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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO O trabalho do delírio na estabilização da psicose Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto 2009

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

O trabalho do delírio na estabilização da psicose

Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto

2009

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O trabalho do delírio na estabilização da psicose

Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Orientadora: Professora Drª. Ana Beatriz Freire

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2009

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O TRABALHO DO DELÍRIO NA ESTABILIZAÇÃO DA PSICOSE

Autora: Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Teoria Psicanalítica.

Aprovada por:

_____________________________________

Presidente, Profª. Drª. Ana Beatriz Freire - Orientadora.

_____________________________________

Profª. Drª. Ana Cristina Costa de Figueiredo.

_____________________________________

Drª Maria Silvia Garcia Fernández Hanna.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2009

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FICHA CATALOGRÁFICA

JACINTO, Regina Cibele Serra dos Santos.

O trabalho do delírio na estabilização da psicose. / Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto.

Rio de Janeiro: UFRJ/IP, 2008.

ix, 125 f ; 30 cm.

Orientadora: Prof. Drª. Ana Beatriz Freire

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro/ Instituto de Psicologia/ Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, 2008.

Referências Bibliográficas: f. 120 - 125.

1. psicose . 2. psicanálise . 3. delírio . 4. metáfora . 5. estabilização.

I. Freire, Ana Beatriz. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica. III. Título

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AGRADECIMENTOS

A Ana Beatriz Freire, por seu acolhimento e orientação, pelos espaços que me abriu no Programa e, acima de tudo, pela aposta em meu nome.

A Ana Cristina Figueiredo, por todo carinho e incentivo que tenho recebido desde minha chegada ao Rio de Janeiro.

A todos os mestres a quem devo minha formação, aqui representados pelo professor Agostinho Ramalho Marques Neto que, em sua aula inaugural do Curso de Direito, em meados de 1998, alterou o rumo de minha história, ao dizer “coisas que, quando ditas, fazem com que as coisas nunca mais sejam as mesmas”.

A professora Angélica Bastos Grimberg, por suas valiosas contribuições ao longo de todo meu trabalho de dissertação.

Aos meus colegas e amigos do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, em especial a Alessandra Tavares, André Félix e Miguel Machado.

Aos pacientes que tenho tido a oportunidade de atender no Instituto de Psiquiatria da UFRJ e no Ambulatório de Saúde Mental de Nova Iguaçu-RJ, a quem devo parte essencial de minha formação.

Aos tios Rômulo e Vera, pela casa, pela acolhida e por nossa feliz convivência ao longo destes dois anos.

Aos amigos queridos, aqui representados por Taisa Leonardo, que fez marca em minha vida por sua presença verdadeira, profunda e cotidiana.

A Fernanda Costa-Moura, pela escuta, por me ajudar a “voltar” pra casa.

A meus pais José Maria e Dora, por tudo, pela transmissão que esteve lá, desde o início, pelo amor e incentivo constantes.

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Ao CNPQ, pela bolsa de estudos.

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“Pode-se perguntar se, e até onde, eu próprio me acho convencido da verdade das hipóteses que foram formuladas nestas páginas. Minha resposta seria que eu próprio não me acho convencido e que não procuro persuadir outras pessoas a nelas acreditar ou, mais precisamente, que não sei até onde nelas acredito. Não há razão, segundo me parece, para que o fator emocional da convicção tenha de algum modo de entrar nessa questão. É certamente possível que nos lancemos por uma linha de pensamento e que a sigamos aonde quer que ela leve, por simples curiosidade científica, ou se o leitor preferir, como um advocatus diaboli, que não se acha, por esta razão, vendido ao demônio”.

Sigmund Freud

“(...) teria sido na falta de uma palavra-ausência, uma palavra-buraco, escavada em seu centro para um buraco, para esse buraco onde todas as outras palavras teriam sido enterradas. Não seria possível pronunciá-la, mas teria sido possível fazê-la ressoar (...) teria nomeado o futuro e o instante. Faltando, essa palavra estraga todas as outras, contaminando-as, é também um cão morto na praia em pleno meio-dia, esse buraco de carne”.

Marguerite Duras

“Sancho, para te desenganares da verdade, monta o teu asno, segue-os de longe, e verás como, em se afastando um pouco daqui, tornam ao seu primeiro ser, deixam de ser carneiros e se fazem homens”.

Miguel de Cervantes

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RESUMO

O trabalho de delírio na estabilização da psicose

Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Resumo da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Teoria Psicanalítica.

Esta dissertação aborda o tema da estabilização na psicose pela via do

trabalho delirante. Para tanto, a partir das leituras de Freud e Lacan, desenvolve

elementos teórico-clínicos que permitem articular uma possibilidade de estabilização

por esta via, nas psicoses onde o desencadeamento é mais disruptivo. O tema é

abordado inicialmente na obra freudiana, com destaque para sua contribuição em torno

da função do delírio. Posteriormente é discutida a noção de metáfora, com ênfase à

subversão que a leitura lacaniana promove na acepção deste termo. Segue-se um estudo

sobre a dimensão metafórica do pai, e sobre a função do ponto de basta. A partir daí,

desenvolve-se uma discussão sobre o desencadeamento psicótico na perspectiva clássica

e sobre a concepção de estabilização que fundamenta este estudo. De posse desta

concepção, discute-se em que medidas o delírio pode veicular uma estabilização.

Palavras-chave: psicose, psicanálise, metáfora, delírio, estabilização.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2009

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ABSTRACT

The work of delirium in the stabilization of psychosis

Regina Cibele Serra dos Santos Jacinto

Orientadora: Ana Beatriz Freire

Abstract da Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-

graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia, da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de

Mestre em Teoria Psicanalítica.

This dissertation broaches the subject of stabilization of psychosis through delirium's

work. To do so, based on Freud and Lacan's vision, it develops theoretical and clinical

elements which allow articulating a possibility of stabilization through this way, in

psychosis where the break-out is more disruptive. The theme is broached initially in

Freudian's work, with an emphasis on the function of delirium. Next, the notion of

metaphor is discussed, with an emphasis on the subversion that lacanian vision promots

on the acceptation of this term. Following, there is a study about the

metaphoric dimension of the father, and about the function of the point de capiton.

Then, there is a discussion about the psychotic outbreak in the classical perspective and

about the concept of stabilization in which this study is based upon. Having this

conception in mind, it is discussed in which measures delirium can provide

stabilization.

Key-words: psychosis, psychoanalysis, metaphor, delirium, stabilization

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2009

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LISTA DE FIGURAS

01 – Esquema L...............................................................................................................53

02 – Esquema Z...............................................................................................................56

03 – Esquema R...............................................................................................................67

04 – Grafo do desejo........................................................................................................69

05 – Esquema I................................................................................................................88

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO.............................................................................................................13

Capítulo 1 – A PSICOSE NA OBRA FREUDIANA..............................................18

1.1 Psicose e defesa: as primeiras incursões..........................................................21

1.2 Psicose e narcisismo: os anos 10.......................................................................29

1.3 Psicose e perda da realidade.............................................................................40

Capítulo 2 – CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO METAFÓRICA..........45

2.1 Das relações de compreensão à lógica do significante..........................................46

2.1.1 O esquema L...........................................................................................................52

2.2 - A metáfora e a dimensão metafórica do Pai.......................................................57

2.2.1 - O Ponto de basta...................................................................................................68

Capítulo 3 – DELÍRIO E ESTABILIZAÇÃO NA PSICOSE...............................72

3.1 A foraclusão do Nome-do-Pai ................................................................................72

3.2 O desencadeamento na psicose...............................................................................77

3.3 A estabilização na psicose.......................................................................................79

3.3 O delírio como solução elegante.............................................................................83

Capítulo 4 – SOBRE AS “LINHAS FORTES”: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM

CASO DE PSICOSE......................................................................................................98

4.1 Nota preliminar........................................................................................................98

4.2 O caso clínico..........................................................................................................100

4.2.1 Demanda Inicial.................................................................................................100

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4.2.2 História do Caso.................................................................................................102

4.2.3 Do desencadeamento.........................................................................................104

4.2.4 O delírio e seus efeitos.......................................................................................106

CONCLUSÃO..............................................................................................................115

BIBLIOGRAFIA.........................................................................................................120

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INTRODUÇÃO

Sabemos que Freud voltou sua atenção ao tema das psicoses desde os seus

primeiros textos, ora de modo mais pontual, como um certo pano de fundo de sua

interlocução com a neurose, ora de forma mais pungente, como em seu estudo sobre o

presidente Schreber. Sua entrada neste tema teve um verdadeiro poder de corte, abrindo

todo um campo de investigação teórico-clínica.

Podemos também afirmar que o interesse de Lacan pelas psicoses é sempre

renovado em sua obra, em trabalhos que vão desde a sua tese sobre a psicose paranóica,

ainda em 1932, até seminários mais tardios, como O Sinthoma (1975-76).

Haja vista, portanto, a extensão do campo, precisamos especificar nosso

recorte. Discutiremos neste trabalho a questão do delírio na psicose do tipo paranóica.

Com esse intuito, propomos o balizamento teórico desta entidade clínica nas obras de

Sigmund Freud e Jacques Lacan para, a partir daí, localizar as vias indicadas, nestas

mesmas obras, de se pensar numa estabilização possível para a psicose paranóica pela

via do trabalho delirante.

Optamos por cernir nossa discussão sobre o tema do delírio na paranóia na

medida em que, mesmo não sendo exclusivo deste tipo de psicose, nela o delírio é mais

comum, o que justifica o recorte de seu estudo nesta modalidade clínica. Embora Freud

também situe as alucinações como tentativas de cura, a esquizofrenia praticamente não

constrói sistemas, embora o delírio compareça de forma menos sistematizada.

A referência deste trabalho, portanto, será a do estudo de psicoses que

apresentam uma descontinuidade em seu curso, podendo ser pensadas à luz da teoria do

desencadeamento clássico formulada por Lacan no Seminário 3 (1955-56) e na Questão

preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a). A partir daí, poderemos

precisar este tipo singular de estabilização através do trabalho do delírio.

Nestes dois trabalhos, Lacan demarca uma posição descontinuísta em

relação ao desencadeamento da psicose. Na perspectiva destes textos, o

desencadeamento psicótico é índice de uma ruptura, de uma descontinuidade, daí Lacan

dizer que na psicose não há pré-história.

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Embora possamos localizar casos de psicose onde o desencadeamento,

quando ocorre, é mais sutil, esta perspectiva descontinuísta nos é suficiente para

pensarmos o tema de nosso trabalho, na medida em que a eclosão do fenômeno

delirante é índice de uma certa descontinuidade.

Recortaremos a metáfora delirante por nos interessarmos em cernir essa

lógica que a metáfora promove na estrutura do psiquismo, como construção significante

que é. Estamos atentos, no entanto, à observação de Maleval (2002), quando este nos

alerta para o fato de que não é sempre que o delírio adquire um ponto de elaboração tal

que se articule em termos de metáfora.

Schreber interessa especialmente a este trabalho, no que permite

visualizarmos a complexa formação delirante que ele desenvolve após sua segunda

internação e como esta construção opera um certo deslocamento de sua posição. É

evidenciada no caso uma espécie de “virada” entre dois momentos: o de uma formação

delirante sem nenhuma sistematização para um delírio bem sistematizado. Observamos

em Schreber uma série de efeitos nessa passagem, que procuraremos examinar.

Em nossa passagem pelo ambulatório do Instituto de Psiquiatria da UFRJ,

tivemos a oportunidade de atender casos de psicose que nos foram bastante formadores.

Destacamos um em especial, onde a eclosão de fenômenos psicóticos é ruidosa e a

sintomatologia psicótica é abundante, contendo desde distúrbios de linguagem e

alterações do pensamento a fenômenos de corpo e uma intensa produção delirante.

Esse paciente, no entanto, apesar da ruptura, da descontinuidade provocada

pelo desencadeamento e irrupção de sua psicose, nunca precisou ser internado,

encontrando um modo peculiar de estar no mundo, de se haver com o matrimônio, a

paternidade e o corpo. Por uma escolha metodológica, o caso será apresentado em nosso

último capítulo, muito embora as questões que nos suscitou estejam na origem deste

trabalho de pesquisa, num certo vai-e-vem, numa circularidade entre a teoria e a clínica.

Tentaremos pensar qual o estatuto do delírio nas psicoses em que ocorre um

desencadeamento, e como pode um delírio estar na base de uma estabilização. A clínica

mostra que há delírios que permitem uma organização do mundo, como nos ensina

Schreber. Por outro lado, também a clínica mostra que há casos em que, apesar da

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intensa produção delirante, o delírio parece comparecer mais em sua face de invasão

que de apaziguamento. Nestes casos, é preciso pensar num possível manejo de modo a

tentar conter tamanha invasão.

Nesse sentido, esse trabalho se propõe a fazer um recorte teórico preciso,

perseguindo a via de trabalho proposta por Freud e Lacan, por considerar que a paranóia

ainda suscita questões clínicas atuais, para além do seu lugar paradigmático na teoria

psicanalítica.

Dividiremos nosso trabalho em quatro capítulos. No primeiro, retornaremos

à letra de Freud, numa revisão em torno de sua contribuição fundadora ao estudo das

psicoses. O objetivo central deste capítulo é precisar o modo como a questão do delírio

é abordada por Freud, qual sua função e efeitos.

Para tanto, centraremos nossa discussão em torno das noções de defesa, de

narcisismo e de perda da realidade, tomando como eixo a discussão em torno do delírio,

o modo com a temática do delírio comparece na elaboração freudiana concernente às

psicoses. Destacaremos ainda a noção de Verwerfung, que iremos retornar, no terceiro

capítulo, a partir de Lacan.

No segundo capítulo, após uma breve discussão em torno da passagem de

uma lógica da compreensão para a lógica do significante, analisaremos o esquema L,

que nos servirá de suporte para discutirmos os esquemas da realidade e da estabilização

schreberiana.

Recortaremos em seguida a noção de metáfora, por considerá-la central para

que possamos precisar a noção de metáfora delirante. Procuraremos balizar esta noção

nos textos da década de 50, destacando a subversão que Lacan opera a partir de sua

leitura da lingüística.

Analisaremos ainda a fórmula da metáfora, a partir da qual abordaremos a

dimensão metafórica do pai e a noção de ponto de basta. Esta última noção nos é

considerada central não apenas para a clínica da neurose, mas também para pensar o que

pode vir a fazer ponto de basta lá onde o Nome-do-Pai não opera.

Com estes elementos, abordaremos, no capítulo 3, a noção de foraclusão do

Nome-do-Pai, seguida de uma discussão acerca do desencadeamento e da estabilização

na psicose. Procuraremos cernir a noção de estabilização, tomando como referências a

noção de estabilização utilizada por Lacan em De uma questão preliminar a todo

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tratamento possível da psicose (1957-58a), bem como a idéia de localização de gozo,

que precisaremos a partir do esquema de Schreber, através do gozo transexualista.

De posse dessa noção de estabilização, nos centraremos no estudo do delírio

como via possível (e não privilegiada) de estabilização na psicose. Procuraremos

matizar as aproximações e diferenças entre o delírio e a metáfora delirante, retornando,

para este fim, ao esquema I, onde já é possível pensar na idéia de localização de gozo

através do gozo transexualista de Schreber.

Trataremos ainda da noção de delírio parcial, advinda da psiquiatria e

evocada por Lacan em algumas passagens. Investigaremos as aproximações e

distanciamentos entre esta noção e a metáfora delirante. Em seguida, procuraremos

localizar o delírio e a metáfora delirante na lógica quaternária de ordenação do delírio,

que Maleval desenvolve a partir de sua leitura de Lacan.

Em nosso último capítulo, apresentaremos um caso de nossa clínica.

Procuraremos, a partir dos elementos teóricos apresentados, precisar o trabalho deste

paciente, no sentido de uma estabilização, com o intuito de localizar em que medidas

estas vias passam pelo delírio, e se há ou não uma metáfora delirante participando de

sua estabilização.

Convém mais uma vez ressaltar que este trabalho não se sustenta em uma

aposta na metáfora delirante como saída privilegiada. Não se trata de fazer apologia a

este tipo específico de resposta, mas de recortar, para os fins deste estudo, as tentativas

de construção delirantes, pensadas em seu estatuto de trabalho simbólico.

Acreditamos que há uma diferença crucial, no que tange à posição do

analista, entre, a partir das coordenadas do caso, apostar no delírio como uma via

possível de estabilização, e apostar no delírio como solução privilegiada. É o paciente

quem escolhe ou não esta via, e se ele a escolhe, não é possível ao analista desprezá-la.

Neste caso, o analista precisa se colocar como instrumento dessa estrutura na formação

de uma estabilização.

Obviamente as discussões de Freud e Lacan sobre as psicoses não se

restringem à temática do delírio, exigindo outros desdobramentos nas respectivas obras.

Um exemplo é a longa abordagem que encontramos, ainda no Seminário 3 (1955-56), à

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propósito da compensação imaginária, onde o psicótico se prende a uma relação

especular que lhe dá alguma sustentação.

Ressaltamos ainda a importância dos estudos e debates em torno de casos,

bastante freqüentes, onde a eclosão dos fenômenos psicóticos é menos ruidosa, e onde

fenômenos delirantes ou alucinatórios podem nem sequer ser encontrados. A chamada

Conversação de Arcachon, realizada pelo Campo Freudiano em 1999, marca o debate

em torno destes casos ditos inclassificáveis ou de difícil classificação, que parecem

requerer, segundo os organizadores do debate, elementos para além dos referentes mais

clássicos.

Enfatizamos ainda que os estudos sobre as psicoses posteriores à década de

70 têm sido enriquecidos a partir das discussões sobre o nó borromeu, em que Lacan

radicaliza a idéia de que nem mesmo o Nome-do-Pai, que tem função de ordenador

simbólico, garante a possibilidade de tudo representar, exigindo de cada um uma

resposta particular.

Nessa perspectiva, podemos pluralizar a discussão em torno das diferentes

saídas possíveis na psicose para além do trabalho do delírio. Colette Soler (2007), por

exemplo, destaca o ato, a obra, a identificação imaginária e a sublimação criadora.

Não nos propomos, no entanto, a entrar nestes debates. Reconhecemos a

existência e importância de outros modos de organização psicótica, cujas soluções

podem passar por vias que muitas vezes prescindem do delírio. Mas a delimitação aqui

proposta é relativa tanto à impossibilidade de abranger todas as soluções na psicose no

tempo deste trabalho, quanto às interrogações suscitadas pelo caso clínico a ser

discutido.

Consideramos que, mesmo em época de tantas modificações na clínica da

psicose relativas ao avanço dos neurolépticos e da chamada Psiquiatria Biológica, com

sua tendência neurologizante, as chamadas “psicoses delirantes”, mesmo excluídas dos

atuais manuais internacionais de classificação diagnóstica, ainda têm algo a nos ensinar,

de modo a nos interrogar, para além de uma “psicogênese” ou de uma “neurogênese”,

sobre esse lugar específico no registro da linguagem, sobre sua problemática e seu lugar

na clínica.

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Capítulo 1 - A PARANÓIA NA OBRA FREUDIANA

“Época houve em que ‘fora’, ‘estranho’ e ‘hostil’ eram conceitos idênticos.”

S. Freud

Muito embora a historiografia psicanalítica tradicional situe as origens da

psicanálise do contato de Freud com as histéricas, as interrogações em torno das

psicoses encontram-se presentes desde o início da obra freudiana, acompanhando

diferentes momentos de sua teorização, de modo que se pode afirmar sua importância

tanto histórica quanto teórica na constituição da psicanálise. Interessa-nos perpassar por

estes momentos para que possamos mapear o modo como a questão do delírio vai se

colocando para Freud.

Sobre este ponto, Dias (2000: 18) ressalta que a amizade e colaboração

intensas de Wilhelm Fliess permitiram a Freud “atravessar a paranóia”, no sentido de

afastar-se da pretensa universalidade das explicações (“caráter sistêmico”) que marca

com muita força as elaborações de Fliess, como no suposto contato entre homem e

cosmos, micro e macrocosmo, ou na matematização ou ciclicidade das manifestações

humanas, presente na possibilidade de interferência do ciclo lunar, por exemplo.

Fliess foi um grande interlocutor de Freud, e acreditamos que não foi sem a

interlocução com esse paranóico que era Fliess, que Freud pode ir constituindo a

psicanálise como um saber produzido através do que ensina a clínica de cada caso, para

além de grandes explicações sistêmicas.

Apesar desta interlocução fundamental para a construção da teoria

psicanalítica, não se pode desconsiderar a manifesta descrença de Freud quanto à

possibilidade de atendimento analítico com psicóticos, justificando tal dificuldade, e até

inacessibilidade mesmo, em virtude dos obstáculos que segundo ele seriam encontrados

para o estabelecimento de uma relação transferencial. É, portanto, de natureza mais

propriamente teórica sua significativa contribuição no campo das psicoses, ao contrário

de sua contribuição no campo das neuroses, que se constitui a partir de sua prática

clínica.

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Um dos pontos em que nos ancoramos para apostar num trabalho analítico

com as psicoses, no entanto, é que o próprio Freud oscila quanto a esta impossibilidade,

e suas objeções não parecem muito conclusivas, abrindo espaço para posteriores

avanços.

Acompanhar o percurso de Freud no que diz respeito às psicoses é resgatar o

momento de constituição de uma teoria em seus diferentes momentos, no sentido

mesmo de elaboração da teorização, e perceber como tais momentos geram impactos

que fazem incidir no pensamento freudiano com relação às psicoses.1

Assim é que serão aqui discutidos três momentos relativos à concepção

freudiana das psicoses: o das cartas a Fliess e do ensaio sobre As Neuropsicoses de

Defesa (1894), onde se tem um primeiro conceito de conflito psíquico amparado na

noção de defesa; o momento relativo aos anos 10, com o caso Schreber (1911), onde

Freud já conta com o conceito de narcisismo, que neste caso ele articula à dinâmica

libidinal; e, por fim, o momento relativo à teorização sobre a segunda tópica freudiana,

no que ela permite uma leitura sobre as psicoses.

Partimos do pressuposto de que a teorização freudiana concernente às

psicoses não é passível de uma leitura evolutiva, ordenada a partir de uma disposição

cronológica. A escolha por este modo de apresentação das questões segue uma

orientação metodológica, qual seja, a de localizar os impasses na medida em que eles

aparecem, dentro de uma lógica muito própria a Freud. Não se trata da apresentação de

uma teoria acabada, mas do surgimento de hipóteses por vezes contraditórias que vão

sendo elaboradas ao longo de toda a obra.

Considere-se ainda que tal pensamento, e este aspecto é de saída ressaltado

por Lacan em seu seminário sobre as psicoses, volta-se bem mais para a pesquisa da

paranóia, que para as investigações sobre a esquizofrenia, ao contrário da tendência

psiquiátrica da época, cujo enlevo estava nesta última:

Naturalmente, Freud não ignorava a esquizofrenia. O movimento de elaboração desse conceito era-lhe contemporâneo. Mas se realmente reconheceu, admirou e mesmo encorajou os trabalhos da escola de Zurique,

1 Convém desde já apontar que suas primeiras elaborações sobre o tema encontram-se no âmbito de uma concepção sobre as neuroses (campo da Verdrängung), ainda que na busca de especificidades.

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e pôs a teoria analítica em relação com o que se edificava em torno de Bleuler, ele, no entanto, se manteve suficientemente afastado. Ele se interessou primeiro e essencialmente pela paranóia. E para indicar-lhes imediatamente um ponto de referência ao qual vocês poderão se reportar, lembro-lhes que no fim da observação do caso Schreber, que é o texto de maior doutrina concernente às psicoses, Freud traça uma linha divisora de águas, se assim posso me exprimir, entre paranóia, de um lado, e, de outro, tudo o que gostaria, diz ele, que fosse chamado de parafrenia, e que corresponde exatamente às esquizofrenias. (Lacan 1955-56: 12)

Sobre este ponto, cumpre colocar que Freud, de início, utiliza o termo

parafrenia referindo-se à demência precoce ou esquizofrenia, sob o argumento de que

tal termo dizia respeito tanto à paranóia quanto a hebefrenia (demência precoce),

embora em obras posteriores utilize-se com freqüência do termo esquizofrenia proposto

por Bleuler. O uso do termo parafrenia englobando tanto a psicose paranóica quanto a

esquizofrênica parece também apontar para a importância, na obra de Freud, de se

estabelecer um mecanismo único que pudesse distinguir o campo das neuroses e o

campo das psicoses, como será discutido adiante.

Especialmente nos textos anteriores ao caso Schreber, encontramos uma

certa dificuldade em cernir aquilo que, na obra de Freud, diz respeito exclusivamente ao

campo da paranóia. Nos textos iniciais, incluindo a paranóia dentro do campo das

neuropsicoses, Freud, por vezes, fala em confusão alucinatória e outras vezes em

paranóia, não nos parecendo que já haja, naquele momento, uma delimitação mais

formalizada entre estas categorias, embora em alguns momentos ele proponha uma

distinção.

Dentro do campo das neuropsicoses, vemos como a confusão alucinatória

vai progressivamente cedendo lugar à paranóia, e este é um aspecto relevante. Podemos

citar, dentre os inúmeros termos que fomos encontrando ao longo de nossa leitura:

neuroses narcísicas, psicoses alucinatórias, parafrenia, demência precoce, dementia

paranóide, paranóia e esquizofrenia.

Neste capítulo, haja vista essa dificuldade de delimitação do campo

exclusivo da paranóia na letra freudiana, faremos uma leitura das psicoses seguindo as

terminologias utilizada pelo próprio Freud, de modo que aparecerão termos distintos

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para falar do que atualmente entendemos como paranóia. Entendemos que não seria

rigoroso restringirmo-nos aos textos em que Freud fala especificamente sobre a

paranóia, pois as idéias que ele vai tecendo sobre a paranóia encontram-se muitas vezes

pulverizadas em textos onde ele faz uso de outras terminologias.

1.4 PSICOSE E DEFESA: as primeiras incursões

São antigas as primeiras incursões de Freud sobre a paranóia. O esforço

inicial reside essencialmente na determinação de sua etiologia, seu mecanismo

fundador, e não nas soluções possíveis, na “tentativa de cura”. São, no entanto,

contribuições essencialmente valiosas a nosso tema de estudo, no que permitem

descrições muito finas do funcionamento paranóico.

No âmbito das elaborações freudianas anteriores a 1900, a categoria

conceitual das neuropsicoses2 adquire um lugar privilegiado. Neste momento, Freud se

ocupa em articular uma teoria da defesa que, tal como cunhada neste momento,

abrangeria todo o campo das neuropsicoses, cada qual com seu modo específico de lidar

com as representações incompatíveis com o eu.

Ainda que trabalhando dentro de uma mesma categoria conceitual, as

neuropsicoses, já percebemos aqui, desde o início da elaboração da teoria psicanalítica,

um movimento que será constante em Freud, qual seja, a tentativa de encontrar

especificidades, delinear as entidades clínicas, estabelecer distinções entre neuroses e

psicoses enquanto modalidades psicopatológicas.

Neste momento, tal empreendimento será feito atribuindo-se a cada uma

destas modalidades o seu mecanismo de defesa específico. Percebemos que a noção de

defesa curiosamente permite tanto agrupar as entidades clínicas num mesmo campo, o

das neuropsicoses de defesa, quanto diferenciá-las, pois os mecanismos defensivos são

distintos.

2 A categoria das neuropsicoses abrangia, num mesmo campo, neuroses e psicoses. Sua formulação já é índice de uma especificidade da psicanálise para com a psiquiatria da época.

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O termo defesa comparece inicialmente em 1894, no trabalho intitulado As

Neuropsicoses de Defesa. Neste trabalho, Freud apresenta sua teoria da defesa3, através

da qual procura explicar o surgimento dos sintomas na histeria, fobia, obsessão e

psicoses alucinatórias. É neste importante trabalho que surge também a noção de

Verwerfung4, a partir da qual Freud vai tentar dar conta de uma possível distinção entre

neurose e psicose.

Pensando as categorias clínicas como neuropsicoses de defesa, Freud

distingue, neste trabalho, três modos de o eu se defender de representações

incompatíveis, um característico da histeria, outro da neurose obsessiva e um terceiro

característico das psicoses, todos eles partindo da pressuposição lógica da divisão da

consciência.

Já encontramos neste texto a possibilidade de distinção entre aquilo que seria

o campo das representações e o campo dos afetos. Falar de afeto é falar de quantidade,

energia, “soma de excitação”, segundo Freud (1894: 66). Quando uma representação é

recalcada, a energia que a ela estava ligada, catexizada, fica então livre, circulando pelo

aparelho. Este, portanto, é invadido por uma energia que o sujeito precisa ligar a algo.

