrava-me alguém, que era eu

mesma” (LISPECTOR, 2009a¸ p.39,40).

Ao se deparar com o desenho, o processo de autoconhecimento se intensifica

e G.H. mergulha na relação de alteridade com Janair que, pela primeira vez,

ofereceu um julgamento da madame que narra o relato, um julgamento de alguém

de fora do ciclo social da patroa: “havia anos que eu só tinha sido julgada pelos

meus pares e pelo meu próprio ambiente que eram, em suma feitos de mim mesma

e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu

tomava consciência (LISPECTOR, 2009a, p.40). G.H. é, então, ferida por se ver em

um Outro inferior a ela. Seu ego é inflamado e ela não aceita quem a julga, ou pelo

menos não quer aceitar, mesmo sabendo que não há outra saída.

Aqui se inicia o processo de alteridade vivenciado pela narradora-personagem

em toda a sua narrativa. O papel de Janair é escancarar o eu de G.H., que se vê

desnudada por alguém inferior à sua condição de mulher rica. Esse processo

desencadeia uma série de reações na narradora: nojo, repulsa, desconfiança,

desconforto, mal-estar. Essa mescla de sentimentos será o combustível do ódio

sentido por ela e que impulsionará todo o processo de relacionamento com o Outro,

como se verá mais adiante.

Janair possuía um alto poder de visão. O silêncio que é dado às empregadas

domésticas não a impediu de observar G.H. A narradora do relato se dá conta desse

poder de sua empregada quando percebe que essa havia desfrutado melhor da vista

que se tinha do apartamento a partir da janela do quarto. Como pode a empregada

ver mais do que a patroa? Na verdade essa força observadora de Janair é o que

torna possível G.H. de se ver a si mesma.

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Ao se ver, ao se perceber no Outro, o eu sofre uma desestabilização por não

se aceitar conforme essa visão de outrem. Mesmo sabendo que apenas o Outro é

capaz de me ver por completo. Ele enxerga em mim atitudes, expressões,

sentimentos, que muitas vezes eu mesmo sou incapaz de enxergar. Aceitar do Outro

uma visão de mim que não é clara a mim mesmo, é uma confirmação de minha

fragilidade, de minha impotência. G.H. entregou, portanto, toda a sua subjetividade,

sua liberdade ao seu Outro, sua empregada.

O jogo se inverteu: G.H. desceu até o quarto da empregada e com essa

descida perdeu o poder social que pertencia. Seu valor social já não importa mais.

Ela não é mais uma senhora da alta sociedade, vivendo em semi-luxo numa

cobertura no Rio de Janeiro. Agora é SER, e um ser preenchido de nada, de vazio, o

nada existencial.

É por isso que a luta de classes presente nesse romance de CL não se

apresenta da mesma forma que nos textos ideológicos. Aqui a luta de classes se

confirma como luta existencial, uma luta na qual quem mais bens possui se

enclausura numa bolha social conforme as regras que conduzem seus pares – as

madames ricas de uma sociedade desigual –, enquanto quem menos têm – aqueles

que servem aos outros do grupo anterior – possui a liberdade necessária para

descobrir a existência. Janair é socialmente inferior a G.H., mas no plano da

existência é perceptivelmente superior, uma vez que ela possui a chave da

existência de sua patroa. CL consegue ressignificar, dessa forma, a luta entre TER x

SER.

O ódio que G.H. sente não é apenas por Janair; é um ódio coletivo a todos

que pertencem a mesma classe social de empregada. Sartre afirma que “o ódio é ira

de todos os Outros em um só Outro” (SARTRE, 2015a, p.510). A narradora possui o

conhecimento de que as empregadas é quem são as verdadeiras donas das

patroas; são elas (as funcionárias) quem possui a guarda dos objetos pessoais e

valiosos das madames; quem sabe onde estão, quantas são e como usar as joias da

patroa; quem possui o domínio da casa, cuidando, zelando, observando tudo o que

se passa dentro dela; quem sabe o que tem e o que falta na geladeira da mansão. O

poder da madame é um poder imaginário, socialmente construído; elas são apenas

figurantes no mundo da existência. Um poder possuído por G.H., mas que na

verdade não existe, uma vez que não impediu a empregada de assumir o controle

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da situação no jogo da existência e se apresentar como olhar inquisidor para a

patroa frágil e existencialmente desestruturada.

G.H. é revelada a si mesma no olhar de sua empregada, em um processo,

segundo Sartre, guiado pela vergonha. A vergonha de ser visto e se olhar como um

objeto por Janair deixa G.H. em alerta, que toma consciência de sua existência.

Sobre isso, Sartre afirma:

A vergonha ou o orgulho me revelam o olhar do Outro e, nos confins desse olhar, revelem-me a mim mesmo; são eles que me fazem viver, não conhecer, a situação do ser-visto. [...] É o reconhecimento de que efetivamente sou este objeto que o Outro olha e julga (SARTRE, 2015a, p.336).

O olhar de Janair transformou G.H. em um novo ser. Esse processo de

transformação, de metamorfose em si mesma, deixou-a perceber que não era nada,

em relação ao que entendia de si antes da experiência. Receber do outro essa nova

identidade causa dor e sofrimento, como todo processo de metamorfose causa.

O desespero de G.H. é que ela é vista e se descobre, vê-se julgada por

alguém que é inferior a ela; alguém que é descartável, ou seja, facilmente

substituída (G.H. decidiu entrar no quarto para arrumá-lo para a nova empregada

que iria contratar) por outra empregada no dia seguinte. Mesmo doloroso, G.H. não

têm como fugir desse relacionamento, uma vez que não se pode impedir que o

Outro me veja por completo e continuamente. E sem o Outro não há ser; não há

como efetivar o eu (o ser-que-está-sendo) sem o olhar do Outro: “basta que o Outro

me olhe para que eu seja o que sou” (SARTRE, 2015a, p.338).

Dentro do quarto, a narradora, depois de se ver em Janair, descobre um

Outro que a observa de maneira também feroz. É a barata. É sobre essa segunda

relação de alteridade presente no romance A paixão segundo G.H. que vai tratar a

próxima seção. Como se trata do entrelaçamento entre humano e animal, faz-se

importante, antes de se ir para o “x” da questão, apresentar uma breve

contextualização da relação homem-animal estabelecida ao longo da humanidade.

Ela será importante para se compreender o propósito literário de Clarice Lispector

nesse romance. Para isso se seguirá o pensamento de Derrida sobre a relação entre

animal e literatura e o de Evando Nascimento, que explica a presença animal na

literatura clariceana.

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4.2. A BARATA: O OUTRO ANIMAL

Todo o projeto literário de CL centra-se na questão da existência humana; em

buscar o verdadeiro sentido do verbo “existir”. Em A paixão segundo G.H. interessa

a autora falar tudo sobre o humano, ou pelo menos tentar esboçar uma projeto de

vida humana. Neste processo, como já foi visto, o Outro é essencial para a

construção de um pensamento – uma reflexão – sobre essa questão, afinal, o Outro

é quem me diz quem sou. Cabe aqui, então, a discussão – e este é o objetivo deste

trabalho – de quem são esses Outros e qual a participação deles na construção

humana da existência dentro do projeto literário de A paixão segundo G.H.

Neste ponto, o que chama a atenção é quem a autora desse romance

apresenta como o Outro necessário para essa humanização do homem: um animal,

não qualquer animal, uma barata.

Aliás, como já disse Evando Nascimento, “é preciso que o outro seja mesmo

outro, infamiliar, para que a estrutura do evento inopinadamente advenha”

(NASCIMENTO,2012, p. 119). Sob uma relação metonímica, portanto, CL escolhe

um inseto para refletir sore a condição animal que prevalece na existência humana.

A barata foi a escolhida por ser o animal mais antigo a subsistir em nosso

meio. Ela já estava aqui antes mesmo de nós, os humanos, exatamente como hoje

é.

Os animais sempre foram, na tradição ocidental, impedidos do direito à

existência. Sempre foram vistos como seres vazios de subjetividade e de raciocínio.

Como máquinas, seguem até hoje servindo ao homem na afirmação da identidade

dos humanos.

Essa diferenciação homem x animal não pertence aos nossos dias. Desde

muito tempo, em busca de sua afirmação enquanto sujeito dotado de poder para

dominar o mundo e tudo o que nele há, o homem se distanciou dos animais, mas

sem dúvida esse discurso ganha forças na Idade Média, com o pensamento cristão.

Somente depois de criar os animais é que Deus cria o homem e, depois de

fazê-lo, atribui a essa sua criação a função de nomeá-los. É como se aqueles ainda

não existissem, uma vez que não podiam ser chamados, pois não haviam sido

nomeados. Esse ato já seria suficiente, embora não sendo único, para empoderar o

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homem do direito (e até dever, dado o discurso religioso) de assujeitamento dos

animais.

O homem viu-se diferenciado, dentro do grupo dos que possuíam vida, e, no

entanto, eram diferentes dele. A condição de assujeitados – dos animais – segue no

discurso bíblico se destacando em várias outras passagens. Vale lembrar que o

pecado original foi trazido por uma serpente. Em diversos outros trechos, o deus de

Israel ordena que, em nome Dele, sejam feitas inúmeras oferendas, com a morte de

vários animais. No livro do Apocalipse, o mal se travestiu de uma fera, a besta, uma

das razões principais para os animais passarem a ser vistos em sua condição

bestial.

O homem nomeou o animal, ou seja, inventou essa denominação para os que

são diferentes dele justamente para se verem e se autoafirmarem como aquilo que

acreditara ser: Homem. Derrida nos chama a atenção para esse ato linguístico

utilizado até hoje para defender a supremacia humana em detrimento dos animais.

Ele nos diz seguinte:

Todos os filósofos dizem a mesma coisa: o animal é privado de linguagem. Ou mais precisamente, de resposta, de uma resposta a distinguir precisa e rigorosamente da reação: do direito e do poder de „responder. E, pois, de tantas outras coisas que seriam o próprio do homem” (DERRIDA, 1930, p.62).

Rebaixar os animais ao homem apenas pela ausência naqueles de um

sistema linguístico é, no mínimo, desconsiderar o verdadeiro papel da linguagem, a

saber, a comunicação. Será que cachorros, por exemplo, não se comunicam entre

si? E mais: será mesmo que eles não estabelecem comunicação com os humanos?

Somente aqueles que não possuem o privilégio de conviver com os animais

domésticos podem responder essas indagações com um não. Basta que se

perceba, por exemplo, como, dentre vários outros cães, um deles pode atender ao

seu dono apenas esse o chame pelo seu nome. Se nenhum outro deles se dirige ao

humano que lhe chama, isso serve, no mínimo, para que se admita que eles nos

compreendem e também nos atendem com uma resposta. Querer que eles utilizem

o mesmo sistema linguístico que o nosso é, para usar as palavras de Derrida, muita

bestialidade.

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Para esse filósofo, a questão da palavra encerra um mal – e um grande mal –

na história do homem e dos animais, o mal que se

resumiria sobretudo nesta palavra, o animal, que os homens se deram, como na origem da humanidade, e se deram com o fim de se identificar, para se reconhecer, com vistas a ser o que eles se dizem ser, homens capazes de responder e respondendo em nome de homens (DERRIDA, 1930, p.62).

Segundo Maciel (2016, p.16) a questão entre homem e animalidade teve seu

apogeu no século XIX com o crédito dado ao pensamento cartesiano. O “penso, logo

existo” de Descartes foi o responsável pela intensificação do assujeitamento do

animal pelo homem. Em busca de seu rastro, de seu próprio, o homem renegou a

existência do animal. Mas esse poder não é suficiente, segundo Derrida, para se

estabelecer a divisão homem x animal, aliás, para o filósofo, esse poder transforma-

se em defeito para o homem. Ele nos diz que

O próprio do homem, sua superioridade assujeitante sobre o animal, seu tornar-se-sujeito mesmo, sua historicidade, sua saída da natureza, sua sociabilidade, seu acesso ao saber e à técnica, tudo isto, e tudo o que constitui [...] o próprio do homem, consistiria neste defeito de propriedade, neste próprio do homem como defeito de propriedade – e ao „é preciso‟ que se encontra aí seu impulso e seu clã (DERRIDA, 1930 p.83).

Em nome de uma supremacia de espécie, em um exercício de egolatria, o

homem se desvinculou dos animais; pior ainda: retirou de si (ou ao menos pensou

que eliminou) o lado animal que carrega sua espécie. Com um pensamento

humanista equivocado, o próprio homem extinguiu em si mesmo a animalidade que

compõe todos os tipos de seres vivos. Isso coloca o homem diante de uma

dicotomia radical: ou se é humano, ou se é animal; nunca, porém, assume-se a

possibilidade de união entre essas duas condições.

