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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE LETRAS E ARTES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO CURSO DE MESTRADO O TEATRO POPULAR DO VALE DO JEQUITINHONHA A PARTIR DO ESTUDO DA “VISÃO DE MUNDO” E DA CENA DO GRUPO ÍCAROS DO VALE. Área de Concentração: Teatro, Cultura e Educação Linha de Pesquisa: Teatro e Cultura popular Orientadora: Prof a . Dr a . Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti) Mestranda: Anna Maria Pereira Esteves Rio de Janeiro Março de 2007

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

CURSO DE MESTRADO

O TEATRO POPULAR DO VALE DO JEQUITINHONHA A PARTIR DO ESTUDO

DA “VISÃO DE MUNDO” E DA CENA DO GRUPO ÍCAROS DO VALE.

Área de Concentração: Teatro, Cultura e Educação

Linha de Pesquisa: Teatro e Cultura popular

Orientadora: Profa. Dra. Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabetti)

Mestranda: Anna Maria Pereira Esteves

Rio de Janeiro

Março de 2007

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O TEATRO POPULAR DO VALE DO JEQUITINHONHA A PARTIR DO ESTUDO

DA “VISÃO DE MUNDO” E DA CENA DO GRUPO ÍCAROS DO VALE.

por

Anna Maria Pereira Esteves

Rio de Janeiro

Março de 2007

Dissertação submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Teatro – Mestrado em

Teatro do Centro de Letras e Artes da

UNIRIO, como requisito parcial à

obtenção de grau de Mestre em Teatro na

Área de Concentração Teatro, Cultura e

Educação – Linha de Pesquisa Teatro e

Cultura Popular, sob orientação da

Professora Doutora Maria de Lourdes

Rabetti (Beti Rabetti).

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE LETRAS E ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

CURSO DE MESTRADO

BANCA DE DEFESA DE DISSERTAÇÃO

O teatro popular do Vale do Jequitinhonha a partir do estudo da “visão de mundo” e da

cena do grupo Ícaros do Vale.

em 16 de março de 2007

por Anna Maria Pereira Esteves

______________________________________________________________________

Professora Doutora Maria de Lourdes Rabetti (Beti Rabeti)

(orientadora)

______________________________________________________________________

Professor Doutor Daniel Marques da Silva

______________________________________________________________________

Professora Doutora Evelyn Furquim Werneck Lima

______________________________________________________________________

Professor Doutor José Luiz Ligiéro (Zeca Ligiéro)

(suplente)

Conceito:_________________________________________________________________

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Esteves, Anna Maria Pereira. E79 O teatro popular do Vale do Jequitinhonha a partir do estudo da “visão de mundo” e da cena do Grupo Ícaros do Vale / Anna Maria Pereira Esteves, 2007. 200f. Orientador: Maria de Lourdes Rabetti. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. 1. Grupo de Teatro Ícaros do Vale. 2. Representação teatral – Jequitinhonha, Rio, Vale (MG, BA). 3. Cultura popular - Jequi- tinhonha, Rio, Vale (MG, BA). 4. Memória – Aspectos sociais. I. Rabetti, Maria de Lourdes.II.Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (2003-). Mestrado em Teatro. III. Título. CDD – 792.028

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RESUMO

A presente dissertação pretende analisar a cena e a “visão de mundo” do grupo

de teatro “Ícaros do Vale”, do Vale do Jequitinhonha. Apresenta como eixo condutor o

movimento dialético entre o particular e o universal que busca, através da re-elaboração da

memória viva do povo sertanejo e dos procedimentos técnicos utilizados no processo de

construção cênica, o compromisso com o “processo de vida real” do homem-jequitinhonha

num continuum histórico.

ABSTRACT

The current dissertation intends to analyze the scene and the “world vision” of

the “Ícaros do Vale” (Icarus of the Valley) theater company, from Jequitinhonha’s valley.

The study will focus on the dialectical movement between the particular and the universal,

a movement that seeks, through reelaborating the living memory of people from “sertão”,

aided by specific tecniques used for the making of the scene, a compromise to the “real-life

process” of the Jequitinhonha man inserted in a historical continuum.

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INTRODUÇÃO ........................................................................................................... p.8

CAPÍTULO 1- A “Visão de mundo” lukacsiana na cena do teatro popular do Vale

do Jequitinhonha

1.1- O teatro popular do Vale do jequitinhonha: num continuum histórico..................p.13

1.1.1- “Visão de mundo” lukacsiana: o triunfo do realismo ......................................p. 21

1.1.2- Totalidade e historicidade: exigências lukacsianas ..........................................p.27

1.1.3- Temporalidades e espacialidades: tensões e deslocamentos..............................p.36

1.2- Hibridação, heterogeneidade e mediações no “modo de produção artística popular”..................................................................................................................p.43

1.2.1- Memória e tradição oral: o homem-jequitinhonha em cena..............................p.53.

1.2.2- Performance: o caminho da memória como fonte de repertório.......................p.63

CAPÍTULO 2- A cena da memória: Ícaros do Vale

2.1- Descrição do campo.............................................................................................p. 71

2.1.1- O Vale do Jequitinhonha: características gerais...............................................p.80

2.1.2- Um breve histórico do sertão mineiro................................................................p.82

2.2- O vôo dos “Ícaros do Vale”.................................................................................p. 91

2.2.1- Histórico do grupo: vamos fazer teatro!...........................................................p. 99

2.2.2- Fontes de repertório: a cena da memória do homem-jequitinhonha ..............p.103

2.2.3- “Os olhos mansos”..........................................................................................p. 112

2.2.4- Procedimentos técnicos utilizados..................................................................p. 128

CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................p.137 FONTES DOCUMENTAIS ..........................................................................................p.139 ANEXOS.........................................................................................................................p.141 BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................... p.177

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa “O teatro popular do Vale do Jequitinhonha a partir do

estudo da cena e da “visão de mundo” do Ícaros do Vale” tem como eixo condutor o

movimento dialético entre o particular e o universal. O objeto é a cena produzida pelo

“Ícaros do Vale”. A relação dialética entre as categorias particular e universal se dá,

necessariamente, a partir do seu sujeito histórico, o homem-jequitinhonha, cuja atividade

artística produz a cena teatral. Ou, pode-se dizer também, que o eixo é a relação dialética

entre o local e o global, agora sob o ponto de vista do espaço, enquanto desdobramento

desta reflexão que parte do olhar do sujeito.

A pergunta que desde o primeiro momento me inquietou intelectualmente –

quando assisti e me encantei1 pela primeira vez com o espetáculo “Os olhos mansos”, em

2004, na cidade de Salinas, durante o evento FESTIVALE2 – e que esteve presente durante

toda a análise teórica acerca da cena produzida pelo grupo foi: por que simultaneamente

podemos caracterizar a cena do Ícaros do Vale como expressão tanto regional como

universal?

Diante deste desafio, busquei questões outras, a partir desta primeira, durante as

disciplinas cursadas, com o trabalho desenvolvido com a minha orientadora no curso

Seminário de Dissertação, com a pesquisa de campo e durante todo o processo de

discussões no espaço da relação orientanda/orientadora.

1 Importante esclarecer que o encantamento a que me refiro nesta introdução não está subjugado unicamente por um envolvimento passional. Trata-se de uma ação mais profunda e, portanto, mais complexa, da sensibilidade do espectador que tem diante de si uma criação teatral, uma invenção que entra em choque com os dados sensíveis que ele próprio tem da realidade, mas que, ao mesmo tempo, exprime-lhe intensamente essa realidade. 2 Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha. Este evento que promove o maior intercâmbio cultural entre as comunidades do sertão mineiro, por extensão no Brasil e também internacionalmente, será desenvolvido nas páginas seguintes.

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O Capítulo I “A “visão de mundo” lukacsiana na cena do teatro popular do

Vale do Jequitinhonha” aborda os conceitos fundamentais que dão suporte teórico e

metodológico ao estudo da “visão de mundo” e da cena do Ìcaros do Vale. Trata-se de uma

abordagem teórico-conceitual do “modo de produção artística popular”3 do sertão mineiro a

partir dos Estudos Culturais e dos Estudos político-culturais. Neste primeiro momento,

tendo como eixo central a dialética entre o particular e o universal, busquei estabelecer o

enfrentamento das conexões que decorrem das categorias de historicidade e totalidade - que

permeiam toda a pesquisa presente -, como as noções de hegemonia, subalternidade, senso

comum e visão de mundo, em Antonio Gramsci (1999); espaço e lugar dentro de um

contexto de movimento, deslocamento e tensão, em Stuart Hall (2003) e Cornejo Polar

(2000); as teses acerca do conceito de história e noção de experiência, em Walter Benjamin

(1994); “visão de mundo” e estética, em Lukács (1968) e o pensamento marxiano4,

enquanto matriz da tradição marxista. Estes conceitos são fundamentais para se discutir a

“visão de mundo” em que se insere o teatro produzido hoje pelo Ícaros do Vale, cuja

identidade é resultado de um processo histórico.

Partindo dessa perspectiva, o teatro produzido pelo grupo Ícaros do Vale está

comprometido com o seu tempo histórico. Uma reflexão teórica acerca da cena

contemporânea - marca das atividades do homem-jequitinhonha, das necessidades

3 Beti Rabetti (1999) atribui como resultante deste “modo de produção artística popular”: “”peças” artísticas e culturais que podemos denominar peças acumulativas, isto é, que se prestam a sucessivas reelaborações. E que são também significativamente móveis, isto é, constantemente disponíveis a fazer deslizar fronteiras, sempre maleáveis aos desmanches dos contornos formalmente constituídos, contorno que não mais sustentam, por exemplo, as tradicionais noções de gênero e estilo. É assim que essa realidade material de produção de obras teatrais populares impõe ao pesquisador afastar-se de propósitos unicamente catalogadores ou classificatórios – tais como os que bastam em estilos e gêneros – solicitando-lhe investigar modos concretos de produção artística, ou inquirir sobre a própria cultura da produção teatral, que necessariamente articula sempre processos históricos e estruturas artísticas formais.” 4 Entende-se por pensamento marxiano os escritos produzidos por Marx e Engels. E tradição marxista o que se segue a partir destes escritos. Esta questão será melhor desenvolvida no capítulo I que se segue.

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populares atuais dos sertanejos mineiros, objetivadas concretamente – passa

fundamentalmente por essa categoria ontológica do ser social, a historicidade.

Existe um compromisso com o “processo de vida real” do homem-jequitinhonha

que eleva o “modo de produção artística popular” à universalidade, embora esteja

vinculado à representação de uma particularidade, em um espaço e um tempo

determinados. Dada essa expressão de tendências reais, captadas a partir do concreto,

configuradas em personagens típicos5, cabe, portanto, a aplicação da estética lukacsiana e

sua “visão de mundo”.

Sob esse olhar, o modo de produção melodramático pensado por Martín Barbero

(2003) dialoga com o “modo de produção artística popular” do Ícaros do Vale. Uma vez

que a encenação é produzida a partir do imaginário popular rico em ações e grandes

paixões, o que neste caso demarca substancialmente um espetáculo na esfera do popular,

assimilando o contexto social enquanto conteúdo artístico.

O teatro popular produzido pelo Ìcaros é imbricado com variadas manifestações

culturais, por isso, podemos remetê-lo a bricolagens das culturas tradicionais. Dentro desse

contexto, entra uma instância fundamental que é o repertório, por conta das relações de re-

elaboração e de re-tratamento, através das “artes de fazer” (CERTEAU, 1999) e do

conceito de bricolagem (LEVÍ-STRAUSS, 1970).

A partir do conceito de bricolagem, pode-se buscar uma análise da cena

contemporânea do teatro produzido no Vale através da experiência, da memória dos velhos,

do artesanato, ou seja, da bricolagem da vida material e imaterial do homem-jequitinhonha,

5 O conceito de personagem típico, desenvolvido por Lukács, em sua Estética, será analisado ao longo da dissertação.

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toda essa massa heteróclita, re-trabalhada, que constitui fonte de repertório durante todo o

processo de criação teatral do Ícaros do Vale.

Entra em cena a potência da oralidade da região, da memória dos velhos,

enquanto repertórios que são acionados pelos membros do grupo. Assim, a tradição e sua

transmissão oral, a memória (BOSI, 1994) e o sentido de pertencimento de um lugar podem

ser tecidos e sintetizados através da performance (ZUMTHOR, 1997) que viabiliza o

caminho da memória ligando não apenas o passado ao presente na cena, através de um

“diálogo forte” (RABETTI, 2000) entre o velho e o novo, mas criando condições de

sustentabilidade da tradição num continuum histórico.

No capítulo 2 da dissertação “A cena da memória: Ícaros do Vale” foi analisada

a cena do espetáculo “Os olhos mansos”, fruto das pesquisas com os velhos, em busca do

resgate e da re-elaboração da memória viva do povo sertanejo e os procedimentos técnicos

utilizados no processo de construção cênica; o trabalho do ator, a utilização do espaço

cênico, os elementos cenográficos e a relação ator/espectador.

Os anexos comportam o texto do espetáculo “Os olhos mansos”; o texto com

anotações manuscritas de Luciano Silveira do espetáculo ”História de pescadores”, onde há

apontamentos de sua direção; entrevista com Luciano Silveira; currículo do grupo; pesquisa

feita por Luciano Silveira com as lavadeiras da cidade de Araçuaí, fonte de repertório para

remontagem do espetáculo selecionado para analise e fotos produzidas durante pesquisa de

campo.

Contudo, pretende-se no bojo desta pesquisa desvendar o movimento do objeto

desde a sua gênese até a situação atual. Uma reflexão teórica capaz de traduzir o “teatro

popular do Vale do Jequitinhonha a partir do estudo da “visão de mundo” e da cena do

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grupo Ícaros do Vale”, na expectativa de que, mediante essa elaboração, possa eu também

auxiliar positivamente os desenvolvimentos futuros do teatro popular do Vale e, por

extensão, do teatro popular brasileiro.

Passo, portanto, a convidá-los: “Senhoras e senhores, nesta noite de lua; vamos

louvar a vida, vamos saudar a morte. Desse povo brasileiro, desse Vale de alegria. O

espetáculo que se apresenta é de pura realidade. De pessoas que morrem sem morrer, sem

nem saber o porquê. Para conseguir ser feliz, o povo labuta na esperança de um novo

mundo. O senhor mire e veja. Os olhos mansos que aqui passarão são os filhos e filhas de

Nossa Senhora que choram aos pés do senhor. E são esses olhos que, sofrendo, mergulham

em cantos e também regalias. Feito rezas de crianças, feito cocos e folias. E vejam bem os

olhos mansos, neste espetáculo que se principia.”6

6 Fala do narrador na primeira cena – O cortejo - da peça “Os Olhos Mansos”. Ver anexo.

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1 - A “visão de mundo” lukacsiana na cena do teatro popular do Vale do

Jequitinhonha

1.1 - O teatro popular do Vale do Jequitinhonha: num continuum histórico O teatro popular do sertão mineiro se insere em um hic et nunc, isto é, em um

tempo e um espaço dados. Não pode, portanto, ser analisado enquanto uma realidade trans-

histórica fundada sobre valores diversos, incomensuráveis e permanentes. Sua identidade

hoje é resultado de um processo histórico, um continuum, que se dá dialeticamente como

veremos a seguir. Stuart Hall (2003), na esteira de Gramsci, como o próprio autor se

coloca, defende a necessidade de refletir a identidade de um objeto cultural (popular) de

forma a contribuir para uma ideologia e uma cultura “populares” em contraposição à

cultura do bloco de poder.

Comecei a perceber uma coisa essencial em todo o nosso trabalho... que quando você valoriza a cultura, os acontecimentos, aquilo que o povo tem de saber, valoriza a pessoa e ela percebe também, que pra você a opinião dele sobre política é importante! Aí, você percebe que a identidade cultural do sujeito, do povo, é importante para o pessoal poder resistir, para ter opinião e decidir. Isto é importantíssimo. (Frei Chico, ent. apud Figueiredo, Carlos. 2000).

Este trecho, retirado de uma entrevista com o pesquisador Frei Chico, do Vale do

Jequitinhonha, fortalece o sujeito coletivo (povo) e uma possível flexibilização dos blocos

de poder, do deslocamento de hegemonias, das disposições de poder, dentro de um

contexto, definido por Hall, como “imperialismo popular”.

Percebe-se que o trabalho de pesquisa que existe no Vale acerca da valorização

da cultura sertaneja, convoca o sujeito coletivo a pensar sua identidade, ainda que o

contexto seja opressor fazendo coexistir movimentos contraditórios, de resistência e de

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consentimento O exercício de reflexão do homem-jequitinhonha, que se dá através das

pesquisas de resgate da cultura local, é começo e fim do processo criativo do Ícaros do

Vale. O teatro emerge da vida cotidiana e retorna a ela, fortalecendo sua identidade e

instaurando uma prática de resistência ao longo da história.

A partir dessa perspectiva, o teatro produzido pelo grupo estaria comprometido

com o seu tempo histórico. Uma reflexão teórica materialista dialética acerca das obras

desse grupo - marca das atividades do homem-jequitinhonha objetivadas concretamente –

passa fundamentalmente por essa categoria ontológica do ser social, a historicidade. As

noções de história e de experiência de Walter Benjamin (1994) vêm aclarar o tempo

presente, palco da vida e da arte do homem-jequitinhonha, num ritmo acelerado e um

tempo fragmentário.

A experiência do homem-jequitinhonha, no contexto benjaminiano de pobreza,

resiste e mais: encontra-se em constante movimento produzindo o novo a partir do antigo,

re-elaborando o que Polar (2000) sintetizou como “comunidades imaginadas” em

“temporalidades diversas”, contraditórias e unas em suas contradições, que se chocam,

sendo complementares, que criam e reformulam estruturas híbridas, fragmentárias e

flutuantes em constante deslocamento, atritando e conciliando sujeitos sociais diversos.

Assim, mesmo que a classe subalterna continue recebendo, não recebe apenas absorvendo,

mas também recriando, como se pode depreender das palavras do diretor do Ícaros do Vale:

pensamos cultura enquanto um sistema de atitudes, costumes, modo de agir e instruções de um povo. Percebemos que havia resistência quando se falava em cultura popular. Começamos a nos estruturar e buscamos cada vez mais um trabalho de base, comprometido com nosso espaço geográfico e histórico7.

7 Fonte documental: histórico do grupo Ícaros do Vale escrito por Luciano Silveira.

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As obras do grupo de teatro Ícaros do Vale são expressões das necessidades

populares atuais e reais dos sertanejos mineiros. Existe um compromisso com o “processo

de vida real” do homem-jequitinhonha, que está vinculado à representação de uma

particularidade, em um “aqui e agora” determinados.

Hegel assim define a necessidade: “A necessidade consiste nisso: que a totalidade é dividida nas diferenças conceituais e que esta coisa dividida fornece uma estável e duradoura determinação, que não é morta, mas que se produz sempre na decomposição”. Trata-se aqui, portanto, não apenas de um simples processo de incessante conversão recíproca dos momentos que formam a totalidade: este processo possui também uma direção, uma tendência determinada e que se repete de modo variado: é um processo de contínua auto-reprodução. O real revela a necessidade nele contida, precisamente a não querer “enrijecer no ser” o que necessariamente conduziria a um “dissolver-se no nada”, mas sim, pelo contrário, ao gerar ininterruptamente a si mesmo,a o ser o fim – contemporâneo e aparente – da unidade, da totalidade, da conexão, ou seja, ao ser precisamente o veículo da renovada autogeração. (LUKÁCS, 1978, p. 52)

O continuum está no “ser”, no ato de existir e sua tendência a continuar

existindo, desafiando-se ao se reproduzir, ou para utilizar a palavra de Lukács, ao autogerir-

se historicamente na vida. O continuum é a dialética. A chave está em se definir se é a vida

ou a morte que ocupa, nessa contradição dialética, o momento dominante. Aqui, é a vida. O

teatro é expressão das necessidades postas e re-postas na vida do homem-jequitinhonha,

dignificando-a ao retornar de onde emergiu, retroalimentado-a continuamente. A vida se

faz em si mesma contínua, e se põe em continuum até o presente momento. Hegel captou a

dialética, a percepção desse continuum. Lukács se apropria deste “heracliteanismo lógico

de Hegel” (idem, p. 57), onde a idéia de continuidade se vincula a um movimento

dinâmico, em recíproca transformação, em conversão da diversidade no seu contrário.

Seu projeto central é sistematizar suas idéias acerca da estética. Lukács estava

preocupado com a elaboração simultânea de uma ética sistemática. A Estética foi

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programada para ter três partes, mas ele escreveu e publicou apenas a Estética I. E para

enfrentar os problemas da ética ele se viu compelido a tratar da ontologia e, por esse

motivo, abandonou a Estética e se dedicou à Ontologia. Ou seja, da sistematização da

Estética ele visualiza a ética e esse movimento vai levá-lo à Ontologia.

Lukács atravessa a cultura alemã enquanto ensaísta literário. Em 1945 reúne

vários ensaios num volume intitulado “Pré-história da literatura alemã”. Elabora uma

contínua pesquisa estética trabalhando os principais pensadores do ocidente para localizar o

seu pensamento estético, ou melhor, buscando detectar o que cada um trazia como

fundamento para a elaboração de uma estética. Surge então, sua tese fundamental: em Marx

não há uma estética, mas há os fundamentos para a construção de uma estética sistemática.

Essa é a grande contribuição marxista à estética vislumbrada por Vázquez (1978): a

constatação de que as capacidades artísticas do ser social foram-se “forjando histórica e

socialmente no processo de transformação da natureza e de criação de um mundo dos

objetos humanos” (idem, p.54). Os fundadores da filosofia da práxis, como diria Gramsci,

viram na prática artística uma missão “desfetichizadora”, que implica mostrar o mundo dos

objetos de corpo nu. A arte, para Marx e Engels, é sempre o conhecimento do homem sobre

si mesmo e sobre a realidade concreta em que está inserido.

O velho Lukács considera a arte como uma forma de conhecimento. O que o

artista nos dá é um conhecimento sobre o mundo. E essa forma de conhecimento

caracteriza o que ele vai chamar de reflexo estético. Importante ressaltar o seguinte: o velho

Lukács incorpora decisivamente a teoria do reflexo leninista. Como se sabe, num texto de

1908/9 bastante problemático, “Materialismo e Empirocriticismo”, Lênin desenvolve a tese

da consciência como reflexo do mundo. Isso leva a uma teoria do conhecimento

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extremamente espelhista, que supõe a consciência como uma instância de natureza social

puramente passiva. Mas não é isso que o conjunto da obra de Lênin vai desenvolver. Esse é

o Lênin do “Materialismo e Empirocriticismo”. O Lênin que no exílio suíço em 1916 leu

Hegel transcendeu largamente essa concepção espelhista. Não cabe aqui aprofundar essa

questão, mas é fundamental esclarecer que Lukács incorporou a teoria do reflexo de Lênin,

mas essa concepção não tem nada de passiva, nada de espelhista. Pelo contrário, supõe um

papel extremamente ativo da consciência. Portanto, toda vez que eu me referir a reflexo da

realidade, é neste sentido dialético e não reducionista.

Ante o exposto, dirá Lukács que no domínio da arte a categoria central é a

particularidade, isto é, o reflexo estético opera ao nível da particularidade. Essa concepção

é perfeitamente compatível com a noção de personagem típico e de narração, uma vez que a

narração explica, caracteriza e a descrição espelha. Para Lukács, o tipo literário expressa a

particularidade, não a universalidade, e menos ainda a singularidade. O peculiar do estético

é que ele é um conhecimento antropomorfizador e o eixo em torno do qual ele gravita é o

particular, campo de mediações entre o universal e o singular.

Se a condição é desalienar, e essa desalienação em um mundo cortado pelos

antagonismos de classe nunca é completa, sempre é um processo inacabado, o que Lukács

está dizendo é o seguinte: o sujeito que frui da arte, quando retorna à vida cotidiana, ele

retorna diferente. Que idéia é essa de retorno? A realização desses dois tipos de reflexos

peculiares depende da “suspensão” das exigências da vida cotidiana. O sujeito receptor

vivencia inteiramente a experiência que o coloca em contato com a autoconsciência da

humanidade da qual faz parte, mediante o mundo próprio da obra de criação estética, que

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por sua vez se baseia no meio homogêneo do gênero em questão. O “homem inteiramente”

concentra-se exclusivamente na percepção sensível da homogeneização evocada pela obra8.

Há na estética lukacsiana uma afirmação do humano inventivo. Seja na gênese,

no desenvolvimento, na necessidade social da arte, em todos os momentos da história do

estético, encontramos a história do gênero humano. O humanismo que age em tais

momentos não é um humanismo abstrato: é o homem concreto que encerra múltiplas

determinações, que pertence a uma etapa particular da história extensiva da humanidade e

que, em seu “aqui e agora”, atua na transformação das relações postas. E a arte faz fixar tais

etapas de luta dos homens enquanto legado para a própria humanidade. Diante das questões

colocadas pelo mundo, o artista procura responder de variadas maneiras, criando, a partir da

substância humana da particularidade posta, uma imagem do mundo a mais completa

possível, a mais adequada ao gênero humano, fixando-a na forma de uma etapa da via que a

humanidade percorre “em direção a si mesma”, como diria Lukács. Acima de tudo, esta é a

oportunidade de novamente asseverar que consta na Estética I uma verdadeira pesquisa

sobre o homem.

A exigência da totalidade da obra de valor artístico condiz com a exigência

lukacsiana de totalidade do homem em si mesmo. Isto significa voltar os olhos para o

movimento geral cumprido pelas relações sociais no capitalismo, o que nos leva a verificar

que o acirramento das contradições do capital e o aprofundamento de seus antagonismos

hostilizam a arte e, em certo grau, colocam obstáculos para o exato reflexo estético da

realidade.

8 “Enquanto que na vida cotidiana o homem inteiro conserva tendencialmente sua unidade e sua totalidade inclusive quando coloca em funcionamento (ou se reserva) suas forças dos modos mais diversos de acordo com as diversas tarefas da vida cotidiana, o homem inteiramente não se realiza mais do que a respeito do meio homogêneo de uma arte determinada” (Lukács, 1966, p334).

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Levar esta reflexão à cena contemporânea produzida pelo homem-jequitinhonha

é pensar e ressaltar que nas condições atuais do capitalismo tardio - gerador da sociedade

burocrática de consumo dirigido -, a cena realista-crítica é agora, mais do que nunca, cena

de contestação, porque: não lhe basta refigurar realisticamente a cotidianidade, mas é-lhe

necessária uma estrutura tal que convoque justamente esta realidade, e não lhe basta

provocar um efeito de identificação; é-lhe necessário fazer da indentificação um

imperativo.

1.1.1 - “Visão de mundo” lukacsiana: o triunfo do realismo

A arte não pode ser compreendida fora da totalidade social, fora da história, solo

de produção e reprodução das objetivações do ser social. Segundo o pensamento marxiano,

a produção artística sendo um gênero de produção ideológica possui sua explicação no

contexto sócio-histórico a que pertence. Entretanto, sua imbricação com a realidade

concreta não implica a determinação mecânica da primeira pela última.

A dialética materialista, concebida por Marx, que norteia a visão de mundo

lukacsiana no momento em que ele desenvolve sua Estética, subverte a dialética idealista,

concebida por Hegel. Enquanto que o idealismo hegeliano sentenciava que as obras de arte

devem ser julgadas do ponto de vista do espírito, o materialismo histórico, julga as obras

artísticas tendo como ponto de partida o real. Tem-se o realismo em oposição ao idealismo.

Assim, a partir de sua visão de mundo, Lukács afirma que é imprescindível

esclarecer o lugar do comportamento estético dentro da totalidade das atividades humanas,

das reações humanas ao mundo externo, assim como a reação entre as formações estéticas

que surgem, sua estrutura categórica, e outros modos de reação à realidade objetiva. A arte

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está irresistivelmente ligada à humanidade, e por isso não pode em momento algum ser

pensada independente do homem (VÁSQUEZ, 1978, p.51). A arte é para Lukács uma das

formas possíveis de que dispõe o homem para captar o real, à medida em que a realidade se

revela ao homem, no exato reflexo artístico, a arte se confunde com o humanismo, com a

defesa da integridade humana contra as tendências que a envilecem, com a desfetichização

da vida social. Não se trata aqui da teoria do reflexo, do reflexo mecânico do real, de uma

cópia descritiva, de uma fotografia, estática, portanto, mas sim do movimento, captar o real

e suas determinações, suas tensões re-postas num continuum.

Afirma ainda, Lukács, que primário é a conduta do homem na vida cotidiana. A

vida cotidiana é a esfera da heterogeneidade; e quanto mais complexa é a sociedade, maior

é a sua heterogeneidade. A produção estética (e também a produção científica) implica uma

ruptura dessa heterogeneidade. Ela implica que o sujeito estético (e também o sujeito

cientista) rompa com essa situação na qual todas as suas energias estão mobilizadas, e entre

numa ambiência tal que ele mobilize toda a sua energia em face de um objeto. Assim, diz

ele, cancela-se a heterogeneidade quando nós deixamos de ser homens inteiros e nos

transformamos em inteiramente homens. Essa não é uma distinção semântica. É um

processo de ascensão. No caso da arte, é um processo pelo qual, rompendo os limites da

alienação, eu percebo as minhas dimensões de ser singular, porém genérico. É uma

“suspensão” da vida cotidiana. A recepção estética se caracteriza nesse movimento que leva

o individuo cotidiano ao reconhecimento da generalidade do ser humano. A arte atua

demonstrando a objetividade das relações sociais desfetichizadas de sua imediaticidade,

apresentando ao receptor, a essência humana.