(...) nas funções mentais, deve existir algo – uma carga de afeto ou soma de excitação – que possui todas as características de uma quantidade (embora não tenhamos meios de medi-la) passível de aumento, diminuição, deslocamento e descarga, e que se espalha sobre os traços mnêmicos das representações como uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo. (Freud 1894: 66)

Aqui entra novamente a idéia de defesa. Para defender-se, o sujeito liga essa

energia a outra representação. A representação substitutiva precisa ao mesmo tempo

assemelhar-se a primeira e diferenciar-se dela de modo a mascará-la. Esse trabalho de

ligação psíquica (bindung), de vinculação, é o de ligar afetos a representações.

3 Os termos defesa e recalque parecem, nesse texto, ser tratados como sinônimos, embora ao longo da obra freudiana sua distinção adquira maior precisão. 4 Noção a ser retomada por Lacan, como discutiremos. Em Freud, o termo será retomado em 1918, a propósito do episódio do dedo cortado do Homem dos Lobos.

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O ponto a destacar é que na histeria, na neurose obsessiva e nas fobias a

representação inconciliável deixa no eu um símbolo mnêmico5. Diante do fracasso da

defesa em obter o esquecimento da representação incompatível, diversas respostas vão

se dar. Na histeria, Freud coloca que há uma conversão somática desse afeto (afeto

convertido em inervações motoras), ao passo que na neurose obsessiva o afeto é

deslocado, substituído para uma representação inofensiva, que mantenha com a

representação recalcada algum elo.

Tal não é o que ocorre na paranóia. Em As Neuropsicoses de Defesa (1894),

Freud defende a idéia de que nas psicoses alucinatórias, sendo a defesa bem mais

enérgica, a representação incompatível é rechaçada pelo eu e ligada a um fragmento da

realidade (psíquica). Há de se ressaltar a radicalidade deste tipo de defesa, onde, diante

de uma representação inassimilável, a representação e o afeto que lhe corresponde são

rejeitados (verwerfen), acarretando uma perda da realidade. O termo rejeição é aqui

utilizado particularmente para o modo de defesa na psicose:

Em ambos os casos aqui considerados [neurose histérica e neurose obsessiva], a defesa contra a representação incompatível foi efetuada separando-a de seu afeto; a representação em si permaneceu na consciência, ainda que enfraquecida e isolada. Há, entretanto, uma espécie de defesa muito mais poderosa e bem-sucedida. Nela, o eu rejeita a representação incompatível juntamente com seu afeto e se comporta como se a representação incompatível jamais lhe tivesse ocorrido. Mas a partir do momento em que isso é conseguido, o sujeito fica numa psicose que só pode ser qualificada como “confusão alucinatória”. (Freud 1894: 64, grifos nossos)

Freud então denomina este processo de fuga para a psicose, onde o afeto

projetado torna-se irreconhecível para o eu do sujeito e não constitui símbolo mnêmico.

No lugar da representação rechaçada, fica um rombo, um buraco, uma não-inscrição.

Tão radical é este tipo de defesa, que é como se a representação rejeitada jamais tivesse

ocorrido:

(...) é justificável dizer que o eu rechaçou a representação incompatível através de uma fuga para a psicose (...) O eu rompe com a representação incompatível; esta, porém, fica inseparavelmente ligada a um fragmento da

5 Segundo Laplanche & Pontalis (1995: 486), símbolo mnêmico é uma expressão utilizada por Freud em escritos iniciais para qualificar o sintoma histérico. Símbolos mnêmicos seriam resíduos de experiências fantasmáticas do passado, ligados, portanto, à história do sujeito e vividas de fato ou na fantasia.

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realidade, de modo que, á medida que o eu obtém esse resultado, também ele se desliga, total ou parcialmente da realidade. (Freud 1894: 65)

As idéias de rejeição e de perda da realidade aqui indicadas serão retomadas

tanto por Freud (anos 20) quanto por Lacan (no que se refere ao mecanismo da

foraclusão), o que nos mostra como o texto das Neuropsicoses de Defesa é

absolutamente precursor quanto a estas duas noções. A psicose é situada como uma

resposta, entre outras, a um conflito psíquico.

Mesmo que Freud atrele neuroses e psicoses ao mecanismo do recalque, a

partir da noção de defesa, uma distinção estrutural entre ambos já pode ser nuançada a

partir da noção de rejeição, na medida em que falar de rejeição não é a mesma coisa que

falar em recalque.

Assim, embora Freud fale de recalque a propósito das psicoses alucinatórias,

ele já observa que este recalque é bastante diferente daquele que ocorre nas neuroses. Já

aqui podemos pensar no delírio como uma tentativa, num depois, de religar a cadeia

representacional, embora Freud, neste texto, não dê este acabamento à questão.

Apenas um ano depois, já surge na obra de Freud outra referência importante

ao nosso tema de estudo. Trata-se de um anexo a uma carta enviada a Fliess em 24 de

janeiro de 1895, que ficou conhecida como Rascunho H, e que trata fundamentalmente

sobre a paranóia. Algumas das idéias aqui expostas serão retomadas por Freud no caso

Schreber (1911).

Neste escrito (1895: 254), Freud defende a tese de que a paranóia é um

“modo patológico de defesa”, oriundo de uma perturbação afetiva (e não intelectual,

como a proposta psiquiátrica da época), cujo mecanismo principal é a projeção, que

seria comum a todos os casos de psicose6.

Freud aponta uma certa proximidade entre a idéia delirante e a idéia

obsessiva, e tal semelhança é utilizada por ele como um argumento para situar a

paranóia no campo das neuroses de defesa.

6 A noção de defesa aplicada à paranóia persistirá em trabalhos posteriores, como o caso Schreber, por exemplo.

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Um ponto fundamental trazido por Freud neste escrito diz respeito ao

estatuto da projeção, de ser um mecanismo, segundo ele, comum na vida normal, sendo

que, na paranóia, haveria um abuso deste mecanismo para fins de defesa. Mas

exatamente por não ser exclusivo das psicoses, o conceito de projeção ainda não será

suficiente para garantir à psicose o seu mecanismo específico7.

Note-se que não se trata aqui de uma distinção entre um suposto normal e

um patológico de ordem qualitativa, de modo que isso que Freud denomina de abuso é

também o índice de uma marca em sua teorização, e de um modo específico de pensar o

funcionamento do aparelho em sua dimensão econômica, pensar estrutural desde o

início.

Neste sentido, ressalte-se ainda o movimento de Freud no sentido de se

afastar, ainda que com elas dialogando, das concepções ligadas à psiquiatria de sua

época, onde a loucura era vista sob o prisma de uma ruptura radical com a realidade.

É no Rascunho H (1895: 256), segundo nota do editor inglês, que Freud

utiliza-se pela primeira vez do termo projeção, bem como de seu conceito: “[...] o

propósito da paranóia é rechaçar uma idéia que é incompatível com o ego, projetando

seu conteúdo no mundo externo.”

Ainda neste trabalho, Freud coloca que tanto a representação da idéia

inconciliável quanto o afeto a ela relacionado permanecem idênticos a si mesmos8, ou

seja, não sofrem alterações de conteúdo. Serão, todavia, projetados no mundo exterior,

de modo que o sujeito percebe como vinda de fora uma auto-recriminação. Por esta via,

a auto-recriminação não é reconhecida pelo sujeito como sendo sua, sendo imputada ao

outro:

(...) passou a ouvir essa mesma censura, agora proveniente de fora. Assim, o tema permanecia inalterado; o que mudava era a localização da coisa. Antes, tratava-se de uma autocensura interna; agora, era uma recriminação vinda de fora. (Freud 1895: 255)

7 Veremos mais adiante como Freud retoma este conceito no caso Schreber. 8 Por permanecerem idênticos não chegam a constituir um símbolo mnêmico, o que é um ponto importante de demarcação de uma especificidade para com as neuroses, onde os sintomas são símbolos mnêmicos.

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Percebemos como a projeção altera fronteira entre o eu e o mundo. Esta

“fronteira”, que mesmo na neurose nunca é absolutamente clara, é bastante modificada

em uma psicose, e tal modificação é situada por Freud neste momento como decorrência

deste modo particular de defesa, a projeção.

Percebemos, por esta passagem, que dois momentos entram em jogo na

produção de uma psicose: inicialmente o sujeito se defende da representação

incompatível através de sua projeção para o mundo externo. Uma vez que esta

representação retorna como vinda de fora, o sujeito pode rejeitá-la.

Diante de um conflito, de uma representação incompatível com o eu, por que

um sujeito responde com uma psicose? Neste ponto, Freud fala numa predisposição9

psíquica peculiar: “As pessoas tornam-se paranóicas diante de coisas que não

conseguem tolerar, desde que para isso tenham a predisposição psíquica característica”

(Freud 1895: 254). Há aí, portanto, a idéia de que para que uma psicose se produza, são

necessários dois elementos: o encontro com algo intolerável e uma predisposição

psíquica (e não orgânica ou hereditária).

Um ponto importante a destacar neste texto, especialmente para nosso tema

de estudo, é o modo como Freud trata a questão da idéia delirante: “Em todos os casos a

idéia delirante é sustentada com a mesma energia com que uma outra idéia,

intoleravelmente penosa, é rechaçada do ego. Assim, essas pessoas amam seus delírios

como amam a si mesmas. É esse o segredo.” (Freud 1895: 257)

Cabe ressaltar que Freud não coloca no mesmo plano os delírios de

perseguição e de grandeza. Embora a auto-referência seja um ponto comum a ambos, o

delírio de perseguição retorna com o mesmo conteúdo da idéia rechaçada, ao passo que

o delírio de grandeza é uma espécie de oposto do que foi rejeitado. Ambos, portanto,

incidem de modo diferente sobre o eu: o delírio de grandeza alarga o eu, ao passo que o

delírio de perseguição o retrai.

Em 1896, Freud escreve dois trabalhos importantes para nosso tema de

estudo, ainda trabalhando com a categoria conceitual das neuropsicoses de defesa: o

9 Podemos notar que a idéia freudiana de predisposição psíquica particular antecipa o que Lacan articula em termos de estrutura.

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Manuscrito K (1896a), anexado à carta 39, endereçada a Fliess, e as Observações

Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b). Ambos são trabalhos bastante

próximos em suas formulações, embora, no Manuscrito K, Freud se mostre mais

enfático quanto à afirmação de que a paranóia é uma neurose de defesa.

Interessa-nos particularmente neste manuscrito as elaborações de Freud em

torno dos delírios e das alucinações na paranóia, ambos em relação estreita com o

conceito de defesa. Aqui, Freud fala das alucinações táteis, visuais ou auditivas e dos

delírios de observação e perseguição como índices do retorno do recalcado.

Diante das modificações sofridas pelo eu, dois tipos de conseqüência podem

ser observadas: ou há um empobrecimento do eu (melancolia), ou uma expansão

exagerada deste (delírio de grandeza/megalomania). O delírio de grandeza presentifica

aqui um certo esforço do eu para manter sua unidade abalada diante do retorno do

recalcado, prenunciando as formulações em torno do delírio como tentativa de cura.

Em Observações adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b), após

a análise de um caso de paranóia, Freud procura caracterizar a diferença entre paranóia

e obsessão a partir do que ele chama de recriminações, de modo que na primeira as

auto-recriminações seriam projetadas no exterior, ressurgindo intactas, ao passo que na

segunda, pelo reconhecimento da intervenção de um terceiro, as recriminações mantêm-

se dentro do sujeito, e ainda assim deslocadas de seu conteúdo original:

Na neurose obsessiva, a auto-acusação inicial é recalcada pela formação do sintoma primário da defesa: a autodesconfiança. Com isso, a auto-acusação é reconhecida como justificável; [...] Na paranóia, a auto-acusação é recalcada por um processo que se pode descrever como projeção. É recalcada pela formação do sintoma defensivo de desconfiança nas outras pessoas. Dessa maneira, o sujeito deixa de reconhecer a auto-acusação; e, como que para compensar isso, fica privado de proteção contra as auto-acusações que retornam em suas representações delirantes. (Freud 1896b: 182, grifos do autor)

Na Carta 125, endereçada a Fliess e datada de dezembro de 1899, Freud, no

que tenta responder à questão de por que uma pessoa se torna histérica e não paranóica,

sugere que a paranóia acarreta um retorno a um auto-erotismo primitivo, ou seja,

haveria aí um ponto de fixação nesta etapa do desenvolvimento libidinal, no sentido de

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um retorno onde as identificações com as pessoas amadas da infância seriam desfeitas e

o ego cindido no que ele chama de figuras externas: “cheguei a considerar a paranóia

como uma irrupção da corrente auto-erótica, como um retorno à posição então

prevalente.” (: 331).

Estas primeiras caracterizações acerca das psicoses mostram como há em

Freud desde o início de sua elaboração teórica uma preocupação em delinear as

categorias clínicas, de modo que suas elaborações sobre as psicoses permeiam a

construção de todo arcabouço conceitual psicanalítico.

Como a concepção de sintoma sofre sucessivas elaborações ao longo da

teorização freudiana, é pertinente destacar que, nestas primeiras articulações, Freud

ainda trabalha a partir dos laços entre o que ele chama de cena patogênica (traumática) e

os resíduos desta cena, quais sejam, os sintomas. Está ainda, portanto, no âmbito da

teoria da sedução, onde a cena traumática teria realmente ocorrido, sendo recalcada e

retornando como sintoma.

Este é um ponto ressaltado por Freud em nota de rodapé acrescentada em

1924 às Observações Adicionais sobre as Neuropsicoses de Defesa (1896b) como

correção à afirmação feita neste trabalho de que a defesa se põe contra uma experiência

sexual de caráter traumático ocorrida na infância. Apenas posteriormente10 ocorre em

Freud o salto da teoria da sedução para a teoria da fantasia, salto este repleto de

conseqüências teórico-clínicas fundamentais, conseqüências estas que se fazem incidir

no que se refere à sexualidade infantil e ao complexo de Édipo.11

Na teoria da fantasia, Freud não abre mão da noção de cena traumática, mas

aqui o “patogênico” não é algo da ordem do acontecimento. Introduz-se, portanto, o

conceito de realidade psíquica e de elaboração psíquica, que podem ou não estar

relacionadas com um fato na realidade vivido pelo sujeito, mas que para ele diz de uma

ordem própria de realidade, absolutamente ligada à fantasia.

10 Relatado em Carta a Fliess em 1897 e reconhecido publicamente em 1906. 11 Não se trata de um simples abandono da articulação teórica referente à teoria da sedução, de modo que ainda na teoria da fantasia algo dela é conservado, como por exemplo, a libidinização do bebê através dos cuidados corporais.

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A partir deste conceito, não cabe mais ao analista procurar distinguir, na fala

do sujeito, o que diz ou não respeito a uma realidade material vivida por ele, tendo,

pois, a noção de desejo inconsciente como diretriz de sua escuta clínica. Veremos

adiante como o conceito de realidade psíquica importa para o campo das psicoses.

1.2 PSICOSE E NARCISISMO: os anos 10

Poucas referências à paranóia são encontradas na obra de Freud entre os anos

de 1899 e 1911. Este intervalo de tempo, em que são publicados trabalhos de

importância central no estudo das leis do inconsciente12, precede aquela que seria a

maior incursão freudiana no campo da paranóia, qual seja, as Notas Psicanalíticas sobre

um Relato Autobiográfico de um Caso de Paranóia (1911), também conhecido como o

caso Schreber. A importância deste caso, entretanto, conforme nota do editor inglês

(Freud 1911), não se restringe às teorizações de Freud acerca da paranóia, mas também

ao fato de que precede os artigos metapsicológicos aos quais Freud virá a se deter, além

de uma primeira menção aos totens.

Para nosso trabalho, o exame do caso Schreber é central, na medida em que

Schreber consegue operar, pelo delírio, uma certa passagem que lhe permite situar-se na

existência através da construção de uma nova realidade. Tanto Freud quanto Lacan

acentuam este aspecto no delírio de Schreber. Trata-se de um caso bastante rico e que

nos possibilita observar o ponto de eclosão desta psicose, bem como o mecanismo do

delírio, de sua construção e seus efeitos de estabilização. Schreber constrói, pelo delírio,

uma significação que organiza seu mundo novamente.

Inúmeros são os comentadores deste caso, largamente discutido na literatura

psicanalítica. Freud recomenda enfaticamente a leitura dos escritos de Schreber e Lacan

12 Apenas para citar alguns, datam deste período A Interpretação dos Sonhos (1900), os Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905a) e alguns estudos sobre linguagem e inconsciente, como Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901) e Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente (1905b), além de importantes estudos clínicos.

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insiste nesse ponto em vários momentos. Priorizaremos, neste trabalho, as suas

memórias, a partir de sua leitura por Freud e Lacan.

Neste primeiro capítulo, iremos nos deter à leitura freudiana do caso

Schreber, para, no terceiro capítulo, retornarmos a ele a partir de algumas elaborações

de Lacan em torno do mesmo. Não pretendemos fazer uma leitura estanque das

considerações freudianas, mas, por uma questão de método, optamos por inicialmente

localizar os pontos abordados por Freud em torno do caso, em sua conexão íntima com

o conceito de narcisismo. O fio condutor da leitura será a busca por localizar o

mecanismo do delírio, e o que ele permite articular em termos de constituição da

realidade e seus efeitos de organização subjetiva.

Como se sabe, Freud nunca viera a conhecer Daniel Paul Schreber, doutor

em Direito e presidente da corte de apelação de Saxe, homem de notável saber tanto no

que se refere ao campo do Direito quanto às artes em geral, e que descreve a si próprio

como ‘homem de dotes mentais superiores e contemplado com agudeza fora do comum,

tanto de intelecto quanto de observação’ (Schreber 1903 apud Freud 1911: 24). A ele,

Freud teve acesso primordialmente através de suas memórias, texto autobiográfico

publicado em 1903 e lido por Freud em 1909, bem como através dos relatórios dos

médicos que o acompanharam durante suas internações.

Logo no início do caso Schreber (1911: 28), Freud estabelece uma

diferenciação muito nítida entre a abordagem psicanalítica e psiquiátrica no que se

refere ao modo de considerar o delírio. Para ele, o interesse da psiquiatria para com as

formações delirantes se esgota muito rapidamente, tão logo se constata o caráter do

delírio e suas influências sobre a vida do paciente – “em seu caso, maravilhar-se não é o

início da compreensão”, ao passo que para a psicanálise, “mesmo estruturas de

pensamento tão extraordinárias como estas, e tão afastadas de nossas modalidades

comuns de pensar, derivam, todavia, dos mais gerais e compreensíveis impulsos da vida

humana”, daí a importância de seu conteúdo relacionado à da história do sujeito. Este,

aliás, é um ponto de novidade que a psicanálise traz para com a experiência da loucura,

qual seja, a relação entre delírio e verdade, entendida aqui como verdade singular e

reafirmada por Freud ao longo de toda a sua obra, que coloca em outro plano a

dicotomia razão/desrazão, base de sustentação do saber psiquiátrico de seu tempo.

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Sem a pretensão de detalhar o caso, serão traçados a seguir alguns pontos

necessários à compreensão dos avanços teóricos que comparecem no mesmo, em

especial no que se refere à tentativa de explicar a problemática da psicose através da

teoria da libido, fazendo, para tanto, uso da noção de narcisismo.

Daniel Paul Schreber é internado três vezes, aos 42, 51 e 65 anos de idade.

Era casado com Ottlin Sabine Behr e não teve filhos (Ottlin teve ao todo seis abortos

espontâneos). Seu irmão mais velho, Daniel Gustav Schreber, suicidou-se aos 38 anos

de idade, após sua nomeação para o cargo de conselheiro de um tribunal.

Sobre seu pai, Daniel Gottlieb Moritz Schreber (1808-1861), sabe-se que era

médico-ortopedista e pedagogo, fundador de uma ginástica-terapêutica, baseada em

suas teorias sobre educação das crianças, que deu origem a inúmeras Associações

Schreber, além de cerca de vinte livros, um dos quais denominado ‘Ginástica Médica de

Salão’, que alcançou grande tiragem na Alemanha de seu tempo.

Segundo os métodos educacionais do pai de Schreber, a contenção

emocional (e sexual) seria importante para a retidão do espírito. Assim, o método

educacional do pai de Schreber incluía, desde regras rígidas de alimentação, até uma

aparelhagem de ferro e couro com a finalidade de garantir uma correta postura corporal,

além de impedir o auto-toque. Schreber (1903: 11) assim fala da educação que recebera

de seu pai: “Poucas pessoas cresceram com princípios morais tão rigorosos como eu e

poucas [...] se impuseram ao longo de toda a sua vida tanta contenção de acordo com

esses princípios principalmente no que se refere à vida sexual.”

Em sua primeira internação, que dura seis meses, Schreber é acompanhado

pelo Dr. Flechsig numa clínica de Leipzig, com o diagnóstico de crise grave de

hipocondria13. Sua segunda internação é bem mais longa (nove anos), e a ela Schreber

atribui como causa uma sobrecarga de trabalho quando de sua nomeação para o cargo

de Senatspräsident (Juiz-Presidente) da Corte de Apelação de Dresden, cargo vitalício e

de nomeação determinada pelo rei, sem direito a recusas, portanto. Este era o cargo

mais elevado a que Schreber poderia alçar na carreira jurídica.

13 Pesquisas de Baumeyer apontam que o quadro de Schreber durante esta primeira internação era mais grave do que Freud pode sabê-lo, incluindo manifestações delirantes (idéias de emagrecimento) e duas tentativas de suicídio. (Schreber 1903)

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É interessante observar que, embora Schreber atribua esta segunda crise a

uma sobrecarga de trabalho, o desencadeamento delirante se dá logo após sua nomeação

para o novo cargo. Schreber assume a presidência em outubro de 1893, e ainda neste

ano é acometido por uma crise delirante que o leva à internação.

Sua última internação se dá num asilo em Leipzig-Dösen, após uma doença

de sua esposa, onde passa os últimos anos de sua vida. Freud não teve acesso a

informações sobre a última internação de Schreber, que vai de 1907 a 1911, ano de sua

morte e, coincidentemente, da publicação do estudo freudiano.

A segunda internação de Schreber, no ano de 1893, é precedida por alguns

sonhos de que o antigo distúrbio (hipocondria) retornara e por um pensamento, entre o

sono e a vigília, em que lhe ocorre: ‘afinal de contas, deve realmente ser muito bom ser

mulher e submeter-se ao ato de cópula.’ (Schreber 1903 apud Freud 1911: 24).

Flechsig, seu primeiro médico, a quem sua mulher atribuíra a restituição do marido

quando de sua primeira internação, é aqui considerado perseguidor, assassino de almas.

Freud então discrimina a transformação de uma transferência amorosa em uma

transferência persecutória de Schreber para com Flechsig.

A partir deste ponto, Freud localiza o que para ele seria distintivo da

paranóia: um conflito oriundo de uma fantasia de desejo homossexual. Schreber repudia

esta fantasia, e toda a sua rede delirante se constrói no sentido de integrá-la, como

veremos adiante. Freud generaliza esta observação a todos os casos de paranóia

estudados por ele e seus discípulos, acrescentando que, em decorrência da

homossexualidade, nos delírios de perseguição o perseguidor é sempre do mesmo sexo.

É ao longo da segunda internação de Schreber que considerações sobre

‘Deus’ e a ‘Ordem do Mundo’ passam a integrar o corpo de seu delírio. A resignação

com sua transformação em mulher, no entanto, só ocorre em 1895. Um tempo de

trabalho do delírio foi necessário até que este se organizasse em torno da idéia de

transformação em mulher.

Freud destaca a sintomatologia desta segunda crise: inicialmente, Schreber é

acometido de insônia acompanhada de idéias hipocondríacas, que incluem a crença de

que seu cérebro está amolecendo, além de idéias de perseguição e hipersensibilidade à

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luz e ao calor. Quando da mudança da clínica de Flechsig (onde passara alguns meses

no início da segunda crise) para a clínica de Sonnenstein, surgem as alucinações

auditivas e verbais acompanhando as idéias de perseguição. Schreber acreditava-se

morto, em estado de putrefação, ter partes de seu corpo dilaceradas, como estômago,

pulmão, intestino, bexiga, entre outros, além de estar sendo submetido a tratamentos e

manipulações de origem sagrada (Freud 1911: 24).

Localizamos aí um delírio não-sistematizado, que comparece em sua face de

pura invasão e horror. Schreber cai num quadro de estupor alucinatório, segundo dr.

Weber, aos quais se seguem tentativas de suicídio. Em seguida ao quadro de estupor,

começam as insultas a Flechsig, ao sol e a Deus. Podemos considerar que Schreber aqui

já começa a se deslocar de uma posição em que é objeto desse Outro que o invade e o

manipula, a uma posição em que o Outro é colocado em questão, ainda que sob a forma

de insultos. Após esta fase, bastante longa, o delírio de Schreber adquire um

acabamento cujo conteúdo é o da transformação de seu corpo em um corpo feminino

para, a partir daí, num tempo futuro, poder procriar, a partir da intervenção divina, uma

nova geração de homens que redimam a humanidade e devolvam a bem-aventurança

perdida.

Deve-se observar, e este é um ponto enfatizado por Freud (1911), que a

transformação em mulher não se coloca para Schreber como fruto de seu desejo, mas de

um dever, de uma exigência divina com a qual Schreber se reconcilia. A finalização do

processo de transformação em mulher é lançada para um futuro além de seus

contemporâneos – futuro assintótico.

Segundo Freud (1911: 27), a essência do sistema delirante de Schreber foi

bem resumida na decisão judicial que lhe devolvera a liberdade: “Acreditava que tinha a

missão de redimir o mundo e restituir-lhe o estado perdido de beatitude. Isso, entretanto,

só poderia realizar se primeiro se transformasse de homem em mulher.”

Assim, Schreber acreditava que tinha a missão especial de redimir a

humanidade, tendo para isso que ser transformado em mulher e, nessa condição, gerar

uma nova raça de homens. Neste ponto, Freud estabelece uma distinção no que o

psiquiatra recolhe como pontos basilares no delírio de Schreber, quais sejam, o delírio

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de redentor da humanidade e o delírio de emasculação, sendo este secundário àquele.

Para Freud, pelo contrário, a questão fundamental é sexual. A transformação em mulher

não é apenas um meio de desempenhar o papel de Redentor, mas o ponto inicial a partir

do qual vem a se constituir um delírio de perseguição em que figuravam seu psiquiatra

Flechsig e, posteriormente, Deus, que o fecundaria através de raios divinos.

Para Freud (1911: 67), “caracteristicamente paranóico na doença foi o fato

de o paciente, para repelir uma fantasia de desejo homossexual, ter reagido

precisamente com delírios de perseguição desta espécie” 14. A fantasia de Redentor

viria, portanto, como um modo de reconciliar-se com a idéia de transformar-se em

mulher.

A partir deste acabamento assumido pelo sistema delirante, é possível a

Schreber escrever suas memórias, que anexa ao processo onde postula em juízo, em

nome próprio, pela restituição de sua liberdade e de seus direitos civis. Dr. Weber, seu

médico durante esta segunda internação, se colocara de modo contrário a tais intenções

(Freud 1911: 25), embora venha a admitir, após nove meses em que diariamente

Schreber freqüentava sua casa para o almoço, que era possível a Schreber discorrer

sobre os mais diversos temas, tanto das artes em geral quanto da política de seu tempo e

de questões jurídico-legais:

Aconteceu que, por um lado, ele havia desenvolvido uma engenhosa estrutura delirante, na qual temos toda razão em estarmos interessados, ao passo que, por outro, sua personalidade fora reconstruída e agora se mostrava, exceto por alguns distúrbios isolados, capaz de satisfazer as exigências da vida cotidiana. (Freud 1911: 25)

Freud observa então, e esta é uma visada impressionante, que tal

“restituição” só é possível a Schreber em decorrência do modo como seu sistema

delirante foi organizado a partir de um certo núcleo, a idéia de transformação em

mulher. A partir daí, grande parte das idéias hipocondríacas anteriormente descritas dão

lugar a esta nova organização do delírio.

14 Freud acredita que em uma paranóia o perseguidor é sempre do mesmo sexo. Tal observação, segundo ele, está em consonância com a hipótese de que a paranóia é uma tentativa de defesa contra um impulso homossexual.

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A idéia de ser transformado em mulher foi a característica saliente e o germe mais primitivo de seu sistema delirante. Mostrou também ser a única parte deste que persistiu após a cura e a única que pôde permanecer em sua conduta na vida real, após haver-se restabelecido. (Freud 1911: 31)

A loucura de Schreber, observa Freud, tem uma lógica, segue um “método”.