Mas não se trata, como bem diz o próprio Derrida, de atribuir ao homem a

figura de um animal, nem tampouco conferir a condição de humano ao animal de

uma forma totalitária. Trata-se, isso sim, de reconhecer que, antes de ser humano, o

homem é um animal, pode até ser diferente dos animais (mas todos os animais são

diferentes uns dos outros), o que implica não errar em condicionar todas as espécies

animais diferentes do homem em um tabuleiro diferenciado e único. O importante e

necessário é pensar em uma multiplicidade de espécies animais na qual também se

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faz presente o homem. É pensar que o humano do homem não exclui o não humano

que habita em seu ser. É acreditar ser verdade o que diz Evando Nascimento, em

seu livro Clarice Lispector – uma literatura pensante:

O que para mim está em causa, desde sempre, é entender como certo valor de não humano habita o coração do humano. E mais, talvez o que assim se designa negativamente – o não humano – seja fonte do próprio homem e de sua humanidade. O não humano seria, não só o que não se reduz ao Homem (com maiúscula) historicamente constituído, mas também aquilo que permitiu a emergência, sobretudo a partir do século XIX, do humano e seu desdobramento (NASCIMENTO, 2012, p.16).

Essa fronteira entre o homem e os animais, ou seja, o limite entre o humano e

o não humano do homem, muito vem sendo retratada por meio da arte literária,

sobretudo, na literatura moderna, da qual são representantes autores como Kafka,

Borges, Cortázar, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, dentre outros, que souberam

como poucos, representar esse dilema por meio da linguagem poética.

Para esses autores vale uma reflexão do que significa ser humano e qual a

relação disso com os animais. Eles não costumam representar alegoricamente os

animais como sendo simplesmente imitadores das ações e do pensamento humano,

ao contrário, os animais, na literatura produzida por esses autores, assumem a

condição plena de animais e, assim, animalizam o homem na busca pela sua

humanização.

Vê-se, portanto, que literatura constitui-se de uma forte arma no combate à

dicotomia humano x animal, com a supremacia do humanismo. Ela nos faz refletir

sobre a condição animal que preenche todo ser que se diz humano. Como diz Ester

Maciel em seu livro Literatura e animalidade:

As tentativas literárias de se recuperar o ele intrínseco entre o ser humano e o não humano têm se afirmado no nosso tempo como formas criativas de acesso ao outro lado da fronteira que nos separa do animal e da animalidade. São forma bastantes variadas, obviamente, que vão do exercício ficcional à apreensão, pela linguagem, de uma outridade animal, tarefa essa atribuída, sobretudo, à poesia. Cada uma com sua maneira peculiar de fazer do animal um animal escrito (MACIEL, 2016, p.25).

Essa recuperação da intrínseca relação entre humano e não humano em sua

face literária foi, sem dúvida, bastantemente alcançada por Clarice Lispector em sua

produção literária. É vasta a lista de trabalhos nos quais ela aborda essa questão.

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Ela mesma chegou a declarar: “não ter nascido bicho parece ser uma de minhas

secretas nostalgias. Eles às vezes chamam do longe de muitas gerações e eu não

posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado” (LISPECTOR,

1999, p.337)

Importa ver como foi representado em A paixão segundo G.H. o limite da

animalidade humana. Trata-se de analisar como se constitui o Outro-barata na

relação de alteridade estabelecida no texto pela personagem G.H. A explanação

precedente sobre a questão da animalidade torna-se valida nessa empreitada

quando da importância da contextualização para a humanidade da relação entre o

homem e o animal e como essa relação se configura no âmbito da arte literária.

Como G.H. se vê olhada por um inseto, portanto, um animal, viu-se a necessidade

de tal explanação.

4.2.1 G.H. e a barata: uma literatura animal-humanizadora

Como se viu anteriormente, ao entrar no quarto, G.H. esperava encontrar um

ambiente sujo, desorganizado e totalmente inóspito. A realidade, porém, foi outra: o

quarto estava bastantemente organizado e limpo. O vazio do quarto é contrastado

apenas com a cama e o guarda-roupa, o único objeto que dentro do vazio do quarto

ocultava outro vazio.

G.H., dando continuidade a sua viagem interior, percebe que deveria revistar

o móvel. Resolve, pois, encerá-lo “para dar-lhe algum brilho” (LISPECTOR, 2009a,

p.45), e decide fazê-lo, pois percebe que a aparência dele não era agradável. Mas

ela decide ir mais além, já que se encontra decidida a mergulhar nas águas

interiores do seu ser. Decide abrir o guarda-roupa. Era como se estivesse vendo o

seu próprio interior: “como o escuro de dentro me espiasse, ficamos um instante nos

espiando sem nos vermos” (LISPECTOR, 2009a, p. 45).

A jornada interior da narradora-personagem iniciou-se logo ao entrar no

quarto, no entanto, ainda restava um pequeno lugar que abrigava o resto da

escuridão que possuía naquele lugar: o guarda-roupa. E eis que surge, do mais

recôndito interior dela um elemento grotesco e horripilante: a barata. O inseto

ancestral, que “há trezentos e cinquenta milhões de anos se repetiam sem se

transformarem” (LISPECTOR, 2009a, p.47), surge despertando em G.H. uma

explosão de sensações: alegria, ódio, amor, tristeza, nostalgia. Seja o que for, o

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importante é que a barata inicia um projeto de alteridade repugnante para a

narradora.

Esse inseto foi o escolhido por ser o mais perto, dentre todos os animais, do

início da vida, do nada, do surgimento de tudo. Antes mesmo de nós, seres

humanos, existirmos, a barata lá já estava exatamente como é hoje, resistente a

todas as intempéries da vida.

Ao se deparar com a barata, G.H. sente que algo grandioso e inexplicável vai

acontecer e é essa sensação que lhe causa medo; medo de saber que foi invadida

por si mesma. Tentando se recusar a experimentar esse processo ela tenta

esconder seus olhos da barata tentando impedir que a outra lhe olhasse, mas não

consegue e é invadida por um misto paradoxal de medo e alegria:

o medo grande me aprofundava toda. Voltada para dentro de mim, como um cego ausculta a própria atenção, pela primeira vez eu me sentia toda incumbida por um instinto. E estremeci de extremo gozo como se enfim eu estivesse atento à grandeza de um instinto que era ruim, total e infinitamente doce – como se enfim eu experimentasse, e em mim mesma, uma grandeza maior do que eu. Eu me embriagava pela primeira vez de um ódio tão límpido como de uma fonte, eu me embriagava com o desejo, justificado ou não, de matar (LISPECTOR, 2009a, p. 51-52).

Aqui já se inicia o processo de alteridade entre G.H., o homem, e a barata, o

animal. A exploração de si mesma não se dará na solidão, ela possui algo muito

mais forte que ela própria: um ser dotado de toda a capacidade geradora de sua

vida íntima:

uma rapacidade toda controlada me tomara, e por ser controlada ela era toda potência. Até então eu nunca fora dona de meus poderes – poderes que eu não entendia nem queria entender, mas a vida em mim os havia retido para que um dia enfim desabrochasse essa matéria desconhecida e feliz e inconsequente que era finalmente: eu! Eu, o que quer que seja (LISPECTOR, 2009a, p.52) (grifos nossos)

A barata devolveu G.H. a si mesma. E o processo segue, na narrativa,

causando uma estranheza incrível de si: “sem nenhum pudor, comovida com minha

entrega ao que é o mal, sem nenhum pudor, comovida, grata, pela primeira vez eu

estava sendo a desconhecida que eu era” (LISPECTOR, 2009a, p.52).

O animal, representado pelo inseto, começa, pois, a novamente despertar o

ódio em G.H., que se vê de posse de seu maior segredo: sua identidade. Esse

sentimento ocasionará uma desgraça, outro momento especial na narrativa que se

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desenrola, a morte da barata: “[...] Só que desconhecer-me não me impediria mais, a

verdade já me ultrapassara: levantei a mão como para um juramento, e num só

golpe fechei a porta sobre o corpo meio emergido da barata - - - - - - - - - - - - -“

(LISPECTOR, 2009a, p.52).

De mulher rica, dona de um apartamento à beira mar, G.H. transformou-se

em assassina. O medo que sentia antes, medo maior do que ela própria,

transformou-se em ação. Ela não se via capaz de cometer crime. Tanto que em

seguida ao ato proibido, toda “trêmula”, ela fecha os olhos e se pergunta: “que fizera

eu?” (LISPECTOR, 2009a, p.52).

Mais assustador que a pergunta é a resposta, que veio também em forma de

indagação: “que fizera eu de mim?” (LISPECTOR, 2009a, p.52 [grifo meu]).

Emblemática porque com essa pergunta G.H. se denuncia a seu leitor como sendo a

própria barata. Ao matá-la, G.H. reconhece a condição animal que compõe seu ser.

Assim é que no romance analisado pode-se traçar uma representação do

animal na literatura de CL. A exemplo dos autores modernos, citados anteriormente,

que abordaram o assunto animalístico, Clarice apresenta o animal com sua força

interior capaz de mostrar para o próprio homem sua própria condição de animal.

G.H., a partir desse acontecimento, será vista, por si própria, e se fará ver,

como animal. Mas isso não quer dizer que a personagem, à Kafka, tenha se

metamorfoseado em um inseto. G.H. continua humana, mas agora ela é um Homem

com consciência de sua condição animal. Ela alcançou seu estágio inicial, afinal,

como todos os seres humanos, ela é, antes de humana, animal. Ter atingido essa

condição foi o suficiente para se iniciar nela um doloroso, angustiante, repugnante,

odioso, porém, alegre (“o coração, me batia quase como numa alegria”

(LISPECTOR, 2009a, p.51)) processo: é a alegria da alteridade. Mesmo sem saber,

ela já sentia a alegria de tudo isso que lhe aconteceu.

Ainda de olhos fechados, ao matar a barata, impera em G.H. uma luta

interior que a fez regredir à condição primeira de vida (já simbolizada pela

ancestralidade sugerida pelo inseto), agora ela volta a, a exemplo dos bebês, que

descobrem o mundo pela boca, sentir o gosto da vida, o gosto de si mesma, ela se

transformou no sabor de si própria: “eu toda estava com sabor de aço e azinhavre,

eu toda era ácida como um metal na língua, como planta verde esmagada, meu

sabor me veio todo à boca” (LISPECTOR, 2009a, p.53).

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Aí vem, então, a pergunta fatal: “o que matara eu?” (LISPECTOR, 2009a,

p.53). Indagação que nos prova a transformação que acontecera dentro dela. Nesse

momento, outra prova da transformação de G.H. em uma outra G.H., ela passa a se

retratar no romance na 3ª pessoa: “essa mulher calma que eu sempre fora, ela

enlouquecera de prazer?” (LISPECTOR, 2009a, p.53). Ela própria não se reconhece

mais, afinal: quem é essa G.H. assassina?

No entanto, a narradora, enfim de olhos abertos, se dá conta de que o golpe

deferido contra o inseto não fora suficiente para a morte dele, a barata ainda estava

viva; imóvel, mas viva. Isso inflama na personagem mais ódio ainda, mas um ódio

apaixonante – um ódio sem cólera –; como pode ser tão resistente e não obedecê-la

no gesto de morte de sua carrasca? Na verdade G.H. tenta, em vão, se desvencilhar

do olhar do Outro, mas, a exemplo do que se passou com Janair, a narradora se vê

novamente sem o poder necessário diante do Outro, uma situação impotente.

Mas ela não se dá por vencida, luta com toda a sua força, engendra uma luta

contra si e “enfim conseguindo me ouvir, enfim conseguindo me comandar – ergui a

mão bem alto como se meu corpo todo, junto com o golpe do braço, também fosse

cair em peso sobre a porta do guarda-roupa” (LISPECTOR, 2009a, p.54).

No entanto, esse é outro momento de tensão: “eu vi a cara da barata”

(LISPECTOR, 2009a, p.54). O olhar, nessa relação com o animal, é algo de extrema

significação. Ver significa se ver no Outro, o olhar é, assim, a porta de entrada em si

mesmo pelo Outro. A partir do momento que ela “vê”, tudo se clareia, tudo se torna

mais transparente e G.H. definitivamente se olha no olhar da barata, enxerga-se

como barata, torna-se barata. Ao olhar, ela consegue, nitidamente, descrever a

barata. Esse momento é tão significativo no romance que não se pode deixar

passar. Veja-se a riqueza de detalhes:

Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real. [...] E es que eu descobria que, apesar de compacta, ela é formada de cascas e cascas pardas, finas como a de uma cebola [...]. Ela era arruivada. E toda cheia de cílios. Os cílios seriam talvez as múltiplas

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pernas. Os fios de antena estavam agora quietos, fiapos secos e empoeirados. A barata não tem nariz. Olhei-a, com aquela sua boca e seus olhos: parecia uma mulata a morte. Mas os olhos eram radiosos e negros. Olhos de noiva. Cada olho em si mesmo parecia uma barata. O olho franjado, escuro, vivo e desempoeirado. E o outro olho igual. Duas baratas incrustadas na barata e cada olho reproduzia a barata inteira” (LISPECTOR, 2009a, p.54-55).

Aí está toda a maestria da autora. CL utiliza-se do jogo da literatura para

apresentar agora a nova G.H., um ser animal. Esse é o momento do recebimento da

olhada do Outro, quando o eu recebe dele a mensagem de quem se é. Essa não é a

descrição da barata, mas sim, a visão de si que G.H. enxerga no seu Outro, não se

pode esquecer de que ela agora não é mais apenas G.H., é um animal.