Portanto, a arte realista se opõe ao idealismo enquanto “lealdade ao processo de

vida real” e não julgada sob o ponto de vista do espírito. O método materialista dialético

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[histórico] parte do concreto – do objeto em questão – identificando suas categorias

fundamentais, primeiras, fundantes. A partir delas, tem-se que progressivamente ir

localizando categorias outras, derivadas. Simultaneamente, deve-se captar a conexão que

entre elas se estabelece. Todas essas categorias, é indispensável dizer, devem ser autênticas,

isto é, devem refletir o movimento real do objeto. Nesse passo, e tendo sempre como

referencial a realidade mesma do objeto, e cuidando muito atentamente para não

desenvolver um discurso meramente logicista (que possa ter sim coerência interna mas ser,

a despeito disso, incapaz de condizer com o objeto), esse objeto em sua historicidade estará

sendo reconstruído, ou seja, caminhando do nível mais abstrato das categorias para níveis

sempre menos abstratos, ou melhor, para níveis cada vez mais aproximados do concreto ou

da concreticidade do objeto em questão. De tal sorte que, quando, afinal, a descrição do

objeto se complete, ela venha a ser não uma representação caótica e superficial, mas uma

representação que alcance a sua profundidade, e mais, que seja autêntica, verdadeira,

contendo, sinteticamente, uma rica totalidade de determinações e relações do objeto

investigado.

Portanto, a aplicação da estética lukacsiana está vinculada à representação de

uma particularidade, num hic et nunc determinado. O realismo vai muito além da condição

de “estilo”, é o critério, a medida, para qualificar os objetos artísticos, seja qual for a

concepção de mundo que expresse:

A arte que assim serve à verdade, como um meio específico de conhecimento tanto por sua forma quanto por seu objeto, é precisamente o realismo. Chamamos arte realista a toda arte que, partindo da existência de uma realidade objetiva, constrói com ela uma nova realidade que nos fornece verdades sobre a realidade do homem concreto que vive numa determinada sociedade, em certas relações humanas histórica e socialmente condicionadas e que, no marco delas, trabalha, luta, sofre, goza e sonha (VÁSQUEZ, 1978, p.36).

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O realismo é a expressão de tendências reais, captadas a partir do concreto,

configuradas em personagens típicos. A arte [realista] enquanto reflexo estético do real

implica a apreensão dessas determinações que movem a vida humana, muito além de um

mero “estilo”, vai além dos limites do superficial, da forma. Vásquez fala em “homem

concreto”, isto é, a síntese de múltiplas determinações. Daí se constitui o personagem

típico. A transposição do homem concreto em personagens que expressem tipicamente

tendências da realidade, trata-se de uma defesa da integridade humana.

A fim de exemplificar tais personagens realistas, Lukács (apud MACHADO,

1998, P.195) se refere ao discurso pronunciado por Dimitrov, dizendo que Dom Quixote de

Cervantes foi a arma mais poderosa nas mãos da burguesia na sua luta contra o feudalismo,

contra aristocracia. Cervantes utilizou-se de um personagem para tipificar a expressão de

uma tendência posta na realidade, de um determinado tempo histórico. Pouco importa se

Dom Quixote realmente existiu, o relevante é que as tendências postas na realidade, em um

tempo determinado, sejam captadas enquanto um reflexo estético. Neste sentido, o realismo

é a inevitável conseqüência do exato reflexo estético da realidade. A visão de mundo que se

expressa na arte, segundo Lukács, é sempre relativa à situação particular do gênero humano

no tempo em que a obra foi produzida, seu compromisso com a realidade.

Neste contexto, existe uma relação de equivalência entre o realismo e a

humanitas:

ora, a humanitas — ou seja, o estudo apaixonado da natureza humana do homem — faz parte da essência de toda literatura e de toda arte autêntica; daí que toda boa arte e toda boa literatura sejam humanistas, não só ao estudarem apaixonadamente o homem e a verdadeira essência da sua natureza humana, mas, também, por defenderem apaixonadamente a integridade humana do homem contra todas as tendências que a atacam, a envilecem e a adulteram (LUKÁCS, 1968, P. 23).

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O realismo consiste nesse reflexo do homem concreto, que confere

autenticidade à arte ligada diretamente à luta a favor do humanitário. O realismo não se

limita ao “estilo”, à “forma” e tampouco consiste em fazer das obras panfletos políticos ou

tomar partido superficialmente das forças progressistas da sociedade (1968, p. 39). Ao

contrário, a expressão artística deve emergir da dialética das ações postas em conflito. Ao

artista não cabe tomar a realidade como ela é.

Esse é o momento em que Lukács (1974, p.144) chama de “triunfo do realismo”.

A vitória do realismo se dá quando o exato reflexo da realidade surge no decorrer do

processo criativo, seja o artista favorável ou não às tendências da realidade refletida.

O realismo na literatura é a expressão de tendências reais configuradas em

personagens típicos. A confusão com o naturalismo — a expressão do homem cotidiano,

médio e fenomênico — deve ser desfeita de imediato no decorrer desta leitura. Vale um

regresso à dialética materialista: não se parte do concreto real senão captado sob forma de

concreto pensado, isto é, por meio de determinações abstraídas do processo histórico. O

reflexo estético implica a apreensão dessas determinações que movem a vida humana, que

vão para além dos limites do superficial, para além do naturalismo; a cargo do reflexo

estético está a apreensão da totalidade substancial e intensiva de uma situação histórica

particular.

Lukács propõe um percurso, a partir de Marx, de desvelamento do real, que tem

dois fundamentos ontológicos: a totalidade e a historicidade. O real é uma síntese de muitos

complexos, muitas mediações e relações, e para conhecê-lo é necessário considerar essa sua

complexidade que compõe uma unidade, uma totalidade, síntese de muitos processos.

Lukács (1979, p.28) afirma que Marx parte

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(...) da totalidade de ser, e busca apreendê-la em todas as suas intricadas e múltiplas relações, no grau da máxima aproximação possível. Onde a totalidade não é um fato formal do pensamento, mas constitui a reprodução mental do realmente existente, as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica e sistemática: ao contrário, são na realidade ‘formas de ser, determinações da existência’, elementos estruturais de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto extensivo quanto intensivo.

Todo o ser, por mais singular que pareça, é um complexo e tem uma totalidade.

A busca do entendimento de uma categoria acaba por nos remeter a outras. Assim,

historicidade e totalidade como centro da reflexão marxiana acerca do método, vão nos

levar outras duas categorias: contradição e mediação. A contradição e a mediação estão

presentes na totalidade do real e no seu movimento histórico. Logo, para conhecermos o

real na sua totalidade, é imprescindível conhecermos a sua historicidade, percebendo a

complexidade das relações, mediações, e das contradições que o fazem ser movimento.

A contradição é o princípio básico do movimento. É uma categoria definida por

Marx, como sendo própria da realidade, como dimensão concreta da sua totalidade. Nessa

perspectiva não se pode imaginar o real sem o seu permanente movimento de construção do

novo, de auto-construção e de superação. O novo só pode ser vislumbrado a partir do velho,

numa relação de contradição, um nega o outro, e nessa negação, tanto ocorre uma ruptura

quanto uma continuidade. O movimento é percebido o tempo todo entre tese, antítese e

síntese (ARAÚJO, 2006). A mediação pode ser compreendida como a relação reflexiva

entre os processos sociais, os complexos sociais. A totalidade do real se constitui pelas

relações de interdependência (mediações) das esferas que compõem a vida social.

Assim, para Lukács, a arte é a autoconsciência da humanidade. A arte está

irresistivelmente vinculada à humanidade! É um tipo de conhecimento que permite à

humanidade superar a alienação de si mesma, permite transformar o objeto que era para si

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num objeto para nós. Importante esclarecer que Lukács não está suprimindo a historicidade

das forças sociais; não se trata de questões sociais abstratamente universais que se supõem

percorrer toda a história humana em qualquer momento e em qualquer formação social;

são, ao contrário, questões sociais concretamente postas no decorrer dessa evolução. A obra

realista tem que captar o fundamento contraditório e substancial de seu tempo.

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1.1.2- Totalidade e historicidade: exigências lukacsianas

A presente pesquisa de mestrado sobre o teatro popular do Vale do

Jequitinhonha é toda tecida pelas categorias de historicidade e totalidade que funcionam

como uma linha que trabalha em constante movimento, costurando fragmentos

sedimentados há mais de dois séculos de adversidade e resistência. Cabe aqui, nesse

primeiro momento, contextualizá-los e relacioná-los com alguns conceitos fundamentais no

âmbito dos Estudos político-culturais, segundo autores que dialogam e nos dão suporte

teórico e metodológico para analisar as obras do grupo de teatro Ícaros do Vale.

Estando em permanente movimento o objeto da pesquisa, as obras do grupo

Ícaros do Vale, não podem os conceitos que pretendem refletir esse objeto se manter

estáticos.

Benjamin, Gramsci e Hall, embora vinculados à tradição marxista, são bastante

diferentes, isto é, em outras palavras; o pensamento de Marx e Engels é o pensamento

marxiano. Importante ressaltar aqui que não se pode assimilar absolutamente o pensamento

marxiano com a tradição marxista. Sobre a tradição marxista, o Professor José Paulo Netto

(2004) diz que a partir da obra marxiana ou, mais exatamente, a partir dos textos de Marx e

Engels e de certas interpretações da obra marxiana, nós temos uma longa tradição, que

amplia, recupera, desenvolve, atualiza, mas ao mesmo tempo também unilateraliza, aleija,

deforma a fonte originária. A essa tradição pertencem vários marxismos. Não há um

marxismo. Por outro lado, os autores aqui citados, e isto é muito importante no sentido de

dificultar uma análise comparativa, suas análises se insertam em momentos históricos

diferentes, ainda que todos se incluam na sociedade regida pelo capital.

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A despeito das diferenças que existem dentro da tradição marxista, os autores

chamados aqui foram capazes de captar a dualidade, a contradição, o movimento que está

na base da cultura popular – o consentimento e a resistência, seus deslocamentos e suas

tensões. Eles mantêm, em graus diversos, um sentido de realidade, ausência de pré-

conceitos: postura científica e investigativa que deixa o objeto “falar” e não monta uma

camisa de força para que o objeto “diga” aquilo que o investigador quer que seja dito. Por

outro lado, também é importante salientar uma outra afinidade: projeto de criação de uma

forma de sociedade qualitativamente nova, o socialismo.

Pode-se dizer que o senso de realidade, o respeito ao real, ao ser do objeto, o

procedimento investigativo que dá regência ao objeto, é a chave, o ponto de contato entre

eles. Mais do que a unilateralidade na abordagem do objeto (a verdade é o todo), o

subjetivismo estreito e a intervenção dos interesses particularistas na análise do objeto são

elementos de deformação do conceito sobre a realidade. E é a partir desta chave que se

pode explicar a convergência desses autores.

Em suma, considerado o conjunto das dificuldades acima elencadas, estamos em

face de uma discussão altamente complexa no entendimento da cena do teatro popular do

Ícaros do Vale, que exige nos debruçar sobre as noções de história, coexistência de

temporalidades, espacialidades e seus desdobramentos, a saber: tensões e seus

deslocamentos a partir do sentido benjaminiano de “experiência coletiva” (BENJAMIN,

1994).

Gramsci (1999) fala na necessidade de um exercício crítico, enquanto exercício

que vá num sentido contrário às cristalizações. Concepção de mundo e senso comum são

perspectivas clivadas pela noção de história, de historicidade. O exercício crítico é um

exercício de percepção, de empreendimento, em movimentos que esbarram em uma noção

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de camadas históricas. Em um primeiro momento, essa percepção de historicidade como

base, própria do exercício crítico, pode estar se expressando em uma percepção histórica

diacrônica. Isto se dá quando Gramsci fala em moderno, cristalizações, quando diz que

somos uma massa, um conjunto bizarro, seres compósitos. Imediatamente, em seguida, a

questão da sincronia, convivência em diferentes temporalidades. Dito de outra forma:

Gramsci se refere à sucessão de eventos históricos como explicação de determinados

fenômenos sociais (diacrônicos) e da importância de detectá-los ao mesmo tempo em

realidades diferentes (sincrônicos). Assim, ele propõe um exercício crítico impregnado por

uma perspectiva de história, e uma percepção de história que não é necessariamente

progressista, linear. Uma concepção de história que por vezes tende a essa idéia de

superação, mas muitas vezes implementa o que Gramsci chama de “compósito bizarro”.

Trata-se de uma convivência de um tempo determinante, um momento concreto, uma

particularidade, que implica uma noção de diferentes temporalidades.

Em um primeiro momento, temos a noção de tempo em Gramsci: o exercício

crítico frente a uma concepção de mundo e o tratamento histórico sobrevindo a essa noção

de tempo, diacrônico e de sincronismo. Em um segundo momento, Gramsci fala em uma

noção de cultura trabalhando na dimensão da espacialidade, da linguagem e muito

concretamente do lugar de onde ele fala9.

A concretude de um modo de viver é um dado fundamental para Gramsci ter

uma visão de mundo e a partir disso trabalhar a noção de hegemonia10. Daí se pode

9 Não especificamente do cárcere, mas da Itália. 10 A observação da questão dos dialetos do norte e do sul da Itália faz do seu conjunto, uma massa incompreensível, “bizarra”. Há um claro desenvolvimento do conceito de hegemonia em Gramsci em “A questão meridional” (1987), onde Gramsci observa que a classe trabalhadora tem que ter uma proposta para a questão meridional, porque essa é uma questão nacional, no sentido de que a revolução do atraso do sul, a unificação efetiva da Itália, é um problema que não interessa só aos camponeses do sul, mas interessa ao

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depreender uma contribuição para a questão da subalternidade. Em um primeiro momento,

a noção de tempo. Em um segundo momento, a espacialidade, a língua e a cultura, que

provocam uma discussão entre o nacional e o local.

As noções de hegemonia e subalternidade desenvolvidas por Gramsci (1968)

trazem uma contribuição muito fecunda para os Estudos político-culturais na tradição dos

estudos marxistas, que é perceber a figura capital do intelectual orgânico, enquanto agente

transformador do folclore, entendido nesse contexto, como folclore sem muitas

possibilidades criadoras e criativas, propiciando temporariamente que esses grupos

[subalternos] saiam da condição de meros receptáculos de produtos alheios, ideologias

alheias. Gramsci (ibidem, p.133) coloca que seria preciso estudar o folclore, ao contrário,

como “concepção do mundo e da vida”, em grande medida implícita, de determinados

estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição (também

esta, na maioria dos casos, implícita, mecânica, objetiva) às concepções do mundo

“oficiais” (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente

determinadas) que se sucederam no desenvolvimento histórico.

Em “História das classes subalternas” (GRAMSCI, 2004) fica claro que a

“subalternidade” tem a ver com a relação de subalternidade da classe trabalhadora em face

da burguesia: a primeira é subalterna em sua relação com a segunda. Uma pergunta que se

põe: por que Gramsci fala em classe subalterna e não em classe dominada? Se, de fato, a

inserção da noção de hegemonia parte de uma questão local, ela fratura um pouco, fricciona

conjunto da nação. Então a classe trabalhadora, a classe operária, tem de ter uma resposta à questão nacional. Um elemento dessa resposta é propor uma revolução socialista, onde há unidade entre os operários do norte da Itália e os camponeses da Itália meridional. Essa seria a base social da revolução socialista na Itália. A aliança operário-camponesa tem na Itália, ao contrário da Rússia, uma sobre-determinação territorial. Quando Gramsci desenvolve esse conceito, ele está pensando na importância que têm os camponeses do sul nesse bloco de forças.

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o determinismo histórico (positivista e vulgar), prevendo a possibilidade de composições

hegemônicas, de poderes hegemônicos. O conceito de subalternidade também representa a

possibilidade de não perceber os dominados apenas como receptáculos ideários dos

dominantes e também fragiliza a teoria do reflexo enquanto um “espelhismo” determinista

que condena a cultura da classe dominada à cultura da classe dominante.

Desta forma, a subalternidade está ligada a essa questão da hegemonia que,

política e economicamente, contribui para leituras políticas culturais, que cristalizaram de

alguma maneira, equivocadamente, enquanto pensamento marxiano, a teoria da luta de

classes, da infraestrutura apenas determinando a superestrutura, dentro das quais alguns

produzem e outros recebem, como mero reflexo. A arte é também reflexo da base material,

mas não apenas. Em Gramsci e nos estudos culturais mais recentes, mesmo que a classe

subalterna continue recebendo [e recebe, de fato], não recebe apenas absorvendo, mas

recriando.

Importante ressaltar que o determinismo positivista nada tem a ver com o

pensamento de Marx. Nas notas conclusivas da “Introdução de 1857” (MARX, 1974, p.21),

onde define o “concreto” como “síntese de múltiplas determinações” e também o caráter

desigual dos vínculos estabelecidos entre o desenvolvimento da base material e outras

formas de objetivações sociais importantes, sobretudo a arte, Marx rompe, com este

procedimento, segundo Lukács, com dois preconceitos: o de que a gênese da obra de arte,

por pertencer ao nível da superestrutura, pode ser derivada de maneira simplista e direta da

base econômica, e com um segundo, o de que a gênese revelaria um simples nexo causal

entre base e superestrutura (DUAYER, 2006).

Então, quando Gramsci trabalha a questão da hegemonia, ele está mexendo com

a clássica divisão estrutural entre infra e superestrutura, onde equivocadamente ocorre a

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interpretação de que a infra explica e dá conta da supra, uma idéia de determinismo

(positivista). Ao inserir a noção de hegemonia e de blocos, ele não apenas começa a dar um

lugar relevante para a cultura, mas começa a perceber arranjos possíveis, temporários, para

além de um determinismo pré-fixado. Gramsci insere um atrito, uma tensão, à noção

clássica de determinismo econômico. Há uma contribuição, neste sentido, para a insistência

do movimento, insistência na ação. Uma vez que o determinismo histórico ao mesmo

tempo em que está calcado em uma idéia de ação, ele tem uma pré-disposição a uma

univocidade de ação. As noções de hegemonia e subalternidade tornam frágil a idéia de

uma classe dominante conseguindo por um tempo de longa duração determinar todas as

instâncias da sociedade definitivamente. Há fraturas nas classes e essas fraturas

possibilitam hegemonias temporárias.

Portanto, se tomarmos as teses “Sobre o conceito de história”11 de Walter

Benjamin (1994) como uma alegoria crítica acerca do materialismo histórico dos anos

trinta, entendendo que ele critica duas maneiras de se contar a História, duas maneiras de

produção de um discurso acerca da História, que, a seu ver, não contam a História, mas sim

produzem história, histórias, não daremos conta das fraturas que possibilitam hegemonias

temporárias. Benjamin afirma que a historiografia “progressista” e a historiografia

“burguesa” [historicismo] se apóiam em um tempo “homogêneo e vazio” (idem, p.229). O

autor nos convida a olhar para um outro conceito de tempo, um “tempo de agora” (ibidem,

p. 229), ao invés de apontar para uma “imagem eterna do passado”, ou um tempo de

“progresso” infinito, equivocado com a previsibilidade do futuro [progresso como categoria

absoluta]. Este “tempo de agora”, um tempo saturado de “agoras”, está intimamente ligado

11 As teses são o último escrito de Benjamin publicadas postumamente em 1940.

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à constituição de uma “experiência” com o passado (ibdem, p.230), ao continuum da

história, a mudança na continuidade, sempre presente a idéia de movimento.

Historicidade e totalidade são duas categorias fundamentais do método

marxiano. O homem age sobre o mundo objetivo e o transforma em um mundo

humanizado, que retroage sobre ele mesmo, ele está sempre modificando-o e se

modificando, num processo permanente (continuum) de criação e superação de novas

necessidades. A historicidade do mundo e das relações do ser social se realiza como um

processo de construção, continuidade e ruptura. O real, espaço de vida e prática dos

homens, não está pronto, acabado, está sempre sendo criado e (re)pondo novas

possibilidades para a atividade social. Temos, portanto, a concepção de homem como ser

histórico, processual, cuja essência é histórica. Ou melhor: a historicidade é uma

característica ontológica do ser social, portanto é parte da própria vida dos homens.

O fantoche entorpecido, mestre invencível na arte do xadrez, movido por um

anão corcunda, representa uma crítica ao materialismo histórico dos anos trinta, marcado

por uma concepção teleológica (causal) da história, que determinava o inevitável curso que

levaria à sociedade socialista. Benjamin critica esta historiografia “progressista”, que se

caracterizou mais do que uma concepção de história na social democracia em Weimar, mas

enquanto uma concepção de mundo12 diante daquela conjuntura histórica no interregno das

duas guerras mundiais. Essa concepção ganhava espaço e força no contexto de alguns

fenômenos sociais fundamentais para o século XX: a experiência socialista soviética, a

ascensão do fascismo, o cinema [expressão máxima da reprodutibilidade técnica da imagem

e da obra de arte em geral] e o esporte [fenômeno global, de massas e de alto rendimento].

12 O PSDA não viabilizou apenas o acesso da classe operária à tradição marxista, mas concebeu a noção de marxismo enquanto uma cosmovisão, uma concepção de mundo, visão de mundo, o que não existia até então.

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A crítica de Benjamin nas Teses, escritas como "introdução" metodológica ao

“Trabalho das passagens”, dirige-se a uma concepção de história presente tanto no

historicismo quanto no marxismo vulgar. Ele entende que ambos compartilham de uma

concepção linear de história, que tem no progresso técnico seu critério maior, creditando-

lhe o estatuto de norma histórica (idem, p.226).

Ora, uma historiografia que possa ser crítica, deve sim, como é evidente, lançar

seu olhar ao passado, mas não no sentido de constituir uma história universal ou uma

imagem eternizada do que passou. Ao contrário, o passado só fará sentido se for repleto de

“agoras” atualizados.

A historicidade é uma categoria ontológica do ser social. É a marca das

atividades humanas objetivadas concretamente. Advém daí a segunda categoria

fundamental do método em Marx: a totalidade, que representa uma unidade de complexos.

Logo, para o sujeito conhecer a realidade na sua totalidade, necessita desvendar os

complexos que a compõem.

1.1.3- Temporalidades e espacialidades: tensões e deslocamentos

A concepção linear de história, que tem no progresso técnico seu critério maior,

creditando-lhe o estatuto de norma histórica, contribui para uma fetichização tecnológica

[reificação] do trabalho, bem como para uma concepção utilitária de natureza, considerada

sempre disponível e gratuita.

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Benjamin conjuga a noção de experiência com a noção de história, enquanto

pertencimento. Em “Experiência e pobreza” (BENJAMIN, 1994, p.114), o autor aponta o

enfraquecimento do conceito de experiência coletiva, com o avanço do capitalismo

moderno [anos trinta], em detrimento de um outro conceito de experiência, “experiência

vivida” [“Erlebnis”], característica do crescimento de um individualismo, da desagregação

coletiva e do esfacelamento social. A “experiência” com o passado está ligada a grande

experiência coletiva que fundava a narrativa antiga, e a “experiência vivida” está ligada ao

privado, ao particular.

Pois um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois (idem, p. 15)

Estabelece, portanto, um vínculo entre a destruição da “experiência” com o

passado [“Erfahrung”] e o fim da arte de contar. Essa “experiência” está vinculada a um

contar espontâneo, de uma organização social comunitária centrada no artesanato. A arte de

contar se torna cada vez mais rara, pois a sociedade capitalista moderna inibe as condições

de possibilidades que propiciam a transmissão de uma experiência no sentido pleno,

totalizante.

Jeanne Marie Gagnebin na introdução de “Memória e sociedade: lembranças de

velhos” (BOSI, 1994, pp.10,11) elenca três principais condições inibidoras dessa arte de

contar na sociedade capitalista moderna:

• A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte.

• Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apóia-se ele próprio na organização

pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal.

• A comunicação da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional.

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A produção artesanal aporta um caráter de totalidade, que se perde com a rapidez

do processo industrial, que tem um caráter fragmentário, inerente à produção em série. A

produção artesanal se faz em um ritmo mais lento, em um tempo mais global [totalidade],

tempo que oferece condições de transmissão de uma experiência em seu sentido pleno.

Havia um “tempo para contar” dentro dessa harmonia entre o trabalho, de caráter

totalizante, do artesão e a atividade narradora. “Uma maneira de dar forma à imensa

matéria narrável, participando assim da ligação secular entre a mão e a voz, entre o gesto e

a palavra” (idem, p. 11).

A arte de contar está vinculada a uma memória comum, que se funda em uma

experiência coletiva. Portanto, a pobreza da experiência, em um ritmo acelerado e um

tempo fragmentário, provoca o distanciamento da arte de contar.

“Experiência e Pobreza” nos faz compreender a articulação entre os conceitos de

“Erfahrung” [experiência] e “Erlebnis” [vivência], através dos quais Benjamin elabora sua

análise crítica da sociedade capitalista moderna. “As ações da experiência estão em baixa”

(p. 114), diz ele no início do texto. Assistimos na modernidade a “mudança na estrutura da

experiência”: a experiência [Erfahrung], inscrita numa temporalidade comum a várias

gerações, garantindo a existência de uma memória coletiva e, por conseguinte, uma

autêntica formação, transforma-se em vivência [Erlebnis], tornando-se inacessível e

incomunicável, fragmentada pelo tempo acelerado do capitalismo, em que a imediaticidade

molda as ações do homem.

As tensões e os deslocamentos que envolvem o “global” e o “local” na

transformação das identidades são bastante pertinentes a fim de articular os aspectos

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particulares e universais da identidade do teatro popular do Vale do Jequitinhonha e colocar

em pauta o conceito, hoje, de identidade e formação de hegemonias. Sempre houve uma

tensão, um deslocamento, pelo fato da realidade ser dinâmica, entre as identidades

nacionais, com seu forte vínculo de pertencimento (particularismo) e seus discursos

produzidos para esse fim, e identidades não nacionais (universalistas), com discursos

opostos. Essa tensão vem aumentando, com a coexistência da defesa de economias e

culturas nacionais e a abertura econômica e cultural, que atravessa fronteiras nacionais,

integrando comunidades em novas combinações de tempo-espaço.

Este é outro aspecto importante: a separação entre espaço e lugar13 - que resulta

na compressão de distâncias e de escalas temporais. Segundo Stuart Hall, esse é um dos

aspectos mais importantes da globalização a ter efeito sobre as identidades culturais. O

"lugar" é específico, concreto, conhecido, familiar, delimitado: o ponto de práticas sociais

específicas que nos moldaram e nos formaram e com as quais nossas identidades estão

estreitamente ligadas.

Nas sociedades pré-modernas, o espaço e o lugar eram amplamente coincidentes,

uma vez que as dimensões espaciais da vida social eram, para a maioria da população,

dominadas pela "presença" - por uma atividade localizada. A modernidade separa, cada vez

mais, o espaço do lugar, ao reforçar relações entre outros que estão "ausentes", distantes

(em termos de local), de qualquer interação física. Hoje, os locais são inteiramente

penetrados e moldados por influências sociais bastante distantes deles. O que estrutura o

13 Hall descreve as conseqüências desses aspectos da globalização, isto é, a relação entre compressão tempo-espaço sobre as identidades culturais, examinando três possíveis conseqüências: 1) As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural do e do "pós-moderno global"; 2) As identidades nacionais e outras identidades "locais" (ou particulares) estão sendo reforçadas pela resistência à globalização e 3) As identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades - híbridas - estão tomando seu lugar.

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local não é simplesmente aquilo que está presente na cena; a "forma visível" do local oculta

as relações distanciadas que também determinam sua natureza.

Hall enfrenta a categoria de identidade como mutável, transitória e

contraditória, como resultante das relações sociais entre os sujeitos, e afirma que:

(...) as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social (idem, 2003, p. 7).

Hall se autofilia ao pensamento gramsciano e seu foco é uma reflexão teórica

que contribua para uma ideologia e uma cultura “populares”, em contraposição à cultura do

bloco de poder, uma elaboração que contribua para o fortalecimento das forças populares

em contraposição ao bloco de poder. Ele propõe e estimula a discussão, alimentando o

debate e formulando estratégias culturais que façam diferença e desloquem as disposições

de poder, dentro de um quadro de “imperialismo popular”14. A palavra deslocamento quer

dizer mais do que a simples mudança de um lugar para o outro. Implica na definição de

uma categoria metafórica: deslocar significa fazer pressões através de políticas culturais.

Hall cria uma imagem para além da palavra, propondo uma guerra de posições. Esta tensão

não pode ser analisada fora das relações hegemônicas de poder, cujas pressões ao serem

14 Hall denuncia a chamada “transformação cultural” que não altera o modo de viver capitalista, como um eufemismo. Afirma que a destruição de estilos específicos de vida dá lugar ao “novo”, à “reforma”. E como tal, obscurece a real marginalização de formas e práticas culturais do centro de vida popular através da longa marcha para a modernização. Isto seria o “imperialismo popular”. O autor dá preferência às palavras “luta” e “resistência”, considerando-as bem melhor do que as palavras “reforma” e “transformação”, sem desconsiderá-las, uma vez que, são elas também (do povo) reais, e se efetivam “geralmente para o seu próprio bem (do povo), é lógico “ e “na melhor das intenções”, ironiza o autor (HALL, 2003, p. 248).

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absorvidas por tais relações, resultam em deslocamento: das novas posições, fazem-se

novas pressões que refletem teoricamente de forma não reducionista acerca das relações

entre o social e o simbólico e, a serviço desse objetivo, utiliza-se de metáforas15 que

buscam dar conta das idéias em tensão umas com as outras.

