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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE CURSO DE HISTÓRIA CAIO RODRIGO CARVALHO LIMA A “CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DE SENTIDO” (HISTORISCHE SINNBILDUNG) COMO CATEGORIA CENTRAL NA TEORIA DA HISTÓRIA DE JÖRN RÜSEN (1983 1986) NATAL/RN 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTE

CURSO DE HISTÓRIA

CAIO RODRIGO CARVALHO LIMA

A “CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DE SENTIDO” (HISTORISCHE

SINNBILDUNG) COMO CATEGORIA CENTRAL NA TEORIA DA HISTÓRIA

DE JÖRN RÜSEN (1983 – 1986)

NATAL/RN

2015

CAIO RODRIGO CARVALHO LIMA

A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DE SENTIDO (HISTORISCHE SINNBILDUNG)

COMO CATEGORIA CENTRAL NA TEORIA DA HISTÓRIA DE JÖRN RÜSEN

(1983 – 1986)

Monografia apresentada ao Curso de

História da Universidade Federal do Rio

Grande do Norte, sob a orientação da

professora Margarida Maria Dias de

Oliveira, para avaliação da disciplina

Pesquisa Histórica II.

Aprovado em: ___ / ___ / _____.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Margarida Maria Dias de Oliveira

(Orientadora / UFRN)

Prof. Francisco das Chagas Fernandes Santiago Júnior

UFRN

Prof. Juliana Teixeira Souza

UFRN

AGRADECIMENTOS

Poderia ser um dia qualquer de aula, no ano de 2009. Poderia ser apenas mais

um aluno a passar pelo curso de história da UFRN. Poderia ser mais um aluno daquela

experiente professora. Mas, não foi. Éramos nós; era a professora a, realmente, ensinar o

aluno para que servia a história; era a profissional, exercendo a sua profissão,

encantando e salvando um aluno da desistência. Não há – absolutamente não há – como

escrever qualquer agradecimento por qualquer passo dado, sem envolver o nome dela:

professora Margarida Maria Dias de Oliveira.

À senhora, todos os louros de quaisquer vitórias que eu venha a alcançar, quanto

a mim, que fiquem as críticas e os descréditos. Como a senhora mesma um dia falou: se

eu acertei, a culpa é sua. Se eu errei, assumo inteira responsabilidade. Muito obrigado,

mestra!

Agradeço também, imensamente, à Pró-Reitoria de Pesquisa da UFRN, a

PROPESQ, pelos recursos direcionados para fomentar os meus estudos, durante longos

quatro anos de bolsista de iniciação científica. Agradeço aos amigos, dos mais próximos

aos mais distantes (ou que se distanciaram), da mesma forma que agradeço à minha

família: a fé que vocês me concederam na humanidade, durante todos esses anos, foi

essencial para que eu continuasse acreditando na história.

Um agradecimento todo especial não poderia deixar de ser para a minha santa

mãezinha, dona Miriam (ou dona Danuza, não sei). Ela que me ouvia, durante dias e

noites de devaneios infindáveis e me deu, dia após dia, a vida.

Agradeço infinitamente aos professores mais maravilhosos que tive durante a

minha graduação: Juliana Teixeira, Francisco Santiago, Margarida Dias, Aurinete

Girão. Todos vocês são essenciais para os conhecimentos que eu, porventura, consegui

reter em minha mente flutuante.

Agradeço aos amores e desamores que morreram no meio do caminho. De tudo,

eles serviram para que eu colocasse a teoria da história em prática e entendesse, na pele,

do que se trata “dotar de sentido as experiências do tempo”. Agradeço ao amor, sempre!

Esse sentimento que enche minha alma de utopia e enche a minha cabeça de coragem

para enfrentar as intempéries de um possível caminho acadêmico.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO............................................................................................................4

2 DA NECESSIDADE DE ORIENTAÇÃO NO TEMPO: CONSCIÊNCIA

HISTÓRICA E CULTURA HISTÓRICA.................................................................18

3 A NARRATIVA HISTÓRICA COMO FORMA DE APRESENTAÇÃO DE

SENTIDO.......................................................................................................................31

3.1 O QUE CARACTERIZA A NARRATIVA HISTÓRICA?......................................33

3.2 TRADICIONAL, EXEMPLAR, CRÍTICA E GENÉTICA: AS TIPOLOGIAS

NARRATIVAS...............................................................................................................37

4 SOBRE A POSSIBILIDADE DE SE RACIONALIZAR O SENTIDO

HISTÓRICO..................................................................................................................47

4.1 A EXPLICAÇÃO NARRATIVA E A SUA POSSIBILIDADE DE

RACIONALIZAÇÃO.....................................................................................................51

4.2 RACIONALIZAR AS EXPERIÊNCIAS, AS NORMAS E AS IDEIAS.................54

5 CONCLUSÃO.............................................................................................................66

REFERÊNCIAS.............................................................................................................81

4

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa é o resultado de um processo de discussão e debate que

existe, pelo menos, há quatro anos. A primeira vez que tive contato com a teoria da

história de Jörn Rüsen foi em 2011 e, desde então, reler seus livros e artigos faz parte de

minha rotina diária de estudos. Principalmente a sua trilogia sobre teoria da história,

publicada no Brasil no decorrer dos anos 2000, mas publicada originalmente na

Alemanha na década de 19801. Desse longo processo de estudo, leitura, releitura e

discussão acerca de sua obra, chegamos ao ponto de interesse que orienta a nossa

pesquisa: a categoria de sentido histórico. Por que esta categoria? O que há de

específico, no modo com que Rüsen trata tal categoria? Como ele a desenvolve em sua

obra?

O problema central que pretendemos resolver são estes que envolvem a

categoria de sentido. Trata-se, em grande medida, de uma exegese orientada de sua

teoria da história. Por “exegese orientada” queremos dizer, pois, que não trataremos de

todos os elementos de sua teoria (que vão além do sentido histórico, muito embora

desemboquem nele), mas daqueles envolvidos no que pode ser entendido como

constituição do sentido histórico mediante narrativa.

Inserido num contexto mais amplo de disputas e discussões em torno da

cientificidade da história, sua funcionalidade para a vida prática e o caráter

essencialmente narrativo de sua forma de apresentação do resultado da pesquisa, Rüsen

recorre à categoria de sentido histórico (amplamente discutida pelas tradições

historicista e iluminista) para estruturar sua resposta em forma de uma teoria da história.

Dessa forma, compreender a maneira com que este autor realiza tal feito, presente na

primeira versão de sua teoria da história (esta publicada na década de 1980 na

Alemanha) se torna fundamental para que compreendamos, também, quais os

desdobramentos que Rüsen confere à categoria de sentido em textos posteriores.

A nossa pesquisa, ao estabelecer o caminho da leitura e da exegese orientada da

teoria de Rüsen, quer servir de leitura propedêutica àqueles que pretendem estudar a

obra deste autor, mas também quer orientar a leitura daqueles já um pouco

1 Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica. Teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília:

Editora Universidade de Brasília, 2001; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado. Teoria da história II: os

princípios da pesquisa histórica. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2007; RÜSEN, Jörn. História

viva. Teoria da história III: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Universidade de

Brasília, 2007.

5

familiarizados, uma vez que não trataremos de todos os elementos da teoria, mas

escolhemos a categoria de sentido para guiar nossa leitura desta. Procederemos, assim, a

partir de três fontes básicas: os três livros iniciais de sua teoria, o Razão Histórica, o

Reconstrução do Passado e o História viva. Quando necessário, recorreremos a artigos

publicados em revistas ou livros de compilações, referenciando sempre que isso

ocorrer2. Contudo, nossa base de argumentação centrar-se-á nos livros da trilogia, pois,

é a partir deles que Rüsen estrutura os seus argumentos posteriores e mais bem

articulados. Entender em que momento surge, como se desenvolve e quais as

consequências da categoria de sentido, tanto para a racionalidade típica da história,

quanto para a vida humana prática, se torna fundamental para tomarmos ciência de

alguns dos debates envolvendo a teoria da história no decorrer da segunda metade do

século XX, mas também qual seria, enfim, a função prática que Rüsen confere à história

na vida humana.

Estudar o desenvolvimento de uma categoria como a de sentido histórico, numa

teoria como a de Jörn Rüsen, conforme apresentaremos a seguir, mostra-se relevante

uma vez que seus esforços teóricos buscam sintetizar uma série de tradições

historiográficas e filosóficas, as quais vieram antes da teoria deste autor. Rüsen, em sua

teoria, promove um diálogo entre tais produtos intelectuais e faz surgir, daí, uma teoria

que pode ser entendida enquanto holística e preocupada, acima de tudo, com a

humanidade enquanto categoria reguladora máxima das interpretações do passado.

A preocupação com a humanidade enquanto categoria máxima aponta, não

obstante, para as regulações possíveis da produção do conhecimento histórico que

chegará às várias camadas da sociedade – não apenas “conhecimento histórico”

enquanto produto do trabalho do cientista, mas conhecimento histórico produzido em

museus, arquivos, repartições públicas e, principalmente, nas escolas. Por mais que

nossa atenção com a presente pesquisa se foque na sua teoria especificamente (isto é,

não adentraremos nas discussões possíveis acerca da história pública, ou do ensino de

história), destacaremos como a categoria de sentido em Rüsen diz respeito a uma

preocupação que vai muito além da produção do conhecimento científico, que o insere

2 Os principais textos, diferentes daqueles presentes na trilogia, aos quais faremos referência encontram-

se nos seguintes livros: RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã.

Petrópolis: Vozes, 2014; RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit: über den Sinn der Geschichte. Köln: Böhlau,

2001 e SCHMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende. Jörn Rüsen e o

ensino de história. Curitiba: Ed. UFPR, 2010.

6

num contexto mais amplo e dedicado de relevância social, do qual a ciência da história,

tendo a historiografia como produto, participa avidamente.

Sentido histórico: pode-se melhorar o passado?

Talvez uma das questões mais sensíveis de nossa consciência, seja a ideia de

que, aquilo que fizemos no passado, não pode ser refeito. A ideia, justamente, de que o

passado, em sua qualidade de acontecimento, “já passou”. Ela pode acarretar uma série

de pensamentos problemáticos e deveras autodestrutivos, os quais, a longo prazo,

podem prejudicar bastante nossa vida, tanto em sociedade, quanto individualmente.

Quando encaramos o passado enquanto uma série de acontecimentos

impossíveis de serem refeitos, ele pode se tornar um fardo em nossas vidas. Refletir

sobre este tempo, contudo, nos oferece alternativas quanto ao modo com o qual ele se

presentifica. De fato, sua qualidade de acontecimento não pode ser remodelada. O

passado, como está já aconteceu; não podemos simplesmente refazê-lo. Contudo, existe

outra qualidade deste mesmo tempo, a qual, se nos ativermos sob o ponto de vista da

teoria da história, tornamo-nos capazes de refletir sobre e, com isso, “modificar” o

passado: a sua qualidade de sentido.

O autor responsável por tais reflexões, relacionadas à categoria de sentido e à

teoria da história, é o historiador alemão Jörn Rüsen. Seu nome tem figurado bastante

nas pesquisas em história (e educação) Brasil afora3. E não é por menos: ele foi um dos

pioneiros, no contexto de pós-Segunda Guerra Mundial, a refletir em torno de uma

teoria da história que fosse holística e abarcasse, em suas problemáticas, conceitos e

direcionamentos, temas que não fossem exclusivos de um determinado país, ou de uma

determinada cultura. Suas reflexões em torno de uma teoria da história que supere o

3 Elencamos alguns dos trabalhos, sublinhando que um dos maiores polos de pesquisa, no Brasil, o qual

apresenta a teoria de Rüsen como fundamentação teórica, é o da Educação Histórica, localizado na

Universidade Federal do Paraná – UFPR. Ver: COMPAGNONI, Alamir Muncio. “Em cada museu que a

gente for carrega um pedaço dele”: compreensão do pensamento histórico de crianças em ambiente de

museu. 2009. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2009;

GERMINARI, Geyso Dongley. A história da cidade, consciência histórica e identidades de jovens

escolarizados. 2010. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2010;

GRENDEL, Marlene Teresinha. De como a didatização separa a apredizagem histórica do seu objeto:

estudo a partir da análise de cadernos escolares. 2009. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade

Federal do Paraná, Curitiba, 2009; MEDEIROS, Daniel Hortêncio de. A formação da consciência

histórica como objetivo do ensino de história no ensino médio: o lugar do livro didático. 2005. Tese

(Doutorado em Educação) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2005.

7

etnocentrismo e que se proponha enquanto diálogo com a categoria de “humanidade”

são exemplos claros disso.

Uma teoria da história que possibilite ao historiador visualizar, para além de sua

própria pesquisa, de sua própria área de atuação, todo o contexto social no qual a sua

disciplina, a história, está inserido: é este um dos principais objetivos de Rüsen com sua

formulação teórica. Dessa forma, ao defender a ideia de que o passado, em sua

qualidade de sentido, pode ser modificado, ele levanta, também, uma discussão em

torno da reabilitação de duas categorias bastante debatidas no decorrer do século XX,

isto é, as categorias de sentido e de razão (ou racionalidade) científica.

Martin Wiklund trata, dentre outros aspectos, desta característica da teoria da

história de Rüsen, ao afirmar este autor ter sido capaz de conciliar tradições

historiográficas do século XIX (notadamente, o historicismo e o iluminismo), com as

críticas recebidas por estas tradições, principalmente aquelas advindas dos teóricos da

pós-modernidade:

Ao confrontar tais desafios, o método de Rüsen sempre procedeu

dialeticamente: com o fito de atingir uma síntese que mantenha insights de

ambos os oponentes, ele procura articular as tendências opostas e discernir de

que modo específico eles se contradizem4.

Uma das primeiras críticas contundentes à racionalidade científica, conforme ela

vinha sendo trabalhada no decorrer do século XIX (o século de institucionalização da

história), foi protagonizada por Nietzsche em seu famoso texto, “II Consideração

Intempestiva, sobre a utilidade e os inconvenientes da História para a vida”, escrito em

1873. Em seu texto, Nietzsche denuncia categoricamente o modo com que os

historiadores de seu tempo tratavam a história e como, este modo específico de

tratamento, causava “males” à vida5. Sua crítica tinha seu cerne, principalmente, no

modus operandi dos chamados “historicistas alemães”. Numa das passagens mais

célebres desse seu texto, Nietzsche compara o humano ao animal e afirma o último ser

mais feliz por dispor da capacidade de esquecer:

4 WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental: sentido histórico e racionalidade na teoria da

história de Jörn Rüsen. História da historiografia, n. 01, p. 19-44, 2008 (esp. p. 24-25). 5 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História

para a vida. In: Escritos sobre história. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2005.

8

Observa o rebanho que pasta diante dos teus olhos: ele não sabe o que

significa nem o ontem nem o hoje; ele pula, pasta, repousa, digere, pula

novamente, e assim da manhã à noite, dia após dia, estritamente ligado a seu

prazer e à sua dor, ao impulso do instante, não conhecendo por esta razão

nem melancolia nem a tristeza. Este é um espetáculo duro para o homem,

este mesmo homem que vê o animal do alto da sua humanidade, mas que

inveja por outro lado a felicidade dele – pois este homem só deseja isto: viver

como animal, sem tristeza e sem sofrimento; mas ele o deseja em vão, pois

não pode desejar isto como o faz o animal. Talvez um dia o homem vá

perguntar ao animal: “por que tu não me falas da tua felicidade, por que ficas

aí a me olhar?” Se o animal quisesse responder, lhe diria o seguinte: “É que

eu me esqueço logo o que queria dizer” – mas ele também esqueceria esta

resposta, e ficaria mudo – e o homem fica admirado com isso6.

A capacidade de lembrar, conforme apresenta o filósofo alemão, relacionar-se-ia

diretamente com o sofrimento humano, uma vez que, incapaz de esquecer, como fazia o

animal, o humano estaria fadado à lembrança e ela seria uma das principais

responsáveis por sua infelicidade. A lembrança como “fardo”, portanto, dizia respeito a

um momento da historiografia alemã, no qual a produção dos historiadores estava

totalmente interligada à estruturação e manutenção do Estado7 e, não coincidentemente,

desligada daquilo que Nietzsche chamava a atenção sob a máxima de “serventia à vida”.

A história dos Estados, das nações e dos “grandes homens” negligenciaria a

vida. O que Nietzsche cobrava, portanto, era justamente o contrário: era que a história,

antes de servir ao Estado, ou à nação, servisse à vida. Nessa perspectiva, inclusive, uma

história tal qual era exercida no período de sua crítica sequer mereceria existir enquanto

ciência, uma vez que ela funcionaria apenas para lembrar o sujeito de tanto mais

acontecimentos e torná-lo ainda mais incapaz de ser feliz. Sobrecarregado de passado, a

história mais atrapalharia do que ajudaria a o sujeito a viver.

A primeira metade do século XX, com o advento das guerras e crises causadas

pelo Imperialismo europeu e pelo desenvolvimento do capitalismo – dentre as quais a

Primeira Guerra Mundial é exemplo notável – será palco da chamada “primeira crise do

historicismo”, uma “crise de crença”, na qual as narrativas mestras elaboradas por estes

6 NIETZSCHE, Friedrich. II Consideração Intempestiva sobre a utilidade e os inconvenientes da História

para a vida, p. 70. 7 Sobre a temática do historicismo, a qual não será abordada em pormenor aqui, ver: VARELLA, Flávia

Florentino; MOLLO, Helena Miranda; MATA, Sérgio Ricardo da; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). A

dinâmica do historicismo: revisitando a historiografia moderna. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.

9

historiadores e filósofos no decorrer do século XIX, entraram em colapso8. O ápice

dessa crise, contudo, é o Holocausto e as experiências extremas ocorridas durante a

Segunda Guerra Mundial (pelo menos em se tratando de Europa). Tais narrativas, que

serviam para dotar de sentido a formação e o caminhar de determinadas nações, caíram

por terra e uma série de críticas contundentes foi feita, sobre as possibilidades de

orientação oferecidas pela filosofia da história iluminista, bem como sobre a crença na

racionalidade iluminista e em sua ideia de progresso, tomada como categorias-chave

para a interpretação do passado, por grande parte da historiografia historicista.

Por meio de que categorias fica claro o esforço de Rüsen, em prol de validar

tradições antigas sob as lentes das críticas de seu tempo? Uma resposta possível para

essa questão é: por meio da reabilitação da categoria de sentido e, com isso, da crença

de que, aquilo que foi produzido e realizado no passado, pode ser “melhorado” – e

“melhorado” por meio do estabelecimento de uma série de crenças, em formas de tipos-

ideais9, capazes de orientar o agir humano no tempo sob a forma de “utopias”.

Esta afirmação, por mais idealista que possa parecer, está expressa em texto de

2011, chamado “Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação do passado em

história10

”. Neste texto o autor aborda a questão de que estamos tratando até então: o

passado, em sua qualidade de acontecimento, se faz presente constantemente em nossas

vidas e, sua presença, pode ser articulada de maneira tal, a vir a ser melhorada. Fatos, os

quais, podemos pensar estarem distantes de nossas existências devido ao afastamento

temporal, podem fazer-se vivos em nosso dia a dia (e, muitas vezes, de fato o fazem).

Às vezes, até mais reais do que aquilo que vivemos na atualidade. Este passado,

contudo, aparece em nossas vidas presentes sob a forma de memória. Transformá-lo em

história, isto é, articular a memória sob a forma do ato de lembrar, dotá-lo de sentido e

significado para as nossas vidas, é uma atitude da consciência humana, a qual, quanto

mais bem trabalhada for, “melhor” pode tornar este passado.

Os termos nos quais Rüsen destaca essa “melhora”, contudo, advém de uma

tradição cientificista da história, isto é, aquela do historicismo alemão e de seu

8 Acerca da “crise de crença” pela qual passou o historicismo, ver: PAUL, Herman. A colapse of trust:

reconceptualizing the crisis of historicism. Journal of the Philosophy of History, vol. 2, n. 1, p. 63-82,

2008. 9 A filiação de Rüsen ao pensamento de Max Weber, também, se mostra bastante clara em várias

passagens de sua trilogia. Notadamente quando o autor fundamenta suas impressões em torno das “ideias”

e da “cultura” ele recorre bastante a Weber. 10

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem? Sobre a transformação de passado em história. In:

SALOMON, Marlon (org.). História, verdade e tempo. Chapecó: Argos, p. 259-291, 2011.

10

metodismo com relação às fontes, às normas e à orientação no tempo11

. Esse

metodismo, contudo, conforme destacado por Nietzsche já em finais do século XIX,

seria o responsável, justamente, pelo esvaziamento, na história, de sua funcionalidade

prática. A história, portanto, quão mais próxima ficasse da ciência, menos serviria à

vida. Como poderia, pois, um autor defender a possibilidade de “melhoramento” do

passado, e basear-se na ideia de que, para fazê-lo, devemos estabelecer meios cada vez

mais racionais de lidar com a experiência humana no tempo?

Tal crítica foi em grande medida revalidada por uma corrente de teóricos “pós-

modernos” no contexto pós-Segunda Guerra Mundial12

, tradição esta teve, em

Nietzsche, uma de suas principais referências para criticar as consequências das

aplicações das categorias, principalmente, de “sentido” e “progresso”, para a sociedade

Ocidental, no decorrer do século XX13

. Ter-se-ia destacado claramente a

impossibilidade de se ter “racionalidade”, “sentido” e “progresso” associados à

construção do conhecimento histórico. Rüsen, contudo, vale-se justamente destas ideias,

tão caras às tradições historicista e iluminista, para basear as afirmações de sua teoria. A

teoria de Rüsen pode ser entendida, dentre outros meios, pela imagem de um amálgama

de teorias e possibilidades, entre passado e presente. Este autor se vale das tradições

intelectuais e as conforma num outro direcionamento, pois, conforme aponta Wiklund:

“é mais razoável começar a partir do já acumulado manancial de experiências, elaborá-

lo e desenvolvê-lo em meio ao confronto com uma nova crítica e novos desafios14

”.

É por essa imagem de amálgama teórico que nos tornamos capazes de

compreender a teoria de Rüsen no contexto no qual ela se insere. A década de 1980, na

qual é publicada sua trilogia inicial, é precedida por uma década, pelo menos, de

debates em torno das questões apresentadas anteriormente: a cientificidade da história,

11

Não é difícil notar a filiação deste autor aos autores do historicismo alemão clássico, como Ranke e

Droysen, por exemplo, uma vez que Rüsen destaca em várias passagens de sua trilogia, trechos desses

autores, estabelecendo relação direta entre aquilo defendido por estes, e aquilo que ele deseja defender em

seus textos. 12

Estamos cientes da complexidade que envolve este termo, por isso, deixamos clara a nossa filiação à

definição estabelecida por Beverly Southgate, quando afirma a pós-modernidade poder ser entendida

como este “arquétipo de camaleão, de finais do século XX e início do século XXI”, percebido, em relação

à teoria da história, “como um potencial libertador das restrições e ortodoxias modernistas e um estímulo

ao niilismo cínico, o qual ameaça terminar com a história enquanto disciplina em si”. Ver:

SOUTHGATE, Beverley. Postmodernism. In: TUCKER, Aviezer (org.). A companion to the philosophy

of history and historiography. Oxford: Wiley-Blackwell, p. 540-549, 2009 (esp. p. 540), tradução nossa. 13

Sobre a apropriação de Nietzsche por teóricos pós-modernos, bem como uma possível resposta por

parte da teoria da história de Jörn Rüsen, ver: JONG, Henk de. Historical orientation: Jörn Rüsen‟s

answer to Nietzsche and his followers. History and theory. Middletown, v. 32, p. 270-288, 2002. 14

WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental, p. 23.