Sartre já advertiu, como se viu anteriormente, que o eu não se enxerga a si

próprio. Isso porque ele é incapaz de se colocar na condição de objeto de si. G.H.

confirma sua identidade no olhar observador do Outro, brilhantemente escolhido por

CL, pelas razões já mencionadas, para alertar os leitores dela da animalidade que

também as compõem.

Dentro do pensamento existencialista sartriano o olhar é condição

fundamental para se dá a relação do eu com o Outro. Ele diz:

para que o Outro seja objeto provável e não um sonho de objeto, é necessário que sua objetividade não remeta a uma solidão originária e fora de meu alcance, mas sim a uma conexão fundamental em que o Outro se manifeste de modo diferente daquele captado pelo conhecimento que dele tenha (SARTRE, 2015a, p.327)

A barata, apesar de sua ancestralidade, não era conhecida de G.H. A

descrição anterior da descoberta do inseto mostra que a narradora estava diante de

um semelhante desconhecido. Somente nesse complexo processo de

descobrimento da consciência de sua própria identidade é que ela se descobre

barata como a barata que estava diante dela.

No momento em que é olhada, ou melhor, no instante em que tem

consciência do olhar do Outro, o mundo desaba e G.H. perde a percepção do

mundo que a cerca. A única coisa que deseja naquele instante é o olhar do ser que

a vê. Sartre explica esse fenômeno afirmando que não se pode ao mesmo tempo,

perceber o mudo e captar a olhada do Outro, isso porque perceber é também olhar e

não se “vê” duas coisas ao mesmo tempo.

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Ao se dissociar do olhar da barata, vem o desassossego, a inquietação do

que resta: “a vida me olhando” (LISPECTOR, 2009a, p.56). G.H. declara: “não quero

o que vi” (LISPECTOR, 2009a, p.56). E o que ela vê: vê-se dentro dela mesma, não

deseja, entretanto, chegar tão longe e descobrir o segredo que encobre a vida: o

que ela é. A revelação desse segredo causa náusea: “enquanto eu recuava para

dentro de mim em náusea” (LISPECTOR, 2009a, p.56). G.H. fecha, então,

novamente os olhos, pois continuar a ver é mexer na ferida aberta que não cicatriza,

é descobrir o ser.

No auge de sua náusea, a personagem declara: “a entrada para este quarto

só tinha uma passagem estreita: a barata” (LISPECTOR, 2009a, p.58). Como dito

anteriormente, o quarto transforma-se em uma metáfora para o ser íntimo de G.H.,

ao adentrá-lo, pois, ela se enxerga, mas essa visão só se completa com a barata, o

Outro que enxerga para ela quem ela é verdadeiramente: “ali entrara um eu a que o

quarto dará uma dimensão de ela” (LISPECTOR, 2009a, p.59).

Partindo um pouco para a análise linguística utilizada por CL no momento da

narrativa no qual G.H. se depara com a barata pela primeira vez (na edição que

utilizamos, 2009, nas páginas entre 46 e 50) conseguiremos entender a sensação de

pânico e pavor na qual se encontrava G.H.

Os substantivos escuridão, grito, susto, nojo (uma vez repetido), horror,

nudez, desconfiança, escuridão, pobreza, hostilidade, deserto, sarcófago, arrepio,

calor, medo (duas vezes repetido), queda, tropeçar (substantivado), fuga, perigo

(duas vezes repetido) nos ajudam a nomear a sensação vivida por G.H. naquele

momento: pavor. Os adjetivos abafado, morto, secado (particípio com função

adjetiva) obsoletas, esturricado, imobilizada, ardente, presa, terror (na função de

adjetivo), podem ser úteis na descrição do espaço, o quarto, cárcere do eu,

explorado pela personagem. A sensação de prisão e a necessidade de libertação

ficam evidentes ao observarmos os verbos repugnara, repelira e tropeçar.

Os substantivos, adjetivos e verbos utilizados pela autora e destacados aqui

nos ajudam a entender o momento no qual G.H. se encontra com o Outro que a

observa, um momento assustador e inteiramente desconcertante. Até aquele

instante, G.H. estava sozinha, no quarto, não havia ninguém para observá-la, apesar

do incômodo sentido antes mesmo de adentrar o ambiente, o encontro com o Outro

(o ser estranho que me observa e me faz enxergar minha própria identidade) é de

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uma profundidade desestabilizante e assustadora. G.H. começa, então, sentir-se

incomodada pelo olhar do Outro e é exatamente isso o que sente o eu ao ser

colocado na posição de objeto a ser olhado pelo Outro, processo que faz o eu ter

consciência de sua existência.

Esse é o momento que Sartre denominou de vergonha. Com o surgimento do

Outro (a barata) o eu (G.H.) se sentiu coagido, vigiado, recuado. Qualquer um nessa

situação se sentiria apavorado. Sobre esse momento, o filósofo escreve: “Quando

estou só, não posso efetivar meu „ser-que-está-sentado‟; no máximo, pode-se dizer

que, ao mesmo tempo, eu sou e não sou este ser. Basta que o Outro me olhe para

que eu seja o que sou.”(SARTRE, 2015, p.33). O incômodo para G.H. é esse ser o

que se é: lembremo-nos do que ela disse no nico da narrativa: “Como é que se

explica que o meu maior medo seja exatamente a ser?” (LISPECTOR, 2009, p.11)

No meio de sua aflição, G.H. faz novo apelo ao seu leitor, a quem já pediu a

mão:

- Segura a minha mão, porque sinto que estou indo. Estou de novo indo para um inferno de vida crua. Não me deixes ver porque estou perto de ver o núcleo da vida – e, através da barata que mesmo agora revejo, através dessa amostra de calmo horror vivo, tenho medo de que nesse núcleo eu não saiba mais o que é esperança (LISPECTOR, 2009a, p.59) (grifos nossos).

O que G.H. está dizendo, na verdade, poderia servir de tradução para o que

afirma Sartre, quando ele ensina que no mais profundo de mim mesmo devo

encontrar o próprio Outro enquanto aquele que não sou (SARTRE, 2015a, p.325).

G.H. é, no olhar da barata, nesta altura da sua experiência íntima, transcendência-

transcendida.

Nessa condição, a mulher G.H. chegou ao limite da existência, chegou ao

nada: “eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido” (LISPECTOR, 2009a, p.61).

Chegar ao nada é atingir o máximo da experiência existencialista que vive, e ela

alcança esse limite de transcendência na liberdade que possui seu Outro, o inseto.

Mandando ser quem ela mostra em seu olhar, a barata anula a possibilidade de

liberdade que existe em G.H., novamente esse Outro é mais valente que G.H., que

se vê naufragando na liberdade que o Outro possui.

Nesse ápice existencialista a narradora-personagem tenta encontrar uma

definição de ser que é:

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eu, corpo neutro da barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo fora de mim – eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede – sou cada pedaço infernal de mim – a vida em mim é tão insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e se mexendo. Sou o silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e me defronta: a mesma de sempre. De nascer até morrer é o que eu me chamo de humana, e nunca propriamente morrerei (LISPECTOR, 2009a, p.64-65)

Chegar a essa descoberta não é nada fácil, tomar consciência do que é e ter

em mãos a revelação da vida, o segredo da existência, transforma-se em uma

experiência desconcertante. Mas essa revelação não encerra o processo

existencialista que vive a personagem, uma vez que o Ser não é tão simples assim,

nem possui uma definição encerrada. G.H. seguirá nessa autodescoberta e chegará

ao fim exatamente como iniciou: procurando, procurando, procurando um sentido

para a existência.

É preciso perceber que, nessa definição, ela se vê como a barata, dentre tudo

o que acredita ser, tem certeza de que é a barata (lagartixa, borboleta, também), ou

seja, é um animal, e só alcança o limite da existência enquanto Homem, porque se

depara com e assume a sua condição animal, que insiste em seu ser, isto porque

“os humanos precisam se reconhecer animais para se tornarem humanos” (MACIEL,

2016, p.19).

A percepção de seu lado animal, ou seja, ter consciência de que também é

um animal despertou novamente ódio em G.H., e sua condição de homem tenta

assumir o controle da situação, assujeitando o inseto que está diante dela à sua

vontade. É aí, então, que G.H. força a porta do guarda-roupa contra o corpo da

barata. E mesmo assim, ainda não satisfeita, por ver que a barata continuava viva,

esmaga com mais força ainda o corpo do inseto até que uma massa branca sai de

dentro dele.

Mas ela continua insegura, desnorteada, com medo, sem entender o que

estava acontecendo, sem compreender como lidar com a transformação que se

passara com ela: “é que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não

faz nenhum sentido” (LISPECTOR, 2009a, p.66). Porém, mesmo sem compreender

ela possuía uma certeza de si: “o inumano é o melhor nosso” (LISPECTOR, 2009a,

p.68).

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Até que, novamente, mesmo esmagada e tendo a matéria branca jorrando de

seu interior, a barata continua a olhar a mulher. E novamente o olhar causa o

estranhamento.

G.H. sente que a cada minuto que se passa a barata se apodera da

objetividade dela e, assim, o ser repugnante que tenta não morrer, mesmo depois de

esmagada, continua a ser senhor da liberdade do humano que se apresenta a ela. A

narradora entra em contato cada vez mais com a essência de sua existência.

Mas o que ela deseja agora é experimentar da barata. Comer, sentir com a

língua o gosto que é a matéria da vida, o plasma da existência. Esse canibalismo

demonstra mais uma vez a confluência de desejos entre humano e inumano, o

assujeitamento do animal, através da morte da barata, e o sentir o gosto da vida

para passá-la adiante.

Todo esse processo de alteridade que se dá entre a mulher e a barata, não

esqueçamos, dá-se com uma testemunha que tudo presencia e confirma todo o

processo vivido pela narradora-personagem. Além de testemunha, o leitor atualiza o

processo existencialista sofrido por G.H. e, junto com ela, é impelido a viver sua

própria descoberta. É necessário, pois, analisar esse outro tipo de relação de

alteridade que se dá em A paixão segundo G.H.: a relação com o leitor. Será

explicado no próximo tópico como se dá o entrelaçamento entre G.H. e o leitor de

seu relato, e como esse leitor se comporta no decorrer do relato que chega até ele.

4.3 O LEITOR: A TESTEMUNHA DO RELATO; A TERCEIRA PERNA DE G.H.; A

ALMA JÁ FORMADA DA ALTERIDADE

“Dá-me a tua mão”: este é um pedido que se repete em algumas passagens

do relato de G.H. Um convite emblemático e muito caro na organização do romance

de Clarice Lispector, uma vez que é um elo intrínseco entre narradora

(desamparada, desolada, solitária, perdida dentro de si mesma) e seu interlocutor.

Mais que um convite, essa fala constitui-se de um apelo, um suplício: “por favor não

aguento mais, acompanhe-me, sustente-me, seja a minha terceira perna que me

manterá em pé”, parece falar G.H. Mas quem é esse interlocutor? Qual a sua

importância dentro desse processo pelo qual passa a narradora-personagem? Qual

a necessidade de ele estar marcado tão fortemente e de maneira tão simbólica no

relato dela?

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É no leitor em quem G.H. se apoia e encontra refúgio em uma relação de

extrema confiança. Desde o início de seu relato, G.H. se mostra solitária e em

desespero por não ter um apoio, é assim que ela inicia suas palavras: “- - - - - estou

procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o

que vivi e não sei a quem” (LISPECTOR, 2009a, p.9). Encontrar alguém que a ajude

compreender e dar sentido à experiência pela qual passou (e ainda encontra dentro

dela) é fundamental para G.H. alcançar seu objetivo, que é atribuir sentido a sua

existência. Ela não consegue guardar para si a revelação de seu ser, o que a faz

contar a alguém. Poderia contar de várias formas, no entanto, resolveu produzir sua

história por meio da escrita de um livro.

Na verdade, o desejo de G.H. aqui confunde-se com o desejo de sua

criadora, Clarice Lispector, para quem produzir literatura era experimentar a

existência em sua potência máxima; prová-la, sentir o gosto de viver. Essa

complexidade romanesca na produção de A paixão segundo G.H. aumenta as

relações entre criatura e criador, o que não diminui o valor literário do romance,

muito pelo contrário, expõe um novo modelo de literatura.

É necessário, antes de continuar com essa explicação, explanar um pouco

mais sobre as questões do leitor e do autor presentes nos estudos literários e como,

à luz do pensamento de Compagnon, a crítica literária tratou das questões

relacionadas ao leitor e ao autor.

4.3.1 A ressureição do autor: ressurgimento pela alteridade entre autor e leitor

Ao se apresentar a ideia de que CL, portanto a autora, encontra-se em seu

texto, está se assumindo o posicionamento de Antoine Compagnon em O demônio

da teoria (2010). Depois de assumir-se sem doutrina, no que diz respeito à literatura

– “Eu não tenho fé” – declarou o autor na introdução da obra –, deixando claro que o

estudo da literatura é, por natureza, relativista, dadas as teorias literárias existentes,

marcadas pelo foco de análise que se aceitam nos diversos estudos literários, a

depender do estudioso, Compagnon apresenta a questão do autor, como elemento

literário, ao longo dos estudos da literatura.