Uma rede complexa gira ao redor deste ponto de acabamento. Schreber acredita ter

acesso a revelações divinas e formula todo um sistema explicativo em torno dos nervos,

da hierarquia divina, das qualidades de Deus e da bem-aventurança.

Não são poucos os efeitos que o delírio de Schreber permite-lhe articular.

Podemos especialmente enfatizar que a assunção de uma posição feminina junto a Deus

(processo assintótico de emasculação) promove uma certa reconciliação com o Deus-

pai, além da possibilidade de responder pela procriação e de retomar o interesse pelas

coisas do mundo.

Freud novamente surpreende ao afirmar que aquilo que comparece como o

âmago do delírio de Schreber, qual seja, seu dever (missão) de ser transformado em

mulher para, nessa condição, conceber filhos de Deus, é exatamente uma tentativa de

cura que o permitirá viver de algum modo, privadamente, o seu delírio – delírio como

forma de reconstrução do mundo, de resolução, desde fora, de um conflito psíquico, o

que o permitirá inclusive retomar seu interesse social a ponto de adotar uma filha. Antes

de tal reconstrução, pela via do delírio, Schreber se encontrava em pleno fim de mundo.

Era impossível para Schreber resignar-se a representar o papel de uma devassa para com seu médico, mas a missão de fornecer ao Próprio Deus as sensações voluptuosas que Este exigia não provocava tal resistência por parte do ego. A emasculação não era mais uma calamidade; tornava-se ‘consonante com a Ordem das Coisas’ [...] Seu ego encontrava satisfação na megalomania, enquanto que sua fantasia feminina de desejo avançava e tornava-se aceitável. (Freud 1911: 57)

A partir destas elaborações, Freud vai procurar descrever o mecanismo de

formação do sintoma na paranóia, e o faz recorrendo à história do desenvolvimento

libidinal, inserindo aqui o elemento do narcisismo. Assim, a noção de narcisismo

primário já comparece no caso Schreber (1911) quando Freud fala do desenvolvimento

infantil, embora só venha a melhor desenvolvê-la em 1914.

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Neste sentido, o texto de Schreber é absolutamente precursor dos pontos a

serem desenvolvidos no texto do narcisismo, e que colocam a primeira tópica freudiana

em questão. As parafrenias ensinam a Freud como o eu pode ser objeto de investimento

libidinal. Até então, Freud trabalhava com a perspectiva de que o eu é um dos pólos do

conflito psíquico oposto à sexualidade, mas a psicose ensina a Freud como o eu pode

absorver todo o investimento libidinal. Freud percebe em Schreber que a libido que

abandonou os objetos da realidade migra para o eu, inflando-o. A megalomania é a sua

expressão.

É assim que, no artigo Sobre o Narcisismo: uma introdução (1914), Freud

coloca que a teoria da libido precisa se haver com os aspectos clínicos da demência

precoce ou esquizofrenia, bem como dos casos de paranóia. Se, na neurose, o

investimento libidinal retirado do mundo se volta para objetos imaginários

(investimento em representações fantasísticas do objeto), conservando, pela via da

fantasia, a ligação com pessoas e coisas, na psicose há uma retirada mais radical dos

investimentos libidinais no mundo15, e esta libido seria então reconduzida ao eu,

transformando-o num objeto. Este seria um aspecto comum tanto à psicose paranóica

quanto esquizofrênica, sendo que, na primeira, essa libido regrediria à fase do

narcisismo, ao passo que, na segunda, a regressão da libido seria mais primitiva,

retornando ao auto-erotismo.

A retirada da libido do mundo externo, chamada de “repressão propriamente

dita” (Freud 1911: 75), ocorre de modo silencioso. Dela, só temos notícia num depois,

através dos fenômenos que se seguem e que são índice do fracasso dessa repressão. A

formação delirante é um exemplo desse esforço da libido em retornar aos objetos.

Do exposto, podemos inferir que essa “unidade” que denominamos de eu

não é estável para todos16, nem tampouco está lá desde a origem. A experiência da

psicose nos oferece um ponto de mirada bastante especial de como o eu precisa ser

construído, e pode nem sequer vir a sê-lo. Uma série de fenômenos presentes na psicose

15 Freud, ao final do caso Schreber, sugere que este desligamento da libido pode ser total ou parcial, sendo este último caso o mais comum. 16 Mesmo na neurose esta suposta “unidade” está sujeita a desestabilizações. Sendo proveniente de uma dispersão original, o trabalho de unificação é contínuo, permanente e não está dado de uma vez por todas.

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sustentam essa afirmativa, tais como a fragmentação do corpo e a sensação de fim de

mundo.

Freud diz então que esse investimento no eu é libido e, como tal, é sexual,

podendo migrar para o delírio. Através da análise da frase básica “Eu o amo” e de seus

possíveis desdobramentos na trama da linguagem17, Freud reconhece no delírio uma

prova desse caráter sexual da libido. A produção de um delírio já estaria do lado de

uma tentativa de restituir a libido aos objetos, restabelecendo um laço com a realidade.

O delírio, portanto, tem um caráter restitutivo, como uma espécie de remendo, lá mesmo

onde houve uma ruptura da libido com os objetos do mundo. O delírio, pela produção

de uma significação, mantém esta função de suporte da cadeia representacional.

Trata-se, portanto, de uma formação secundária, com algumas características

especiais, dentre as quais vale destacar a produção de uma significação não articulada à

trama do Édipo/castração. Além disso, na medida em que o eu é tomado como objeto

libidinal, há uma espécie de “fusão”, de colagem entre o eu e o objeto, daí falarmos em

preservação da posição narcisista do eu. Cumpre ressaltar que esse objeto é fruto de um

processo de decomposição do eu, tornando-se uma espécie de duplo.

Percebemos que o delírio ocupa uma função muito particular, paradoxal até:

ele, ao mesmo tempo em que, através de significações inéditas, tenta produzir uma

separação entre sujeito e objeto, mantém a posição narcisista. Hanna (2000: 51-52),

marcando este paradoxo, insiste em que a função do destinatário é central por permitir

uma separação através da entrada em cena de um terceiro, que pode se opor a essa

obscura assimilação: “A manobra do analista deve se opor a qualquer assimilação do

sujeito e objeto – maldita e mortífera coincidência, que faz com que se apague qualquer

diferença entre ambos”.

É importante colocar que Freud vai tecer suas articulações sobre o caso

Schreber a partir de uma teoria do recalque, e no âmbito ainda de sua primeira tópica,

17 Freud (1911: 71) diz que as diferentes formas clínicas da paranóia – Delírio de Perseguição, Erotomania, Delírio de Ciúme e Megalomania - fundam-se na contradição da proposição única “Eu (um homem) o amo (um homem)” respectivamente em seu verbo, objeto, o sujeito ou na frase toda.

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do primeiro dualismo pulsional. Mesmo ressaltando que se trata de um recalque muito

especial, não estabelece aqui em que consiste tal especialidade.

Já aqui, entretanto, Freud fala de uma certa insuficiência do mecanismo da

projeção, insuficiência inclusive por não ser algo específico das psicoses: “Foi incorreto

dizer que a percepção suprimida internamente é projetada para o exterior; a verdade é,

pelo contrário, como agora percebemos, que aquilo que foi internamente abolido retorna

desde fora.” (Freud, 1911: 78)

O estatuto da projeção aqui se altera. Não se trata mais do mecanismo

causador da psicose, tal como colocada nas primeiras elaborações freudianas. Se é desde

fora que retorna o que foi abolido, não se trata de uma mera projeção. Não é possível

projetar algo que nem sequer chegou a ser inscrito, simbolizado.

Esse é um dos pontos que permitirá o desenvolvimento da noção de

Verwerfung, tal como retomada por Lacan. Para Lacan, em sua crítica do termo

projeção presente em O Seminário, livro 3 (1955-56), não é possível projetar algo que

fora alvo de uma verdadeira abolição simbólica.

Mendonça (1996), em uma análise textual das diversas terminologias

utilizadas por Freud para se referir ao mecanismo da psicose, destaca que nesta

passagem, ao referir-se àquilo que foi abolido, Freud utiliza o termo Aufgehobene, e não

Verwerfung. Tal escolha, segundo ela, pode ser atribuída ao fato de que Freud, ao dizer

que aquilo que foi abolido retorna desde fora, estaria se referindo mais propriamente ao

desligamento da libido dos objetos. A projeção, como vimos, perde o caráter central de

mecanismo constitutivo da psicose a que Freud lhe atribuíra no Rascunho H, adquirindo

aqui o caráter de uma tentativa de restabelecimento, diante do desinvestimento da libido

dos objetos do mundo externo:

O que se impõe tão ruidosamente à nossa atenção é o processo de restabelecimento, que desfaz o trabalho da repressão e traz de volta novamente a libido para as pessoas que ela havia abandonado. Na paranóia, este processo é efetuado por meio da projeção. (Freud 1911: 78)

Da leitura deste texto riquíssimo e de grande complexidade, pode-se destacar

desde logo como essencial não exatamente a articulação da paranóia com a defesa

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contra um desejo homossexual, ponto em que insistem os pós-freudianos e que o

próprio Freud aponta como insuficiente18, mas no que ele correlaciona o delírio com a

linguagem, ponto que Lacan retomará, a partir dos desenvolvimentos da Lingüística, e

que será posteriormente discutido. 19

Seguindo esta articulação com a questão da linguagem, Freud apresentará,

em seu artigo O Inconsciente (1915), uma distinção entre neurose e psicose baseada na

noção de representação, ou seja, no modo como ambas articulam os símbolos.

Exemplifica tal distinção através de uma paciente esquizofrênica de Tausk, que se

queixa de que seus olhos estariam virados, ao passo em que se refere ao namorado

através do termo Augenverdreher, traduzido por entortador de olhos, enganador.

Uma paciente de Tausk, uma moça levada à clínica após uma discussão com o amante, queixou-se de que seus olhos não estavam direitos, estavam tortos. Ela mesma explicou o fato, apresentando, em linguagem coerente, uma série de acusações contra o amante. ‘De forma alguma ela conseguia compreendê-lo, a cada vez ele parecia diferente; era hipócrita, um entortador de olhos (Augenverdreher tem o sentido figurado de enganador), ele tinha entortado os olhos dela; agora ela tinha olhos tortos; não eram mais os olhos dela; agora via o mundo com olhos diferentes’. (Freud 1915: 202)

Uma neurótica, em tal situação, diz Freud (1915), criaria símbolos que

incidiriam sobre as ligações entre as representações, de modo a preservar tanto as

representações de coisa quanto as de palavra. Já na psicose, a cena inconsciente seria

abolida, de modo que as palavras perderiam suas referências. A palavra torna-se então a

própria coisa, daí a paciente de Tausk acreditar que seus olhos estavam de fato tortos.

Prejudicada, digamos assim, a possibilidade de constituir representações, ou

seja, decaindo a linguagem de sua função de metaforização, a libido seria então

represada no eu, investida na imagem do corpo. É o que Freud (1915: 203) chama de

“fala do órgão”, que permite ao sujeito, pela via do investimento narcísico e a referência

ao corpo próprio, garantir alguma função da linguagem.

18 Esse equívoco promoveu e vem promovendo conseqüências desastrosas tanto teóricas quanto clínicas, dentre as quais o reducionismo de se confundir a clínica com psicóticos com uma pedagogização, no sentido de uma aceitação intelectual, por parte do psicótico, desta suposta “verdade”. Lacan critica duramente a hipótese freudiana de que a homossexualidade está na base da operação de rejeição, sendo ela apenas um dos efeitos da não-inscrição do psicótico na norma fálica. Para Lacan, portanto, a homossexualidade não está no nível da causa, mas dos efeitos. 19 Ver capítulo 2.

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1.3 PSICOSE E PERDA DA REALIDADE

Neurose e Psicose (1924a) e A perda da realidade na Neurose e na Psicose

(1924b) são dois textos escritos após as elaborações freudianas de O ego e o Id (1923).

Desde já se deve colocar que, dentre os pós-freudianos, de tal modo se deu ênfase a este

momento da teorização, que muito do contexto mais amplo da elaboração freudiana

concernente à psicoses foi relegada, em especial no que se refere à noção de Verwerfen.

Em Neurose e Psicose (1924a: 167-168), Freud fará a distinção entre estas

duas categorias clínicas tomando por base o tipo de conflito, entre o eu e o isso na

primeira e entre o eu e o mundo externo na segunda:

A neurose é o resultado de um conflito entre o ego e o id, ao passo que a psicose é o desfecho análogo de um distúrbio semelhante nas relações entre o ego e o mundo externo. [...] O ego cria, autocraticamente, um novo mundo externo e interno, e não pode haver dúvidas quanto a dois fatos: que esse mundo é construído de acordo com os impulsos desejosos do id e que o motivo dessa dissociação do mundo externo é uma frustração muito séria de um desejo, por parte da realidade - frustração que parece intolerável.

A imprecisão de tal passagem será posteriormente apontada por Freud, e

consiste no fato de que, tanto na neurose quanto na psicose, o vínculo com a realidade

está alterado, e não apenas na segunda, conforme indica a referida passagem, na qual

freqüentemente insistem os pós-freudianos. Dela, podemos, no entanto, ressaltar que em

uma psicose o mundo externo afeta, incide sobre o eu. Freud fala em uma frustração

intolerável, e podemos entendê-la como uma frustração diante da realidade da castração.

Esse rompimento do eu com o mundo externo que ocorre nas psicoses,

localiza Freud, é decorrente de uma obediência para com os desejos do isso. A nova

realidade criada será mais consonante com tais exigências.

Em A perda da realidade na neurose e na psicose (1924b), Freud afirma que

tanto na neurose quanto na psicose há um processo de perda da realidade, o que ele

descreve como “arrastar o eu para longe da realidade” (: 206), mas por mecanismos

diferentes em ambas:

Por conseguinte, a diferença inicial assim se expressa no desfecho final: na neurose, o fragmento da realidade é evitado por uma espécie de fuga, ao

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passo que na psicose ele é remodelado. Ou poderíamos dizer: na psicose, a fuga inicial é sucedida por uma fase ativa de remodelamento; na neurose, a obediência inicial é sucedida por uma tentativa adiada de fuga. Ou ainda, expresso de outro modo: a neurose não repudia a realidade, apenas a ignora; a psicose a repudia (Verleugnung) e tenta substituí-la. (Freud 1924b: 207)

Tanto na neurose quanto na psicose, o que foi reprimido ou rejeitado sempre

retornam, sendo que na primeira, o faz pela via do sintoma, como índice do fracasso do

processo de recalque. A fantasia na neurose, como vimos articulado em Freud desde o

conceito do Narcisismo, mediatiza o retorno da libido aos objetos, através das

representações fantasísticas de objeto. A significação gira em torno do falo, através da

articulação complexo de Édipo/complexo de castração.

Na psicose, por sua vez, o que estaria em jogo é a criação, pela via do

delírio, de um novo mundo frente à realidade, entendida aqui como realidade da

castração. Destacamos da citação acima que há dois tempos necessários no trabalho da

psicose até a construção de um delírio: o primeiro tempo, sobre o qual já discorremos,

diz respeito a essa retirada radical da libido dos objetos e seu retorno para o eu. O

segundo tempo já é o do trabalho de substituição da realidade, através da criação de uma

significação inédita.

Não se trata, pois, como até então Freud caracterizava a projeção, de, a partir

do interior do psiquismo, transpor para fora uma dada realidade interna. Ao invés disso,

uma vez eliminado, abolido o mundo subjetivo, o processo de reconstrução vai se dar

desde fora.

Podemos localizar no conceito de Verwerfung, traduzido para o português

como rejeição, um instrumento mais rigoroso no sentido mesmo de permitir à psicose

um estatuto específico: “Uma repressão é algo muito diferente de uma rejeição.” (Freud

1918: 88) Devemos, no entanto, ressaltar, que é somente quando lemos Freud com as

lentes de Lacan que conseguimos isolar mais precisamente a noção de Verwerfung

como referindo o mecanismo específico da psicose, pois em Freud esta tentativa não

chega a um acabamento mais preciso. A idéia que Lacan destaca como central na

rejeição é a vivência de exterioridade a partir da qual os fenômenos são vividos na

psicose.

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Freud vai retomar o conceito de Verwerfung em 1918, no caso do Homem

dos Lobos (História de uma Neurose Infantil), que lança mão do mecanismo da

Verwerfung, em um episódio ocorrido em sua infância, conhecido como a alucinação do

dedo cortado. Neste episódio, a representação inconsciente de coisa, a cena da

castração, foi suprimida inteiramente (uma parte de si próprio fora "cortada").

De repente, para meu inexprimível terror, notei ter cortado fora o dedo mínimo da mão (direita ou esquerda?), de modo que ele se achava dependurado, preso apenas pela pele. Não senti dor, mas um grande medo. Não me atrevi a dizer nada à babá, que se encontrava a apenas alguns passos de distância (...) Por fim, me acalmei, olhei para ele e vi que estava inteiramente ileso. (Freud 1918: 93)

A alucinação do dedo cortado veio exatamente fazer retornar, de fora, a cena

abolida, a realidade da castração. A Verwerfung é entendida aqui como um modo

peculiar de recusa da castração. É essa a via de análise que Lacan retomará para

desenvolver a sua noção de foraclusão, afirmando que o que é foracluído no simbólico

retorna no real, como se verá adiante. 20 Assim, aquilo que não foi simbolizado retornou

no registro da percepção como visto.

Tamanha a complexidade da questão da perda da realidade, que ela

acompanhará Freud em trabalhos bem posteriores, como O Fetichismo (1927) e Esboço

de uma Psicanálise (1938). Verleugnung, traduzido como recusa, renegação ou ainda

desmentido, é o termo que Freud lança mão para caracterizar o mecanismo fetichista, no

qual uma parte da realidade, no caso a ausência de pênis na mulher, é recusada. Este

mesmo termo é utilizado por Freud, em vários momentos, a partir dos anos 20, a

propósito das psicoses.

Convém ainda destacar que, ao longo de toda a obra freudiana, a realidade

da qual se trata é a realidade psíquica, ou seja, o registro sempre singular, construído por

cada sujeito, onde o que está em jogo é a die Sache (coisa representada), e não das

Ding, a Coisa para sempre perdida. Assim, não há como não se reportar à realidade da

castração, símbolo do que para o sujeito comparece como perda.

20 Ver item 3.1.

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Finalizaremos este capítulo com o destaque das linhas que consideramos

centrais na elaboração freudiana em torno do delírio:

- Trata-se de uma tentativa de explicar, dar sentido e consistência ao

que comparece para o sujeito como incidindo desde fora. Está, portanto, no campo

da significação, da busca de sentido diante do retorno daquilo que foi rejeitado;

- O preço deste tipo de solução é o de um comprometimento de uma

parte da realidade. Tal comprometimento o delírio tenta equacionar, através da

criação de uma nova realidade;

- O delírio mantém a posição narcisista do eu (eu=objeto), embora todo

o trabalho do delírio consista em afastar um pouco o eu deste lugar;

- Diante da retirada da libido dos objetos, o delírio é uma tentativa de

reinvesti-los (caráter de restituição, de prótese). Tal tentativa nem sempre é

exitosa;

- Há uma inequívoca relação entre o campo do delírio e o da linguagem.

- Freud localiza como um efeito possível do delírio a constituição de um

mundo habitável, através de uma certa reconciliação entre o sujeito e o mundo;

Como vimos, não são poucos os elementos presentes na obra freudiana em

torno da importância do delírio na paranóia. Esse lugar privilegiado, por si só, já

justifica a importância de nos determos neste tema. Há de se valorizar o trabalho que é

realizado por esta via, mesmo com a ressalva de que esta não é a única via de trabalho

possível em uma psicose. Trata-se, desde Freud, de uma tentativa de retorno da libido

aos objetos. O que permite que esta tentativa seja bem sucedida ou não? Esta é a

questão que nos relança paro estudo da metáfora delirante, a partir das elaborações

lacanianas. Que elementos precisam estar presentes para o sucesso da estabilização de

uma psicose pela via do trabalho do delírio?

Continuemos, pois, com Lacan, a questão formulada por Freud em Neurose

e Psicose (1924: 171) e que orienta todo este trabalho: “Qual pode ser o mecanismo,

análogo à repressão, por cujo intermédio o ego se desliga do mundo externo?”. E no que

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este entendimento nos importa para cernirmos a questão da função e os efeitos do

delírio para a psicanálise? Para encaminharmos esta questão, teceremos

preliminarmente algumas considerações sobre a dimensão metafórica enquanto tal.

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Capítulo 2 - CONSIDERAÇÕES SOBRE A DIMENSÃO METAFÓRICA

“A conseqüência é que a língua domina o pensamento, impondo-lhe a ordem do negativo, do absurdo, da metáfora. É aí que a ciência da linguagem relaciona-se com o registro do inconsciente.”

M. Pêcheux

Em psicanálise, um único tema é passível de múltiplos recortes. Inúmeras

são as vias de abordagem de uma questão, exigindo escolhas, por vezes mais ou menos

exitosas. Trata-se de uma teoria não acabada, sujeita aos impasses do caso a caso, numa

articulação onde a clínica incide sobre a teoria e vice-versa.

Com relação às psicoses, vimos que em Freud não encontramos uma teoria

pronta, um ponto de vista acabado, definitivo. Suas (re-)elaborações são permanentes,

impedindo uma leitura meramente evolutiva, onde a nova formulação suplante ou

elimine a anterior. Por esta razão, a experiência de leitura com cada texto nos lança

diante de reflexões não estanques, que retornam muitas vezes como impasses.

Ao nos propormos a uma leitura do delírio em psicanálise, estamos cientes

do risco, mas, ao mesmo tempo, da exigência de um recorte preciso. Risco porque a

escolha por uma via de leitura deixa inúmeras questões em aberto, o que é um índice da

complexidade de nosso campo. Exigência na medida em que a delimitação é condição

para que algo possa ser trabalhado, cernido.

A problemática da psicose comparece ao longo de todo o ensino lacaniano,

de Aimée a Joyce, requerendo um amplo e complexo aparato conceitual. Lacan, pela via

da psicose, se aproxima da psicanálise, em sua tese de doutorado de 1932, endereçada

ao saber médico-psiquiátrico. O tema lhe acompanha a propósito de sua teorização sob

as incidências do campo da fala e linguagem sobre o sujeito, sendo ainda retomado, ao

final de seu ensino, na discussão sobre as diversas saídas possíveis diante da

inconsistência do campo do Outro, que se coloca para todo e qualquer falante.

Para os fins deste trabalho, cujo enfoque é a estabilização pela via do

trabalho do delírio, nos ocuparemos, especialmente, das formulações de Lacan na

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década de 50, em torno da relação do sujeito com o significante, com alguns

apontamentos sobre a questão da estabilização pela via da localização de gozo.

Pensamos que esta abordagem nos é fértil para pensar da psicose a sua fenomenologia,

bem como sua estrutura, desencadeamento e a possibilidade de estabilização que é alvo

de nossa pesquisa.

Para tanto, balizaremos algumas articulações fundamentais para a

delimitação do campo da psicose na obra lacaniana. Dentre os pontos-chave,

destacaremos inicialmente a formulação lacaniana em torno do esquema L, para, em

seguida, nos determos em torno da foraclusão do Nome-do-Pai, nos sendo exigido, para

este fim, retomarmos a questão do complexo de Édipo e da metáfora paterna. A partir

daí, recorreremos aos esquemas R e I para pensarmos no trabalho de estabilização da

realidade que o delírio pode vir a promover, como solução elegante que é.

Outro ponto-chave desta dissertação será a noção de metáfora delirante, na

medida em que procuraremos balizar diferenças e aproximações entre esta e o delírio. O

conceito de ponto de basta nos será, neste aspecto, bastante útil. Adentraremos, também,

na questão do estatuto do Outro na psicose de Schreber, a fim de pensarmos no que uma

estabilização pode alterar a posição do psicótico em relação ao Outro.

Lacan precisa operar deslocamentos decisivos e em nada evidentes para que

possa se orientar em uma abordagem a partir da lógica do significante e de suas leis.

Este passo será repleto de conseqüências, desdobramentos clínicos.

Ocuparemo-nos, brevemente, apenas título de introdução deste capítulo, em

localizar o terreno onde nosso recorte conceitual está inserido, para, em seguida, nos

determos nos conceitos-chave de nossa dissertação.

2.1 DAS RELAÇÕES DE COMPREENSÃO À LÓGICA DO SIGNIFICANTE

O encontro de Lacan com a psicanálise se dá na década de trinta, num

contexto de forte controvérsia no meio psiquiátrico, onde as diferentes escolas discutiam

questões relativas à etiologia dos transtornos mentais.

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O debate, então, girava em torno da organogênese, da qual Clérambault era

um representante, ou psicogênese enquanto fator determinante, esta sustentada, dentre

outros, por Kraepelin, Seriux e Capgras. Em sua tese de doutoramento, Lacan divide a

tradição psiquiátrica nestes dois grupos opostos, e se presta a um exame cuidadoso de

ambos.

Kraepelin houvera agrupado os sintomas observados em grandes entidades

clínicas, sistematizando assim as unidades nosológicas através de um método que

consistia na observação dos traços mais gerais observados nos diferentes casos, com a

eliminação do que cada caso trazia de peculiar. Desse modo, acreditava ele, seria

possível estabelecer, para cada grupo, a sua evolução, bem como sua determinação

causal.

É inicialmente a este método utilizado por Kraepelin21 que Lacan vai se opor.

Em sua tese de doutorado em psiquiatria intitulada Da psicose paranóica em sua

relações com a personalidade (1932), Lacan questiona este modo de pesquisa

psicopatológica, afirmando que abrir mão dos traços específicos de um caso é prescindir

do que ele traz de mais essencial22.

Na referida tese, ao invés de discutir uma grande quantidade de casos

clínicos, Lacan vai optar pelo estudo de um único caso, no intuito de chegar a um

diagnóstico e de apreender suas determinantes.

É neste ponto, o da causação das psicoses, que o debate organogênese versus

psicogênese se coloca para Lacan. Seu rompimento com as teorias psiquiátricas

clássicas pode ser localizado em uma recusa em pensar a psicose a partir de um déficit,

seja ele de natureza orgânica (psiquiatria organicista) ou psíquica (psiquiatria

constitucional).

21 É importante precisar que, apesar de suas críticas a Kraepelin, Lacan reconhece o valor, segundo ele “preponderante” (1932: 54) da nosografia kraepeliniana. Não é à toa que abre sua tese de doutorado pondo em discussão a divisão kraepeliniana entre demências e psicoses. Soma-se a isso o fato de que há em Kraepelin uma leitura da paranóia referida às relações com a personalidade, e não com um déficit observável, uma debilidade orgânica. Ambos, no entanto, se distanciam na medida em que, para Kraepelin, haveria na paranóia uma “disposição deficiente em relação à luta vital (:50), ou seja, para Kraepelin há um déficit na paranóia, mesmo que este déficit não seja orgânico. 22 Já encontramos, neste ato, a rubrica do Lacan psicanalista.

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Lacan realiza, já na tese de 32, uma leitura muito particular da noção de

compreensão, advinda inicialmente do trabalho de Jaspers, abrindo a possibilidade de

leitura do fenômeno clínico não referida às concepções deficitárias da organogênese e

da psicogênese, mas da relação do psicótico com a linguagem, neste momento pensada

em termos de relações de sentido (campo das significações).

Lacan posteriormente se afasta da noção de compreensão, e este ponto ele

faz questão de destacar, a propósito de seu seminário sobre as psicoses, onde afirma:

“Há muito tempo que eu não fazia diferença entre a psicologia e a fisiologia.” (1955-56:

24). Como conseqüência, diz Lacan: “o segredo da psicanálise é que não há

psicogênese.” (: 16)

A partir do exame do caso de Marguerite Anzieu, Lacan chega à paranóia de

autopunição como categoria diagnóstica. Não está nos nossos objetivos discorrer sobre

este caso, mas vale pontuar que o desejo de autopunição mostra de forma veemente que

o sujeito nem sempre quer seu próprio bem, o que levará, adiante, a questionar a

possibilidade de basear a clínica numa relação de compreensão.

Eis o impasse que o fará, posteriormente, reconhecer Clérambault como o

seu único mestre em psiquiatria. Tal se deve ao seu conceito de automatismo mental,

onde se põe em questão aquilo que incide sobre o sujeito como pura influência externa,

ou seja, aquilo que para ele é percebido como vindo de fora23.