11

sua relação inseparável com a narratividade, bem como questões como a memória e a

presença do passado, no presente.

Não é nosso objetivo aqui apresentar a sua teoria como o único esforço

intelectual do período de sistematizar algum tipo de pensamento que respondesse às

críticas sofridas pela história. É notável, contudo, o modo com que este autor alemão o

faz: por meio da formulação de uma teoria da história nos moldes das de grandes

historiadores alemães, a exemplo de Johann Gustav Droysen, e estabeleçam, nela, os

princípios e funções da ciência da história da sociedade. Com isso, ele toca no cerne dos

debates de seu tempo, associando as categorias de sentido e racionalidade às respostas

dadas para as críticas15

.

Inserido no embate de seu tempo, entre memória e história, sobre as

possibilidades de se constituir, mesmo depois dos horrores assistidos durante o século

XX, uma histórica científica capaz de orientar no tempo, Rüsen aborda a crítica feita por

Nietzsche para apresentar um aparente impasse, entre o sentido constituído pela

narrativa memorialista e aquele produzido pela narrativa histórica científica:

De acordo com Nietzsche, se o sentido de uma história está associado à

orientação da vida humana no tempo, então as histórias escritas em

conformidade com o modelo metódico da ciência são carentes de sentido,

ainda que sejam factualmente verdadeiras. A memória, por sua vez, valoriza

antes sentido que facticidade16

.

Como saída para esse embate, Rüsen recorre para algo bastante basilar na

orientação humana no tempo: os sujeitos acreditam que aquilo que faz sentido em suas

vidas, é verdade. Por este fato, nega-se, tanto o objetivismo demasiado da perspectiva

moderna de história – aquele que negligenciava o fator subjetivo da constituição do

conhecimento histórico, deitando-a exclusivamente sobre o aparente terreno seguro da

facticidade –, quanto o subjetivismo da perspectiva pós-moderna – aquela que resume

praticamente toda e qualquer construção de sentido narrativa a uma “opinião” de quem

o produziu.

15

Sobre o contexto de debates em torno da teoria da história, de sua especificidade científica, bem como

da memória, ver: LORENZ, Chris. Chapter I: History and theory. In: WOOLF, Daniel; SCHNEIDER,

Axel (orgs.). The Oxford history of historical writing. Oxford: Oxford University Press, p. 13-35, 2011. 16

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 262.

12

Não obstante, Rüsen afirma os sujeitos não buscarem apenas por aquilo que

acreditam, mas acreditarem naquilo que, principalmente, os deixa felizes. A felicidade,

ou o “happy end17

”, aparece, nessa ideia de orientação humana no tempo, como fator

principal para a constituição histórica de sentido. Logo, “faz sentido” aquilo que os

sujeitos acreditam guiá-los para a felicidade. Esta felicidade, entretanto, quando posta

sob as lentes de uma organização social, pode (e deve) ser escrutinada por uma

racionalidade científica que pretenda balizar aquilo digno de ser perseguido como “final

feliz”. “Racionalidade”, em Rüsen, surge como possibilidade científica de regulação

social e argumentativa daquilo que deva ser o “final feliz” comum. Ele reabilita, com

isso, o sentido da história, a racionalidade e, mais, a história como lugar do utópico.

Este utópico, contudo, não surge, em sua teoria, desprovido de crítica, mas justamente

relacionado à possibilidade racional oferecida pela ciência e tendo, nela, a sua base forte

de sustentação18

.

Não em sua qualidade de acontecimento, portanto, mas em sua qualidade de

sentido e significado para o presente, é que o passado pode ser melhor, e melhorado. É

precisamente no ato de interpretação do historiador, no caso da ciência da história, ou

do sujeito, no caso da história narrativa pessoal, que o ocorrido pode ganhar outros

sentidos para o presente19

.

É que quando fatos realmente ocorridos se tornam objeto da atenção

retrospectiva da interpretação histórica, culmina-se na produção de um

conhecimento que é muito mais amplo e preciso do que aquele que poderiam

obter os próprios atores das conjunturas passadas em questão20

.

Esta “visão mais ampla”, da qual o distanciamento temporal nos possibilita

dispor, é justamente a responsável pela possibilidade de melhoramento do ontem: “o

passado “melhora” quando é integrado numa representação do decurso temporal

17

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 264. 18

Não é à toa que o texto de conclusão do último volume de sua trilogia, o História viva, chame-se:

Utopia, alteridade, kairos – o futuro do passado, no qual o autor trata diretamente da questão da

revalidação da utopia como necessidade para se constituir um futuro que vá além das atrocidades

assistidas durante o século XX. Ver: RÜSEN, Jörn. História viva, p. 135 – 150. 19

É interessante destacar, aqui, a diferença existente entre Sinn e Richtung, no alemão e “sentido” e

“direção”, no português. Na primeira língua, fica bem clara a diferença entre as duas palavras. Na

segunda, contudo, “sentido” pode servir de sinônimo para direção. Quando destacamos, portanto,

“sentido” no texto, tratamos de sua qualidade de significado para o presente, a não ser que deixemos claro

o contrário. 20

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 271.

13

compatível com as metas de ação21

”. Ou seja, a partir do momento em que os sujeitos se

valem de suas experiências no tempo para organizar suas ações futuras, o passado torna-

se parte integrante de uma perspectiva orientadora da ação e, por isso, dotado de sentido

e significado para o presente. Por meio disto, ele pode ser “melhorado”. Logo,

acontecimentos, por mais dolorosos que sejam (e Rüsen, em seus escritos mais recentes,

reflete bastante sobre isso22

), podem ser alocados numa narrativa histórica na qual

façam sentido, em prol de perderem a sua qualidade “assustadora” para o presente e,

com isso, permitindo a conformidade destas experiências às metas de ação.

Ao destacar a busca por tal conformidade, portanto, Rüsen também associa o seu

conceito de sentido à ideia da busca por um “fim”. Quer dizer, as narrativas geradas

pelas consciências históricas buscam, por meio da mediação interpretativa entre passado

e presente, perspectivar o futuro enquanto possibilidade previsível. É por meio desta

mediação que Rüsen aloca novamente uma ideia comum na tradição histórica moderna:

a teleologia. As narrativas mestras que orientavam os grandes impérios de outrora

foram responsáveis por colocarem em prática um plano de ações que tinha um fim

muito claro, seja ele mediado por uma ideia de supremacia cultural, seja qual outro

motivo fosse. A partir do momento em que Rüsen retira, contudo, a teleologia, do plano

das narrativas mestras, e a aloca no plano da ação individual, ele reconhece algo

novamente basilar na orientação humana no tempo, no viver: todas as ações humanas

desejam chegar a algum lugar. Este “lugar”, portanto, é o “fim” de tal ação teleológica.

Das grandes narrativas, pois, a teleologia é alocada no plano da ação individual. O

sentido surge, portanto, em sua teoria, como uma síntese entre experiência do passado e

expectativa de futuro, estabelecendo, assim, um “fim” para o acontecimento de outrora,

na vida presente:

Sentido, de acordo com Rüsen, não é sequer inteiramente objetivo, tampouco

meramente subjetivo. Ele contém as duas experiências e normas que

determinam o que é para ser computado como relevante e significativo no

passado. Relevância deve ser entendida em relação às intenções, expectativas

para o futuro e direção da vida prática das pessoas envolvidas23

.

21

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 271. 22

Destacamos alguns textos recentes do autor, nos quais Rüsen desenvolve várias questões abordadas nos

primeiros volumes de sua teoria, as quais, contudo, não serão abordadas em pormenor na atual pesquisa:

RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido; RÜSEN, Jörn. Historik: Theorie der Geschichtswissenschaft. Köln:

Böhlau. 2013; RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit: über den Sinn der Geschichte. Köln: Böhlau, 2001. 23

WIKLUND, Martin. Além da racionalidade instrumental, p. 35.

14

“Melhoramento” do passado por meio de constituição histórica de sentido

condizente com as metas de ação dos sujeitos pensantes, portanto, diz respeito ao

exercício da liberdade humana. Os seres humanos constituem sentido, a partir de suas

experiências no tempo, buscando torna-las conformes às suas expectativas de futuro,

porque são livres para tanto. O pensamento, enquanto faculdade antropologicamente

universal é a base de qualquer constituição de sentido (seja ela científica ou não). A

racionalidade envolvida em todo esse processo, por sua vez, funcionaria para reforçar a

liberdade. Isto é, por meio do estabelecimento daquilo que deve ser no futuro, lançando-

se mão da racionalidade, o sujeito disporia de meios mais seguros para exercer a sua

liberdade de escolha e interpretação. Percebe-se, com isso, como Rüsen associa todas

essas categorias, as quais, em grande medida, passaram por longas décadas de críticas,

sem, contudo, privá-las destas críticas. É notório perceber como o autor se vale do

contexto de possibilidades aberto pelas críticas pós-modernas para justamente revalidar

as possibilidades científicas da modernidade. Nem tanto para um lado, nem tanto para o

outro, Rüsen produz a síntese dessas duas grandes teses antagônicas.

Mas, em que momento surge a necessidade de se apropriar das interpretações de

nossas próprias experiências no tempo? Que nome é dado ao acontecimento responsável

por nos lançar para um contexto de desestabilização de orientação, do qual só somos

capazes de sair, se nos ativermos à uma interpretação própria e pessoal de nossas

experiências?

Para responder a estas perguntas é importante estar de acordo que, o agir, ainda

que seja orientado por metas de ação, e estas ações, por sua vez, serem sempre

direcionadas para a felicidade, elas nem sempre alcançam tal objetivo. Isto é, o fato de

desejarmos, planejarmos, estabelecermos estratégias e segui-las à risca, em prol de um

final feliz (em qualquer âmbito de nossas vidas que seja), não garante que chegaremos a

ele. Dessa forma, Rüsen destaca o primeiro fator essencial de ser compreendido, se

quisermos perseguir a categoria de sentido em sua teoria da história: a contingência. É

por meio da necessidade de dominarmos este tempo contingente, que se impõe às

nossas intenções de agir, impedindo-nos de alcançarmos aquilo que almejamos com

tamanha vontade e obstinação, que se movimenta a consciência histórica humana, por

meio da constituição de sentido. E o produto do exercício dessa faculdade mental é,

sempre, uma narrativa histórica (seja ela escrita ou não).

15

Se já ficou clara a ideia de que não é o passado, enquanto acontecimento, que

muda quando se aplica uma interpretação capaz de “melhorá-lo”, havemos de deixar

clara também a ideia de que, tal necessidade de “melhoramento” surge no momento em

que somos desafiados pelo tempo contingente. A necessidade de superarmos as

imposições do tempo ao nosso agir, é o que nos impulsiona em direção à novas

interpretações.

Pode-se dizer, assim, que o passado “melhora” quando os sujeitos – que

vivem sob as circunstâncias geradas pelo efeito dos fatos do passado – se

voltam para estes, interpretando-os. Desse modo, os sujeitos da interpretação

autoesclarecem-se acerca da condicionalidade em que vivem24

.

Percebe-se ser, pois, através do autoesclarecimento, que os sujeitos exercem a

sua faculdade de pensamento histórico, por meio de sua liberdade de agir e pensar, em

prol de dotarem o ontem de novos sentidos e significados para o presente. O passado,

com isso, deixa de ser um mero vestígio no presente e passa a figurar dentro de uma

lógica temporal de ontem, hoje e amanhã, no qual sua qualidade de acontecimento é

revestida de serventia à vida também. O passado, que constantemente se faz presente

em nossas vidas, é, então, organizado de modo a continuar fazendo, porém, sob novas

orientações e direcionamentos.

Em resumo, o passado é sempre muito mais do que uma superfície morta

sobre a qual projetamos as nossas carências de sentido; quando convertido

em história, o passado prolonga-se para dentro dos projetos de futuro

impulsionadores do nosso agir e sofrer25

.

O conceito de sentido em Rüsen, portanto, é um conceito que surge instigado

pelo contexto geral de guerras ocorridas durante o século XX (e, obviamente, até a

década de 1980, década de publicação de sua trilogia). Trata-se de um esforço teórico

para responder à questão: como dotar de sentido experiências como Holocausto (no caso

da Alemanha)? Sua intenção, com a defesa da possibilidade de se melhorar o ontem, é

trazer à tona (e de volta para o debate teórico) o fato de que as pessoas, quando optam

por continuarem vivendo, a despeito de suas experiências dolorosas, elas são impelidas

24

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 280. 25

RÜSEN, Jörn. Pode-se melhorar o ontem, p. 281.

16

a dotarem suas experiências de sentido e significado. Se a história, enquanto uma das

ciências humanas especializadas no trato com o passado, no presente, se abstiver de sua

responsabilidade de debater o futuro desses passados assustadores, a que estará

servindo, afinal, essa ciência?

No limite, chegaríamos a pensar que, nessa linha de raciocínio, Nietzsche

estivesse certo quando dizia a ciência não estar servindo à vida. Mesmo assim, Rüsen

não pressupõe uma subordinação simples, irrefletida e passiva, da ciência para com a

vida. Ele pressupõe uma relação vivificante, na qual a teoria da história, como

estabelecida por ele, auxiliaria o profissional de história em formação a visualizar para

muito além de seu objeto de pesquisa, ou de sua ciência, mas a sociedade na qual ele

está inserido como um todo26

. Dessa forma, conforme destaca o autor já no primeiro

livro de sua trilogia, o sujeito seria capaz de enxergar, para além das árvores isoladas, a

floresta27

.

É a partir dessa ideia principal, a de podermos melhorar o passado, que

estruturamos toda a nossa pesquisa a seguir, uma vez que, conforme apresentaremos a

constituição de sentido histórico, na teoria de Rüsen, tem, como princípio regulador

máximo, a ideia de humanidade. Observaremos, portanto, na trilogia escrita ainda na

década de 1980, como Rüsen responde a três questões, referentes ao sentido da história:

de onde surge a necessidade de sentido? Por meio de quê ela se expressa? É possível

racionalizá-la? A partir destas questões abordaremos temáticas, as quais, consideramos

centrais para se compreender a categoria de sentido em seus primeiros escritos:

consciência histórica, cultura histórica, narrativa histórica e razão histórica e, com isso,

tornaremos mais clara a ideia do melhoramento do passado, tendo a humanidade como

princípio máximo regulador das perspectivas orientadoras da ação no tempo.

Por meio das respostas a cada uma destas perguntas, apresentaremos, ainda que

de maneira incipiente, como se constitui a categoria de sentido enquanto categoria

principal na teoria da história de Jörn Rüsen. Não obstante, no processo, destacaremos

26

Rüsen deixa explicita tal relação por meio de sua matriz disciplinar, a qual é apresentada já no primeiro

livro de sua trilogia, Razão histórica. Por mais que, durante essa pesquisa, não trabalhemos diretamente a

constituição e função da matriz disciplinar em sua teoria da história, constantemente nos referiremos a

elementos dela, em prol de embasar a constituição histórica de sentido para Rüsen. Sobre a matriz

disciplinar, ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 30-38 (esp. 35). 27

Esta paráfrase advém da seguinte citação: “pode-se dizer que a perspectiva se amplia das árvores

isoladas para a floresta: trata-se literalmente do todo, daquele todo que é a história como ciência. A teoria

da história é, pois, aquela reflexão mediante a qual o pensamento histórico se constitui como

especialidade científica”. Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 26.

17

de que maneira este autor responde aos debates de sua época, notadamente às críticas

feitas à cientificidade da história, pelos teóricos da pós-modernidade. Não é nosso

objetivo, pois, aprofundarmo-nos no contexto no qual Rüsen produz sua teoria. O

contexto surgirá como base sobre a qual este autor desenvolve as revalidações

conceituais, as quais já foram sublinhadas já neste primeiro momento do texto, e que

desembocam na categoria de sentido.

A nossa pesquisa se encerrará, portanto, no aprofundamento de uma das

questões possíveis de serem perseguidas a partir da teoria de Rüsen: a do trauma e suas

possibilidades de resolução a partir da narrativa histórica. Após termos deixado claro de

que maneira, em sua trilogia, o autor desenvolve a categoria de sentido, apresentaremos

brevemente a sua contra-categoria, a de trauma, direcionada para uma das experiências

ditatoriais do passado brasileiro: a Ditadura Militar (1964 – 1985). Com isso, queremos

investigar, , a funcionalidade de sua teoria da história para a resolução de questões

práticas do passado, a qual, referindo-se à Ditadura Militar brasileira, toca bastante os

debates em torno da história na atualidade.

18

CAPÍTULO 1

Da necessidade de orientação no tempo: consciência histórica e cultura histórica

O passado aparece, constantemente, em nossas vidas. Seja por meio de uma

lembrança, engatilhada por termos encontrado algum material de outrora, seja por meio

de recursos artísticos, ou de discursos políticos, os quais, o tempo todo, trazem o

passado à tona, é certo afirmar que estamos rodeados pelo passado em nossas vidas

cotidianas. E, no processo de aparecimento, o passado nos instiga reflexões, nos

estimula a tomar posicionamentos e nos desafia a interpretá-lo. Ele, contudo, nem

sempre aparece “destacado” de qualquer serventia para o presente. Por mais que o

elemento do passado que seja destacado em nosso dia a dia possa não fazer sentido para

nós, ou para a vivência de nossa sociedade, ele raramente aparece “sozinho”. É seguro

afirmar que toda a lembrança do passado já dispõe de algum nível de significado antes

de ser direcionada pela consciência de um grupo, ou de um indivíduo28

.

Este espaço, no qual o passado cheio de significado aparece, é chamado por

Rüsen de cultura histórica. É nela onde se apresentam, ao mesmo tempo, possibilidades

de interpretação do passado, e resultados de interpretações já realizadas. É um misto de

material e matéria da consciência temporal humana. É, portanto, na cultura histórica que

os potenciais de orientação da interpretação do tempo irão surtir efeito, bem como é a

partir dos resultados de outras interpretações já realizadas pelos mais diversos grupos

que compõe a sociedade, que os indivíduos se valem para orientarem suas próprias

vidas. Não seria equívoco dizer, portanto, que a cultura histórica é tanto o objetivo,

quanto o resultado do esforço interpretativo da consciência histórica. Esta afirmação,

contudo, merece ser muito melhor trabalhada, se quisermos entender de que maneira ela

articula conceitos-chave da teoria da história de Jörn Rüsen em torno da categoria de

sentido.

28

Rüsen chama este elemento de “elementos pré-concebidos de sentido” (Sinnvorgaben): “O sentido

sempre teve uma Gestalt concreta, enquanto refletida nas configurações culturais da vida humana prática.

Vida prática sempre esteve orientada e real, imbuída de sentido em suas atividades diárias antes de

quaisquer certezas reflexivamente confirmadas por meio de orientações autorizadas. Pela mesma moeda,

o passado sempre foi presente, antes de se tornar qualquer tipo de experiência histórica específica, isto é,

antes de adquirir sua distância de passado”. Esta citação nos leva para a segunda, como uma conclusão de

seu raciocínio: “Apenas elementos pré-concebidos de sentido possibilitam o sujeito de constituir sentido

geneticamente; a subjetividade é sempre objetivamente “pré-formada” ou pré-concebida enquanto tal”.

Ver: RÜSEN, Jörn. Sense of history: what does it mean? In: RÜSEN, Jörn (org.). Meaning and

representation in history. New York: Oxford, p. 41-63, 2006 (esp. 56-57), tradução nossa.

19

O passado dotado de sentido, presente na cultura histórica, não chegou lá por

acaso. Ele foi material de interpretação de outros tempos, ele, enquanto potencial

orientador das ações humanas hoje, já foi refletido por outros grupos, em outros

momentos da história:

História como experiência não se situa fora de nós mesmos. A experiência

histórica não é dada apenas previamente nos vestígios do passado com que os

historiadores lidam, sob a forma de fontes. A história é dada previamente

também em nós, e mesmo mais, na medida em que nós próprios somos

resultado de desenvolvimentos temporais de longa duração. Antes de

pensarmos em história, e antes de a rememorarmos, já somos história. Antes

de pensarmos no passado enquanto passado – e esta é uma condição

necessária do construto cultural “história” como elemento de orientação

cultural – o passado é presente29

.

Estes grupos e estas pessoas se valeram de suas faculdades de pensarem

historicamente, à qual Rüsen dá o nome de consciência histórica. É por meio da

consciência histórica que o sujeito articula, pois, passado, presente e futuro, numa lógica

de representação temporal, constituindo, assim, sentido. Sentido aparece, dessa forma,

como produto do exercício da faculdade mental humana de pensar historicamente.

Agora, pode-se dizer que, aquele passado cheio de significado que está presente na

cultura histórica, é um passado já dotado de sentido. Isto ocorre, por sua vez, a partir do

momento em que o sujeito, ou o grupo, é instigado por uma experiência de tempo

contingente, a qual o desafia a encontrar novas formas de se orientar; a qual rompe com

aquele determinado modelo de orientação, de sentido.

Esta experiência, em si, não possui qualidade temporal, uma vez que surge

enquanto rompimento das expectativas de futuro, das intenções do agir; contudo, ela

oferece a possibilidade de reestruturação destas mesmas expectativas e intenções.

Segundo Rüsen, ela assume a forma de crise e desafia, com isso, a consciência histórica

a encontrar meios de sair dela, caso queira continuar dotando suas experiências no

tempo, de sentido:

29

RÜSEN, Jörn. Narratividade e objetividade nas ciências históricas. In: SCHMIDT, Maria Auxiliadora;

BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.), Jörn Rüsen e o ensino de história, p. 149.

20

Eu entendo por “crise” a experiência temporal de contingência. Contingência

é o modo com o qual um acontecimento, ou uma ocorrência, pode surgir na

vida humana, de maneira tal, que ela não se adeque a uma relação

interpretativa previamente dada, na qual ela deveria ser compreendida em

prol de servir à vida humana30

.

Rüsen afirma, nesse sentido, a contingência alocar a consciência humana num

estado semelhante ao de caos, no qual ela precisa encontrar outra maneira de sair, que

não aquela oferecida pelos modos interpretativos previamente existentes. Ele parte da

ideia de que o ser humano necessita assenhorar-se de suas experiências no tempo, de

modo a tornar condizentes, intenção de ação e sofrimento. Isto é, partindo-se do

pressuposto de que a, por meio da consciência histórica, o sujeito busca conformar suas

experiências no tempo às suas intenções de ação e a experiência contingente surge,

justamente, rompendo tal possibilidade, isto gera uma distância entre aquilo que se

almeja e aquilo que de fato ocorreu. Dessa distância que existe, entre intenção de agir e

resultado da ação, surge o impulso vital da consciência história de apossar o sujeito de

interpretações dessas suas próprias experiências31

. Contingência, portanto, pode ser

entendida, segundo Rüsen, da seguinte maneira:

Uma experiência temporal é contingente na medida em que representa um

desafio ao trabalho interpretativo da consciência, ou seja, não sucede

“simplesmente de tal modo que” desde sempre pode ser percebida e

“entendida” – sem a execução de um feito interpretativo próprio. Eventos

contingentes são inopinados, repentinos, inesperados, eventuais (dotados da

qualidade específica do particular)32

.

É a partir deste evento “inesperado” que o sujeito é levado à necessidade de

dotar o tempo de sentido. Ora, se o caso não ocorreu na maneira que se imaginava (ou

se o que, de fato, ocorreu fugiu muito das expectativas), algo deve ser feito em prol de

reorganizar este caso numa ordem temporal que continue orientando no tempo. Partindo

do pressuposto de que esse é o trabalho central da consciência histórica – organizar as

experiências humanas em prol de orientação temporal – compreende-se o porquê de

Rüsen chamar a experiência contingente de “experiência originária do temporal”. Uma

30

RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit, p. 148-157 (esp. 148), tradução nossa. 31

Ver: RÜSEN, Jörn, Razão histórica, p. 59. 32

RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis: Vozes, p. 256.