O estudioso apresenta a discussão sob dois pontos de vistas: o da tradição –

para quem o sentido da obra encontra-se na intenção do autor –, e o da

modernidade, que enxerga a percepção da noção de intenção como erro.

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Os estudos tradicionais avaliam o texto como um veículo para chegar-se ao

autor, a análise das intenções desse é suficiente, nessa abordagem crítica, para se

explicar o texto e dele extrair seu sentido. O estudo biográfico do autor foi sempre

relevante nesse tipo de abordagem literária (COMPAGNON, 2010, p.47).

O método de análise literária moderno, por sua vez, segue princípios

totalmente contrários ao tradicional. Os pensadores modernos, embasados no

formalismo russo e no New Critics americanos e no estruturalismo francês,

“eliminaram o autor para assegurar a independência dos estudos literários em

relação à história e à psicologia” (COMPAGNON, 2010, p.48). O leitor, nessa nova

visão, é totalmente responsável pelas interpretações possíveis do texto literário, ou

seja, o texto dirá tão somente aquilo que o leitor identificar nele, claro que se leva

em consideração os dois tipos diferentes de leitores: o leitor comum e o leitor

profissional.

Sobre esse método moderno, Compagnon (2010, p. 49) afirma:

a teoria que denunciava o lugar excessivo conferido ao autor nos estudos literários tradicionais tinha uma ampla aprovação. Mas ao afirmar que o autor é indiferente no que se refere à significação do texto, a teoria não teria levado longe demais a lógica, e sacrificado a razão pelo prazer de uma bela antítese? E, sobretudo, não teria ela se enganado de alvo? Na realidade, interpretar um texto não é sempre fazer conjeturas sobre uma intenção humana em ato?

Segundo ele, para se justificar a tese da morte do autor recorreu-se a

associação desse ser, visto como um ser sociológico, com o burguês (os estudos

literários acadêmicos tradicionalistas focalizavam sua análise no autor por esse ser a

representatividade da classe social que gozava de poder e privilégios na Idade

Moderna). O crítico ainda afirma que para alcançar a morte desse ente literário, os

especialistas nesse modelo de análise impuseram a visão do autor como sujeito pré-

enunciação inexistente, ou seja, um ser que existe, se produz, com sua enunciação,

fato que nos leva a crer ser dispensável o estudo da biografia do autor para a

interpretação do texto, exercício agora de competência do leitor.

Indo um pouco mais adiante na sua explanação, o teórico literário afirma que,

na verdade, a nova crítica apenas camuflou um problema que é mais sério e

complexo do que o que ela propôs. A intenção do autor pode sim não ser reduzida a

sua biografia, no entanto, atribuir a interpretação do texto literário apenas à intenção,

eliminando-se o autor, é incorrer em um erro.

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Segundo o estudioso, a Escola de Genebra contribuiu para o fortalecimento

da ideia da morte do autor criando uma nova concepção apoiada na ideia de “projeto

original”, idealizado por Sartre. O leitor (aquele que se dispõe a interpretar a obra

literária) só realizará uma leitura convincente da obra se conseguir resgatar todo o

projeto criador do autor, que obtém a obra a partir de um desejo: o de querer-dizer.

Nesse modelo, para compreender a obra, faz-se necessário que o leitor vá ao

encontro do Outro – o autor – que é visto como consciência profunda. Seguindo

esse cogito fenomenológico, o texto passa a ser visto como explicitação de uma

visão de mundo organizada pelo autor, que é visto como consciência. Com isso, não

se via como importante o estudo biográfico do autor para fins de interpretação da

obra literária, o que importa é o texto, um reflexo da consciência autoral.

Certamente o contexto histórico é geralmente ignorado por esse tipo de crítica, em proveito de uma leitura imanente, vendo no texto uma atualização da consciência do autor, e esta consciência não tem muito a ver com uma biografia nem com uma intenção reflexiva ou premeditada, mas corresponde às estruturas profundas de uma visão de mundo a uma consciência de si e a uma consciência do mundo através dessa consciência de si, ou ainda a uma intenção em ato (COMPAGNON, 2010, p.65).

Como se vê, novamente a biografia do autor foi posta de lado no novo projeto

de interpretação do texto literário, cuja leitura plena será alcançada, nesse novo

modelo, mediante a exploração da expressão linguística de sua consciência, que é o

próprio texto literário, o que faz Compagnon concluir que o autor continua ali

presente, anda que seja como “pensamento indeterminado” (COMPAGNON, 2010,

p.65).

Com isso, os estudos da intenção do autor, para esse estudioso, acabaram se

voltando para o próprio autor como “projeto criador” ou “pensamento indeterminado”.

Ao se voltar para o estudo da escritura como expressão de um querer-dizer, os

novos críticos, pensando que estão diante da obra em si, descrevendo uma unidade,

acabam se voltando para uma estrutura psicológica, que é na verdade, o próprio

autor.

Para Compagnon, o “estruturalismo, misto de antropologia e de psicanálise,

permanecia uma hermenêutica fenomenológica” (COMPAGNON, 2010, p.65), ou

seja,

a nova crítica demanda uma volta à obra, mas esta obra, não é a obra literária [...], é a experiência total de um escritor. Assim também

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ela se quer estruturalista; entretanto, não se trata de estruturas literárias [...] mas de estruturas psicológicas, sociológicas, metafísicas etc (COMPAGNON, 2010, p. 65).

Ao opor a “intenção voluntária e lúcida” (termo utilizado por Picard para o que

se entende por realidade literária), ao subconsciente ou inconsciente da obra de

Racine, Barthes renovou a figura do autor, por meio de uma figura imanente. No fim,

Picard exige o reconhecimento de Barthes de que “a nova crítica muitas vezes não

faz senão [...] consolidar [...] o império do autor, substituindo a vida pela existência”

(COMPAGNON, 2010, p.66).

As coisas mudam quando Barthes propõe uma óptica diferente, a da

linguagem: o texto literário agora tornou-se fechado em si mesmo, sendo capaz de

dizer-se ao leitor, aquele que tenta interpretá-lo. Chegamos ao pós-estruturalismo,

ou a era do desconstrutivismo, ou seja, o autor, deveras, foi substituído pelo leitor no

que diz respeito à investigação interpretativa do texto literário.

Compagnon está em sua obra, O demônio da teoria (2010), fazendo um

traçado sobre a questão literária como um todo. Dentro, especificamente, do ponto

em que trata do leitor, o estudioso tenta apresentar um posicionamento que seja o

de nem excluir de uma vez o autor na obra literária, nem atribuir como um todo ao

leitor a responsabilidade exclusiva sobre a mensagem do texto literário. Para refletir

sobre a figura do autor e do leitor, ele traz argumentos dos tradicionalistas – para

quem o autor é entidade máxima, guardião da mensagem do texto – e os

modernistas – os que acreditam que a mensagem do texto artístico só é descoberta

pelo leitor sem o auxílio do autor.

Para elucidar essa questão, Compagnon traz sobre esse assunto a tese das

passagens paralelas. Algumas passagens “obscuras” do texto literário podem ser

compreendidas buscando-se outras passagens do mesmo autor, no mesmo texto,

ou em outro texto, desde que seja do mesmo autor. Isso é o que pensavam os

partidários da morte do autor.

A tese das passagens paralelas é apresentada por ele como uma prática

incoerente, uma vez que, mesmo disseminando a morte do autor, os críticos

modernos lançam mão de recorrer à passagens do próprio autor para explicar

construções obscuras dentro de uma obra literária em análise. Ora, recorrer à

técnica das passagens paralelas é assumir que a intenção do autor precisa ser

levada em consideração, o que garante a presença dele na obra literária de sua

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autoria, como nos diz o crítico, “realmente, se a intenção do autor é julgada não

pertinente para decidir sobre o sentido do texto, não se entende bem como explicar

essa preferência geral por um texto do mesmo autor” (COMPAGNON, 2010, p.71).

Para esclarecer um pouco mais essa questão, é necessário voltar ao

surgimento da Filologia, no século XVIII, quando o paralelismo verbal passou a ser

visto como uma probabilidade, não como prova. Palavras em contextos diferentes

apresentam significados diferentes. Copangnon (2010, p.69) acredita que o

paralelismo da coisa é mais suspeito e subjetivo que o paralelismo da palavra. Ele

afirma que “desde que não se trate do paralelismo entre um nome próprio e uma

perífrase descritiva, o paralelismo da coisa, é certamente o menos fácil de se

estabelecer e constitui um índice menos forte que o paralelismo da palavra.”

. Não conseguiremos ser honestos o suficiente, nem conseguiremos traçar

um estudo no mínimo relevante da construção verbal da ironia presente em

Machado de Assis, por exemplo, se recorrermos à passagens outras de Fernando

Pessoa. O contrário não se faria verdadeiro se optássemos também por outros

autores contemporâneos ao bruxo do Cosme Velho. Ao comparar ou aproximar um

estilo com outro, teremos, não a interpretação da intenção de um autor por outro,

mas uma leitura de eixos temáticos presentes nas composições dos dois autores. Ao

se estabelecer a aproximação entre obras diferentes, está se desprezando, isso sim,

a intenção do autor e supervalorizando a obra literária, o que não fornecerá uma

leitura capaz de expressar a mensagem da obra proposta pelo autor. Autores

diferentes apresentam intenções diferentes, ainda que recorrendo ao mesmo

recurso literário.

Levando em consideração fortes indícios da presença da autora, Clarice

Lispector, em suas obras e a incompletude da tese das passagens paralelas,

assume-se aqui o posicionamento de Comapagnon, para quem o autor não morreu

e, se não é totalmente o principal responsável pela interpretação literária, deve ser

sim levado em consideração nos estudos literários. Prefere-se adotar o pensamento

desse estudioso da literatura para defender que os críticos modernos, ao aceitarem

buscar em passagens do mesmo autor – em detrimento de autores diferentes –

explicações para passagens obscuras, estavam, na verdade, comprovando a

intenção do autor, para se aceitar de uma vez por todas a presença de CL em seus

escritos.

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Diante do exposto, fica difícil não aceitar que as passagens obscuras do texto

clariceano são bem mais interpretáveis se postas ao lado de outras passagens da

própria autora. Isso porque o texto de CL (e aqui já estamos tratando

especificamente de A paixão segundo G.H.) – é cíclico, é como um espiral em

movimento representando o infinito. Pode-se perceber mais claramente essa marca

de estilo ao se observar a técnica empregada pela autora nesse romance: cada

capítulo inicia-se com a frase de conclusão do seu precedente.

Nesse movimento de linguagem espiralada o leitor é convidado (“segura a

minha mão”) a entrar na narrativa e assumir uma postura de agente no desenrolar

dos acontecimentos. Ao narrar o que lhe aconteceu na noite anterior, G.H. convida o

leitor a se fazer presente dentro da obra. Isso não é simbólico, é um indício de que a

linguagem que está sendo construída precisa ser vivificada e sentida pelo leitor, o

que mostra a importância que o Outro-leitor possui dentro do projeto desse romance.

G.H. decidiu contar o que lhe aconteceu não a qualquer pessoa, mas a um leitor;

não a qualquer leitor, mas, como deixou claro na dedicatória do romance, “a um

leitor de alma já formada”. Prova de que, para CL, viver é escrever. A vida precisa

ser sentida e experimentada, ou pelo menos, ressignificada por meio da literatura. E

quem produz literatura o faz para se relacionar com um leitor.

É assim que se enxerga, aqui, o texto de CL, como sendo um jogo linguístico

entre autor e leitor, os dois presentes na composição da obra literária, o que é

concretizado em uma relação de alteridade, uma relação de significação existencial

que dá sentido ao texto.

Por que, então, deixar-se de lado o autor no estudo da análise literária? Faz

sentido desconsiderarmos a intenção do autor no entendimento do texto literário?

Indo mais além, seria possível uma teoria que levasse em consideração uma

intenção humana em ato somado à interpretação do leitor, a partir de suas

vivências?

Este trabalho propõe que sim. Na literatura clariceana, pode-se observar essa

necessidade de não se desprezar o autor, nem tampouco desconsiderar a presença

do leitor na análise da obra literária.

Para melhor desenvolver esse raciocínio e para que se torne mais clara essa

relação entre autor e obra e entre G.H. e leitor, há que se admitir que A paixão

segundo G.H. também é uma metaficção. Clarice atribui à narradora a função de dar

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forma ao que viveu, cria, então, uma complexa técnica de produção literária na qual

autora e narradora se mesclam em uma única figura literária.