Clérambault toma tal conceito a partir de uma referência do organicismo ao

qual se filia, onde o funcionamento psíquico não é mais passível de um controle

voluntário do sujeito, sendo manifestação direta de um problema orgânico. Lacan, por

sua vez, o tomará a partir de uma outra referência, onde o automatismo é índice da

incidência de algo que o sujeito percebe como pura exterioridade, como vindo de fora:

Autopunição e divisão do sujeito. Lacan, por essa via, se aproxima da teoria

psicanalítica, mais precisamente da segunda tópica freudiana:

Foi o que levou Lacan para a psicanálise. Encontrou na obra de Freud dos anos 20 o conceito de supereu como instância do mecanismo de autopunição. E considerou o caso de sua paciente como o protótipo de uma paranóia de autopunição, o inverso da de reivindicação. Foi esta sua última

23 Vimos como Freud articula esta questão, e retomaremos o tema adiante, com Lacan.

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tentativa na psiquiatria. O importante é a referência ao conceito de supereu, que comporta, na própria análise, a ênfase da divisão do sujeito: trabalha contra si próprio, não sendo uma unidade homogênea. (Miller 1997: 132)

Convém situar este movimento de Lacan que será conhecido como retorno

ao sentido de Freud e que tem como marco o trabalho intitulado Função e campo da

fala e da linguagem em psicanálise (1953), também conhecido como Discurso de

Roma. Retornando a Freud, Lacan faz incidir sua crítica às psicologias do ego, leitura

privilegiada pelos anglo-saxônicos e norte-americanos. Tal leitura, conforme assinala

Figueiredo (1997), é inaugurada por Hartmann através de seu livro ‘Psicologia do eu e o

problema da adaptação’ (1939), que desenvolve a proposta de Anna Freud de O Ego e

seus mecanismos de defesa (1936)24, e se baseia numa interpretação da segunda tópica

freudiana que concebe o eu como a instância central da personalidade, com uma função

de síntese, de adaptação à realidade externa, de base eminentemente racionalista e

evolucionista.

Os textos freudianos vinham sendo, de fato, relegados a um esquecimento

em prol da leitura de autores pós-freudianos, e tal esquecimento, ressalta Julien (1993),

relacionava-se ainda com a tentativa de alguns psicanalistas europeus de fugir do

nazismo, refugiando-se nos Estados Unidos.

Os emigrados, querendo ser assimilados, a qualquer preço, à cultura americana, esqueceram todos a mensagem freudiana e seu próprio passado cultural e político de europeus, passado que veiculava esta mensagem [...] Esta captura com o passado levou estes “pássaros migratórios” a se quererem diferentes de seus colegas europeus, em seguida, assumindo seus lugares na I.P.A., no pós-guerra, que os acolheu, doarem, em sua volta à Europa, a Ego-psychology. Belo exemplo de ida e volta: sem o saberem, suas respostas à perseguição foi a promoção de um eu forte e da estratégia de desmoronamento das defesas do analisante. (Julien 1993: xi-xii)

Não se trata, entretanto, segue o autor, de se queixar desse esquecimento,

mas de levá-lo em conta para retornar ao sentido da descoberta freudiana, o

inconsciente, e assim procurar os pontos-cegos presentes nos textos freudianos.

24 Observe-se que esta obra data do mesmo ano em que Lacan teoriza sobre o Estádio do Espelho.

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Desse modo, o retorno a Freud não se dá por uma simples volta, onde o texto

lacaniano substitui o freudiano, mas pela insistência no questionamento, sustentando o

lugar de abertura para o saber inconsciente.

Lacan situa o ano de 1953 como o início de seu ensino, com o texto Função

e campo da palavra e da linguagem em psicanálise, de modo que sua teorização

anterior situa-se, em relação a seu ensino, como antecedente. Este é ainda o ano da

primeira cisão do movimento psicanalítico francês25.

Assim, tanto a tese de 1932 sobre a psicose paranóica quanto a teorização

sobre o Estádio do Espelho, esta última sendo a sua primeira incursão no campo

psicanalítico, situam-se como antecedentes. Vale lembrar que a proposição “O

inconsciente estruturado como uma linguagem” também é introduzida em 1953, bem

como os três registros, Imaginário, Simbólico e Real.

Este período de vinte anos, que vai do ano de 1932 a 1953, designado por

Lacan como antecedente de seu ensino, tem como foco o registro que ele posteriormente

designará de Imaginário, baseado na leitura da segunda tópica freudiana.

Neste período, Lacan escreve ainda um importante trabalho para o estudo

das psicoses, Formulações sobre a causalidade psíquica (1946), onde reitera a sua

crítica ao organicismo, mais especificamente ao organo-dinamismo de Henri Ey. É

bastante claro neste texto sua recusa a uma visão negativa da doença mental, bem como

suas críticas à localização da gênese dos distúrbios no funcionamento interno do

organismo.

Lacan aqui refere a loucura ao ser do homem, reportando seus fenômenos ao

campo do sentido, da significação e manifestando-se contra as perspectivas de leitura do

delírio em termos de erro ou déficit das funções psíquicas. A causalidade da loucura é

atribuída a uma “insondável de cisão do ser”. (1946: 179)

No que tange aos fenômenos da loucura, alucinações, interpretações e

intuições, Lacan, para além de uma análise da sensorialidade ou da crença aí implicadas,

põe em relevo, neste texto, o fato de que estes fenômenos visam o sujeito:

25 A segunda cisão dar-se-á em 1963, e no ano seguinte, 1964, Lacan funda a Escola Freudiana de Paris.

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(...) eles o desdobram, respondem-lhe, fazem-lhe eco ou lêem nele, assim como eles o identifica, interroga, provoca e decifra. E, quando vem a lhe faltar todo e qualquer meio de exprimi-los, sua perplexidade nos evidencia nele, mais uma vez, uma hiância interrogativa, ou seja, toda a loucura é vivida no registro do sentido. (Lacan 1946: 166)

Outro ponto de relevo sustentado neste texto, e retomado ainda no Discurso

de Roma (1953), é a idéia de que na loucura há um desconhecimento da dialética do ser

(: 172). Daí, segundo Lacan, o louco querer impor a lei de seu coração26 à desordem do

mundo, não reconhecendo esta desordem como sua.

Este ponto nos interessa na medida em que, por esta via, Lacan vai dizer que

na loucura há uma estase do ser em uma “identificação ideal” (: 173), ou seja, não há

mediação nesta identificação. Mesmo sem recorrer ao Édipo, percebemos que nesta

passagem Lacan antecipa a idéia de que falta um terceiro termo que promova uma

mediação nesta identificação, produzindo o que ele denomina de “enfatuação do

sujeito”. (: 171)

Na teoria sobre a psicose inaugurada na década de 50, Lacan se ocupa em

pensar a psicose pelo viés da linguagem, da relação do sujeito com o significante, da

posição do sujeito diante do Outro, e nesse campo buscar para a psicose a especificidade

de sua estrutura. Tal especificidade Lacan a localiza não enfatizando uma suposta

tendência homossexual na paranóia, como insistiam os pós-freudianos, mas num tipo

peculiar de relação com as leis do significante, referidas à questão da castração.

A leitura a partir da lógica do significante é um modo privilegiado de

distinção entre aquilo que pertence ao campo de leitura psicanalítica e aquilo que diz

respeito ao saber psiquiátrico (talvez mais propriamente neurológico) ou às psicologias

do ego. Isto porque permite pensar o fenômeno psicótico a partir da estrutura que o

caracteriza, da posição do sujeito no inconsciente, ao invés de defini-lo a partir de uma

extensa e complexa rede nosológica.

Não se trata de desprezar da psicose a sua fenomenologia, mas de distinguir

(e não simplesmente de confrontar), e daí poder tirar conseqüências teórico-clínicas, em

26 “(...) seu ser está encerrado num círculo” (: 173). Lacan remete esta fórmula a Hegel.

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que consiste o sintoma psicanalítico. Este é referido, necessariamente, a uma escuta do

sujeito, e não a categorias fixas do que seria normalidade – pattern27 -, que como tal

desprezam a relação do sujeito com o significante.

Dizer da psicose implica, pois, em recolocar a problemática do sujeito, não

mais referido ao campo da compreensão, de uma semântica referida à significação, mas

ao campo do significante, de suas leis e, mais tarde, como veremos, ao campo do gozo.

É sob esta ótica que Lacan vai situar a estrutura da psicose, bem como sua

possibilidade de tratamento. Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56) e no texto

De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), os

elementos princeps dessa nova articulação são cernidos, sob o suporte dos instrumentos

da Lingüística Moderna de Ferdinad de Saussure e R. Jakobson, a partir dos quais

Lacan retoma as Memórias de Daniel Paul Schreber.

Situar as psicoses a partir do terreno da linguagem - sendo esta um modo

específico de relação do sujeito com o significante e com a realidade da castração - é um

passo absolutamente fundador, tanto por permitir uma leitura da psicose por um viés

que lhe seja próprio, estrutural, específico, quanto por inaugurar uma outra perspectiva

sobre o desencadeamento e as possibilidades de estabilização nesta estrutura.

Para acompanharmos o modo como Lacan articula o mecanismo da psicose a

partir de sua discussão sobre o significante, apresentaremos as articulações entre os

campos do simbólico e do imaginário presentes no Esquema L para, a partir daí,

introduzirmos a função do Nome-do-Pai.

2.1.1 O esquema L

Lacan apresenta seu esquema L, também conhecido como ‘esquema da fala

e da linguagem’ em o Seminário, livro II: O eu na teoria de Freud e na técnica da

psicanálise (1954-55), no capítulo XIX. Nessa ocasião, anuncia-o como um “pequeno

27 Lacan utiliza este termo em O Seminário, livro III: as psicoses, referindo-se a determinados modos de comportamento. (1955-56: 28)

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esquema para ilustrar os problemas levantados pelo eu e pelo outro, pela linguagem e

pela fala” (: 306). Este esquema é retomado em diversas ocasiões, dentre as quais, para

modificá-lo, em O Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), a propósito das

alucinações, e em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose

(1957-58a), onde este é inserido no esquema R28.

No esquema L, Lacan articula uma topologia estrutural do sujeito, ordenada

a partir de lugares que mantêm entre si determinadas relações, indicadas pela direção

das setas. Quatro são os elementos deste esquema: S (sujeito), a’ (outro), a (eu) e A

(Outro), que se distribuem em torno de dois eixos, o eixo simbólico (relação Sujeito e

Outro) e o eixo imaginário (relação entre o eu e o outro, semelhante), referente ao

estádio do espelho.

Figura 1 – Esquema L

O sentido das setas nos indica que o sujeito se dirige ao seu semelhante, mas

recebe do Outro sua mensagem de forma invertida (S−a’--a). De A, lugar da linguagem,

Outro antecedente lógico do sujeito, as setas partem, mas não chegam. Desse modo,

Lacan articula a estrutura de reconhecimento na neurose, a partir da relação do sujeito

com o Outro.

Como dissemos, o esquema L é retomado no seminário sobre as psicoses a

propósito da alucinação auditiva verbal, quando Lacan comenta o caso Porca! Trata-se

de um caso examinado por Lacan em uma apresentação de pacientes, onde a paciente

28 O esquema R será apresentado no item 2.2.

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encontrava-se junto a sua mãe em um delírio a dois. Ambas haviam fugido da casa de

seu marido, que, segundo o relato, pretendia cortar-lhe em rodelas.

A paciente queixa-se a Lacan de ter encontrado o amante de sua vizinha no

corredor e de tê-lo ouvido proferir-lhe uma injúria. Antes de escutar a injúria, ela

mesma teria pronunciado a frase: ‘Eu venho do salsicheiro’. A paciente então revela o

que ouviu: “porca” foi a injúria a alucinatória.

Lacan dirá, então, que o a minúsculo é o senhor que ela encontra no

corredor (não mais o eu, moi), e que o a’ é a pessoa que nos fala e que falou com o

delirante, o que diz “Eu venho do salsicheiro” (1955-56: 64). Ele complementa ainda

que o S neste exemplo é de quem se diz “Eu venho do salsicheiro”, e que não há A

maiúsculo. Na alucinação auditiva verbal29, A estaria excluído e sua existência seria

indicada pela forma de alusão.

Observamos, a partir deste exemplo, que Lacan faz uma inversão entre os

elementos do eixo imaginário, a e a’, tal como ele os concebe em O seminário, livro II

(1954-55), embora reproduza a grafia do esquema L, na lição inaugural deste seminário

(1955-56: 22), tal como o fez em sua apresentação no seminário II.

Podemos então supor que esta mudança de perspectiva com relação ao eixo

imaginário se deu no interior do próprio seminário III (1955-56), mudança esta

corroborada na Questão preliminar (1957-58a). Assim, o eu será considerado como a’ e

o outro como a, evidenciando, acreditamos, a importância do outro na formação do eu.

Voltando ao exemplo da alucinação auditiva verbal, Lacan afirmará que,

para esta mulher, o circuito se fecha no eixo imaginário. Ele faz uma distinção entre

neurose e psicose com base em duas maneiras possíveis de falar de S: “ou dirigindo-se

verdadeiramente ao Outro e recebendo sua mensagem sob a forma invertida, ou

indicando sua direção, sua existência, sob a forma da alusão” (1955-56: 64).

Este Outro, portanto, Lacan o enfatiza, precisa ser instituído como tal

através de seu reconhecimento. Na neurose, há uma estrutura de reconhecimento do

Outro para além da relação imaginária. O Outro é instituído pelo sujeito, reconhecido

29 Ressalte-se que não se pode afirmar a generalização desta afirmativa sobre a alucinação auditiva verbal para a psicose como um todo.

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como tal, e no que é reconhecido pode reconhecer o sujeito, numa relação de

reciprocidade. Esta estrutura de reconhecimento é, como tal, inconsciente, e aponta para

um além da relação imaginária, na medida em que visa o reconhecimento do Outro.

Lacan exemplifica esta estrutura de reconhecimento através dos exemplos

do ‘Tu és minha mulher’, ou ainda ‘Tu és o meu mestre’, que implicam,

reciprocamente, em um ‘Eu sou o teu homem’, ou ‘Eu sou teu discípulo’.

Já na alusão, Lacan, neste seminário, fala de uma “exclusão do Outro” (:

64):

Na fala delirante, o Outro está verdadeiramente excluído, não há verdade atrás, há tão pouca que o sujeito não põe nisso nenhuma verdade, e que fica em face desse fenômeno, bruto no fim das contas, na atitude da perplexidade. É preciso muito tempo antes que ele tente restituir em torno disso uma ordem a que chamaremos a ordem delirante. (1955-56: 65, grifos nossos)

Esta retomada do esquema L nos interessa, como depreendemos da citação

acima, na medida em que Lacan, a partir dele, enfatiza a ordem delirante como uma

tentativa, a posteriori, de restituição.

Na alucinação, tal como Lacan a articula neste momento, temos o retorno,

sob a forma de significantes não-encadeados (fora da cadeia), de algo que é da ordem do

significante foracluído, índice da dissolução do vínculo linguagem-lei:

No lugar em que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito sem dele se desligar pelo travessão da réplica. (Lacan 1957-58a: 541)

Trata-se, portanto, de uma ruptura com o sistema de linguagem30, muito

embora, como lembra Muñoz (2005: 92), possa indicar uma nomeação para o ser do

sujeito. Já o delírio comporta um trabalho, uma tentativa de encadeamento. Veremos

mais adiante como este trabalho se dá.

30 Dizer que há, na alucinação, uma ruptura com o sistema de linguagem é diferente de dizer que há uma ruptura com a linguagem enquanto tal.

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É importante ressaltar, quanto a esta idéia de exclusão do Outro na psicose,

que na Questão preliminar (1957-58a), Lacan retoma o esquema L e se retifica,

afirmando que o que está excluído da psicose não é o Outro como tal, e sim o

significante do Outro como lugar da lei.

Lacan, neste escrito, se refere à psicose como um “processo pelo qual o

significante ‘desatrelou-se’ no real, depois de declarada a falência do Nome-do-Pai –

isto é, do significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do

outro como lugar da lei.” (Lacan 1957-58: 590)

Esta afirmação nos permite nuançar uma distinção entre simbólico e Nome-

do-Pai. Podemos ler nessa passagem uma certa precisão que distingue o Outro do

significante e Outro como lugar da lei. Na psicose, não teríamos essa duplicação do

Outro promovida pela inscrição do Nome-do-Pai.

Nessa perspectiva, o Outro está presente como lugar do significante, ainda

que esse Outro não seja marcado pelo significante da lei. Trata-se, portanto, da presença

de um Outro consistente, intrusivo, sem barra.

No próprio seminário III (1955-56: 52), Lacan diz que “desde que o sujeito

fala, há o Outro com A maiúsculo”. Não restam dúvidas, portanto, de que para Lacan há

Outro na psicose, embora este Outro não esteja submetido à lei fálica. Trata-se de uma

estrutura que mantém com o Outro uma relação distinta daquela mantida na neurose.

Vejamos o esquema L com a nova grafia:

Figura 2 – Esquema Z

Entre a e a’ há o plano do espelho. O eu está em relação direta com o outro

imaginário, e tal relação Lacan a situa através de uma lógica de exclusão, por si mesma

alienante, alienação mortífera:

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Se em toda relação, mesmo erótica, com o outro, há algum eco dessa relação de exclusão, é ele ou eu, é que, no plano imaginário, o sujeito humano é assim constituído de forma que o outro está sempre prestes a retomar seu lugar de domínio em relação a ele (...) é por isso que todo equilíbrio puramente imaginário com o outro está sempre condenado por uma instabilidade fundamental. (Lacan 1955-56: 111)

Seguindo Lacan, para impedir o conflito, a ruína resultante desta relação, “é

preciso uma lei, uma cadeia, uma ordem simbólica, a intervenção da ordem da palavra,

isto é, do pai” (: 114). Esta ordem, longe de ser natural, precisa ser realizada, superposta

através de um trabalho a posteriori.

Este terceiro mediador e pacificador funciona aí como um “modelo de

harmonia” (: 114), regulando, através do encadeamento metafórico, os significantes que

incidem sobre o sujeito. Analisaremos agora este terceiro elemento e suas funções.

2.2 A METÁFORA E A DIMENSÃO METAFÓRICA DO PAI

A metáfora não é a coisa no mundo das mais fáceis de falar.

Jacques Lacan

Antes de entrarmos mais propriamente na função metafórica do pai, através

da qual discutiremos a metáfora paterna e sua foraclusão, julgamos pertinente nos

atermos nesta idéia de metáfora, na medida em que, no contexto de nossa discussão, o

estatuto da metáfora adquire lugar central. Esta noção é essencial aos desdobramentos

de nosso trabalho, para que possamos circunscrever em que consiste uma metáfora

delirante, que processo peculiar de produção de sentido é este.

Convém, pois, traçar algumas linhas sobre esta noção dentro de seus

desdobramentos na teoria lacaniana, tentando balizar o que Lacan, neste momento de

seu ensino, entende como metáfora e em que concepção de metáfora ele se apóia e se

sustenta.

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O substantivo metáfora, do grego metaphorá, é definida, pelo dicionário

Aurélio, como o “tropo que consiste na transferência de uma palavra para um âmbito

semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se fundamenta numa relação de

semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado; translação.” (: 1126)

Depreendemos, desta definição, que a idéia de metáfora, ao menos em sua

origem, sustenta-se na possibilidade de um processo comparativo entre os termos,

fundado em relações de semelhança. O termo translação, retirado do dicionário,

conserva esta idéia de transposição, mudança do sentido original, ou melhor, do campo

semântico original.

Dentro dos recursos estilísticos, a metáfora é considerada um recurso

semântico, que, também pela definição do dicionário, é o “estudo das mudanças ou

translações sofridas, no tempo e no espaço, pela significação das palavras;” ou ainda “o

estudo da relação de significação nos signos e da representação do sentido dos

enunciados.” (: 1565)

A definição do dicionário, entretanto, oculta o caráter problemático deste

conceito, tanto no campo do debate filosófico (a metáfora é ou não um obstáculo ao

conhecimento, à filosofia em especial?) quanto no campo lingüístico (a metáfora porta

um sentido literal? Este sentido é aberto ou não?) 31.

Não é objeto de nosso estudo a dissecção deste conceito nos campos da

filosofia e da lingüística, mas vale pontuar que grande parte da tradição filosófica

ocidental é tributária da concepção de metáfora sistematizada por Aristóteles (1997

XXI: 42), que assim a define: “A metáfora é o transporte para uma coisa de um nome

que designa uma outra coisa, transporte de gênero para espécie, ou de uma espécie para

gênero, da espécie para a espécie ou segundo a analogia.”

Interessa-nos apontar que, se, para Aristóteles, a metáfora é definida como

um tipo de analogia, onde o sentido novo produzido pela metáfora aponta para um

campo semântico original, para Lacan, ao contrário, e esta é a grande subversão que ele

opera nesta noção, a metáfora comporta um verdadeiro salto, uma interrupção, um corte

nas proporções entre os termos.

31 Estas questões são desenvolvidas, de maneira sucinta, na tese de Rego (2005).

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Sua concepção de metáfora rompe com a linearidade da definição

Aristotélica, na medida em que desamarra o sentido produzido pela metáfora de um

significado original, referido a um campo semântico de base: “(...) a metáfora se coloca

no ponto exato em que o sentido se produz no não-senso (...)” (Lacan 1957: 512)

Roman Jakobson é uma referência fundamental para esta concepção de

metáfora articulada por Lacan. Embora este lingüista russo se volte para o estudo da

língua enquanto possibilidade de construção de sentenças que objetivem a comunicação,

ele considera que o ruído, a não comunicação, também são possibilidades do dizer,

abrindo margens para o que Lacan articula como “o ponto em que a ordem da língua se

rompe” (Mariani 2004: 58).32

Jakobson (1969), nessa perspectiva de consideração sobre o aspecto do

ruído presente na linguagem, volta-se para o estudo das afasias, que analisa a partir das

relações sintagmáticas e paradigmáticas desenvolvidas por Saussure, bem como do

funcionamento da metáfora e da metonímia.

No artigo Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia (1969),

Jakobson propõe uma classificação das perturbações afásicas tomando por base os

aspectos da linguagem prejudicados nos diferentes tipos de afasia, o que requer uma

análise profunda da estrutura da linguagem.

O autor se questiona, então, sobre o objeto de estudo da lingüística, que em

sua opinião deve contemplar a linguagem em sua “dissolução”, as perturbações da

linguagem, discussão que até então passava ao largo das ciências da linguagem.

Para Jakobson, os métodos lingüísticos podem iluminar os dados clínicos

sobre as afasias, e estas, por sua vez, têm algo a ensinar sobre a linguagem. E isto na

medida em que as afasias demonstram exatamente esse curto-circuito na dimensão

comunicativa da linguagem, decorrente de um desarranjo nas relações sintagmáticas ou

paradigmáticas.

No ‘distúrbio de similaridade’, temos um desarranjo na ordem das relações

de seleção e substituição, ficando comprometida a dimensão metafórica. Nos ‘distúrbios

32

Vale situar que, em Jakobson, esta abertura para a dimensão do ruído, da não comunicação, é relativa à influência da poética em seu percurso (Jakobson era amigo dos poetas Maiacóvski e Khlebnikov), o que traz conseqüências para sua elaboração sobre a língua. Para o autor, “só é possível pensar a língua a partir do momento em que ela integra a possibilidade da poesia” (Mariani 2004: 60). Esta perspectiva é duramente criticada pela perspectiva lingüística norte-americana.

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de contigüidade’, por sua vez, o desarranjo é metonímico, da ordem da combinação, do

alinhamento das palavras.

Convém sublinhar que Jakobson apóia como fundamento dos processos

metafórico e metonímico as noções de sintagma e paradigma presentes no texto de

Saussure, aos quais Lacan, por sua vez, remete à condensação e ao deslocamento

presentes no texto freudiano.

Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), Lacan faz referência

exatamente aos estudos de Jakobson sobre as afasias, em sua dimensão de falha, de

tropeço no processo comunicativo. É somente a partir deste tropeço que o sentido

metafórico emerge.

Nesta mesma perspectiva, em A metáfora do sujeito (1961), Lacan se

endereça de modo contundente a Chaim Perelman, defensor da retórica argumentativa,

que sustenta a aproximação da metáfora à analogia. Lacan, neste texto, se refere à

metáfora como “formação do inconsciente por excelência” e “ponto mais ardente do

pensamento (: 903), assentada numa dimensão de injúria, de violência, irredutível a uma

mera linearidade.

Percebemos aqui o quanto Lacan é fiel à idéia freudiana da inadequação

entre a palavra e a coisa. É em virtude mesmo de tal inadequação que a verdade não

pode ser dita toda, de modo que o campo metafórico se abre a partir da possibilidade de

corte para com o sentido anterior. Veremos adiante como esta concepção de metáfora

serve a Lacan na formulação do seu conceito de metáfora paterna.

No texto A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud

(1957: 519), Lacan apresenta a fórmula da metáfora em geral, alçando a metáfora à

condição de possibilidade do advento da significação: “O sinal +, colocado entre

parênteses, manifesta aqui a transposição da barra - , bem como o valor constitutivo

dessa transposição para a emergência da significação.”

f (S’) S ≈ S (+) s

S

Nesse texto, Lacan (1957: 510) faz uso de um exemplo de metáfora, que já

havia sido citado em o Seminário, livro III: as psicoses, extraído do poema de Victor

Hugo, denominado “Booz erdomi”: “Seu feixe não era avaro nem odiento.”

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Para a personagem bíblica Booz, na releitura feita pelo poeta, a paternidade

era tida como improvável em virtude da idade avançada. Contra as probabilidades, no

entanto, Booz engravida sua mulher Ruth. Vejamos este exemplo de metáfora recolhido

por Lacan:

S . $’ → S I

$’ x s

S: feixe

S’: Booz (elemento recalcado em decorrência da substituição significante)

x: significação enigmática, desconhecida

s: significação induzida pela metáfora, o falo.

I: inconsciente

Percebemos como a mudança de sentido se produz em decorrência da

substituição significante, no caso do exemplo de Lacan, Booz por seu feixe. O efeito

metafórico, no caso a paternidade de Booz, brota entre dois significantes (feixe e Booz),

e um sentido novo se dá:

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substitui o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (Lacan 1957: 510, grifos nossos)

A mesma lógica de substituição significante é encontrada na fórmula da

metáfora paterna, tal como apresentada em De uma questão preliminar a todo

tratamento possível da psicose (1957-1958a: 563):

Nome-do-Pai . Desejo da Mãe →→→→ Nome-do-Pai A

Desejo da Mãe Significado para o sujeito Falo

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Nesta fórmula, o Nome-do-Pai está para o desejo da mãe, assim como o

desejo da mãe está para o significado para o sujeito. A significação do falo é

precisamente o efeito de sentido decorrente da substituição significante, onde o desejo

da mãe é substituído pelo Nome-do-Pai. Por essa via, um Nome é dado aos

deslocamentos da mãe. Instaura-se, assim, a dimensão metafórica do pai.

Essa dimensão simbólica do pai – pai como símbolo -, Lacan a localiza no

terreno mesmo da obra freudiana, no “caráter inevitável da intuição freudiana” (1955-

56: 245), no mito freudiano do parricídio, ato de assassinar e devorar o pai, índice da

interiorização da lei e da passagem para a cultura.

Lacan se utiliza desta referência freudiana apoiado na hipótese do

inconsciente estruturado como uma linguagem, a partir dos novos desdobramentos do

pensamento que lhe é contemporâneo, exteriores à psicanálise, tais como,

especialmente, a Lingüística de Saussure e Jakobson e a Antropologia de Lévi-Strauss.

Desse modo, sua retomada do mito freudiano se dá sob novos elementos, a

partir dos quais estabelece, para este mito, uma certa lógica estrutural apoiada em um

“fundamento literal” (Vidal 2005: 114). A metáfora paterna, ainda segundo Vidal,

permite a Lacan “falar como os matemáticos”.

Pela via do Édipo, Lacan situa a intervenção de um terceiro, a instância

paterna – pai entendido não enquanto pai biológico, mas enquanto função simbólica que

regula o gozo, mediatiza a relação da criança com a mãe, instaura a interdição – a lei da

proibição do incesto, da privação do falo materno, que vem significar para a criança o

lugar do desejo da mãe, barrando a mãe, e apontando para a sua castração (o Outro é

castrado, furado).

Destaque-se, no entanto, que a proibição que o pai faz intervir recai sobre a

mãe mais propriamente, tendo efeitos sobre o filho absolutamente estruturantes (Laia

2006).