21

vez que esta é a experiência responsável por desestabilizar as interpretações do sujeito

sobre o seu próprio mundo e sua vida, seria ela, também, a responsável por originar o

“tempo” enquanto qualidade sensível – o “tempo humano”.

A experiência contingente surge na vida humana sob a forma de crise no fluxo

temporal. A sensação de que as coisas não ocorreram da maneira que se esperava

desloca a consciência do sujeito para um espaço no qual ele é tencionado a refletir sobre

suas próprias experiências, se quiser continuar assenhorando-se de seu próprio tempo.

Rüsen distingue, pois, três tipos de crise: a normal, a crítica e a traumática. A crise

normal “pode ser superada por meio de possibilidades culturais previamente

estabelecidas pela consciência histórica”, isto é, neste caso, a perturbação causada por

tal experiência contingente não causa abalo a ponto de deixar o sujeito com a sensação

de estar “perdido no tempo”. A consciência histórica encontra em materiais culturais já

disponíveis os meios para superar esse tipo de crise. A crise crítica, por sua vez, exige

um pouco mais da consciência histórica, uma vez que só pode ser superada com o

esforço de aderir novos significados à experiência no tempo; significados estes que não

se encontravam previamente estabelecidos na cultura histórica de determinado período.

Daí surge a necessidade de se criarem novos paradigmas capazes de compreender as

transformações causadas por tal experiência contingente33

.

A crise catastrófica, por fim, é aquela que pode dar origem a um trauma.

Definida por Rüsen enquanto destruidora das “possibilidades de a consciência histórica

trabalhar a contingência numa história cheia de sentido e significado34

”, esse terceiro

tipo de crise necessita de anos, talvez décadas, para vir a ser superada (isto não

constitui, contudo, uma regra. Existem experiências traumáticas que podem não vir a

serem superadas). Segundo Rüsen, a experiência traumática mais extrema da sociedade

Ocidental do século XX foi a do Holocausto. Como tal, o Holocausto destruiria com

quaisquer chances da consciência histórica elaborar uma narrativa cheia de sentido e

significado a partir dele. As consequências disso, conforme apresentado, são a

impossibilidade de orientar-se, motivar-se e constituir identidade histórica a partir desta

experiência – e como estes são impulsos vitais humanos, causados pela experiência

contingente, é como se o sujeito se encontrasse numa “buraco negro” de sentido e

significado. Para a sociedade alemã, bem como para as comunidades judias, pode-se

33

Ver: RÜSEN, Jörn, Zerbrechende Zeit, p. 153-154, traduções nossas. 34

RÜSEN, Jörn, Zerbrechende Zeit, p. 153, tradução nossa.

22

apontar este como sendo o evento histórico – de suas histórias recentes – mais

perturbador, com o qual estes grupos devem lidar, se quiserem constituir sentido

histórico.

Do esforço de superação da crise, da experiência de tempo contingente, o sujeito

exerce a sua faculdade mental de pensar historicamente. O resultado deste esforço é

uma história. Rüsen entende “história”, portanto, da seguinte forma:

História aloca a contingência numa ordem narrativa de sequência temporal,

dentro da qual ela é dotada de sentido e significado, e com este sentido e este

significado é disponibilizado para o agir humano, diante do acontecimento de

contingência, alocá-lo numa lógica de orientação, na qual o tempo esteja “em

ordem35

”.

Contingência, consciência histórica, interpretação e sentido: este é o caminho

percorrido pela mente humana, segundo a teoria da história de Rüsen, no seu processo

vital de “continuar vivendo”. Observe-se que este não é um caminho optativo, muito

embora nem toda orientação da qual o sujeito se vale parta de um resultado consciente

de interpretação temporal, mas sim se trata de um caminho necessário para se continuar

vivendo. “Viver”, para Rüsen, é dotar as experiências no tempo, de sentido.

Não é à toa que toda a sua matriz disciplinar, elaborada e apresentada já no

início do primeiro livro de sua trilogia, Razão histórica, se inicia nas “carências de

orientação”:

A partir dessa carência é possível constituir a ciência da história, ou seja,

torná-la inteligível como resposta a uma questão, como solução de um

problema, como satisfação (intelectual) de uma carência (de orientação)36

.

Preocupado com a constituição da ciência da história, a partir da vida prática,

Rüsen destaca, logo no primeiro elemento de sua matriz disciplinar, as carências de

orientação no tempo. Ou seja, sem elas, a ciência não é possível. Com isso, ele não quer

subordinar a ciência à vida, uma vez que é impensável a existência de uma sem a outra,

35

RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit, p. 150, tradução nossa. 36

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 30.

23

mas sim justamente ressaltar esta co-dependência37

: os sujeitos constantemente pedem

por respostas, as quais não estão disponíveis na cultura histórica de seu período, ou não

estão ao seu alcance enquanto sujeitos leigos de determinado conhecimento.

A partir de uma questão, portanto, uma carência de orientação, eles são lançados

para um âmbito racional, cognitivo, dessa cultura histórica; âmbito este responsável por

pensar, dispondo de métodos e técnicas específicos, um modo para se resolver tal

carência. Imaginar uma cultura histórica sem o acesso a um conhecimento cognitivo

(não necessariamente produzido cientificamente, uma vez que a ciência é, ela mesma

histórica – ou seja, nem sempre produziu-se conhecimento por meio do que hoje

consideramos “ciência” –, mas cognitivo no sentido de elaborado por algum meio

específico, que exija um nível de reflexão mais engajado do que aquele disponível na

vida prática), da mesma forma que pensar um conhecimento cognitivo sem nenhum

acesso, nele, da vida prática, é impossível. Afinal, quem são os cientistas, se não seres

humanos pertencentes a uma sociedade localizada temporal e espacialmente38

?

Percorrer o caminho que Rüsen constrói para apresentar a sua matriz disciplinar

é, portanto, um modo de se compreender a maneira com que ele edifica a relação entre

vida prática e ciência. Isto é, a maneira com a qual ele relaciona vivência com

racionalidade científica. Este não é o nosso objetivo com o presente texto, contudo,

destacar a relação que Rüsen faz, entre ciência e vida prática, por meio da matriz

disciplinar. Torna-se interessante perceber, entretanto, a importância dada pelo autor ao

elemento vital na constituição do conhecimento científico, não somente neste primeiro

passo, como no último passo da matriz, nas funções: “não se pode caracterizar

suficientemente o que é a história, em seus fundamentos, como ciência, se não se

37

Ou, nas palavras de Rüsen: “A ciência é um modo particular de realizar esse processo [dotar o tempo

de sentido]. O homem não pensa porque a ciência existe, mas ele faz ciência porque pensa”. Ver:

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 54. 38

Este questionamento toca no cerne da questão em torno da objetividade e da subjetividade no fazer

científico, para a qual Rüsen formula a seguinte resposta: “A pluralidade de pontos de vista e de

perspectivas não deve ser considerada como um entrave à objetividade, mas como sua realização no que

diz respeito às necessidades da coerência prática. Mas a pluralidade pode ocorrer de dois modos: um, com

fundamento lógico na negação estrita da objetividade, desacreditando-a como um “sonho nobre”, mas

sem qualquer princípio regulador diante dos conflitos e embates entre as diversas perspectivas, resultando

simplesmente um bellum omnium contra omnes ou um choque de civilizações combatido com as armas da

narrativa. A outra modalidade consiste em um conceito de pluralismo limitado por uma regra abrangente

de complementaridade, pela crítica recíproca sob a forma de uma argumentação transparente e razoável,

bem assim pelo conhecimento e reconhecimento mútuo. Penso não existir qualquer dúvida sobre que tipo

de pluralismo deve ser preferido”. Ver: RÜSEN, Jörn. Narratividade e objetividade nas ciências

históricas, p. 148-149.

24

considerar a especificidade do pensamento histórico também na função de orientação,

da qual afinal se originou39

”.

A matriz disciplinar torna clara, portanto, a relação existente entre vida prática e

ciência, sublinhando uma realidade bastante plausível: tanto a ciência é originada na

vida, como deve voltar (e, de certa forma, de fato volta) para ela. Ainda que, no limite, a

pesquisa responda à carência de orientação de um grupo muito diminuto, ela serve,

naquele momento, para resolver algum problema da vida prática.

Percebe-se, assim, que a necessidade de constituição histórica de sentido, por

meio da articulação da consciência histórica, surge no cotidiano humano. O fato de que

os seres humanos existem no mundo, por si só, já implica numa série de carências de

orientação, as quais clamam para serem sanadas, haja vista que viver excede quaisquer

expectativas previamente estabelecidas. Este fator “excedente” (e inesperado) causado

pela vida, esta contingência, é o que impulsiona a necessidade de sentido na vida

prática. O tempo, que se apresenta para o humano enquanto intenção e experiência, o

coloca constantemente em situações nas quais ele precisa tomar decisões, interpretar,

posicionar-se frente às questões de sua própria existência. Partindo desse pressuposto de

que o homem necessita agir intencionalmente para viver, portanto, Rüsen afirma a

consciência histórica estar fundada em uma ambivalência antropológica:

O homem só pode viver no mundo, isto é, só consegue relacionar-se com a

natureza, com os demais homens e consigo mesmo se não tomar o mundo e a

si mesmo como dados puros, mas sim interpretá-los em função das intenções

de sua ação e paixão, em que se representa algo que não são40

.

É por meio, portanto, da articulação de sua consciência história, de sua reflexão

sobre o tempo e suas experiências, que o sujeito transforma o tempo como experiência

em tempo como intenção; é a partir dos recursos mentais desta consciência que ele se

torna capaz de articular aquilo que se quer, àquilo que de fato pode ser, ou que, em

outras palavras, coaduna aquilo que de fato ocorreu, àquilo que ele gostaria que tivesse

ocorrido:

39

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 34/35. 40

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 57.

25

A consciência histórica é o trabalho intelectual realizado pelo homem para

tornar suas intenções de agir conformes com a experiência do tempo. Esse

trabalho é efetuado na forma de interpretações das experiências do tempo.

Estas são interpretadas em função do que se tenciona para além das

condições e circunstâncias dadas da vida41

.

A partir destas palavras, volta-se àquilo que foi apresentado anteriormente: a

busca humana pelo happy end, ou a incessante busca por aquilo que satisfaça as

carências de orientação humana, sempre em direção àquilo que o sujeito, ou o grupo,

entenda como sinônimo de felicidade para si. Essa busca, formalizada na narrativa

histórica, por meio de uma constituição histórica de sentido, trata daquilo que Rüsen

chama de racionalidade de sentido. Isto é, o sentido produzido pela consciência

histórica, por mais condizente que busque ser em relação às intenções e às

possibilidades oferecidas pelo seu tempo, por sua cultura histórica, precisa dispor de um

mínimo de racionalidade, se não quiser cair no abismo infrutífero da subordinação dos

fins aos meios, ou dos meios aos fins. É neste ponto que Rüsen toca quando afirma:

A consciência histórica não se constitui (pelo menos não em primeira linha),

pois, na racionalidade teleológica do agir humano, mas sim por contraste com

o que poderíamos chamar de “racionalidade de sentido”. Trata-se de uma

racionalidade, não da atribuição de maios a fins ou de fins a meios, mas do

estabelecimento de intenções e da determinação de objetivos42

.

O estabelecimento de expectativas de futuro, nesse sentido, é também a

organização sensata daquilo que se intenciona, com aquilo que de fato pode ser. Trata-

se de uma crítica temporal à própria experiência, não de uma leitura enviesada ou

tendenciosa, que busque forçar a experiência a ceder às pressões da mente criadora:

A consciência histórica é, pois, guiada pela intenção de dominar o tempo que

é experimentado pelo homem como ameaça de perder-se na transformação do

41

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 59. 42

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 59. Martin Wiklund também toca nesta questão específica, quando

afirma, segundo a teoria de Rüsen, que “perguntar sobre sentido, objetivos e direcionamentos pode ser

visto como o oposto de simplesmente escolher ou decidir o que o passado e o presente deveriam significar

para nós, o oposto de inventar, projetar ou subjetivamente construir o sentido do passado. Se a

investigação histórica é vista como algo movido por tais questões, ao invés de ser meramente motivada

por questões do que aconteceu no passado, ela perde seu caráter instrumental”. Ver: WIKLUND, Martin.

Além da racionalidade instrumental, p. 38-40 (esp. p. 39).

26

mundo e dele mesmo. O pensamento histórico é, por conseguinte, ganho de

tempo, e o conhecimento histórico é o tempo ganho43

.

A consciência histórica funciona, portanto, enquanto faculdade mental da qual o

sujeito lança mão, sempre que deseja adequar suas intenções de agir às experiências

temporais. Nesse sentido, ele se projeta para o futuro. O futuro, enquanto expectativa é

constituído por meio da interpretação do passado. Aquilo que será, pois, é formulado a

partir daquilo que pôde ser, em confluência com aquilo que é o caso, no presente. Rüsen

se refere, portanto, ao exercício do pensamento histórico enquanto “ganho de tempo”

justamente porque, por meio da movimentação de tal faculdade mental, o sujeito se

apossa de sua própria experiência, tornando-se apto a orientar-se a partir dela.

Todo o esforço mental da consciência orientar, de orientar o sujeito no tempo,

através da superação da crise contingencial pode ser observado na cultura histórica.

Cultura histórica pode ser entendida, em poucas palavras, com o espaço sócio-cultural

no qual os resultados das orientações históricas previamente constituídas podem ser

observados. Mas não apenas eles, os resultados das novas orientações temporais,

instigadas por novas e constantes crises, também se expressam na cultura histórica.

Retomando as etapas da matriz disciplinar, observamos ser na cultura histórica, o

espaço onde as respostas produzidas para as carências de orientação (e, neste momento,

não importa se forem fruto do esforço científico, ou não) surtem efeito no agir e sofrer

humano no tempo.

Em sua compilação inicial, a trilogia à qual nos referimos e na qual nos

embasamos nessa pesquisa, Rüsen separa um espaço consideravelmente pequeno para

tratar do tema da cultura histórica, que pode ser entendido da seguinte forma, segundo

as palavras do autor:

A cultura histórica nada mais é, de início, do que o campo da interpretação do

mundo e de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as

operações de constituição do sentido da experiência do tempo, determinantes

da consciência histórica humana44

.

43

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 60. 44

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 121.

27

“Interpretação do mundo e de si mesmo”, sim, pois, por meio da constituição

histórica de sentido, o sujeito não apenas significa o tempo no qual está presente, ou a

sociedade na qual ele vive, mas (e principalmente) define a sua própria identidade, em

confluência com o mundo. É neste ambiente de interpretações de si e do mundo, aonde

os potenciais racionais da orientação humana no tempo se expressam. É nesse sentido

que Rüsen destaca o papel da ciência da história, uma vez que não é apenas ela, a

responsável por tratar do elemento “passado” na sociedade. Relacionando-se com mais

dois outros fatores de orientação presentes na cultura histórica, a ciência da história

(representando o fator cognitivo) influencia e é influenciada pela política e pela arte45

.

Estes são, portanto, os três fatores elencados por Rüsen, constituidores de

orientações no tempo presentes previamente na cultura histórica, ou a partir dos quais os

sujeitos constituirão suas próprias interpretações do tempo. É interessante notar, pois,

que cognição, arte e política correspondem a fatores distintos apenas abstratamente. Em

termos práticos, não existe orientação no tempo que se baseie em apenas um desses

elementos da cultura histórica.

Por meio da formulação deste autor, se torna clara a ideia de que a ciência da

história não é a única que tem “acesso” ao passado. Logo, ela não é a única responsável

por produzir sentidos de orientação no tempo, na sociedade e para os sujeitos. Ela é,

contudo, a única que dispõe dos métodos para racionalizar este acesso à orientação

histórica. Ora, uma vez que a cultura é “histórica”, ela o é não por estar presente, nela,

os resultados de orientação produzidos pela história científica. A qualidade de

“histórica” da cultura diz respeito justamente ao fato de que, toda e qualquer orientação

no tempo, para ser efetiva, necessita de uma boa fundamentação naquilo que trataremos

no capítulo seguinte: nas três etapas constituintes da narrativa histórica. O narrar

historicamente não é uma especificidade apenas da história científica, muito embora os

historiadores pratiquem esse narrar de forma bastante típica e digna de ser trabalhada

em pormenor por uma teoria da história – que é justamente um dos esforços de Rüsen.

Quando este autor trata, portanto, dos fatores ideias e métodos, de sua matriz

disciplinar, ele dedica especial atenção à maneira com a qual os historiadores, enquanto

cientistas são capazes de regular o seu acesso às informações do passado, bem como

45

Deixamos claro que esta formulação trata-se de uma formulação inicial, uma vez que o História viva é

de 1987. Na versão mais recente de sua teoria da história, a Historik, de 2013, Rüsen apresenta não

apenas três, mas cinco dimensões da cultura histórica (além da dimensão cognitiva, estética e política, ele

trata da moral e religiosa). Em nossa pesquisa atual, contudo, trataremos apenas desta versão inicial da

formulação em torno da cultura histórica. Ver: RÜSEN, Jörn. Historik, p. 234-241.

28

regulam também as suas interpretações desenvolvidas a partir destas informações.

Trata-se, brevemente, daquilo que foi apontado acima: da regulação da objetividade e da

subjetividade no trabalho do historiador. Também separamos um espaço, em nossa

pesquisa atual, para tratar das possibilidades de racionalização da narrativa histórica.

Interessa-nos aqui, por ora, definir o que é cultura história, na teoria de Rüsen, bem

como de que maneira este conceito se relaciona com o de consciência histórica.

É na cultura histórica, pois, que os potenciais de orientação da consciência

histórica fazem efeito. Rüsen os envolve, não obstante, à racionalidade científica da

história, em prol de delinear em que aspectos estes potenciais podem ser criticados e

construídos, sob a égide da racionalidade típica da história como ciência. Partindo do

pressuposto de que não são apenas os historiadores que lidam com o passado (e, com

isso, constituem sentido à partir dele), é de se levar em consideração de que maneira

estes profissionais podem articular o seu conhecimento específico com as demais

formas de constituição histórica de sentido presentes na cultura histórica.

Relacionar, assim, ciência da história com política e estética é a maneira a partir

da qual Rüsen demonstra como, por meio da formação histórica, o sujeito se torna

capaz de criticar racionalmente os discursos políticos e estéticos sobre o passado. As

influências da cognição tipicamente científica da história, na cultura histórica, trariam

benesses para a constituição do sujeito, tornando-o apto a criticar, argumentar e validar

seus pensamentos e opiniões, orientando-se no tempo a partir de perspectivas mais

amplas e bem estruturadas. Um excelente exemplo do nosso cotidiano pode ser

encontrado nos discursos políticos, sejam eles durante campanha eleitoral, sejam eles os

que encontramos constantemente nas redes sociais. Por meio de tais discursos o passado

é sempre trazido à tona como elemento de uma constituição tal de sentido histórico, que

queira direcionar a leitura deste passado, no presente. Uma consciência histórica

formada fugiria das amarras de tal discurso. Segundo Rüsen, a formação histórica:

(...) Abre o discurso do poder a todos os participantes, ao recorrer a uma

razão que tem de ser atribuída a todos os que se encontram envolvidos pelas

circunstâncias do poder e da dominação. É com essa razão que se pode e

deve criticar a legitimidade dessas circunstâncias. A ciência é capaz disso na

medida em que trabalha, em seus procedimentos cognitivos, com questões,

29

pontos de vista e perspectivas das fontes, nas quais os interesses políticos se

encontram encarnados cognitivamente46

.

Percebe-se, a partir desta citação, como Rüsen traz de volta aquilo de que

tratamos anteriormente: a racionalidade de sentido. Por meio da crítica desenvolvida

pela ciência da história, o sentido produzido a partir de tais interpretações dos

acontecimentos políticos, por exemplo, se torna argumentativo, criticável, relacionável a

perguntas e perspectivas e, por isso, racional. Ele não se baseia mais simplesmente na

forma da orientação, mas, em seu processo formativo, torna-se apto a criticar o seu

conteúdo. Sua orientação é aberta para a possibilidade de não mais basear-se na máxima

“é verdade, porque faz sentido”, mas sim, advém de um sentido que é verdade porque é

justificável, apresentável a partir de fontes e que tem suas ideias orientadoras da

interpretação da experiência explicitadas e argumentadas. Estes passos, quando

articulados cientificamente pela cognição histórica, abrir-se-iam para a chance de

constituição de um mundo mais humanitário – temas os quais trabalharemos em

pormenor nos capítulos seguintes.

Uma consciência histórica formada seria capaz, portanto, de enxergar além da

retórica dos discursos políticos, questionando-se acerca das afirmações de tais falas, ou

buscando, por si só, pelas informações das fontes nas quais este discurso diz se basear.

Trata-se, basicamente, da aplicação da racionalidade científica para a orientação na vida

prática. Em termos de cultura histórica, a cognição não ficaria mais refém do jugo

retórico da política, mas tornar-se-ia capaz de domá-la em sua potencialidade de

dogmatismo e perspectiva única. É como se o sujeito, de fato, se apoderasse de sua

própria capacidade de pensar, enxergando, além da floresta, todo o conjunto de árvores

que a forma.

O mesmo tipo de crítica ocorre quando se direciona a cognição científica da

história à dimensão estética da cultura histórica. Dessa forma, os riscos do sujeito ficar

embevecido pelo padrão estético da linguagem, ou da iconografia trabalhada em

determinado discurso, por exemplo, (pensemos, novamente, em algum discurso político

encontrado em nosso cotidiano) se torna bem menor. A formação histórica, por meio da

influência da ciência da história, é capaz de se esquivar, assim, tanto do convencimento

retórico do discurso político, quanto de sua (aparente) artificialidade estética.

46

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 126.

30

Pensada de maneira associativa, a dimensão estética pode causar graves

problemas ao desenvolvimento de um sentido, quando este necessita ser constituído a

partir de casos de crises mais catastróficas à experiência humana. Isto é, um

acontecimento como o Holocausto, por exemplo, se tomado exclusiva ou

principalmente por meio de seu horror, (câmaras de gás, campos de concentração, etc.)

corre o risco de ficar perdido no embevecimento causado por sua qualidade estética. A

aparência terrivelmente sedutora de um acontecimento como este termina por paralisar

as possibilidades de constituição histórica de sentido, constituindo aquilo que Rüsen

chama de trauma. Destacamos, na conclusão de nossa pesquisa, um exercício no qual

relacionamos as reflexões de Rüsen sobre trauma, à possibilidade de pensá-lo

relacionado à Ditadura Militar no Brasil.

É interessante destacar, nesse sentido, a maneira com que este autor releva não

apenas a necessidade de se constituir sentido, quando a experiência humana é possível

de ser trabalhada pela consciência histórica. Mas (e, talvez, principalmente), é

importante se levar em consideração a necessidade de ir além das possibilidades

estéticas ou retóricas de um acontecimento, se se tiver como objetivo a constituição e

sentido condizente com o agir humano no tempo, uma vez que os elementos retóricos e

estéticos da constituição narrativa de sentido podem acabar se sobressaindo aos

cognitivos, causando mais uma sensação de desorientação, do que necessariamente uma

conformidade entre experiência e intenção de ação no tempo.