Cornejo Polar (2000) entende que a identidade passa a ser um espaço fluido,

sempre em relação, nunca estático, fechado em si, e propõe como recurso a figura do

migrante, que sintetiza suas experiências de vida sem fundi-las, sem anular suas

contradições acumuladas em cinco séculos de história colonial e neocolonial. Pode-se dizer

que existe um fio condutor sistemático em sua multicultura fragmentária, flutuante, em

constante deslocamento, atritando e conciliando sujeitos sociais diversos. Por isso a defesa

de Polar de uma história latino-americana aberta que possa refletir a realidade e, mais do

mero reflexo, que possa também transformar essa realidade. Não se pode mais fingir uma

unidade nacional harmônica através de discursos que escondam, distorçam a história,

apagando suas fissuras, o acirramento das lutas de classe e conflitos étnicos, enfim, suas

beligerâncias internas, e tampouco negando sua heterogeneidade, suas “comunidades

imaginadas”16, sincréticas, seus múltiplos sujeitos sociais etnicamente confrontados, de

racionalidades e imaginários distintos. Colocar em dúvida essa totalidade contraditória

15 Metáforas regem a compreensão da situação retratada, e a compreensão do que está em jogo passa pelas tensões que a comparação metafórica suscita. Mas as metáforas não são somente a forma elegante que Hall tem de dizer várias coisas ao mesmo tempo. São, em si, reconhecimentos de que a substância, materialidade da vida social, ao mesmo tempo escapa e é captada na linguagem. “Os Estudos Culturais se fazem na própria tensão entre discursividade e outras questões que importam, que nunca poderão ser inteiramente abarcadas pela textualidade crítica” (idem, p.15). 16Polar verifica a necessidade de definir o caráter de “comunidades imaginadas” latino-americanas e seus discursos constitutivos. Os sistemas literários e seus complexos processos lingüísticos permitem que imagens sejam construídas em um campo de deslocamento e tensão. O importante é deixar claro essa fluidez, esta “entidade em movimento” que supera a idéia de nação fechada, homogênea, comportando uma unidade lingüística e cultural, a nação da “harmonia impossível” que se faz possível apenas pelo viés do discurso. Pensar a nação enquanto entidade em movimento, enquanto processo histórico aberto, é pensar o paradoxo entre história-processo e história-texto, é pensar os sistemas literários e seus sujeitos sociais múltiplos, portadores de signos de identidade étnica divergentes, que experimentam e pensam a nação a partir de suas experiências de mundo, cada qual forjando sua própria tradição (POLAR, 2000 p.57).

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latino-americana é mais do que colocar em dúvida nossa cultura, é colocar em dúvida nossa

existência.

A identidade está profundamente envolvida com o processo de representação.

Assim, o deslocamento e a sobreposição de relações espaço-tempo no interior de diferentes

sistemas de representação têm efeitos profundos e tensionadores sobre a forma como as

identidades são localizadas e representadas. As identidades culturais, segundo Hall, sofrem

hoje a separação entre espaço-lugar que resulta na compressão de distâncias e de escalas

temporais. Polar fala em “temporalidades”, temporalidades diversas [da tradição popular,

dos sistemas subalternos e da tradição iluminista], contraditórias e unas em suas

contradições, que se chocam, sendo complementares, que criam e reformulam estruturas

híbridas, imagens sincréticas, discursos de uma “harmonia impossível” e “comunidades

imaginadas”.

Polar chama atenção para a necessidade que os sistemas literários têm de

construção de um espaço sem conflitos, ao mesmo tempo em que, no mesmo ato dessa

criação imagética, desnudam a falsa harmonia e mostram o esfacelamento, as contradições

inconciliáveis que constituem suas relações internas. Confere, então, à literatura, o papel de

protagonista, nesse processo de criação de um espaço lingüístico de convergência, que

busca abrandar as contradições, a heterogeneidade conflituosa latino-americana em um

espaço homogêneo e, se possível, harmônico. Analisa as diferenças entre os recursos do

mestiço e do migrante, entre suas respectivas linguagens e inserções intertextuais, e

também suas articulações. Interessa-se em cruzar, dialeticamente, o paradigma do mestiço e

da transculturação e seu modelo sincrético, com a flutuante sintaxe do migrante e sua

cultura fragmentária. A síntese dessas contradições, e outras que possam existir, uma vez

que nada está dado de uma vez por todas, forma um espaço plural e pluralizante, cuja

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unidade se dá pelas contradições em si, de um processo histórico marcado pela conquista e

dominação. A noção de síntese, neste contexto, comporta e contempla contrários, fissuras e

contradições.

À procura de uma definição para a identidade popular, Hall (2000) analisa as

relações que colocam a cultura popular em uma contínua tensão com o bloco de poder

(cultura dominante). O que importa são os jogos que se estabelecem em contínua mudança:

é a luta de classes na cultura ou em torno dela (idem, p. 258). O importante é observar a

luta dinamicamente, como processo histórico. Analisa que há, no âmbito dos estudos da

cultura popular, uma análise equivocada que vem oscilando, com freqüência, entre captar a

contenção ou resistência e captar a unidade desses contrários: onde conter é resistir e

resistir é conter. Hall diz que a cultura popular seria uma espécie de arena do consentimento

e da resistência.

Polar (2003) traz uma contribuição pra deslocar um pouco, deslizar um pouco

essa polaridade, traduzida como consentimento e resistência, através da análise de sistemas

literários e seus sujeitos sociais que inventam nações e produzem comunidades imaginadas,

enquanto produtos instáveis (idem, p.57). A invenção de nações não significa que elas não

sejam `reais`, elas o são com a realidade que é própria da história, pois as nações também

são feitas de discursos (idem, p.58). Portanto, a linguagem é fator determinante na

produção de nações como “comunidades imaginadas”.

1.2- Hibridação, heterogeneidade e mediações na produção artística popular Martín-Barbero (2003) ao analisar o melodrama como o grande espetáculo

popular, diz que sua forma-teatro é muito menos e muito mais que teatro, isto é, desde o

final do século XVIII, principalmente na França e na Inglaterra, o modo de produção teatral

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melodramático não vem estritamente de uma matriz tradicional teatral, mas de uma “colcha

de retalhos”, formas e modos dos espetáculos de feira e com os temas das narrativas,

advindas da literatura oral, especialmente com os contos de medo e de mistério, e também

influenciado pela conjuntura histórica revolucionária, caracterizando o melodrama como

espelho de uma consciência coletiva, uma forma de expressar as tensões e os conflitos

sociais.

As paixões políticas despertadas e as terríveis cenas vividas durante a Revolução exaltaram a imaginação e exacerbaram a sensibilidade de certas massas populares que afinal podem se permitir encenar suas emoções (idem, p.170).

Esse grande espetáculo popular, comporta a idéia de “espetáculo total”, pois não

se restringe apenas à encenação, mas também no plano de sua estrutura dramática (idem,

p.174). Uma vez que ao povo sejam permitidas apenas as representações sem diálogo, a

fim de não corromper o “verdadeiro teatro”, o melodrama absorve essa condição

subalterna, mas também faz força contrária. Não é mero receptáculo das conjunturas do

processo revolucionário francês, mas também, e isto é que o caracteriza enquanto

“espetáculo total”, realiza a entrada do povo “em cena”, duplamente “em cena”, enfatiza

Barbero (idem, p.170). A encenação e sua estrutura dramática são produzidas a partir desse

imaginário popular rico em ações e grandes paixões, demarcando o melodrama

definitivamente na esfera do popular, em oposição ao sentimento comedido, interiorizado e

desvinculado do contexto social, ou seja, em oposição à “cena privada”. O melodrama se

vincula ao excesso, seja através de uma estética rica em contrastes visuais e sonoros, seja

pelo fato de comportar uma estrutura dramática que exibe o esbanjamento dos sentimentos.

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O espaço de representação exige uma maior cumplicidade com o público, uma

relação direta para que o povo possa se fazer visível – ruas e praças, mares e montanhas

com vulcões e terremotos. É o grande espetáculo popular, que apóia sua dramaturgia na

encenação, um “espetáculo total”, pois absorve toda essa virulência emocional de um povo

que já pode se olhar de corpo inteiro (idem, p. 170) e que faz frente ao teatro culto,

eminentemente literário.

Faz-se indispensável propor a questão das matrizes culturais, pois só daí é pensável a mediação efetiva pelo melodrama entre o folclore das feiras e o espetáculo popular-urbano, quer dizer, massivo. Mediação que no plano das narrativas passa pelo folhetim e no dos espetáculos pelo music-hall e o cinema. Do cinema ao radioteatro, uma história dos modos de narrar e da encenação da cultura de massas é, em grande parte, uma história do melodrama (idem, p.178).

Assim, Barbero nos convida a olhar o melodrama como uma grande vitória

contra a repressão, contra uma determinada “economia” da ordem, e vai além; nos dias de

hoje, a persistência do melodrama ultrapassa uma explicação meramente ideológica ou

comercial.

O autor desloca o eixo do debate dos meios para as mediações para as

articulações entre práticas de comunicação e movimentos sociais, para as diferentes

temporalidades e para a pluralidade das matrizes culturais (idem, p. 270). Refere-se ao

longo processo de enculturação sofrido pelas classes populares a partir de meados do século

XIX. Entende esse deslocamento como uma ruptura mediante a qual obtém sua

continuidade: o deslocamento de uma legitimidade burguesa “de cima para dentro”, isto é,

a passagem dos dispositivos de submissão aos de consenso (idem, p. 179). Carvalho (apud

RABETTI, 2000, p.4) conclui que, desta forma, a cultura popular estaria a meio caminho

entre as culturas tradicionais e a cultura de massa, fruto da indústria cultural. Essas culturas

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tradicionais “originais” são contadas e cantadas, sobrevivendo substancialmente em veios

de rememorações (RABETTI, 2000, p.4).

Neste sentido, na sociedade moderna, o campo da cultura popular não poderia

ser identificado apenas como produtor de uma cultura pop, no âmbito da qual aspectos de

tradição se configurariam menos como dados de persistência e mais como caleidoscópio de

fragmentos que remeteriam a algo inelutavelmente perdido. “A cultura popular, hoje,

poderia identificar-se também com aquele conjunto de produções ou manifestações que,

inseridas nos atuais contextos de produção e comunicação de massa, preservam ainda – ao

menos no campo simbólico – consistentes dimensões ou aspectos de valores e

características das culturas tradicionais” (ibdem, 2000, p. 4).

A fim de refletir acerca do “modo de produção artística popular” (RABETTI,

1999) do grupo Ícaros do Vale, cujo espetáculo “Os olhos mansos” que resulta desta

articulação, enquadra-se na denominação de “peças acumulativas”, isto é, “que se prestam a

sucessivas reelaborações. E que são também significativamente móveis, constantemente

disponíveis a fazer deslizar fronteiras, sempre maleáveis ao desmanche dos contornos

formalmente constituídos, contornos que não mais sustentam, por exemplo, as tradicionais

noções de gênero e estilo” (idem, p.2), faz-se necessário confrontar os conceitos de

hibridação, heterogeneidade, mediação e suas dinâmicas culturais. A mediação comporta

uma idéia de movimento e conciliação, sem anular, portanto, sua heterogeneidade. Martín-

Barbero (2003) vê o popular imbricado com variadas manifestações culturais, por isso,

remete-se à reconfiguração [bricolagens] das culturas “tradicionais” ou à hibridação das

culturas “nativas”, bem como propõe como desafio investigar a constituição do massivo

permeado pelo popular.

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Stuart Hall (2003) ao refletir que as identidades nacionais estão em declínio,

mas que novas identidades - híbridas - estão tomando seu lugar, dialoga com Canclini

(1997) que foca na questão de como os setores populares entram e saem da modernidade.

Nesse campo, Polar (2000) permite uma maior flexibilização, não se deixa reduzir nem à

mestiçagem, nem às hibridações. Ele critica o discurso do hibridismo cultural que tece uma

nova ideologia de uma síntese e unicidade harmônicas da incompatibilidade dos contrários.

Polar defende a totalidade destes contrários e utiliza a condição migrante enquanto recurso

discursivo, um sujeito desagregado, difuso e heterogêneo, sempre deslocado, num

permanente processo dialógico, aberto e inconcluso. O migrante estratificaria suas

experiências de vida sem fundi-las, isto é, mantendo-as fragmentadas. Corresponderia à

idéia de uma multicultura [fragmentária], cujos elementos, distintos, atritantes, deslocáveis,

sedimentariam em uma “totalidade contraditória”.

Polar vê em Arguedas uma “fidelidade sem fissuras” (idem, p.127) à cultura

subalterna, mesmo tendo que se deslocar na direção da utopia e do mito. O discurso

arguediano permite ao homem andino enriquecer sua experiência de mundo a partir da

apropriação de experiências alheias. Aqui, Polar se refere à condição migrante e à

intertextualidade multicultural. O migrante não substitui o índio ou o mestiço, mas os

reposiciona num campo mais fluido e relacional. Essa nova síntese tensiona e provoca a

sobreposição dos discursos harmônicos em interseções transculturais (idem, p.128). Trata-

se da figura do migrante e da produção de sentidos da migração.

Certamente, a condição do migrante não desloca as categorias étnicas de índio ou mestiço, mas de certo modo pode englobá-las, como as outras, em termos de um processo tanto individual como coletivo, no

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interior de um processo que situa o movimento, e por conseguinte a história e sua aprumada fluência, num primeiro plano (ibidem, p.130).

De fato, a heterogeneidade latino-americana leva a um discurso complexo, com

seus múltiplos sistemas literários, diversas narrativas acerca de uma unidade nacional, que

não pode mais ser entendida fora de uma totalidade contraditória (ibidem, p.287).

As idéias de “mediação” de Barbero (2003) e “hibridação” de Canclini (1998)

nada têm a ver com uma síntese harmonizadora, semelhante à antiga ideologia da

mestiçagem. O conceito de mestiçagem pode servir de camuflagem à manutenção de uma

identidade calcada na hegemonia, preocupada em integrar os grupos marginalizados, mas

sempre de acordo com as concepções dominantes da nação. “Híbrido” é o termo proposto

pela pós-modernidade para sanar esse mal-estar teórico. A pós-modernidade ao trazer à

tona o conceito de híbrido, enfatiza acima de tudo o respeito à alteridade e a valorização do

diverso. Dos diversos, pois que a hibridez é a síntese obtida a partir de um par de opostos

onde não há espaços para hegemonias ou subalternidades.

Além da indispensável referência ao movimento dialético do particular e do

universal, para circunscrever o âmbito de “modo de produção artística popular” do Vale do

Jequitinhonha é igualmente indispensável analisarmos a formulação de Antonio Candido, a

conjunção entre literatura e sociedade – enquanto “estruturas” complementares – se dá na

medida em que a concepção de forma é definida para além da esfera literária: a própria

realidade histórica é, com efeito, ela mesma “formada”.

“Literatura e sociedade” (CANDIDO, 1980) é uma obra referencial,

paradigmática para os estudos culturais no Brasil. Questões que devem ser levantadas e

problematizadas: Tais manifestações culturais populares do Vale do Jequitinhonha são

teatro, por quê? É popular, por quê? A produção artística popular através da experiência, da

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memória dos velhos, do artesanato, da ‘bricolagem’ da vida material e imaterial do homem-

jequitinhonha, toda essa massa heteróclita, re-trabalhada, que constitui repertório para o

grupo de teatro Ícaros do Vale, leva a essa discussão.

Para Antonio Candido, não apenas a realidade histórico-social apresenta-se

“formada” dialeticamente, a idéia de “formação” é manipulada também no âmbito da

realidade artística. Quanto a essa questão, o autor estabelece uma distinção entre

“manifestações literárias” e seu conceito de literatura propriamente dito – idéia teórica

fundamental do livro “Formação da literatura brasileira” (CANDIDO, 1959), desdobrando-

se na noção de sistema literário: a literatura é encarada pelo crítico como um sistema de

obras ligadas por denominadores comuns que fazem dela aspecto orgânico da civilização.

Assim, a literatura é vista como um fato de cultura, algo, portanto, que não surge pronto e

acabado, antes se configura ao longo de um processo cumulativo de articulação com a

sociedade.

Trata-se da tradição, transmissão de elementos simbólicos entre os homens, sem a

qual a literatura não pode existir enquanto elemento de civilização, enquanto sistema

articulado formador de uma tradição. Existir literariamente é existir em perspectiva

histórica. O autor fala em “denominadores comuns”, que são além das características

internas [línguas, temas e imagens], elementos de natureza social e psíquica literariamente

organizados. Este conjunto de elementos caracteriza a literatura, enquanto sistema

simbólico, a partir do intercâmbio de relações entre os homens.

Em “literatura e sociedade” (CANDIDO, 1980), o autor defende uma integração

dialética entre texto e contexto. Fugindo de um determinismo social, o externo [o social],

não deve importar como causa e muito menos como significado, mas como elemento que

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desempenha um certo papel na constituição da estrutura, tornando-se, portanto, interno

(idem, p.4). O teatro popular do Vale do Jequitinhonha ao colocar a dialética para

funcionar, quando o externo se torna interno, notamos um salto de qualidade saindo de uma

interpretação do objeto meramente sociológica, para se chegar a uma interpretação estética

que assimila o contexto social enquanto fator artístico. Contudo, no que diz respeito à

proposição dialética do local e do universal, a dupla fidelidade, nos termos de Candido, é a

chave para a compreensão do processo de “formação” cultural brasileiro.

O “modo de produção artística popular” teatral do Vale do Jequitinhonha

comporta essa integração dialética entre texto e contexto. Podemos conferir às obras do

grupo Ícaros do Vale o estatuto de “espetáculo total”, expressão utilizada por Martín-

Barbero (2003) em face do modo de produção melodramático. A “totalidade” vinculada à

cena teatral vai além da forma-teatro, pois não se restringe apenas à encenação, mas

também no plano de sua estrutura dramática.

Sob esse olhar, o modo de produção melodramático dialoga com o modo de

produção teatral do sertão mineiro. A encenação e sua estrutura dramática são produzidas a

partir desse imaginário popular rico em ações e grandes paixões, o que demarca

definitivamente um espetáculo na esfera do popular. Com Antonio Candido (1980), pode-se

dizer que as obras do grupo Ícaros do Vale comportam uma interpretação estética que

assimila o contexto social enquanto fator artístico.

“Sertão, sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso (...).17”

17 Trecho de Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, que faz parte do espetáculo “Os olhos mansos”, do grupo Ícaros do Vale.

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A fim de exemplificar, escolhi o espetáculo “Os olhos mansos” do grupo Ícaros

do Vale, baseado na obra “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa e nas pesquisas de

campo desenvolvidas por Luciano Silveira. O processo coletivo de montagem da peça uniu

o universo do sertão de Guimarães Rosa com o sertão do Vale do Jequitinhonha. Luciano

Silveira, ator e diretor do grupo Ícaros do Vale pesquisou a memória viva do homem-

jequitinhonha em algumas cidades: a mortalidade infantil em Chapada do Norte18, com os

cantos de anjos, os cantos de louvor à morte de anjo e incelências; a pesquisa sobre as

lavadeiras foi feita em Coronel Murta, uma parte em Araçuaí e Sampaio foi outra cidade

estudada.

(...) lá em Sampaio é sertão, só que é um sertão que tem água. Tem o Rio Araçuaí que passa lá embaixo mas você não vê nada... você só vê seca porque é morro, as casas ficam nos morros, vários morros e o rio passa assim no meio. Aí eu queria trazer pro sertão mesmo, pro universo que eles viviam, que é aquela realidade deles. Que tudo era complicado na cidade, com exceção dos derivados da cana. Mas eles tinham pasto também, plantavam horta na beira do rio onde é a parte mais fértil.. aí foi assim... eu recolhia o depoimento deles... eu sempre faço a pesquisa, assim, de acordo com a realidade que encontro. Não vou num lugar com a idéia... vou pesquisar Folia de Reis? Não! Eu vou no lugar. Se tiver folião posso pesquisar Folia de Reis. Agora, se tiver vaca, posso pesquisar a vida do vaqueiro (LUCIANO, ent. 16/01/2006).

O teatro popular produzido por esse grupo é imbricado com variadas

manifestações culturais, por isso, podemos remetê-lo a bricolagens das culturas

“tradicionais.” Dentro desse contexto, entra uma instância fundamental que é o repertório,

por conta das relações de re-elaboração e de re-tratamento, através das “artes de fazer”

18 Chapada do Norte está situada no Médio Jequitinhonha tendo como referência à cidade de Minas Novas a 20 Km, Araçuaí a 84 Km e Belo Horizonte a 540 Km. Sua população atual é de 15.206 habitantes, sendo que, 70% desses habitantes é de cor negra , devido a presença maciça e marcante do escravo como mão-de-obra para exploração do ouro. A área atual do município é de 828 Km2. O homem negro teve uma participação marcante no processo de povoamento e ocupação deste município. Hoje. há seis quilombos remanescentes na região.

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(CERTEAU, 1999), do conceito de bricolagem (LÉVI-STRAUSS, 1970) e “comunidade

imaginadas” (POLAR, 2000).

A partir do conceito de bricolagem, enquanto relação humana (entre os homens e

entre os homens e seus objetos), pode-se buscar uma análise da cena contemporânea do

teatro produzido no Vale através da experiência, da memória dos velhos, do artesanato, ou

seja, da bricolagem da vida material e imaterial do homem-jequitinhonha, toda essa massa

heteróclita, re-trabalhada, que constitui fonte de repertório durante todo o processo de

criação teatral desse grupo.

Polar (2000) também problematiza essa questão - integração dialética entre texto

e contexto - quando verifica a necessidade de definir o caráter de “comunidades

imaginadas” latino-americanas e seus discursos constitutivos. Os sistemas literários e seus

complexos processos lingüísticos constroem imagens em um campo de deslocamento e

tensão ora conciliatórias, ora contrapostas entre si. Há uma “bricolagem” destes fragmentos

de história. O importante é deixar claro essa fluidez, esta “entidade em movimento” (idem,

p.57) que supera a idéia de nação fechada, homogênea, comportando uma unidade

lingüística e cultural, a nação da “harmonia impossível” que se faz possível apenas pelo

viés do discurso. Pensar a nação enquanto entidade em movimento, enquanto processo

histórico aberto, é pensar o paradoxo entre história-processo e história-texto, é pensar os

sistemas literários e seus sujeitos sociais múltiplos, portadores de signos de identidade

étnica divergentes, que experimentam e pensam a nação a partir de suas experiências de

mundo. Cada qual forjando sua própria tradição (ibdem, p.57).

A ideologia não é uma mentira e é preciso um senso de realidade para

compreender o processo histórico e seus discursos [história-texto] que “inventam nações” e

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produzem “comunidades imaginadas”, enquanto produtos instáveis de vastos e também

instáveis exercícios sígnios (ibdem, p.57). Polar diz que a invenção de nações não significa

que elas não sejam “reais”, elas o são com a realidade que é própria da história, pois as

nações também são feitas de discursos. (ibdem, p.58). Portanto, a linguagem é fator

determinante na produção de nações como “comunidades imaginadas”, conferindo à

literatura, o papel de protagonista, nesse processo de criação de um espaço lingüístico de

convergência, que busca abrandar as contradições, a heterogeneidade conflituosa latino-

americana em um espaço homogêneo e, se possível, harmônico. A título de exemplificar a

construção dessa figura harmônica da nação, Polar cita Garcilaso, com sua condição

mestiça, vinculando e conciliando tradições hispânicas e quéchuas em um espaço comum,

harmônico, anulando tensões e enrijecendo o campo de deslocamento, necessário

[deslocamento] para o entendimento da construção de uma nação [sistemas literários] e da

autoconstrução de seus sujeitos (ibdem, p.61). O discurso acerca de uma “comunidade

imaginada”, além de construir um novo espaço, autoconstrói a si próprio, que está inserido

neste mesmo espaço, confundindo muitas vezes a história com sua autobiografia. O recurso

que Garcilaso utiliza para obter uma unidade harmônica é a sua auto-imagem de mestiço,

sua condição de `homem novo`; homem, índio, inca, mestiço. Quando Palma reescreve

Garcilaso, deslocando o quéchua [linguagem popular] para o espanhol [linguagem culta,

autorizada], suprimindo com humor o conflito da história de Garcilaso, reduzindo o

processo de modificações da oralidade à autorização institucional da Academia, produz um

espaço homogêneo, negando justamente a comunidade nacional, instalando

harmonicamente uma nova nação e renovando a vocação de harmonia.

Palma inscreve sua produção na problemática maior da época: criar uma imagem e um discurso que diluam as contradições solapadoras da própria

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idéia de nação, construindo espaços homogêneos sobre uma realidade opressivamente heterogênea, com o ânimo de edificar na e pela linguagem uma comunidade nacional possível (idem, p.72).

A versão palmista “inventa” uma nação através de um discurso que diz a si

mesmo. E é assim que Polar nos convida a olhar para o paradoxo entre história-processo e

história-texto. Um olhar que busca sustentar e legitimar uma visão pessoal. Os sistemas

literários de Garcilaso e Palma em direção a uma unidade harmônica encontrou

receptividade em amplos apetites sociais, mas não podemos deixar de captar que outros

sujeitos estavam produzindo discursos opostos, outros sistemas literários estavam sendo

`produzidos` e `inventados` e que podemos não subordinar essa longa hegemonia palmista

de uma comunidade imaginada harmônica.

1.2.1 - Memória e tradição oral: o homem-jequitinhonha em cena

A vida no Vale se desenvolveu em torno do Rio Jequitinhonha desde o

desbravamento e povoamento da região, por volta de 1789. E as pessoas que lá habitaram e

habitam desde então cultivam suas festas tradicionais, costumes, lendas, cantigas ancestrais,

artesanato e o teatro popular. O teatro popular do Vale é hoje expressivamente representado

pelo grupo Ícaros do Vale que ao fazer o caminho da memória concretiza na cena a

coexistência de temporalidades diversas.

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São alguns exemplos, hoje, das ricas manifestações culturais, na esfera das artes

plásticas, as máscaras africanas de Lira Marques, os tambores de Mestre Antônio, as

esculturas de Zefa, de Mestre Ulisses, os Cristos de “Seu” Didi, as bonecas de Dona Isabel

e todos os ceramistas do Vale. Esses artistas são os responsáveis por grande parte do acervo

escultórico exposto no Museu do Folclore da FUNARTE e reconhecidos em todo o Brasil e

no mundo pela sensibilidade de sua arte e preservação de técnicas ancestrais de produção

da argila e das peças. Do mesmo modo, destacam-se o folclore da região e a música de

Paulinho Pedra Azul, de Tadeu Franco, Tavinho Moura, Saulo Laranjeiras e Pereira da

Viola. A maior parte do repertório folclórico cantado por Milton Nascimento vem do Vale.

Destacam-se os “causos” de Tadeu Martins e Gonzaga Medeiros, bem como os versos de

roda do Coral Trovadores do Vale. O grupo de teatro Vozes e Ícaros do Vale se sobressaem

pela excelência de suas encenações, tendo como elementos constitutivos pesquisas que

buscam resgatar a riqueza estética e musical do Vale.

A sociedade de que se trata, e os indivíduos nela constituídos e dela

constituintes, bem como as relações das mais diversas ordens nela havidas, se foram

enriquecendo, tornando-se mais diversificadas e multifacetadas. Enfim, esses

desenvolvimentos, que se prolongaram pelo período conhecido como o “ciclo do ouro”,

produziram uma realidade crescentemente complexa, de tal modo que, para além da esfera

mais primária do trabalho, surgiu no Vale a esfera superior das atividades artísticas. Essa é

a postura ontológica primeira na relação do homem com a natureza. E, o mais importante:

as atividades artísticas surgiram com tal força e densidade que nem mesmo a posterior

decadência econômica da região com o esgotamento das minas alcançou anulá-las.

O Rio Jequitinhonha é, in locus, principal condição natural que possibilitou um

intercâmbio cultural entre homens e entre o produto de suas atividades, no baixo, médio e

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alto Jequitinhonha. Como todos os rios que atravessam regiões distintas e fronteiras

políticas, o Jequitinhonha seguiu uma direção histórica traçada pela natureza. Recebeu

diversos nomes19, ora de origem histórica, ora de origem toponímica, para finalmente

receber o nome que traz hoje. Através das relações homens-rio e homens-homens, ele se fez

veículo de relações entre comunidades, levando homens ao encontro de outros homens.

Surge um intercâmbio cultural entre as comunidades ribeirinhas a partir do rio. Com

Habermas (apud MÉSZAROS, 2004), poderíamos dizer que o rio funcionou e funciona

como um favorecedor de “competências comunicativas inter-subjetivas.” Esse intercâmbio

humano que se forma, portanto, a partir do Rio Jequitinhonha resulta no florescimento de

produção de riquezas de todos os níveis - material e espiritual – artística portanto. Para

Habermas é necessário recuperar a dimensão da interação humana, de uma racionalidade

não instrumental, baseada no agir comunicativo entre sujeitos livres, de caráter

emancipador em relação à dominação técnica, uma vez que o desenvolvimento técnico que

resulta de uma razão instrumental, acaba por caracterizar a perda do próprio bem (idem, p.

192).

Um outro aspecto de fundamental importância tem a ver com a função das

manifestações artísticas do Vale enquanto expressão das necessidades populares atuais. O

povo do Jequitinhonha encontra nos seus músicos, poetas, artesãos, cantadores, atores, os

porta-vozes de suas denúncias e os críticos daqueles que oprimem e exploram o homem-

Jequitinhonha. Esses artistas, anônimos em sua grande maioria, somam-se aos seus

19 Tais como: Massangano, Rio das Pedras, Rio da Areia, Jequitinhonha do Campo, Jequitinhonha das Matas, Rio Encantado, Rio Grande, Giquiteon, Jequié-tinhong, Patixá, Yiki-tinhonhe, Gacutinhonha, Igiquitinhonha, Gequitinhonha, Giquitinhonha, Jacutinhonha, Jiquitinhonha, Rio Grande de Belmonte e finalmente Jequitinhonha.