Dar forma, ou seja, produzir uma literatura sobre o que lhe aconteceu é a

única alternativa que possui G.H. de trazer à tona a existência (“sem dar uma forma,

nada me existe” (LISPECTOR, 2009a, p.13), ou seja, sem literatura não há

experiência de vida. É aí que a personagem decide produzir seu relato: “esse

esforço que farei agora por deixar subir à tona um sentido, qualquer que seja, esse

esforço seria facilitado se eu fingisse escrever para alguém” (LISPECTOR, 2009a,

p.13). E, claro, esse fingimento não é o fingimento da mentira, mas sim o da criação

literária, aquele ao qual aludiu Fernando Pessoa em seus versos: “O poeta é um

fingidor / Finge tão bem / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente”8.

Como o projeto literário de Clarice Lispector é existencialista, ou seja, uma

reflexão sobre “ser”, sobre “existir”, e – como se defende aqui desde o início – para

que se chegue à plenitude existencial é necessário o Outro, que apresentará o Para-

si ao próprio eu, é necessário levar em consideração a relação entre autor e leitor na

construção desse projeto. Ambos apresentam marcas profundas durante o

desenvolvimento do relato, aquele mais do que falando e esse mais do que

escutando.

O leitor, nesse romance, é convidado a dele fazer parte e concretizar a

experimentação da vida que se dá nesse texto. Ele será o grande responsável por

apresentar G.H. a ela mesma. Nessa obra, o leitor por meio da intimação: “segura a

minha mão”, adentra o texto literário e assume a grande responsabilidade de dizer a

G.H. quem ela é, coisa que ela mesma não sabia e a deixou com náusea justamente

por essa apresentação inesperada.

G.H. conta a sua própria história, que pode ser aceita como a história da

própria Clarice. Para essa autora, assim como para G.H., somente na troca de

palavra com o leitor, por meio do texto literário, é que se descobre o verdadeiro

sentido do verbo “viver”; chega-se ao último estágio da existência, ao nada profundo.

Por isso é que CL se apresenta ao seu leitor por meio de sua personagem. A autora

sentia a necessidade de transformar a experiência de vida por meio da literatura,

uma forma de ela possuir para si o sentido e significado da vida. Ela mesma chegou

a declarar em uma de suas crônicas que

8 Trecho do poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa.

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Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. [...] A palavra é o meu domínio sobre o mundo.[...] Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar [...] (Lispector, 1999, p. 101-102).

Escrever para Clarice era um exercício contínuo de autoentendimento. Sartre,

sobre isso, afirma que esse é um exercício linguístico de fugir para fora de si

mesmo, revelar-se a si mesmo. Clarice sabia exatamente o que estava fazendo:

tentando, com sua escrita, dar a si mesma o direito de se escutar e de se

autoafirmar, encontrar em sua própria existência o sentido da vida.

E nessa empreitada de escrever, G.H. se pergunta: “terei que ter a coragem

de usar um coração desprotegido e de ir falando para o nada e para o ninguém?”

(LISPECTOR, 2009a, p.13). Não. Escrever só assume o papel de experiência

existencial se for escrita para alguém. “Mas receio começar a compor para poder ser

entendida pelo alguém imaginário” (LISPECTOR, 2009a, p.13). Não se pode dizer

que a narradora (que acumula agora também a função de “escritora”) escreve para

alguém imaginário, desconstruindo, assim, a relação de alteridade que pretende

estabelecer com esse Outro leitor. Em uma experiência metafísica, esse leitor é real

e já foi determinado pela própria CL na dedicatória do romance, “um leitor de alma já

formada”.

E esse leitor é então inserido na obra (considere-se que existem “duas” obras,

uma dentro da outra; uma de CL, outra de G.H.), tanto no relato de G.H. quanto no

próprio romance de Clarice. A esse leitor é lhe dada uma ordem: “toma o que vê,

livra-me de minha inútil visão, e de meu pecado inútil” (LISPECTOR, 2009a, p.15).

Não se trata, pois, de um simples leitor a quem se é decido contar, sem nenhum

compromisso o que se passou na noite anterior ao relato. Esse leitor é um Outro a

quem lhe é imposta a responsabilidade de “ser” junto com G.H. e ao mesmo tempo

torná-la um ser no momento da escrita. Ele é convidado a se encontrar com a

narradora na “re-vivência” do momento epifânico. E esse não é um simples convite;

o leitor não tem escolhas, porque a linguagem só apresenta significação quando

entram em ação locutor e receptor. E esse convite foi dado e aceito pela própria

narradora do relato.

O leitor aqui é, pois, o Outro que mostrará com seu olhar como é G.H. Vista

de maneira ampla, ele é a figura metafísica que sempre mostrou a CL a sua

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objetividade. Por meio do olhar dele, ela passou a se ver. Essa é mais uma relação

de alteridade construída no romance A paixão segundo G.H.

Mas se a escritora Clarice decide utilizar a literatura para encontrar seu

sentido da vida e com ele alcançar o limite da existência, há que se perguntar: e o

leitor, o que o faz decidir encontrar-se com um livro de CL? Essa não é uma

pergunta simples de se responder. Não se sabe o motivo de alguém ir em busca do

livro A paixão segundo G.H. No entanto, ao se deparar com esse romance, uma

coisa é certa: o impacto inicial causado por uma narradora “perdida” faz com que

ele, o leitor, mais do que continuar a leitura, assuma a atitude de agente no

desenvolvimento desse exercício. O leitor de G.H. ao se deparar com o drama dela,

se vê na condição de ser também em busca do mistério da existência, percebe-se

um leitor de alma não formada (ao contrário do que pede a autora em sua

dedicatória) diante da desestabilização existencial causada pelo relato.

O desejo da autora, então, não se concretiza, pois o leitor de A paixão

segundo G.H. não pode ser alguém de “alma já formada”. Mesmo aquele que já se

encontra nessa condição, ao se deparar com a história que possui em suas mãos,

sofre um desmoronamento interpessoal capaz de destruí-lo por completo. O

desenvolvimento do relato e a agonia (a paixão) sofrida pela narradora-personagem

se encarregam de conduzir esse leitor em uma incrível e sofrida, porém alegre,

viagem a sua identidade existencial. Isso é prova de que, como bem disse o filosofo

Sartre, “o escritor [...] jamais escapará completamente à insidiosa influência que eles

exercem” (SARTRE, 2015b, p.110 – 111).

Não se está dizendo aqui que o leitor é hipnotizado e controlado por um

escritor, que, na sociedade, possui o poder de apresentá-la a ela mesma; o que se

demonstra aqui é que o leitor assume a postura de agente, decidindo transformar a

experiência da personagem em sua própria história de vida. Ambos, leitor e autor,

celebram um pacto em busca de sua liberdade plena, um sabe que necessita do

outro: a autora quando decide fazer da escrita o único meio para alcançar sua

própria subjetividade e entregá-la a um Outro; e o leitor, que, por sua vez, decide

seguir em frente no primeiro convite da narradora, concretizando a experiência de

alteridade existecial. E ele segue adiante porque se encontra na função de “olhador”

(o que olha a dor) do ser em construção. E se de um lado, sentimos náusea, como

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G.H. ao ser olhada por Outro; estar na função de observador de alguém é

estimulante para nós seres humanos.

O pacto se firma e autor e leitor se transformam em “olhares”. Olhar a procura

do nada, do em-si, na busca pela construção de uma identidade que logo de início

se mostra frágil e múltipla. Isso confirma as palavras de Sartre (2015b, p.106):

nem o autor, enquanto escreve, nem o leitor enquanto lê, são mais deste mundo, transformaram-se em puro olhar; observam de fora o ser humano, esforçando-se para ter sobre ele o ponto de vista de Deus, ou se se quiser do vazio absoluto.

Em busca de suas liberdades, autor e leitor se encontram, um no olhar do

outro e se constroem a si mesmos mediante a fala de seus olhares.

Isso é o que quis dizer Sartre, ainda, quando afirmou que só existiria arte por

e para o Outro (SARTRE, 2015b, p.41). Nesse direcionamento, para o outro é que

acontece o despojamento do autor, que se mostra, e se deixa olhar pelo seu leitor,

quem, de posse da liberdade do dono das palavras, assume o posicionamento

daquele, capaz de, com o olhar, devolver para o autor a chave do mistério da

existência. A literatura surge, assim, como um canal de possibilidade dessa troca de

liberdade.

O que acontece em A paixão segundo G.H. corrobora esse pensamento.

Nesse romance há uma necessidade básica de alguém que, como artista, prescinde

da arte para se comunicar diretamente com o Outro que a ouve (olha), ou seja,

necessita se fazer ouvir por um leitor capaz de re-viver/”re-morrer” junto com ela, e

então, sentir a grande alegria – ainda que sendo difícil – da existência.

Essa é, também, a força que possui a literatura: ela apresenta a possibilidade

de o leitor abdicar de sua própria identidade. Para dar voz e vida aos personagens, o

leitor abre mão, pois, de sua própria liberdade e desse feito, como consequência,

recebe a liberdade do próprio autor que vem sob forma de arte da palavra. Literatura

é, pois, nessa visão, canal de intercomunicação de liberdades individuais entre leitor

e autor. Pelo menos essa é a visão da literatura que se pretende existencial, como é

a produzida por Clarice, especialmente nesse romance de 1964.

Depreender-se de sua própria liberdade significa abdicar de seus próprios

medos, suas angústias, seus desesperos, suas alegrias, de sua própria existência.

G.H. em seu relato, afirma diversas vezes que só pode compreender a si mesma se

for através do Outro, que se faz presente no decorrer de suas palavras. Sua

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insegurança do que é a vida é inteiramente depositada nas mãos daqueles que a

leem para que esse devolva a chave de sua própria vida. O que ela quer descobrir

não é o caminho que se chega ao segredo de “ser” – isso ela já o descobriu no dia

anterior –; no agora, no seu instante, que se concretiza no ato de narrar, compor a

arte literária de sua experiência, o que lhe interessa é descobrir o que fazer com

esse segredo já alcançado. Ela agora já se deparou com o significado da vida, o que

quer saber (e é urgente) é o que fazer com isso: “como é que se explica que o meu

maior medo seja em relação: a ser?” (LISPECTOR, 2009a, p.11). E ela prossegue:

“como se explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o que for

sendo?” (LISPECTOR, 2009a, p.11). E parece ter se arrependido de alcançar tal

extensão do ser: “porque é que ver é uma tal desorganização” (LISPECTOR, 2009a,

p.11). Para por ordem nessa desorganização só o leitor, sua terceira perna de

sustentação.

Essa relação, como já foi dito anteriormente, e é importante ressaltar, é uma

relação metafisica. Não é do leitor universal, generalizado, que se está falando aqui.

CL sabia perfeitamente que estava se comunicando com o leitor específico que na

produção desse romance, assim como em toda a sua obra literária, co-existe com a

sua essência na busca da plenitude existencial.

Aliás, é nessa condição que Sartre inclui toda a literatura: “somos todos

escritores metafísicos” (SARTRE, 2015b, p.178). Mesmo sabendo o peso dessa

denominação e no repúdio que sofreria entre seus pares, ele insiste: “a metafísica

não é uma discussão estéril sobre noções abstratas que escapam à experiência,

mas esforço vivo para abranger, a partir de dentro a condição humana em sua

totalidade” (SARTRE, 2015b, p.178).

O filósofo sustenta seu ponto de vista apresentando a literatura como campo

específico da experimentação humana das experiências da vida concretizada na

ficção criada nos romances; ou seja, “nem o autor, enquanto escreve, nem o leitor,

enquanto lê, são mais deste mundo; transformaram-se em puro olhar; observam de

fora o ser humano, esforçando-se para ter sobre ele o ponto de vista de Deus, ou, se

se quiser, do vazio absoluto” (SARTRE, 2015b, p.106).

Autor e leitor, portanto, mergulham no nada da existência concretizada na

criação literária. É importante, então, que se analise a relação de alteridade que se

estabelece entre autor e literatura. Dentro dessa visão que assumimos, enxergamos

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a literatura como sendo Outro capaz de retribuir ao autor a visão de si. Com outras

palavras, o eu do autor se depara com a criação artística da linguagem para obter de

si uma imagem. Se autor e leitor se constroem em troca de liberdades, isso só é

possível porque há um elo que os une: a literatura. É sobre ela, enquanto Outro

presente no romance A paixão segundo G.H. que se falará agora.

4.4 LITERATURA: LINGUAGEM DE ALTERIDADE

Sobre esse Outro, Literatura, para melhor o aceitar, há que se analisar a

relação intrínseca entre CL e a literatura. Para essa autora, escrever, ou seja, ser

escritora, produzir literatura, era um modo de compreender o grande mistério que é

a existência humana, criar literatura, para ela, era possuir a chave que liberta a sua

essência da vida. Não é à toa que a própria autora declarou que dentre a três coisas

para as quais nasceu está a literatura. Olga Borelli pode ser útil para reforçar essa

relação entre CL e a arte literária: Clarice, afirma Olga, “escrevia simplesmente.

Como quem vive. Por isso todas as vezes que foi tentada a deixar de escrever, não

conseguiu” (BORELLI, 1996. apud: LISPECTOR, 1996, p. XXII).

Em A Paixão segundo G.H. a autora/narradora afirma ter vivido uma

experiência na noite anterior que a deixou “desorganizada”, por isso, no exato

momento da narração, ela está “tentando entender. Tentando dar a alguém o que

vivi e não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização perfeita.”