Seguiremos, portanto, analisando mais a fundo a narrativa histórica, como

apresentada por Rüsen em sua teoria, questionando-nos, não obstante, acerca da

possibilidade de racionalização desse produto do esforço mental de orientação da

consciência histórica. O que é narrativa histórica para Rüsen? Como ela se estrutura? De

que formas ela se expressa? É possível constituir uma narrativa histórica científica? Sob

que parâmetros? Buscaremos responder tais perguntas, destacando, por fim, a categoria

de humanidade como princípio regulador máximo das interpretações do passado, na

teoria da história de Jörn Rüsen.

31

CAPÍTULO II

A narrativa histórica como forma de apresentação do sentido

Depois de trabalhado o tema sobre de onde surge a necessidade de constituição

histórica de sentido, na vida prática humana, trabalhar o modo com que esta

constituição se expressa, torna-se relevante e necessário (uma vez que este é o “passo

seguinte” de tal constituição). Ora, o ser humano, em sua necessidade de dotar de

sentido e significado suas experiências, atribui forma ao resultado deste esforço de sua

consciência histórica. A isto, Rüsen dá o nome de narrativa histórica. Esta narrativa,

contudo, não é qualquer uma, ela precisa ser histórica e, tal adjetivação da narrativa,

denota uma relação específica, apresentada pelo autor em sua teoria, entre

ficcionalidade e factualidade, a partir dos elementos constitutivos de tal narrativa

específica.

A narrativa histórica, na teoria de Rüsen, quer dizer muito mais do que a simples

ação de “contar uma história”. Para que uma narrativa adquira a qualidade de histórica

ela precisa, também, ser mais do que uma mera explanação acerca daquilo que foi o

caso, no passado. Explanar sobre o caso, no passado é, de fato, uma das etapas

constituintes da narrativa histórica, entretanto, não é a única. Logo, “falar sobre o

passado” não quer dizer constituir uma narrativa histórica (compreendendo-se narrativa

histórica como resultado da constituição histórica de sentido). É, pois, partindo deste

ponto, que Rüsen destrincha a narrativa em suas qualidades históricas e a relaciona,

portanto, com o esforço mental, da consciência histórica, de se sobressair, frente ao

tempo contingente.

Há de se levar em consideração, também, o contexto no qual Rüsen escreve sua

teoria, e o surgimento dos debates em torno da virada linguística e, conforme

apresentado anteriormente, as críticas elaboradas, por parte de teóricos pós-modernos, à

racionalidade típica da história enquanto ciência e ao elemento narrativo na constituição

do conhecimento histórico47

. Não aprofundaremos este debate aqui, quer dizer, o modo

com que Rüsen, por meio de sua elaboração teórica, responde às suas críticas e

questões. Torna-se relevante perceber, contudo, de que maneira, já no último livro de

sua trilogia, o História viva, – no qual ele trabalha, especificamente, a questão da

47

Retomamoso texto de Lorenz, no qual o autor discorre acerca do contexto de transformação do tema

“teoria da história”, no decorrer do século XX: LORENZ, Chris. History and theory, p. 23-26.

32

narrativa histórica – Rüsen aborda a questão, em resposta a um dos teóricos de maior

relevância no debate em torno da volta da narrativa para a história: Hayden White.

White é apontado por Lorenz como o teórico responsável por apresentar, de maneira

mais clara, a existência dos fatores poéticos na constituição da narrativa histórica, em

seu livro Metahistory, de 197348

.

Datado de 1987, o História viva, traz o debate para o cerne de sua constituição

teórica a partir do momento em que apresenta, como quarto fator de sua matriz

disciplinar, a narrativa histórica – a narrativa histórica como forma de apresentação.

Isto é, Rüsen não apenas reconhece a existência de elementos poéticos na constituição

do conhecimento histórico científico, como os traz para dentro de sua matriz acerca da

relação entre ciência da história e vida prática. Com isso, o autor responde às questões

levantadas por teóricos como Hayden White, ao mesmo tempo em que se relaciona,

novamente, com a longa tradição do historicismo alemão, dessa vez, Leopold von

Ranke:

A história distingue-se das demais ciências por ser, simultaneamente, arte.

Ela é ciência ao coletar, achar, investigar. Ela é arte ao dar forma ao colhido,

ao conhecido e ao representá-lo. Outras ciências satisfazem-se em mostrar o

achado meramente como achado. Na história, opera a faculdade da

reconstituição. Como ciência, ela é aparentada à filosofia; como arte, à

poesia49

.

É com esta citação de Ranke em seu texto, que Rüsen inicia o seu debate em

torno da narrativa histórica. Seu objetivo, com isso, é deixar claro que tais elementos

poéticos, artísticos, da constituição do conhecimento histórico científico, não eram

desconhecidos por estes pioneiros da institucionalização da história enquanto ciência

(tal reconhecimento aparecerá, por exemplo, nos textos de Johann Gustav Droysen,

48

Segundo Lorenz: “White sugere que historiadores, da mesma forma que romancistas, dispõe da

liberdade de escolherem entre diferentes tipos de ordenações narrativas ou “criações de enredo”

(emplotment) (ele discute quatro: romance, tragédia, comédia e sátira) e, portanto, entre diferentes tipos

de explicação. Além disso, ele apontou que os fatos da história não limitam a liberdade dos historiadores

de “narrativizá-los”. Por isso, White argumento que, em história, estamos lidando com as “ficções das

representações factuais”. Ver: LORENZ, Chris. History and theory, p. 24, tradução nossa. 49

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 18.

33

outra importante referência para Rüsen50

). Ao mesmo tempo em que reconhece tais

inquietações presentes, já nestes autores oitocentistas, Rüsen levanta o debate em torno

desta, que é a sua categoria central: a de sentido histórico. O problema não está, pois, na

ficcionalidade ou na factualidade da narrativa histórica. O problema encontra-se, isso

sim, na constituição histórica de sentido, elaborada a partir dos fatos do passado.

Não é por menos que Rüsen dota a narrativa de tamanha importância, uma vez

que, segundo o autor, é imperativa para consciência histórica, a busca por novas

interpretações de suas experiências do tempo, as quais tornem o tempo perspectivado

subordinado ao tempo vivido. Dessa forma, ficcionais ou não, as narrativas históricas

precisam fazer sentido para orientarem no tempo. Assim, apresenta-se uma narrativa

histórica que não trata exclusivamente do caso no passado, ou da experiência no tempo.

Uma narrativa capaz de orientar o sujeito deve possuir outros elementos, que não

simplesmente o seu conteúdo factual (o qual pode, inclusive, sequer ser “verdadeiro”).

Que outros elementos, para além do experiencial, seriam esses?

Obviamente, o autor separa um momento de sua teoria para debater

especificamente a maneira com que tal constituição histórica de sentido pode vir a ser

racionalizada pela ciência da história. “Racionalização”, portanto, capaz de gerar um

mínimo de confiabilidade numa determinada narrativa histórica, da qual as demais não

disporiam, justamente por não constituírem os seus sentidos históricos a partir de ideias

e métodos orientados cientificamente. O nosso objetivo com este capítulo, contudo, é o

de discutir, antes, o que caracteriza a narrativa história, para Rüsen e como ela se

apresenta na vida humana prática. No capítulo seguinte, portanto, abordaremos

especificamente a maneira com que Rüsen relaciona toda a constituição histórica de

sentido à possibilidade de racionalização, por meio da ciência da história.

O que caracteriza a narrativa histórica?

Lembranças, representação de continuidade e constituição identitária, como

apresentado já no Razão histórica51

, ou memória, continuidade e identidade, presente

em outros textos do autor. Importante compreender, contudo, que a narrativa histórica é

50

Sobre Droysen e como ele “responderia” às questões atuais acerca das críticas pós-modernas sobre a

cientificidade da história, ver: RÜSEN, Jörn. Droysen hoje – Sobre temas extraviados da historiologia. In:

RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido, p. 58-86. 51

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 62-66.

34

caracterizada pela relação elaborada, pela consciência histórica, dos três tempos:

passado, presente e futuro. A narrativa surge enquanto produto deste esforço mental, o

qual quer orientar-se para o futuro, a partir de interpretações das experiências do

passado, compreendendo a situação presente. Referência ao passado (experiência,

lembrança, memória), compreensão do presente (representação de continuidade,

interpretação) e, por fim, projeção do futuro possível (identidade, orientação): é por

meio da inter-relação destes três tempos que se constitui a narrativa histórica52

.

A lembrança é justamente o primeiro momento do trabalho intelectual da

consciência histórica, pois é a ela que a consciência histórica o seu clamor, do presente,

sob a forma de uma pergunta (suscitada por uma carência da orientação), para a qual o

passado servirá de base enquanto resposta. Conforme comentado anteriormente,

portanto, a narrativa não é histórica por se referir ao passado, pura e simplesmente. Mas

também é correto afirmar, segundo a teoria de Rüsen, que sem este elemento, ela não se

constitui. Ora, como pode algo orientar para o futuro, se não dispuser de uma base

sólida no passado?

A lembrança flui natural e permanentemente no quadro de orientação da vida

prática atual e preenche-o com interpretações do tempo; ela é um

componente essencial da orientação existencial do homem. A consciência

histórica não é idêntica, contudo, à lembrança. Só se pode falar de

consciência histórica quando, para interpretar experiências atuais do tempo, é

necessário mobilizar a lembrança de determinada maneira: ela é transposta

para o processo de tornar presente o passado mediante o movimento da

narrativa53

.

Interessante notar, nesse sentido, o jogo de palavras, do qual Rüsen lança mão,

sempre que discorre acerca deste primeiro elemento constituinte da narrativa histórica.

Em alguns textos, como neste do Razão histórica, o termo surge enquanto lembrança, o

qual pode ser trazido, para o alemão, como Erinnerung. “Erinnerung”, por sua vez, pode

ser entendida como sinônimo de Gedächtnis, que significa memória. As duas palavras,

contudo, possuem acepções bastante específicas na língua alemã. Enquanto a primeira

52

Serviram de referência, para a constituição deste tópico, além dos livros Razão histórica e História

viva, dois artigos disponíveis na coletânea Jörn Rüsen e o ensino de história, além de trechos do artigo

Geschichte als Sinnproblem, disponível no livro Zerbrechende Zeit. Ver: SCHMIDT, Maria Auxiliadora;

BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.), Jörn Rüsen e o ensino de história, p. 51-79; 93-

109; RÜSEN, Jörn. Zerbrechende Zeit, p. 29-38. 53

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 63.

35

diz respeito, mesmo, a este movimento ao qual Rüsen faz referência na citação

destacada – este de trazer o passado, para o presente, a partir do ato de lembrar –, o

segundo diz respeito, antes, à faculdade humana da memória.

A referência que ambas fazem, portanto, da lembrança e da memória, à

experiência – Erfahrung – diz respeito, antes, ao fato de que, por meio da

movimentação da consciência histórica, o sujeito atinge o passado em sua qualidade de

acontecimento, de experiência, e dota-o de sentido para o presente, projetando futuro.

Por isso, Rüsen oscila entre estas duas acepções, pois o sujeito, ao fazer uso de sua

faculdade de memória, articula o passado, no presente, transformando-o em lembranças.

Em outras palavras: pode-se entender “memória” enquanto o conteúdo factual ou

experiencial do passado, quase estático, parado, um vestígio mesmo; enquanto

“lembrança” seria este vestígio em movimento. O passado, como tal, encontra-se

presente na vida cotidiana dos sujeitos. Lembrá-lo, movimentando-o em seu potencial

de sentido para a orientação no tempo, é o que a consciência histórica faz, quando

produz uma narrativa histórica.

A memória, movimentada e transformada em lembrança pelo esforço do

pensamento histórico, é trazida para o presente por meio de uma representação de

continuidade, o segundo fator constituinte das narrativas históricas. Para que as

lembranças façam sentido na vida humana prática, a consciência histórica precisa ser

capaz de articular passado, presente e futuro numa lógica temporal tal, na qual a

continuidade de um tempo para o outro seja plausível. A transformação do vestígio em

base experiencial, base esta sobre a qual o sujeito, em sua atividade de constituição de

sentido, elabora orientação no tempo, pode ser encarada como um tornar o passado,

portanto, móvel, significável e ressignificável.

A narrativa histórica organiza essa relação estrutural das três dimensões

temporais com representações de continuidade, nas quais insere o conteúdo

experiencial da memória, a fim de poder interpretar as experiências do tempo

presente e abrir as perspectivas de futuro em função das quais se pode agir

intencionalmente54

.

A consciência histórica representa, pois, o tempo numa lógica de continuidade,

na qual o “conteúdo experiencial da memória” é interpretado, no presente, e abre as

54

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 65.

36

perspectivas do futuro. Neste momento, o passado deixa de ser “memória” e passa a ser

“lembrança”: viva, ativa, móvel.

A memória, transportada do passado para o presente, transformada em

lembrança e alocada numa representação de continuidade por meio da narrativa

histórica, produto do esforço intelectual da consciência histórica, quer, portanto, aderir

sentido, força e significado às identidades históricas. É este o “ponto de chegada” das

narrativas históricas. Torna-se claro, por isso, o porquê de Rüsen afirmar o sentido ser

aquilo que mais importa numa narrativa histórica, não a confirmação e seu conteúdo

experiencial. Ficcionais ou não, as histórias não se tornam mentirosas pelo simples fato

de não partirem de experiências do passado reconhecidas e validadas pela comunidade

científica, por exemplo. Ficcionais ou não, os fatos apresentados nas narrativas, quando

fazem sentido para a vida humana prática, são verdadeiras.

Reconhecer isto, contudo, não isentam tais narrativas de sofrerem críticas. Pelo

contrário, a crítica, advinda da racionalidade científica, está prevista na teoria da história

de Rüsen. O que ele afirma, entretanto, em meio à sua explanação sobre os elementos

constitutivos da narrativa histórica, é que ela quer orientar os sujeitos no tempo. Isto é,

estes sujeitos, quando exercem sua faculdade de memória, articulando passado, presente

e futuro numa representação de continuidade, querem se manter firmes, frente às

contingências temporais.

Nesse nível de referência basilar-existencial à narrativa histórica, é onde Rüsen

aloca sua “medida de plausibilidade”:

A resistência dos homens à perda de si e seu esforço de auto-afirmação

constituem-se como identidade mediante representações de continuidade,

com as quais relacionam as experiências do tempo com as intenções no

tempo: a medida da plausibilidade e da consistência dessa relação, ou seja, o

critério de sentido para a constituição de representações abrangentes da

continuidade é a permanência de si mesmos na evolução do tempo. A

narrativa histórica é o meio de constituição da identidade humana55

.

Falar sobre si, ou sobre o outro, é, necessariamente, narrar uma história. Narrar

uma história, por sua vez, é constituir sentido para o presente, a partir do passado.

Regular tal processo metodicamente, é um dos objetivos da ciência da histórica, como

55

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 66.

37

apresentada por Rüsen. Contudo, definir a plausibilidade de narrativas históricas,

mediante, unicamente, a qualidade de suas referências às experiências, é negligenciar

todo o critério de sentido que envolve a elaboração de uma narrativa. Critério este que,

conforme foi apresentado, vai muito além da apresentação factual do que foi o caso no

passado. No capítulo seguinte, trataremos especificamente do processo de regulação

metódica referente a cada um dos fatores constituintes da narrativa histórica que foram

apresentados até então.

No próximo tópico, entretanto, detalharemos um pouco mais as maneiras com as

quais os sujeitos podem lograr orientação no tempo. Se a narrativa histórica é o

resultado do esforço do pensamento histórico de tornar conformes, as experiências de

vida, com as intenções de ação, tal conformidade pode vir de várias formas. Rüsen

constitui, para explicitar tais possibilidades, uma tipologia narrativa, na qual elas

estariam expostas, modeladas a partir de tipos-ideais.

Tradicional, exemplar, crítica e genética: as tipologias narrativas

Os pontos de vista que regem a constituição de sentido são os responsáveis, por

meio da narrativa, pela consciência histórica, por orientarem a vida humana prática.

Dessa forma, Rüsen os difere em quatro: afirmação, regularidade, negação e mudança56

.

É a partir destes, algum em maior ênfase do que outro, dependendo da crise gerada pela

contingência e a consequente necessidade de interpretação e a disponibilidade de

material interpretativo na cultura histórica, que o sujeito define seus posicionamentos

frente às intempéries da vida.

O primeiro deles, a afirmação, parte da ideia de que a vida humana prática já é

orientada por pressupostos constituídos antes de suas crises de contingência, ou seja,

ainda mesmo antes de qualquer necessidade de constituição histórica de sentido. Dessa

forma, as narrativas dela decorrentes são chamadas de tradicionais, uma vez que se

valem do conteúdo da tradição na vida humana prática, a partir do qual o passado já é

apresentado como história, sem que seja necessário o esforço interpretativo da mente

humana. Rüsen chama a tradição, ainda, de pré-história, uma vez que nela estão

amalgamados, passado, presente e expectativa de futuro de maneira tal, que a narrativa

56

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 44-48.

38

histórica, ao focar-se nela para constituir sentido, precisa criticá-la e destrinchá-la, caso

suas possibilidades de orientação não sejam suficientes para resolver a crise em questão.

Em uma pré-história desse tipo, o passado praticamente se ofereceria a ser

lembrado no presente, apresentando-se – ainda antes de ser, como passado,

conscientemente tornado presente pela narrativa – como uma espécie de

forma pré-passada (isto é, ativamente presente na vida prática), de

protonarrativa em que se baseia qualquer narrativa histórica57

.

Em outras palavras, é como se as orientações adjacentes deste tópos narrativo “já

estivessem prontas”, disponíveis para serem aderidas à identidade. Elas funcionam

como soluções rápidas para algumas crises causadas pela contingência, uma vez que, à

disposição na cultura histórica, seus elementos pré-concebidos de sentido já orientam a

vida – podem-se apontar as narrativas tradicionais servirem à consciência história para

resolver as crises normais, conceito tratado no capítulo anterior.

É relevante destacar, nesse sentido, que muitos elementos de nossa vida

precisam e são orientados pelas tradições. Exemplos muito simples são a religião, ou os

estereótipos de gênero. Por mais que uma série de narrativas paralelas seja desenvolvida

e critiquem estes pressupostos, eles ainda nos servem, em grande medida, para orientar

nossas decisões no decorrer do tempo. “Padrões” sociais servem de base para que nos

orientemos acerca do que são as coisas no mundo, ainda venham a ser constantemente

desconstruídos. Se falarmos de “mulher”, ou de “homem”, entendemos imediatamente

uma série de características, as quais foram constituídas historicamente, muito antes do

nosso tempo, ou de nossa cultura histórica e que, com isso, servem-nos para orientar

nossas leituras sociais acerca do que é um homem e do que é uma mulher. Estes tipos de

narrativas, contudo, oferecem muito pouco à orientação humana, uma vez que,

justamente, confundem o conteúdo do passado, com o conteúdo da história. E a

experiência contingente, na maioria das vezes, gera uma crise, a qual, para ser resolvida,

necessita de uma referência mais ampla e bem trabalhada à experiência, do que aquela

produzida pela narrativa tradicional.

Apresentadas dessa forma, “naturalizadas”, elas cristalizam o passado numa

espécie de bolha temporal, a qual pode facilmente ser rompida por discursos

57

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 75.

39

progressistas (como tem acontecido, muito, ultimamente, pelos movimentos sociais e

pelas discussões em torno do gênero).

História que obedecem a esse formato e a esse topos remetem às origens, que

se impõe às condições contemporâneas da vida, e que se querem manter

inalteradas, presentes e resistentes ao longo das mudanças no tempo58

.

Tais narrativas obedecem ao esquema apresentado anteriormente, portanto: elas

constituem sentido a partir de uma referência às experiências do passado – um

movimento da lembrança –, apresentam a relação entre passado, presente e futuro numa

lógica de continuidade temporal, em prol de, por fim, constituir identidade. Pensando no

exemplo da identidade de gênero, ainda, somos capazes de observar de que maneira ele

remete a um passado muitas vezes mítico, isto é, desprovido de questionamento ou

crítica, para manter a sua orientação atuante. O tempo, nessa narrativa, é articulado de

maneira tal, a apresentar a permanência na mudança. Enquanto o mundo mudou, tantas

coisas foram revistas e repensadas, a identidade de gênero continuou trabalhada dessa

forma: os estereótipos, do que entendemos por homem, continuam sendo,

majoritariamente, os mesmos, bem como os de mulher.

O princípio de orientação oferecido pela narrativa tradicional, contudo, é muito

raso e dispõe de uma referência à experiência (a primeira etapa da constituição narrativa

de sentido) muito limitada. É quando surge a necessidade de se constituir sentido a

partir de outro ponto de vista orientador: a regularidade. Por meio da visualização de

exemplos no tempo, esse segundo tipo de narrativa histórica quer observar a

regularidade, frente à mudança. O nível de referência à experiência, nesse caso, se torna

mais complexo, uma vez que se faz necessário articular diretamente orientação e

experiência no tempo. A este segundo tipo Rüsen dá o nome de exemplar: “a questão

agora é de ter presentes todos os conteúdos da experiência nos quais as determinações

de sentido relevantes para a vida prática concreta aparecem, consolidam-se e podem ser

demonstradas59

”.

Por meio da referência a exemplos no tempo, essas narrativas os retiram de seus

contextos específicos, em prol de alocá-los numa lógica tal de organização temporal, na

qual eles, pela regularidade, façam sentido. Trata-se do famoso topos moderno da

58

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 48. 59

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 51.

40

Historia magistral vitae60

, ou seja, da “história mestra da vida”. As identidades de

gênero, nesse sentido, seriam organizadas, por meio da narrativa histórica, de maneira

tal a encontrarem, durante um determinado período de tempo, exemplos do que se

referencia como homem, ou como mulher. O apontamento à experiência concreta,

nestes casos, se torna mais relevante, uma vez que, muito embora ela seja destacada de

seu contexto para ser encaixada num contexto de sentido regular, ela serve de base para

a justificativa das ações tomadas mediante essa constituição histórica de sentido.

É interessante notar como, da narrativa tradicional para a exemplar, existe um

salto qualitativo com relação à referência à experiência. Segundo Rüsen:

Os limites estreitos, impostos por uma constituição tradicional de sentido à

elaboração da experiência no tempo, são ultrapassados. Não se trata mais dos

processos e acontecimentos do passado nos quais se constitui o sentido

necessário para dar conta de situações concretas do agir hoje. A questão

agora é de ter presentes todos os conteúdos da experiência nos quais as

determinações de sentido relevantes para a vida prática concreta aparecem,

consolidam-se e podem ser demonstradas61

.

Da referência à experiência parte-se, portanto, para a continuidade histórica, a

qual não mais depende de um processo temporal interno, mas encontra-se alocada em

um sistema geral de regras. A consciência histórica, com isso, destaca das experiências

do passado aquilo que lhe serve, no contexto geral, para confirmar a regra. O sentido do

tempo é, pois, “espessado62

” e a identidade dele decorrente são aquelas nas quais as

universalizações de pontos de vista específicos fazem sentido. Um exemplo de mulher,

ou de homem, num determinado período histórico é destacado de seu contexto

específico e suas qualidades, seus valores e os princípios, os quais ele representa, são

espessados numa narrativa que busca pelos mesmos elementos, em tempos distintos,

com o objetivo de confirmar aquele padrão identitário do presente.

A tradição e o exemplo, como formas de orientação da vida prática, estão

presentes o tempo todo em nossas vidas. Seja nas identidades de gênero, como estamos

60

Sobre esse tópico, Rüsen faz referência ao conhecido texto de Koselleck: KOSELLECK, Reinhart.

Historia Magistra Vitae – Sobre a dissolução do topos na história moderna em movimento. In:

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de

Janeiro: PUC-Rio/Contraponto, p. 41-61, 2006. 61

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 51. 62

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 53.