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“irmãos”, santos milagreiros, na luta pela sobrevivência, fazendo das práticas artísticas,

hinos de louvor à cultura do Vale.

Por tudo quanto acima foi dito, é de fundamental importância a observação da

vida cotidiana no Vale, especialmente levando-se em conta que o objeto preciso da

pesquisa proposta é fruto da atividade do grupo Ícaros do Vale que efetivamente se insere

nessa cotidianidade.

A cultura tradicional do Vale se revela num cabedal de conhecimentos

acumulados ao longo de seu processo histórico de colonização e formação econômico-

social. As pesquisas desenvolvidas pelo diretor do Ícaros do Vale nas comunidades

sertanejas buscam captar da realidade essa cadeia de tradição que transmite acontecimentos

significativos de geração a geração, tendo, na figura do contador, o herói que

religiosamente ata os membros da comunidade a suas raízes mais genuínas. Por meio desta

atividade mnêmica, fonte de repertório para o grupo, o narrador exerce a função quase

mítica de ser a memória viva do grupo, resguardando a unidade e a história com a

autoridade de quem viu, viveu e ouviu. Desempenha particularmente a tarefa de

convencionar as imagens e idéias da recordação, ajustando-as às convenções contextuais e

verbais de seu grupo, para estilizá-las conforme o ponto de vista cultural e ideológico da

comunidade a que pertence.

As relações entre o conto popular, os mitos e o teatro datam de muito tempo e

oferecer uma bibliografia acerca dessas relações seria interminável, observa Bráulio do

Nascimento (2000, p.41). Diz que de um modo geral, não existem temas específicos ligados

a uma determinada forma de expressão.

Os gêneros, evidentemente, são instrumentos de classificação, que

facilitam a análise de estruturas diversificadas. Na prática, na elaboração

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do produto cultural, eles não se constituem em territórios estanques; ao

contrário, se integram, oferecendo composições multifacetadas (idem,

p.41).

Assim sendo, podemos classificar o conto popular, enquanto um fenômeno vivo

de ordem ideológica, uma vez que se torna forma de reflexão daqueles homens que se

sentem responsáveis pelos hábitos de uma comunidade e, enquanto guias, buscam adequar

o grupo às mudanças sociais, aos novos valores, sem deixar morrer os comportamentos da

tradição. Suas considerações incidem na obsessiva vontade de que, admitindo as formas

novas de viver, se crie uma sistemática de relações onde o velho continue existindo junto ao

novo, seja de forma paralela, seja dando lugar para as associações de caráter híbrido, quase

impossíveis de acontecer na realidade, mas plenamente realizáveis na fantasia coletiva. Os

contos orais exercem em seu contexto a função social de ensinar às gerações um modo de

conciliação do mundo novo e do extremamente antigo, ideando uma colagem que sugira os

caminhos do que se pensa moderno sem o abandono do passado. Essas narrativas querem

mostrar uma possibilidade aceitável de se introjetar, nos hábitos da comunidade,

características diversas daquelas em que se originam e, nessa maleabilidade, realizar a

continuidade com os sistemas de tradição.

Esse intercâmbio de experiências é a fonte das narrativas orais, das cantigas de

roda, cantos de trabalho e cantos religiosos que, por exemplo, transformam o ato simples da

benzedeira do interior num contar tecido da substância viva que o explica como ato de

espargir conselhos e sabedoria. A tradição oral traz em si uma dimensão de utilidade, seja

no ensinamento moral, na sugestão prática, na norma da vida, seja na tentativa de cura dos

males que afligem o homem do grupo. O teatro popular do Vale está vinculado,

intimamente enraizado, nesse “saber popular”. O grupo Ícaros do Vale desenvolve um

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“diálogo forte” (RABETTI, 2000) com o homem-jequitinhonha através da pesquisa da sua

memória histórica produzindo uma estética que lhe é peculiar. Dentro dessa discussão,

entra uma instância fundamental que é o repertório, por conta das relações de reelaboração

e de retratamento, através das “artes de fazer” e do conceito de bricolagem.

Em “O pensamento selvagem”, Lévi-Strauss (1976) desenvolve o conceito de

bricolagem. O pensamento mítico que se expressa com o auxílio de um repertório

heteróclito, extenso, embora limitado, pode ser considerado uma bricolagem intelectual,

uma primeira ciência.

(...) subsiste entre nós uma forma de atividade que, no plano técnico, permite muito bem conceber o que, no plano da especulação, pôde ter sido uma ciência, que preferimos chamar "primeira" ao invés de primitiva; é a comumente designada pelo termo bricolage∗ (idem, p.25).

O modus operandi da reflexão mitopoética se dá através de materiais

fragmentários, heteróclitos, pré-existentes, mas não preconcebidos. Considerando a magia

como uma metáfora do pensamento científico, Levi-Strauss afirma que o pensamento

mítico aborda a história com o que ele chama de "ciência do concreto", a qual não operaria

por meio de conceitos, mas de signos, como uma forma de observação, de organização e

especulação do mundo sensível, em termos do sensível (idem, p.37). Então, a reflexão

mitopoética se expressaria por meio de um repertório heteróclito, sem definição de projeto,

através de uma bricolagem intelectual.

O bricoleur não busca conseguir ferramentas ou matéria prima vinculada à

execução de um projeto, senão que seu projeto é que parte de um universo instrumental

fechado, de um conjunto de utensílios e materiais heteróclitos, pré-existente, uma síntese de

diferentes signos, fazendo emergir significados a partir de rearranjos de resíduos culturais.

Seu projeto, portanto, é feito de acordo com a renovação do armazenamento dos resíduos

que coleciona.

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Voltado para um conjunto já construído, refaz seu inventário, interroga seus

objetos para compreender o que significam, quais as suas possibilidades de se encaixarem

noutro conjunto e assim por diante. Lévi-Strauss observa que existe um fio condutor que

une esses resíduos, que permanecerão vinculados, em algum grau, à história particular de

cada elemento, que já vem carregado dos significados de seu contexto anterior, para qual

foi concebido e que se transmite à nova expressão.

A bricolagem tem que ser analisada enquanto relação entre os homens e entre os

homens e seus objetos. Os elementos usados pela bricolagem fazem parte de uma coleção

de resíduos de obras humanas, saturados de densidade humana, de significados que são

endereçados a algo ou a alguém. A mensagem do bricoleur é de qualquer maneira, pré-

transmitida, e por ele colecionada. Talvez se possa pensar que a colagem, a sobreposição de

imagens e os sentidos produzidos pelo grupo de teatro Ícaros do Vale representam o papel

de signo, não de idéia, com a qual coabita. Embora a idéia possa não estar ainda definida, o

signo pode aguardar seu futuro aparecimento, sempre que formar um sistema onde tudo o

que modifique um elemento atuar dialeticamente nos outros. No trabalho artesanal

realizado pelo homem-jequitinhonha, mesclam-se a fabricação de objetos de barro e a

narrativa dos fatos cotidianos e fabulosos, constituindo fonte de repertório para o grupo de

teatro.Uma vez que se configuram como representação de histórias que alimentam e

revitalizam cada vez mais o imaginário cultural da região. O homem-jequitinhonha é

artesão de imagens partidas da memória [bricoleurs].

O rearranjo de elementos, em incessante re-construção, produz significados que

se tornam significante e vice-versa. O pensamento primitivo e a bricolagem elaboram

conjuntos estruturados, utilizando outros conjuntos estruturados, feitos de resíduos e

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fragmentos. Assim, o teatro popular do sertão mineiro rearranja fragmentos20 do cotidiano e

da história, criando e recriando uma estética peculiar através de uma mitologia pessoal e da

sua carga mítica.

Este conceito de bricolagem também é utilizado pelo historiador Michel de

Certeau (1999). O homem ordinário ao inventar o cotidiano, através das “artes de fazer”,

concretas táticas de resistência, diversas práticas inventivas de “caça não autorizada” (idem,

p. 38), mostra-nos que a classe subalterna não é mero receptáculo, mas abre seu próprio

caminho no uso dos produtos impostos, o que faz das “artes de fazer” a “arte de viver” a

sociedade de consumo.

É dentro dessa perspectiva e abordagem que o historiador nos convida a olhar as

práticas e “maneiras de fazer” cotidianas enquanto “artes de fazer”, “operações dos

usuários”, não mais entregues à passividade e à disciplina, deslocando a atenção do

consumo supostamente passivo dos produtos recebidos para a criação anônima, nascida da

prática do desvio no uso desses produtos. Para ler e escrever a cultura ordinária é mister

(re)aprender operações comuns e fazer da análise uma variante do seu objeto (idem, p.35).

O exame dessas práticas [cotidianas] não implica um regresso aos indivíduos, ao

atomismo social (idem, p.110). Pressupõe um olhar para as múltiplas determinações

relacionais, entre sujeitos e entre sujeitos-objetos, pois a relação [sempre social] determina

seus termos, e não o inverso, e que cada individualidade é o lugar onde atua uma

pluralidade incoerente [e muitas vezes contraditória] de suas determinações, sempre

relacionais (idem, p.38).

20 fragmentos [resíduos] selecionados pelo bricoleur de acordo com determinadas vivências, peculiares do Vale do Jequitinhonha.

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(...) é preciso interessar-se não pelos produtos culturais oferecidos no mercado dos bens, mas pelas operações dos seus usuários; é mister ocupar-se com as maneiras diferentes de marcar socialmente o desvio operado num dado por uma prática (idem, p.13).

Certeau busca esclarecer as táticas utilizadas pelos consumidores para

transformar e redefinir os produtos de consumo, isto é, “elaborar uma teoria das práticas

cotidianas”. Para tanto, ele procura afastar-se dos dados estatísticos [que homogeneízam

todas as práticas] e aproxima-se dos usos individuais, para encontrar ali informações

qualitativas. Não significa, no entanto, que estes usos sejam particulares de cada indivíduo.

Eles constituem uma cultura de táticas, cujos modelos remontam talvez às astúcias

multimilenares dos peixes disfarçados ou dos insetos camuflados (ibdem, p. 38).

Lévi-Strauss (1970) ao analisar a “cultura comum”, inventiva em sua própria

cotidianidade, em suas formas sub-reptícias de criatividade, acaba por articular a cultura

popular às “artes de fazer”, ou seja, bricolagens. Assim, a cultura popular é caracterizada

pela “economia do dom” [o dar voluntariamente, a negação do sistema econômico], pela

“estética dos golpes” [operações táticas de proveito da ocasião] e pela “ética da tenacidade”

[de burlar a ordem estabelecida]. A cultura popular seria isto, e não o corpo considerado

estanho, estraçalhado a fim de ser exposto, tratado e citado por um sistema que reproduz,

com os objetos, a situação que impõe aos vivos (CERTEAU, 1999, p. 89).

Trata-se de uma cultura que articula conflitos, tensões e violências, deslocando,

dando maior flexibilidade entre os pólos dominante e dominado. A fim de fundamentar

suas observações, Certeau desenvolve as teorias da “arte de fazer”.

Ao deslocar o olhar sobre o controle do poder dominante [oficial] para os

procedimentos populares diante dele, dessa rede vigilante, introduz as noções de

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“estratégia” e “tática”: estratégia é o calculo das relações de força que se torna possível a

um sujeito que tem seu lugar próprio e dali pode, então, gerir uma situação. É o controle e

utilização do espaço para atingir um fim e tática é o meio utilizado por aquele que não pode

exercer nenhum controle espacial e que precisa aproveitar os acontecimentos para agir. É

uma forma de jogar com o tempo e o lugar do outro, criando ocasiões para atingir um fim.

Muitas práticas cotidianas [falar, ler, circular, fazer compras ou preparar as

refeições etc.] são do tipo tática. A generalização e a expansão da racionalidade

tecnográfica criaram, entre as malhas do sistema, um esfarelamento e um pulular dessas

práticas antigamente reguladas por unidades locais estáveis.

É necessário encontrar um discurso que não se afaste do objeto em análise. Para

Certeau, o conto popular é o “saber-dizer” mais ajustado ao seu objeto, porque ele procede

da mesma maneira como procede o objeto – ambos têm o mesmo princípio. Na maneira de

narrar se explicitam as táticas. Os contos já são, em si, gestos que significam, sem que seja

necessário interpretá-los. Assim, dentro do esquema lógico das táticas, quanto menos força,

mais saber-memória é necessário; quanto mais saber-memória, menos tempo é necessário e

quanto menos tempo houver, mais efeito é alcançado. A memória estaria ligada a

pluralidade dos tempos sem se limitar ao passado (idem, p.3).

1.2.3 - Performance: o caminho da memória como fonte de repertório

Com o objetivo de pensar a potência da oralidade da região, da memória dos

velhos, esta enquanto repertórios que são acionados pelos membros do grupo de teatro

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Ícaros do Vale, proponho um exercício de encontrar pontos de contato entre Paul Zumthor

(1997) e Ecléa Bosi (2004).

O caminho da memória como fonte de repertório proporciona a transmissão da

tradição e o sentido de pertencimento de um lugar, que são tecidos e sintetizados através da

performance. No sentido de evocar a oralidade como um conjunto complexo e heterogêneo

de condutas e de modalidades discursivas comuns, podemos determinar um sistema de

representações e uma faculdade de todos os membros do corpo social de produzir certos

signos, de identificá-los e interpretá-los da mesma maneira. A performance é meio que

possibilita auscultar esses signos, fazer ressoar o não-dito (ZUMTHOR, 1997. p.22).

Não apenas a questão do ensino, da transmissão de conhecimentos e informações

e da perpetuação das tradições estão envolvidas nesse fantástico sistema de comunicação

que se opera através da performance contida nas manifestações artísticas cotidianas do

homem-jequitinhonha. Principalmente há que se considerar a necessidade, intrínseca ao ser

humano, de teorizar, abstrair e comunicar a experiência vivida. Geertz (1983) observa que o

ser humano sempre tira um sentido da experiência, a simboliza, organiza e relata. É uma

prática de interpretação, isto é, enquanto está sendo realizada, se dá o momento de

interpretação da cultura.

No Vale do Jequitinhonha as manifestações artísticas praticamente se

confundem com a própria cultura, se entendermos a cultura, segundo Geertz, como um

código simbólico compartilhado pelos membros de uma sociedade. Assim, há uma

aceitação tácita dos mesmos conceitos e padrões, e os movimentos de evolução ou mudança

se dão dentro da mesma estrutura cognitiva. Desta forma, a compreensão dos significados

simbólicos só é possível dentro da própria cultura que os produziu. A expressão de uma

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teorização sobre a vida e como ela deve ser vivida é simbolizada então através da

performance, cujo significado só pode ser apreendido numa perspectiva histórica e

dialética. Pode-se dizer que a performance é ao mesmo tempo um veículo de socialização e

comunicação. Socialização porque produz objetos essenciais ao uso social, e, além disso,

confere ao grupo que a utiliza o status de grupo humano, possuidor de uma identidade. É

veículo de comunicação porque através dela é revivida a mitologia do grupo, porque

expressa sua visão cosmológica, seus valores morais e éticos. É, por fim, um código

cultural compartilhado pelos membros de uma comunidade.

Neste sentido, importante perceber a relação da performance com a memória: a

partir da performance se faz o caminho da memória, mas é como se o caminho da memória

dos velhos como alimentador da performance dos grupos ainda tivesse que ser feito. Ao

lembrar o passado, o velho não está descansando, não está ‘fugindo’ da realidade presente,

ele está se ocupando conscientemente e atentamente do próprio passado, da substância

mesma da sua vida (BOSI, 1994, p.60).

Paul Zumthor, medievalista suíço, em “A letra e a voz” (1993), insere a voz e a

performance como princípios constitutivos da “literatura” medieval, enquanto uma

teatralidade viva. O foco do autor está no conceito de performance em relação ao sentido de

temporalidades, isto é, ao fazer a passagem da letra (memória) para a voz (corpo), através

da performance, discute-se a possibilidade de uma atualização, de uma rememoração do

passado. Seu ponto de partida é a obra inteira, enquanto totalidade, concretizada pelas

circunstâncias e determinações, de sua tradição e transmissão pela presença simultânea,

num hic et nunc, isto é, num tempo e num lugar dados, dos participantes dessa ação. A

partir de seu estudo acerca da oralidade, ou melhor, da vocalidade [como prefere o autor,

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p.21], percebemos a importância e a necessidade de um esforço de resgatar a palavra viva

na contemporaneidade.

(...) exatamente como um esqueleto fóssil, uma vez reconhecido, deve ser separado dos sedimentos que o aprisionam, assim a poesia medieval deve ser separada do meio tardio no qual a existência dos manuscritos lhe permitiu subsistir: foi nesse meio que se constituiu o preconceito que fez da escritura a forma dominante – hegemônica – da linguagem (idem, p. 17).

Vale, nesse momento, lembrar e retomar o velho dilema dos missionários

coloniais que, com uma das mãos destruíam símbolos, conhecimentos e formas de vida

milenares, e com a outra, transcreviam os restos de suas fragmentárias memórias a formatos

escriturais, para modificá-las e controlá-las com sistemas de representação e de poder.

Zumthor se refere a uma concepção artística cujas dimensões espirituais e cognitivas não se

reduzem ao texto silencioso, mas transcendem as palavras impressas, buscando a palavra

viva, a voz, sua historicidade, seu uso, seu sujeito, lugar e tempo históricos.

O conjunto de textos legados a nós não passou pela voz de modo aleatório,

desinteressado, mas em virtude de uma situação histórica que fazia desse trânsito vocal o

único modo possível de realização [socialização] desses textos. Esta constitui a tese, a

hipótese de Zumthor. Ela abrange as canções, mas também as narrativas e declamações de

todo o tipo, as próprias crônicas. Trata-se de dialogar com termos antigos, portadores de um

discurso que, reduzido a nossa simples instrumentação intelectual, não entendemos mais,

observa.

A “literatura” medieval, o “texto” medieval, seu objeto de pesquisa, não se

identifica com os instrumentos da análise literária tradicional21. Estes não dão conta dessa

teatralidade viva, seja canção de gesta, conto trovadoresco, sermão ou obra didática, que é 21 A análise literária tradicional pressupõe um texto silencioso, sem voz. Zumthor nos convida a olhar para a origem de tudo o que se escreve, a voz.

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sempre performativo. A teatralidade viva, a qual se refere, caracteriza-se por uma presença

viva; o ator, a fala, o gesto, o corpo. A obra contendo e realizando o texto (idem, p.10).

Zumthor defende nas obras “A letra e a voz” (1993) e “Tradição e

esquecimento” (1997), um modelo de análise com singular capacidade para transitar nas

questões inerentes à oralidade, escrita e memória, obrigando o pesquisador a um esforço de

imaginação, com reflexão, uma vez que não se trata de um esforço no sentido de

(re)invenção, na esfera ficcional, e permitindo fazermos paralelos entre o papel do

intérprete e do ouvinte, entre escrita e oralidade, entre memória, esquecimento e tradição. A

“oralidade” é uma abstração; somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as

coisas (idem, p.9).

Desenvolve conceitos [a partir da função da voz22] que dialogam e encontram

campo fértil no processo criativo do grupo Ícaros do Vale, uma vez que a tradição oral do

homem-jequitinhonha e sua transmissão são o elo que os atam uns aos outros e também, o

elo que eleva sua produção artística, enquanto autoconsciência da humanidade. A tradição

oral se situa na duração e a transmissão oral no presente, no ato da performance (idem,

p.17).

O autor diz que “nossas culturas só se lembram esquecendo, mantêm-se

rejeitando uma parte do que elas acumularam de experiência, no dia-a-dia. A seleção drena

assim, duplamente, o que ela criva” (1997, p.15). Portanto, esquecer é também uma forma

de memorizar, um método de seleção e atualização do dito, do vivido. Ao selecionar

documentos, o historiador, em sua escolha, age em semelhante processo, ao deixar para trás

o que não é significativo e ao eleger o que para ele é importante. A vontade de

22 A função da voz foge a interpretação positivista, restrita e limitada, portanto, deixando de tratar o objeto [a voz] enquanto tradição de pensamento que considera a voz como portadora unicamente da linguagem, já que na voz e pela voz se articulam as sonoridades significantes (ibdem, p. 21).

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esquecimento é um mecanismo utilizado para excluir da tradição certos elementos da

memória coletiva23, indesejáveis para ela. São instrumentos conjuntos e indissociáveis de

toda ação (idem, p. 20). A memória é fruto de uma constante tensão entre o que mantém a

tradição e o que ela preferiu esquecer, resgatando a questão da duração, da temporalidade.

De fato, a voz medieval não é nossa, e historicamente, desintegrou-se o mundo

onde ela ressoou. Conseqüentemente, com espaçamento de séculos, uma dupla tentação nos

espreita, analisa Zumthor: concebê-la [a voz] linearmente, de modo mecanicista, como

mera causalidade, enquanto uma origem e, a partir desta assertiva equivocada, supor uma

unidade, sob qualquer pretexto metodológico e em qualquer estilo que seja, folclorizando a

“Idade Média” (ibdem, p.22). Mas está cada vez mais distante a experiência entre passado e

presente. Neste sentindo, dialoga com o conceito de “experiência” analisado por Walter

Benjamin (1994). O eco da “voz antiga” está cada vez mais distante, cada vez mais o

diálogo com o folclore é silenciado e a noção de “experiência” perde espaço na

contemporaneidade.

Essa posição de Zumthor e o possível diálogo com Benjamin nos convidam ao

exercício de deslocar a ênfase do texto na direção do público [que o recebe] e trazer as

abstrações a níveis cada vez mais concretos. As abstrações oralidade e escrita vão dando

lugar às oposições mais concretas, como ouvido/olho e ouvir/ler. Assim, sob esse ponto de

vista, a recepção dos textos [presente] acaba por nos aproximar dos sujeitos que os

escutaram [passado]. É no exato momento da transmissão oral, onde a palavra viva se põe

enquanto manifestação cultural, no ato de percepção de um texto, relacionando os homens

do passado com os homens de hoje, que se mostram as oposições definidoras da

23 A memória coletiva captura os fragmentos significantes e os transforma em elementos de tradição; é o resultado de uma seleção, conseqüência de uma vontade de esquecimento. A manutenção da poesia, inclusive, se dá pela reminiscência, pelo costume e pelo esquecimento, permitindo ao passado permanecer vivo.

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vocalidade. Ao mesmo tempo em que constatamos uma distância, um “médio espaço”

definitivo, interiorizamos sua memória (idem, p.24) e adiamos o destino das literaturas

enquanto produção de obras vivas em línguas mortas.

A transmissão oral se dá por meio da ação, da performance, enquanto ato jamais

exatamente reproduzível, segundo condições variáveis, dependendo do número e da

qualidade de elementos lingüísticos em jogo (idem, p.219). Assim, Zumthor aproxima

performance de performativo, uma vez que a linguagem poética medieval comporta sempre

um aspecto performativo, que está sempre em movimento no continuum da história. O

autor se esforça para sugerir um acontecimento: o “acontecimento-texto”, isto é, representar

o “texto-em-ato”, integrar essa representação no prazer que se sente na leitura. Fazendo um

esforço de imaginação, reflexiva, portanto, pode-se pensar no ato de uma apresentação

teatral, diante de um grupo de pessoas que não tenha acesso à palavra escrita. Em que

medida esses grupos podem discutir essa apresentação? Diante de um público não leitor, no

sentido de acesso à palavra, ao texto escrito, o que significa esse “texto-em-ato” diante de

uma apresentação? Por enquanto, pode-se pensar nesse contexto a fim de reflexão: o “texto-

em-ato“ também nessa medida.

Tecnicamente, a performance aparece como uma ação oral-auditiva complexa, pela qual uma mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida, aqui e agora. Locutor, destinatário(s), circunstâncias acham-se fisicamente confrontados, indiscutíveis. Na performance, recortam-se os dois eixos de toda comunicação social: o que reúne o locutor ao autor; e aquele sobre o qual se unem situação e tradição (idem, p.222).

Ao discutir a função do intérprete e do ouvinte, Zumthor vai conceituar o

primeiro como sendo “o indivíduo de que se percebe, na performance, a voz e o gesto, pelo

ouvido e pela vista” (1997, p.225) e o segundo como aquele que “possui dois papéis: o de

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receptor e de co-autor” (idem, p.242). Só há intérprete se houver um ouvinte e vice-versa.

Zumthor defende que o papel do intérprete é mais importante do que o do compositor, pois

é a sua performance, o seu desempenho que propiciarão reações auditivas, corporais,

emocionais do público [do ouvinte]. O repertório do Ícaros do Vale é a memória do

homem-jequitinhonha. A apropriação dessa experiência coletiva se dá através de pesquisas

realizadas pelo diretor do grupo, Luciano Silveira, nas comunidades rurais do sertão

mineiro. Dentro de um fluxo espaço-temporal vivo e comum entre intérprete e ouvinte, o

resultado das pesquisas é re-trabalhado e aplicado na cena do Ícaros que, por sua vez,

realimenta as comunidades do sertão, e que, por sua vez, realimenta a cena, num continuum

histórico.

Assim, o ouvinte-espectador é também co-autor da obra e se verifica a formação

de um lugar concreto, topograficamente definível (idem, p.222), em que a ação da palavra

viva capta o exato reflexo de seu tempo fugaz e o insere na memória de quem está presente.

A performance do intérprete é, pois, a responsável pela sua força enquanto transmissão do

texto oral. Aqui, a palavra transmissão merece um ajuste. Foi analisada a questão da

autoria, que vai do texto ao intérprete, ao performer, ao próprio público receptor e também

co-autor. Portanto, uma pergunta se coloca: quem transmite o que? Há nesse contexto um

deslocamento dentro da idéia de que alguém transmite um saber a alguém, no sentido

literal. A transmissão se dá entre todos que participam do ato, da ação em si.

No capítulo que se segue será analisado o espetáculo “Os olhos mansos”, cena

da memória do homem-jequitinhonha: fruto das pesquisas do grupo de teatro com os

velhos, em busca do resgate e da re-elaboração da memória viva do povo sertanejo e os

procedimentos técnicos utilizados no processo de construção cênica.

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2 - A cena da memória: Ícaros do Vale

2.1- Descrição do campo

A pesquisa de campo foi imprescindível para a o cumprimento deste projeto de

dissertação; “O teatro popular do Vale do Jequitinhonha a partir do estudo da ‘visão de

mundo‘ e da cena do Ícaros do Vale”. Fez-se necessário ir à vida do homem-jequitinhonha,

a sua cotidianidade, a fim de se conhecer “de perto” a cena do grupo Ícaros do Vale, objeto

desta pesquisa, e sobre ela refletir teoricamente, amparada em campo teórico debruçado

sobre as noções de “visão de mundo”, “teatro popular”, “experiência” e “memória”.

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A vida de todos os homens e, portanto, todas as suas atividades, sejam elas

práticas, intelectuais ou artísticas, bem como os produtos de tais atividades, são

determinados por aquele ser social, no qual os indivíduos em questão vivem e operam.

Portanto, a explicação para a cena produzida pelo “Ícaros do Vale” deve ser buscada nas

atividades do homem-jequitinhonha, no ser social no qual o grupo de teatro “vive e opera”.

Dito por outra forma: deve ser buscada nas relações reais, todas, que tais homens

estabelecem na vida, no mundo, enquanto indivíduos sociais, e mediante as quais se

enriquecem; e, uma vez enriquecidos, expressam-se nos produtos artísticos cujo

entendimento é a sua preocupação.

Assim, a pesquisa de campo se torna ainda mais fundamental, num tempo em

que o sentido benjaminiano de experiência coletiva não está mais na ordem do dia. A

cultura do Vale é algo vivo, presente no cotidiano das pessoas, em seus significados, em

suas relações e valores sociais. Foi necessário ouvir, apropriar-me da vida do homem-

jequitinhonha, chegar mais perto do objeto desta pesquisa, chegando mais perto da vida dos

seus objetivadores: ouvir suas histórias, passear, detidamente, pelos espaços por onde a

vida deles se deu e se dá; procurar descobrir, para além da empiria, as relações todas

subjacentes à vida por eles vivida, descobrir suas riquezas recônditas, como os sujeitos, os

objetos e as relações que conformaram e conformam essas riquezas, do passado até o

presente momento. Descobrir a pista que, eventualmente, eles próprios perderam. Conhecer

os ‘velhos’, avós, tios, os “sábios” do lugar que são matéria-prima para os repertórios da

cena do Ícaros do Vale. Ver como as pessoas trabalham, como se divertem, como amam,

enfim, como vivem hoje e como viveram no passado. E mais: perquirir sobre quais são suas

aspirações, suas necessidades atuais e futuras, sobre “o como” e “o porquê” das

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transformações havidas nessas aspirações no tempo se põem num continuum histórico.

Fazer perguntas que obrigassem as pessoas a respostas inauditas.

O teatro produzido pelo Ícaros do Vale só surgiu porque necessidades humanas

estiveram na base desse surgimento. Que necessidades foram essas? Por que e como elas

se expressaram? Como foi que essas necessidades se tornaram mais exigentes e mais

complexas? O que imediata e mediatamente levou a tudo isso? E qual a sua função social?

Qual a função que tais obras desempenham na vida social do homem-jequitinhonha? Ou,

dito com mais precisão, qual a função que tais obras desempenham na luta social que

caracteriza a vida da sociedade da qual emergem e para a qual se dirigem essas obras?