(LISPECTOR, 2009, p.9). É visível, então, desde o início do relato, a tentativa de

reviver a experiência desconcertante. Mas porque sentir novamente algo tão ruim? A

resposta é dada pela própria autora: “Não confio no que me aconteceu”

(LISPECTOR, 2009, p.9). Há uma tentativa de entendimento, de encontrar

explicações do que se passou e alcançar, consequentemente, a organização.

A autora Clarice, então, recorre à escrita, à linguagem, para o desvendamento

do grande mistério que experimenta. Ela, mais do que qualquer outra coisa, é uma

escritora, constrói o mundo por meio das palavras. Mas para existir a escritora é

necessária outra figura inerente ao ato de escrever: o leitor. No início do romance a

autora deixa claro que procura algo: “- - - - - - estou procurando, estou procurando.”

(LISPECTOR, 2009, p.9). Procurando o quê? De que ela sente falta? De alguém:

“Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem” (LISPECTOR, 2009, p.9). Um

alguém que seja mais do que um simples leitor com quem ela se comunique. Um

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leitor que sinta junto com ela as dores de “uma alegria difícil”, que reviva com ela

toda a viagem introspectiva que sentiu no dia anterior. No decorrer do romance, a

narradora G.H., dá voz à autora Clarice, que insere um outro dentro da narrativa, o

qual recebe uma intimação: “ Dá-me a tua mão: vou agora te contar como entrei no

inexpressivo que sempre foi a minha busca cega e secreta”. (LISPECTOR, 2009,

p.97)

Em seu processo de desorganização, G.H. se impõe um festival de

questionamentos: o que fazer com o que viveu? Como conviver com o que

encontrou? Em quem depositar a confiança dessa nova etapa? Como ser o que

descobriu? Enfim, são inúmeras as indagações de uma narradora que de repente se

descobriu no nada da existência. Nas primeiras páginas do relato é comum se

deparar com a personagem perdida em meio à sua própria essência.

Em um desses momentos reflexivos, após afirmar: “só ao me reviver é que

vou viver” (LISPECTOR, 2009a, p.19), ela questiona: “mas como me reviver? Se não

tenho uma palavra natural a dizer. Terei que fazer a palavra como se fosse criar o

que me aconteceu?” (LISPECTOR, 2009a, p.19). É então que ela decide: “vou criar

o que me aconteceu” (LISPECTOR, 2009a, p.19).

Ao decidir “criar” o que lhe aconteceu, a personagem escolhe produzir uma

linguagem capaz de lhe traduzir tudo o que aconteceu; transformar toda a sua

experiência em linguagem pura. Aqui é preciso ouvir uma voz que ecoa na boca da

narradora-personagem: a voz de sua criadora, a autora. Na verdade aí está a

própria Clarice explicando o que resolveu fazer da vida: uma aventura literária. A

literatura é, pois, forma que da forma à vida. Viver é relatar-se, viver é “literaturalizar-

se”. E não se pode esquecer, é óbvio, que literatura é puramente composta de

linguagem; o ser que a produz, portanto, tenta se dizer a si mesmo; ouvir-se a si

mesmo. E como, segundo Sartre, o eu não consegue se colocar na função de objeto

para si mesmo, faz-se objeto da linguagem para se descobrir nela, que funciona,

portanto, como Outro, nessa desesperada missão de dizer a si mesmo quem é e

como se constitui. O objetivo desse tópico é analisar essa relação de alteridade

entre o eu e a linguagem, ou seja, como o ser se transforma em linguagem pura e a

partir dela é capaz de encontrar para si mesmo o sentido da vida.

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4.4.1 A linguagem: uma atitude para com o Outro

Sartre, em O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica, publicado

no Brasil pela primeira vez em 1997, afirma que a linguagem não é fenômeno ao

ser-Para-outro, é originariamente o ser-Para-outro (SARTRE, 2015a, p.464), é a

experimentação do eu como objeto para o Outro. Ao decidir ser linguagem, o eu

entrega toda a sua subjetividade para a própria linguagem para assim se ver a si

mesmo, ouvir-se a si mesmo. Mais do que um elo de comunicação com o Outro-

leitor, portanto, a linguagem é fenômeno autônomo nessa relação de alteridade.

Antes de, como foi visto anteriormente, metafisicamente, buscar a comunicação com

o leitor (que e outro grau assume a função de Outro), o escritor busca na linguagem

literária uma forma de se traduzir no que de si recebe da linguagem.

Ainda segundo o filósofo, é porque adquiro condições de experimentar

minhas possibilidades e dar sentido aos meus atos em vida é que “eu sou

linguagem” (SARTRE, 2015a, p.465). Aí – e apenas nesse sentido – o autor entra

em concordância com o pensamento de Heidegger, que declara ser o eu o que diz.

Ou seja, minha subjetividade é totalmente experimentada na linguagem e

minha transcendência é transcendida no ato da linguagem, e posteriormente tudo

isso é confirmado pelo leitor (outra categoria de Outro nessa relação de alteridade),

como se viu no tópico anterior.

A linguagem em CL já é um princípio autônomo de significação capaz de

escapar de si e tornar-se maior do que o próprio eu que se diz. Isso a faz entrar em

um novo desespero, porque não se encontra preparada para ser aquilo que se

formou de si na linguagem. Ao se traduzir a si mesma, a autora toma posse de sua

subjetividade; mas o eu não se encontra preparado para se deparar com sua própria

essência. Por isso o conflito que vive G.H.: não sabe viver com o que descobriu que

é. A linguagem aqui é conflito.

Se, como nos faz crer Foucault (2006), Clarice não está como autora em seus

escritos, se a ela não pertence sua obra, o próprio Foucault, também, nos leva a

afirmar que no conjunto de sua obra, ou seja, de sua discursividade, CL deposita

inteiramente seu eu na produção de seu discurso existencialista formado pelo

conjunto de sua obra. Nesse despojar-se de si mesmo, a autora entrega seu eu a si

mesma em um elo constituído pela linguagem organizada de maneira literária. Na

construção de um discurso existencialista, ela necessita atingir todas as camadas

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que compõem o seu eu. É por isso que em suas obras é possível perceber seu

desejo de possuir sua animalidade; seu medo, suas angústias, suas dúvidas sobre a

vida; seu medo sobre a morte, sua relação com Deus, com o divino, com o sagrado;

sua necessidade constante de ser com o Outro; sua própria reflexão à cerca da

composição da arte literária.

Claro que não se diz aqui que o leitor que entra em contato com essa

literatura terá apenas informações sobre a vida de um ser chamado Clarice

Lispector. Todos esses pontos reflexivos que são próprios da autora tornam-se,

também, próprios do leitor ao iniciar o exercício da leitura. É claro que a obra, ao ser

feita, pertence ao leitor, é ele quem buscará sentido às palavras que possui em

mãos. Isso é o que diz a própria autora na dedicatória de A paixão segundo G.H., o

leitor de alma já formada viverá seu próprio drama existencial no decorrer da leitura,

o que faz da literatura de Clarice uma literatura universal.

Ela é a tradução do drama existencial de todo ser humano. No entanto, o que

não se pode negar, é que essa transformação de alma do leitor é possibilitada por

meio de um processo já vivido, experimentado em sua essência, por uma autora que

fez da literatura um exercício de autocompreensão e uma experimentação essencial

da existência. Nesse viés é que o autor alcança o leitor, é obvio, pela linguagem.

Não se está dizendo, como fica claro, que se o leitor não souber o drama

experimentado pela autora, nesse caso, não vivenciará sua própria experiência

existencial suscitada pelo relato de G.H. Essa é uma relação que deve ser entendida

em um estudo aprofundado da escritura da obra, como se está fazendo aqui.

Retirar, pois, a função autor da escrita de CL é, mais do que tornar órfão todo

um projeto existencial da literatura, é desconstruir a relação metafisica presente

entre a literatura e Clarice Lispector, para quem não escrever era estar morta, era

não viver, não possuir isso que se chama existência.

Toda a complexidade do que se expõe aqui deve ser entendida levando-se

em consideração que CL foi a propulsora de uma nova maneira de produzir literatura

no Brasil do final do século XX. Até então, não se viu no país um projeto bem

articulado, complexo e completo de uma literatura existencial como o que foi

composto por ela.

Daí a incompreensão dos que, contemporâneos a ela, analisaram sua obra.

Faltaram a eles a articulação entre a experiência vivida pela autora e a experiência a

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ser vivida, também, pelo leitor. Ambos, juntos, em uma metafísica proposta pela

linguagem (= pela obra) vivenciam na plenitude a experiência da existência. É o que

Helana (2010, p.133) chama de química da linguagem que transforma a escrita num

acontecimento. Ela afirma que

nas mãos de Lispector, a linguagem deixa de ser apenas um meio de comunicação, para alçar-se à condição de algo indispensável à existência. As palavras de que se utiliza ganham corpo e volume e designam, interpretam e questionam, de forma sagaz, os seres e o estar no mundo. É dessa linguagem em alta voltagem – provocadora de mal-estar, angústia e sobressaltos – que se tece o ambiente aparentemente simples, ao mesmo tempo sensível e, por vezes, intelectualizado, de suas personagens.

A escrita de si apresentada na escritura de Clarice não é a mesma presente

nos hyponematas e nas epístolas estudadas por Foucault. Os hyponematas

representam uma relação de fora para dentro, ou seja, ao fazer as anotações do que

via, sentia, experimentava, vivia, o sujeito esperava em outro momento voltar a seus

escritos e após refletir sobre eles tomar decisão que mudaria seu posicionamento

em vida. As epístolas eram textos nos quais seus autores se manifestavam aos

outros por meio da súplica, reflexão, exortação, uma maneira, pois, de atuar sobre o

outro no exercício da escrita. Ambos os textos exerciam sobre o autor o exercício de

autoexame necessário para uma conduta de vida social como recomendava Sêneca.

A escrita de si proposta por CL, em um movimento contrário, percorre um

caminho de dentro para fora. O eu que se apresenta nesse tipo de literatura revira

seu mais profundo interior e, somente quando possui a essência de sua

individualidade, o nada, deixa-se transparecer na linguagem em busca de um

entendimento que só será alcançado no olhar do Outro que a lê. Somente quando

toma posse de seu nada existencial é que a autora se insere no contexto social de

sujeito que passa a se analisar e a se determinar a partir do comando do outro-leitor.

É por isso que o relato é narrado no tempo passado: o drama existencial

experimentado na linguagem toma forma um dia após a experiência vivida. Ou seja,

transformada em “forma” (linguagem) a vida pode ser compreendida e vivenciada

em sua essência, o que será alcançado na relação do sujeito que escreve com o

sujeito que ler.

A literatura existencialista de Clarice torna, pois, esse caráter endógeno, o eu

se transforma na própria linguagem para dela abstrair sua própria identidade. Nesse

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viés é que se tem a linguagem como o outro estabelecendo uma alteridade com o eu

que se põe como objeto e toma posse de sua subjetividade na e pela sua escritura.

Com uma literatura bastante intimista, Lispector, ao fazer um passeio dentro

de si mesmo, acaba convidando o leitor a adentrar seu próprio universo interior e a

via de acesso para a concretização desse processo é a escrita, em sua expressão

artístico-literária. O que acontece com a romancista é que ela se faz linguagem para

adentrar o seu íntimo e, assim, alcançar o mais profundo da sua alma. Esse

processo se configura por meio de uma relação de alteridade, autora e leitor

constituem, juntos, a significação do texto literário. Clarice utilizou a escrita (ou foi

utilizada por ela?) para reflexionar sobre as questões mais íntimas e profundas da

existência humana. E é aí que, apesar de traduções de uma vida individual, sua

escrita torna-se literatura global de primeiríssima qualidade. Ao tratar de seus

dramas pessoais, Clarice leva seus leitores a refletirem sobre a existência de modo

geral. É que por meio da individualidade, ela atinge questões universais: o que é a

vida? Vale mesmo a pena viver? É melhor viver ou morrer? Deus existe? Não que

seus vários romances e contos sejam uma resposta imediata a esses

questionamentos, mas por meio de sua escrita podemos buscar, não respostas, mas

reflexões mais aprofundadas sobre esses pontos.

É por isso que ao se analisar atentamente a literatura produzida por Clarice é

necessário reviver toda a sua experiência de vida. Encontrar-se-á sempre nos

escritos clariceanos a vida da autora. Mas isso não se dá pelo fato de ela ter

produzido autobiografia, como fez sua irmã, Elisa. A vida de Clarice está

profundissimamente marcada em suas produções literárias por essas serem

manifestações de vida, manifestações da experiência do “existir”.

Não se defende com isso que Clarice produziu simples textos autobiográficos.

Aqueles que apresentam datas de nascimento, de publicação do primeiro livro, do

seu casamento, do nascimento de seus filhos etc. Clarice não noticiou sua vida em

seus textos. Ela procurou tecer uma reflexão sobre a vida que possuía em suas

mãos. A escrita clariceana não é um álbum de fotografias da autora, mas sim uma

escrita sobre a vida, sobre seu próprio modo de viver a vida, a existência. Esse

exercício para ela é um modo de existir; de refletir e encontrar razão para “o estar no

mundo”, para o “ser algo carregado de vida”.