41

usando de exemplo, seja nos discursos políticos ou religiosos, a busca por um passado

mítico e inquestionável, ou o embasamento de determinada decisão, sobre padrões de

ação alocados no tempo, a afirmação e a regularidade orientam a vida humana, o tempo

todo. O próximo tipo de constituição narrativa de sentido, contudo, diz respeito ao

momento no qual a contingência irrompe com tais modos de orientação. Isto é, no

momento em que estes sentidos produzidos através da tradição ou do exemplo, deixam

de servir enquanto material de orientação. O sujeito assume o posicionamento de

negação, de dizer “não” aos padrões de comportamento oferecidos por eles. A esse

ponto de vista, Rüsen dá o nome de negação e ele diz respeito ao modo crítico de

constituição narrativa de sentido histórico.

Com essas orientações, os sujeitos tornam-se próprios – recusam orientações

prévias ou impostas e desenvolvem suas próprias orientações, que exprimem

sua particularidade, sua diversidade, sua contraposição63

.

A força identitária gerada por esse tipo de narrativa diz respeito àquela da

divergência, do colocar-se em posição contrária àquilo que vinha sendo tido como

padrão até o presente momento. Rüsen referencia-se, dessa forma, aos movimentos

intelectuais da pós-modernidade e do pós-estruturalismo, enquanto reflexões que

negaram os padrões de sentido que estavam estabelecidos pela ciência do Iluminismo e

do historicismo64

.

O sujeito, portanto, ao colocar-se numa posição contrária à dos padrões

socialmente estabelecidos, abre as portas para o surgimento do novo, e da

transformação. Com relação à tradição, é a narrativa crítica que abre espaço para a

desconstrução do amálgama temporal constituído em prol da orientação oferecida por

aquela narrativa. Tanto a consciência histórica cotidiana, quanto aquela orientada pela

ciência constituem sentido, portanto, a partir de uma crítica da tradição:

(...) A consciência histórica repouse sobre uma crítica da tradição significa

(no sentido original da expressão “crítica” como “diferenciação”) que as

dimensões temporais do passado, presente e futuro, originalmente não

distinguidas na tradição, passam a ser especificamente consideradas e

relacionadas umas às outras. (...) Mediante a crítica da tradição pela

63

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 46. 64

Ver: RÜSEN, Jörn. História viva, p. 56.

42

consciência histórica, a visão do passado como passado torna-se enfim

possível. (...) Ela é uma visão que se volta para as experiências do tempo

passado que podem assumir a função interpretativa que o passado

diretamente presente na tradição não tem como exercer65

.

Nesse sentido, a narrativa crítica pode ser entendida, antes, enquanto

catalisadora da transformação de sentido, da tradicional para a exemplar, e da exemplar

para a genética (a qual trataremos em seguida). Em sua capacidade de divergir daquilo

que vinha sendo tido como certo até então, e de abrir espaço para o novo, a narrativa

crítica torna o tempo “julgável”:

No distanciamento dos sentidos da experiência previamente dados e na crítica

à pressão da conformidade que as mudanças temporais trazem em si, como

sinal de sua significação, os sujeitos ganham fôlego para modelar

culturalmente seu próprio tempo, da maneira que creem poder e querer, por

meio da memória histórica66

.

De volta ao exemplo com o qual trabalhamos até então, as identidades de

gênero, quando atingidas por narrativas críticas, são postas sob o crivo do “não”. Tudo

aquilo que foi compreendido enquanto homem e enquanto mulher até então se torna

julgável e as identidades de gênero dos sujeitos adquirem um prisma cada vez mais

plural de possibilidades. Da mesma forma, a própria narrativa crítica nasce desta

pluralidade. Ela é o reconhecimento, por parte da teoria de Rüsen, de que a vida humana

não é dotada apenas de sentidos estabelecidos por meio da tradição ou da regularidade,

do exemplo. A existência humana, em seu constante processo de mudança, parte do

questionamento de tais padrões de comportamento, levados a cabo pelo ponto de vista

da negação, proveniente da constituição crítica de sentido histórico.

As narrativas críticas, portanto, enquanto tipologia surgem sempre no momento

em que tradições de pensamento são rompidas por algum tipo de contingência temporal.

Tal acontecimento coloca o pensamento humano numa situação peculiar, numa crise, da

qual, para que se consiga sair, é necessário repensar esses padrões. A possibilidade de

negar os padrões pré-estabelecidos, inclusive, é o que faz, em grande medida, o

conhecimento progredir. O propósito dessas narrativas históricas, contudo, muitas vezes

65

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 82. 66

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 58.

43

termina sendo o da desconstrução, como um fim em si mesmo, isto é, sem

necessariamente se construir nada em contrapartida. O esvaziamento decorrente de tal

atitude pode gerar a sensação de desorientação. Ora, se os padrões são negados de tal

forma e não é pensada uma maneira de se constituir algo novo em cima daquilo que foi

desconstruído, com base em quê os sujeitos estabelecerão seus ideais de orientação no

tempo?

Voltando-se para o exemplo de que estamos tratando, um problema comum de

se observar, com relação às identidades de gênero plurais que tem surgido graças à

crítica aberta aos padrões de gênero constituídos tradicional e regularmente, é a

desorientação causada pela crítica excessiva dos terrenos estáveis. Conforme foi

sublinhado, ainda na narrativa tradicional, os padrões são necessários, muito embora

problemáticos em relação à complexidade de seu conteúdo experiencial, pois nos

servem de “guias” para a vivência em sociedade. A partir do momento em que um

movimento intelectual questiona as identidades de gênero de maneira tal, a

aparentemente dissolver o masculino e o feminino numa miríade cada vez mais plural

de sentidos e significados, o sujeito corre o sério risco de ser incapaz de se reconhecer

em qualquer um desses termos.

A desorientação daí decorrente poderia ser evitada se, exatamente, da narrativa

crítica, enquanto catalisadora da transformação, o sujeito passasse para a próxima

tipologia: a narrativa genética, aquela que valoriza o tempo como mudança,

transformação. Dessa forma, valer-se-ia do poder de negação advinda da crítica, e do

espaço aberto para se pensar o novo e, de fato, estabelecer-se-ia o novo.

O ponto de vista norteado pelo princípio da transformação é aquele que integra a

diversidade de ideais e de pontos de vista a uma unidade abrangente de tempo e de

orientação. As diferenças são trazidas para dentro de uma lógica temporal, na qual o

tempo, em seu caráter mutável, é validado enquanto sentido. A mudança, assustadora à

tradição, negligenciada pela exemplaridade e o cerne da crítica, é assumida, na narrativa

genética, como um fator positivo. Ao sujeito é apresentada a possibilidade de criar, à

medida que se transforma. Essa criação temporal, entretanto, é aderida a novos modelos

de orientação no tempo. O que, na narrativa crítica, é apontado exclusivamente, isto é, o

fato de que a pluralidade existe e de que ela nega, portanto, a tradição (identidade

afirmativa de padrões) e o exemplo (identidade orientada por regras supra-organizadas

temporalmente), na narrativa genética adquire novo fator aglutinador. A transformação

44

aglutina, pois, mediante a possibilidade do novo aberta pela crítica, elementos da

tradição e dos exemplos, passíveis de serem readaptados no tempo presente. É nesse

sentido que argumenta Rüsen:

As posições a serem tomadas não são mais reproduzidas mimeticamente,

nem meramente subsumidas a sistemas de regras e princípios, nem tampouco

contrapostas negativamente. Pelo contrário, tornam-se permeáveis

comunicativamente, perdem sua estreiteza, sua negatividade, seu caráter

abstrato. Entram em um movimento em que sua diversidade se inter-

relaciona, tornando-as capazes de consenso, sem ter, em princípio, de

abandonar sua diversidade67

.

A identidade constituída a partir desta constituição narrativa de sentido é aquela

da individuação. O sujeito, por meio da relevância concedida ao tempo como

transformação, formaliza características de sua identidade com maior estabilidade.

Novamente, se pensarmos no exemplo das identidades de gênero, somos levados a

pensar que, a partir da crítica aberta pelo reconhecimento de que existe uma miríade de

possibilidades entre a mulher e o homem, o sujeito dispõe de material para sustentar

uma identidade de gênero que lhe seja própria, ainda que recorra a padrões e regras

constituídas historicamente. O espaço aberto pela negação daquilo que lhe é oferecido

nesse sentido é preenchido pela sua capacidade de reconhecer que elementos do “ser

mulher” e do “ser homem” lhe agradam e com quais ele, enquanto ser humano gostaria

de construir sua própria identidade de gênero.

Separadas esquematicamente dessa forma, as constituições narrativas de sentido

parecem apresentarem-se na sociedade de maneira exclusiva, ou orientarem os sujeitos,

uma de cada vez. Isso não é verdade. Conforme Rüsen aponta, não existe orientação no

tempo que não articule as quatro maneiras de interpretar a experiência do passado. Com

relação a vários aspectos distintos, inclusive, nós, enquanto indivíduos, podemos nos

embasar em narrativas tradicionais, críticas, genéticas ou exemplares, para nos

orientarmos no tempo:

Os quatro princípios pertencem a um contexto sistemático. Uma orientação

histórica que dependesse exclusivamente de um deles não é pensável. Cada

67

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 60.

45

princípio traz forçosamente os demais e somente os quatro em conjunto

constituem condição suficiente para a orientação bem-sucedida no tempo68

.

Percebe-se como, no decorrer dos dois livros que utilizamos de base para a

construção desse capítulo, Razão histórica e História viva, a constituição histórica de

sentido é deslocada, do âmbito cotidiano, para a elaboração mais pormenorizada, pela

narrativa histórica. Uma “orientação bem sucedida”, nesse sentido, diz respeito, não à

qualidade factual das histórias narradas, mas sim, à possibilidade de o resultado delas,

de fato, orientarem as pessoas para as ações em suas vidas. Note-se, entretanto, que, ao

apresentar as três etapas que constituem a narrativa histórica, Rüsen não nega a

possibilidade de sua regulação metódica. Isto é, por mais que não seja válido

desqualificar uma narrativa histórica por conta de seu conteúdo experiencial, narrativas

históricas não se constituem apenas dele, o que as torna passíveis de serem criticadas,

tanto neste aspecto, quanto nos outros dois (aspectos estes, inclusive, responsáveis por

dotarem a narrativa da qualidade de ser histórica).

A partir do momento em que um acontecimento contingente rompe com as

expectativas de futuro e a consciência histórica precisa lidar com sua crise decorrente, e

uma narrativa histórica é elaborada como resposta para este problema de orientação, a

constituição histórica de sentido se torna imperativa no cotidiano dos seres humanos.

Dessa forma, experiência, interpretação e orientação, ou formação de identidade

histórica, querem dizer, na teoria de Rüsen, o caminho a partir do qual os sujeitos

constituem sentido histórico. Não mais o sentido das grandes narrativas, orientados por

um ideal de cultura, de nação, ou por um Deus, mas o sentido constituído para tornar as

experiências do tempo conformes às intenções do agir. Resta-nos, contudo, responder à

pergunta sobre a possibilidade de se racionalizar tal processo.

Do que se trata, especificamente, uma explicação narrativa para as carências de

orientação (haja vista o caso no passado precisar ser explicado no presente, se se quiser

constituir sentido a partir dele)? Com base em quais elementos esta explicação se

constitui? É possível metodizá-los? Haveria, por meio da regulação científica da

constituição histórica de sentido, alguma maneira de regular, também, as próprias

orientações geradas? Buscaremos responder tais perguntas, sendo elas parte do

resultado do desenvolvimento de tal categoria da teoria da história de Rüsen: de seu

68

RÜSEN, Jörn. História viva, p. 47.

46

surgimento na vida prática, sua forma de expressão e, por fim, das possibilidades de

racionalizar tal processo.

47

CAPÍTULO III

Sobre a possibilidade de se racionalizar o sentido histórico

Conforme ficou estabelecido pelos capítulos anteriores, o ser humano, por meio

da articulação de sua consciência histórica, constitui sentido, o qual é expresso sob a

forma de uma narrativa histórica. Sentido, portanto, é o que mais importa no produto

que servirá de orientação para a ação humana. Isto é, a referência que este indivíduo

fará à experiência do passado, a articulação entre os tempos, estabelecida por meio da

interpretação, terá como foco, antes, “fazer sentido” para o sujeito. O seu caráter factual,

com isso, não precisa entrar em conflito com o possível caráter ficcional de qualquer

uma dessas histórias. A partir do momento em que o objetivo delas é orientar o sujeito

no tempo (e isto, por sua vez, ocorre mediante variados pontos de vista – Rüsen elenca

quatro), pouco importa se o sujeito encontrará orientação para a sua vida a partir de uma

narrativa mítico-religiosa, ou a partir de uma crítica científica amplamente bem

fundamentada.

Este elemento narrativo da constituição do conhecimento histórico científico

ganhou nova centralidade, no âmbito da teoria da história, na segunda metade do século

XX69

. Rüsen destaca os efeitos de tais discussões em vários de seus textos, geralmente

opondo-se à teoria de autores como Hayden White, o qual praticamente associou

história à literatura. Rüsen destaca que pensadores como White levantaram uma questão

de extrema relevância para a história: ela é, em sua forma, narrativa. Eles

negligenciaram, entretanto, que tal narrativa produzida por histórias, pode ser alvo de

um processo de racionalização metódico, o qual, articulado à função original das

narrativas (orientar no tempo), pode orientar o sentido produzido por histórias

tipicamente científicas para caminhos profícuos para a nossa sociedade atual70

. Era

necessário, contudo, no contexto no qual Rüsen escreveu a sua trilogia, redirecionar o

69

Rüsen, contudo, aponta que tais elementos sempre estiveram presentes no debate em torno da teoria da

história, desde que a racionalidade moderna foi apresentada e posta para discussão. Em autores como

Droysen, Dilthey ou Rickert, Rüsen aponta que “a narrativa foi concebida como um modo de explicação

próprio à explicação “histórica”, distinto de um outro tipo de explicação, elaborado a partir do modelo das

ciências naturais e contraposto a ele”. Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 151. 70

Rüsen aponta que as críticas elaboradas por Hayden White (notadamente em seu livro Metahistory, de

1973), acerca do elemento narrativo no trabalho dos historiadores, gerou incômodo nestes profissionais,

uma vez que eles “sentiam-se relegados à desconfortável e ambígua vizinhança com a poesia e privados

de sua duramente conquistada dignidade como acadêmicos de uma disciplina altamente racionalizada e

metodologicamente comprovada”. Ver: RÜSEN, Jörn. Narrativa histórica. In: SCHMIDT, Maria

Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de Rezende (orgs.), p. 94.

48

que se dizia, quando se referia ao termo “racionalidade”, e por que ela deveria ser

cobrada novamente para a história.

Um dos principais problemas elencados por Rüsen, o qual precisa ser resolvido

no âmbito da narrativa histórica, se for de interesse dos historiadores manterem seu

espaço dentro das ciências legitimadas, é o da possibilidade de constituição histórica de

sentido, através da narrativa, e partindo-se da readaptação de tudo aquilo que havia sido

construído, o que constituiu a base da ciência da história, até então. Isto é, o problema

não se encontrava no uso dos elementos racionais da constituição científica de sentido

histórico, mas sim nos objetivos de tais usos, os quais, dentre outros fatores,

ocasionaram catástrofes que foram assistidas durante todo o século XX. A experiência

do Holocausto, nesse sentido, é sublinhada por Rüsen enquanto a experiência limite do

século passado, responsável por colocar em cheque toda a crença na racionalidade

moderna.

Essa crise na crença dos elementos racionais produzidos pela racionalidade

moderna, contudo, é assistida por Rüsen enquanto sendo, ela mesma, uma prova

racional de que os elementos interpretativos, os quais, em grande medida, serviram de

fundamento intelectual para tais catástrofes, estavam racionalmente equivocados. Isto é,

uma vez que se entende o conhecimento lançando-se mão da racionalidade, é de se

esperar que algumas de suas bases não resistam à prova do tempo. A contingência

surge, nesse sentido, para romper paradigmas de pensamento e fustigar o pensamento

histórico humano a refletir e constituir outros. É nesses trilhos que Rüsen evoca, pois,

novamente a ideia de racionalidade, sendo que, dessa vez, oposta, justamente aos dois

pilares máximos da racionalidade moderna: a individualidade e a crença num progresso

pré-determinado. Com isso, por meio da integração de experiências limite como o

Holocausto a uma narrativa capaz de dotá-la de sentido e significado, essa nova razão

histórica se torna mais modesta:

Ela abre a visão histórica ao inconsciente e articula sua relação com a

experiência e com os superávits de sentido do agir humano que vão além da

experiência concreta. Ela confere ao princípio da diferença, da pluralidade, da

particularidade e da negatividade uma força regulativa na interpretação do

passado, de que as concepções modernas de razão histórica, identidade

49

coerente, universalidade do desenvolvimento e efetividade das ideias de

sentido (com, por exemplo, na categoria de progresso) não dispunham71

.

Dessa maneira, Rüsen quer trazer, para dentro da racionalidade própria da

história como ciência, a diversidade, a pluralidade e, com isso, apontar caminhos

razoáveis para se superar as contingências do século XX.

A partir do momento em que Rüsen, já no primeiro livro de sua trilogia, elabora

uma matriz disciplinar para a ciência da história, ele quer justamente reabilitar o

pensamento histórico científico em torno de paradigmas, apresentando o dele. Sua

matriz, portanto, pode ser entendida como um esforço teórico de observação daquilo

que todo o historiador faz, quando faz história. A diferença, agora, com a reinserção de

temas como racionalidade, sentido e humanidade, é que, por meio de sua matriz

disciplinar, Rüsen quer lançar a discussão dos paradigmas para o debate científico,

tornando, com isso, a sua própria sugestão, passível de debate e reorientações.

O que caracteriza, portanto, a racionalidade para Rüsen? Conhecimento racional,

para o autor, significa conhecimento criticável, fundamentado e dispondo de pretensão

de validade72

. Quando relacionados, tais critérios, à racionalidade específica daquilo que

é histórico – partindo do pressuposto, já apresentado, de que nem todo conhecimento é

histórico apenas por referir-se ao passado – abre-se a possibilidade de debate em torno

de argumentos que pareçam ser mais ou menos racionais (e, nesse sentido, argumentos

que façam sentido, sendo que, agora, a partir dos parâmetros científicos).

Uma história, portanto, para fazer sentido, nesse contexto, precisa apresentar a

sua relação com a experiência, sua representação de continuidade temporal e a

identidade decorrente dela, de maneira tal, que possa ser criticada, que esteja bem

fundamentada e apresente com base em quê pretende ser tomada enquanto válida.

Sentido continua sendo mais fundamental do que racionalidade, contudo, dessa vez, a

razão histórica decorrente de tais narrativas precisam estar pautadas sob este ideal de

racionalidade, se quiserem se manter críveis.

Assim, a racionalidade do pensamento histórico pode ser descrita como um

modo da constituição de sentido que consiste na forma de comunicação do

raciocínio argumentativo. Para obter esse resultado, a narrativa precisa ser

71

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 173. 72

Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 151.

50

concebida como uma operação mental de constituição de sentido e ponderada

quanto à sua função constitutiva do pensamento histórico73

.

A racionalidade histórica, portanto, coloca uma série de questões sobre as

narrativas constituidoras de sentido, elaborada pelas consciências históricas: por que se

utilizou essa fonte? Por que não outra? Com base em quê se chegou a tais conclusões?

Aonde se quer chegar com o resultado de tal pesquisa? Esta série de perguntas, contudo,

desta vez, encontram-se reguladas por uma categoria geral e ampla, capaz de orientar a

razão histórica de cada uma dessas narrativas: a categoria de humanidade.

Perguntar-se acerca da possibilidade de se regular racionalmente a constituição

de sentido histórico por meio da narrativa, é perguntar-se, a partir da teoria de Rüsen,

pela possibilidade de se constituir expectativas de futuro mais humanitárias:

Humanidade, aqui, quer dizer o pressuposto regulativo de uma faculdade

racional própria ao gênero humano nos processos de formação da identidade

histórica. Essa qualidade da espécie possibilita a regulação pacífica e

consensual das relações conflituosas entre identidades históricas

particulares74

.

Ora, Rüsen não negligencia o fator individual de cada identidade, seja ela

pessoal, nacional ou de grupo. O que ele questiona, ao apontar para a categoria de

humanidade como orientadora das expectativas de futuro, é a superioridade de uma

individualidade sobre a outra. Ele não nega a pluralidade, ele apenas a leva para um

plano de discussão, no qual nenhuma é, a priori, superior à outra. Ideias de humanidade

precisam ser debatidas racionalmente, de tal maneira que Rüsen qualifica o processo de

racionalização do pensamento histórico como processo de humanização75

. E não é por

acaso que Rüsen destaque a categoria de humanidade. Trata-se de uma tentativa de

resposta à crise humanitária (pois, para além das nações, os seres humanos foram

atingidos). A sua teoria da história propõe uma maneira para, em si, se constituir sentido

73

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 154. 74

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 18. 75

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 18.

51

a partir da “falta de sentido”, causadas por experiências como a do Holocausto, por

exemplo76

.

A explicação narrativa e sua possibilidade de racionalização

Se a narrativa histórica dispõe de uma maneira especificamente histórica de

explicar o caso, no passado, para o presente, de maneira tal a tornar compreensível a

situação atual e lançar expectativas para o futuro, com base em quê aspectos ela pode

ser racionalizada? Rüsen aborda esta questão a partir do contexto no qual se insere a

produção de sua trilogia e defende o especificamente histórico estar expresso, não na

formulação de leis gerais, ou na supervalorização das intenções individuais, mas na

explicação narrativa complexa, a partir da qual a possibilidade de se generalizar algo, ou

de se individualizar se tornam elementos de uma mesma maneira de explicar,

constituindo sentido: a narrativa histórica.

As explicações nomológicas e intencionais aparecem na ciência da história

sempre no contexto de histórias. Elas são parte de um conjunto de sentenças.

Expressos em termos narrativos, os efeitos temporais das ocorrências do

mundo humano tornam-se mudanças (com sentido e significado)77

.

Ou seja, o especificamente histórico é apresentado no processo de se contar uma

história, e isso só é realizado mediante narrativa. A explicação tipicamente histórica

vale-se, não obstante, do recurso apresentado por leis passíveis de serem observadas no

processo, bem como se levando em consideração as intenções dos sujeitos, em suas

temporalidades especiais78

. Dessa forma, a formulação de leis, ou a supervalorização

das intenções individuais, não podem ser consideradas históricas, simplesmente porque

76

E é nesse sentido que Rüsen destaca a sua teoria da história não ser “a” teoria, mas sim “uma” teoria:

“Esta intenção da racionalidade é também expressa pela fórmula “uma” teoria da história, e não “a”

teoria. É certamente necessário desenvolver sistematicamente as questões da teoria da história em

articulação com a práxis da pesquisa histórica e da historiografia. Essa sistematização deve evitar,

todavia, que, ao se reforçar o potencial de racionalidade do pensamento histórico, se cristalize a dinâmica

do debate em resultados “definitivos”. A sistematização das tarefas da teoria da história e a formulação

sistemática de soluções somente seriam adequadas funcionalmente se se considerar apenas uma etapa de

um caminho a ser continuado, cuja direção só se pode descobrir à medida que é percorrido”. Ver:

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 21. 77

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 43. 78

Não é nosso objetivo, aqui, detalhar as demais explicações das quais Rüsen trata no Reconstrução do

passado, uma vez que tratamos especificamente da explicação narrativa. Contudo, para maiores

informações, ver: RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 28-43.