Assim, no lugar desta mãe plena, inscreve-se agora o significante Nome-do-

Pai, por intermédio da metáfora paterna. A inscrição deste significante no campo do

Outro tem um efeito de interdição, de ciframento do gozo, regulando-o:

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Esse é o estádio, digamos, nodal e negativo, pelo qual aquilo que desvincula o sujeito de sua identificação liga-o, ao mesmo tempo, ao primeiro aparecimento da lei, sob a forma desse fato de que a mãe é dependente de um objeto, que já não é simplesmente o objeto de seu desejo, mas um objeto que o Outro tem ou não tem. A estreita ligação desse remeter a mãe a uma lei que não é a dela, mas a de um Outro, com o fato de o objeto de seu desejo ser soberanamente possuído, na realidade, por esse mesmo Outro a cuja lei ela remete, fornece a chave da relação do Édipo. (Lacan 1957-58b: 199)

Como não se trata de pai biológico, diz Lacan (1957-58b), sua carência na

família não equivale à sua carência no complexo. Na medida em que a entidade paterna

é correlata de uma representação simbólica, sua função é potencialmente aberta a

qualquer referente terceiro que possa se interpor na relação mãe-filho, desde que sua

intervenção seja de fato significante para a economia do desejo da criança.

A dimensão simbólica do pai, portanto, neste momento do ensino

lacaniano33, está para além das contingências do homem real, tendo seu suporte na

atribuição do objeto fálico. O pai na realidade é apenas o vetor da função simbólica que

representa, e não seu detentor. Sobre este ponto, diz Lacan (1957-58b):

Será que um Édipo pode se constituir de maneira normal quando não há um pai? [...] Percebemos que não é assim tão simples, que um Édipo poderia muito bem se constituir mesmo que o pai não estivesse lá [...]. Os complexos de Édipo inteiramente normais, normais nos dois sentidos, tanto normatizantes, por um lado, quanto normais enquanto desnormativizam, quero dizer, por exemplo, quanto a seus efeitos neurotizantes, seriam estabelecidos de uma maneira exatamente homogênea aos demais casos, mesmo que o pai não estivesse ali.

Tal só é possível se a mãe apontar este homem como tendo lugar junto ao

seu desejo, indicando ao filho que é portadora de uma falta à qual este não está em

condições de preencher. O pai vem, portanto, pelo dito da mãe, como detendo o objeto

de seu desejo, o que atribui ao pai um lugar simbólico. Em elaborações posteriores,

contudo, Lacan indica que é essencial que esse pai compareça na realidade,

33 É essencial ressaltarmos que o lugar do pai no texto lacaniano é bastante complexo, exigindo desdobramentos que estão para além dos objetivos deste trabalho. Limitamo-nos a cercar a questão a partir da referência simbólica ao significante do Nome-do-Pai, ou seja, à operação metafórica como tal, objeto de nosso interesse. Cumpre, no entanto, mencionar que Lacan não deixa de abordar, em sua obra, o pai em suas funções reais e imaginárias, como enfatiza Porge (1998). O próprio encaminhamento do ensino de Lacan coloca em parênteses o modelo edípico, na medida em que outros significantes são passíveis de fazer operar esta função.

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autenticando sua presença, intervindo assim como aquele que tem o falo, que tem um

lugar junto ao desejo da mãe.

Nessa operação essencialmente simbólica está em jogo o momento da

castração, onde o pai (simbólico) se interpõe nessa relação mãe-filho. Não sendo o falo,

a criança percebe também não tê-lo, sendo o pai seu suposto detentor. É assim que

Lacan retoma a questão da castração no contexto da constituição da ordem simbólica,

ou seja, relativa à estrutura do sujeito.

Se essa mãe, entretanto, em sua relação com a sua própria falta, não suporta

essa ida e vinda, coloca esta criança no lugar de objeto cuja função é tamponar esse

vazio, está de saída comprometida uma possível intervenção paterna no sentido de

apontar um para-além da criança: “É no que seu desejo que está para além ou para

aquém no que ela diz, no que ela intima, do que ela faz surgir como sentido, é no que

seu desejo é desconhecido, é nesse ponto de falta que se constitui o desejo do sujeito.”

(Lacan 1964: 207)

Ao pai morto de Freud, portanto, corresponde o pai simbólico de Lacan, que

transmite à criança o significante fálico (pai doador), através do qual é possível à

criança deixar de ser o falo para poder tê-lo, inserindo-se assim na dialética do ter.

Desse modo, tem-se como condição para a produção de um sujeito desejante

a descoberta da falta no Outro (castração simbólica - inscrição da castração no Outro), o

que desloca a criança de uma posição de assujeitado ao que supõe ser o desejo da mãe a

uma posição de sujeito desejante. Para que o humano possa se situar como sujeito,

portanto, é preciso abrir mão desse colamento com a mãe, o que se dá pela incidência da

função simbólica paterna.

Pela via da Lei do Pai, o sujeito tem acesso à via do desejo, ou seja, ao gozo

fálico que, no entanto, não o impede de insistir na busca de uma completude que é, ela

mesma, impossível.

Ressalte-se mais uma vez que para Lacan a função deste pai é a de uma

metáfora, na medida em que um significante (S1, significante do desejo da mãe,

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significante fálico para sempre recalcado – recalque originário) é substituído por outro

(S2, o significante paterno, Nome-do-Pai), advindo daí a significação fálica.

É, portanto, pela via dessa substituição significante designada de Metáfora

Paterna, operação inaugural correlativa ao recalque originário, que um novo

significante, o significante Nome-do-Pai, tomará o lugar do significante do desejo da

mãe, este último a partir de então tornado inconsciente. Se este recalque originário do

significante do desejo da mãe não se dá, compromete-se todo o processo da Metáfora

Paterna.

O que o significante Nome-do-Pai faz, portanto, é dar uma resposta ao

desejo enigmático da mãe, dando a este uma significação que é fálica, a partir daquilo

que Lacan chama de invocação do Nome-do-Pai.

Digo exatamente: o pai é um significante que substitui um outro significante. Nisso está o pilar, o pilar essencial, o pilar único da intervenção do pai no complexo de Édipo. [...] A função do pai no complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na simbolização, o significante materno. (Lacan 1957-58b: 180)

Se, para Lacan, um significante é aquilo que representa o sujeito para um

outro significante, é com a Metáfora Paterna que a cadeia de significantes é instaurada,

na medida em que S2 substitui S1, fazendo advir o sujeito, que comparece, de modo

essencialmente evanescente, nesse deslizar significante, sendo, pois, segundo Lacan,

tomado como efeito do significante.

O pai não é um objeto real, então o que é? [...] o pai é uma metáfora. O que é uma metáfora? [...] é um significante que vem no lugar de um outro significante [...] O pai é um significante que substitui um outro significante, e aí está o alcance, o único alcance essencial do pai ao intervir no complexo de Édipo. (Lacan 1957-58b: 69)

Assim, o que está em jogo, tanto na constituição do sujeito quanto na sua

estrutura de divisão psíquica, é uma substituição significante. A divisão do sujeito se

coloca em sua relação de dependência com a ordem simbólica, a partir desse processo

designado de metáfora do Nome-do-Pai.

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O sujeito do inconsciente, desse modo, advém de um processo de divisão

onde está em jogo a ordem significante enquanto tal, em seu efeito de causação do

sujeito34, e que tem como conseqüência sua alienação na linguagem. O que resta dessa

operação significante é uma Spaltung, sujeito barrado, estrutura de divisão psíquica ($),

que decorre da instauração da cadeia de significantes, a via do desejo, o que requer sua

submissão à ordem simbólica.

Ocorre que, na medida em que o objeto do desejo está, pela via do recalque

originário, para sempre perdido, o desejo está fundamentalmente para além dos objetos

substitutivos. Assim, todo esse esforço incansável feito na busca desse objeto traz a

marca de um impossível, já que o objeto encontrado não é, e nem teria como ser, o

objeto perdido, instaurando-se uma hiância, um vazio entre sujeito e objeto. É por não

ser o desejo nunca plenamente satisfeito que Lacan vai falar no deslizar metonímico do

desejo ou ainda objeto metonímico, atrelado inexoravelmente, se se trata de uma

neurose, à dimensão da linguagem.

O significante Nome-do-Pai é exatamente esse significante que, referido ao

Édipo, estrutura a neurose, permitindo um mínimo de ligação entre significante e

significado. Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose

(1957-58a), Lacan se refere ao Nome-do-Pai como o significante da Lei, significante

que assegura, ordena o conjunto dos significantes. Pode-se dizer que o significante

Nome-do-Pai é aquele que promove um corte, uma barra, qual seja, a operação da

castração.

Nesse mesmo texto, a função metafórica do pai é articulada por Lacan

através do esquema R, que matiza o campo da realidade35 na neurose. No esquema R, o

esquema L por nós apresentado é ampliado36.

O esquema R apresenta a seguinte composição: um ternário imaginário

composto por φ - o falo imaginário, i - a imagem especular (semelhante) e m - o eu

34 Lacan fala de ex-sistência do sujeito como efeito da ordem simbólica, ou seja, como efeito do corte

produzido pelo significante. 35 O R deste esquema diz respeito à realidade, e não ao real. O real está velado sob o campo da realidade. 36 Notemos que, no esquema R, estão presentes os elementos do esquema L, S, a, a’ e A.

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(moi) e um ternário simbólico formado pelos pontos M - Outro primordial materno, P -

Nome-do-Pai e I - Ideal do eu.

Entre estes dois triângulos, encontramos um quadrilátero formado pelos

vértices MimI, que Lacan situa como sendo o campo da realidade. No ano de 1966, uma

importante nota de rodapé é acrescida ao texto De uma questão preliminar a todo

tratamento possível da psicose (1957-58a: 559-560), onde Lacan afirma que o campo da

realidade só se mantém pela extração do objeto a37. Perdido o objeto a, o neurótico

procurará reencontrá-lo pelo viés da fantasia. A extração do objeto a é efeito da

operação da castração. Na ausência de tal extração, o campo da realidade não se

estabiliza.

Ainda na referida nota de rodapé, Lacan esclarece que a faixa MimI é uma

banda de Moebius, de modo que “o esquema R é num plano projetivo” (Lacan 1957-

58a: 560). A faixa terá uma estrutura möbiana desde que juntemos m e M e i a I. Esta

faixa, ao mesmo tempo, separa e une os dois triângulos.

Figura 3 - Esquema R

Cumpre-nos uma observação sobre os pontos M e P do esquema R. Vimos

que, na neurose, o significante do Nome-do-Pai duplica o campo do Outro: entre o lugar

do significante, Outro primordial correlato da primeira simbolização decorrente da

37 O objeto a surge na obra lacaniana a partir do seminário, livro X: a angústia (1962-63), e seu desenvolvimento prossegue em o seminário, livro XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Para sua formulação, é essencial a idéia de que, na passagem do auto-erotismo para o narcisismo, há uma parcela, um resíduo do investimento libidinal que não é transposto para a imagem unificada. Permanece, portanto, como um resto, algo de libidinal não traduzível em imagem, uma reserva irredutível de libido: “Nem toda imagem libidinal passa pela imagem especular. Há um resto”. (Lacan 1962-63: 48-49)

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ausência da mãe, e o lugar da lei. No esquema R, esse desdobramento do campo do

Outro é grafado através das letras M e P, sendo M o lugar do significante e P o lugar da

lei, Nome-do-Pai no lugar do Outro.

Mais adiante apresentaremos o esquema I38, que se produz a partir de uma

torção do esquema R e onde Lacan procura matizar graficamente a estabilização

schereberiana. Antes, porém, de discutirmos a noção de estabilização a partir do

esquema I, convém situar a noção de ponto de basta, crucial para que possamos

circunscrever a operação metafórica.

2.2.1 O Ponto de basta

A noção de ponto de basta39 (ou point de capiton) é bastante importante neste

contexto. Ela responde, de certo modo, à crítica de Perelman a essa leitura lacaniana da

metáfora, segundo a qual, sem o raciocínio por analogia, o deslizamento dos

significantes tende ao infinito, introduzindo o caos no simbólico.

Sem esta noção, de fato, o fluxo de significantes, seu deslizamento tenderia

ao infinito. O ponto de estofo detém esse deslizamento contínuo da significação, o que,

no grafo do desejo, corresponde aos pontos em que ∆$ toca a cadeia significante SS’,

permitindo que, num só-depois, retroativamente, um dado signo encontre a sua

significação, produzindo sentido.

A relação do significante com o significado [...] levou-me a fazer referência ao célebre esquema de Ferdinand de Saussure em que vemos representado o duplo fluxo paralelo do significante e do significado, distintos e fadados a um eterno deslizamento um sobre o outro. Foi a propósito disse que forjei a imagem, retirada da técnica do estofador, do ponto de basta. É preciso que em algum ponto, com efeito, o tecido de um se prenda ao do outro, para que saibamos a que nos atermos, pelo menos nos limites possíveis desses

38 Ver item 3.4. 39 Este termo, no uso comum, corresponde ao ponto onde as linhas de costura de um estofamento se encontram. Neste momento, estamos trabalhando a hipótese de que o Nome-do-Pai funciona como ponto de basta, via operação metafórica. Mais adiante, sustentaremos a hipótese de que o delírio é um modo possível de fazer um ponto de na ausência do recurso do Nome-do-Pai.

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deslizamentos. Existem pontos de basta, portanto, mas eles deixam uma certa elasticidade nas ligações entre os dois termos. (Lacan 1957-58b: 15)

Figura 4 - Grafo do desejo

Para Lacan, o significante do Nome-do-Pai, em sua função de ponto de

basta, permite uma certa ordenação da cadeia, detendo minimamente o deslizamento

significante, na medida em que ele é um significante sem sentido, ou seja, não remete a

nenhuma outra significação.

Na ausência de um vínculo natural que ligue palavra e coisa, o Nome-do-Pai

comporta essa função essencial de amarração, de articulação da cadeia significante. O

Pai, diz Lacan (1955-56: 359), introduz “uma ordem, uma ordenação matemática cuja

estrutura é diferente da ordem natural”.

Posteriormente, em Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960: 820),

Lacan define o ponto de basta como aquele “pelo qual o significante detém o

deslizamento da significação, de outro modo indefinido.”

Podemos dizer a noção de ponto de basta é correlativa à idéia de que o pai é

um furo no Outro, um furo que estabiliza o campo do Outro, o torna minimamente

ordenado:

Em torno desse significante, tudo se irradia e tudo se organiza, como nessas linhazinhas de força formadas à superfície de uma trama pelo ponto de basta. É o ponto de convergência que permite situar retroativa e prospectivamente tudo o que passa nesse discurso. (Lacan 1955-56: 303)

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Na falta desse ponto de basta, enfatiza Maleval (2002), a cadeia se

desestrutura, provocando uma irrupção no real de significantes desconectados, não

dialetizáveis.

Na psicose, vemos que é possível pensar em uma certa amarração entre

significante e significado que passe não pela via do Nome-do-Pai, mas por outras vias

que o substituam, como, por exemplo, a certeza delirante. A certeza delirante, nesse

sentido, seria um sucedâneo do ponto de basta. Trata-se de um ponto de basta forjado,

produzido através de um trabalho de estabilização que o delírio pode veicular. No ponto

da certeza delirante, um significante não remete a outro significante.

Numa discussão sobre a questão da crença, Melman (1997) situa a dimensão

da crença neurótica (e não certeza) como a crença de que há alguém, em algum lugar,

que sabe. Temos então, na neurose, uma certa crença no Outro e no inconsciente.

Podemos inferir que esta crença é correlata da inscrição do Nome-do-Pai no campo do

Outro.

Na paranóia, teríamos essa crença comprometida, instaurando a questão da

descrença paranóica (Unglauben40). Na ausência da dimensão da crença, o risco de ser

enganado é permanente. Neste ponto, Melman estabelece uma diferença sutil, porém

essencial, entre a dimensão da crença e a dimensão da certeza. Na certeza, ao contrário

da crença, temos um campo não-dialetizável, onde o saber assume um aspecto absoluto,

totalizante.

Lacan fala em ‘crença delirante’ a propósito dessa dimensão de certeza:

A realidade não é o que está em causa. (...) O sujeito admite (...) que esses fenômenos são de uma outra ordem que o real, ele sabe bem que a realidade deles não está assegurada, admite mesmo até um certo ponto a sua irrealidade. Mas contrariamente ao sujeito normal para quem a realidade lhe chega de bandeja, ele tem uma certeza, que é a de que aquilo de que se trata – da alucinação à interpretação – lhe concerne. Não é da realidade que se trata, mas de certeza. (...) Essa certeza é radical. Eis o que constitui o que se chama, com razão ou sem, o fenômeno elementar, ou ainda, o fenômeno mais desenvolvido, a crença delirante. (1955-56: 91)

40 Lacan utiliza este termo para fazer referência ao que Freud situa como essa descrença, ou ainda, recusa da crença presente na paranóia. Lembremos ainda que, em seus escritos iniciais, ainda no Rascunho H, Freud valoriza uma certa formulação da paranóia que a descreve como ‘psicose intelectual’.

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Na mesma linha de argumentação, Vandermersch (2000) situa a certeza do

paranóico como referida não ao conteúdo do significado (quanto ao conteúdo há

incerteza, perplexidade), mas ao fato de que há signos e que estes signos concernem ao

sujeito, o visam. O autor segue seu raciocínio esclarecendo que a certeza do paranóico

não está fundada em uma dúvida primeira - dúvida quanto ao que o Outro quer de mim,

dúvida que elide o sujeito.

É importante frisar que nem todos os psicóticos encontrarão um ponto de

certeza. Esta é uma aposta, que pode servir a uma estabilização ou não. A certeza,

segundo entendemos, nem sempre é elemento de uma estabilização, como por exemplo,

na certeza psicótica de que o Outro quer o mal do sujeito, o persegue, quer sua morte.

Antes de articularmos este trabalho de estabilização, vamos nos ater ao que

Freud propõe como mecanismo da psicose, assentado na carência da inscrição desse

significante paterno no lugar do Outro.

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Capítulo 3 – DELÍRIO E ESTABILIZAÇÃO NA PARANÓIA

“É preciso recolocarmos incessantemente questão de saber por que somos tão apegados à questão do delírio”.

Jacques Lacan

3.1 A FORACLUSÃO DO NOME-DO-PAI

O ensino de Lacan na década de cinqüenta situa a psicose a partir de sua

causalidade significante. É nessa perspectiva que Lacan retoma o discurso delirante de

Schreber, a partir do qual constrói a tese da foraclusão do significante do Nome-do-Pai.

Vimos que, uma vez inscrito este significante no campo do Outro, este se

desdobra como lugar da Lei, permitindo a consistência da ordem simbólica. Tal

consistência é correlata da existência de um significante primordial capaz de instaurar

uma certa ordenação na cadeia significante. Essa ancoragem simbólica tem uma função

de pacificação, permitindo ainda que o sujeito possa se situar na partilha dos sexos.

É este um aspecto fundamental sustentado por Lacan no Seminário III

(1955-56) acerca da determinação das psicoses: não há, nessa estrutura, a inscrição do

Nome-do-Pai, da Lei no campo do Outro, de modo que este permanece não barrado (A),

o que compromete a cadeia significante, ou seja, o uso minimamente estruturado da

linguagem, que vem pela via da função paterna no Édipo.

Com a recusa do reconhecimento da castração, vê-se impossibilitada a

articulação simbólica estruturada via metáfora paterna. Assim Lacan demarca aquilo

que estaria no âmbito de determinação das psicoses:

Tentemos agora conceber uma circunstância da posição subjetiva em que ao apelo do Nome-do-Pai corresponda, não a ausência do pai real, pois essa ausência é mais que compatível com a presença do significante, mas a carência do próprio significante. (...) A Verwerfung será tida por nós, portanto, como foraclusão do significante. No ponto em que, veremos de que maneira, é chamado o Nome-do-Pai, pode pois responder no Outro um

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puro e simples furo, o qual, pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da significação fálica. (Lacan 1957-58a:

563-564)41

No texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose

(1957-58a), Lacan formaliza o conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, proposto por ele

na última lição do Seminário III: as psicoses (1955-56).

Lacan vai retomar o termo freudiano Verwerfung, propondo a utilização do

termo Forclusion (foraclusão), alçando-o à condição de uma posição específica da

linguagem na psicose, onde o significante Nome-do-Pai, chamado a intervir na metáfora

paterna, não intervém, sendo radicalmente rejeitado, foracluído no lugar do Outro.

O termo foraclusão, Lacan o retira da terminologia jurídica, onde este é

sinônimo de preclusão ou prescrição. Na preclusão, algo é lançado para fora do “mundo

jurídico” por não ter ocorrido nos prazos prescritos em lei. Assim, também nas psicoses,

algo é jogado para fora, fora da possibilidade de simbolização.

Rabinovitch (2001) destaca que, antes mesmo de que este termo fosse

empregado no campo jurídico, já era bastante forte a sua significação no vocabulário

comum: “excluir, privar, expulsar, impedir, banir, cortar” (:16), acentuando assim o

poder de corte deste conceito, sua potência e irredutibilidade.

Convém enfatizarmos que Lacan não faz uma mera tradução do termo

freudiano, atribuindo a este termo um sentido próprio dentro da teoria psicanalítica, de

tal modo que a Verwerfung freudiana e a Forclusion lacaniana não são exatamente

noções coextensivas42. Há aí uma verdadeira intervenção conceitual lacaniana, a partir

da retomada de um termo freudiano.

A forclusão é, então, algo mais do que uma tradução. A Verwerfung é a rejeição de certos significantes que ficarão para sempre ‘fora’ do inconsciente. Consiste, pois, numa posição ativa do sujeito face ao insuportável, um dos nomes do impossível. A forclusão não se reduz ao ato de rejeição, mas também a seu efeito, ao modo de aparição do real. Fala

41 O conceito de pai real não é unívoco na obra de Lacan. Nessa época, percebemos que ele se serve do conceito de pai real e de pai da realidade de modo pouco diferenciado. 42 Eduardo Vidal (2005: 151) enfatiza que o termo foraclusão não é uma substituição do termo Verwerfung, tanto que este último continua comparecendo no ensino de Lacan “sem ser recoberto pelo conceito de forclusão”.

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daquilo que, excluído do simbólico, (re-)aparece a partir do real. (Vidal 2005: 152)

Lacan procura acentuar que aquilo que retorna desde fora numa psicose não

é da ordem de uma projeção, o que estaria na ordem de um retorno do recalcado. Será

melhor, diz ele (1955-56: 58), abandonar tal termo. O termo projeção não se adéqua ao

conceito de foraclusão exatamente porque não se trata de retorno, mas de algo que vem

de fora.

Na psicose, neste momento de seu ensino, Lacan localiza uma carência

estrutural no campo simbólico, esse buraco no ponto exato onde a organização da

linguagem se dá, relativo à recusa do reconhecimento da castração (abolição simbólica).

Como vimos, a castração é um operador absolutamente estruturante, e sua não inscrição

implica numa ausência de ancoragem da qual Schreber dá testemunho:

Como já foi observado no capítulo IX, já naquela época a conversa das vozes consistia predominantemente de um fraseado vazio, feito de expressões monótonas, que se repetiam de modo cansativo, que além disso traziam cada vez mais a marca da falta de acabamento gramatical, devido à omissão de palavras e até mesmo de sílabas. (Schreber 1903: 164)

Não há, na psicose, a travessia do Édipo que culmina com a castração

simbólica e o advento da significação fálica, da inscrição da Lei no campo do Outro.

Desse modo, a questão da foraclusão diz respeito exatamente ao destino do significante

fálico na dialética edipiana. Em sua ausência, falta a referência fálica que organiza o

campo da realidade para um sujeito, na medida em que a realidade é correlata da

inserção em um certo jogo significante.

Lacan situa a foraclusão no nível de uma hipótese causal – causalidade

significante - e não no nível dos fenômenos, embora, no nível fenomênico, observemos

suas conseqüências. O que está na ordem fenomênica comparece como efeito de uma

dada posição no campo da fala e da linguagem.

Os distúrbios de linguagem, alçados no Seminário III (1955-56) à condição

de critério diagnóstico de psicose, fornecem indicativos de uma relação peculiar com o

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significante. Isso porque a foraclusão do Nome-do-Pai concerne à dimensão do acesso

ao simbólico enquanto tal, à estrutura da linguagem, à falência da simbolização da lei,

de modo tal que palavra e coisa se confundem.

Assim, pode-se dizer que Lacan localiza na noção de foraclusão do

significante Nome-do-Pai a especificidade do processo psicótico, remetido, pois, a uma

teoria da linguagem. Na psicose, trata-se sempre do significante. Mas este não é isolado,

pois o significante faz cadeia. Se falta um, vai haver efeitos em toda a extensão da

cadeia significante. Lacan irá formalizar a causalidade significante na psicose nos

seguintes termos:

De que se trata quando falo de Verwerfung? Trata-se da rejeição de um significante primordial em trevas exteriores, significante que faltará desde então neste nível. Eis o mecanismo fundamental que suponho na base da paranóia. [...] um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é o dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo significante. (1955-56: 174)

Esse “acidente” no simbólico decorrente do vazio deixado pela ausência do

significante Nome-do-Pai – que acarreta a impossibilidade de inscrição da castração-,

deixa o sujeito susceptível ao retorno desse vazio no real, tal como ocorre na alucinação,

e este é um ponto que Lacan lê no texto freudiano: “tudo o que é recusado na ordem

simbólica, no sentido da Verwerfung, reaparece no real.” (1955-56: 21). Na psicose,

aquilo que foi foracluído não pode ser simbolizado como castração, voltando assim no

registro da percepção.

Jean-Claude Maleval (2002), em um trabalho inteiramente dedicado à

análise e aos desdobramentos do conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, destaca os

efeitos da ausência da operação metafórica na psicose. Não se produzindo nenhuma

substituição, diz ele, o desejo da mãe se apresenta como uma modalidade de gozo

impossível de dominar, na medida em que o sujeito não dispõe da significação fálica.

Em razão disto, o que é significado pelo Outro adquire uma significação enigmática, tal

como nos demonstra a perplexidade que acompanha os fenômenos elementares.

A alucinação nos é bastante paradigmática deste modo de funcionamento da

linguagem, onde observamos o caráter de imposição do significante que comparece no

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real, fora da estrutura de reconhecimento, índice do vazio no lugar na significação.

Lacan destaca que toda alucinação é verbal, na medida em que se trata de um

significante foracluído. A alucinação traz à tona, necessariamente, a dimensão do

verbal, da voz.

Maleval (2002: 11) nos lembra que, apesar da grande difusão do conceito de

foraclusão no campo psicanalítico, poucos o conhecem bem. “Su difusión sólo se vê

superada por su desconocimiento.”

Acreditamos, ainda com esse autor, que muito embora a hipótese da

foraclusão no Nome-do-Pai adquira sua potência em um momento do ensino de Lacan

em que o retorno a Freud se assenta em uma clínica psicanalítica estrutural, o desenrolar

do ensino de Lacan não prescinde da importância decisiva deste conceito. A

pluralização do Nome-do-Pai não é incompatível com a hipótese inicial da foraclusão

do Nome-do-Pai.

Maleval (2002) acentua o quanto é notável que Lacan se refira a foraclusão

do Nome-do-Pai como designando a estrutura específica da psicose mesmo com todo o

enriquecimento de seu ensino.

Isto não quer dizer, no entanto, acentua o autor, que ele não seja levado a

reconsiderá-lo a partir dos desdobramentos deste mesmo ensino: “Más bien parece que

vuelve a tomar impulso cada vez y que se va torciendo, sin romperse, al seguir la

corriente de las etapas principales de lo imagiario, lo simbólico y lo real que marcan el

desarrollo de la enseñanza lacaniana.” (Maleval 2002: 28)

Nesse mesmo sentido, Pérez (2006) se questiona o que teria se mantido da

metáfora paterna e da foraclusão do Nome-do-Pai após as diversas transformações às

quais Lacan submeteu seus conceitos, entre as quais a idéia de um “além do pai”, esse

deslocamento do acento sobre o pai.

Ele ressalta que inúmeros progressos da psicanálise são tributários desse

conceito, que é uma verdadeira homenagem a Freud e a Jakobson, e que a explicação

lacaniana da psicose seria impossível sem recorrermos à idéia de fracasso da metáfora

paterna.

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Convém ressaltarmos que a foraclusão do Nome-do-Pai, embora condição

necessária, não é suficiente para provocar o desencadeamento de uma psicose, tanto que

há psicoses que nunca são desencadeadas. Vejamos então as circunstâncias necessárias

para que se produza o desencadeamento de uma psicose.

3.2 O DESENCADEAMENTO NA PSICOSE

Em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56) e no artigo De uma questão

preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), Lacan formula, em

relação à abertura de um quadro psicótico, uma teoria clássica do desencadeamento.

Nestes dois trabalhos, Lacan demarca uma posição descontinuísta em

relação ao desencadeamento da psicose. Há desencadeamento quando há ruptura,

descontinuidade, daí Lacan dizer que na psicose não há pré-história.