O estudo de campo, de fato, foi necessário, mais, foi imprescindível para uma

mediação entre corpo teórico e o objeto de nossa pesquisa: a cena do Ícaros. Assim, as

atividades planejadas de captura e produção de documentos se fizeram indispensáveis para

o estudo da cena do grupo Ícaros do Vale, seu repertório, fruto das pesquisas do grupo com

os velhos, em busca do resgate e da re-elaboração da memória viva do povo sertanejo e os

procedimentos técnicos utilizados no processo de construção cênica.

O primeiro trabalho de campo foi realizado no período de 14 a 28 de janeiro de

2006, durante a realização da 3ª edição do FESTEJE - Festival de Teatro do Vale do

Jequitinhonha, na cidade de Comercinho-MG, que se deu entre os dias 15 e 21 de janeiro.

O evento é organizado todo ano pela Agrutevaje - Associação dos Grupos de Teatro do

Vale do Jequitinhonha e traz em sua programação diversas atividades como cursos,

oficinas, shows, palestras, debates e mostra teatral. Durante o trabalho de campo, a estadia

na cidade de Araçuaí permitiu um contato mais próximo com a vida cotidiana dos

integrantes do grupo Ícaros do Vale e com o contexto cultural, social e político no qual

estão inseridos.

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Nesse período, cumpriu-se o seguinte plano de trabalho no campo:

1. Captura e processamento de fontes já disponíveis, tais como:

• Em vídeo: cópia de vídeos a partir da coleta de documentos no arquivo do

grupo;

• Em fotografia: cópia de fotos a partir da coleta de documentos no arquivo do

grupo;

• Impressos e digitados: programas dos espetáculos; os textos de algumas

peças24 [originais e adaptações feitas pelos grupos] e livros acerca da

história do Vale do Jequitinhonha;

• Manuscritos: anotações acerca do grupo feitas pelo diretor Luciano Silveira.

2. Produção de fontes documentais, através de visitas à sede do grupo Ícaros do Vale e estréia da peça “História de pescadores”, tais como:

• Em dvd: produção de documentação da peça “História de pescadores”;

• Em fotografia: produção de imagens de “História de pescadores”;

• Em áudio: entrevistas25 com Luciano Silveira [ator e diretor do grupo Ícaros

do Vale], Dostoievsky do Brasil [ator e diretor do grupo Vozes], Zé Pereira

[ator e secretário de cultura da cidade de Araçuaí], João Morais [ator do

grupo Vozes], Ângela Leite [atriz do grupo Vozes], alguns outros atores dos

grupos.

• Manuscritos: Meu diário de campo, com descrições e reflexões sobre a

pesquisa de campo.

3. Produção de fontes documentais através de pesquisa junto ao público e a algumas

fontes produtoras de repertório para o grupo:

24 “Os olhos mansos”, “História de pescadores”, “No caroço do Juá” e “De mala e cuia”. 25 Todas as entrevistas partiram de um roteiro básico, mas seguiram de forma mais ou menos livre, deixando os entrevistados à vontade para falarem sobre assuntos adjacentes às perguntas (Alberti, 1990).

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• Em fotografia e áudio: produção de imagens e entrevistas com espectadores

do espetáculo.

Seis meses depois, outra viagem ao Vale do Jequitinhonha (cidade de Araçuaí)

foi realizada, no período de 16 a 31 de julho de 2006, duas semanas, portanto, em razão do

24º FESTIVALE – Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha – que aconteceu

na cidade de Araçuaí, sede de trabalho do grupo Ícaros do Vale.

O FESTIVALE é por excelência o grande espaço de encontro e trocas culturais

entre as comunidades ribeirinhas do Jequitinhonha, portanto é necessário que destaquemos

as condições que possibilitaram seu surgimento e que hoje alicerça sua permanência.

Em 1979, período em que Frei Chico deixava o Vale para morar na comunidade

de Santa Isabel na cidade de Betim (MG), acontece o I Encontro de Compositores do Vale

do Jequitinhonha, realizado pelo Jornal Geraes. Festivais da canção já ocorriam no Vale e

artistas como Rubinho do Vale, Paulinho Pedra Azul e Saulo Laranjeira já despontavam no

cenário estadual. O encontro foi marcante, pois delineou uma nova direção para a cultura da

região, na medida em que fortaleceu um movimento musical organizado, buscou a

construção do diálogo entre a música e as questões sociais e iniciou a trajetória de um

festival que se tornaria no futuro uma referência-viva da cultura popular sertaneja.

O Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, realizado desde 1980 (a

partir de 1990 pela Federação das Entidades Culturais e Artísticas do Vale do

Jequitinhonha - FECAJE), originou-se da luta do movimento musical, alicerçado nas

experiências de artistas e atores sociais como o escritor e contador de casos Tadeu Martins

e associado à força do artesanato da região.

O Festivale teve suas origens no “I Encontro de Compositores do Vale do Jequitinhonha” promovido pelo jornal Geraes em 1979 na cidade de

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Itaobim. O Geraes foi criado em 1978 por Carlos Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins. Seu objetivo era dar vez e voz ao povo do Vale, sua cultura, seus sonhos e sua luta por melhores condições de vida. O Encontro reuniu 22 compositores vindos de 15 cidades da região. O final do evento deixou claro para os produtores que a cultura do Vale necessitava de mais espaço, o festival precisava ser maior e mais diverso, contando com várias outras coisas além da música. Com esse objetivo, foi realizado o primeiro Festivale, no ano de 1980, na cidade de Itaobim. Lá foram reunidos a música, a literatura, o artesanato, a dança, o teatro e tudo o mais que compõe a riqueza cultural do Vale do Jequitinhonha. O evento, no entanto, não se resumiu a uma mostra de cultura. Mais do que isso, foi capaz de colocar à mostra os sonhos e esperanças de todo um povo de uma região.26

Uma das características mais interessantes do Festivale é a espacialização do

festival. Foi determinado desde seu início que o mesmo ocorreria a cada ano numa cidade

diferente da região. O evento que foi realizado vinte e quatro vezes abrangeu dezoito

cidades, o que demonstra uma tentativa de abrangência e diversificação espacial. O

Festivale conta hoje com cursos, oficinas, apresentações de teatro, música, apresentação

de grupos folclóricos, noite literária, festival de música, mostra teatral, feira de artesanato,

mostra de vídeo e fotografia, debates e seminários.27

À primeira vista, o que me chamou mais atenção no sertão, eternizado de forma

tão sensível através da literatura de João Guimarães Rosa, foi a capacidade das pessoas

não apenas consentirem, e também não apenas fazerem força contrária ao esmagamento

cultural de transformação das tradições em mercadoria, mas o fato das pessoas sonharem,

lutarem e, especialmente, produzirem teatro em meio a uma realidade de tensão

econômica, política e social em que estão duramente inseridas. O Festivale é um exemplo

de resistência da cultura sertaneja, da força do homem-jequitinhonha.

26 disponível na internet via www.onhas.com.br (acessado em setembro de 2006).

27 idem.

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Neste contexto, o teatro produzido pelo grupo Ícaros do Vale exerce um papel

bastante relevante, pois persiste há dez anos como uma síntese estética das mudanças

sociais de seu tempo e espaço determinados. Sendo o conteúdo conformado em seus

espetáculos fiel à realidade objetiva, leva-se à cena uma síntese de suas múltiplas

determinações. O grupo capta o fundamento contraditório e substancial de seu tempo,

compreendendo-o enquanto totalidade de uma particularidade específica, o sertão e seus

habitantes, o homem-jequitinhonha. Desta totalidade fechada e bem ordenada, nasce em

“Os olhos mansos” a imagem de uma particularidade concreta: precisamente a

reprodução artisticamente generalizada de uma determinada etapa do desenvolvimento

(LUKÁCS, 1968, p. 265). O teatro emerge da vida no Vale e, pondo-se e repondo-se na

cotidianidade dessa vida, acaba por sobredeterminar, dialeticamente, essa mesma vida,

que sendo a mesma, já é outra, criativamente mais enriquecida.

A relação do grupo com o contexto histórico da região do sertão mineiro está

presente desde a escolha da temática dos espetáculos até os elementos cênicos utilizados.

A crítica social e a re-elaboração da cultura popular da região são características bastante

marcantes no Ícaros do Vale. “Os olhos mansos” tem fundamento nas pesquisas desse

grupo, em suas participações na cotidianidade e na reflexão a respeito dessa vida. Assim,

a cena possui uma verdade específica e particular, condicionada pela matéria real de seu

reflexo, referida sempre ao cerne das relações objetivas que se apresentam em um dado

momento.

A seca, uma realidade do povo sertanejo, é levada para a cena neste espetáculo

escolhido para análise. Durante a pesquisa de campo, percebi que a região do Vale do

Jequitinhonha possui como uma de suas características principais a migração sazonal no

período de seca. Esta condição é marcada nas famílias do Jequitinhonha. Historicamente,

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os homens das áreas rurais migram para trabalharem nas colheitas de cana para

complementarem sua renda familiar. Este processo iniciou-se no século XIX e nos dias

atuais ocorre um fluxo de migrantes principalmente para o interior do estado de São

Paulo.

Desde pelo menos a última década do séc. XIX, são freqüentes as viagens de trabalhadores do Vale do Jequitinhonha para colher safras em outros lugares. De acordo com Lanna (1989), a substituição dos escravos no café da Zona da Mata Mineira foi possível porque as colheitas passaram a ser feitas pelos trabalhadores temporários vindos do Jequitinhonha. (...) os agricultores do Vale do Jequitinhonha participaram do trabalho temporário em quase todas as frentes agrícolas de trabalho no Centro-Sul do Brasil nos últimos cinqüenta anos: Paraná (1950-70); Mucury (1930-60); Mato Grosso (1950-70); na construção civil (1970) e corte de cana em São Paulo (1980-90). E regressaram, e criaram família, e plantam e colhem conforme aprenderam” (RIBEIRO apud MAIA, 2004, p.93).

Diferentes estudos sobre esta temática estão sendo realizados na região para

oferecer uma compreensão mais ampla sobre as conseqüências deste processo migratório.

Faz-se necessário um aprofundamento das relações sociais dos que vão, assim como dos

que ficam. Os que vão são caracterizados em sua grande maioria por homens. O grupo dos

que ficam se caracteriza em grande parte por mulheres. No Vale existe a expressão “viúva

de marido vivo” para as mulheres que ficam esperando seus maridos.

No dia posterior à estréia de “História de pescadores”, realizada no dia 14 de

janeiro de 2006, Lenita, atriz do Ícaros, contou-me que foi parada na rua, em frente a praça

da Matriz, por uma senhora que disse ter gostado e se emocionado bastante com a

apresentação do Ícaros, pois se lembrou do medo que sentiu quando seu marido foi embora

para o corte da cana de açúcar. No momento da cena em que Rosa, personagem

interpretada por Lenita, espera por Bento, que sai mar adentro em tempo de ressaca para

garantir o sustento da família, sem a certeza de voltar com vida, esta senhora além de se

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lembrar da angústia de sua vida incerta, “perigosa”, na linguagem de Guimarães Rosa,

reflete essa mesma vida durante a sua representação. Disse a Lenita que naquele exato

momento se perguntou por que tem que ser assim, por que seu marido, homem-

jequitinhonha, não pode trabalhar na sua terra, por que tem que migrar para São Paulo

arriscando sua vida no corte da cana de açúcar a troco de nada. Quando Lenita me relatou

essa cena que ocorreu na praça central da cidade, recolhi pela primeira vez, concretamente,

o alcance e o retorno que o teatro produzido pelo Ícaros leva a sociedade. A migração

ocorre simplesmente porque os homens têm que existir e continuar existindo. Primeiro eles

têm que ‘ser’, pôr-se na vida e sendo enfrentar o desafio de permanecer.

Nesse sentido, Maia (2004) busca a compreensão das dinâmicas estabelecidas

entre as mulheres que permanecem no Vale do Jequitinhonha, sendo responsáveis pela

reprodução material e simbólica da cultura camponesa na região. Segundo a autora, as

mulheres estariam relacionadas ao espaço “lugar”. Já os homens ao espaço “trecho”, que

significa a distância entre o Vale e São Paulo, ou seja, às constantes idas e vindas dos

camponeses que na lavoura de cana se tornam bóias-frias. Não cabe a este estudo o

aprofundamento desta temática, mas a percepção de que o “processo migratório tem

significados diferentes para os homens e para as mulheres” (BISON, 1998, p.234) e que

essa diferença é levada para a cena28. Polar (2000) traz à luz a importância da flutuante

sintaxe da figura do migrante e sua cultura fragmentária num processo histórico marcado

pela conquista e dominação conforme analisado no capítulo primeiro desta pesquisa.

Segundo Bachelard apud Bison (1998, p.228), “se voltamos à velha casa como

quem volta ao ninho, é porque as lembranças são sonhos, é porque a casa do passado se

28 Em sua grande maioria, os homens migram para a cana, já as mulheres para trabalharem como domésticas.

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transformou numa grande imagem, a grande imagem das intimidades perdidas. Assim, os

valores deslocam os fatos. Desde que amamos uma imagem, ela já não pode ser a cópia de

um fato”. Muitos dos migrantes retornam ao Vale em momentos muito característicos,

principalmente em festas relacionadas à cultura e religiosidade popular. São momentos em

que migrantes, sejam definitivos ou sazonais, retornam para reverem família, parentes,

amigos, sua cidade e reviverem dinâmicas sócio-culturais que simbolizam suas raízes

culturais e possibilitam a criação de “comunidades imaginadas”.

As migrações não sazonais também estão muito presentes na vida da população

do Vale. A busca por novas oportunidades não oferecidas na região é a grande motivadora

desta partida. Entre as oportunidades mais buscadas estão principalmente melhores

empregos (melhores salários para a elevação da renda familiar na região) e a oportunidade

de continuação dos estudos (principalmente a nível universitário). A Universidade Federal

de Viçosa, entre outras, recebe todos os anos estudantes oriundos da região. A cidade de

Teófilo Otoni e Montes Claros são as mais procuradas pelos interessados em concluir os

estudos. Recentemente o Governo Federal aprovou e oficializou a Universidade Federal do

Vale do Jequitinhonha e Mucuri. Espera-se com isso, um desenvolvimento educacional da

região e uma diminuição da migração por esta causa específica.

2.1.1-O Vale do Jequitinhonha: características Gerais

O Vale do Jequitinhonha se localiza na região nordeste do estado de Minas

Gerais, com uma área total de 85.025 Km2. Possui uma população superior a 900 mil

habitantes. O IDH da região é de 0,64, enquanto em Minas Gerais é de 0,71. É cortado pelo

rio Jequitinhonha que percorre 1.086 Km, dos quais 888 em Minas e 198 na Bahia.

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Abrange 80 municípios, onde estão distribuídos 157,8 mil domicílios particulares. (Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística apud RATTES, 2004).

É uma região com alto índice de analfabetismo (quase 30%), com carência em

serviços básicos como esgoto, abastecimento de água e energia. A economia é

prioritariamente desenvolvida na área rural, onde estão concentrados 43% da população.

Aproximadamente 45% das 404 mil pessoas economicamente ativas estão envolvidas em atividades do setor agropecuário. Já o comércio de mercadorias e a indústria mobilizam, cada um, 14% da mão-de-obra ativa. Ainda incipientes na região, os serviços de transporte e comunicação respondem, juntos, por 2% dos empregados. O restante é proveniente de outros setores (RATTES, 2004).

O Vale é dividido em três sub-regiões: o Alto, o Médio e o Baixo Jequitinhonha.

O Alto, também conhecido como microrregião de Diamantina, caracteriza-se por uma

vegetação que varia do cerrado aos campos rupestres. Possui exploração de ouro e pedras

preciosas e grandes projetos de monoculturas de eucalipto. O turismo é intenso nesta área,

em parte pelas tradições barroco-mineiras e cidades histórias, em parte pelas belezas

naturais. A única unidade de conservação de todo o Vale aberta ao público encontra-se

próxima à cidade de Diamantina, o Parque Estadual do Rio Preto. O Médio Jequitinhonha,

ou microrregião de Araçuaí, é a sub-região do Vale onde se encontra o maior número de

pequenos produtores rurais. Região de caatinga e de intensa atividade cultural onde se

encontra a cidade de Araçuaí, considerada a “capital cultural do Jequitinhonha”. Sede do

grupo de teatro Ícaros do Vale. A mineração e a pecuária estão presentes na região. Recebe

influências fortes de Teófilo Otoni, cidade localizada no Vale do Mucuri. Já o Baixo

Jequitinhonha, também conhecido como microrregião de Almenara, se caracteriza por

grandes fazendas de gado. Possui grande influência da Bahia, mais especificamente da

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cidade de Vitória da Conquista. Esta região foi coberta no passado por uma densa Mata

Atlântica, mas hoje se caracteriza por grandes pastagens.

O Vale como um todo traz uma característica muito forte que é a preservação,

através de forte resistência, de sua cultura popular. Frei Chico, pesquisador da cultura

sertaneja declarou que:

“o homem do Vale é portador de uma cultura própria. Ele ainda não obedece a certas imposições da chamada “cultura moderna” imposta pela televisão e pelo rádio. O povo tem sua hospitalidade, sua maneira de saudar-se, algumas formas de mutirão, seus remédios, vida familiar, agricultura, sua religião em música: sua maneira de dançar, cantar e afinar a viola. Infelizmente a cultura exógena dominante reproduzida pelos meios de comunicação vem conseguindo alterar consideravelmente as relações sociais e culturais do Jequitinhonha. Mas é certo que muito da cultura regional ainda pode ser encontrado com freqüência, como o artesanato, a medicina popular, as histórias e contos, a música e a religiosidade popular, além de valores como o senso comunitário, a não separação do sagrado e do profano, a presença dos ancestrais, o elemento não-verbal e a crença em sua terra.”

2.1.2- Um breve histórico do sertão mineiro

A história do Vale do Jequitinhonha se inicia, na visão do Brasil moderno, com a

dizimação de seus povos indígenas, através do encontro entre os bandeirantes e os povos

silvícolas que lá habitavam. A busca por riquezas no Vale, principalmente minerais, se

inicia logo no primeiro século de dominação portuguesa. Até “1800, temos apenas duas

regiões do Vale: a do litoral que, na verdade se restringe a Belmonte, na foz do

Jequitinhonha. E, nas nascentes, a das serras, se estendendo pelo Serro, Diamantina, Minas

Novas e Itacambira. Distantes mais de 500 km uma da outra” (SANTIAGO, 1999, p.12).

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Apesar de inúmeras expedições de bandeirantes que tentam penetrar e colonizar

o Vale, a região se mantém pouco explorada, ainda com a forte presença de tribos

indígenas. “Em fins da 3a década do século XVIII (...) é que foram efetivamente exploradas

as terras do norte/nordeste de Minas. Entretanto, já eram conhecidas essas regiões pelas

“entradas” através dos rios, desde a costa” (JARDIM, 1998, p.77). Os rios, principalmente

o Jequitinhonha, tiveram grande importância e papel no processo de ocupação humana no

Vale, nos mais diferentes momentos, principalmente a partir do século XIX. As

dificuldades encontradas pelas bandeiras nas diversas tentativas terrestres eram inúmeras,

tais como alimentação, vegetação árida, índios resistentes e grandes distâncias. A história

da ocupação do Jequitinhonha se dá, de forma completa, nas margens dos rios.

No início do século XVIII, a região de Diamantina29 se torna um dos pólos de

imigração e produção de diamante no Brasil, o que leva a fiscalização a se intensificar. A

cidade de Minas Novas volta a pertencer a Minas Gerais (neste momento pertencia à Bahia)

justamente pela maior eficácia deste estado na fiscalização.

A mineração dos diamantes alcançava colossal importância. Isso concorreu para

que, pela Resolução Ultramarina de 13 de maio de 1757, se incorporasse Minas Novas à

Comarca de Serro e ao Governo de Minas, ou melhor, o distrito diamantino,

compreendendo, então, desde Serro até Minas Novas, para policiar melhor a cobrança dos

quintos, alargando assim o âmbito da derrama nas Minas Gerais. A incorporação se deu

pelo decreto de 26 de agosto de 1760. (idem, p.72).

29 “A ocupação do Vale, após a descoberta de metais preciosos nas primeiras décadas do século XVIII, se deu, de modo geral, em dois movimentos com diferentes orientações. O primeiro movimento foi em direção à região do Alto Jequitinhonha, em função da exploração do ouro e diamantes, tendo início com as primeiras descobertas em Serro e Itacambira. As primeiras aglomerações, que surgiram e se destacaram pela sua atividade mineradora, foram Serro (1703). Itacambira, Diamantina (1714), Minas Novas (1726), Chapada do Norte, Berilo e Grão Mogol.” (ibdem , p.66)

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Assim como importantes foram os rios, a mineração teve papel fundamental no

processo de colonização do Vale, permitindo inclusive o surgimento de diferentes formas

de economia paralelas. Com o tempo, “a agricultura de subsistência foi se expandindo por

todo o Vale do Jequitinhonha, nas brechas da economia do ouro” (MAIA, 2004, p.67),

assim como grandes fazendas apropriadas por bandeirantes que não regressavam de suas

expedições e acabavam se tornando fazendeiros na região.30

Pode-se ao analisar as diferentes formas de ocupação de terras no Vale,

diferenciar os processos referentes aos grandes fazendeiros e aos camponeses. Segundo

Botelho apud Maia (2004), existiram três diferentes formas de ocupação: as sesmarias, a

posse dentro das grandes propriedades e a posse independente. A primeira se refere aos

fazendeiros e às concessões que lhes eram dadas pela coroa. A segunda, que pode, segundo

a autora, ser denominada de “posse consentida”, se referia à posse consentida pelo

fazendeiro ao camponês para melhor fiscalização. E a terceira é o que Botelho chama de

“posse desassistida”, onde o camponês não tinha nenhum registro legal e, portanto, era alvo

fácil para investidas e apropriações por parte de outros.

Com o tempo, o ouro e as pedras preciosas foram se esgotando e a mineração

perdeu sua força. Potencializa-se e consolida-se então no Vale a cultura da fazenda e a

cultura camponesa de subsistência. “Com a escassez das lavras, a mineração foi sendo

substituída pelas lavouras de subsistência” (MAIA, 2004, p.67). Segundo Saint-Hilaire

apud Maia (idem, p.67), “substituiu-se a mineração pela cultura do milho, de açúcar, etc., e

principalmente, do algodoeiro (...)”.

30 “Muitos bandeirantes, vindos principalmente de São Paulo, não retornavam e de apresadores de índios, passavam a criadores de gado, constituindo na região do vale do São Francisco, norte e nordeste de Minas, imensas fazendas da criação de gado, através da concessão de terras feita pela coroa como forma de pagamento aos serviços prestados pelos bandeirantes do governo.” (ibdem, p.64)

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Ocorre então o segundo movimento de migração da história do Vale, no início

do século XIX, em direção ao Médio e Baixo Jequitinhonha, até então inexplorado. Utiliza-

se o rio Jequitinhonha, agora aberto oficialmente à navegação pela coroa, para o transporte

de bandeirantes e mercadorias. Nasce nesse momento a cidade de Araçuaí.

Pelo Jequitinhonha subiam as “bandeiras” de canoas carregadas de sal, tecidos e

manufaturas estrangeiras provindas da Bahia, para serem distribuídas em Araçuaí e região.

Em sentido contrário, retornavam de Araçuaí carregados com algodão, produzido em

grande quantidade em todo o termo de Minas Novas. De todos os municípios vizinhos, num

raio de 50 léguas, convergiam para Araçuaí as tropas que transportavam mercadorias a

serem distribuídas em todo o norte de Minas (ibdem, p.69).

Surgem novas povoações em torno de Araçuaí, que vive um período de

ascensão, mas apenas até o surgimento da ferrovia Bahia-Minas. Devido a ela, “as tropas

mudaram de rumo: já não era para o norte, mas para o sul que elas se dirigiam” (PEREIRA

apud MAIA, 2004, p.69).

Na região do Baixo Jequitinhonha se consolidam as fazendas de gado, a “cultura

do boi”, o domínio dos fazendeiros que explorou de forma radical os recursos humanos e

naturais da hoje chamada microrregião de Almenara. “As fazendas não eram apenas

organizações de trabalho, montadas para finalidades econômicas. Foram também estruturas

de poder que existiram para governar vidas e terras” (RIBEIRO apud MAIA, 2004, p.74).

Consolida-se com isso a concentração de terras, a desigualdade e um modelo social que

desconsiderava a vida e a pobreza.

No século XX, devido à estagnação econômica e aos problemas sociais, a

população do Vale inicia seu processo migratório em busca de sobrevivência e de novas

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oportunidades. Na década de 1950, o processo de urbanização e industrialização se

intensificam, o que reflete em investimentos em infra-estruturas urbanas. Não no Vale do

Jequitinhonha. Segundo Frei Chico, até a década de 1970, no Jequitinhonha praticamente

inexistiam eletricidade, água potável, estradas asfaltadas, bancos, hospitais e telefone. No

final da década de 1960 e início de 70, inicia-se um processo de desenvolvimento da região

através da chegada da CEMIG, do Banco do Brasil, da COPASA e de sindicatos,

principalmente os de trabalhadores rurais. Ainda em 1964 é criada a Comissão de

Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha (CODEVALE) e a partir da década de 70

surgem órgãos além dos citados anteriormente como o IESA, a Fundação Rural Mineira

(RURALMINAS), o Instituto Estadual de Florestas (IEF), a Empresa de Assistência

Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (EMATER) e o Departamento de

Estradas de Rodagem (DER) (idem, 2004).

A chegada destes órgãos possibilitou o surgimento de uma nova mentalidade na

região, resultando em uma maior segurança no trabalho, melhores serviços de saúde e o

início da prática da carteira assinada. No final de 70 e começo de 80 surgem o telefone e o

asfalto. Mas ao mesmo tempo em que o desenvolvimento citado trouxe uma nova

“qualidade de vida” para a população local, reproduziu um modelo de modernização que

interessava mais aos grupos políticos externos do que ao povo do Vale. “A ação estatal

pautou-se no sentido de homogeneizar as condições de intercâmbio intra e interregionais de

mercadorias e de impor as bases capitalistas ao uso da terra e da força de trabalhos locais,

objetivando integrar o espaço econômico do Vale ao patamar e estilo de acumulação de

capitais dominante no país” (SILVA apud MAIA, 2004).

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Muitos programas de desenvolvimento realizados na região contribuíram para a

expulsão e a invasão das terras camponesas. “As terras no Vale passaram a ser

extremamente valorizadas, e cada vez mais inacessíveis aos camponeses, principalmente, a

partir do processo de modernização da agricultura na região, durante a segunda metade do

século passado” (idem, p.75). O reflorestamento de eucalipto, chegado ao Vale neste

período31, principalmente no Alto Jequitinhonha, reproduz essa mesma lógica. Com o apoio

do Estado, no período em regime de ditadura militar, o reflorestamento, assim como as

formas anteriores de utilização do espaço, expropriou camponeses e os renegou a uma

miséria ainda maior. “O (...) direito torto deu legalidade à ocupação das terras de chapada

pelas reflorestadoras, amamentadas nas tetas gordas dos incentivos fiscais, dinheiro do

povo convertido em subsídio para o grande capital engordar ainda mais, invadir terras,

expulsar trabalhadores.”32

A história de ocupação do Vale do Jequitinhonha é recente. Como vimos, pode

ser dividida em alguns períodos e acontecimentos marcantes. A territorialização dos índios

(anterior à chegada dos portugueses), a chegada dos bandeirantes, a descoberta e a

decadência do ouro e diamante no Alto Jequitinhonha, o surgimento e a consolidação das

culturas camponesas e “do boi”, o processo de migração e a chegada do eucalipto.

O surgimento dos movimentos culturais do Vale, a consolidação de movimentos

sociais vinculados à igreja católica libertadora e a sindicatos e, mais recentemente, a

implantação de hidroelétricas, tais como a Usina Hidroelétrica de Irapé constituem novos

marcos na história do Vale.

31 “O reflorestamento incentivado começa a ter penetração no Vale na década de 1970, mais precisamente a partir de 1974” (ibdem, p.99). 32 Frase de José de Souza Martins retirada do prefácio de MOURA (1988:XIV)

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É de particular interesse a forma como se estruturam os grupos culturais de

Araçuaí, mais especificamente os corais, grupos de teatro e grupos de folia para a

permanência heróica das manifestações culturais populares no Vale do Jequitinhonha.

Os grupos funcionam como pequenas associações comunitárias que apenas

recentemente empunham como bandeira a defesa de um patrimônio cultural. Em sua

essência, essas comunidades foram criadas para contemplar as humanas necessidades da

convivência, do lazer e da solidariedade. Essa essência permanece viva e é fundamental

para a sobrevivência destes grupos. Esses princípios estão visíveis na relação entre seus

membros - que se estende muito além dos ensaios semanais -, na presença das crianças que

circulam e se manifestam livremente durante os ensaios, na participação dos grupos durante

as festas religiosas da comunidade, nas atividades complementares que todos os grupos

buscam, para a elevação artística, educacional ou espiritual de seus membros.

No caso específico do grupo de teatro Ícaros do Vale e do Coral Araras

Grandes, ambos dirigidos por Luciano Silveira, existe uma certa “ritualística” que nos

indica que Luciano é mais que um diretor de cena ou de atores. Ele desempenha um papel

formador, instigando a curiosidade, a responsabilidade comunitária e a união espiritual de

seus atores. O diretor assume a responsabilidade social da qual não poderia se eximir diante

da realidade que para ele se apresenta.