52

elas negam a liberdade dos sujeitos. Isto é, elas negligenciam o fato de que,

independentemente de um contexto apresentar todas as características que poderiam

levar a crer que determinada coisa ocorrerá de determinada maneira, há sempre a

possibilidade de isso não se realizar, pois os sujeitos são dotados de liberdade. Além do

mais, a contingência sempre interrompe o caminhar dos acontecimentos, de maneira a

tornar impossível o estabelecimento de uma “causa prévia” para determinada

experiência histórica. A liberdade é, também, expressão da contingência: os sujeitos são

livres para negarem as predisposições temporais impostas pela sua cultura histórica e,

com isso, realizam e são afetados (às vezes, concomitantemente) pela contingência.

Pode-se chamar de liberdade aquilo que faz com que os homens vão além,

intencionalmente, das circunstâncias e condições dadas em sua vida prática, e

afirmem-se nessas mudanças de si mesmos e de seu mundo, de que são

agentes e pacientes por seu próprio agir. É essa liberdade que, antes de mais

nada, torna possíveis as experiências da contingência. É com respeito a elas

que o pensamento histórico rememora os processos temporais do passado

humano, cuja contingência é interpretada como possibilidade de liberdade. A

contingência é, assim, a sombra empírica projetada pela liberdade humana79

.

Eis que surge, então, o especificamente histórico que precisa ser narrado. Ao

observar a contingência, no presente, o sujeito é levado a pensar em suas experiências

no passado, se quiser se ver livre dessa crise. Nesse processo, ele rememora as

contingências de seu próprio tempo anterior e, com isso, rememora também suas

chances de liberdade. Nesse ínterim de lembrança e conexão temporal, o sujeito exerce

a capacidade interpretativa de sua consciência histórica e projeta-a sob a forma de uma

narrativa histórica. A este modo de explicação Rüsen dá o nome de narrativa.

Ela interpreta o passado, portanto, no presente, estabelecendo expectativas de

futuro. Em comparação com as explicações nomológicas e intencionais, a explicação

narrativa não trabalha com a possibilidade de prever o futuro, de produzir uma

prognose. Mesmo assim, através de sua constituição de sentido específica, ela é capaz

de dotar o sujeito de uma expectativa bem fundamentada sobre o que pode vir a ser o

caso, no futuro. Por meio da releitura do que foi o caso, no passado, o sujeito é dotado

da capacidade de estabelecer parâmetros possíveis de se concretizarem no futuro. Uma

79

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 49, grifos nossos.

53

vez lidando com a contingência, portanto, ele se torna apto a visualizar se,

possivelmente, uma coisa que ocorreu no passado de determinada maneira, pode vir a se

repetir, ainda que diferentemente, num futuro próximo. Trata-se de uma lógica,

portanto, reconstrutiva, e não apenas construtiva. Com isso, Rüsen nega o argumento

básico de Hayden White, por exemplo, e de grande parte dos teóricos da virada

linguística, mas não nega que, nessa atitude interpretativa, existe uma boa dose de

imaginação por parte do historiador. Não obstante, tal imaginação, quando regulada

metodicamente, oferece bases mais confiáveis e, sobretudo, abertas ao debate,

articulando o sentido histórico numa lógica de superioridade do melhor argumento.

“Melhor” argumento nos termos do trabalho racional das ideias que articula80

.

Naturalmente, é possível imaginar um t3 [tempo no qual ocorre a situação

final a ser explicada pela narrativa histórica] como se encontrando no futuro,

mas isso não é um prognóstico, apenas um processo histórico fictício:

demonstra-se o que deveria ocorrer com S [o sujeito], que (ainda) possui

agora a qualidade de G [o acontecimento], se deixa de ser G para ser H

[situação final]. Esta apresentação de um processo histórico fictício não é

rara, faz parte de cada consciência histórica em forma de uma perspectiva ou

expectativa de futuro que se refere às lembranças do passado e é determinada

por intenções normativas. A simetria entre explicação e prognóstico no

esquema do pensamento nomológico corresponde à simetria entre lembrança

e expectativa no esquema do pensamento narrativo, e a legalidade abrangente

naquele caso corresponde, neste caso, à realidade abrangente de

continuidade. “Expectativa” não significa previsão no sentido de profecia.

Antes, trata-se de uma esperança fundamentada81

.

Conforme apresentada acima, fica claro o modo com que Rüsen relaciona

lembrança, interpretação e orientação: a lembrança diz respeito à movimentação da

experiência do passado, no presente, na tentativa de se suprimir a contingência; a

interpretação, por sua vez, é o esforço da consciência histórica para encaixar os

elementos da experiência numa perspectiva temporal na qual ela possa fazer sentido,

80

No contexto de debates em torno da narrativa, iniciado uma década antes da publicação da trilogia de

que tratamos nesta pesquisa, Rüsen cita o livro de Arthur Danto, datado de 1974, no qual está expresso o

modelo de onde Rüsen retira a sua explicação narrativa. Ver: DANTO, A. C. Analytische Philosophie der

Geschichte. Frankfurt, 1974. 81

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 52.

54

novamente; enquanto a orientação funciona justamente no trabalho de se criar

expectativas, a partir do que foi refletido, mediante experiência do passado.

O esforço vital humano de se orientar no tempo torna-se mais explicitado

quando observamos, na explicação narrativa, a especificidade do histórico. É, inclusive,

a partir desse esforço de se contar uma história, que Rüsen foca o processo de

metodização, tornado possível graças à racionalidade aplicada à narrativa. O autor

aborda, portanto, uma maneira especificamente científica de lidar com todas as etapas

da narrativa histórica: experiência, interpretação e orientação. Através disso, ele

demonstra de que forma a constituição histórica de sentido pode atingir níveis mais

amplos de comunicabilidade intercultural, justamente porque racionalizada.

Racionalizar as experiências, as normas e as ideias

De acordo com o modo com que viemos abordando, a teoria de Rüsen não deve

ser entendida fora de seu contexto. Novamente, sua publicação no decorrer da década de

1980 traz muitas das questões em alta no período, para as quais Rüsen propõe respostas.

Ao abordar a questão da narrativa histórica e apontar para ela sob o ponto de vista da

cientificidade, Rüsen define um posicionamento bastante claro (e não pouco polêmico):

a história produzida cientificamente pode não ser o único modo de se produzir história

na sociedade, mas certamente é um bastante específico e que merece atenção dos

profissionais envolvidos em sua produção. Partindo-se do pressuposto de que as

narrativas servem para orientar no tempo e, sem serem mediadas pela ciência, elas

correm o risco de constituírem toda a sorte de sentidos capazes de orientar no tempo

(sentidos estes que podem, inclusive, não levarem em conta a pluralidade, por exemplo).

Isto se dá, não apenas porque tais profissionais estariam interessados na

manutenção de seus espaços nas universidades, mas principalmente porque a história,

produzida cientificamente, dispõe de meios para se regular as perspectivas e as

orientações dadas, ao passo, no presente. Uma vez que são estes dois fatores os

responsáveis pelo especificamente histórico na narrativa, Rüsen aponta a necessidade de

se pensar na humanidade enquanto categoria central de ponderação das interpretações e

orientações dadas ao passado. Abordaremos com mais cuidado esta questão no final

desse capítulo. Por ora, é importante entender que a narrativa histórica produzida

cientificamente tem um objetivo bastante claro na teoria da história de Rüsen: municiar

55

os sujeitos de argumentos cada vez mais refinados em busca de uma sociedade mais

humanitária.

No que diferiria, portanto, a história produzida cientificamente daquela não

produzida dessa maneira? Rüsen assume que os dois modos de se constituir sentido

mediante narrativa são dotados de pretensões de validade e, por isso, pressuporem-se

verdadeiras – além do mais, como já foi abordado anteriormente, sentido é sempre mais

fundamental do que racionalidade. Portanto, pouco importaria uma história ser

“mentirosa”. Contanto que ela estivesse servindo à vida e orientando o agir humano no

tempo, ela seria verdadeira. A “verdade”, pois, enquanto caráter definidor de uma em

detrimento de outra, é um critério enganador. A questão não é a história produzida

cientificamente ser “mais verdadeira” do que aquela que não dispõe dos parâmetros da

ciência para constituir os seus sentidos. A questão encontra-se justamente no modo com

que a história científica o faz, que é diferente daquele das histórias não-científicas:

“história como ciência é a forma peculiar de garantir a validade que as histórias, em

geral, pretendem ter82

”.

Trata-se da regulação metódica como responsável por garantir essa forma

peculiar das histórias especificamente científicas garantirem a validade de suas

narrativas. Tal validade é alcançada, então, por meio da definição e do respeito a um

“método”, que é entendido por Rüsen enquanto “caminho”. Método é o caminho que se

toma para que se chegue à determinada constituição histórica de sentido. Antes, não diz

respeito a um método específico, retirado de alguma ciência, mas desse caminho

mesmo, pelo qual todo profissional da área precisa percorrer, se quiser produzir

conhecimento científico e reconhecido pelos seus pares.

É no caminho do método, no qual Rüsen divide a regulação metódica em três

momentos, referentes às três etapas da constituição de sentido nas narrativas históricas:

referente à experiência do passado (memória, lembrança e fontes); referente às normas

reguladoras da interpretação desse passado (perspectivas históricas) e, por fim, referente

às ideias que servirão de fios condutores para tais interpretações, responsáveis por dotar

a experiência do passado de sentido e significado para o presente (gerando, no processo,

expectativas de futuro). Tem-se, com isso, que:

82

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 97.

56

O pensamento histórico é científico, portanto, à medida que procede

metodicamente. E ele procede metodicamente à medida que as

fundamentações de suas pretensões de validade se tornam parte integrante da

própria história. As histórias são especificamente científicas, por conseguinte,

quando a fundamentação sistemática de sua pretensão de validade é parte

essencial delas mesmas, ou seja, quando elas são narradas de forma

continuamente fundamentada83

.

Narrar de forma continuamente fundamentada significa, pois, tornar o conteúdo

das histórias, com relação às três etapas da constituição narrativa de sentido,

controlável, ampliável e garantível.

Em se tratando das experiências, primeiramente, a metodização funcionaria

numa relação restritiva, bem como sob a forma de crítica à tradição. Metodizar o

acesso à experiência do passado estaria numa relação restritiva, pois, as fontes,

permitem que o historiador afirme coisas sobre o caso no passado apenas até certo

ponto84

. Não obstante, à medida que as fontes e os argumentos em torno da escolha de

tais fontes (e não de outras) são expostos, a narrativa histórica se torna cada vez mais

capaz de tornar transparentes os fundamentos empíricos de sua pesquisa85

. Ao expor a

diferença entre passado e presente, por meio das fontes, o historiador também

procederia numa crítica da tradição, tendo em vista esta basear-se na ideia destes tempos

enquanto imbrincados em suas qualidades de sentido e significado:

O passado, imediatamente presente na tradição, não só passa a ser visto como

passado, mas é também questionado quanto à sustentabilidade do que é dito,

sobre ele, na tradição. O pensamento histórico, por conseguinte, como

científico é, por definição, crítico da tradição – e de modo totalmente

83

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 99. 84

Por mais que Rüsen, ao tratar da metodização da relação com a experiência, não faça referência direta a

Koselleck, já ficou clara sua filiação ao pensamento do autor em outras partes de sua teoria, em primeiro

lugar, bem como o modo com que sua ideia, neste tópico específico, se relaciona à de Koselleck, quando

este autor fala sobre o “poder de veto das fontes”: “Uma fonte não pode nos dizer nada daquilo que cabe a

nós dizer. No entanto, ela nos impede de fazer afirmações que não poderíamos fazer. As fontes têm poder

de veto. Elas nos proíbem de arriscar ou de admitir interpretações as quais, sob a perspectiva da

investigação das fontes, podem ser consideradas simplesmente falsas ou inadmissíveis. Datas e cifras

erradas, falsas justificativas, análises de consciência equivocadas: tudo isso pode ser descoberto por meio

da crítica de fontes. As fontes nos impedem de cometer erros, mas não nos revelam o que devemos dizer”.

Ver: KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado, p. 188. 85

Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 102.

57

independente do eventual papel que a tradição possa ainda exercer no

conjunto das ideias e normas em que ele se insira86

.

É quase como se o historiador “derretesse” a cola que gruda passado e presente

na tradição. Ao fazê-lo, ele expõe, também, o que é vestígio do passado, no presente e

abre espaço, com isso, para a constituição histórica de sentido nos três parâmetros

metódicos apontados acima.

Para a atribuição da qualidade metódica em cada uma das etapas da narrativa

histórica, Rüsen lança mão de uma expressão bastante útil. Ele afirma que, nas três

etapas da elaboração de uma narrativa, passa-se de uma “certeza insegura” para uma

“certa insegurança”. No caso da experiência, a “certeza insegura” diria respeito

justamente ao momento no qual passado e presente encontram-se aglutinados, na

tradição. Neste ponto, o sujeito está certo de que o conteúdo experiencial do passado ao

qual ele faz referência existe por si só e é, em suma, praticamente incontestável. No

momento em que se passa para uma “certa insegurança”, entretanto, o sujeito

reconhece, em sua narrativa, que aquele conhecimento adquirido mediante pesquisa e

crítica de fontes é “certo”, mas “inseguro”, pois contestável em seu cerne. Ora, se toda a

relação metódica deve prever a possibilidade de ser controlável, ampliável e garantível,

é de se esperar que todo conhecimento produzido metodicamente seja, portanto,

reconhecidamente “inseguro” em sua certeza.

A relação metódica com a experiência, por mais que garanta um nível mais

amplo de orientação para a vida prática do que aquele proveniente da narrativa não-

científica, não encerra, em si, a especificidade da narrativa histórica. Isto é, metodizar a

relação com as fontes, criticá-las e retirar informações delas faz parte do trabalho do

historiador, mas não é algo que lhe seja específico, uma vez que outras ciências sociais

também trabalham mediante crítica e análise de fontes. O tipicamente histórico, como

defendido por Rüsen, encontra-se nas duas etapas posteriores à da experiência: normas e

ideias. Se o primeiro passo é reconhecer que o que ocorreu no passado dispõe de uma

qualidade diferente daquilo que ocorre no presente, o “histórico” seria justamente ser

capaz de gerar uma teia de significados e sentidos capaz de interligar esses tempos.

Regular metodicamente tais procedimentos é, portanto, imprescindível, se se quiser

86

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 102.

58

garantir um mínimo de comunicabilidade entre a comunidade científica dos

historiadores.

A regulação metódica das normas diz respeito, portanto, à pertinência normativa

das histórias produzidas cientificamente. O passado, tornado presente, precisa estar de

acordo com as intenções de ação dos sujeitos (isso torna o passado, então, significativo).

A atitude racional, nessa etapa, se baseia na reflexão sobre o referencial, que se trata da

reflexão sobre o modo com que o passado é articulado, em prol de suprir as carências do

presente.

“Reflexão sobre o referencial” consiste tanto numa regulação do processo do

conhecimento histórico, pela qual as perspectivas desse conhecimento são

evidenciadas e articuladas com as opções normativas da vida prática dos

historiadores e de seus destinatários, como no estabelecimento de uma

relação de crítica e complementaridade argumentada entre as múltiplas

perspectivas que necessariamente constata87

.

O “referencial” é, pois, a perspectiva da qual o historiador se utiliza para dar

significado às experiências do passado, no presente. Como tais, elas são historicamente

localizadas, isto é, elas advêm de carências de orientação e querem suprir as

necessidades de ação dos sujeitos interpelados. Dessa forma, as perspectivas são, elas

mesmas, controláveis, ampliáveis e garantíveis por meio da regulação metódica, uma

vez que nem toda leitura feita sobre as experiências do passado deve ser aceita por todos

os grupos de uma determinada sociedade. Nesse sentido, a regulação metódica das

normas faz com que a perspectiva adotada deixe de se basear numa “certeza insegura” e

passa para uma “certa insegurança”. O reconhecimento de que as perspectivas dadas a

um determinado conjunto de experiências do passado dependem, também, das carências

de orientação, as quais originaram tal necessidade de atribuição normativa de sentido, e

das funções que se pretende com cada história, envolve as normas da narrativa histórica

numa lógica racional, implicando na possibilidade de avanço do conhecimento.

A título de exemplo, com relação à historiografia brasileira sobre escravidão, o

livro de Sidney Chalhoub, Visões da liberdade, pode nos servir para explicitarmos o que

trabalhamos até então. O modo com que este autor se vale de processos judiciais nos

quais aparecem os negros escravos e, a partir deles, é capaz de observar a voz e a

87

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 110.

59

intenção desses escravos – em fontes que, em grande medida, vociferavam as falas de

seus senhores – é um excelente exemplo para se observar a aplicação de uma

perspectiva diferenciada sobre um conjunto de fontes, as quais não necessariamente lhe

forneceriam as informações que ele estava interessado em obter.

Chalhoub, ao enxergar as várias visões de liberdade existentes nas revoltas

cotidianas dos escravos, é movimentado por uma carência de seu próprio tempo (década

de 1980 no Brasil), no qual o debate em torno da cidadania, bem como os movimentos

sociais (dentre eles, o movimento negro), estava em alta e, portanto, gerenciavam

carências. Este historiador, portanto, movimentado por uma carência do presente

responde, com base na leitura das experiências do passado, como os escravos, eles

mesmos, não eram “coisas” de um sistema opressor; seres mudos, incapazes de se

movimentarem dentro do sistema, salvas as exceções de grandes rebeliões88

.

Inúmeros exemplos podem ser elencados, a partir da historiografia. Rüsen

destaca, inclusive, que uma das funcionalidades de sua tipologia narrativa (da qual

tratamos no capítulo anterior) é justamente servir de teoria típica-ideal para análise da

historiografia. Nesse processo, torna-se claro que, explicitar o referencial do qual se

partirá para a análise do conteúdo experiencial das fontes é imprescindível para o trato

metódico das normas. Uma vez que as narrativas tipicamente históricas partem sempre

de uma associação perspectivada, advinda do presente, aos acontecimentos do passado,

é no trato racional das normas que se dá o primeiro passo em direção ao cuidado

científico do elemento especificamente histórico das narrativas.

Uma questão possível de ser levantada, nessa linha de raciocínio, é aquela em

torno do relativismo. Destacar o fato de que toda a leitura do passado é perspectivada,

responde a uma carência específica do presente e serve para orientação no tempo, não

levaria, necessariamente, à máxima de que toda interpretação do historiador é uma

interpretação subjetiva? Isto é, não se chegaria a acreditar que é, muito maisa intenção

do presente, a qual movimenta o pensamento histórico desse profissional, a responsável

por dotar o passado de sentido e significado? Deixando os acontecimentos do passado

ao bel prazer da mente do historiador?

88

Todo o livro é um exemplo claro do exercício da aplicação de novas perspectivas orientadoras da

experiência do passado, no presente, movimentada por carências de orientação. Ver: CHALHOUB,

Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo:

Companhia das Letras, 1990.

60

Rüsen, em sua teoria, reconhece esse risco e é justamente por isso que ele

discute um princípio regulador máximo, capaz de impedir que o historiador afirme

determinadas coisas sobre o passado, ou que suas afirmações, caso fujam tanto assim,

daquilo que estabelecido pela comunidade científica, sejam desacreditadas. Ele pensa,

portanto, em torno de uma perspectiva abrangente que seja capaz de orientar as leituras

do passado de maneira tal, que não as deixe ao bel prazer de cada historiador:

A relatividade da perspectiva histórica deve ser vista, antes, como uma

oportunidade para o pensamento histórico promover o aperfeiçoamento

constante de seu conteúdo significativo, de forma análoga ao progresso do

conhecimento que se dá na pesquisa. (...) Dessa forma, as diversas

perspectivas históricas não estariam dispersas, mas articuladas umas às outras

na ótica de uma aproximação dirigida a uma perspectiva abrangente89

.

Tal “perspectiva abrangente” diz respeito precisamente ao humanismo, ou à

categoria de humanidade, a qual abordaremos com mais cuidado no final desse capítulo.

Por ora, é importante perceber que, quando se passa da relação com as experiências para

as normas, dá-se o primeiro passo em direção à racionalização da constituição

propriamente histórica de sentido. A partir do momento em que as normas orientadoras

da interpretação do passado, no presente, são postas sob o jugo da regulamentação

racional, abre-se a possibilidade de ampliação, através do debate e da força do melhor

argumento.

As perspectivas, para orientarem a leitura das experiências do passado no

presente, lançam mão de um conjunto de conceitos e de categorias que são resumidas na

teoria de Rüsen sob o nome de teorias da história. Elas, por sua vez, são identificadas

na matriz disciplinar como sendo o primeiro passo no caminho que sai da vida prática e

entra na ciência especializada. É, portanto, por meio do estabelecimento de um conjunto

de ideias que o historiador se torna capaz de interpretar a experiência do passado,

dotando-a assim, de sentido e significado para o presente. As ideias, pois, inserem-se na

perspectiva, da qual o historiador lança mão, para realizar a sua leitura do

acontecimento do passado.

89

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 114-115.

61

A racionalidade científica, nesta etapa da narrativa histórica, ocorre por meio do

que Rüsen chama de teorização construtiva, isto é, a elaboração de tipos-ideais90

capazes de interpretarem o real a partir de categorias retiradas dele e ampliadas

teoricamente. Não é coincidência que Rüsen se refira aos tipos-ideais justamente no

momento de fundamentação da interpretação do passado. A presença da sociologia de

Max Weber em sua teoria da história é notável em todos os livros da trilogia e, nesse

caso em específico, ele se refere bastante ao célebre texto de Weber, acerca da

objetividade nas ciências sociais91

. Neste texto, datado de 1904, Max Weber responde

questões, as quais ainda nos são bastante atuais (e as quais Rüsen responde, se

pensarmos sua teoria como fundamentada também na sociologia de Weber, readaptada

para o contexto atual). Rüsen, a partir do momento que se refere aos tipos-ideias como

possibilidade reguladora das ideias orientadoras da interpretação da experiência do

passado, associa-se ao pensamento de Weber, porém, dá um passo adiante, uma vez

que, em seu conceito de sentido, ele reconhece a realidade enquanto já dotada de

sentidos e significados prévios, não enquanto um “caos desordenado”, como previa

Weber92

.

Para Rüsen, portanto, a metodização da relação com as ideias impele o

historiador a fundamentar muito bem os porquês de suas interpretações das informações

das fontes:

A narrativa histórica torna-se especificamente científica quando obedece a

uma regra que imponha ao narrador (historiador) explicitar e fundamentar os

critérios (as ideias) que determinam, para ele, a instituição de sentido, as

seleções de fatos e significados que se fazem com eles e a síntese entre

ambos93

.

90

Rüsen se refere à teoria do tipo-ideal, de Weber, como “construtividade da linguagem conceitual

histórica” e afirma esta teoria trata de um “conceito teórico, que deve ser construído de maneira que seja

possível designar, com ele, a qualidade temporal que advém aos estados de coisas do passado, na medida

em que devem ser pensado como históricos”. Ou, nas palavras do próprio Weber, citado por Rüsen, “em

sua pureza conceitual, esse conjunto de ideias não pode ser encontrado empiricamente em parte alguma

da realidade, é uma utopia. Resulta para o trabalho histórico o encargo de, em casa caso particular,

verificar até que ponto a realidade está perto ou longe daquela imagem ideal”. Ver: RÜSEN, Jörn.

Reconstrução do passado, p. 97. 91

Ver: WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento na ciência social e na ciência política. In:

WEBER, Max. Metodologia das ciências sociais – parte 1. 4. ed. Campinas: Ed. Unicamp, p. 107-154,

2001. 92

Este é um tema que merece pesquisas mais pormenorizadas, uma vez que vai além do que nos

propomos a fazer no presente momento. Entretanto, tendo em vista o referido texto de Weber e os textos

de Rüsen, essa impressão já se delineia para futuras pesquisas. 93

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 120.