Na contramão da concepção kraepeliniana, que afirma o caráter insidioso da

paranóia, ligado a uma evolução contínua, Lacan fala do desencadeamento como um

mecanismo de eclosão, relativo ao encontro do sujeito com um significante ao qual ele

não pode responder, remetendo-o à foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência de

significação fálica.

É a partir do estudo das condições do desencadeamento do presidente

Schreber que Lacan delineia este paradigma do desencadeamento. Sob esta perspectiva,

para que haja desencadeamento são necessárias pelo menos duas condições clínicas,

duas ordens de causalidade, uma estrutural e outra contingente.

A condição estrutural, não-contingente, é a foraclusão do significante

primordial do Nome-do-Pai, cuja ausência deixará um furo no lugar da significação

fálica (1957-58a). Esta condição, embora essencial, não é por si só suficiente para levar

o psicótico ao desencadeamento.

É necessária ainda uma condição contingente, circunstancial, ocasional, qual

seja, um certo apelo ao significante Nome-do-Pai no lugar do Outro, provocando uma

ruptura relativa ao momento em que o Nome-do-Pai é convocado em uma posição

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terceira numa relação baseada no par imaginário a – a’. É preciso que “(...) Um-pai

venha no lugar em que o sujeito não pôde chamá-lo antes”. (Lacan 1957-58a: 584).

É necessário, pois, o encontro com Um-pai, entendido como uma exigência

simbólica à qual o sujeito não tem como responder, por não contar com o significante

da Lei. Esse Um-pai, não é “nada mais nada menos que um Pai real, não forçosamente,

em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai” (1957-58a: 584)

Segundo Lacan, na psicose ocorre uma retração no esquema L, de modo que

o eixo imaginário e o eixo simbólico se recobrem (As’-----Aa), tendo por conseqüência

uma série de fenômenos imaginários relativos a essa presença maciça do Outro.

Diante do apelo desse elemento heterogêneo, o sujeito, até então ancorado

em uma identificação imaginária com o semelhante (eixo a – a’ do esquema L), vê

rompido esse eixo, através da intervenção de um elemento que lhe é heterogêneo,

terceiro.

Este Um-pai, sendo irredutível à díade imaginária, não pode ser assimilado

ao eixo imaginário. O psicótico busca então um recurso simbólico com o qual não pode

contar. Ele chama o pai simbólico, e em seu lugar responde no Outro um puro e simples

furo:

Não tocamos aí, na nossa própria experiência, e sem ter de procurar mais longe, no que está no cerne dos motivos de entrada na psicose? É o que se pode propor de mais árduo a um homem, e ao que seu ser no mundo não enfrenta tão freqüentemente – é o que se chama tomar a palavra, eu entendo a sua, o contrário mesmo de dizer sim, sim, sim à do vizinho. Isso não se exprime forçosamente em palavras. A clínica mostra que é justamente nesse momento, se sabemos referenciá-lo, que a psicose se desencadeia. (Lacan 1955-56: 285, grifos do autor)

Lembremos que, na psicose do presidente Schreber, o primeiro

desencadeamento se dá após o fracasso de sua candidatura para o Partido Nacional

Liberal, e o segundo e mais importante desencadeamento ocorre após a sua nomeação

como Juiz-Presidente da Corte de Apelação. A referida promoção teve um caráter

excepcional, fora da norma, e pôs em evidencia a falta da referência do Nome-do-Pai.

Esta posição lhe era, pois, impossível de assumir.

Podemos dizer, com Lacan, que o desencadeamento da psicose é correlato

de uma série de remanejamentos significantes e do desastre crescente do imaginário

(catástrofe imaginária ou cataclisma imaginário). O desencadeamento tem uma

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incidência no campo das significações que até então sustentavam o sujeito em sua

existência43.

No momento do desencadeamento, o campo das significações, não ancorado

pela significação fálica, está susceptível de apresentar-se como o mais absoluto vazio ou

dotado da significação mais plena. O delírio, como veremos, é uma via possível de dar

sentido a essa experiência de perplexidade.

É importante enfatizar que o estudo sobre as psicoses não-desencadeadas

nos leva a interrogar se deveríamos pensar em desencadeamentos mais silenciosos, mais

discretos, menos ruidosos. Nesta linha de interrogação, Frederico (2008) questiona se

essa noção de desencadeamento presente no Seminário III e na Questão preliminar

abrange todos os casos de desencadeamento ou se precisaríamos alargar esta noção a

ponto de pensar em outros fatores desencadeantes.

Como nossa questão de trabalho requer uma psicose já desencadeada, nos é

suficiente esta concepção clássica do desencadeamento psicótico. A referência deste

trabalho, portanto, é a do estudo de psicoses que apresentam uma descontinuidade em

seu curso, podendo ser pensadas a partir da teoria do desencadeamento clássico

formulada por Lacan no Seminário III (1955-56) e na Questão preliminar a todo

tratamento possível da psicose (1957-58a). A partir daí, poderemos precisar este tipo

singular de estabilização através do trabalho do delírio. Vejamos, portanto, a questão da

estabilização.

3.3 A ESTABILIZAÇÃO NA PSICOSE

Encontramos, ao longo do ensino lacaniano, diversas terminologias para

tratar das estratégias de estabilizações nas psicoses (solução, suplência, amarração,

sinthoma são algumas delas). Para além da multiplicidade terminológica, encontramos

ainda diferentes formulações para a questão da estabilização.

43 Veremos, no capítulo 4, a partir de um caso de nossa clínica, a incidência do desencadeamento psicótico no campo das significações que ancoravam a existência desse sujeito, com a conseqüente perplexidade, seguida de uma séria de manifestações corporais.

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Guerra (2007), em sua tese de doutorado, faz um mapeamento cuidadoso da

utilização destes termos ao longo dos textos e seminários de Lacan, e nos propõe a

seguinte sistematização de seu uso:

1. Estabilizações = soluções 2. Suplência = amarração 3. Sinthoma

Na linha adotada pela autora, estabilização (= solução) é um termo mais

geral que abriga em seu teto diferentes modalizações, como a estabilização pela via das

identificações imaginárias, a estabilização pelo trabalho de construção simbólica ou

ainda a passagem ao ato. Nesta perspectiva, existem estabilizações mais ou menos

precárias.

O termo suplência, por sua vez, comparece de diversas maneiras no ensino

lacaniano: “poderia implicar em promover um elemento no lugar de outro, como na

operação metafórica ou, por outro lado, em um acréscimo, em um suplemento.

Suplência, enquanto ato de suprir, implicaria em completar, substituir, fazer as vezes de,

preencher a falta de.” (Guerra 2007: 112-113). A autora aproxima a noção de suplência

à de amarração, como um modo de amarrar os três registros.

Já o termo sinthoma seria um tipo específico de suplência, ou seja, a

suplência em um ponto específico, que ataria os três registros através de um quarto

elemento, suplenciando seu desarranjo.

Não nos aprofundaremos nestes modos mais específicos de soluções, que

requerem necessariamente uma discussão topológica. Para os fins de nosso estudo, o

termo estabilização se presta adequadamente, desde que precisemos seu uso.

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Em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-

58a), Lacan fala em estabilização a propósito do esquema I, que é o esquema da

estabilização schreberiana. Neste esquema, a estabilização é concebida como efeito da

construção de uma realidade estabilizada, resultando de uma transformação do

esquema R. Discutiremos o esquema I mais adiante, especificando a noção de

estabilização aí sustentada.

Embora o termo estabilização se preste a algumas imprecisões44, é possível

sustentar seu uso, dando-lhe um sentido preciso dentro da psicanálise. Nesta

perspectiva, Colette Soler (2007) afirma que, através das noções de metáfora e de

suplência, que são específicas do vocabulário lacaniano, podemos circunscrever aquilo

de que se trata em uma estabilização.

A autora ressalta que, na Questão preliminar (1957-58a), texto

contemporâneo à Instância da letra no inconsciente (1957), a metáfora é entendida

como um princípio de estabilização, permitindo “fixar, ‘reter’ a significação” (Soler

2007: 196). Trabalhamos esta idéia a propósito do ponto de basta e da função

metafórica do pai, que cria um ponto de parada no deslizamento do significado sob o

significante.

Esta idéia da metáfora como princípio de estabilização nos será útil em nossa

discussão da metáfora delirante, que Soler (2007) identifica como uma metáfora de

suplência ou metáfora de compensação, correlativa à idéia de que a foraclusão do

Nome-do-Pai pode ser compensada por outros substitutos que exerçam a função de

estabilizadores para um sujeito, sendo a metáfora delirante um deles.

A partir dos anos 60, as formulações de Lacan sobre as psicoses passam a

contar com as elaborações acerca do objeto a, introduzidas em o Seminário, livro X: a

angústia (1962-63). Isto nos faculta um outro modo de abordar a questão da

estabilização nas psicoses, situando-a pelo viés da localização do gozo.

No prefácio a uma nova edição das memórias de Schreber (1966), Lacan

introduz o que denomina “o sujeito do gozo”, situando a paranóia como o que 44 Uma imprecisão em seu uso, a partir da perspectiva psicanalítica, seria confundir a estabilização com um mero apaziguamento ou remissão sintomática, referida ao uso da medicação, sem um correlativo trabalho do sujeito.

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“identifica o gozo no lugar do Outro”, estando o sujeito no lugar de objeto do gozo do

Outro. Este Outro, não sendo barrado pelo significante da castração, inclui o gozo, na

medida em que não há a extração do objeto a, condensador de gozo. Nessa mesma

linha, em Alocução sobre as psicoses da criança (1967), Lacan afirma que toda

formulação humana tem como essência refrear o gozo.

Esta abordagem nos permite pensar, no trabalho de estabilização, em um

outro aspecto além da dimensão significante. Esse aspecto é corolário da idéia de que a

regulação do gozo pela linguagem deixa sempre um resto, sendo o objeto a o índice

desse elemento heterogêneo, apontando para uma falta estrutural no campo do Outro.

Essa inconsistência do Outro passa a ser entendida como uma falta constitutiva da

ordem simbólica enquanto tal, que se coloca para todo falante.

Maleval (2002) aponta que, no ensino de Lacan, no começo dos anos 60, o

Nome-do-Pai começará a ser entendido como o que organiza a incompletude do Outro.

Por não dispor da resposta fálica, ao psicótico é insuportável a proximidade com essa

hiância no campo do Outro, de modo que ele se vê obrigado a realizar um trabalho para

obturá-lo. O trabalho do delírio se situa aí como uma tentativa tanto de mobilizar novas

significações para a construção de uma nova realidade, como um esforço de localização

do gozo.

Acreditamos, com Soler (2007), que a abordagem da psicose por meio de

uma outra localização do gozo, embora mais ampla, não implica em uma superação da

abordagem pelo significante. Desde a Questão preliminar, ressalta a autora, já estava

colocada, com a metáfora paterna, a incidência do Nome-do-Pai no sentido de uma

regulação do gozo.

Vale lembrar que, em Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo (1960),

Lacan diz que a linguagem promove uma barreira ao gozo e que o significante Nome-

do-Pai tem a função de regular o gozo que incide sobre o sujeito.

Entendemos, portanto, que a foraclusão do Nome-do-Pai tem incidências

sobre a regulação do gozo, de modo que encontramos, na psicose, uma presença do

gozo de forma excessiva, sem mediação. A construção delirante é uma tentativa (dentre

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outras) de circunscrever o gozo, uma forma de tratamento significante do gozo,

diferente da regulação edípica.

Nessa mesma linha de argumentação, Alvarenga (2000: 18), em uma

discussão sobre o que caracteriza uma estabilização, sugere como hipótese-eixo a de

que “a estabilização é uma operação que circunscreve, localiza, deposita, separa ou

apazigua o gozo, correlativa de uma entrada em algum tipo de discurso, por mais

precário que seja”.

Gostaríamos de enfatizar que reconhecemos, para além da construção

delirante, serem inúmeras as saídas possíveis encontradas pelos psicóticos em suas

tentativas de localização do gozo45. O delírio é uma via, dentre outras, de localização, de

regulação do gozo na psicose. Trata-se de um trabalho onde o paranóico procura

articular o gozo e o Outro. Nem todos os psicóticos farão uso deste recurso, e mesmo

os que o fazem, não necessariamente encontrarão êxito por esta via. Pensemos, portanto,

nas possibilidades e limites deste tipo peculiar de trabalho que é o trabalho do delírio.

3.4 O DELÍRIO COMO SOLUÇÃO ELEGANTE

Examinaremos agora este tipo específico de trabalho da psicose que é o

trabalho do delírio, que iremos abordar em seu viés de restituição, como tentativa de

promover uma estabilização na psicose.

Discutiremos este trabalho de restituição a partir das considerações tecidas

anteriormente sobre a questão da estabilização, quais sejam, a de que o delírio é uma

construção que pode veicular uma inserção numa realidade e a de que o delírio pode

permitir uma localização de gozo.

Priorizaremos, neste desenvolvimento, o delírio em sua função de

estabilização, mesmo com a ressalva de que nem todo delírio é bem-sucedido quanto a

45 Colette Soler (2007), por exemplo, distingue, com base em Lacan, algumas saídas possíveis na psicose para além do trabalho do delírio: o ato, a obra, a identificação imaginária e a sublimação criadora. Por uma questão de delimitação, não vamos entrar nessas diversas saídas, mas é importante lembrar que um mesmo sujeito pode fazer uso de mais de uma via em seu trabalho de estabilização. Não necessariamente o sujeito faz uso de uma via exclusiva, como veremos no próximo capítulo, com um caso de nossa clínica.

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esta função. Há autores, inclusive, que defendem que o delírio pode desestabilizar

(Antônio Beneti, por exemplo), mas esta não é a via de análise de nosso trabalho.

Vimos, no primeiro capítulo, que, desde Freud, a psicose traz questões que

fazem avançar a teoria e a clínica psicanalíticas. A análise das demências precoces é

fundamental na elaboração do conceito de narcisismo, no que permite mostrar a Freud

como que, diante de uma frustração, a libido pode retirar-se radicalmente dos objetos do

mundo e depositar-se no eu.

Ao contrário da neurose, onde o vínculo com os objetos do mundo é mantido

através da fantasia, na psicose, sem o recurso da fantasia, a retirada da libido dos objetos

é muito mais radical. A partir destas elaborações, Freud situa o delírio como uma via

possível de retorno da libido aos objetos, uma tentativa de reconstrução do mundo após

o seu fim, permitindo ao paranóico “poder viver nele mais uma vez”. (Freud 1911: 78)

Trata-se, como vimos em Schreber, da construção de uma nova significação,

não referida à articulação Édipo-castração. Esta nova significação, no entanto, preserva

a posição narcisista do eu, na medida em que o eu é tomado como objeto de

investimento libidinal.

O delírio é, para Freud, um “remendo no lugar que originalmente uma fenda

apareceu na relação do ego com o mundo externo” (Freud 1924a: 169), que se dá

através da construção de uma nova realidade que substitui a anterior, e que,

conseqüentemente, cria um mundo possível para o sujeito habitar. O delírio é, nessa

perspectiva, um segundo tempo no trabalho da psicose, posterior à perda da realidade, e

vem no sentido de repará-la.

Esta dimensão temporal fora destacada por Clérambault, ao considerar o

delírio como secundário ao que ele designa de automatismo mental. Com a noção de

automatismo mental, Clérambault busca algo que seja elementar na clínica da psicose,

primário, constituinte, tal como um ponto de partida. E isto ele situa no caráter

autônomo desses fenômenos, os quais ele designa de “neutros”, “automáticos” e

“atemáticos”.

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O que Clérambault nomeia de “caráter anidéico dos fenômenos psicóticos”

(Lacan 1955-56: 14) refere-se, pois, à afirmativa de que há um fenômeno fundamental

na base de uma psicose e de que esse fenômeno é automático, não compreensível e não

passível de inscrição histórica na vida do sujeito. Algo lhe ocorre como automático e

vindo de fora, trazendo em si um caráter enigmático, de perplexidade, índice de um

vazio de significação.

Lacan (1955-56) recolhe da noção de automatismo mental as condições

lógicas para articular uma leitura estrutural dos fenômenos da psicose. Trata-se,

portanto, de uma lógica, da apreensão de uma lógica peculiar que está na base, no

coração dessa estrutura clínica, e que Lacan refere a um tipo de relação com o

significante, onde se evidencia o caráter de imposição da palavra sobre o sujeito.

O delírio, para Clérambault, seria sempre secundário a isso que para o

sujeito incide como influência externa, daí Clérambault designá-lo de “superestrutura”:

“O Automatismo Mental (...) não comporta em si mesmo nenhum delírio, e um delírio

pode vir a se juntar a ele somente muitos anos depois de seu início.” (Clérambault 1924:

195)

Clérambault fora, portanto, sensível a esse caráter de posterioridade do

delírio com relação ao que se impõem como automatismo46. Para ele, o delírio é visto

como um modo de resposta diante disso que comparece como fenômenos que se

impõem ao sujeito como um corpo estranho, fenômenos estes que são índice daquilo

que Ferretto (1999: 101) denomina de “irrupção no psicótico do significante em sua

materialidade.”

Diante daquilo que para o sujeito incide como efeito da desamarração do

significante, diante do que comparece como palavra imposta, como um pensamento

antecipado, como um eco do pensamento, enfim, como pura exterioridade, abre-se a

possibilidade de que o sujeito possa, a partir de um certo tipo de relação com o

significante, realizar um trabalho.

46 Convém precisar que, para Lacan, o delírio é também um fenômeno elementar, índice do retorno do significante no real, mesmo concordando com o mestre Clérambault quanto ao caráter de posterioridade do delírio em relação ao que se impõe como vindo de fora.

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O delírio, como campo de significação, pode conceder um lugar ao que

comparece para o sujeito como vindo de fora, sendo um tipo de resposta que o sujeito

irá dar diante da experiência de perplexidade decorrente da quebra da cadeia

significante.

Na psicose, vimos que na ausência da significação fálica, algo, vindo de fora,

visa o sujeito, concerne ao seu ser. O delírio é exatamente uma via de construção de um

saber sobre isso que incide sobre o sujeito, como tentativa de fazer barreira às invasões

do Outro.

A este tipo de trabalho, Lacan se refere como “solução elegante”,

especialmente desenvolvida em o Seminário, livro III: as psicoses (1955-56), e no

escrito De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a),

onde procura cernir a construção delirante a partir de um tipo de relação singular com o

significante.

Para Lacan, na via da análise freudiana, o trabalho de construção agenciado

pelo delírio, se bem sucedido, pode permitir ao sujeito, pela via da produção de uma

nova significação, situar-se de modo em que lhe seja possível, constituindo o Outro, ao

mesmo tempo ir precisando um lugar junto a esse Outro que lhe dê alguma sustentação.

Trata-se de uma tentativa de produzir uma separação entre o sujeito e o

objeto, descolando o psicótico deste lugar mortífero em que sujeito e objeto coincidem.

A posição de objeto, paradoxalmente, coincide com a tentativa de produzir um

distanciamento desta posição.

Vimos, a propósito de nossa discussão sobre o ponto de basta, que esse saber

produzido pelo delírio se situa num campo não-dialetizável, ancorado, fixado numa

dimensão de certeza que lhe é própria. A significação, portanto, cristaliza-se, congela-

se, não sendo passível de interpretação, e conseqüentemente não remetendo a uma outra

significação. Esse campo de significação é, pois, verdadeiramente sui generis, na

medida em que é próprio da significação remeter sempre a uma outra significação.

Invocando o valor concedido por Freud à dimensão do mistério, Lacan

assim se expressa sobre o mistério envolto na relação do psicótico com seu delírio:

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Há aí uma afeição, um apego, uma presentificação essencial, cujo mistério continua sendo para nós quase total, o mistério de que o delirante, o psicótico, está unido ao seu delírio como a algo que é ele próprio. (1955-56: 246)

Tentemos agora precisar uma distinção entre delírio e metáfora delirante. Em

De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a),

encontramos bastante evidenciada a idéia de que a foraclusão é passível de

compensação, sendo a metáfora delirante uma espécie de metáfora de substituição, uma

formação restitutiva.

Nessa mesma linha, Soler (2007), ao discorrer sobre algumas saídas que o

psicótico inventa para tratar os retornos do significante no real e sua correlativa

emergência de gozo, situa a metáfora delirante como uma solução referida à construção

de uma ficção não-edipiana através de um “simbólico de suplência”.

Comprometido, no psicótico, o registro simbólico, em decorrência da

ausência do Nome-do-Pai, a metáfora delirante vem no sentido de permitir alguns

pontos de ligação (points de capition/pontos de basta) que articulem minimamente o

discurso:

É a falta do Nome-doPai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante (Lacan 1957-58a: 584)

Hanna (2000) esclarece que, na metáfora delirante, mesmo sendo mantida a

posição narcisista, já há uma tentativa de constituição de uma certa distância entre o

sujeito e o objeto através do destaque de um significante Ideal, que tem por função

substituir o falo, organizando, em torno de si, todo um campo de significações (“Mulher

de Deus”, para o presidente Schreber).

Na falta de uma metáfora paterna, a metáfora delirante é um modo de

inscrição de um significante nesse Outro que invade o sujeito. Essa significação de

suplência tem efeitos sobre o gozo excessivo que invade o psicótico, podendo-se

produzir, por esta via, uma estabilização.

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Vimos, a propósito de nossa discussão sobre a metáfora, que a centelha

criadora se apóia em uma lógica de substituição significante, onde um elemento é

recalcado como condição de possibilidade do advento da nova significação. Mas, no

caso da metáfora delirante, temos uma nova significação que vem não vem no lugar de

um elemento recalcado, o que a torna bem peculiar.

A nova significação não se apóia no recalque de um significante, daí

podermos dizer que a metáfora delirante é uma metáfora muito sui generis. Pensamos

que, ainda assim, é possível dar à metáfora delirante o estatuto de metáfora, na medida

em que ela atende ao critério essencial da metáfora, qual seja, a produção de uma nova

significação, de um sentido novo. Hanna (2000: 96), a este respeito, fala em uma

“proporção inventada”. A metáfora delirante veicula a construção de uma proporção.

Vejamos agora como esta idéia de proporção pode ser localizada no esquema

I, que é o esquema da solução schreberiana. Este esquema é apresentado por Lacan em

De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), e cabe

ressaltar que sua utilização não deve ser transposta para toda e qualquer solução

psicótica, na medida em que Lacan o utiliza para falar da estabilização do delírio de

Schreber.

Figura 5 – Esquema I

Observamos que, topologicamente, este esquema se constitui a partir de

uma torção do esquema R, que localiza o campo da realidade na neurose. Diante de Po e

Φo, ou seja, diante da foraclusão do Nome-do-Pai e da ausência da significação fálica,

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abre-se uma buraco tanto no triângulo imaginário (imφ), quanto no triângulo simbólico

(MIP).

Os buracos abertos na ausência dos recursos simbólicos do Nome-do-Pai e do

significante fálico acarretam uma deformação nas linhas imaginária (m-i) e simbólica (M-I),

encurvando-as. Com a metáfora delirante, inscreve-se um significante Ideal no lugar do Nome-

do-Pai, produzindo-se um substituto para o lugar da Lei (“Ordem do Mundo”, em Schreber).

Este significante, uma vez demarcado, ordena a bateria de significantes, permitindo

um certo contorno para Po e Φo. Trata-se de um contorno bastante peculiar, na medida

em que, diante da ausência de ponto de basta, m-i e M-I são reenviadas para o infinito,

formando assíntotas.

O Ideal insere-se nesse movimento assintótico, sendo lançado para o infinito.

Desse modo, o momento onde a posição do eu e do objeto coincidem é lançado para o

infinito (encontro no infinito), impedindo essa colisão mortífera.

Percebemos, pela observação da topologia do esquema I, como, pela via da

metáfora delirante, opera-se um distanciamento entre m (eu do sujeito) e M (lugar do

Outro primordial), sendo as assíntotas um recurso para separar o eu da posição de objeto

do gozo do Outro.

No esquema I, o campo da realidade não se fecha, é aberto, esvaindo-se para

o infinito, daí Lacan situar o esquema I como um plano hiperbólico. Não há, neste

esquema, a banda de Moebius. No entanto, há o estabelecimento de uma certa

proporção entre quatro termos, - i, m, M, I - e esta proporção organiza o campo da

realidade, ainda que sem a extração de um objeto.

Localizamos em Daniel Paul Schreber uma certa mudança de posição que

lhe é essencial. Ele se desloca, durante anos do trabalho de seu delírio, de uma posição

onde sua transformação em mulher, exigida pelo médico Flechsig, seria uma catástrofe,

a um tipo de acabamento do delírio onde essa idéia se reconcilia com a “Ordem das

Coisas”. Era Deus quem exigia dele a feminilidade, de modo que sua entrega à

voluptuosidade é então assemelhada ao estado de beatitude, como solução do conflito.

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De um Schreber puro objeto de um Deus que se retira do mundo e o deixa

entregue - “(...) existe uma falha na Ordem das Coisas” (Schreber 1903 apud Freud

1911: 35) – tem-se um Schreber que virá, como “Mulher de Deus”, e não uma mulher

qualquer, a ser veículo de uma nova raça de homens.

A metáfora delirante “Mulher de Deus” lhe permite uma estabilização, e um

certo distanciamento entre as posições de sujeito e objeto. Não se trata mais do Luder47

ouvido alucinatoriamente, mas da construção de uma metáfora delirante que serve de

suplência48 para o Nome-do-Pai foracluído (Lacan 1957-58a).

A metáfora delirante, em sua função de ponto de basta, produz efeitos de

circunscrição do gozo por meio de sua localização no lugar do Outro. Em Schreber, essa

localização do gozo vai se dar através da prática transexualista que decorre da metáfora

delirante, onde o presidente se coloca, frente ao espelho, seminu, orna-se com colares e

fitas colorida e sente seus seios crescerem ou diminuírem conforme Deus se aproxima

ou se afasta.

Por esta prática, Schreber goza narcisicamente de sua imagem de mulher

diante do Outro que é Deus. A beatitude torna-se um dever, consonante com a “Ordem

das Coisas”. É Deus quem exige de Schreber a beatitude, ao que ele consente, de modo

tal que uma certa parcela de gozo lhe é cabida, através da prática transexual:

(...) Deus exige um gozo contínuo, correspondente às condições de existência das almas, de acordo com a Ordem do Mundo, que foi criada; se, ao fazê-lo, tenho um pouco de prazer sensual, sinto-me justificado a recebê-lo, a título de pequeno ressarcimento pelo excesso de sofrimentos e privações que há anos me é imposto (...) (Schreber 1903: 219, grifos nossos)

Quinet (2003) localiza, já na Questão preliminar, o que ocorre a nível do

real em jogo na psicose, situando a transformação do gozo operada pelo trabalho

delirante de Schreber: de um gozo que retorna no corpo, estilhaçado, despedaçado,

invadido pelas vozes, Schreber se desloca, pelo delírio, a um gozo da imagem, ou gozo

transexualista, a partir da erotomania divina.

47 Traduzido por carcaça, rameira, safada, segundo Munõz (2005). 48 O termo suplência é utilizado no texto de 1957-58 no sentido de suprir a foraclusão do Nome-do-Pai. Posteriormente, em O Seminário, livro XXIII: o Sinthoma (1975-76), Lacan o utiliza no sentido de um suplemento, de um algo a mais, uma invenção do sujeito.

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Esse gozo transexualista, ou gozo narcísico da imagem, é situado por Lacan

no esquema I, no nível da imagem especular (i), sendo que, em m, (moi), temos o futuro

da criatura, a transformação em mulher, que ocorrerá em um futuro assintótico. Ambos,

prática transexualista e transformação em mulher, permitem um certo enquadramento de

Φo. Do lado simbólico, fazendo contorno à NPo, por sua vez, encontramos, em I, lugar

do Ideal do eu, a “Ordem do Mundo”, e em M o lugar do Criador. Esta é a montagem

que permite a Schreber o restabelecimento da realidade.

Quinet (2003) ressalta ainda, como correlata à estabilização de Schreber,

uma modificação do estatuto do Outro a partir da metáfora delirante “Mulher de Deus”.

Inicialmente, encontramos no delírio de Schreber um Outro fragmentado, disperso em

várias figuras, como o Deus duplicado em Orzmud e Arihman. Já a partir da

estabilização, esse Outro se torna unitário, sendo personificado na figura de Deus, um

Deus que é também sujeito à “Ordem do Mundo”, da qual Schreber é o garante, o

esteio.

Neste ponto, convém situarmos brevemente a noção de ‘delírio parcial’ que

Lacan utiliza em alguns momentos, remetendo-a à psiquiatria, embora não especifique

de onde exatamente a retira. Entendemos, pela leitura destas referências, que a categoria

de ‘delírio parcial’ era relativamente corrente na psiquiatria de sua época, a ponto de ser

desnecessária uma discriminação mais precisa de suas fontes.