Os ensaios semanais são precedidos da limpeza do espaço e de uma preparação

espiritual, além da preparação corporal e vocal. Para tanto, o grupo é dividido em duplas ou

trios que ficam responsáveis, a cada semana, por limpar o espaço e preparar uma “oração”

ou discussão sobre determinado tema considerado importante para a convivência social,

não dos integrantes do grupo entre si, mas de cada indivíduo com o mundo cotidiano, com a

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realidade do Jequitinhonha. A presença dos valores cristãos é evidente nos temas que se

apresentam e nas orações que são fervorosamente emitidas pelo grupo, unido em roda, ao

início de cada ensaio. Ao final das orações os protetores do grupo são chamados: Nossa

Senhora do Rosário, Nossa Senhora Aparecida e os Santos Reis, identificando a força da

cultura popular na vida destes indivíduos. Pois é de fato nas festas de Nossa Senhora do

Rosário, na Festa de Nossa Senhora Aparecida, no Natal e na Folia de Reis que o Coral e o

Grupo de teatro participam mais ativamente da vida comunitária do município. É também

comum que Luciano leve para os ensaios e leia em voz alta, artigos sobre teatro ou outras

artes, notícias sobre espetáculos, sinopses de livros ou peças ou simples notícias de jornais,

uma vez que há apenas uma banca na cidade e a leitura diária é privilégio dos assinantes.

A mesma organização interna, em subgrupos, se repete nas atividades externas

do grupo. Todas as tarefas são distribuídas pelo diretor e cada grupo desempenha sua parte

da melhor forma, estando livre para utilizar sua criatividade. Assim, para a confecção do

tapete da procissão de Corpus Christi, cada grupo contribui livremente levando os materiais

que achar apropriados (serragem, sementes, flores, terras, tintas) e pode criar seus desenhos

em determinado trecho das vias públicas.

Esta organização se reproduz num sistema maior, incluindo todos os grupos

culturais da cidade que, num esforço político, formaram um “Centro Cultural” que funciona

apesar da inexistência de uma sede física. Deste Centro Cultural fazem parte doze entidades

culturais que, nas festas religiosas, ficam responsáveis pela decoração, programa, convites,

lanches, animação e outros afazeres. Na reunião semanal do Centro Cultural, que se realiza

em praças, igrejas ou no Centro Comunitário da cidade de Araçuaí, ficam distribuídas as

tarefas para a realização dos eventos. Nenhum evento que aconteça na cidade, com exceção

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daqueles “importados”, como as micaretas e boates, pode prescindir desta participação. São

os grupos culturais que levantam fundos, que recolhem com as quituteiras as doações de

biscoitos e queijos para os coquetéis, que enfeitam as ruas e igrejas, que cantam nas missas

e festas, que produzem folhetos e cartazes, que roteirizam, junto com os sacerdotes, as

celebrações. Claro que a participação é mais intensa em alguns casos, como na Festa de

Nossa Senhora do Rosário.

A Festa de Nossa Senhora do Rosário é o grande evento religioso do Vale do

Jequitinhonha. Em Araçuaí, ela é precedida por uma novena que termina no domingo da

coroação dos reis do Congo. Cada uma das missas da novena é conduzida por um coral. No

sábado, véspera do dia da coroação, O Coral Araras Grandes e o grupo de Teatro Ícaros do

Vale transformam a missa numa grande encenação, com textos, poemas e canções – no que

são incentivados pelo sacerdote que todos os anos volta a Araçuaí exclusivamente para a

festa: Frei Chico van der Poel, pesquisador da cultura popular e fundador do pioneiro coral

“Trovadores do Vale”.

No Natal de 2006, o Centro Cultural organizou um concerto que, após a Missa

do dia 22 de dezembro, adentrou a Igreja da Matriz. No concerto, os atores do Ícaros do

Vale recitaram textos e poemas, que incluíam Fernando Pessoa, Guimarães Rosa e poemas

próprios. Os textos costuraram apresentações musicais de outros corais da cidade e o

concerto terminou com a Folia de Reis do Arraial dos Criolos conduzindo todos ao altar

mor, onde, juntos, cantaram a famosa “Folia do Oriente” (“O Galo cantou no Oriente, Ai,

Ai, Ai, Ai / Surgiu a Estrela Guia, ai, ai / Anunciando à Humanidade / Que o Menino-Deus

nascia”)

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Portanto, o grupo Ícaros do Vale é um agente fundamental nos processos de

resgate e manutenção da “cultura sertaneja”, seja através de sua participação sócio-

religiosa, mas também pela contínua pesquisa que busca além de documentar a memória-

vida do homem-jequitinhonha, devolvê-la ao seu sujeito, re-trabalhada e tipificada através

do teatro. As circunstâncias típicas são sempre historicamente particulares: a configuração

estética está atrelada à representação de uma particularidade, de um “aqui e agora”

determinado. Assim, a dialética que se estabelece, o teatro que emerge da vida e que retorna

a ela, faz com que seu receptor reconheça a substância humana de sua subjetividade, visto

que quando o retorno à cotidianidade se efetiva, a vida comum do homem estará posta em

um nível superior que se “aproxima” do universal representado pela totalidade extensiva da

nossa história, da generalidade do ser social. Segundo Lukács, enquanto fixação da

autoconsciência do gênero humano.

2.2 - O vôo dos Ícaros do Vale

ICARAÇUAÍ -Gonzaga Medeiros33-

Os anjos icaraçuaís sonham mais,

33 Gonzaga Medeiros fez esta poesia para o grupo de teatro Ícaros do Vale em 2005. Ele nasceu em Fronteira dos Vales, na divisa do Jequitinhonha com o Mucuri. Desde cedo enveredou-se pelos caminhos da cultura popular, convivendo com o povo nas ruas e palcos dos eventos de cultura por toda Minas Gerais. Criou e cultiva estilo próprio de apresentar festivais de música e outros eventos recheados de poesia, com reconhecido sucesso em Minas e no Brasil. O FESTIVALE – Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha, desde 1980 é palco de memoráveis apresentações suas. Além de apresentador de eventos, Gonzaga Medeiros é advogado, poeta, compositor e declamador popular (Disponível na internet via www.onhas .com.br).

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voam mais...

Fazem do vôo uma linda função,

um exercício de paz

voando atrás de um sonho,

um canto sagrado, uma nova estação.

Anjos alados, sonhos ralados,

idas e vindas, lutam soldados

e se multiplicam num batalhão.

Ícaros do Vale, Icaraçuaí...

São anjos da terra e tudo valem.

Vozes e olhares, lindos cantares,

(válida ressurreição)

rasgam o verbo, boca no mundo,

encantam o hino e a canção.

São cristos descendo a cruz,

são sonhos em busca do Sol,

são raios tecendo luz.

Fundado no dia 12 de novembro de 1996, o grupo Ícaros do Vale surge com os olhos brilhando na emoção de conhecer essa carpintaria absurda e genial que é o teatro. Cantando, dançando, sorrindo e fazendo sorrir, essa generosa gente que não poupa o contentamento, o gesto livre e doce de um agradecimento que nós também lhes fazemos, porque nós não sabemos ser distantes disso que se chama cultura popular, alimento que vamos regurgitando34 sem pretensões acadêmicas, mas com uma vontade danada de que essa gente se reconheça nesses tipos que encarnamos, nesses enredos que urdimos, nesses cantos que vamos entoando. Assim o

34 Luciano se refere à cultura popular enquanto alimento que o grupo vai “regurgitando”. A vida dos homens que habitam o Jequitinhonha e toda sua memória histórica [daqueles que habitaram o sertão] alimenta a cena produzida pelo Ícaros do Vale que, por sua vez, retroalimenta a vida, da qual emergiu.

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grupo vai além dos seus muros, cumprindo digna missão através da arte.35

Ícaros do Vale, nome emblemático que nos remete imediatamente à mitologia

de Ícaro, filho de Dédalo, o construtor do labirinto do rei Minos, de Creta, que, ao revelar o

segredo do palácio-prisão a Teseu, permitiu que o terrível Minotauro fosse morto.

Condenado ao labirinto com seu filho, Dédalo trama a fuga por via aérea, fabricando asas a

partir de plumas de pássaros, untadas com cera. Ícaro atraído pelo esplendor do sol, eleva-

se em demasia no céu e cai logo em seguida, devido ao derretimento da cera que prendia as

plumas de suas asas.

Luciano Silveira, diretor e ator do Ìcaros do Vale, durante seu processo criativo

de construção de seus espetáculos, sonha com imagens, palavras, cores, cheiros e tece

histórias, diálogos entre personagens, com as luzes apagadas ou acesas, de noite,

madrugada adentro. Cada sonho é uma escritura, tal como os artesãos diante de suas

“visões” esculpem suas peças-vivas, impregnadas pelo sentido de pertencimento e tudo o

que lhes escapa dentro da concretude da vida no Vale do Jequitinhonha.36

Assim como Ícaro voa atraído pelo fascínio do sol, Luciano Silveira voa atraído

pela força do Rio Jequitinhonha, pela teimosia do gigante Jequi37 em prosseguir, que

35Texto escrito pelo diretor Luciano Silveira retirado do folder de divulgação da peça “História de Pescadores”. 36 “Somos nós que nos ensinamos. Minha mãe, admirada, dizia que era Deus que estava me ajudando, mas eu sempre tive inteligência para modelar e fazer e fazer meu trabalho de imaginação.” Dona Isabel , uma das artesãs de maior expressão no Vale do Jequitinhonha. É reconhecida internacionalmente por suas bonecas que representam ritos de passagem do nascimento e do casamento. A beleza e o primor das bonecas impressionam pela autenticidade, harmonia, pigmentação e simbolismo. São feições de mulheres bonitas de olhos claros, noivas e rainhas. Caboclas, negras e brancas, sempre esculpidas com expressão de grande dignidade e imersas em profundos pensamentos, o que causa essa impressão de peça-viva. 37“Jequi” é um nome carinhoso atribuído ao jequitinhonha.. "A despeito do estado em que se encontra, extraímos um trecho da matéria Indigenismos, do Serrano Pristino (Dario Augusto Ferreira da Silva), onde se vê a etimologia da palavra Jequitinhonha, a mais convincente das que vimos até o momento. Ele decompõe o nome do rio desta forma: jiqui-itá-hy-nhonha. Onde jiqui é jequi, armadilha para pegar peixes, ou "covo afunilado tecido de taquaras, o qual, cheio de iscas se lança no rio com o fim de se apanhar peixes vivos". O nome jequi, por sua vez, vem i-ique-i - "o em que se entra". Itá é partícula designativa de plural, que

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embora se mostre desidratado, encharcado de sede, empazinado de fome, ainda corre, como

diz o poeta do Vale Gonzaga Medeiros. O Sol derreteu a cera que prendia as asas de Ícaro,

mas “no sertão, sabe o senhor: sertão é onde o pensamento da gente se forma mais forte

do que o poder do lugar. Viver é muito perigoso.”38

Mas por que especificamente o grupo Ícaros do Vale? Quais as categorias que o

identificam? Por que simultaneamente podemos caracterizar suas obras como expressões

tanto regionais como universais? Por que ele se mostra capaz de arrebatar platéias

compostas por indivíduos tão diferentes do ponto de vista sócio-cultural? Estas foram as

primeiras indagações que me inquietaram intelectualmente.

O espetáculo “Os olhos mansos” construído pelo grupo Ícaros do Vale a partir

de contos de João Guimarães Rosa e de sua pesquisa contínua sobre a cultura popular do

Vale do Jequitinhonha, que presenciei pela primeira vez numa sala de teatro improvisada

em Salinas, cidade onde se realizou o 23o Festival de Cultura Popular do Vale do

Jequitinhonha em 2004, intrigou-me e me emocionou profundamente. O “diálogo forte”39

se fez com espectadores de todo o Brasil, pertencentes a segmentos sociais diversos, entre

eles canoeiros, lavradores, lavadeiras, atores, músicos, professoras, doutoras em letras, um

engenheiro civil que trabalha na prefeitura de Belém, etc.

transforma jequi em jequis. Hy, que se pronuncia aspirado, mais para "ri" que para "i", significa rio, e nhonha é sumir. Logo Jequitinhonha é o rio em que os jequis somem, por estarem pesados com os peixes capturados. Esse significado concorda com a etimologia popular que formou o híbrido no jequi tem onha, onde onha é peixe, logo no jequi tem peixe." A etimologia da palavra Jequitinhonha, encontrada no jornal A Voz do Serro, de 31 de janeiro de 1913 se encontra neste parágrafo do livro Serro e Serrania - O Vale dos Boqueirões volume 2, de Luís Santiago. (Disponível na internet via www.onhas.com.br).

38 Guimarães Rosa, em “Grande Sertão vereda”. 39 Beti Rabetti (2000) define diálogo forte como sendo uma prática de incessante reelaboração que sabe atualizar, com maestria artística, acervos técnicos colhidos em “receituários” fixados por antigas experiências, tornando-os adequáveis a uma ágil cena teatral de tipo inteiramente novo.

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Que espetáculo teatral é este?! – Indaguei-me. A força e a extensão de seu

impacto não ocorreram com os outros grupos de teatro da região a que pude assistir no 23o

Festivale, cujas encenações se pareciam com jograis ou simples narrativas históricas, numa

sucessão de quadros monológicos ou com dois, três atores no máximo sem a presença de

uma direção e não pude em muitos momentos entender sequer o que estava sendo dito em

cena. Percebi, entretanto, que os habitantes da região se divertiam com aquelas encenações

singelas e ingênuas. O diferencial, naquele Festivale, no que diz respeito ao grupo Ícaros do

Vale, é que ele conseguiu envolver todos os espectadores que, como dito anteriormente,

num certo sentido, representavam segmentos sócio-culturais diferenciados. E envolviam a

todos pela universalidade de suas encenações. Isto sem que o vínculo umbilical com a

cultura local, com a tradição cultural do sertão mineiro, fosse rompido. Muito pelo

contrário.

A direção dos estudos lukacsianos fundamenta esse movimento que leva o

indivíduo cotidiano ao reconhecimento da generalidade do ser humano, isto é, a

transformação do homem inteiro em homem inteiramente por meio da experiência teatral

do Ícaros do Vale. “Os olhos mansos” atua demonstrando a objetividade das relações

sociais desfetichizada de sua imediaticidade, apresentando ao espectador o seu núcleo

humano.

Assim, o que me impulsionou a pesquisar o Ícaros do Vale foi a curiosidade e

vontade de investigar como se combinam e se sintetizam a particularidade que identifica

esse teatro popular do sertão mineiro e a universalidade que o eleva, permitindo-lhe travar

um “diálogo forte” entre o tradicional e o contemporâneo, apresentando como resultado

uma estética peculiar da cena teatral popular.

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O texto do Ícaros do Vale é preenchido de verdade e de poesia, através de sua

pesquisa sobre a cultura popular do sertão mineiro. É um texto-roteiro feito pelo diretor

Luciano Silveira para o grupo. Separar o estudo do texto da investigação da cena seria

forçar um método cujo resultado estaria fadado ao fracasso. Luciano escreve o texto a partir

do seu desejo de dizer algo e sempre chama à cena a cultura popular do Jequitinhonha. O

texto não é inteiramente escrito de antemão e depois encenado. Uma etapa não engendra a

outra sucessivamente, nem as cenas são escritas linearmente. O “texto-base”, a idéia

fundante, escrito por Luciano Silveira para o grupo é re-trabalhado nos ensaios e re-escrito

enquanto se converte em cena. A evolução histórica da relação entre o texto e a cena só faz

ilustrar a dialética desses dois componentes da representação. Das duas uma: ou a cena

procura dar e redizer o texto; ou cava um fosso entre ela e ele, o critica ou o relativiza por

uma visualização que não o redobra (PAVIS, 1999). Aqui, a cena procura re-dizer o texto

que também acaba por determinar a cena que por sua vez pode sobredeterminar o texto

num processo criativo contínuo até Luciano o considerar pronto. Mesmo no caso da “Filha

que bateu na mãe na sexta-feira da paixão e virou cachorra”, que é tirado de um cordel, o

texto é processado, re-trabalhado e intercalado com as músicas que, muitas vezes,

substituem partes do texto, porque já dizem o que tem que ser dito, defende o diretor. Mas

Luciano Silveira, apesar de autor de todos os textos encenados por seu grupo de teatro, não

trabalha só nisto. Ele está sempre procurando se aprimorar, estudar e nunca parte

unicamente de suas próprias palavras para falar. Ele busca trechos em João Guimarães

Rosa, em Dorival Caymmi, em poetas diversos. Esta inquietação e sensibilidade afloradas

em Luciano se objetivam num texto rico em significados, imagens e ações dramáticas. Os

atores são incentivados a se apropriarem do texto e encontrarem outras expressões. Há uma

satisfação principalmente quando os atores falam com expressões locais.

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Quanto à cena, a sua principal característica é a busca da imagem. Luciano sonha

com uma imagem e vai buscá-la nos ensaios. O figurino, o cenário, a maquiagem são

elaborados cuidadosamente por ele. O espetáculo “História de pescadores” não se faz sem o

chão cheio de areia. Não faz mesmo. Para quem mora no Vale do Jequitinhonha, pode

parecer um luxo o trabalho de várias carretas de areia para preencher o espaço cênico, as

roupas bordadas, a maquiagem de pan cake que eles nem conseguem comprar na região

(tem que mandar vir de Belo Horizonte). O grupo tem orgulho da estética do trabalho e não

admite executar de forma não concebida pelo diretor.

A cena não é tão somente o material de cena, baseado no artesanato do Vale,

nos tecidos de cores produzidas no Vale, nas flores secas e de alumínio, na cestaria, nos

santos e oratórios, nas redes de pesca. A cena é também o corpo dos atores no espaço, os

pontos de atenção, os movimentos coreografados, o direcionamento de um olhar vibrante

que nos convida a criar imagens junto com os atores, o silêncio preenchido por um objeto

ou uma lembrança que mesmo não sendo íntimo uma história comum, nos provoca um

“fazer junto” com homem-jequitinhonha a cena teatral. De fato, existe um diretor no Ícaros

do Vale40. Existe uma pesquisa técnica atorial, ainda que insipiente, existe uma vontade de

fazer um teatro “profissional”.

Luciano Silveira é um pesquisador da cultura do seu povo e em pouco tempo

entendeu onde estavam os grandes acervos da cultura do Vale do Jequitinhonha: com os

velhos. Ele usa todas as oportunidades, todas as viagens, todas as visitas que faz a trabalho

percorrendo o baixo, o médio e o alto Jequitinhonha para pesquisar. E assim, monta seu

acervo. Seu acervo não é só de canções. São modos de falar e modos de fazer do homem-

40 Ver anexo as anotações manuscritas de Luciano Silveira no texto “História de pescadores”, a título de observação de suas anotações durante ensaios, por exemplo.

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jequitinhonha. Essa memória-viva, substância imaterial, é re-trabalhada para os espetáculos

do grupo e também para o coral “Araras Grandes”41. Sua busca é preenchida por uma

necessidade de conhecimento da sua região, das pessoas que habitaram através das que hoje

habitam o sertão mineiro. Quando se pensa que não há mais o que ser pesquisado, ele vem

com uma canção que achou com uma senhora de Chapada do Norte ou com algum velhinho

das comunidades que ele percorre dando oficinas de teatro e de técnica vocal pelo Fundo

Cristão42, entidade mais atuante do Vale do Jequitinhonha.

As músicas recolhidas, os “causos” dos homens e mulheres do sertão, as

imagens de suas passagens, viram texto, e viram cena. Mas o que está mais presente nos

espetáculos é que, nessas conversas que ele tem com os velhos, o clima fantástico do

universo narrativo é o fio condutor, a linha invisível que costura as ações dramáticas. Os

espetáculos sempre são narrativas, ainda que não exista a figura do narrador ou que ela

apareça muito pouco. Mas não é aquela narrativa brechtiana, intencionalmente dirigida É

uma narrativa meio “sem-querer”, que quer ser acontecimento, mas que acontece num outro

plano, como as histórias dos velhos.

Há uma espécie de eu-épico como diretor de cena. O personagem típico do

narrador se introduz na cena, ora como personagem dramático, completamente identificado,

ora como o diretor da cena que observa e dialoga com os personagens que vivenciam

aquela cotidianidade particular.

Os personagens, com exceção de Hermínia, não têm nomes. Podem fazer parte

de qualquer família do sertão mineiro, mas condensam em sua tipicidade as múltiplas

determinações de um tempo-espaço particulares. “Já começo a ouvir o canto das

41 O Coral Araras Grandes foi fundado em 1997 por Luciano Silveira na cidade de Araçuaí. 42 O Fundo cristão, criado em 1966, organização não governamental, atua no Vale com o objetivo de resgatar a cultura local através de diversos projetos sociais.

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lavadeiras, as lavadeiras são cena comum neste lugar.” Comenta o narrador que mostra

consciência de sua direção ao introduzir na cena as lavadeiras, personagens evocadas por

seu eu-épico, cuja relação sujeito-objeto representa uma relação exterior às personagens,

mais precisamente a relação épica entre o narrador e seu objeto, as lavadeiras, personagens

identificadas na cena dirigida por ele que logo a seguir passará também à condição de

objeto. A cena passa a ser comentada apenas pelo olhar dos espectadores que não mais

diferenciam a figura do narrador dos personagens dramáticos.

Em “Os olhos mansos” a ação dramática coexiste com a narrativa cênica, cuja

disposição das cenas sendo fragmentária, enfatiza comportamentos e opiniões de uma

conformação particular historicamente situada, como na situação descrita anteriormente no

encontro de Lenita com uma senhora na praça da matriz. Pelo fato das cenas não

engendrarem umas às outras e serem dirigidas, costuradas pelo eu-épico, para além do

drama, a fragmentação as vincula conscientemente a uma totalidade. “Meus caros

companheiros, as casas agora viram platéias e nós todos nos tornamos embaixadores nesta

jornada”. A forma absolutamente dramática, privilegiando uma escrita cênica contínua

movida pelo conflito, impõe uma verdade imutável. Aqui, o eu-épico, personagem-

narrador, convoca a dialética a entrar em cena, pois se apóia na idéia de contradição e não

de conflito. Os personagens expressam o comportamento revelador de um modo de

inserção na sociedade e na história. O comportamento do homem-jequitinhonha, um em

relação aos outros, ao apresentar uma significação histórico-social, torna-se típico.

2.2.1- Histórico do grupo: Vamos fazer teatro!

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O grupo Ícaros do Vale foi fundado em novembro de 1996 e sua constituição

está profundamente ligada aos anseios de emancipação de um grupo de jovens liderados

por Luciano Silveira.

Eles bradaram: -Vamos fazer teatro! Esse falar se constituiu numa ação coletiva

que marcaria profundamente suas vidas e o cenário artístico do Vale do Jequitinhonha. Um

brado forte que expressava o desejo de implementação de um processo de expansão de seus

“próprios limites”.

Inseridos numa região de extrema pobreza e num movimento próprio da

juventude se reuniram para pensar sobre a cultura local, sobre os costumes, as histórias, o

modo de agir e de viver das pessoas no Vale.

Organizaram-se e começaram a se estruturar tendo como eixo condutor dessa

organização a busca por um trabalho comprometido com o espaço geográfico e histórico do

Vale e que estabelecesse um diálogo direto com as comunidades.

O primeiro trabalho do Ícaros foi a partir das tradições religiosas. Montaram em

1996 um texto que pertencia à literatura de cordel e de autor desconhecido. “A filha que

bateu na mãe, sexta-feira da paixão e virou cachorra” . Uma comédia que falava do

cotidiano, e que o grupo adaptou ao cotidiano específico do Vale, inserindo na peça

elementos e histórias das pessoas que vivem na região, característica marcante do grupo em

todos os seus espetáculos.

Esse espetáculo percorreu quase todo o Vale do Jequitinhonha e por sua

temática ganhou a simpatia do público que se identificava facilmente com as canções e com

o universo da história.

Em 1998 o grupo realizou a primeira montagem de “Os olhos mansos” que

falava da mortalidade infantil e da seca. Começaram a desenvolver uma linguagem

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diferenciada, onde a crítica social ganhava força e se evidenciava um trabalho de pesquisa

cênica. O espetáculo ganhou os prêmios de melhor diretor, melhor trilha sonora, melhor

atriz, melhor atriz coadjuvante, melhor pesquisa e melhor espetáculo de rua na XV mostra

estadual de Teatro, realizada em Pompeu – MG.

No ano de 2000, o grupo montou “No caroço do Juá” baseado nos “causos” da

pesquisadora Virgínia Chaves com músicas de Josino Medina. O espetáculo contava a

história de um grupo de viajantes que por onde passavam, mostravam as riquezas de Minas

Gerais tendo como personagens os tipos populares dos falsos profetas, dos feirantes e das

“mulheres de vida fácil”. Esse trabalho trouxe para o Ícaros mais de oito prêmios pelos

Festivais do Brasil.

Em 2001 o grupo foi convidado pela Cáritas Brasileira, Instituto de Gestão das

Águas Mineiras, e pelo programa “Pro-água Semi-árido” para montar um espetáculo sobre

esse tema. Surgiu então, “De mala e cuia” que percorreu o estado e participou ainda de um

encontro nacional de Gestão das águas em Fortaleza – Ceará no ano de 2002.

Em 2003 o espetáculo “Os olhos mansos” foi remontado com o

aprofundamento da pesquisa dos Cantos de Louvor à morte de anjos, das incelências, dos

batuquinhos de presépio e com uma investigação sobre uma “dramaturgia sertaneja” mais

aprofundada pelo diretor, autor e ator Luciano Silveira. Esta montagem arrebatou mais 11

prêmios43, sendo 04 de “melhor espetáculo”, pelos festivais que participou, além de ter sido

indicado em várias categorias.

O último espetáculo do grupo “História de pescadores” estreou em 2006 na

cidade de Araçuaí na noite de 14 de janeiro na Escola Estadual Manoel Fulgêncio, fundada

em 1907, a mais antiga da cidade. O pátio da escola foi coberto de areia. A enorme

43 Ver anexo currículo do grupo Ícaros do Vale.

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quantidade de areia clara transformando a quadra de jogos da escola em espaço cênico,

combinada com a direção, o texto e interpretação dos atores e percussionistas, fizeram dos

espectadores uma extensão daquele espaço, um verdadeiro mar “sem precisar sair de

Minas”, como escreveu Fernando Limoeiro, professor do TU [Teatro Universitário de BH],

quem assinou junto com Luciano a dramaturgia. O espetáculo “História de pescadores” é

resultado do projeto “Arte Miúda”, desenvolvido pelo grupo Ícaros do Vale, em maio de

2005, com objetivo de abrir espaço para alunos da rede estadual de ensino de Araçuaí

participarem e se integrarem ao grupo. A peça é baseada na obra de Dorival Caimmy e na

pesquisa do grupo acerca da cultura popular do Vale do Jequitinhonha, característica

presente em todos os seus trabalhos. “História de pescadores” conta o amor de Rosa e

Bento num contexto social dramático. A vida dos pescadores e dos espectadores também é

exposta às incertezas da natureza e às oscilações do mau tempo.

Para integrar as comemorações de seus dez anos de existência, o grupo remonta

seu primeiro espetáculo “A filha que bateu na mãe, sexta-feira da paixão e virou cachorra”,

tendo em seu repertório hoje, simultaneamente, um espetáculo de rua, um de palco (“Os

olhos mansos”) e um para espaço aberto noturno (“História de pescadores”).

2.2.2- Fontes de repertório: a cena da memória do homem-jequitinhonha

A memória é origem e fim que orienta os procedimentos técnicos e o trabalho de

pesquisa da cultura popular local no processo de composição do repertório do trabalho do

ator e de construção cênica no Ícaros do Vale.

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Dona Zoca, lavadeira de Coronel Murta, fonte de repertório44 para o grupo

Ícaros do Vale, começou a trabalhar com 16 anos e na beira do Rio Jequitinhonha cantava,

“puxava versos”, “jogava ladainhas”, contava “causos” com suas companheiras ribeirinhas.

O trabalho das lavadeiras é mediação criadora de suas atividades artísticas, suspensas da

cotidianidade em que estão inseridas. Suspensas e não descoladas da realidade, visto que

sua suspensão é causa de sua criação artística e uma vez posta na realidade, retroalimenta a

vida cotidiana, ou melhor, sobredetermina a vida de onde emergiu. Assim, o trabalho no

Vale do Jequitinhonha é não somente mediação do processo criativo que a partir dele surge,

mas está intimamente vinculado ao ato de trabalhar em si, à atividade do homem-

jequitinhonha.

O trabalho é mediação criadora posto que, tem precedência ontológica sobre as

demais esferas da práxis humana. Não perceber a conexão entre qualquer práxis humana e

o trabalho é incorreto. Mas também não perceber a especificidade de cada um desses

conjuntos de práxis, de cada uma dessas esferas, é muito redutor. Por isso, a importância de

se colocar sempre a dialética para funcionar. Sim, porque há o risco de se ver a arte,

especificamente a cena do Ícaros do Vale, objeto desta pesquisa, como mera decorrência,

mero efeito mecânico da vida laboral-econômica. Essa é uma crítica muito corrente aos que

reivindicam o marxismo. Mas não se trata disso, a cena – objeto desta investigação, tendo

como fio condutor a “visão de mundo” lukacsiana –, é concebida enquanto expressão de

tendências reais, todas captadas a partir do concreto e configuradas em personagens típicos.

O teatro, aqui, é um reflexo estético dessa vida, ou melhor, trata-se da apreensão das

determinações que movem a vida do homem-jequitinhonha. Lukács se refere à síntese de

múltiplas determinações – o “homem concreto”. Dentro deste contexto, constitui-se o

44 Ver anexo. “A alma do Rio”, pesquisa realizada com lavadeiras de Araçuaí.

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personagem típico em “Os olhos mansos”. Aquele que expressa tipicamente tendências da

realidade no tempo e espaço determinados em que o grupo se insere hoje. Importante

enfatizar que não se trata de refigurar realisticamente a cotidianidade, mas de convocá-la.