62

Numa narrativa historiográfica, portanto, a explicação se torna histórica no

momento em que os acontecimentos do passado, destacados de seu contexto original,

são trazidos para o presente mediante perspectiva dotada de ideias e conceitos capazes

de constituir sentido a partir dessas experiências. No caso do texto de Chalhoub,

portanto, é interessante notar como, logo na introdução de seu livro, ele apresenta por

que perspectivas e com base em quais ideias e conceitos ele interpretará as informações

das fontes. Sua filiação ao pensamento de Edward Thompson, dentre outros pensadores,

quer justamente regular suas afirmações acerca dos casos analisados, do passado. As

teorias históricas funcionam, pois, como fios condutores a partir dos quais as histórias

seguirão, em prol de constituir suas narrativas cientificamente válidas e dotadas de

sentido e significado.

As ideias constituídas pela comunidade de historiadores para a interpretação do

passado não surgem, portanto, de suas próprias mentes, como se estas fossem lugares

isolados do meio social. Pelo contrário. A própria construção teórica do tipo-ideal

pressupõe o envolvimento do cientista social em seu próprio contexto, de onde ele

obterá os elementos teóricos possíveis de serem ampliados abstratamente em uma

dessas teorias históricas.

Nessa etapa, também, corre-se o risco de relativismo, da mesma forma que ficou

explicitado na etapa da normatização. Rüsen, contudo, aponta para a categoria de

humanidade como princípio regulador máximo, o qual deverá impedir que

interpretações prejudiciais ao ideal de humano que se propõe repercutam

cientificamente. Ora, uma vez que as narrativas históricas servem para fundamentar as

identidades dos sujeitos, seria muito improvável que Rüsen elaborasse sua teoria em

torno de um relativismo extremo, o qual permitisse qualquer ponto de vista (partindo do

pressuposto de que se deve respeitar a pluralidade humana – não por mero moralismo,

mas porque ela existe e, hoje, qualquer ciência social que queira seus resultados levados

a sério, precisa levar em consideração essa realidade). Pensar o elemento da

humanidade, inserido no fato de Rüsen escrever sua teoria durante um contexto alemão

no qual os traumas decorrentes do Holocausto, por exemplo, é essencial para que

compreendamos o porquê deste autor elencar a categoria de humanidade como princípio

regulador máximo das interpretações do passado.

63

Rüsen estabelece, portanto, um “ponto extremo” para a consolidação da

identidade humana, e este é a humanidade:

(...) Como suprassumo dos pontos comuns em sociedade, com respeito à qual

os diversos sujeitos agentes, no processo de determinação de suas próprias

identidades, determinam as dos outros de forma tal que estes se reconheçam

nelas94

.

Com tudo isso, Rüsen não quer apenas assegurar a sobrevivência de identidades

plurais e comunicativas, mas garantir que seja a partir de sua manutenção que o

conhecimento histórico progrida. O “progresso”, portanto, enquanto categoria está

presente na teoria desse autor e seria alcançado, não obstante, através da metodização

aplicada à narrativa histórica. É razoável pensar, então, que a teoria de Rüsen prevê um

futuro para a humanidade, no qual esteja cada vez mais ausente a desigualdade, a

injustiça, o desrespeito; elementos os quais Rüsen associa à falta do humano, à

desumanidade.

Rüsen também chama o produto da regulação metódica das narrativas através da

humanidade, de cultura do reconhecimento e, mediante o caminhar em direção de tal

cultura, evitar-se-ia o choque das civilizações (clash of civilizations):

(...) Seria aceitável um conceito de história que superasse o próprio

etnocentrismo e contribuísse para uma nova cultura do reconhecimento

mútuo das diferenças. Somente essa “cultura do reconhecimento” pode evitar

o ameaçador “Clash of Civilizations [Choque das Civilizações]”. Nesse

sentido, a negação mental da autenticidade e da dignidade dos outros leva da

guerra de palavras ao derramamento real de sangue. O 11 de setembro de

2001 é paradigmático95

.

As narrativas históricas tipicamente científicas, reguladas pela ideia de máxima

de humanidade, despiriam os historiadores de suas crenças pessoais, de seus

preconceitos e, no limite, de suas próprias culturas sem, com isso, pretender apagar as

suas subjetividades. A humanidade como ideia reguladora prevê o consenso por meio da

argumentação e da opinião bem fundamentada. Reconhecer que tais parâmetros advêm,

94

RÜSEN, Jörn. Razão histórica, p. 126. 95

RÜSEN, Jörn. Cultura faz sentido, p. 21.

64

também, do contexto sócio-cultural de cada historiador é imperativo; contudo,

humanidade como ideia deve existir no horizonte destes profissionais, se eles não

quiserem promover, novamente, um conhecimento histórico tão centrado, ou tão

relativo, capaz de servir exclusivamente à sua realidade, ou capaz de servir como

justificativa para a dominação cultural de outros povos.

Trata-se de tentar despir estes profissionais de tais amarras subjetivistas, sem,

contudo, torná-lo um indivíduo que enxerga o passado exclusivamente pelas lentes de

uma objetividade nomológica incapaz de trazer o sentido das informações obtidas, sobre

o passado, para o presente:

Consenso, na comunicação sobre pontos de vista historicamente confirmados,

quer dizer o reconhecimento recíproco da diversidade, e com isto o

reconhecimento mútuo das identidades, respectivamente atribuídas a partir de

pontos de vista diversos. A antropologia histórica teórica deve assim

categorizar a experiência temporal como histórica, de modo que ela possa

funcionar como meio da formação do consenso na luta social atual pelo

reconhecimento. “Humanidade”, como critério normativo da categorização

da experiência histórica, sintetiza esse princípio do reconhecimento96

.

Com a explanação acerca dos potenciais racionais da narrativa histórica,

acreditamos ter apresentado, ainda que numa perspectiva reduzida, de que maneira a

constituição de sentido histórico se desenvolve, na trilogia, como categoria central da

teoria da história de Jörn Rüsen. Sua relevância vai muito além da produção do

conhecimento histórico científico, uma vez que o autor deixa claro a sua preocupação

ser constituir um futuro menos desumano.

Desde o primeiro momento, a necessidade de constituição de uma história cheia

de sentido e significado, até o seu último, a regulação das narrativas históricas por meio

da ideia de humanidade, acompanha-se tudo girar em torno da categoria de sentido. Os

humanos, a partir do momento em que buscam no passado, as respostas para as suas

carências de orientação, no presente, buscam por algo que faça sentido. Este, por sua

vez, se constitui não em outra forma, que não numa narrativa. Tal narrativa não precisa

vir, necessariamente, sob os moldes de um texto. Ela pode surgir na apresentação de um

conjunto de imagens, ou na disposição de vestígios do passado em museus, por

96

RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado, p. 69.

65

exemplo. O que importa, pois, em todo esse trato do passado, é o sentido que ele faz

para o presente e, consequentemente, de que maneira ele aponta para o futuro,

elaborando expectativas.

A racionalização científica, como metodização das etapas constituintes da

narrativa histórica, é, portanto, essencial para articularmos meios de se constituir uma

sociedade mais humanitária. Rüsen reabilita, assim, a categoria de sentido histórico para

afirmar, com isso, que não se deve abrir mão da utopia de se viver numa sociedade

justa, igualitária, não-etnocêntrica, que demonstre respeito pelas diferenças e que tenha

mesmo, na pluralidade, a sua auto-compreensão.

66

CONCLUSÃO

Um olhar sobre a “falta de sentido” (Sinnlosigkeit)

Durante todo o trabalho até aqui, discutimos a categoria de sentido histórico e o

modo com que, por meio da articulação da consciência histórica, o sujeito humano é

capaz de se orientar no tempo. Essa orientação, por sua vez, ocorre mediante

interpretação das experiências do passado. Com isso, ele se torna capaz não apenas de

constituir sua própria identidade, mas o faz através da elaboração de expectativas de

futuro.

Descrita dessa forma, a constituição histórica de sentido parece algo simples e

praticamente automático, da mente humana. Não é o caso, contudo. E não é nem mesmo

com as crises contingenciais normais ou críticas, mas isto se demonstra de maneira

muito mais forte nas crises catastróficas. Em textos que vão além dos da trilogia, Rüsen

discute bastante a categoria de trauma como “contra-sentido” (Wiedersinn), ou “falta de

sentido” (Sinnlosigkeit)97

. No decorrer dos anos 1990 e 2000, pois, ele buscou associar

elementos de sua teoria da história ao trauma do Holocausto na sociedade alemã. Nossa

tentativa, agora, será a de associar, ainda que brevemente, a categoria de trauma, na

teoria de Rüsen, a um acontecimento específico do passado brasileiro: a Ditadura

Militar (1964 – 1989).

Queremos, com isso, refletir sobre a possibilidade de se “traduzir” categorias e

elementos de sua teoria da história, para a realidade brasileira, evitando assim, de cair

na armadilha de tornar a teoria uma “camisa de força” que prende a realidade. Do

contrário, buscamos analisar a categoria de trauma em Rüsen como tipo-ideal, nos

moldes de Weber e, assim, observar em que pontos a experiência da Ditadura Militar

brasileira pode ser associada à ideia de trauma, para Rüsen, e em que isso nos serviria.

Na realidade, como toda teoria deve servir para analisar o real, nossa tentativa de

conclusão, agora, é justamente uma tentativa de fazer a teoria servir para a vida prática.

Se isto será possível, ficará a cargo de novas pesquisas tentarem responder.

97

Os artigos presentes no já referenciado livro Zerbrechende Zeit são pontos fulcrais da discussão de

Rüsen em torno da categoria de trauma em seus mais diferentes meios de expressão (escolas, museus

etc.). Nos artigos presentes também no livro Cultura faz sentido a questão do trauma também aparece,

associada à de sentido histórico. Não obstante, no decorrer dos anos 1990 e 2000, Rüsen fez parte de

vários grupos de pesquisa nos quais estudou a associação entre sentido, cultura e trauma, com uma

perspectiva clara de se pensar a superação dos malefícios do passado, no presente. Contudo, como grande

parte desses textos ainda se encontra disponível somente em língua alemã, e como não é nosso objetivo

de pesquisa, nesse momento, discutir a relação entre sentido e trauma, citamos apenas estes dois livros.

67

Ditadura Militar brasileira (1964 – 1989): “passado perturbador” ou “trauma”?

Carlos Arturi afirma, em texto escrito em 2001, que a consolidação da

democracia no Brasil “ainda é uma possibilidade alvissareira98

”. Estas são as duas

últimas linhas de seu texto, no qual o autor discute o debate teórico acerca da mudança

de regime político e analisa especificamente o caso brasileiro. O que seria, nesse

sentido, uma “possibilidade alvissareira”? Para além do seu sinônimo, “promissora”,

pensar a consolidação da democracia no Brasil enquanto “alvissareira” significaria dizer

que esta, a consolidação, é um processo que ainda não foi concluído? Quer dizer,

viveríamos, ainda hoje, em 2015, sob a égide de um regime político, o qual não fora

completamente consolidado?

A distância temporal entre a escritura do texto de Arturi e nosso período atual

poderia indicar uma revisão, por parte mesmo do autor, de tal afirmação. Nesse sentido,

poder-se-ia pensar o autor ter continuado suas análises acerca das medidas tomadas

pelos governos que se seguiram durante os anos 2000 (dentre elas, talvez a principal

seja a instauração da Comissão Nacional da Verdade, em 2012) e, com isso, revisto sua

tese de que a consolidação da democracia no Brasil constitui-se como uma

“possibilidade”. Contudo, em evento no qual participou Arturi, em primeiro de abril de

2014, o autor parece reiterar sua ideia quando afirma, segundo matéria publicada acerca

de sua palestra, o modo de transição “controlado, gradual e lento do regime autoritário

brasileiro e o mínimo de esforço da oposição” terem facilitado “a transição para a

ditadura sem maiores sobressaltos”. Não obstante, o autor continuaria afirmando que

tais especificidades da transição brasileira “acabaram contaminando a próxima etapa

política”, no caso, a democracia na qual vivemos atualmente99

.

Que consequências teriam, portanto, o fato de a consolidação da democracia no

Brasil ainda não ter se instaurado completamente – partindo do pressuposto de que

concordamos com essa hipótese – para a interpretação deste acontecimento do passado,

pelo presente? Não bastasse isso, que consequências haveria, para a vivência mesmo da

98

Ver: ARTURI, Calos S. O debate teórico sobre a mudança de regime político: o caso brasileiro. Revista

de Sociologia e Política, Curitiba, n. 17, nov., p. 11-31, 2001 (esp. p. 28). 99

Ver: MORAES, Rafael. Carlos Arturi comenta sobre transição política da ditadura militar. Disponível

em: <http://portaldejornalismo-sul.espm.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1252:dr-

arturi-comenta-sobre-a-transicao-politica-da-ditadura-militar&catid=34:acontece-no-

campus&Itemid=53>. Acesso em: 19 jul. 2015.

68

democracia e do Estado de direito, a permanência de elementos do antigo regime

ditatorial brasileiro? Em prol de observarmos se Arturi tem razão ao propor tal tese,

uma das possibilidades de testá-la seria exatamente buscar por movimentos atuais, os

quais objetivassem reviver a Ditadura Militar de alguma forma, enquanto força política

no Brasil. Esta ideia parte do pressuposto de que, em uma democracia consolidada, o

debate em torno da volta do antigo regime ditatorial, ou não teria voz nem vez, ou

disporia de tão poucos adeptos a ponto de poder ser desconsiderada em seu potencial de

efetivação política (ou, até mesmo, encontrar-se-ia restrito, por meios legais, de

existir100

).

Uma breve busca na rede social Facebook, um dos maiores sites de

relacionamentos da atualidade, pelos termos “regime militar” encontra, entre seus

primeiros três resultados, duas comunidades que apoiam abertamente a volta do regime

ditatorial (neste sentido, é interessante notar o fato de estas comunidades trazerem a

denominação “regime militar” e não “ditadura militar”, como está se apresentando

aqui). A primeira delas (a primeira resultado da pesquisa), chamada “Regime Militar

JÁ” possui 10.396 “curtidas”. Isto é, mais de dez mil pessoas apoiam a ideia da volta da

Ditadura Militar no Brasil. O segundo resultado digno de nota é também uma

comunidade e se chama “Regime Militar EU APOIO” e possui um total de 20.433

“curtidas”. Somadas, as duas comunidades dispõem de um total de 30.829 “curtidas”101

.

Não bastassem os apoiadores “virtuais” da volta da Ditadura Militar brasileira,

uma breve busca pelos termos “movimento pela volta da Ditadura Militar Brasil”, no

site de buscas Google, apresenta quase 500 mil resultados relacionados a tal questão.

Dentre eles, um dos resultados que aparecem ainda na primeira página da busca, é uma

petição pública, com um total de 6.273 assinantes, na qual seus apoiadores pedem pela

volta do “regime militar102

”. Além disso, desde 2014 pelo menos, podem-se observar

100

Reconhecemos a complexidade que envolve tal comparação, mas é interessante observar como, na

Alemanha de 1972, foi promulgada a lei conhecida como “Berufsverbot”, a qual proibia o acesso a cargos

públicos, de pessoas que promovessem pontos-de-vista prejudiciais à democracia, enquanto no Brasil

pós-Ditadura Militar, ainda vivemos sob o encargo jurídico do que se chama de “entulho autoritário”.

Sobre a Berufsverbot, ver: FULBROOK, Mary. A concise history of Germany. Cambrigde: Cambridge

University Press, 2004 (esp. p. 221). 101

Este número, contudo, não dispõe de precisão, uma vez que o mesmo usuário da rede social pode

curtir as duas páginas. Mesmo assim, ainda que seja cerca de trinta mil pessoas, este número continua

sendo bastante razoável. 102

Abaixo-assinado Volta do Regime Militar. Disponível em:

http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=P2011N14172. Acesso em 19 de jul. 2015.

69

movimentos sociais nos quais as pessoas, de fato, foram às ruas pedir pela volta da

Ditadura Militar103

, chamada dessa vez de “intervenção militar”.

A intenção, com o arrolamento destes números e casos isolados, não é

necessariamente questionar-se acerca da possibilidade efetiva de volta de um regime

ditatorial no Brasil. A intenção, neste caso, é exatamente questionar-se sobre o modo

com que este acontecimento do passado brasileiro vem sendo tratado pela memória

histórica da população, a ponto de haver quem, decididamente, apoie a volta de um

regime, o qual é tratado pela historiografia (e pelo ensino de história) enquanto ditatorial

autoritário e torturador desde, pelo menos, vinte anos104

. Isto é, tendo em vista que a

grande maioria desta população que apoia a volta da Ditadura Militar esteve presente,

no mínimo, em aulas de história (nas quais deve ter sido tratado o tema), o que leva a

uma movimentação tão efetiva em torno da volta deste período do passado brasileiro?

Encaramos, a partir dos exemplos elencados acima, estes movimentos pela volta

da Ditadura Militar decorrerem, dentre outros fatores, do fato de a nossa democracia

não ter sido plenamente consolidada. Tal consolidação, por sua vez, dependeria de uma

série de atitudes tomadas, tanto pelo Estado, quanto pelos historiadores (pensando os

historiadores como uma das categorias de profissionais que trabalham com o passado e

suas reverberações no presente), as quais, acreditamos, não terem sido tomadas. Isto

acarretaria no que se chama de enfrentamento do passado, tema que, conforme

abordaremos a seguir, entrou em alta no contexto pós-queda do Muro de Berlim e vem

instigando pesquisadores e grupos da sociedade, principalmente movimentos sociais105

.

103

Ver: CORREA, Vanessa; PEDERSOLIE, Bruno; MAZZI, Carolina. Marchas a favor e contra

intervenção militar reúnem centenas em SP e Rio. Disponível em:

<http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2014/03/22/marchas-a-favor-e-contra-intervencao-

militar-reunem-centenas-em-sp-e-no-rio.htm>. Acesso em 19 de jul. 2015; Manifestantes no Recife

pedem intervenção militar no Brasil. Disponível em:

<http://g1.globo.com/pernambuco/noticia/2015/03/manifestantes-no-recife-pedem-intervencao-militar-

no-brasil.html>. Acesso em 19 de jul. 2015. 104

Um dos exemplos emblemáticos, da historiografia brasileira sobre o tema, é o trabalho pioneiro de

Maria Helena Alves, datado de 1987, no qual a autora apresenta, com riqueza de detalhes e variedade de

fontes consultadas, os meios com os quais a Ditadura Militar se instaurou enquanto governo e de quais

artifícios lançou mão para exercer o seu papel repressor. Ver: ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e

oposição no Brasil (1964 – 1984). Petrópolis, Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1987. 105

Desenvolveremos, no decorrer do texto, o que estamos chamando de “enfrentamento do passado

ditatorial brasileiro”, mas, por ora, é interessante observar, tal enfrentamento decorrer da satisfação de

duas condições políticas, elencadas por Arturi: primeiro, “o efetivo controle civil sobre os militares” e,

segundo, “a real possibilidade de alternância das forças políticas no poder”. Segundo o autor, “a primeira

dessas pré-condições ainda não se verificou e a segunda ainda não foi verdadeiramente testada”. Ver:

ARTURI, Carlos. O debate teórico, p. 24. É interessante perceber, além disso, que, uma vez que o texto

referenciado foi escrito em 2001, não havia se iniciado, ainda, o período de governo no qual o Partido dos

Trabalhadores – PT – assumiu a presidência. Tal “alternância de poder”, que em 2001 não havia sido

70

Com o nosso texto, portanto, relacionaremos aspectos do debate recente em torno da

memória com a teoria de Rüsen e, ambos, com a mais recente experiência ditatorial

brasileira.

A Ditadura Militar brasileira: um “passado perturbador”?

Antes de podermos responder a esta pergunta, temos de ter bem estabelecido o

que seria, em primeiro lugar, um passado perturbador e, em segundo lugar, que

elementos da Ditadura Militar poderiam corresponder a um passado desse tipo.

O debate, em si, em torno das questões mais amplas que envolvem a memória o

ato de lembrar teve seu pontapé inicial a partir dos anos 1980 e, principalmente, no

decorrer dos anos 1990, com a queda do muro de Berlim. Segundo François Hartog,

alguns acontecimentos-chave do século XX transforaram decisivamente as nossas

relações com o tempo. A partir destes, não se poderia mais pensar o passado, o presente

e o futuro da mesma forma, uma vez que:

O próprio curso da história recente, marcado pela queda do muro de Berlim

em 1989 e pela derrocada do ideal comunista trazido pelo futuro da

Revolução, assim como a escalada de múltiplos fundamentalismos, abalaram,

de uma maneira brutal e duradoura, nossas relações com o tempo106

.

As próprias experiências sofridas pelos seres humanos no decorrer do século

passado atestaram a falha de uma série de pressupostos filosóficos, com relação ao

entendimento do tempo humano, que vinham orientando os indivíduos até então. Hartog

chama esse processo de relação entre passado, presente e futuro de regime de

historicidade. Isto é, haveria, em cada período temporal pré-estabelecido pelo

historiador, uma determinada série de acontecimentos e de possibilidades que

moldariam a forma com a qual os indivíduos se enxergam e enxergam as suas chances

verificada ainda, aconteceu em 2002 e, mesmo assim, na palestra supracitada, ministrada pelo mesmo

autor, ele parece reiterar a ideia da não consolidação da democracia brasileira. Reconhecemos os

meandros políticos que podem ter levado Arturi a reiterar sua ideia mais de dez anos depois, mas, mesmo

assim, interpretamos não ter havido, ainda, o “enfrentamento” deste passado, por parte da sociedade

brasileira. 106

Ver: HARTOG, François. Introdução: ordens do tempo, regimes de historicidade. In: Regimes de

historicidade: presentismo e experiência do tempo. Belo Horizonte: Editora Autêntica, p. 17-41, 2013

(esp. p. 19).

71

de ação no tempo. Não obstante, para o trabalho do historiador, o regime de

historicidade:

(...) se pretenderia uma ferramenta heurística, ajudando a melhor apreender,

não o tempo, todos os tempos ou a totalidade do tempo, mas principalmente

momentos de crise do tempo, aqui e lá, quando vem justamente perder sua

evidência as articulações do passado, do presente e do futuro107

.

Observa-se, com isso, que o conceito de regime de historicidade serve, acima de

tudo, para “capturar o tempo”. Isto é, ele serve como ferramenta para se entender as

possibilidades de futuro existentes em um determinado período, tendo como base, neste

mesmo período, suas experiências no passado. Nesse sentido, é possível de se

compreender que a instauração de uma Ditadura Militar, por exemplo, pode surtir o

efeito de “rompimento” de um determinado regime de historicidade e a inauguração,

por consequência, de outro. A questão que se coloca aqui, portanto, é: que futuro a

Ditadura Militar impediu de existir, se quisermos entendê-la, no caso brasileiro, como a

causadora de uma mudança no regime de historicidade? E depois, com a

redemocratização do país, quais possibilidades foram estruturadas, tendo em vista o

passado ditatorial?

A ideia de passado perturbador surge nesse ínterim reflexivo. Perturbador é

aquele passado que, enquanto acontecimento que se pretende orientador da ação

humana, é doloroso demais para cumprir seu papel. Os indivíduos que precisam basear-

se em acontecimentos de um passado perturbador, portanto, veem-se obrigados a seguir

uma estrada tortuosa. No caso de ditaduras militares, por exemplo, quando se trata de

uma questão política de mudança de regime, é de se esperar que o Estado, embasado

naquilo que Hartog chama de “regime moderno de historicidade”, estabeleça uma

relação de “esquecimento” ou de busca pela superação deste passado por meio do

“descobrimento da verdade”. Tal atitude tem como base uma ideia binária de tempo, na

qual o passado, efetivamente, “passa” e o presente existe quase como um elemento

metafísico “ausente” de passado. O futuro, nesse sentido, surgiria enquanto “sequência

lógica” temporal, na qual ele mesmo, o passado e o presente teriam papeis definidos e

bem estruturados.