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Em Clarice, o ato de escrever é, pois, inerente ao falar de si: era impossível

não se tornar a própria linguagem ao tratar a linguagem. Autor e linguagem se

mesclam em um processo metamórfico de tradução da existência. A autora se

esconde por meio da linguagem, sendo esse o único sentido que ela encontrou para

escrever. O falar de si mesma parece ser o motivo de existir a Clarice Lispector

escritora, isso porque ao fazê-lo ela expõe sentimentos, sensações. Escreve

sentindo, sente escrevendo: “Terminei sendo uma pessoa que procura o que

profundamente se sente e usa a palavra que o exprima” (LISPECTOR, 1984, p.

153).

Esse “falar de si” como marca registrada de sua escritura encontra-se

plenamente na dificuldade que ela apresenta de se separar de seus narradores.

Uma grande característica dessa escritura é a diluição entre autor e personagens.

Esses dois elementos literários, em CL, são uma só figura literária. E isso está longe

de ser um defeito. Ao contrário, trata-se de uma nova forma de fazer literatura.

No entanto, esse exercício de escrever sobre si mesma constitui-se de uma

cilada para a autora. Ao falar de si, ela tenta fugir de si mesma, ou fugir daquilo que

existe dentro dela pulsando como forma de vida. Fuga que constitui o que Sartre

chamou de má-fé, ou seja, a mentira a si mesmo que gera a negação do si. Mas por

que isso acontece? Deixemos o filósofo existencialista nos responder:

Por certo, para quem pratica a má-fé, trata-se de mascarar uma verdade desagradável ou apresentar como verdade um erro agradável. A má-fé tem na aparência, portanto, a estrutura da mentira. Só que – e isso muda tudo – na má-fé eu mesmo escondo a verdade de mim mesmo (SARTRE, 2015, p. 94).

Mas quem esconde a verdade é porque a possui. A verdade do ser é que incomoda

o ser. Saber de si é ser desnudado e se ver sem nada que possa esconder sua

individualidade, principalmente porque essa verdade é descoberta frente ao Outro. A

nudez de si frente ao Outro é que causa estranheza e farto desajuste.

Fugindo de si mesma, ela consegue refletir sobre seus dramas, seus medos,

suas emoções. E para se esconder de si mesma diante do Outro ela inventa outros

nomes, outras profissões, outros mundos diferentes escondendo-se na escrita, cuja

funcionalidade é a de servir de instrumento para se sair de si e, assim, analisar a si

mesma. Mas nessa fuga, ela acaba se entregando; acaba deixando claro que ela é

a própria história narrada.

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O que se vê em Clarice é, pois, uma profunda mentira. Não a mentira como

malandragem, como criação de inverdades. CL finge. Mas o que faz o poeta senão

fingir? Nessa condição de poeta, de artista da palavra, finge não falar de si, finge a

existência de uma vida em paralelo, personificada por meio dos mais variados

personagens. Finge não ser dona da mão que desliza a pena no papel para criar

vida literária. Tudo mentira. Utiliza da má-fé para esconder-se a si mesma.

Nesse fingimento, acaba desabrochando-se como uma flor, que ao nascer

nos convida a penetrar o seu interior, como abelhas a extrair seu néctar, enfim,

penetrar na beleza que há dentro de si. Acaba se mostrando para seus leitores. Por

meio das palavras, da criação literária, Clarice propõe conhecê-la, propõe que

mergulhemos no “nascedouro do espírito que [lhe] habita” (LISPECTOR, 1999, p.

17). Ao dar fala aos seus personagens, acaba se avessando, escancarando o seu

“ser” - da forma mais brutal que se possa imaginar - a sua outra face, o seu interior,

acaba se mostrando não só para o leitor, mas, principalmente, para si mesma. E

esse avesso deixa-se transparecer em sua linguagem. Não que ela escreva difícil.

Ela não é hermética, como o leitor leigo quer fazer crer. Ela toda é avessa de si

mesma quando escreve e para isso utiliza também uma linguagem avessada, ou

seja, “um amontoado de fatos em que só a sensação é que explicaria.”.

(LISPECTOR, 1999, p20). Para lê-la necessário é, pois, utilizar os sentidos e

descobrir o sabor de suas emoções.

A linguagem constitui-se, então, nessa proposta, de condição básica para a

existência de um ser que a utiliza transformada em arte literária para se dizer ao

Outro e desse receber a chave que desvenda o segreda da vida.

Há, nessa literatura proposta por CL, o eu que se diz a si mesmo em sua

relação constituída com o Outro que pratica o exercício da leitura. Nessa escrita não

são os personagens que se desdobram em “eus” previstos no mundo material para

se constituírem como simples elementos literários; há um eu que se desdobra em

personagens e em situações de si mesmo na construção de uma literatura

transmitida ao Outro que a lê e nesse exercício constitui a confirmação do eu dito.

Outra questão séria que deve ser levada em consideração aqui é por que

narrar? Por que decidiu Clarice Lispector transformar sua vida em linguagem?

Benedito Nunes, em A clave do poético (2009), chama atenção para o fato de que

essa necessidade surge como vocação – no sentido etimológico do vocábulo

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vocare, chamamento – que “nasce de impulso irrefreável, objeto de desejo

penetrando a linguagem e reproduzindo-se através do tempo” (NUNES, 2009b,

p.2007). É a condição básica da apreensão da total liberdade que possui o ser da

escritora. Nunes afirma ainda:

sempre inseparável de uma intenção expressiva, o que impulsiona o dizer em Clarice Lispector se desprende da necessidade de contar histórias, da disposição para construir um mundo de acontecimentos, inerentes aos mitos, às sagas e ás epopeias. [...] Para além da mimese dos acontecimentos, a intenção de exprimir-se, excedendo a fábula, recondiciona a atitude da escritora a uma preliminar exigência lírica no uso da linguagem (NUNES, 2009b, p. 207-208).

Esse pensamento de Benedito Nunes corrobora com o que se diz nesta

dissertação. Clarice não escreve simplesmente para fabular, narrar acontecimentos

míticos, nem tampouco se preocupou em transformar a realidade humana em

literatura, sua escrita surge pela busca incessante de ser alguma coisa; pela

necessidade que tem de se dizer a si mesma e enxergar no dito sua verdadeira

identidade, ainda que isso custe passar pela provação de uma experiência dolorosa

e sofredora; ainda que para se chegar a sua essência seja necessário alcançar sua

anulação humana e se encontrar com sua animalidade própria; ainda que se tenha

que passar pela vergonha do despojamento e entregar ao Outro sua total liberdade,

em um desprendimento de sua individualidade.

Essa linguagem de CL a que se alude aqui é a linguagem como espelho da

existência dita por Sartre: “a palavra, que arranca o prosador de si mesmo e o lança

no meio do mundo, devolve ao poeta, como um espelho, sua própria imagem”

(SARTRE, 2015b, p.21).

Depois de se ter visto a relação existencial entre CL e a linguagem, é

chegada a hora de se observar outra questão: o estilo. Afinal, como nos diz Sartre,

“ninguém é escritor por haver decidido dizer certas coisas, mas por haver decidido

dizê-las de determinado modo. E o estilo, decerto, é o que determina o valor da

prosa” (SARTRE, 2015b, p. 30). Analisar a forma que Clarice dá à linguagem não é

menos importante do que se estudar a relação existencial que ela estabelecia com a

literatura; muito pelo contrário, se ela decidiu fazer de sua existência linguagem

pura, faz-se necessária uma análise de que tipo de linguagem ela lançou mão nesse

processo. É o que se fará a partir de agora.

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4.4.2 Questão de estilo: o império do silêncio

Como foi dito anteriormente, em um processo de metaficção, a própria

narrativa de G.H. se encarrega de criar no leitor uma reflexão sobre a composição

literária. Ao tentar atribuir uma forma ao que viveu e experimentou – sem o que não

saberia mais viver –, G.H. se impõe uma dúvida: como fazer o que tem de fazer? Ou

seja, como dizer o que tem a dizer:

será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza do coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor (LISPECTOR, 2009a, p.18).

Na continuação de sua fala, adiando o momento de dizer o que de fato lhe

ocorreu, ela continua afirmando não recear a falta de estética, pois “perdi o medo do

feio” (LISPECTOR, 2009a, p.19). Como se não ter “estética” não já se constituísse

como um estilo determinado. Duas marcas de estilo de Clarice se percebem na fala

da personagem: simplicidade e o não seguimento de padrões literários tradicionais

existentes na época.

Sua literatura surge em um cenário nacional de esgotamento do modelo

regionalista produzido por autores brasileiros – sobretudo do sertão nordestino.

Clarice surge, então, juntamente com Guimarães Rosa, com uma proposta inusitada

de expressão. O plano de exploração da expressão da linguagem proposto pelos

modernistas da semana de 22 parece ter, de fato, se concretizado, a partir do eco da

voz de Mário de Andrade. Ainda que essa não tenha sido a intenção original da

autora, ela conseguiu levar a linguagem a sua expressão máxima de significação.

Diferenciando-se do cenário literário da época, CL produz uma anti-literatura

com provocações linguísticas no campo da existência. Assim é que sua palavra diz

muito mais do que aparenta e o responsável por essa vastidão significativa é o

silêncio. A palavra se esgota, pois não é capaz de transformar-se em coisa, ela

apenas sugere a coisa vista. É no silêncio das entrelinhas que os ser se transmuta

em linguagem capaz de dizer-se a si mesmo e ao Outro.

Assim é que as palavras em CL não desempenham a função de mimetizar o

mundo, de transformar o mundo em literatura. Ao contrário, a linguagem, nessa nova

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forma, alcança o limite de sua representatividade e se torna a própria coisa, torna-

se, pois, matéria de existência. A única coisa que G.H. deseja é falar, e falar é fazer

uso da palavra para materializar o mundo e assim colocar o leitor no mesmo mundo

do qual faz parte, ou seja, a necessidade básica da narradora-personagem é fazer

da linguagem um mundo de acontecimento no qual seja possível experimentar-se a

si mesmo, a partir da objetividade do Outro. Ela queria apenas viver e sabia que

para isso era necessário achar o “nome”, achar a palavra:

aquilo de que se vive – e por não obter nome só a mudez pronuncia – é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser. Não porque eu então encontre o nome do nome e torne concreto o impalpável – mas porque designo o impalpável como impalpável, e, então o sopro recrudesce como na chama de uma vela (LISPECTOR, 2009a, p.174).

Ela sabe possuir o poder sobre a palavra (“designo o impalpável como

impalpável”), por isso a sua coragem de “entrar naquilo que poderia vir a ser o

desespero” (LISECTOR, 2009a, p.172). Possuía inteiro conhecimento de que o

único passaporte para essa viagem seria a linguagem, único meio capaz de colocá-

la em um mesmo plano com ela mesma e assim se dá o seu conhecimento próprio.

A palavra é então a força motriz que a leva para dentro de si. Mas no caminho

descobre um problema: não consegue achar “o nome do nome”, ou seja, não é

capaz de achar a palavra primitiva, aquela que vem antes de todas as outras

palavras, aquela incapaz de apenas nomear, aquela que gera, concretiza. Não

consegue porque antes da palavra o que surge é o silêncio, mas ao chegar nessa

anti-palavra, a literatura de CL acaba encontrando um verdadeiro tesouro, campo de

dizer sem pronunciar. Esta é, pois, a estética de Clarice: a estética do silêncio, a

estética que “por não ter nome só a mudez pronuncia” (LISPECTOR, 2009a, p.174).

G.H. fala, então, em neutro: “não tenho palavras para me exprimir, e falo

então em neutro. Tenho apenas esse êxtase, que também não é mais o que

chamávamos de êxtase, pois não é culminância. Mas esse êxtase sem culminância

exprime o neutro de que falo” (LISPECTOR, 2009a, p.161). Ela se depara com um

embate ao desejar falar e perceber que já utilizou todas as palavras, restando-lhe

apenas o silêncio, ela mesma também terá que aprender a falar no silêncio:

Ah, falar comigo e contigo está sendo mudo. Falar com o Deus é o que de mais mudo existe. Falar com as coisas é mudo. Eu sei que

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isso te soa triste, e a mim também, pois ainda estou vivendo pelo condimento da palavra. E é por isso que a mudez está me doendo como uma destituição (LISPECTOR, 2009a, p.161).

Esse silêncio é tão importante que, também solo sagrado que é, torna capaz o

encontro com Deus, o divino que habita onde a palavra não reina, onde o silêncio

impera.

Com um eu esfacelado, desconcertado, disperso, como se encontra G.H., a

palavra não consegue mais atingir a representatividade plena. Não consegue ser

mais suficiente apenas com o poder de representar o objeto, ela entra num estágio

de antimimese. Assim, Clarice inova a relação do sujeito com a escrita. Ela lança

mão da brutalidade da força da palavra-objeto, aquela que mais do que representar

tornar-se o próprio objeto, ou seja, a palavra aqui vai além da representatividade, é

um modo de aproximar o sujeito da coisa. Um lugar onde “o eu deixa de ser

soberano e absoluto para dar lugar a uma subjetividade mais aberta, mais porosa”

(HOMEM, 2012, p.12), como diz Yudith Rosenbaum no prefácio do livro de Maria

Lúcia Homem, No limiar do silêncio e da letra – traços da autoria em Clarice

Lispector.