Como esta categoria não está mais presente nos atuais manuais

internacionais de diagnóstico de doenças mentais, nos interessamos em pesquisar sobre

suas origens, a fim de precisar o uso que Lacan faz desta noção nos referidos textos49.

A designação de ‘delírio parcial’ surge na nosologia psiquiátrica com

Esquirol, ligado à classe das monomanias intelectuais50. Esquirol agrupara, nas

monomanias, “todas as afecções mentais que só afetavam o espírito parcialmente,

deixando intactas as faculdades, afora a lesão mental que constituía toda a doença”

(Bercherie 1989). Para Esquirol, o delírio parcial ficava circunscrito apenas a alguns

49 Em nossas conversas com alguns colegas psiquiatras, nenhum conhecia esta noção. As referências em livros e artigos recentes são igualmente escassas. 50 Para Esquirol, seriam três as classes de monomanias: intelectuais (relativa a noção de delírio parcial), afetivas ou racionais (prejuízo no campo dos afetos, não acompanhado de delírio) e instintivas (alterações da vontade, relativa a impulsos criminosos, por exemplo). (Bercherie 1989)

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objetos ou idéias, preservando os campos onde estas idéias ou objetos não eram

evocados.

Podemos exemplificar, com Freud (1911), uma referência a esta idéia de

‘delírio parcial’, quando Freud retira do relatório de Dr. Weber a descrição da conduta

de Schreber nas reuniões que freqüentava em sua casa:

‘Visto que, durante os últimos nove meses, Herr Präsident Schreber fez suas refeições diariamente em minha mesa familiar, tive as mais amplas oportunidades de conversar com ele sobre todos os tópicos imagináveis. Qualquer que fosse o assunto em debate (exceto, naturalmente, suas idéias delirantes), concernente a acontecimentos no campo da administração ou do direito, da política, da arte, da literatura e da vida social – em resumo, qualquer que fosse o tópico, o Dr. Schreber mostrava interesse vivaz, mente bem informada, boa memória e julgamento sólido; ademais, era impossível não endossar sua concepção ética’. (Freud 1911: 26, grifos nossos)

Sublinhamos que este relatório data de julho de 1899, época em que

Schreber já havia desenvolvido sua “engenhosa estrutura delirante”. Antes deste ponto

de acabamento, o delírio envolvia toda sua vida mental. A partir de então, “Dr. Schreber

não apresenta sinais de confusão ou de inibição psíquica, nem sua inteligência se acha

prejudicada”. Isto tudo, sublinha Freud no relatório do Dr. Weber, apesar de Schreber

estar “(...) repleto de idéias de origem patológica, que se constituíam num sistema

completo”. (Freud 1911: 24-25)

Encontramos, em nossas pesquisas, uma referência a um apagamento da

oposição entre ‘delírio geral’ e ‘delírio parcial’ ao longo do século XIX, na medida em

que tomam corpo as perturbações do humor (Douville 2007).

Lacan, no entanto, retoma a noção de delírio parcial em pelo dois

momentos: em o Seminário, livro III (1955-56), e em De uma questão preliminar a todo

tratamento possível da psicose (1957-58a).

No Seminário III (1955-56), encontramos uma referência ao delírio parcial a

propósito da paciente que empregava o termo galopiner. Esta mulher psicótica, diz

Lacan, durante todo o tempo “me deixou em dificuldades e se mostrou sã de espírito”,

mantendo-se “no limite do que pode ser percebido clinicamente como um delírio” (:

49), sendo capaz, inclusive, de zombar do outro a quem fala.

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Outra referência textual a esta noção está colocada na seguinte pergunta

formulada por Lacan (1955-56: 153): “Há exemplo mais patente da existência

contrastada de uma parte sã e de uma parte alienada do eu do que os delírios que é

clássico chamar parciais?”

Em De uma questão preliminar (1957-58a) esta noção aparece a propósito

da apresentação do Esquema I, e Lacan então a localiza como “qualificada na velha

clínica, impropriamente, mas não sem uma certa força de abordagem (...)” (: 580). Sua

referência ao delírio parcial, neste texto, evoca a possibilidade da existência de uma

relação com o semelhante compatível com uma relação fora-do-eixo com o grande

Outro, como nos atesta Schreber.

Soler (2007) faz menção ao delírio parcial quando discute a localização de

gozo veiculada pela construção delirante de Schreber. Uma vez localizado pela prática

transexualista, este gozo fica reservado aos momentos de solidão. Esta construção

delirante seria, então, parcial. Podemos, a partir destas indicações, entender a

parcialização como decorrente da estabilização.

Tal como entendemos, Lacan utiliza a noção de delírio parcial não

exatamente como sinônimo de metáfora delirante, pois esta é produto de um longo

trabalho de elaboração, ao passo que, ao menos no entendimento de Esquirol, é possível

que um delírio, desde seu início, já seja caracterizado como parcial. No entanto, a noção

de delírio parcial nos é bastante útil para pensarmos nos efeitos que a metáfora delirante

pode veicular.

Sabemos que nem todo delírio chega a se organizar em torno de uma

metáfora delirante, mas podemos dizer, com Lacan, que o delírio é mais bem sucedido

quanto mais ele se organiza, quanto mais adquire uma forma sistematizada: “Em relação

à cadeia do delírio, se assim se pode dizer, o sujeito nos parece ao mesmo tempo agente

e paciente. O delírio é tanto mais sofrido por ele quanto mais ele não o organiza.”

(Lacan 1955-56: 257). 51

51 Novamente nos reportamos ao caso a ser trabalhado no próximo capítulo, onde o delírio, embora rico e complexo, lhe custa, além de muito sofrimento, um insistente trabalho no corpo.

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Este ponto de acabamento que é a metáfora delirante, mesmo nos casos em

que é alcançado, não assevera, contudo, uma estabilização definitiva, não sujeita a

impasses, a momentos de desestabilização. Soler (2007: 205) se refere à metáfora

delirante como uma pseudometáfora, “tão pseudo quanto instável”. É o que também nos

ensina Schreber, com sua recaída após anos de trabalho do delírio.

Que seja instável, no entanto, não implica em dizer que não permita uma

localização de gozo, uma resposta à invasão do real. Nessa linha de trabalho, Maleval

(2002) sustenta a existência de uma lógica quaternária que regeria o trabalho do delírio

no sentido de uma estabilização, de uma solução cada vez mais acabada.

Para esse autor, tal lógica já havia sido entrevista por alguns clássicos da

psiquiatria, que apontam para um período de perplexidade inicial, seguido de um tempo

intermediário de elaboração inquieta, até uma sutura megalomaníaca. Clérambault,

como vimos, aponta a existência de um período inicial “anidéico”, seguido da

construção de uma “superestrutura delirante”, embora este não tenha chegado a

descrever um período megalomaníaco final.

Lacan, por sua vez, prossegue Maleval (2002), embora não se ocupe da

elaboração de uma sucessão ordenada do delírio em fases, esboça esta lógica

quaternária em seu estudo do caso Schreber, partindo da posição do presidente com

relação a sua emasculação. Acompanhemos o que Maleval indica como uma evolução

específica do delírio, uma lógica evolutiva generalizável, correlativa a uma modificação

na relação do sujeito com o gozo:

1. Deslocalização do gozo e perplexidade angustiante (P0): Momento do

desencadeamento psicótico, revelando a carência do significante paterno e produzindo

como conseqüências a ruptura da cadeia significante e a deslocalização do gozo. A

“Ordem do Mundo” se altera, gerando angústia e perplexidade. Este período de

inquietude é fortemente correlacionado a transtornos hipocondríacos, entendidos como

um efeito dessa deslocalização do gozo sob o corpo do psicótico, que coincide ainda

com uma angústia extrema. Em Schreber, este período pode ser localizado no ano de

1893, quando de seu “esgotamento nervoso”, com inúmeras queixas hipocondríacas, às

quais se segue um verdadeiro crepúsculo do mundo.

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2. Tentativa de significação do gozo do Outro (P1): Trata-se da mobilização do

aparato significante pelo psicótico, com vistas a reparar a foraclusão do Nome-do-Pai, e

deste modo dar uma explicação para os fenômenos que lhe ocorrem. Neste período, são

comuns as tentativas de desenvolver elaborações que confirmem esta explicação inicial.

Em Schreber, esta primeira tentativa de significantização do gozo deslocalizado é

correlacionada a uma perseguição a cargo do professor Flechsig. Esta primeira resposta

não fora suficiente para reduzir a angústia de Schreber, na medida em que o deixava

exposto à figura de um perseguidor implacável. Nos poucos casos em que se chega a

um “compromisso razoável”, este só é possível ao término das tentativas de

significantização presentes nesse segundo período.

3. Identificação do gozo do Outro (P2): Nesta fase, o gozo do Outro é identificado

em um significante, que se converte num certo organizador do que está ocorrendo. Em

Schreber, este significante organizador é o “Mulher de Deus”. A partir daí, Schreber

“aceita” sua feminilização e adota, ao final de 1895, o culto à feminilidade. Mesmo

aqui, no entanto, subsiste para Schreber a idéia de que estava sendo vítima de

perseguição, que ele atribui em particular às almas malignas de Flechsig e Von W.,

perseguidores agora identificados. Neste período, o delírio se organiza em torno de uma

significação fixa, onde o psicótico adquire certezas irremovíveis. Nem todos os

psicóticos, muito poucos, acentua Maleval (2002), alcançam P2.

4. Consentimento ao gozo do Outro (P3): Neste ponto de acabamento, impõe-se

um sentimento de comunhão com o gozo do Outro, um consentimento com este gozo. O

psicótico consente com o gozo do Outro porque acredita que, por essa via, tem acesso a

algo de muito especial. A megalomania aqui adquire a sua maior exuberância. O

psicótico, muitas vezes, se converte ele mesmo em Deus ou em um de seus eleitos, ou

ainda em um grande personagem. Neste momento, Schreber já não se sente mais

perseguido, e a alma Flechsig perde seus poderes maléficos, embora um “miserável

resto” da alma Flechsig subsista. A feminilização de Schreber se converte em motivo de

redenção para a humanidade, quando de sua fecundação por raios divinos com vistas a

gerar uma nova raça de homens. Através dessa construção, Schreber pode consentir com

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a fantasia inicial, a de que será belo ser uma mulher copulando. Data deste período a

redação de suas memórias, escritas entre 1900 e 1902.

Maleval (2002) correlaciona este momento da evolução do delírio à “parafrenia

sistemática” de Kraepelin. Trata-se de uma elaboração complexa, e ainda pouco

estudada pelos clássicos, talvez por ser a forma mais rara entre os delírios crônicos. Sua

elaboração exige um longo trabalho do psicótico.

Em P2 e P3, o delírio, uma vez sistematizado, consegue criar um certo

contorno para o gozo, como observamos no esquema I. Alguns fenômenos observados

em P0 e P1 chegam inclusive a desaparecer.

Convém precisar que Maleval (1998; 2002) propõe esta lógica a partir de

uma certa economia do gozo, confrontada com o problema de sua deslocalização e

tentativas de localização. No entanto, o autor ressalva que a sintomatologia de cada um

destes períodos é extremamente variada, e esta sucessão muitas vezes não é tão regular

quanto à apresentada, de modo que se observa mais habitualmente a ausência de certas

fases, ou a imbricação entre períodos contíguos, ou ainda a coexistência de elementos

pertencentes a diversos períodos.

Embora Maleval (1998; 2002) não o diga textualmente, entendemos, a partir

da análise desta proposta de uma lógica quaternária, que a metáfora delirante encontra

em P3 suas condições de possibilidade, pois há, em P3, a localização do gozo a partir do

destaque de um significante Ideal que organiza a cadeia e o consentimento com o gozo

do Outro, com conseqüentes efeitos pacificadores sobre o gozo invasivo.

Acreditamos que, mesmo tendo em mente essa lógica, não devemos alçá-la

à condição de ideal a ser necessariamente alcançado pelo tratamento. Muitos psicóticos

nem sequer conseguem chegar a P1, enquanto outros não saem dessa tentativa

desordenada de significantização, sendo raros os psicóticos que alcançam a pacificação

descrita em P3. É preciso que estejamos atentos às possibilidades de localização de gozo

próprias a cada sujeito.

Além disso, mesmo nos delírios que alcançam P3, as organizações estão

sujeitas a desestabilizações, de modo que este ponto de acabamento não é

necessariamente uma solução definitiva. E mais: mesmo nas organizações delirantes

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mais estáveis, há sempre um resto inassimilável que subsiste para além do trabalho de

elaboração delirante, como um “um eco de la violencia ejercida por las iniciativas del

Otro” (Maleval 2002: 283). Algo do real persiste às tentativas de regulação do gozo pela

linguagem, apontando, conforme já mencionamos, para uma falta estrutural no Outro,

constituinte da ordem simbólica enquanto tal.

O risco da assimilação mortífera com a posição de objeto do gozo do Outro

está sempre presente na psicose, como vimos desde Freud (1911), quando este ressalva

que o delírio mantém a posição narcisista do eu, embora, paradoxalmente, constitua

uma tentativa de produzir um descolamento entre o eu e o objeto através da construção

de uma proporção.

Trata-se de uma ressalva importante quando nos questionamos sobre as

possibilidades e limites do trabalho do delírio. Em muitos casos, como já pontuamos, as

tentativas de localização de gozo vão se dar por vias que podem inclusive prescindir

totalmente do delírio, ou ainda por vias que passam pelo delírio, mas não se restringem

a ele. Veremos agora esta última situação no próximo capítulo, a partir de um caso de

nossa clínica.

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Capítulo 4 – SOBRE AS “LINHAS FORTES”: CONSIDERAÇÕES SOBRE UM CASO DE PSICOSE

“A vida da gente é uma linha esticadinha. Se embaralha, dá um nó danado. É preciso então desembaraçar as linhas e procurar as linhas fortes.”

João Pedro

4.1 NOTA PRELIMINAR

A proposta de discutir o trabalho do delírio na estabilização de uma psicose

nos parece enriquecida quando, atrelada às elaborações teóricas e a casos clássicos da

literatura psicanalítica, apresentamos um caso de nossa própria clínica.

Isto porque, através das questões que a clínica suscita e convoca, somos

levados a interrogar mais de perto nossos instrumentos conceituais, pô-los à prova no

sentido mesmo de nos questionar se eles nos são úteis e suficientes para pensar aquele

caso específico.

Temos tentado, nesta dissertação, estudar a possibilidade de estabilização de

uma psicose através do trabalho do delírio. No entanto, deparamo-nos com um caso

onde a elaboração delirante, apesar de intensa, não parece, até o momento, organizar-se

em torno de uma metáfora delirante.

Destacamos então algumas perguntas que gostaríamos de cernir neste caso

específico, e que se articulam de modo mais estreito à discussão teórica de nossa

dissertação: qual é a direção do trabalho do delírio neste caso? Podemos localizar

efeitos estabilizadores mesmo sem que este delírio esteja organizado em torno de uma

metáfora delirante? Quais são as vias privilegiadas de localização de gozo?

Questionamo-nos se se trata de um paciente estabilizado. Até o momento,

sustentamos a hipótese de que sua estabilização é bastante precária, embora lhe permita,

por exemplo, nunca ter sido internado e dar conta de muitas atribuições dentro de sua

casa, como pai de família que é.

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Além disso, precisamos localizar em que consiste exatamente o trabalho

desta psicose, que elementos permitem com que esta estabilização, ainda que precária,

possa se dar. Estamos cientes do risco que corremos, durante esta discussão, de perceber

que precisamos dispor de outros elementos para pensar este caso, para além dos

conceitos-chave de nossa dissertação.

Diante deste risco, temos o cuidado de não forçar o caso para que ele se

adéqüe aos conceitos que pretendemos trabalhar. Não é essa a indicação freudiana.

Freud teve sempre o cuidado e o rigor de pôr seus instrumentos e sua teoria à prova do

que a clínica lhe mostrava, e foi esta atitude que lhe permitiu os maiores avanços.

Também o paciente de nosso caso nos indica este caminho quando diz: “Eu não me

fantasio para a vida toda. Do jeito que a situação está eu coloco minha roupa (...) às

vezes você lê um livro todo, e é uma pequena palavra que resolve o problema.”

Seguindo a orientação freudiana de construção do caso tomando como base

os elementos que ele próprio fornece, recortamos algumas falas do paciente que

consideramos essenciais para situar a posição desse sujeito em relação ao gozo52.

Não escolhemos um caso perfeitamente adequável aos conceitos que

pretendemos destacar, como uma prova de sua validade e importância. Trata-se, pelo

contrário, de um caso que nos suscita inúmeras questões. Obviamente, como se trata de

um caso bastante rico e com inúmeros elementos, muitas são as vias possíveis de

recorte, e precisamos escolher.

Privilegiamos aqui a discussão em torno do delírio, de como ele se apresenta

e que efeitos promove. Poderíamos cernir nossa questão central neste caso do seguinte

modo: “O que este caso nos ensina sobre o delírio e sua função?” Percebemos um

certo tipo de trabalho, que passa pela elaboração delirante, mas que necessita de um

insistente trabalho no corpo, trabalho de fazer um corpo.

Até o momento, ele não tem um delírio que seja suficiente para organizá-lo

na existência, embora sua existência seja permeada por esse trabalho de construção que

inegavelmente passa pelo delírio. Assim, são perceptíveis e distinguíveis fenômenos

primários que o abatem (corpo furado, comandos alucinatórios freqüentes etc.),

52 Todas as referências as falas do paciente foram mantidas entre aspas e em itálico.

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acompanhados de um intenso “trabalho da psicose” que passa inegavelmente pela

elaboração delirante.

Localizamos duas ordens de fenômenos, distintas, porém absolutamente

interligadas: fenômenos de constituição do Outro, onde localizamos a dimensão das

instituições (Rede Globo, governo e hospital), e fenômenos na ordem de fazer um corpo

(correr, praticar exercícios, “mostrar a agressividade”, superar os recordes, “destruir e

consertar”, intervir sobre o espaço urbano da cidade), que são também uma forma de

tratar esse Outro com o qual está lidando.

É importante precisar que a questão do corpo na psicose não é o tema de

nosso trabalho de pesquisa, mas sustentaremos provisoriamente a hipótese de que, neste

caso, o trabalho no corpo não é um segundo recurso mobilizado, nem sequer um resto

do trabalho do delírio, mas está a serviço deste.

Sublinhamos ainda que não é nossa pretensão apresentar um saber unívoco

sobre o caso, mas aprender sobre essa tentativa peculiar, essa dimensão singular de

localização de gozo, no sentido de por em movimento, fazer operar a teoria que

apresentamos, e com isso extrair suas conseqüências.

4.2. O CASO CLÍNICO

4.2.5 Demanda Inicial

Começamos a atender João Pedro de Souza53 no Instituto de Psiquiatria da

UFRJ no início de 2006, a pedido de sua psiquiatra. Com a saída da psicóloga que

durante um certo período o acompanhara, João Pedro passa a dizer que a instituição

estava prejudicando o seu tratamento, e que isso fazia parte de um grande complô que

incluía o hospital, o governo e a Rede Globo: “Comecei a pensar que as pessoas do

hospital haviam se juntado para me afastar. Me senti largado, jogado”.

53 A escolha do nome fictício foi feita levando-se em consideração duas peculiaridades importantes, quais sejam, conter dois prenomes e ter um apenas um sobrenome, sendo este bastante comum, incapaz de diferenciá-lo, segundo suas palavras. Este sobrenome “sem tradições” não é suficiente para dar-lhe um lugar que o inscreva na ordem das gerações.

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Percebemos que João Pedro, desde o início de seu tratamento, já nos

apresenta a posição estrutural do sujeito na psicose, a de ser objeto do gozo do que

poderíamos denominar de “figuras do Outro”, a dimensão das instituições, presentes de

modo incidente em sua fala.

Segundo informações do prontuário, João Pedro passou pelo Grupo de

Admissão do instituto, onde enunciou uma “dúvida”: “Será que ao final do tratamento

serei transformado em mulher?”

Dizia-nos então, por ocasião dos primeiros atendimentos, que tem certas

coisas, “traços”, que não consegue esquecer, “como num coquetel, onde a letra de uma

palavra serve para outra palavra”. Na ausência de um referente que sirva como ponto

de basta, evidencia-se em sua fala um certo fluir metonímico que tende ao infinito, o

que dificulta, por exemplo, a conclusão de um certo assunto.

Observamos no caso a presença constante do que Lacan denomina, em De

uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose (1957-58a), de

fenômenos de mensagem, quais sejam, as mensagens interrompidas, indicativas de uma

significação em suspenso, e que se interrompem no momento mesmo de sua

significação: “É ela (...), lá vem ela (...), é dela (...)”. Estas mensagens, tamanha sua

presença e consistência, são equiparadas por ele a “chiclete na boca de criança”.

Também são freqüentes os fenômenos de código: neologismos

(maturalidade54, ortopia), fenômenos de vazio de significação (“Por que o Papai Noel

deixa presentes nas meias de todas as casas do morro, menos na minha?”) e as

intuições (“O céu está mais alto que de costume. Algo deve me acontecer”).

Deparando-se com essa dificuldade no campo da linguagem, João Pedro

passa a fazer uso, no tratamento, do que denomina de “metáforas”, instaurando uma via

interessante de trabalho, de endereçamento: “Eu uso essas metáforas para que você

possa me entender. Se eu falo direto, você não vai me entender. Preciso usar

simbolismos”.

54 Pensamos tratar-se de um neologismo composto pela aglutinação de maturidade e naturalidade.

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O que ele chama de “metáforas”, entendemos como uma tentativa de dizer

quem é55, fazendo uso do recurso da comparação, e não propriamente de uma metáfora:

“Sou como um peixe, que vive no mar, mas não é salgado”; “se eu fosse um queijo,

seria o queijo mais caro, porque meu corpo é todo furado de bala”.

4.2.6 História do Caso

João Pedro é casado há 24 anos e pai de dois filhos, um rapaz de 17 e uma

menina de 06 anos. Muito embora sua psicose seja declarada de modo evidente, jamais

foi internado. Está afastado do trabalho há cerca de 9 anos, e apesar das perícias

regulares, não foi ainda aposentado.

Em uma pasta que sempre carrega consigo, guarda toda a documentação

referente ao hospital e ao auxílio-doença, além de vários recibos e carnês de lojas

populares, com os quais faz compras parceladas que “equipam” sua casa. Este

“equipar” a casa, acompanhado do lugar que ocupa em relação à família, é o que de

menos delirante podemos localizar em sua fala.

Preocupa-se com o conforto da família, com a alimentação e vestuário dos

filhos, com seu corte de cabelo e roupas, e diz ser de sua inteira responsabilidade o

cuidado e sustento da família. Por isto, teme a perda do auxílio-doença, esse “presente

do governo” que permite com que cumpra esta função, mas que está sempre em risco de

perder.

Certa vez, diante do intenso receio da perda do benefício (que se renova a

cada três meses), diz carregar a “dúvida” de se a cantora Sandy é verdadeiro pai de sua

filha, sendo ele apenas um instrumento utilizado para dar conforto à família.

Percebemos então que seu delírio invade até mesmo o que de menos delirante parecia

haver em sua fala.

João Pedro circunscreve as sessões como o lugar onde pode falar de sua

“agressividade”, “contar o da semana”, de modo que apesar dos três anos de

55 Ana Cristina Figueiredo, em uma supervisão do caso, propôs, para estas metáforas, a denominação de “metáforas do ser”.

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atendimento, alguns pontos de sua história familiar ainda nos são obliterados.

Entendemos que, sobre alguns pontos, não fala porque também lhe faltam elementos:

“Minha infância é como um jogo de quebra-cabeças com 5000 peças e que eu só tenho

1000, como um livro faltando páginas, e as que têm não são suficientes”. Nesta fala,

vemos um registro surpreendente desse buraco decorrente da foraclusão do Nome-do-

Pai.

Sabemos que tem duas irmãs, uma mais velha e outra mais nova, das quais

nunca fala. Diz não saber o porquê de seu pai ter deixado sua mãe, mas supõe que foi

por sua causa, pelo fato de ter nascido “rosado, muito branquinho e pequeno, enquanto

ele era um caboco, um índio, um negão do tamanho dessa porta.”

Diz ainda ter visto pela Rede Globo que seu enxoval era todo de menina.

Podemos precisar esse ponto em que o pai não comparece no relato de João Pedro. Seu

nome não o diferencia, e essa não inscrição promove efeitos. Em sua origem, algo da

ordem de uma filiação, de um reconhecimento, não se opera.

Conta que viu o pai apenas duas vezes. Na primeira, ainda criança, seu pai,

vestido de índio durante o carnaval, foi a sua casa “mostrar a fantasia”, o que o

assustou muito. A segunda vez foi no hospital, quando o pai estava à beira da morte,

sendo que desta vez não sabe se o viu ou se imaginou tê-lo visto.

Como a mãe era muito “namoradeira”, fica a dúvida de quem era seu pai.

Nada o liga a uma “tradição”, a um “nome”: “Minha infância foi dada por terceiros;

não foi uma infância familiar. Tudo que acontece comigo hoje é um reflexo da minha

vida familiar, todos os meus medos, a minha raiva. Minha família não tem nome, não

tem tradições”.

Após o afastamento do trabalho, aproxima-se de sua mãe, que tenta instruí-

lo na obtenção do auxílio-doença. A mãe morre pouco tempo depois, e João Pedro

entende que fora envenenada nas proximidades do Maracanã por tentar ajudá-lo.

O delírio tenta, mas não consegue, responder à questão da filiação. Às vezes

pensa, sem nenhuma certeza, que é filho de alguém importante da Rede Globo. “A

minha infância dá provas reais de que eu tinha pais muito diferentes dos meus. Vamos

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então emendar a linha. Como eu posso ter conseguido tanta coisa se eu era tão

carente? Devia ter outros pais por trás me ajudando. Com toda essa emenda de linha

da minha vida você não acha que eu devia ter outros pais me ajudando?” É importante

ressaltar que esta hipótese, que comparece muito pontualmente, não é apresentada em

termos de certeza: “Acho que sou filho...”, “Devo ser filho...”, “Só posso ser filho...”

etc.

4.2.7 Do desencadeamento

Convém trazer alguma luz sobre o que pensamos, a título de hipótese de

trabalho, tratar-se das condições que, num dado momento da vida de João Pedro,

abalam este precário equilíbrio. Coloca-se então a pergunta de Lacan: “O que será que

torna subitamente insuficientes as muletas imaginárias que permitiam ao sujeito

compensar a ausência do significante?” (Lacan 1955-56: 233)

Após ser demitido de uma empresa de fórmicas, já casado, começa a

trabalhar como cobrador de ônibus na empresa “Real”. Nesta época, situa aquilo que

considera os primeiros sinais de sua doença, a morte de sua filha logo após no

nascimento, há 19 anos, o que atribui a um erro médico.

Quando vê a filha morta, decide tocá-la e percebe que seu corpo estava

quente, embora devesse estar gelado. Alguém desaparece, e de um modo bastante

estranho. Ela deveria estar fria, mas seu corpo está quente. Há algo de errado.

Destacamos que, neste ponto, nascimento e morte se misturam, denunciando um vazio

de significação. A filha morre assim que nasce, e, confrontado com o irredutível da

experiência da vida/morte, João Pedro encontra no delírio um artifício, atribuindo esta

morte à “Meneguel”, embora até hoje não saiba dizer com que propósito.

Localizamos neste ponto um primeiro desencadeamento. Seu cotidiano, no

entanto, não é ainda alterado de um modo mais radical. João Pedro continua trabalhando

neste “novo mundo”, a “área rodoviária”, o que lhe produziu, diz, uma “grande

distorção psicológica”, pois “fábrica é uma área interna. Transporte urbano é

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diferente. É um pedaço de ferro, a sociedade e o dinheiro.” A ausência da referência

fálica para lidar com estes novos elementos se faz sentir.

Depois de 06 ou 07 anos como cobrador de uma mesma linha de ônibus, a

empresa o transferiu para o “Frescão” do aeroporto internacional. “Aí as frutas

começaram a secar, porque antes eu já estava habituado. No Frescão era uma coisa

muito pesada, porque tinha excesso de bagagem, eu via pessoas de brincadeira pelo

retrovisor passando de um banco para outro. Isso era uma irresponsabilidade delas, e

eram pessoas muito sofisticadas. Eu era como uma plantinha que estavam tentando

quebrar. Eu não sabia a quem cobrava porque os passageiros mudavam de lugar. Senti

que aquilo era uma armação para me demitirem por justa-causa”.

João Pedro fala dessa estranheza, dessa verdadeira catástrofe que altera os

seus hábitos, todo o seu corpo, a sua “massa cefálica”. Pensamento e visão coincidem,

diz ele, índice deste desencadeamento sob o plano dos registros.