107

HARTOG, François. Introdução, p. 37.

72

Este não é o caso, contudo, quando se trata de passados perturbadores para

grupos sociais que sofreram com tais abusos do Estado. Um dos pesquisadores mais

proeminentes da atualidade, sobre o tema, é o historiador belga Berber Bevernage. Em

texto de 2008 ele nos apresenta o debate em torno das questões de tempo, presença e

jurisdição, no qual seu argumento central está na linha do que Hartog defende, em torno

do “rompimento” do regime moderno de historicidade e do surgimento de maneiras

alternativas de lidar com o tempo e, principalmente, com o passado108

. Segundo

Bevernage, não é mais possível lidar com esta ideia binária de tempo, na qual o passado

e o presente ocupam quase que “lugares diferentes” na estruturação temporal dos

indivíduos. Do contrário, é necessário entender o passado enquanto existindo como

vestígio transtemporal no presente, isto é, não como uma pré-condição do presente, mas

efetivamente como parte e condição deste109

.

Importante ressaltar que, nesse debate em torno da mudança de regime de

historicidade e do surgimento e necessidade de discussão dos passados perturbadores, a

ideia surge não da abstração teórica para a realidade, quase que alheia à vivência

humana. É exatamente o contrário. A percepção, por parte de Hartog e Bevernage, por

exemplo, de que viveríamos em um novo regime de historicidade, no qual as relações

que os indivíduos fazem entre passado, presente e futuro mudaram, é uma constatação

que surge justamente das experiências humanas no decorrer do século XX. Conforme se

apresentou acima, segundo Hartog, as expectativas de futuro, das quais os seres

humanos podiam lançar mão para se orientarem no tempo, foram brutalmente rompidas

pelas ações dos próprios humanos, no curso temporal. A partir de então, não seria mais

possível – justamente porque não caberia mais, não seria mais “correto” – se pensar que

a relação humana com o tempo pressupõe, exclusivamente, de um passado que “passa”

e de um futuro brilhante, cheio de progresso e esperança. O decorrer do século XX

provou, por meio de experiências como o Holocausto, a construção e a queda do muro

de Berlim e a derrocada do comunismo, que uma série de expectativas (desenvolvidas

no século XIX, principalmente) não seria cumprida. E pior, talvez: porque elas estavam

equivocadas em sua maneira de se pensar a sociedade e seu equívoco custou a vida de

milhares de pessoas.

108

Ver: BEVERNAGE, Berber. Time, presence, and historical injustice. In: History and Theory, vol. 47,

p. 149-167, 2008. 109

BEVERNAGE, Berber. Time, presence, and historical injustice, p. 156, tradução nossa.

73

Para ilustrar essa situação, Aleida Assmann apresenta o discurso de Ernst Bloch,

proferido em 1967, no qual o futuro ainda parecia brilhante e a utopia ainda era possível

de ser alcançada. Para Bloch, “„utopia‟ era uma metáfora para uma visão de um futuro

no qual seria concedido, para aqueles que, no passado, foram notoriamente explorados e

humilhados um lugar justo num mundo melhor110

”. Esse futuro, porém, com o decorrer

da década de 1970, mudou. O futuro brilhante e promissor foi gradualmente sendo

encolhido, a ponto de mudar sua qualidade, de progresso, para incerteza e caos. A

mutabilidade temporal, a própria historicidade das coisas, instaurada ainda no século

XIX pelo movimento historicista alemão, deixou de ser reconhecida, automaticamente,

enquanto algo positivo.

Enquanto o futuro perdia muito de sua luminosidade, o passado ganhava mais e

mais espaço nas consciências dos indivíduos. Esta linha argumentativa apresentada por

Assmann pode associar-se diretamente àquela de Bevernage, quando este autor atesta a

problemática existente entre o tempo pensado historicamente e o tempo tratado

juridicamente. O modo com que se vinha pensando a relação passado/presente/futuro

até meados dos anos 1970 não cabia mais. Em outras palavras, aquele regime de

historicidade deixava, cada vez mais, de servir aos propósitos da vida humana111

. No

caso de passados nos quais o próprio Estado protagonizou violações extremas aos

direitos humanos, como é o caso de ditaduras militares, a “presença” do passado no

presente (seja em sua característica transtemporal, seja em seu elemento traumático, do

qual trataremos com maior ênfase a seguir) exigia não apenas uma retratação

historiográfica de nível experiencial (uma “busca pela verdade”, por exemplo), mas

principalmente (em alguns casos) uma retratação jurídica, alterando-se, com isso, as

perspectivas orientadoras da interpretação de tais experiências. Nesses casos, não se

pode negar a presença do passado no presente, muito menos o seu papel enquanto

definidor de práticas sociais frente à justiça e à sociedade que se quer construir, após

tais eventos ditatoriais112

.

110

Ver: ASSMANN, Aleida. Transformations of the modern time regime. In: LORENZ, Chris;

BEVERNAGE, Berber (orgs.). Breaking up Time: Negotiating the Borders between Present, Past and

Future. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, p. 39-56, (esp. p. 39), tradução nossa. 111

Não é à toa que, a título de observação, as reflexões de Hartog acerca do próprio conceito de regime de

historicidade ganham forma em 1983. Ver: HARTOG, François. Introdução, p. 28. 112

É nesse sentido que Bevernage argumenta, quando afirma: “a persistente afirmação sobre a

permanência de injustiça histórica e a „presença‟ do passado doloroso, portanto, assume posição central

na busca por reparações (simbólicas) ou na luta contra a impunidade e a prescrição preliminar. Ela resiste

74

Em que aspectos, portanto, a experiência da Ditadura Militar brasileira pode ser

relacionada com a teoria do passado perturbador? De acordo com esta fundamentação

teórica, haveria de se encontrar, no caso brasileiro, elementos do passado ditatorial, no

presente, os quais impedissem algum grupo social, por exemplo, de seguir em frente, a

partir deste acontecimento. Uma comparação possível seria o caso das Madres de Plaza

de Mayo, na Argentina, que mantém uma atitude consistente e constante de negação das

medidas adotadas pelo governo argentino pós-ditadura de tratamento do passado

ditatorial113

. Conforme argumenta Bevernage e Aerts, este é um caso no qual um grupo

social demostra a variabilidade de regimes de historicidade num mesmo período

histórico, em prol de caracterizarem suas próprias experiências no tempo. Estes autores

articulam a teoria de Hartog em prol de mostrar, num caso prático, de que forma os

sujeitos se valem de suas próprias maneiras de sentirem e refletirem sobre o tempo, para

apresentarem suas relações pessoais com o passado. Estes regimes de historicidade

próprios, inclusive, conforme se apresenta no caso das Madres, demonstrariam como,

no decorrer da abertura dos Estados ditatoriais em Estados democráticos, o passado

constituiu-se perturbador114

.

No caso brasileiro, contudo, a transição democrática ocorreu de maneira muito

peculiar e cheia de especificidades. Não é nosso objetivo, com isso, caricaturar a

experiência brasileira. Pelo contrário, somos de acordo que a teoria da história nos

fornece terreno seguro para analisar a Ditadura Militar, no caso da experiência

brasileira, uma vez que, conforme apresentado até então, uma teoria da história é

também uma maneira de regular cientificamente a constituição de sentido sobre o

passado.

Para investigar as possibilidades de se relacionarem, teorias da história como a

sobre o passado perturbador ou sobre o trauma, com a experiência da transição

brasileira, do regime ditatorial para o democrático, é necessário, antes, termos

estabelecido o que caracterizamos enquanto especificamente o caso brasileiro. Segundo

a simples oposição de um presente temporal presente e um passado ausente/ontológico e inferior”. Ver:

BEVERNAGE, Berber. Time, presence, and historical injustice, p. 164. 113

Bevernage e Koen Aerts trabalham com este caso em artigo de 2009. A especificidade das Madres

encontra-se justamente na negação do processo de luto. Elas se negam, efetivamente, a desenterrar os

seus mortos, a rituais de exumação e, em alguns casos, até mesmo a indenização por parte do Estado. De

acordo com Bevernage, o desejo destas mulheres é que os seus filhos, os quais elas chamam de

“desaparecidos”, reapareçam com vida. Ver: BEVERNAGE, Berber; AERTS, Koen. Haunting pasts: time

and historicity as constructed by the Argentine Madres de Plaza de Mayo and radical Flemish

nationalists. In: Social History, vol. 34, n. 4, p. 391-408, 2009 (esp. p. 398). 114

BEVERNAGE, Berber; AERTS, Koen. Haunting pasts, p. 393.

75

Adriano Codato, portanto, a especificidade brasileira deve ser analisada sob três

aspectos: primeiro, ela foi comandada pelos próprios militares; segundo, ela

correspondeu às vontades dos militares e, terceiro, o objetivo, à princípio, não era

liberalizar a ditadura, tornando-a numa democracia, mas sim o de tornar a ditadura

“menos conservadora politicamente115

”.

Pode-se trabalhar, pois, com a ideia de que a transição brasileira não contou,

pelo menos não de maneira decisiva, com a participação da sociedade civil, ou dos

movimentos de oposição ao regime. De acordo com Codato (e a argumentação de Arturi

também caminha para essa direção), a transição brasileira pode ser entendida mais como

um movimento político das elites, para as elites, do que necessariamente como algo

proveniente da pressão da sociedade civil e dos movimentos sociais.

Nesse sentido, em comparação com o que representam as Madres, para o

tratamento do passado ditatorial argentino, o Brasil não contaria, nem durante o

processo de transição, nem atualmente, com nenhum movimento social forte que se

negue a deixar este passado “passar”, com quaisquer intenções políticas que sejam. É

notório o fato de que há, sim, questões sérias que precisam ser tratadas e discutidas, de

maneira ampla, pela sociedade civil, mas inclusive a Comissão Nacional da Verdade

(que divulgou o seu relatório no final de 2014), não causou a comoção social que se

podia imaginar, por se tratar de um assunto – aparentemente – tão delicado quanto o

passado ditatorial brasileiro.

Os movimentos sociais os quais citamos acima, ainda na introdução do texto,

representam, na verdade, um forte movimento contrário; de volta para a Ditadura

Militar. Existem, sim, casos de enfrentamento deste passado, como a mudança na

toponímia de algumas cidades brasileiras, de espaços públicos ou de instituições

estatais, mas é importante notar que o cerne da transição política brasileira, da ditadura

para a democracia, não contou com uma discussão, encabeçada pelo Estado, voltada

para a transformação institucional do próprio aparelho estatal. Logo, estamos de acordo

com Codato quando ele afirma que:

Essa combinação institucional – ou, para alguns, essa deformação

institucional – conduziu no final das contas o processo de transição para o

seguinte ponto: uma democracia eleitoral, um Executivo imperial e um

115

Ver: CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à

democracia. In: Revista de Sociologia e Política, n. 25, p. 83-106, 2005 (esp. p. 83-84).

76

regime congressual que atua ora como colaborador, ora como sabotador das

iniciativas do Presidente, ator central do sistema político116

.

Dessa forma, o processo de transição brasileiro não apenas não contou com a

participação popular, como conseguiu reorganizar o poder político entre os próprios

militares e a elite civil, de tal forma que se pode afirmar os militares não terem saído,

efetivamente, do poder; eles apenas reorganizaram os personagens do jogo político, e se

colocaram como plano de fundo do processo de transição.

Tanto para Codato, quanto para Arturi, pois, pode-se observar a mesma

conclusão, com relação à transição política brasileira. Arturi chega a comentar,

inclusive, que a democracia brasileira foi uma “democracia outorgada”:

O continuísmo e o excesso de “garantismo” tornaram-se as marcas da

democratização outorgada brasileira, cujo êxito deve-se à combinação entre a

estratégia voluntarista do regime autoritário e o auto-enquadramento da

maioria da oposição na lógica e nas regras impostas pelo regime

autoritário117

.

Nota-se, nestes dois autores, quase que um tom de frustração ao narrar tais

processos. De qualquer forma, contudo, torna-se difícil a associação daquilo que se

compreendeu aqui no texto como “passados perturbadores” e a Ditadura Militar

brasileira. Reconhece-se que este deve ser um passado bastante desconcertante

(principalmente para as vítimas da tortura, ou mesmo da morte institucionalizada – a

qual independe da morte física –, ou para os familiares destas pessoas). Mas a nível

geral, de sociedade brasileira, pode-se afirmar, tendo como base a argumentação destes

dois autores, os militares terem sido muito bem sucedidos no processo de desarticulação

ditatorial e transição lenta e gradual para o que se tornou a democracia brasileira hoje.

Interpretamos, portanto, a democracia brasileira atual e discussão acerca do

passado autoritário da mesma forma que Arturi, quando ele afirma esta ser uma

“possibilidade alvissareira”. Ela encontra-se, em algum lugar, no horizonte de

expectativa de quem pensa o enfrentamento do passado, ou mesmo ainda daqueles que

se assustam com o nível de especificidade do caso brasileiro, quando comparado ao de

outros países da América Latina. O regime de historicidade brasileiro, que vinha sendo

116

CODATO, Adriano. Uma história política da transição brasileira, p. 85. 117

ARTURI, Carlos. O debate teórico sobre a mudança de regime político, p. 20.

77

construído e podia ser observado em meados de 1964, antes do Golpe Militar,

certamente sofreu um grande baque e mudou de direção, com relação às expectativas de

futuro daquela época. Uma análise mais profunda do que foi este “baque” e em que

áreas ele se consumou ainda precisa ser feita. Associarmos, contudo, a experiência

ditatorial brasileira com a teoria do passado perturbador não demonstra ser o mais

adequado, principalmente se pensarmos em casos como o das Madres, no qual a

presença do passado se mostra de maneira tão latente.

Contudo, há de se notar, no Brasil, em contrapartida aos movimentos e as

articulações sociais apresentadas ainda na introdução, os quais pedem pela volta da

Ditadura Militar, o movimento “Ditadura Nunca Mais” organizado pela Confederação

Nacional dos Trabalhadores em Educação – CNTE118

. Sua página oficial no Facebook,

a da CNTE, conta com 12.000 “curtidas”, enquanto outra comunidade, intitulada

“Ditadura Nunca Mais”, conta com 3.849 “curtidas”. Mais uma vez, não é nosso

objetivo aqui comparar a quantidade de “curtidas” em uma rede social e tomar, a partir

daí, a base para a nossa argumentação de que, no caso brasileiro, a Ditadura Militar não

representa um “passado perturbador”. Contudo, é no mínimo digno de nota (e de

pesquisas mais aprofundadas, também) o fato de que os movimentos pró-retorno da

Ditadura Militar contam com, em média 30 mil apoiadores na maior rede social

atualmente, enquanto os que buscam não deixar este passado morrer (e exigem medidas

legais em torno disso), contam com, em média 15 mil apoiadores na mesma rede social.

Essa contagem, rápida e simples, associada à discussão teórica acima, da qual

destacamos os trabalhos de Codato e Arturi, faz pensar a inadequação da categoria de

passado perturbador com a experiência ditatorial brasileira. Isto não significa dizer que

propomos encerrar a questão, ou estabelecê-la definitivamente desta forma. Se

defendermos que algum modelo teórico não se adequa à experiência, seria necessário,

ou reformulá-lo (à luz da especificidade de tal caso), ou apresentar outro modelo

teórico, o qual julgássemos mais adequado para a análise da experiência. É nesse

sentido que seguimos, portanto, em direção da associação entre a Ditadura Militar

brasileira e a teoria da história de Rüsen, especificamente destacando o modo com que

esse autor define a categoria de trauma e suas consequentes possibilidades para a

análise e transformação do real.

118

Para maiores informações sobre o movimento, ver: Ditadura Nunca Mais. Disponível em:

<http://ditaduranuncamais.cnte.org.br/>. Acesso em 19 de jul. 2015.

78

Ditadura Militar brasileira: um “trauma”?

A perspectiva do trauma na teoria da história de Jörn Rüsen segue um pouco a

linha de raciocínio dos autores supracitados, Assmann, Hartog e Bevernage. Muito

embora esses três autores não dialoguem com Rüsen, todos os quatro dialogam com a

teoria da Reinhart Koselleck. O próprio Hartog, em seu conceito de regime de

historicidade, apresenta sua base teórica como sendo os textos deste autor alemão119

. No

que, portanto, esses quatro autores se aproximam, no que diz respeito ao pensamento

sobre o tempo e sobre o modo com que as pessoas se valem de suas próprias

experiências (e das experiências da cultura, do “regime de historicidade”, no qual está

inserida) para interpretarem o presente e agirem, em direção ao futuro?

Tendo como base as construções teóricas de Koselleck, “espaço de experiência”

e “horizonte de expectativa”, tanto Rüsen, quanto os Assmann, Hartog e Bevernage,

partem do pressuposto de que os indivíduos precisam interpretar experiências no tempo,

se quiserem continuar agindo de maneira articulada com suas próprias intenções. No

caso apresentado por Bevernage, por exemplo, das Madres, elas articulam a experiência

ditatorial argentina de uma maneira própria, a ponto de Bevernage afirmar elas

constituírem, para si, um regime de historicidade singular. Dessa forma, também, Rüsen

afirma, em sua teoria da história, todos os indivíduos dotarem de sentido suas

experiências no tempo, em prol de torná-las conformes às suas intenções de ação120

.

O que ocorre, contudo, quando a experiência no tempo, a partir da qual o sujeito

deve constituir sentido histórico, é dolorosa demais? Ou, simplesmente, o que ocorre

quando esta experiência no tempo, em primeiro lugar, rompeu completamente com as

expectativas de futuro que se tinha antes dela ocorrer? Aqui podemos evocar novamente

o discurso de Bloch e a conclusão de Assmann e articulá-los à ideia da teoria da história

de Jörn Rüsen, a qual afirma quando um acontecimento no tempo revelar-se causador de

um rompimento muito crítico com as expectativas de futuro – Rüsen o chama,

especificamente, de “catastrófico” – ele pode ser classificado enquanto “traumático121

”.

119

HARTOG, François. Introdução, p. 28. 120

Ver: RÜSEN, Jörn. Razão histórica; RÜSEN, Jörn. Reconstrução do passado; RÜSEN, Jörn. História

viva. Em se tratando da categoria específica de trauma, ver: RÜSEN, Jörn. Krise, Trauma, Identität. In:

Zerbrechende Zeit, p. 145-179. 121

Ver: RÜSEN, Jörn. Krise, Trauma, Identität, p. 153-154.

79

Articular, contudo, a Ditadura Militar ao conceito de trauma de Rüsen pode ser

delicado no sentido de incorrer num erro semelhante ao de associar tal acontecimento à

ideia de um passado perturbador, uma vez que Rüsen constitui tal categoria teórica em

prol de compreender e constituir sentido frente à experiência do Holocausto (o que

poderia gerar algum tipo de comparação improvável). Não obstante, o conceito de

trauma, na teoria de Rüsen, possibilita pensar que nem todos os acontecidos são

traumáticos em sua origem, uma vez que é trabalho da consciência histórica constituir

sentido sobre as experiências do passado. Por exemplo, o Holocausto, conforme

abordado pelo próprio autor, só se constitui enquanto acontecimento traumático para a

sociedade alemã e judia (e, em certa medida, para toda a sociedade ocidental), pois

existe uma série de políticas e interesses (humanitários, antes de qualquer coisa, mas

políticos e econômicos, também), voltada para a constituição (e a manutenção) deste

acontecimento enquanto um trauma para tais grupos populacionais. Ou seja, o modelo

teórico no qual se insere a categoria de trauma possibilita, também, uma amplitude para

outras realidades, uma vez que se trata, antes, de uma questão existencial humana, a

qual diz respeito ao fato de, na trajetória das sociedades, os indivíduos protagonizarem

acontecimentos capazes de romper completamente com as expectativas de futuro.

Nesse sentido, abre-se a possibilidade para se pensar a ideia de constituição, por

meio do trabalho historiográfico, da Ditadura Militar enquanto trauma para a

consciência histórica brasileira. Tal ideia, quando articulada aos problemas da transição

política do Brasil, conforme apresentado por Codato e Arturi, encontra terreno fértil

para sua problematização e desenvolvimento. Se a democracia no Brasil é uma

“possibilidade alvissareira”, o processo de transformá-la numa realidade efetivada e

vivenciada – mesmo que cheia de debates acalorados acerca de direitos e deveres, em

torno da cidadania – talvez seja possível a partir do momento em que assumirmos, de

maneira clara e objetiva (mas com toda a complexidade de uma pesquisa metodizada

pela ciência), que tal acontecimento da história brasileira constitui-se enquanto um

trauma.

Tal pesquisa ainda carece de realização, uma vez que haveria de se analisar, da

mesma forma que foi apresentado anteriormente com relação ao regime de

historicidade, que projetos de futuro estavam disponíveis, à época do Golpe Militar, e

que foram bruscamente rompidos com o advento da Ditadura? Como tal rompimento foi

sentido pela sociedade civil? Que consequências isso tem hoje, em nossa atual

80

democracia? Como seríamos capazes, enquanto cidadãos, mas também enquanto

profissionais da história, de estimular o debate em torno de instituições, leis,

regimentos, regalias, etc., que ainda persistem do período da Ditadura Militar brasileira?

A chamada para o conceito de trauma em Rüsen possui uma diferença em

comparação ao conceito de regime de historicidade e à ideia de um passado perturbador,

pois, em sua teoria, Rüsen pressupõe uma maneira de se “superar” o trauma e de aderir

o acontecimento traumático a uma narrativa histórica cheia de sentido e significado, por

meio do trabalho mental da consciência histórica. A este processo Rüsen dá o nome de

traumatização secundária122

e, por meio dele, a narração da experiência traumática

ganha, ela mesma, centralidade na narrativa do historiador. A falta de sentido da

experiência traumática, causada pelo rompimento com as expectativas de futuro do

período em que ocorreu, passa, ela mesma a servir como matéria-prima para a

constituição de sentido histórico, porque inserida numa narrativa. O caminho aberto

pela historicização do trauma, portanto, adere tal acontecimento contingencial a uma

representação de continuidade temporal, na qual ela é dotada de sentido e significado.

Esse passado deixa de ser perturbador, em outras palavras; mas mais do que isso, ele

passa a ser enxergado, em seus elementos persistentes, no presente. A partir daí,

acredita-se, as transformações podem ocorrer.

Pensar a Ditadura Militar enquanto trauma, segundo Rüsen, seria buscar em que

aspectos o Golpe Militar rompeu com as expectativas de futuro, em 1964, mas também

assumir que existem elementos desse passado que persistem no presente e que precisam

ser rearticulados, se quisermos nos livrar de seu fator contingencial, impedidor de uma

narrativa dotada de sentido para a sociedade que se pretende construir, sob a égide da

democracia. É a isso que chamamos de enfrentamento do passado: o procedimento de

alocação desta experiência do passado brasileiro dentro de uma narrativa que possa

fazer sentido para o nosso presente hoje, no regime democrático. E como, em Rüsen,

fazer sentido é, também, constituir expectativa de futuro (e constituir expectativa de

futuro, a nível social, implica numa articulação em torno de algum projeto utópico),

pensar a Ditadura Militar enquanto trauma poderia ser uma saída para a “consolidação

da democracia”, conforme nos apresentou Arturi. A democracia brasileira poderia,

enfim, deixar de ser uma “possibilidade alvissareira”.

122

Ver: RÜSEN, Jörn. Krise, Trauma, Identität, p. 177.

81

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