Lukács diz que é uma defesa da integridade humana.

Ecléa Bosi (2000. p.21) termina seu livro com a frase do Sr. Amadeu: “Eles

também trabalharam” traduzindo assim a ação das narrativas pelo concreto do trabalho.

João Alexandre Barbosa (apud BOSI, 2000, p.20) chama esse reencontro nos espaços da

memória – da ação de se contar histórias pelo viés do concreto do trabalho -, de uma

metáfora integradora viva. Cada um dos recordadores foi, no passado, e é, no presente,

trabalhadores, pois lembrar não significa reviver, mas re-fazer. Trata-se de uma reflexão do

presente, do concreto, a partir do passado e também seu caminho inverso, colocando a

dialética para funcionar.

“O velho, de um lado. Busca a confirmação do que se passou com seus coetâneos, em testemunhos escritos ou orais, investiga, pesquisa, confronta esse tesouro de que é guardião. De outro lado, recupera o tempo que correu e aquelas coisas que quando perdemos nos sentimos diminuir e morrer.” (idem, p.21).

Uma vez que o tempo da memória não se concretiza a não ser quando encontra a

resistência de um espaço que se habitou com a existência sofrida do trabalho, não se pode

pensar a cena teatral contemporânea do Ícaros do Vale, produzida pela ‘visão de mundo’ do

homem-jequitinhonha, sem percorrer o caminho da sua memória. Assim, quando Luciano

Silveira pesquisa a substância viva dos sertanejos que habitaram o sertão mineiro através da

lembrança dos que hoje habitam o mesmo lugar, espaços e temporalidades diversas, unas

em suas contradições, entram em cena através de um “diálogo forte” entre seus personagens

típicos na medida em que podemos observar um duplo movimento no trabalho de pesquisa

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do Ícaros do Vale com os velhos: há um movimento interno, infinito da memória, cuja

dinâmica de transmissão se apresenta de forma ilimitada, isto é, cada história se apresenta

como ensejo de uma nova história que, por sua vez, desencadeia em uma outra e, assim por

diante; e também um movimento que se inscreve na narração, na atividade de dar voz a

essa memória colhida e re-trabalhada que se constitui enquanto fonte de repertório para a

cena.

Primeiramente, dá-se uma apropriação material de uma cadeia mnêmica através

de pesquisas realizadas nas zonas rurais pelo diretor e ator Luciano Silveira, depois o

processo de escolha e bricolagem desses fragmentos de história, que são re-trabalhados

especificamente para a construção da cena teatral. Em “Os olhos mansos” há pedaços de

histórias de homens e mulheres que trabalharam. Estes fragmentos de substância-viva do

homem-jequitinhonha carregam uma memória comum, particular, que o identifica num

fluxo em movimento. Ao evocar uma memória comum dos que no passado habitaram o

Vale e os que hoje o habitam, o grupo convoca a todos não apenas a percorrer, mas ao

“fazer junto” o caminho dessa lembrança. Lévi-Strauss (1970) afirma que há um fio

condutor que une esses resíduos de história, e que permanecerão em relação, em algum

grau, à história particular de cada elemento, visto que vem carregado dos significados de

seu contexto anterior, para qual foi concebido e que se transmite a um expressão

inteiramente nova.

A função social do velho é lembrar esses “resíduos de história” e aconselhar –

unir o começo e o fim, ligando o que foi e o porvir (BOSI, 2000). Quando Ecléa fala em

“aconselhar”, permite que se recorra a Walter Benjamin que define a ação de aconselhar

não como uma intervenção externa de uma pessoa na vida de outrem, mas em fazer uma

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sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Desta maneira,

caminhar e ver se confundem nos confins da lembrança: o tempo de lembrar se traduz,

enfim, pelo tempo de trabalhar. Por isso, sem a memória do trabalho a narração perderia a

sua qualidade épica. Há a inserção do ouvinte e do narrador dentro de um fluxo narrativo

comum e vivo, uma vez que a história continua e estará sempre aberta ao fazer junto. A

história da cidade habitada é múltipla, portanto, não tem autor nem espectador. É formada

de “fragmentos de trajetórias e alterações de espaços” (CERTEAU, 1999). Essas práticas

espaciais libertam-se do espaço geométrico, remetendo-se a outros espaços poéticos, como

as formações de “comunidades imaginadas” (POLAR, 2000)

Da memória à cena, o Ícaros do Vale também trabalha, não apenas por recolher

dos velhos suas memórias, mas porque ao fazê-lo mostra a necessidade e a possibilidade do

sentido da “experiência” [Erfarhung] que Benjamin nos convoca a abraçar; tempo e espaço

das antigas narrativas, num tempo e num espaço fragmentados, tempo da velocidade das

informações e espaço sem tempo para lembrar e para contar. A memória do homem-

jequitinhonha ao ser levada à cena torna possível o aprofundamento da lembrança e a

transmissão da experiência no sentido pleno, em face do seu empobrecimento, cujas

condições de uma narratividade espontânea já quase não existem na sociedade regida pelo

capital. Uma vez que o acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do

vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave

para tudo o que veio antes e depois.

O fio condutor com que Ecléa nos convida a tecer memória e velhice é a própria

realidade social. A partir desta intersecção metodológica da autora, pode-se dizer que o

Ícaros do Vale não apenas colhe memória de velhos, mas dá existência, voz, a essas

memórias, que são duplamente oprimidas; pela dependência social e pela obrigação social

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da velhice, pois encontramos nos personagens e nos atores de “Os olhos mansos” o esforço

de homens e mulheres que também trabalharam.

Para o espetáculo “Os olhos mansos”, o grupo pesquisou a vida dos homens do

Jequitinhonha em várias cidades do Vale.

As histórias de Dona Nenzinha, “cantadora” de Sampaio, comunidade rural de

Chapada do Norte, foi fonte de repertório para o grupo Ícaros do Vale para o espetáculo

“Os olhos mansos”. Luciano conta que ela era quem lembrava das músicas antigas. Era

uma mulher muito frágil de saúde e tinha três filhos. Disse a Luciano que já havia enterrado

7 filhos. Sabia, marcada pela “morte vida severina”, várias músicas de canto de louvor à

morte de anjos45 e incelências46. Luciano Silveira conta que foi difícil pesquisar as

incelências nas comunidades rurais, pois as pessoas não gostam de cantar; “É questão de

respeito. Eles não cantam.” Além de Dona Nenzinha, Luciano ouviu muitas histórias de

mulheres que perdem suas crianças, como Dona Hermínia – nome da personagem do

espetáculo, e também personagem de Guimarães Rosa. Chapada do Norte é uma região

fortemente marcada pela mortalidade infantil.

Eu queria trazer o universo do sertão, do sertão mesmo. Porque lá em Sampaio é sertão, só que é um sertão que tem água. Tem o rio Araçuaí que passa lá embaixo, mas você não vê nada, você só vê seca porque é morro, as casas ficam nos morros, vários morros e o rio passa assim no meio. Aí eu queria trazer pro sertão mesmo, pro

45 Cantos de louvor à morte de anjos são cantados quando morre uma criança na região de Chapada do Norte, no Vale do Jequitinhonha. Esta região foi pesquisada pelo grupo Ícaros do Vale devido ao seu maior índice de mortalidade infantil. Quando morre uma criança, só se canta canto de louvor à morte de anjo porque são cantos que falam de um anjo que vai pro céu. Ele dizem que é porque não existe pecado, no caso da morte de uma criança. Não tem motivo de tristeza. 46 As incelências são cantos de louvor à morte também, mas quando morre um adulto. As incelências também foram pesquisadas pelo grupo na região de Chapada do Norte. Acredita-se que as incelências vão ajudar a preparar a alma do falecido pra ir pra glória, pra alcançar a glória. Então eles cantam 1 Pai Nosso, 1 Ave Maria e 1 incelência até completar o número 12. Em caso de prostitutas ou de pessoas que já haviam matado alguém, nos casos mais graves cantavam 33 incelências que seria a idade de Jesus Cristo.

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universo que eles viviam, que é aquela realidade deles. (Luciano Silveira, ent. 16/01/2006)

A pesquisa referente à mortalidade infantil foi toda feita em Chapada do Norte.

Ele recolheu com os velhos os cantos de louvor à morte de anjos e as incelências.

Os olhos mansos mesmo, eu montei um olho, um olho pequeno, um olho meio mais manso47. Então eu pesquei algumas coisas com eles e eles apresentam até hoje lá em Sampaio. Que é um esquete bem assim... não tem figurino...mas a roupa do grupo mesmo, a blusa... é um uniforme que eles usam e alguns materiais que são produzidos dentro da comunidade mesmo. Aí tem um caixãozinho, e só tem a primeira cena de Os olhos mansos. Só que a primeira parte : “Nessa noite de lua vamos cantar, vamos louvar a criança”, em vários blocos de pessoas, são 5 pessoas falando ao mesmo tempo. E eles buscaram, dentro da comunidade, uns personagens da comunidade. Então quem assistia via ele lá apresentando. Porque eu pedi pra eles irem nas casas, pra olhar como a pessoa falava, como é que ela andava, é um trabalho de mimese corpórea48 mesmo. Aí as pessoas se viam, choravam, se emocionavam, porque falava: ah, meu filho morreu já tem não sei quantos anos... e tal. Eram as histórias deles mesmos. Eu tentei levar pra o palco. No dia que foi a estréia do grupo, a gente chama de encerramento... é como se fosse um espetáculo de formatura pra eles, então a comunidade toda, os meninos... lá é uma região muito árida, tem a água, mas é árida a terra. Então eles foram lá e arrancaram bambu, enfeitaram toda a creche... que a creche era da prefeitura na época em que emprestou o espaço. Enfeitaram, aí fizeram balão, e mataram porco, foi uma festa na comunidade. Aí apresentou e as pessoas se emocionaram. No mesmo dia foi a entrega do certificado do curso de resgate folclórico das senhoras. (Luciano Silveira, ent. 16/01/2006)

A pesquisa de repertório para o grupo feita com as lavadeiras foi feita em

Coronel Murta e uma parte em Araçuaí. Luciano Silveira faz um trabalho de resgate da

47 Em 1998, o grupo tinha apenas 3 anos, surgiu a primeira montagem de “Os Olhos Mansos”. A construção da cena se deu a partir da pesquisa acerca da Folia de Reis e da mortalidade infantil. Quando Luciano diz que montou “um olho pequeno, meio mais manso”, está querendo dizer que a peça se redizia a um esboço que veio a ser em 2003. 48 “mímesis corpórea” é expressão criada pelo Lume e se constitui (nomeando, inclusive) uma de suas três linhas de pesquisa sobre o trabalho atorial. Consiste no processo de codificação de ações físicas do cotidiano, obtidas pelo ator através de sua observação e posterior imitação, e a maneira como este material é transposto para a cena teatral. Luciano Silveira se corresponde com o Lume por correio e tem acesso as suas revistas.

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cultura local. Seja qual for a cidade, seja zona rural ou zona urbana, ele observa a vida das

pessoas e as sensibiliza a um mergulho na sua memória. “Se tem lavadeira, se tem folia de

reis, se tem congado, batuque, o que tiver. A gente começa a descobrir...” Ele faz um mapa

das manifestações locais, anda pelas ruas, conversa com as pessoas, monta esquetes com as

comunidades sobre temas que afligem as pessoas daquele lugar, ouve os mais velhos e

depois transforma, re-elabora, re-trabalha o material na cena do grupo de teatro. O

espetáculo nasce de uma resposta às comunidades onde foram realizadas as pesquisas.

A primeira montagem de “Os olhos mansos” surgiu dessa resposta à

comunidade de Sampaio, zona rural da cidade de Chapada do Norte, pesquisada por

Luciano Silveira através de sua atuação junto ao Fundo Cristão. Luciano convocou os

integrantes da sua oficina a uma sensibilização voltada para uma pesquisa de campo na

própria comunidade para fazer o mapa das manifestações culturais da região.

As montagens teatrais nas comunidades onde Luciano oferece oficina de teatro

por meio do Fundo Cristão sempre partem dessa “sensibilização”, como ele denomina.

Luciano escolhe um tema e desenvolve um espetáculo com os integrantes da sua oficina

que é apresentada à comunidade no “encerramento” do projeto49.

Quando Luciano começou a trabalhar na comunidade de Sampaio, encontrou

bastante resistência para o desenvolvimento da sensibilização dos integrantes da oficina

com os habitantes da região a fim de estreitar entre eles o sentido de pertencimento do lugar

em que vivem. Luciano conta que com o advento da luz elétrica, fato recente na

comunidade, as pessoas não queriam sair da frente da televisão. Então, ele começou a

reunir um pequeno grupo para cantar as músicas folclóricas da região. “Começou a juntar

49 Os projetos têm aproximadamente 4 meses de duração.

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gente, começou a fazer barulho lá... e tinha gente de outras comunidades que andava 10

quilômetros pra ir pro grupo. Andavam. Tinham pessoas de 5 quilômetros que andavam no

escuro, com lanterna, eles iam com lanterna pra ensaiar no grupo que chama Zabelê.

Existe até hoje.” Zabelê é um pássaro muito comum na região. Luciano pede para que o

grupo de teatro formado coloque um nome que confira identidade à comunidade. Há o

grupo chamado Batuque em Coronel Murta que também existe até hoje. Este grupo fez uma

pesquisa na comunidade de Outro Fino sobre a história da atividade de garimpo. Luciano

recolheu histórias através de entrevistas sobre pessoas que morreram no túnel soterradas,

outras que ficaram vinte anos caçando pedra preciosa e não acharam nada. A pesquisa se dá

em torno das cenas comuns da região, da cotidianidade do homem-jequitinhonha. O

trabalho inicial é todo feito através de entrevistas. Depois, Luciano transforma a fonte

documental em cena. “Aí a gente fez adaptação, na hora que tem a cena lá do garimpo de

Ouro Fino, aí eles começam “Quem te ensinou garimpeiro...” (...) Aí tem uma outra coisa

que... uma outra música que eles cantavam, que fala assim “A minha pedra morena /

saudade, saudade / Eu vou e não sei se eu volto / Saudade, saudade / Mas se você quiser

morena / Me leva para a cidade”. E cantava essa música os garimpeiros. E até hoje isso é

muito forte lá em Ouro Fino. Vem pessoas de Valadares pra comprar as pedras lá. Nessa

região que mexe com pedra em Teófilo Otoni. As pessoas arriscam a vida por nada.” A

montagem de “encerramento” está intimamente ligada com o tema que emerge da

sensibilização que Luciano desenvolve na comunidade através do mapeamento da cultura

local na pesquisa de campo.

Então, “Os olhos mansos” surgiu da pesquisa acerca da mortalidade infantil e

Folia de Reis na região de Sampaio, em Chapada do Norte. Mas não havia um

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aprofundamento nas relações que emergem entre o texto e encenação. Do espetáculo

montado na comunidade de Sampaio para o espetáculo que Luciano montou com o Ícaros

do Vale não havia um salto qualitativo e significativo, como ele mesmo diz.

Este salto foi acontecer em 2003, quando o Ícaros decidiu remontar “Os olhos

mansos” a partir do aditamento de novas pesquisas e referências sobre a cultura popular do

Vale e a obra de João Guimarães Rosa. “Rua da Amargura50 principalmente. Li muito

Morte Vida Severina de João Cabral. Eu li demais Grande Sertão Veredas de Guimarães

Rosa. Li uma página, eu fiquei voando assim... voltava a página todinha... eu to com o

livro ali, ta todo riscado de lápis, vou te mostrar depois, ta todo riscado de lápis, caneta...

Algumas partes eu achava bonita, que poderia ta usando no texto... muita coisa não usei,

mas a maioria, acho que a maioria que eu arrisquei usar(...)”

Na remontagem em 2003 houve o aprofundamento da cena das lavadeiras

através da pesquisa desenvolvida na cidade de Araçuaí, e o desenvolvimento dos

personagens que contam e vivenciam a história do espetáculo. “Profetas, anjos... Esse

universo que pertence à pesquisa que havia sido feita. Tinha hora que tinha anjo, os

fantasmas são os desesperos, as loucuras, as mágoas, o arrependimento por não ter feito,

por não ter falado, as lembranças... Numa hora que Hermínia pega a foto do marido e

olha: “porque ele morreu?” “Dizem que ele morreu aqui perto, morreu de Doença de

Chagas”. Seriam essas lembranças. Os profetas, as pessoas do sertão, as rezadeiras, que

são verdadeiros profetas. Eles sabem quando vai ser tempo de seca. Porque essa coisa de

passar de pai pra filho... se começa a ter muita muriçoca já é sinal que vem chuva. A lua

que é boa pra caçada... Então tem essas coisas que são passadas. Tem muita coisa no Vale

50 Espetáculo do grupo Galpão, DE Belo Horizonte, M.G., forte referência para o Ìcaros do Vale.

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que ainda não foi estudada e que é um mistério até pra gente. (...) Acho que são as

lembranças, o imaginário popular do Vale. Essas coisas que estão entre o céu e a terra.”

O grupo sempre parte de circunstâncias típicas do Vale do Jequitinhonha, cada

vez mais enriquecidas pela experiência de aprofundamento dessa memória coletiva através

das pesquisas feita por Luciano Silveira. A remontagem de “Os olhos mansos” re-faz o

caminho dessa memória historicamente particular, num tempo e espaço dados. O grupo

Ícaros do Vale, hoje, coloca em prática, concretamente, essa equação e as demais

determinações que dela se abstraem, a expressão de tendências reais configuradas em

personagens típicos.“É recriar. Aquilo existe [na realidade] e você recria de uma outra

forma. Uma realidade que já existe e que ela entra com o trabalho lúdico, com elementos

que compõem essa imaginação, que eu vou voando e vou tentando colocar isso vivo no

palco. Muitas vezes nem é possível ter tudo que eu penso. A luz que não é essa que eu

quero, por falta mesmo de recurso, por falta até de instrução, informação profissional.

Mas na maioria das vezes ela não fica sem acontecer não. Acha um jeitinho aqui, outro ali,

que vai dar pelo menos a idéia que eu quero.” (Luciano Silveira, ent.16/01/2006)

2.2.3- Os olhos mansos

“A arte é carne, é sangue. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos,

só podemos expor o que somos.” Graciliano Ramos

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Justifico a escolha deste espetáculo, após seleção e análise das fontes colhidas na

pesquisa de campo, porque, a meu juízo, ele fornece os elementos identificadores do teatro

popular no Vale do Jequitinhonha, uma vez que re-elabora na cena a memória do homem-

jequitinhonha convocando dialeticamente os espectadores e seus personagens a travarem

um “diálogo forte”. Resistindo há 10 anos, o Ícaros do Vale desenvolve um contínuo

processo de pesquisa e reflexão teatral em grupo. Busca assimilar e re-ler novos

referenciais estéticos a partir do contato com outros grupos de teatro, ícones da cultura

mineira como Galpão51, Ponto de Partida52 e a forte influência do diretor mineiro Gabriel

Vilella - que também bebe da estética barroca em suas encenações. Assim, essas relações

aportam enriquecimento não só para o Ícaros do Vale, mas para todos os agentes nelas

envolvidos.

“Os olhos mansos” mostra a mortalidade infantil no Vale do Jequitinhonha e

seus rituais como: cantos de louvor á morte de anjos, incelências, batuquinhos de presépio,

recriados, re-trabalhados a serviço de cena teatral.

Os personagens são anjos, fantasmas, lavadeiras, profetas e crianças que

mostram o Vale do Jequitinhonha com suas tradições e sua peculiar preocupação em

preservar a sua cultura.

51 “E uma das coisas que eu peguei como referência também foi o trabalho do Grupo Galpão. Na área de pesquisar mais a religiosidade mesmo popular... Eu assisti mesmo aos espetáculos, lia muita coisa dos livros que eles já lançaram, da forma de trabalho usando algumas técnicas deles. Essa técnica de usar mesmo a cultura popular, de transformar isso em teatro. A gente sempre pega isso como referência. E buscando as nossas próprias interpretações, criando as nossas formas... mas como suporte mesmo. Não seguindo daquela forma, mas criando a partir daquele, criar a nossa forma.” Trecho da entrevista realizada com Luciano Silveira. 52 O grupo Ponto de Partida, da cidade de Barbacena, Minas Gerais, apresentou-se inúmeras vezes no Vale do Jequitinhonha. Na busca de sua identidade, o grupo também desenvolve uma pesquisa sobre a cultura popular mineira e seu campo de repertório inclui o Vale do Jequitinhonha. Tanto o Galpão, como o Ponto de Partida e o teatro produzido no Vale do Jequitinhonha se beneficiam deste intercâmbio cultural. A cultura popular do Jequitinhonha os identifica e também os diferencia em suas estéticas peculiares.

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O espetáculo foi criado a partir de texto homônimo escrito pelo diretor do grupo

Ícaros do Vale, Luciano Silveira. Para a composição do texto, Luciano pesquisou a obra do

romancista João Guimarães Rosa, mais especificamente “Grande Sertão: Veredas”, seus

contos curtos e também a pesquisa que o grupo desenvolve sobre a cultura popular do Vale

do Jequitinhonha. O enredo é original, mas recheado de citações de Guimarães Rosa e

inspirado por uma de suas contundentes observações sobre a vida sertaneja: “No sertão seu

moço, rir antes da hora engasga.”

Em algum lugar do sertão mineiro, Hermínia espera uma criança. Assim como

em “Morte e Vida Severina”, a mulher de José anuncia a chegada do filho. O anúncio do

nascimento do filho-esperança, filho do mestre Carpina, que "saltou para dentro da vida",

num jogo contínuo de antíteses em que se opõem as desesperanças severinas à esperança, é

referência clara na obra do Ícaros do Vale. A criança esperada assume um papel redentor

para a comunidade. No decorrer do espetáculo, cantos, danças e festas vão se desenrolando

enquanto os personagens, com alegria incomum, esperam o nascimento do menino. Mas, ao

contrário do que acontece em “Morte e vida severina” de João Cabral de Melo Neto, cujas

peregrinações de Severino servem para revelar seus diferentes encontros com a morte, que

se apresenta diversificada, assumindo diferenças próprias em cada uma das cenas, em seu

desfecho a criança esperada nasce viva, em “Os olhos mansos” a criança nasce morta e o

fim do espetáculo nos leva ao início de tudo. Ausente a personagem a quem seria entregue,

em forma de esperança, a responsabilidade sobre o destino daquela comunidade, o discurso

final apela à platéia: “É preciso socorrer as infâncias do sertão e os seus olhos. Cobertos

de luto e tão necessários de vida. Porque são assim... Os olhos mansos!”

O espetáculo é composto por nove cenas, que funcionam como quadros

independentes. Há duas cenas que não compõem a trama central, sobre o nascimento do

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menino: são a cena do encontro dos anjos e a cena da procissão. Todas as outras cenas se

referem ao nascimento e morte do menino, mas não apresentam seqüência cronológica.

Todas as transições de quadro são feitas com música. Comum a todas as cenas é a presença

da infância. Seja na forma do menino que vai nascer, seja na forma de crianças que sonham

com um rio caudaloso ou mesmo na forma de almas infantis transformadas em anjos.

Foto: Cena 1 - Hermínia chora sobre o caixão do filho morto. Fotógrafo: Neilton Lima

Foto: Cena 1 - lamento de Hermínia e preparação do cortejo.

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Fotógrafo: Neilton Lima A cena 1, chamada “O cortejo53”, é introduzida por um narrador que, assim

como o retirante Severino de “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto, é

nosso intermediário na viagem por esse universo sertanejo. De forma bem direta, se dirige

aos espectadores e introduz o espetáculo “Senhoras e senhores, nesta noite de luar, vamos

louvar a vida, vamos saudar a morte”. A morte não é, desta forma, elemento surpresa no

espetáculo. O desenrolar desta primeira cena é exatamente o cortejo da morte do menino (o

espetáculo começa pelo fim), e isso o torna mais cruel e mais político. Mais épico e menos

dramático. O narrador nos alerta sobre o título do espetáculo “Os olhos mansos que aqui

passarão são os filhos e filhas de Nossa Senhora que choram aos pés do senhor. E são

esses olhos que, sofrendo, mergulham em cantos e também regalias.” Deixando claro que

seu tema não é o menino, mas todos os personagens que por ali passarão. A cena prossegue

com o cortejo do menino e os lamentos da mãe.

53 Nos tempos antigos, o cortejo tinha implicitamente uma função econômica e também a função de estimular a solidariedade do grupo de vizinhança. Havia o sentimento de pertencimento de um grupo concreto, delimitado em um lugar específico, delimitado no espaço. À medida que ocorre a associação de elementos modernos em uma comunidade com seus valores e costumes ainda arraigados em um modo de viver mais simples, menos complexo e, portanto, menos contraditório, o cortejo vai perdendo sua função econômica, não conservando senão sua função anunciadora. Maria Isaura Queiroz (1973, p.163) observa que as despesas com a festa passam a ser asseguradas, em geral, pela contribuição de um fazendeiro da vizinhança ou pela cooperação entre uma meia dúzia de sitiantes mais prósperos. Tais manifestações culturais, processadas a partir desses dois pólos contraditórios, são resultado da falta de uma divisão de trabalho desenvolvida e pela tonalidade dominante dos valores tradicionais e religiosos. Desta forma, a arte é exercida associada às atividades comemorativas importantes, às festas religiosas principalmente.

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Foto: Cena 2 - Hermínia é consolada por anjos. Fotógrafo: Neilton Lima

Na cena 2, “estrelas e anjos”, a mãe da criança é consolada por anjos que a

rodeiam soltando bolhinhas de sabão. A evocação de um mundo maravilhoso, onde nossa

senhora recebe as crianças que abandonaram o difícil fardo da vida neste mundo, leva a

personagem do desespero a uma quase-alegria. “No céu tem festa todo dia”, garante o anjo.

Esta cena de consolação inverte o ambiente do espetáculo e introduz, em flashback, a cena

da anunciação. Insistente como a vida sertaneja.

Foto: Cena 3 - Narrador introduz o cenário da cena das lavadeiras Fotógrafo: Neilton Lima

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Foto: Cena 3 - Lavadeiras Fotógrafo: Neilton Lima

A cena 3, chamada “Lavadeiras”, é introduzida pelo narrador que produz, em

palavras, a imagem do lugar.

“Mas nem tudo consiste em melancolias. O povo vive: mire e veja o seu dia a dia. Essas

são as mazelas do Vale, com seus cantos mortuários, seus langues54 e seus acordes. Esse é

o sertão onde manda quem é forte, com astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha

armado. Já estamos à beira de um corguinho onde essas cenas de vida e de morte se

passam. Onde o povo sabe cantar. Já começo a ouvir o canto das lavadeiras, as lavadeiras

são cena comum neste lugar.”

De todas as 9 cenas, é a que mais reflete significados locais. O rio, as lavadeiras

e, de maneira bem literal, o canto, que se refere ao riacho em cujas margens se construíram

as primeiras casas do povoado de Araçuaí: o córrego Calhauzinho. No diálogo entre as

personagens há expressões populares como “tirar ladainha” ou “puxar verso” que

expressam um modo particular de cantar. As lavadeiras não falam “cantar” ladainha, mas

“tirar” ladainha, que significa buscar na lembrança as ladainhas, cantos religiosos, como 54 Langues são cantos de ninar.

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“canto de todos os santos”, “canto de nossa senhora”, característicos no Vale. Nos verbos

“tirar” e “puxar” estão presentes um esforço de trazer a tona presentificando o sentido de

pertencimento do Vale do Jequitinhonha. Evocar o caminho da memória.

“No dia que estou danada, na beira do Calhauzinho/

Meu benzinho quer me buscar, está com medo de mim

Chora morena, chora morena, chora morena, quando ce for, ce me leva morena (bis

Mulheres quando se ajunta pra falar da vida alheia,

Começa na lua nova e termina na lua cheia.

Chora morena, chora morena, chora morena, quando ce for, ce me leva morena (bis).”

Pode-se apreender o que tanto Ecléa Bosi nos convida a enxergar a memória do

trabalho presente em sua pesquisa com os velhos. Nota-se que sem a memória do trabalho a

narração perderia a sua qualidade épica. Nesta cena, especificamente, há a inserção do

ouvinte e do narrador dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, uma vez que a história

continua e estará sempre aberta ao fazer junto. Hermínia anuncia que está grávida e, após

alguns instantes de meditante hesitação, a cena termina dança55, embalada por um

batuquinho de presépio56.

55 Três tipos de danças características em todas as cidades do Vale do Jequitinhonha finalizam a terceira cena: “Batuquinho”, onde todos os personagens dançam de forma mais “solta”, espontânea, havendo um espaço para improvisação dos atores. “É um sapateado que acompanha o ritmo da música. Daí, nos intervalos, as pessoas trocam de lugar.”, explica Luciano Silveira. Depois seguem-se “vilão de lenço” e “vilão de braço”, sendo danças coreografadas e codificadas na região. “Vilão de lenço” é uma dança derivada das quadrilhas européias. Os casais seguram cada um a ponta de um lenço e formam uma fila de casais tal qual uma quadrilha. O primeiro casal vira de frente para os outros e passa por dentro de um túnel, formado pelos lenços tensionados dos outros casais. Há também uma variante "trançada". O casal passa no meio do outro casal, depois se abre para que um terceiro passe pelo meio dele, depois passa por baixo do quarto, e assim sucessivamente. “O vilão de braço” é a mesma dança sem o lenço, igual à quadrilha tradicional, formando arcos e túneis com os próprios braços esticados. Há uma música folclórica da região do Vale que o coral “Araras Grandes”, formado em 1996, pelo Luciano Silveira, canta que diz assim: "Aprendi dançar Vilão, Não foi nessa terra não, não foi nessa terra não / Aprendi com uma alemoa, na terra dos Alemão, na terra dos Alemão!" 56 Batuquinho de presépio é uma festa tradicional do Vale do Jequitinhonha semelhante à Folia de Reis. O que diferencia é o fato de que rezadores é quem visitam as casas.