No Seminário III (1955-56) e na Questão Preliminar a todo tratamento

possível da psicose (1957-58a), Lacan fala do desencadeamento psicótico como um

mecanismo de eclosão, de ruptura, relativo ao encontro do sujeito com um significante

ao qual ele não pode responder, remetendo-o à foraclusão do Nome-do-Pai e à ausência

de significação fálica.

Como já articulamos a propósito da teoria clássica do desencadeamento

psicótico, a irrupção de uma psicose é correlativa a presença alguns elementos: a

condição estrutural da ausência do Nome-do-Pai; a causa contingente relativa ao

encontro com Um pai, produzindo uma desestabilização; e a conseqüente quebra de

uma identificação imaginária ou de algum elemento estabilizador.

Localizamos neste ponto um desencadeamento mais disruptivo. Diante do

significante Frescão, que retorna desde fora, temos a conseqüente perplexidade: não

consegue mais pegar as bagagens, sente que os passageiros querem ludibriá-lo. É

também acometido de diferentes manifestações corporais. Acredita ter sido intoxicado

com água contaminada, o que o fez entrar no que chama de “estado alucinático”. Vai

para casa e começa a malhar até cair no chão “A contaminação tinha atingido toda a

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minha massa cefálica. Nessa época eu já malhava muito, e era a física que me curava.

Aí comecei a me sentir bem do corpo, mas não da mente”.

Começa neste ponto a criar o que chama de “mundo infantil, da

imaginação”. Imagina que sua esposa o está traindo, o que relaciona a lembranças que

não têm como provar. Não diz que lembranças eram estas. Neste momento específico é

que o esporte passa a ser o que chama de “medicação”. Diz que todos os sintomas

depois passam a ligar-se a esse parque infantil, onde a “imaginação” e o esporte se

ligam.

É então transferido para a Barra da Tijuca, numa nova função, a de fiscal.

Após as trevas, diz, começa a luz do sol. Mas como pode ter sido agradado se

desagradou a empresa? Este lugar não lhe é merecido. “Uma pessoa comum não teria

tido essa liberdade. Era como uma criança acalentada.” Cerca de seis anos depois é

afastado do trabalho e inicia o tratamento psiquiátrico.

4.2.8 O delírio e seus efeitos

Em nosso terceiro capítulo, procuramos cernir como Lacan articula, a partir

de Schreber, essa lógica peculiar posta em jogo em uma metáfora delirante, na medida

em que nem todo delírio se articula deste modo.

Sustentamos, em relação a este caso, a hipótese de que não há, ainda, uma

metáfora delirante precisada, um certo núcleo delirante em torno do qual as coisas se

organizem. Vimos, a propósito de nossa discussão sobre a metáfora delirante, que ela

opera via circunscrição de um significante ideal localizado assintoticamente. Na

construção delirante de João Pedro, observamos que certos elementos se repetem, mas

não se coordenam em torno da circunscrição de um significante ideal reenviado para o

infinito.

Entre Rede Globo, governo e hospital, é possível destacar que a Rede Globo

está em uma posição privilegiada, advindo com maior ênfase, destaque e importância

em sua fala. Podemos localizar a Rede Globo como o Outro privilegiado do delírio

deste paciente, em relação ao qual ele se situa como “um importante instrumento de

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trabalho”, mantendo-se a posição narcisista do eu (eu=objeto). É em relação à Rede

Globo que ele situa sua suspeita (não é uma certeza) de filiação. É também esta

instância que é rica em nomes, em personagens protetoras e perseguidoras, ao contrário

do governo e do hospital.

Há, no entanto, momentos do tratamento em que sua relação com o hospital

ou o governo é destacada, como quando está às voltas com laudo, passe-livre e perícia

médica.

Visto que não localizamos no caso algo da ordem de uma metáfora

delirante, tentemos então precisar, a partir dos elementos teóricos já apresentados, como

este delírio se articula neste momento do tratamento, quais as suas funções e efeitos e o

que ele não tem conseguido responder.

Para tanto, utilizaremos a leitura que Maleval (2002) promove dos textos de

Freud, Lacan e alguns psiquiatras clássicos, onde propõe um certo desenvolvimento da

construção delirante em fases.

Investigaremos então a complexa rede delirante de nosso paciente à luz

dessa lógica quaternária, mais uma vez ressaltando que tal lógica não segue uma

ordenação cronológica ou evolutiva, nem tampouco estanque.

1. PO: Deslocalização do gozo e da perplexidade angustiante: momento do

desencadeamento psicótico propriamente dito, onde destacamos a ruptura da cadeia

decorrente da autonomia do significante Frescão. Acreditamos, como vimos a propósito

do desencadeamento, que algo se opera nessa passagem de “cobrador” ao “Frescão do

aeroporto”, fazendo vacilar a identificação imaginária com o homem cobrador. Vimos

toda a proliferação de fenômenos decorrentes da deslocalização do gozo: perplexidade,

sintomas hipocondríacos, delírio de ciúme, diferentes experiências corporais, idéias de

intoxicação e contaminação, entre outros.

2. P1: Significação do gozo deslocalizado: diante dessa experiência bastante

ruidosa de deslocalização do gozo, iniciam-se as tentativas de significação. Invadido por

um excesso de angústia, João Pedro se volta a um trabalho de mobilização do

significante de modo a tentar explicar os fenômenos que o invadem. Passa a atribuir à

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“Meneguel” as experiências que o acometem. Essa explicação, longe de o apaziguar, o

deixa submetido, entregue a essa poderosa figura de mulher.

Posteriormente, a Rede Globo se decompõe em uma série de personagens

protetoras e perseguidoras. O hospital e o governo passam também a compor a trama

delirante.

De um modo geral, no entanto, a relação com estas instituições oscila, todas

com um duplo viés: proteção e perseguição. Há de se ressaltar que não são relações

estanques, o que entendemos como um ponto positivo, na medida em que exatamente

por isso ele pode se alojar, realizar um trabalho. Destacamos aqui o modo como se

ordena esse duplo aspecto nas três instituições:

a. Rede Globo: utiliza-lhe como “instrumento de trabalho”, pois seus olhos são

“pepitas preciosas”. João Pedro é um instrumento, mas não um instrumento qualquer.

Situamos aqui o que Lacan (1957-58a) designa de sacrifício da morte do sujeito. Em

relação à Rede Globo, João Pedro passa a ter uma função, o que requer de sua parte uma

atividade (“a sala da minha casa é um importante escritório da Rede Globo”).

Destacamos ainda que esta figura do Outro é decomposta entre personagens

que o protegem e que o perseguem, numa rede sujeita a alterações como quando, por

exemplo, um perseguido vai ao programa de um protetor. Nestes casos, fica diante de

um impasse. Não consegue especificar nisso um motivo definido.

b. Hospital: está sob a “tutela” do hospital, pois é “um doente, um paciente, sem

condições de voltar para o trabalho e viver em sociedade”. Deve respeito e obediência

aos funcionários do hospital Não pode mentir aos médicos. No entanto, estranha a

demora na emissão dos laudos médicos. Precisa destruir algo durante as corridas

(Maracanã, Estádio do Engenhão etc.) para conseguir o laudo médico mais rápido.

Sente-se “largado e jogado” diante da ausência da médica (que se afastara em licença

maternidade). Situa no hospital dois tipos específicos de tratamento: o da psiquiatria,

mais diretamente ligado ao governo, e a escuta analítica, que denomina de “trabalho

simbólico”, o de “emendar as linhas e procurar as linhas fortes”.

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c. Governo: fornece-lhe o benefício, com o qual “equipa a casa”. Ao mesmo

tempo, não reajusta o valor do benefício, impondo-lhe restrições financeiras. O governo

demora a decidir se o aposenta ou se mantém o auxílio-doença. Desconhece os

propósitos disso. Gostaria de uma decisão, mas diz que as autoridades não o escutam.

Precisa então praticar os exercícios físicos para mostrar seu valor, lembrar que está

vivo.

Enfatizamos ainda que Rede Globo, governo e hospital mantém relações

recíprocas e indissociáveis. Não há, por exemplo, como pensar o governo sem o

hospital. A aposentadoria depende do laudo. A Rede Globo emite, “nas entrelinhas”,

informações sobre o benefício.

3. P2: Identificação do gozo do Outro: vimos que é característica desta fase o fato

de os perseguidores se encontrarem identificados. Não podemos dizer, como vimos

anteriormente, que João Pedro tenha identificado claramente suas figuras perseguidoras.

Embora algumas destas figuras estejam localizadas (a cantora Sandy e a jornalista

Fátima Bernardes, por exemplo), na maioria das vezes os comandos alucinatórios que

recebe não são ligados a nenhuma figura persecutória.

É também freqüente que relate imperativos contraditórios que lhe chegam

do real sobre o que ele deve ou não fazer. Durante uma corrida em volta do Maracanã, é

comum que ouça, ao mesmo tempo, “quebre!” e “não quebre!”, “destrua!” e “não

destrua!”, o que o coloca entre acatar ou não os comandos que lhe chegam do real.

4. P3: Consentimento ao gozo do Outro: com Maleval (2002), vimos que um certo

apaziguamento é correlativo ao consentimento ao gozo do Outro, e que o psicótico, uma

vez consentindo, passa a se encontrar de acordo com o gozo então localizado.

Em João Pedro, não podemos identificar um consentimento desta ordem.

Muito pelo contrário, os comandos lhe atormentam, as perseguições e invasões no corpo

são constantes e poucos são seus momentos de descanso.

Esse gozo excessivo, pouco localizado, incide sobre o real de seu corpo,

exigindo-lhe um trabalho. Neste sentido, João Pedro se mostra incansável. Diante deste

corpo “furado”, passível de ser feminilizado por um Outro intrusivo e sem nome, João

Pedro engaja-se no que chama de “luta de morte” de modo a não se deixar levar, e o faz

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através de exercícios físicos exaustivos. Seu corpo precisa ficar forte, atlético,

masculino.

Apesar dos constantes ataques (de fora) que seu corpo sofre durante as

corridas, João Pedro sempre realiza grandes feitos de modo a reagir: suspende o céu,

rebaixa o mar, empurra o ar e com isso ataca o aeroporto internacional, move o morro

do Pão-de-açúcar etc.

Não há dúvida de que, se “o céu está mais alto que de costume”, isso lhe

concerne, é sinal de que algo vai acontecer, exigindo-lhe um trabalho, trabalho delirante

e sempre ligado a seu corpo. João Pedro adquire uma atitude bastante ativa em relação

às mensagens que lhe chegam do real. Trata-se do que Colette Soler (2007: 186) chama

de psicótico trabalhador.

Este trabalho do delírio veiculado ao corpo, no entanto, não vai no sentido de

acatar a feminilização. Pelo contrário, o trabalho do delírio vai na contramão de um

consentimento à feminilização. Se não corre, “o corpo fica rosado, a barriga cresce, o

rosto e a cintura ficam finos”.

Acreditamos então que, mesmo sem uma metáfora delirante, este paciente

constituiu algumas linhas de trabalho, todas no sentido de uma certa contenção de gozo,

que vão por direções não-excludentes:

1. Trabalho delirante de constituição do Outro: caracterizar detalhadamente o

possível propósito das instituições (Rede Globo, governo e hospital), e sua posição em

relação a estas. Com freqüência, este propósito lhe exige um trabalho delirante de

deciframento, a partir de pequenas pistas. Por esta via, há uma tentativa de localização

do gozo no campo do Outro.

2. Trabalho de constituição e, como ele mesmo diz, “manutenção” do corpo,

através dos exercícios físicos, da “agressividade”. Chama-nos atenção a diversidade

das manifestações corporais relatadas por este paciente. Fenômenos de despedaçamento

são freqüentes: “é como se a perna nem estivesse mais lá, é como se o braço ficasse

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solto”. São também comuns as sensações de transformação corporal, que apontam para

o risco eminente de feminização (corpo ficando delicado, feminino, rosado, furado etc.).

Na falta de uma consistência imaginária do corpo, o exercício lhe permite

alguma apreensão deste corpo. Muitas vezes, mostrar que está vivo, mostrar o seu valor

exige o desgaste do corpo. O exercício o deixa exausto e, no limite, pode levá-lo à

morte. João Pedro dá aos exercícios a dimensão de um fazer: “Muitas vezes não basta

falar. É preciso fazer. Para ele buscar a solução ele precisa fazer”, ou ainda, “Quando

eu faço minhas bravuras, estou tentando me defender”.

Deve-se, no entanto, enfatizar, que entendemos este trabalho com o corpo

não como um resto do trabalho do delírio, não como um segundo recurso mobilizado

na tentativa de localização do gozo. Durante os exercícios, realiza uma série de

intervenções sobre o espaço da cidade (afunda o Maracanã, rebaixa o céu, suspende o

mar, quebra o dedo de Deus, corta os fios que sustentam o do teleférico do Pão de

Açúcar, faz Dom Pedro descer do cavalo de ferro, etc.). Sustentamos a hipótese de que

temos um trabalho com o corpo vinculado a uma dimensão delirante, a serviço do

delírio.

No entanto, não podemos deixar de precisar que este “trabalho no corpo”,

ainda que referido a um propósito delirante, denuncia um certo limite da linguagem em

dar conta desse excesso. Algo transborda, e o corpo é então convocado.

3. Tentativa de dizer quem é: “Ele é frágil, incompreensivo, tem um

perfeccionismo grande, não esquece um passado, tem uma manutenção muscular, tem

diamante nas vistas. Às vezes ele aumenta, se expande, é um animal, é um bandido, é

uma marionete, é uma criança chorona, é um cachorro de madame, é um cachorro

vira-lata”.

Situamos aqui os samba-enredos, que ele canta em casa, nos ônibus,

enquanto corre e na sala de espera do ambulatório. Considera que a letra do samba, por

fazer referência a uma história, lhe permite saber mais sobre si próprio.

O período que antecede ao Carnaval lhe é vivido com certa expectativa.

Assiste, pela televisão, a todas as escolas de samba, com o propósito de acompanhar

seus enredos, e assim “emendar a linha”. Na ausência de um referente fálico que

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veicule para João Pedro uma historicização, a letra do samba serve como um certo

referente, dando-lhe algumas coordenadas.

4. Tentativa muito incipiente de constituição de um delírio de filiação, referido

à possibilidade de ser, talvez, filho de alguém importante da Rede Globo (enunciado

como mera suposição). João Pedro fica admirado com pessoas famosas que, mesmo

sem um “sobrenome de gerações”, conseguem fazer seu próprio nome. Devido à

foraclusão do Nome-do-Pai, João Pedro se encontra fora de uma série, de uma ordem na

linhagem (Lacan 1955-56: 359). Surge então a questão de seu sobrenome, que não o

diferencia por ser, segundo ele, demasiado comum. Não vemos ainda, neste caso, um

delírio de filiação caracterizado, embora ele formule algumas suposições que visam dar

conta da questão de sua origem.

5. Trabalho de “manutenção simbólica” pelo tratamento, através do qual, diz,

“o mundo fica mais organizado”. “Através das consultas eu tento esclarecer as coisas

sem esclarecimento”. “Você faz um curativo no seu paciente com um lado psicológico-

verbal de organização. Se eu não tenho respostas, fico incontrolável”. Sob este aspecto,

também nos retifica quanto à direção do tratamento e o risco, sempre posto, da

compreensão: “Vai emendando a linha. Não tenta entender, raciocinar muito não, que

é muito complicado. Vai só emendando os traços psicológicos que você vai entender

seu paciente”.

Podemos localizar, de modo ainda muito pontual, porém importante, a

produção de uma certa escansão entre João Pedro e o Outro como efeito do trabalho

analítico: “Sou manipulado a cortar os fios do teleférico, me mandam fazer isso. Mas

quando eu conto pra você, sou eu falando de como eu sou manipulado, e isso é

diferente”; ou ainda, após uma falta nossa ao atendimento, em que não conseguimos

avisá-lo a tempo e deixamos um recado na recepção do instituto: “Eu te desculpo. Você

erra, eu erro, todo mundo erra”.

Notemos como a significação delirante comparece como pano de fundo em

todas estas vias de trabalho. No entanto, entendemos que a direção do tratamento deve

ter o cuidado de valorizar as soluções deste sujeito, os recursos subjetivos que utiliza

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como caminhos para a estabilização. Seria ingênuo apostar na solução assintótica da

metáfora delirante, sem estarmos atentos ao que, de singular, comparece na procura

incansável deste sujeito por uma estabilização.

Esta é, exatamente, a riqueza deste caso, sua busca insistente de constituir

um corpo, de reagir às invasões do Outro sobre este corpo. Seu trabalho testemunha o

esforço delirante de localizar este gozo que transborda pelo corpo.

Se observamos, por um lado, uma busca metonímica de sentido, esta mesma

busca é correlata de uma tentativa constante de se posicionar face à invasão de gozo.

João Pedro queixa-se de cansaço, diz precisar descansar:“Pensar demais cansa, e eu

particularmente não sabia”. A atividade delirante o toma, nos levando a questionar o

que pode vir a fazer função de um certo ponto de basta nesse caso.

Deslizando entre essas diferentes vias, os recursos de João Pedro, embora

complexos, ainda são frágeis quanto à estabilização. Apesar de todo seu esforço, ainda

não localizamos um certo ponto de amarração que possa, de algum modo, servir de

continente ao gozo que invade diuturnamente o seu corpo.

Suas estratégias, no entanto, têm se mostrado eficazes no sentido de permitir

um certo lugar em sua casa, junto à família, na preocupação e cuidado com a esposa e

os filhos. Precisamos valorizar este trabalho, que nos convoca.

Entendemos, a partir do que temos trabalhado ao longo destes anos com este

paciente, que discutir um caso de psicose é adentrar num terreno onde as teorizações

estão em aberto, lançando questionamentos e impasses que se impõem tanto ao campo

conceitual quanto à prática clínica.

Exatamente porque impõe dificuldades importantes é que a consideração

deste tema é essencial, ainda que toque num impossível de suportar, de dizer e também

de compreender.

Num caso tão rico quanto este, de tanta produção delirante e de tanto

esforço, trabalho subjetivo de reconstrução de mundo, a construção do caso clínico é

sempre, de algum modo, recortada, reduzida, redução necessária para que algo possa ser

dito.

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Procuramos circunscrever o trabalho do delírio no caso, e acreditamos ter

localizado efeitos deste trabalho mesmo sem a demarcação de uma metáfora delirante.

Pensamos que a necessidade de recorrer a um fazer com o corpo não renega a

importância que o trabalho do delírio tem neste caso. “É preciso respostas na palavra e

na ação, no lado delicado das palavras e na ação. É uma agressividade que tem que ser

representada”. É cada vez mais necessário colocar em questão o efeito desta abertura

na clínica da psicose, onde o problema da significação aparece escancarado, a céu

aberto.

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CONCLUSÃO

Refletir sobre o tema das psicoses é adentrar num terreno cujas teorizações

estão absolutamente em aberto, lançando questionamentos e impasses que se impõem

ao campo conceitual psicanalítico, bem como à prática clínica.

Exatamente porque impõe dificuldades importantes é que a consideração

deste tema é essencial, ainda que toque num impossível de suportar, de dizer e também

de compreender. Assim, pensar o fenômeno psicótico é sempre, de algum modo,

recortá-lo, reduzi-lo, redução necessária para que algo possa ser dito.

Em nosso recorte, acreditamos ter abordado pontos importantes para a

consideração do tema do delírio em psicanálise, visto aqui a partir da possibilidade de

estabilização que pode vir a veicular, ainda que se mantendo a ressalva de que nem todo

trabalho delirante é feliz quanto a esta função.

Acentuamos o caráter precursor da visada freudiana quanto ao delírio,

atribuindo-lhe uma positividade quanto à constituição de um mundo possível de habitar,

no que reata os laços com a realidade. Esta perspectiva vai na contramão da acepção do

delírio enquanto falsa percepção de uma suposta realidade sensorial, relativa a um

excesso da imaginação ou controle inadequado da vontade, ou ainda erro do juízo. Não

podemos obliterar a dimensão do quanto este gesto é fundador.

Enfatizamos ainda, quanto ao passo freudiano, a importância na busca da

delimitação de um mecanismo para a psicose, que tivemos o cuidado de não encerrar

em uma leitura mecanicista (causa e efeito). Recortamos como essencial a incidência

daquilo que comparece desde fora, o que é diferente de uma projeção, de um retorno.

Marcamos ainda a relação do delírio com a linguagem, bem como a

observação sobre o seu caráter de tentativa, nem sempre exitosa, de retorno da libido

aos objetos. Enfatizamos que esta via tem o condão de manter a posição narcisista do

eu, embora se constitua como tentativa de fazer frente a tal posição.

Com Lacan, nos interessamos em recortar a dimensão da metáfora e o tipo

de articulação que ela promove no psiquismo. A análise da acepção de metáfora

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empreendida por Lacan nos foi útil e enriquecedora, e pudemos apreender que falar de

metáfora é falar de um certo tipo de lógica, de uma operação, aos moldes de uma

proporção matemática. Lacan estava, antes de tudo, articulando um modo de

funcionamento que ele retira do texto freudiano, fazendo uso dos saberes de seu tempo.

Destacamos, no que tange a estes, a contribuição deste lingüista notável que foi Roman

Jakobson, cujo trabalho esteve às voltas com a poesia e a dimensão do ruído, do não-

sentido.

Foi por esta via, levando em conta a dimensão metafórica do pai, que

entramos na discussão da noção de ponto de basta, abrindo a perspectiva de que outros

elementos, que não o Nome-do-Pai, podem fazer a função deste operador, e aqui

destacamos a certeza delirante.

Em seguida, enfatizamos a importância e atualidade do conceito de

foraclusão do Nome-do-Pai, que só se vê enriquecido com os avanços posteriores do

ensino de Lacan. Discutimos o desencadeamento psicótico na acepção clássica, ainda

que levando em consideração a existência de desencadeamentos menos ruidosos, mais

discretos.

Achamos conveniente abrir um item para precisar a noção de estabilização

que utilizamos. Isto porque, apesar de seu uso corriqueiro, consideramo-la uma noção

perigosa e bastante aberta a mal-entendidos e imprecisões. Pensamos ter conseguido

sustentar seu uso a partir de uma referência psicanalítica, que a considera distinta de um

mero entorpecimento, sendo este passível de ser conseguido por outras vias que não o

trabalho subjetivo.

Lacan fala, textualmente, em estabilização como construção de uma

realidade estabilizada em seu esquema I. Fizemos uso deste esquema para trabalhar a

idéia de localização de gozo, que é veiculada, no esquema scheberiano, pela via do gozo

transexualista. Com isso, estamos dizendo que já é possível, de forma precisa, falar em

localização de gozo em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da

psicose (1957-58a), mesmo antes da teorização posterior sobre o objeto a.

De posse desta noção de estabilização, trabalhamos a construção delirante

propriamente dita. Interessamo-nos em desenvolver a idéia, presente deste Freud, de que

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o delírio comporta uma lógica particular. Para tanto, recorremos mais uma vez a

Schreber e a uma certa sistematização desta lógica que Maleval (1998; 2002) retira do

texto lacaniano, sempre com a ressalva de que esta proposta não diz de um caminho pré-

estabelecido para o encaminhamento de todo delírio.

Por fim, apresentamos nosso trabalho a partir de um caso de nossa clínica.

Gostaríamos, neste momento, de enfatizar a felicidade que tivemos com o encontro

deste caso, que nos foi um verdadeiro presente recebido de sua então psiquiatra, atenta à

necessidade de uma escuta mais atenta deste sujeito. Parte essencial de nossa formação

nos últimos quatro anos se deve a ele, com quem temos aprendido cotidianamente. A

persistência de seu trabalho nos motiva, nos convoca a avançar, nos lança questões que

vão muito além daquilo que conseguimos abordar no tempo deste trabalho, onde

enfatizamos a questão do delírio, como ele opera, quais são seus efeitos, a que ele

responde e o que deixa em aberto.

Seu relato nos revela um sujeito habitado pela linguagem, ensinando-nos

sobre este funcionamento peculiar. Vemos um sujeito que tenta constituir o Outro, e

neste mesmo ato, localizar um gozo que incide sobre seu corpo. Isto ele o faz

convocado, insistindo em ser escutado, em “provar que está vivo”. Ele apela, em ato,

correndo, fardando-se, “destruindo e consertando”, por um endereçamento de sua fala.

Gostaríamos ainda de enfatizar que apresentamos um caso ainda em

andamento, em que acompanhamos sua tentativa singular de construção de recursos que

permitam a este sujeito habitar a linguagem, reatar a cadeia significante, o que

impossibilita que tenhamos, neste momento, um certo olhar a posteriori sobre o caso.

Convém ainda uma última palavra sobre nossa posição em relação à leitura

que empreendemos dos textos utilizados nesta dissertação.

Ainda que tenhamos centrado nosso trabalho de leitura nos textos

lacanianos da década de 50 e 60, prescindindo, neste momento da escrita, das

teorizações em torno da topologia, acreditamos ter trabalhado numa perspectiva que

recusa, de saída, uma abordagem da psicose a partir das noções de falha ou déficit.

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Nossa leitura dos textos freudiano e lacaniano apontam para uma recusa

dessa perspectiva deficitária com relação às psicoses mesmo nos textos mais iniciais,

como enfatizamos a propósito da leitura freudiana sobre o presidente Schreber. Freud

positiva o mecanismo do delírio, ao atribuir-lhe um caráter de criação da realidade, e

consideramos este gesto absolutamente fundador.

Do mesmo modo, lemos em Lacan uma recusa expressa a esse modo de

conceber as psicoses já em seus primeiros textos, e esperamos que isto tenha ficado

expresso no modo como abordamos os textos da década de 50. Como já ressaltamos em

nosso texto, acreditamos que a pluralização do Nome-do-Pai não é incompatível com a

tese inicial da foraclusão do Nome-do-Pai, e acreditamos que a clínica da psicose se vê

enriquecida com os avanços posteriores.

Tal como entendemos, o fato de que nem todo sintoma se organize como

uma metáfora não invalida a importância decisiva da consideração desta noção, que

articula um certo modo de funcionamento (embora não exclusivo) do inconsciente, e

que tem muito a nos ensinar para a clínica.

Nessa perspectiva, não compartilhamos com uma certa leitura da obra de

Lacan que divide sua teorização com relação às psicoses em dois momentos: uma

primeira leitura - relativa a seus primeiros textos -, que a considera deficitária para com

relação à neurose, e uma perspectiva supostamente mais refinada, característica de sua

leitura topológica.

Ao estudarmos o tipo de estabilização que uma metáfora pode veicular,

abrimos caminho para o entendimento sobre a metáfora delirante, não no sentido de

tomar a neurose como modelo, mas no sentido de aprender, num certo vai-e-vem, que

lógica que opera neste tipo sui generis de metáfora que é a metáfora delirante.

Acreditamos que a idéia de Nome-do-Pai como um certo operador, na

premissa fálica, se vê enriquecida com a perspectiva de localização de gozo, na medida

em que podemos entender o Nome-do-Pai como um princípio regulador de gozo. Não

entendemos este princípio como exclusivo nem tampouco privilegiado, como

abordamos em nosso texto.

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É preciso levar em conta as vicissitudes de um Outro do gozo não marcado,

não regulado pela lei fálica. As psicoses nos mostram como as leis da linguagem estão

para além da lei interditora veiculada pelo Nome-do-Pai. Como vimos em nosso texto, o

Nome-do-Pai não é o único modo possível de fazer operar um ponto de basta,

amarrando, colcheteando significante e significado na cadeia significante.

Isto podemos ler no texto lacaniano mesmo antes da referência textual à

pluralização do Nome-do-Pai, na medida em que a própria metáfora delirante “Mulher-

de-Deus” nos aponta para uma certa amarração significante que não passa pelo Nome-

do-Pai, sendo esta função passível de ser preenchida por outros significantes.

Como vimos, não existe um significante último que feche a cadeia, e esta

falta estrutural no campo do Outro está colocada para todos. O delírio é uma forma,

entre outras, de tentar suplênciá-la.

Inúmeras questões ficaram em aberto ao longo de nosso texto, para serem

trabalhadas em um outro momento. Duas em especial, particularmente suscitadas pelo

caso que apresentamos: a articulação entre delírio e corpo, na medida em que o delírio

deste paciente convoca seu corpo, e a questão do endereçamento na psicose, em

particular, que tipo de endereçamento se opera neste caso.

Esse “algo mais”, que está para além do recorte feito neste trabalho, é o que

mantém aceso, nas palavras de Clarice Lispector, o “fino frio fio” do desejo, “essa coisa

grave e que impulsiona”.

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