A própria Clarice explicou sua relação com essa maneira de dar forma a sua

literatura da seguinte maneira: “mas já que se há de escrever, que ao menos não

esmaguem com palavras as entrelinhhas” (LISPECTOR, 1999, p.174). Há que se

respeitar nesse tipo de escritura o espaço do silêncio, pois ele é a representatividade

do local sagrado no qual se encontra o nada; onde o eu se descortina

completamente e é apresentado ao ser que ele habita. Nessa revelação é que a

existência acontece.

Nesse momento do silêncio é que ela se dá conta de sua fragilidade e de sua

superficialidade em vida. É nesse silêncio, onde o nada habita, que G.H. se dá conta

de que

era uma mulher que vivia bem, vivia bem, vivia bem, vivia n super-camada das areias do mundo, e as areias nunca haviam derrocado de debaixo de seus pés: a sintonização era tal que, à medida que as areias se moviam, os pés se moviam em conjunto com elas, e então tudo era firme e compacto. G.H. vivia no último andar de uma superestrutura, e, mesmo construído no ar, era um edifício sólido, ela própria no ar, assim como as abelhas tecem a vida no ar. E isto havia séculos vinha acontecendo, com as variantes necessárias ou casuais, e dava certo. Dava certo – pelo menos nada falou e

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ninguém falou, ninguém disse que não; era certo, pois (LISPECTOR, 2009a, p.67).

O discurso produzido em 3ª pessoa indica que G.H. já possui em si a sua

própria identidade, a linguagem cumpriu seu papel de espelho na relação de

alteridade que estabelece com sua manipuladora. O discurso no passado mostra

que o eu, não só se viu espelhado na linguagem, como também aceitou a visão que

o Outro possui de si, em uma atitude, como disse Sartre, de apreensão do que o

Outro disse de mim. Não uma aprovação, porque mesmo que reprovasse o que o

outro a diz sobre ela, em nada mudaria o olhar do Outro, uma vez que nessa relação

ele é autônomo. Não há mais o que fazer, a G.H. só resta aceitar a descoberta de

sua fragilidade, a descoberta de que “os alicerces vergam e que, num instante não

anunciado pela tranquilidade, as vigas [que compõem seu edifício interior] vão ceder

porque a força de coesão está lentamente se desassociando um milímetro por cada

século” (LISPECTOR, 2009a, p.67). E é aí que “sem aviso, houve o fragor do sólido

que subitamente se torna friável numa derrocada” (LISPECTOR, 2009a, p.68).

Acontece, então, o momento da tomada de consciência de quem se é.

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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma problemática se viu presente durante este trabalho: quem são os outros

e qual a relação deles com o eu que se apresenta na obra de Clarice Lispector.

Buscando bases na filosofia de Sartre, fez-se uma leitura de como a autora

enxergava a vida e o que dela fazia.

As questões relativas ao ser (O que é ser? O que significa existir?), ao

ateísmo e à religião, às liberdades, à humanização e à animalização do ser, fazem-

se presentes em um projeto literário composto por nove romances, alguns contos e

crônicas e cinco histórias infantis; um projeto literário que culmina na composição do

romance escrito em 1964: A paixão segundo G.H. Tal é a justificativa pela escolha

desse romance: todo o projeto literário existencialista de CL foi potencializado no

relato da alegria agonizante de G.H.

Nesse romance, Clarice se faz presente como autora e como ser que busca

respostas para os questionamentos próprios da sua época. A modernidade na qual

ela viveu trouxe consigo a fragmentação do eu, ou seja, o homem não é mais visto

com um ser individual e estático de antes, sua identidade é alcançada por meio do

desdobramento dos eus que compõem o seu ser. Os avanços tecnológicos

trouxeram praticidade ao homem em seu dia-a-dia, mas o tornaram reféns de si

mesmo. A existência e suas exigências tomam conta, portanto, das reflexões desse

momento. Lispector utilizou sua maestria no uso da linguagem para transformar

todas elas em reflexões literárias, resolveu dar “forma” ao que a vida apresentava

naturalmente pelo contexto que se impunha naquela época.

A linguagem se apresenta na autora de A paixão segundo G.H. como uma

poderosa arma de exploração dessas questões. Dentre todas as coisas para as

quais a autora acredita ter nascido, uma delas foi escrever. Essa atividade era para

ela uma forma de compreender o ser e desvendar seus mistérios, isso porque, a

palavra trona-se expressão das angústias, dos medos, das alegrias, das

necessidades impostas pelo ato de existir, em uma autora tão habilidosa com a

palavra como foi CL.

Assim, escrever para ela, é mais do que apenas ficcionalizar o mundo real.

Como foi visto, sobretudo no capítulo quatro, escrever era uma forma de se ver, de

ser olhada e de se ouvir. Partindo de questões individuais, esse tipo de literatura

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torna-se universal, pois o leitor é convidado a também viver a experiência que só

será sentida se vivenciada na presença do Outro.

Por essa necessidade de ser com o Outro, é possível perceber que a escrita

clariceana é processo de alteridade com os vários Outros que se relacionam com a

narradora-personagem. Sua necessidade de estar sempre em comunhão com os

outros, com aquele que estará fora de si, forçou a busca no projeto existencialista de

Jean-Paul Sartre as bases da leitura que aqui se fez.

Não se pretende dizer que a escrita, bem como todo o projeto literário

desenvolvido por CL seja puramente tentativa de prova do modelo filosófico

proposto por esse filósofo. Tentou-se estabelecer um diálogo entre esses dois

campos do saber por se ver nos dois uma preocupação recorrente: a existência. A

filosofia, nesse caso, foi importante para se entender alguns conceitos surgidos com

a leitura atenta de uma literatura, que como se viu, também é existencialista.

Essa aproximação entre literatura e filosofia ficou clara a partir da busca pelo

que os dois saberes têm em comum, conforme mostrou Benedito Nunes: a

linguagem. O discurso de ambos se materializa no mesmo elemento, que é a

expressão linguística. Mas essa relação não se dá por apagamento de um no outro.

No capítulo I foi visto que literatura e filosofia se encontram na complementariedade.

O discurso filosófico pode, então, apresentar-se na linguagem literária.

Clarice afirma na experiência de G.H. que ser é estar na presença do outro;

Sartre propõe que apenas o Outro é capaz de entregar ao ser a sua constituição

enquanto ser-em-si, sendo o olhar a base constituidora desse relacionamento.

Vendo-se observado e tomando a consciência dessa olhada é que o eu se torna

transcendência-transcendida e se constitui enquanto ser que é.

Pôde-se perceber que com A paixão segundo G.H., Clarice Lispector deixa

clara a necessidade que se tem de estar em comunhão com o que está fora do em-

si para se conhecer. Na verdade, o que deseja a autora em todo o conjunto de sua

obra, e não apenas nesse romance, é desvendar os mistérios da existência, o que

verdadeiramente significa “ser”, o que só se consegue na presença do Outro. Desde

o início dessa narrativa, G.H. explicita essa necessidade, desejando sempre ser o

que o outro a faz ser.

Esta pesquisa, então, tratou de buscar na obra em questão quem são e como

se constituem esses outros, que dentro do relato, fornecem a G.H. uma visão do que

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ela verdadeiramente é. Chegou-se à conclusão de que quatro Outros se impõem no

processo de alteridade desse romance.

O primeiro é o ser social representado por Janair, que para a narradora-

personagem trata-se de um ser inferior e insignificante, substituível até. Mas G.H.

sabe o peso que o olhar dessa empregada teve sob sua constituição enquanto ser.

Mesmo não estando presente no apartamento, na hora do acontecimento da

epifania, continuava a olhar e a envergonhar a sua patroa, fazendo-a conhecer a si

mesma. Constatou-se com a pesquisa que com esse romance foi a primeira vez que

Clarice abordou em seus escritos a questão social. Mas não se disse com isso que

ela escreveu um panfleto ideológico acerca da questão das diferenças de classes

sociais. Tudo na literatura de Lispector apresenta um viéis existencialista; a relação

entre G.H. e Janair é, pois, a discussão entre o ser e o ter: nem sempre quem mais

tem possui a plenitude da existência.

O segundo é o Outro-animal. Com a barata, inseto ancestral, Clarice

questiona a intrínseca relação entre o ser e o animal, levando seus leitores, a entrar

em contato com sua condição animal. Para essa leitura buscamos os estudos de

Derrida sobre a animalização do humano. A barata é o ponto central para G.H. e seu

leitor compreenderem sua natureza animal, afinal, antes de serem humanos, são

seres animais. Pela história da humanidade, principalmente pelo pensamento

cristão, o animal foi assujeitado pelo homem e dele recebeu a condição de besta a

ser combatida.

A barata é, então, a metáfora da animalização do humano e a humanização

do animal. Ela é a responsável por G.H. adentrar em sua força animal que constitui o

seu ser e se ver também animal Mas isso não quer dizer que há uma metamorfose

de um homem em um animal. G.H. entra em contato com o não-humano que habita

o seu ser e lhe torna mais próxima de sua condição primitiva, é assim que acontece

esse processo de animalização humana.

O inseto surge aí como personificação do olhar, condição primeira para o

início do processo de alteridade, segundo Sartre. De repente G.H. se descobre

olhada e inicia-se o processo de alteridade. A narradora-personagem toma

consciência de que possui uma vida e no olho da barata se vê, como reflexo, uma

barata também, ou seja, um animal.

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O terceiro Outro visto com essa pesquisa é o leitor, que é, em um plano

metafísico, um leitor real, um ser para quem o eu se mostra na expectativa da

devolução do que se é. G.H. pede a mão de um leitor para se apoiar durante a longa

caminhada que realizará ao longo da escrita do texto. Esse não é um simples

processo metonímico. Ela quer a mão para sentir a segurança de todo o leitor,

segurança necessária para enfrentar a desconfortante viagem ao centro de si

mesma. É com a mão que ela se apoiará na bengala necessária à vida, espécie de

“terceira perna” utilizada no equilíbrio do em-si. É por isso que a alteridade nesse

tipo de literatura é um processo de alegria, o leitor é necessário e é a única peça

capaz de, com propriedade, afirmar o em-si do eu presente na autora, dando forma

ao que se chama de escrita de si.

O último Outro do processo de alteridade do romance em questão é a

linguagem, que por sua vez se desdobra em outro, a literatura. O eu se torna o

Outro de si mesmo por meio da linguagem, fala a si mesmo, escuta a si mesmo

através da leitura de si, explicitada na e por meio da linguagem.

Toda essa relação de alteridade descrita anteriormente na obra de Clarice só

se dá graças à criação literária. É a arte literária que proporciona a CL um Outro-

linguagem, um Outro-leitor e, somente nas possibilidades do limite da literatura que

G.H. se descobre um animal, um inseto – uma barata.

Desde o início do romance é visível a preocupação de G.H./autora com a

forma que terá que dar a tudo o que se passou com ela no dia anterior. Isso assume

uma importância maior quando se atenta para o fato de que dando forma – portanto

transformando o vivível passado em literatura – ela consegue reviver/remorrer com o

leitor, companhia, como vimos, indispensável nesse processo. A literatura e toda a

sua organização serve à descoberta da existência. Em Clarice, essa linguagem

transforma-se em literatura existencial.

A paixão segundo G.H. é a existência explorada na linguagem. É uma

tentativa de atribuir sentido àquilo que se chama existir. CL apresenta esse projeto

por meio de um estilo inovador, no qual a estrutura apresentada nos romances

tradicionais não consegue mais se sustentar. O tempo cronológico se desfaz diante

do instante-já, momento no qual as epifanias acontecem e o ser toma consciência

de sua existência. O enredo não é linear, com começo, meio e fim; as coisas

acontecem no momento da escritura e a autora perde o controle sobre a linguagem

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e torna-se linguagem na tentativa de se ouvir, ver-se e se entender. Enfim, Clarice

Lispector inaugura o estilo existencial, uma literatura envolvida única e

exclusivamente em experienciar a vida; uma literatura na qual autor e leitor vivem

seus dramas pessoais e os veem presentes na forma de linguagem, numa tentativa

de reviver tudo o que se passou em vida para encontrar o caminho da morte. Mas

morrer para a vida não significa deixar de existir. Ignifica mergulhar no caos interior e

descobrir o nada existencial; é se encontrar na plenitude da existência.

Essa pesquisa, além de acadêmica é pessoal, pois não há como se ler

Clarice Lispector sem descobrir a verdadeira identidade do que se é. Com A paixão

segundo G.H. se descobre bem mais do que o prazer em ler; descobre-se o

verdadeiro segredo da vida: o ser. Nessa descoberta, seu leitor é envolto em uma

difícil e dolorosa alegria: a alegria agonizante de ser com o Outro.

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