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“Refrão: Oi dão, dão, dão doe (bis). Vamos dar louvor esse menino (bis)

Esse menino diz que tem (bis) é um pezinho de alecrim (bis)

Ator 1: Eu pedi ele um gainho. Ator 2: E ele te deu o galho? Ator 1: Ele me deu gaio e

meio. Todos: ele te deu gaio e meio. Esse menino diz que tem (bis) É um pezinho de coco.

Ator 3: Eu pedi ele um coquinho (bis). Ator 1: E ele te deu o coco? Ator 3: Ele me deu coco

e meio. Todos: Ele te deu coco e meio. Esse menino diz que tem (bis). É um pezinho de

cana (bis). Ator 2: Eu pedi ele um gominho (bis). Ator 3: E ele te deu o gomo ? Ator 2: Ele

me deu gomo e meio. Todos: Ele te deu gomo e meio.”

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Foto: Cena 4 - Quadro dos penitentes Fotógrafo: Neilton Lima

Funcionando como um anti-clímax, a cena 4, “Seca e Penitências”, é

protagonizada por um grupo de crianças que, olhando para o horizonte, sonha com

imagens: “Eu ainda hei de ver um grande rio com ponte. E vai ser o nosso.” Sem

nenhuma ligação direta com o enredo central, a cena desenha, poeticamente, a imagem do

sertão: “A nossa vida só assim, porque é mutirão de todos. Por muitos remexida e

temperada. A gente teme pela vida, mas é pela vida que a coragem se faz. Bem-te-vi! Ô

Bem-te-vi. Chega aqui. Ta vendo só o tamanho do mundo? Ta vendo só essa chapada. Isso

tudo aqui verde não haveria maior boniteza.”

No final da cena, entra ao fundo uma procissão em

penitência.

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Foto: Cena 5 - Quadro cômico dos anjos. Fotógrafa: Mirela Alves

A cena 5, “Anjos”, é o contraponto cômico do espetáculo. Aqui o autor recorre

às técnicas da comédia popular. Trocadilhos, escatologia, reconhecimento familiar. Dois

anjos se encontram e descobrem que são as almas de dois irmãos que morreram ainda

crianças numa família de outros tantos. Em meio às piadas, são expostos os males que

matam as crianças sertanejas: tétano no umbigo, mordida de escorpião, desinteria, partos

mal feitos, falta de assistência médica.

Foto: Cena 6 - início da dança do “Sú-Neném”, com bonecas de pano.

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Fotógrafa: Anna Esteves

A Cena 6, “Meninos”, retorna ao fato central do espetáculo. Alguns meninos

conversam sobre a expectativa do nascimento. Depois de poucas falas, a cena se transforma

numa grande brincadeira ao som de um canto local chamado “Sú Neném”, que significa

provavelmente “seu neném”, pois a brincadeira consiste num tipo de “batata-quente”, onde

com bonecas de pano e o canto diz “Oi sú, ou sú neném/ Quem é a mãe desse neném/Oi sú,

ou sú neném/ Tome esse neném pr’ocê” É o momento mais acelerado do espetáculo.

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Foto: Cena 7 - Coro consola a angústia de Hermínia e canta “Quando a Rosa nasceu” Fotógrafa: Mirela Alves

Aproximando-se o momento do nascimento do menino, a cena 7 desvia-se da

expectativa pintada pelas cenas anteriores. Nesta cena, presenciamos as angústias e medos de

Hermínia, ao ver aproximar-se o momento tão esperado. Ela é consolada por vizinhos. O nome

da cena, “Rosas”, refere-se aos dizeres emprestados de Guimarães Rosa, “as crianças são como

as rosas, nascem, se abrem, mas também morrem.”, ratificados pelo canto final, um canto de

louvor à morte de anjos feita durante a limpeza da sede do grupo. Luciano e Mônica começaram

a brincar, e ela jogou: “Quando a rosa nasceu / Um anjinho apareceu”, e Luciano respondeu

“Quando a rosa se abriu um anjinho no céu sorriu.” Eles continuaram a jogar versos e criaram a

única música composta para o espetáculo. Que ficou assim: “Quando a rosa nasceu / Um anjinho

apareceu / Quando a rosa se abriu / um anjinho no céu sorriu / Quando a rosa murchou um

anjinho no céu chorou”. “Que ninguém fala que não é folclórica essa música. Mas ela foi

composta dentro de uma brincadeira.” (Luciano Silveira, ent. 16/01/2006)

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Foto: Cena Final - Retorno ao lamento da mãe. Desta vez, os resplendores do cenário coroam os componentes do “presépio”. Fotógrafo: Neilton Lima

A Cena 8, “Anunciação do Nascimento”, é novamente introduzida pelo narrador,

remetendo-nos ao início do espetáculo. Ele se introduz no drama como mais um dos

visitantes presentes para receber o menino que está nascendo.

Meus caros companheiros, as casas agora viram platéias e nós todos nos tornamos

embaixadores nesta jornada. Digo, desligo e redigo. Esse menino é uma rica prenda,

proclamada em um reino de incertezas. Com o sinal da Cruz armada, Deus proteja essas

casas. E que essas mortes sumam, pois a esperança, neste momento reluz. Arre águas,

aguarias. Que Hermínia já sente as dores para o começar de uma nova vida. Louvado seja

honra dessa gente.

Seguem-se reflexões curtas sobre a vida, a morte e o nascimento.

Atriz 3: O que o povo tem, na verdade, é medo, medo da morte. Ator 1: A vida é passagem. A morte é uma viagem. Ator 3: Todo mundo já canta para aquele que vem chegando.

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Atriz 3: Até os anjos da guarda se portam para essa vida que tem grande importância. Nem é necessário ação de voz para se perceber isso. Ator 3: Quando uma criança nasce, meu Senhor dono, o mundo torna a começar.

O canto central da cena é “Disparada”, de Geraldo Vandré, que nos conduz a um

reinício (“Prepare seu coração, pras coisas que eu vou contar” ). Reinício da vida (“eu

vivo pra consertar” parece ser a missão predeterminada do menino) e reinício do

espetáculo, pois esta seria a cena imediatamente anterior àquela que o introduziu. O canto

final da cena, acompanhado de dança, é um novo batuquinho de presépio e constitui um

pequeno clímax final, antes do triste terminar.

“Música – Dão dão – doê! Oi dão dão dão doe (bis) Vamos dar louvor esse menino (bis); Oi quem sair com esse menino (bis) Ocê saí com ele devagarinho(bis) Pra livrar de trupicão (bis) Oi o buraco no terreiro (bis)” Na última cena, o narrador volta ao centro dos acontecimentos. Ele introduz a

cena criando imagens que provocam o sentido de pertencimento daquele lugar:

“A noite era boa de boa claridade. Luar como naquela noite, só o sertão viu. E o povo

virou água ficando como um rio que não quer ir a nenhuma parte. Todos queriam somente

chegar. Chegar para a esperança. A folia entrou na casa para louvar a criança que iria

mudar o destino do lugar. Fiz oração para fechar o corpo para qualquer desgraça. A

alegria, essa sim! Tomou conta da praça. E todos nós nos tornamos de estudia valia.”

O desfecho trágico ocorre de forma simples e rápida. “É nascido morto o

Menino.” é a frase central da cena curta. Segue-se o choro da mãe e a formação de um

presépio, cujo centro é, não uma manjedoura, mas um caixãozinho. O narrador desfere,

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então, a frase mais forte do espetáculo “No sertão seu moço, rir antes da hora engasga.” Ele

apela aos espectadores de forma direta, um tanto didática, no sentido brechtiano57.“Nossa

vida é de seguidas forças, como quem pula a largura d’um buraco, ou como quem saca a

faca para reluminar no sol. Os olhos; esses ficam nos prantos e tudo a ser como era antes.

Esse é apenas o começo de um grande penar. Os Senhores nem precisam dizer nada. Eu já

sei. Vida é noção que a gente completa. Ele nasceu tão magro, tão descriado que até

parecia já ter prática de todos os sofrimentos. É preciso socorrer as infâncias do sertão e

os seus olhos. Cobertos de luto e tão necessários de vida. Porque são assim. . . Os olhos

mansos!” Luciano diz que “Os olhos mansos” são os olhos das crianças do Vale do

Jequitinhonha. São olhos indefesos e desprotegidos. Olhos que ignoram as engrenagens do

mundo.

O fim é um novo começo, um re-começo. Segue o mesmo canto de louvor à

morte de anjo da cena 1, “O cortejo”.

“Um anjinho ta na janela, dois anjinho ta na janela

Ta olhando o que passa (bis)

Na baetinha vermelha (bis)

Olha a saudade na praça (bis)

Há de estar com França e ser folião, para louvar este anjo ê (bis)”

Fredric Jameson (1999) diz que Brecht tendo a pretensão de tratar a

conhecimento como algo prazeroso, como algo não reificado, como algo desmistificado,

57 O teatro para Brecht passou a ter uma atuação pedagógica por necessidade e utilidade. Brecht defende o teatro épico contra o consenso geral de que existe uma grande diferença entre prazer e aprendizado. Observa que o desejo de aprender depende de várias condições, mesmo porque para diversas camadas do povo, o sentido de aprendizagem é diferente, e que, portanto, há várias possibilidades de unir o prazer ao conhecimento. “O teatro permanece teatro, mesmo quando é teatro pedagógico e, na medida em que é bom teatro, é diversão” (JAMESON, 1999, p. 99).

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tendo que ser inteligível, utiliza-se do componente didático. Então, Brecht se utilizou da

didática, ou seja, trouxe à luz o conhecimento captado pelas gerações anteriores, mas não

para que as pessoas repetissem o passado, e sim para que elas a partir dele, enfrentando os

desafios de seu tempo, as relações por elas vividas tais como são, usassem o conhecimento

criativamente. A cena produzida pelo Ícaros do Vale, compreendida enquanto sentido

metafísico de acontecimento brutal e espetacular (PAVIS, 2001) comporta essa noção de

mudança, de continuum. Tem-se que passar a “lição” sim, mas se trata da mudança na

continuidade. O fim do espetáculo é um novo começo, embora semelhante, não é o mesmo.

A morte é início e fim. Mas embora a repetição da morte da criança e o cortejo em seu

louvor sejam cena comum representada e vivida pelos personagens de “Os olhos mansos”,

a experiência torna os personagens mais complexos, são outros, sendo os mesmos. “A vida

é de seguidas forças” diz o narrador que inicia e finaliza a cena com palavras de Guimarães

Rosa.

Portanto, o caráter didático se traduz aqui no fato do Ícaros do Vale buscar unir

sensibilidade artística ao conhecimento capacitando o ser humano em sua vida cotidiana

embutir aquela vivência e experiência artística, transformando-o e capacitando-o para

outras experiências e vivências futuras. Produzir a vida e usufruir a vida. “A coisa em si” é

isso, o desenvolvimento das capacidades humanas de construir e de usufruir aquilo que se

constrói. A atividade humana é o meio inerente ao lento processo em que o útil se converte

em um fim em si. O didático implica que a própria atividade em si é também um dos traços

do conhecimento e da arte, na medida em que estes refluem em direção ao útil. Útil porque

dá, porque atende ao que os homens precisam - precisam de bens que em última instância

os façam felizes.

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2.2.4- Procedimentos técnicos utilizados: Assim como a maioria dos espetáculos produzidos no Jequitinhonha, não

apenas pela escassez de salas e precariedade dos espaços de apresentação, mas também pela

necessidade de “se ganhar o povo”58, tocar as pessoas afetivamente na sua vida cotidiana

para transformá-la qualitativamente, “Os olhos mansos” foi concebido inicialmente para

rua. A remontagem em 2003 implicou na mudança do espaço cênico, uma vez que a

complexidade das pesquisas de Luciano ganhava experiência sertão adentro, os diálogos e

compromisso com o “processo de vida real” do homem-jequitinhonha foram se tornando

mais elaborados, a cena impôs maior atenção dos espectadores, o que acarretou na

necessidade de um espaço fechado. Desta forma, a utilização do espaço cênico e os

elementos cenográficos são dados por alguns poucos objetos cênicos e adereços.

Foto: Cenário (fundo do palco) Fotógrafo: Neilton Lima

O principal elemento visual, adotado posteriormente como marca do

espetáculo, é o sol feito de palha, usado como resplendor dos personagens ao final do

58 “O teatro é arte transformadora. Ele modifica opiniões. Mostra a realidade lúdica e ao mesmo tempo nos convida a uma reflexão. O teatro no Vale tem sua magia e graça na cultura popular” Luciano Silveira em entrevista. Ver anexo.

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espetáculo. O objeto é, literalmente, uma das etapas da confecção de um balaio e a idéia

veio, segundo o próprio diretor, da observação do trabalho dos artesãos. Um balaio com

apenas o fundo confeccionado remete à imagem de um sol e também à imagem do trabalho,

a natureza transformada artesanalmente pelo homem. Seis desses sóis, e nada mais, formam

o árido cenário sertanejo, pendurados na rotunda negra do fundo do palco. Luciano havia

pensado em deixá-los suspensos e flutuantes, mas a ausência de varas nos locais de

apresentação nunca possibilitou essa concepção. Na última cena do espetáculo, são esses

sóis que, usados como uma espécie de resplendor, transformam-se na aura (ou auréola) dos

personagens. Este uso, quase que mitifica a imagem triste do velório final, criando um

presépio “às avessas”.

Foto: símbolo do Ícaros do Vale Fotógrafo: Neilton Lima Dois dos principais elementos cênicos do espetáculo “Os olhos mansos” (um resplendor e a asa de um anjo) acabaram se tornando símbolo visual do grupo, por remeterem à mitologia de Ícaro.

Outro elemento de extrema importância para o espetáculo é a asa angelical.

Confeccionadas com arame e tiras de pano, essas asas são elementos de fácil manipulação e

são usadas pelos atores nas cenas 2 e 5 para caracterizar os anjos. Asas semelhantes são

usadas pelos músicos que permanecem todo o tempo em cena, um de cada lado do palco. A

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presença constante de “anjos tocadores” empresta uma dimensão um tanto fantástica ao

espetáculo quando, por átimos, reparamos neles. Remetem-nos também às almas infantis.

Foto: Caixão decorado, banco e flores de Urucum. Fotógrafo: Neilton Lima

Quando o espetáculo começa, estão em cena um banco e, sobre ele, o caixão do

bebê natimorto. A delicadeza do caixão, branco decorado com pintura de flores coloridas,

contrasta com as flores que jazem no chão a seus pés: galhos secos com cascas abertas de

urucum. Tudo, neste árido cenário inicial, faz ver seca e calor. Não há flores frescas para a

despedida do menino morto. Da mesma forma, as flores que acompanham a procissão dos

penitentes na cena 7 são de alumínio.

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Foto: Narrador com oratório. Fotógrafo: Neilton Lima

O narrador que introduz o espetáculo traz na mão um oratório, elemento de forte

presença na cultura mineira. Pelo oratório em sua mão e pelo longo casaco que veste, o

narrador nos remete a um eremita, caminhante, sábio ou viajante, como o foi Guimarães

Rosa por paragens do sertão. A presença do oratório em suas mãos traz a convicção da fé

presente no espetáculo e por trás das coxias como elemento que permeia a vida deste e dos

outros atores. A história contada, com cunho didático, conta-se sob convicção cristã.

Outros objetos cênicos são introduzidos apenas na cena dos penitentes. Latas,

pedras, jarros. Todos pintados por uma artista local, com tintas feitas de terra. As pinturas,

figurativas, não são distinguidas pelos espectadores. Pequenas casas, veredas, gado, servem

apenas para o deleite dos atores e encaixam-se no cenário ocre da cena. Um grande guarda

chuva é aberto por sobre o quadro estático, que nos lembra um pouco as famílias retirantes

de Portinari. O guarda-chuva amarelo gira. É o sol e a roda da vida, movendo-se por sobre

“as seguidas forças” do homem-jequitinhonha., num continuum histórico.

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Foto: Luciano Silveira (a esquerda, maquiando um dos atores antes de uma apresentação de “Os olhos mansos”) Fotógrafo: Neilton Lima Luciano participa integralmente do espetáculo. Além de atuar, dirige a caracterização dos atores nos momentos anteriores à cena.

Foto: Thaís Gomes e Grace Matos maquiando-se para apresentação de “Os olhos mansos” Fotógrafo: Neilton Lima

Na impossibilidade de conseguir bons efeitos através da luz, o figurino dos

outros atores é responsável por pintar a cena de tonalidades ocres, vermelhas e terra

tingidos com tinta e terra colorida da cidade de Araçuaí. A caracterização é confeccionada

com base branca, que homogeneíza todo o elenco. Com exceção de Hermínia, que

permanece nesta palidez, tendo ainda um negro por volta dos olhos. Os outros atores têm a

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maquiagem completada por fortes e delineadas manchas vermelhas nas bochechas,

remetendo-nos a bonecos. A força das cores remete ao artesanato de barro do Vale, com

sua cores feitas de terra.

Ver os atores atuando é bastante instigante, desde a primeira vez que os vi e

principalmente depois da pesquisa de campo. Nenhum ator tem formação técnica nem

acadêmica, mas o cotidiano deles já é repleto de atividades artísticas.

É manifestação cultural da cidade de Araçuaí a festa do seu padroeiro, Santo

Antonio, é um dos marcos de participação de todo o povo, assim como a secular festa de

Nossa Senhora do Rosário, realizada na última semana de outubro, onde os tambozeiros são

um dos pontos altos das festividades da Irmandade dos Homens Pretos de Araçuaí. Dentro

da esfera das manifestações religiosas, em maio, as coroações em honra à Nossa Senhora

são uma tradição que vem sendo preservada, As Pastorinhas e as Folias de Reis são

presenças de extrema beleza durante o ciclo natalino. Além disso, encontra-se no calendário

de acontecimentos religiosos, a Semana Santa com seus quadros vivos, a festa de Corpus

Christi e a festa da Padroeira da Diocese, Nossa Senhora da Lapa, que ocorre na vizinha

cidade de Virgem da Lapa e que mobiliza grande parte de Araçuaí. Há também as fogueiras

no mês de junho que completam ainda a beleza das manifestações de caráter religioso,

principalmente na zona rural.

Todos os atores do Ícaros cantam em corais, todos dançam nas festividades

religiosas. Eles participam da vida social religiosa da cidade. Em Araçuaí, tudo funciona a

partir dos grupos culturais: as decorações, as músicas das missas, as festas juninas. Os

grupos se reúnem e dividem as tarefas. Eles participam de tudo, inclusive da limpeza do

Centro Comunitário. Por exemplo, para o tapete da procissão, eles é que vão conseguir os

cereais, as serragens, as tinturas. E fazem os desenhos que quiserem. “O padre só vai ver na

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hora de passar por cima”, diz Luciano. As pessoas do sertão costumam dizer que as

crianças que nascem no Vale já nascem cantando e dançando.

Existe um trabalho de preparação dos atores, principalmente na parte musical,

que é uma característica marcante do grupo. Todos os espetáculos do Ícaros são recheados

de canções e de danças, todas executadas pelos próprios atores e com percussionistas e

músicos, “ao vivo”, acompanhando. Isso faz criar momentos mágicos, daqueles que

arrepiam, palavra mais ouvida por mim de seus espectadores, porque as canções são sempre

muito bem colocadas no contexto do espetáculo e muito bem executadas. E, acima de tudo,

são canções quase sempre retiradas da cultura popular tradicional, re-vividas na cena; re-

experimentadas pelos espectadores.

A imagem da cena no trabalho do Ícaros inclui um trabalho de conjunto. É uma

cena que, tirando alguns momentos baseados no trabalho individual de alguns atores de

destaque no elenco, é feita de movimento coreográfico, dança, de fotografias, de cores e de

objetos. Este caráter espetacular oferece uma dimensão maior à cena e também supre a

deficiência do grupo, cuja grande maioria dos atores não têm uma técnica individual muito

desenvolvida.

Na parte mais específica da construção de personagem, os atores trabalham com

a sensibilidade fazendo surgir na cena a “experiência” do rico imaginário popular do sertão.

Os textos escritos por Luciano Silveira, cujos temas emergem da realidade em que eles

estão inseridos, promove total identificação dos atores, num fluxo vivo comum. Tudo o que

eles dizem através dos espetáculos é muito profundo, mas simples, ao mesmo tempo. Em

entrevistas realizadas com os atores, quando perguntei a eles sobre o que são os

espetáculos, eles responderam de forma simples e direta. “Os olhos mansos” é sobre a vida

e a morte, “História de pescadores” é sobre amor e traição. Mesmo que eles não entendam

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as várias possibilidades de explorar um texto e as ambigüidades das personagens, eles

entendem que o teatro é para falar das relações humanas.

Suas personagens são convincentes, pois partem dessa simplicidade cotidiana,

desses sentimentos compartilhados por todos eles. Existe uma vontade de tocar as pessoas

de forma também política, mas principalmente afetiva. Ainda que eles não pesquisem mais

a fundo as possibilidades de cada personagem, eles sabem, no fundo, o que existe para ser

dito. E claro que a convivência com as pessoas da região, com o homem-jequitinhonha é

fundamental para a construção de seus personagens, mas também o fato deles mesmos

serem sertanejos e viverem no Vale, num tempo onde ainda há tempo para se contar

histórias, de se ouvir histórias. Onde o apelo midiático existe, mas não esmaga a tradição e

a memória do espaço, onde vale a palavra, sem contratos, onde há luta pela terra, muitas

vezes sangrenta, onde as portas das casas ficam abertas madrugada adentro, onde a fé em

Deus é uma condição de sobrevivência e onde eles cantam as mesmas canções que seus

avós. Um lugar onde os maiores acontecimentos da vida das pessoas ainda são as paixões, o

amor, os filhos e a morte.

Uma vez, a Lenita falou uma coisa que me marcou profundamente. Ela tem uma

vida muito simples, trabalha de empregada doméstica, mora só com a mãe e a irmã num

bairro bem afastado. Eu perguntei se a mãe dela não se importava dela trabalhar o dia todo

e a noite ir para os ensaios do teatro e no final de semana ir paras os ensaios do coral. Ela

disse que sim, que a mãe dela perguntava “a troco de que ela fazia essa coisa de teatro”. Daí

ela respondeu que a vida era muito simples sem teatro. “Será que ela não percebe que a

vida não pode ser só isso?”

A resposta questionadora de Lenita a minha pergunta me fez lembrar Peter

Brook (2002, p.26), numa passagem de “A porta aberta” diz que nós vamos ao teatro para

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um encontro com a vida, mas se não houver diferença entre a vida lá fora e a vida em cena,

o teatro não terá sentido. Não há razão para fazê-lo. Se aceitarmos, porém, que a vida no

teatro é mais visível, mais vívida do que lá fora, então veremos que é a mesma coisa, e ao

mesmo tempo, um tanto diferente.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou discutir a “visão de mundo” e a cena da memória do grupo

de teatro Ícaros do Vale a partir de abordagens teórico-conceituais colhidas na História

Cultural, e nos Estudos político-culturais. A opção por uma metodologia lukacsiana

determinou que a pesquisa passasse fundamentalmente pelas categorias ontológicas do ser

social, a historicidade e a totalidade.

O compromisso com o “processo de vida real” do homem-jequitinhonha

presente na cena do espetáculo “Os olhos mansos”, e mais, este compromisso sendo re-

posto, desafiando seu continuum histórico ao se prestar “a sucessivas reelaborações”

(RABETTI, 1999), comporta a aplicação da estética lukacsiana no âmbito teatral.

Dentro desta perspectiva ontológica, a re-elaboração da memória viva do povo

sertanejo levada à cena a partir das pesquisas realizadas pelo diretor Luciano Silveira nas

comunidades rurais do Vale do Jequitinhonha e dos procedimentos técnicos utilizados,

demonstrou que o teatro do Ícaros do Vale, eleva-se, hoje, neste hic et nunc determinados, à

universalidade, embora vinculado a “representação” de uma particularidade. Tomou-se,

portanto, como eixo condutor da analise teórica o movimento dialético entre o particular e o

universal, tão bem utilizado nas formulações lukacsianas: as formas particulares do estético

contêm necessariamente a universalidade estética .

Ao analisar a cena do espetáculo “Os olhos mansos”, do Ícaros do Vale, e sobre

ela refletir teoricamente, amparada em campo teórico debruçado sobre as noções de “visão

de mundo”, “teatro popular”, “experiência” e “memória”, entramos em contato então com

as singularidades dos personagens típicos (as lavadeiras “tirando ladainhas” à beira do Rio

Jequitinhonha, a mãe que chora a morte do filho, as crianças que sonham com um Vale

diferente da realidade sertaneja, enfim, são alguns exemplos na cena de “Os olhos mansos”)

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e com a generalidade concreta da universalidade da relação entre classes (escrita no título

do espetáculo. “Os olhos mansos” são os olhos dos sertanejos, seus olhos infantis, que

resistem e se re-põem num continuum).

Luciano Silveira concentra na cena a relação entre seus personagens e a opressão

do meio em que vivem, ou melhor, opressão subjacente à classe subalterna a qual

pertencem, o que porta a relação do movimento dos “blocos de poder”, da possibilidade de

hegemonias, numa “totalidade contraditória”, comportando fissuras e seus deslocamentos.

Vemos a particularidade resolver, de um lado, a singularidade dos traços peculiares às

personalidades dos personagens, e, de outro, a universalidade que caracteriza a luta de

sobrevivência e resistência entre o referido movimento dos “blocos de poder”, num tempo e

espaço determinados, na cena contemporânea – “peça acumulativa” -, resultado, sempre em

movimento, do “modo de produção artística popular” do Ícaros do Vale.

Contudo, pretende-se aqui, que este trabalho seja um elo na cadeia-processo de

pesquisas acerca das manifestações artísticas do Vale do Jequitinhonha, e que fortaleça

essencialmente seu teatro popular e, por extensão, o teatro popular brasileiro.

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FONTES DOCUMENTAIS

Imagens em vídeo coletadas no acervo do grupo Ícaros do Vale:

Espetáculo “Os olhos mansos”, 2006. 1 dvd (55 min.).

Espetáculo “Os olhos mansos”, 2003. 1 fita VHS (55 min). Espetáculo “História de pescadores”, 2006. 1 dvd (1h).

Reportagem da TV ARAÇUAÍ sobre a estréia de “História de pescadores”.

Reportagem da TV ARAÇUAÍ sobre o espetáculo “Os olhos mansos”. Reportagem da TV ARAÇUAÍ sobre o coral Araras Grandes. Documentário Nas trilhas do grande sertão: Rio, trilhas e caminhos.

Áudio

Entrevistas

Entrevistas realizadas entre os dias 13 e 28 de janeiro de 2006 - pesquisa de campo - com: Luciano Silveira, ator e diretor do Ícaros do Vale, Araçuaí, Vale do Jequitinhonha, 15, 16 e 17 de janeiro de 2006. (3 fitas cassete - 90 min.) Por Anna Esteves. Zé Pereira, produtor do grupo Ícaros do Vale e secretário de cultura da cidade de Araçuaí. Araçuaí, 17 de janeiro de 2006. (1 fita cassete – 60 min.) Por Anna Esteves.

Dener Peter, diretor musical do Ícaros do Vale. Araçuaí, 16 de janeiro de 2006. (1 fita cassete – 60 min) Por Anna Esteves. Geralda Martins, pesquisadora das culturas indígenas do Vale do Jequitinhonha. Araçuaí, 20 de janeiro de 2006. (1 fita cassete – 60 min) Por Anna Esteves. Lira Marques, artesã e pesquisadora do Vale do Jequitinhonha, Araçuaí, 20 de janeiro de 2006. (1 fita cassete – 60 min) Por Anna Esteves. Niuxa Dias Drago, Araçuaí, 18 de julho de 2006. (1 fita cassete – 60 min) Por Anna Esteves. Mauro Alves Santos Filho, Paris, 20 de abril de 2006. (1 fita cassete – 60min.) Por Anna Esteves.

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Imagens fixas digitais

Fotos da estréia do espetáculo “História de pescadores” no dia 14 de janeiro de 2006 na cidade de Araçuaí. Por Anna Esteves. Fotos do espetáculo “Os olhos mansos” durante o 23º Festivale, na cidade de Salinas, no dia 23 de julho de 2004. Por Anna Esteves. Fotos do espetáculo “Os olhos mansos” durante o Festival de teatro da cidade de Araçuaí, em maio de 2006. Por Neilton Lima. Fotos da cidade de Araçuaí durante pesquisa de campo. Por Anna Esteves.

Fontes escritas

Diário de campo: comentários, descrições e anotações acerca da pesquisa de campo. Araçuaí 14/01/06 a 28/01/06. Por Anna Esteves.

Anotações de Luciano Silveira sobre a história do grupo Ícaros do Vale.

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ANEXOS ANEXO I – Texto do espetáculo “Os olhos mansos”

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OOOOOOOOssssssss OOOOOOOOllllllllhhhhhhhhoooooooossssssss MMMMMMMMaaaaaaaannnnnnnnssssssssoooooooossssssss

Luciano de Souza Silveira (Com citações do Livro Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa)

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Cena 1 : O cortejo

Ator 1: Senhoras e senhores, nesta noite de lua; vamos louvar a vida, vamos saudar a morte. Desse povo brasileiro, desse vale de alegria. O espetáculo que se apresenta é de pura realidade. De pessoas que morrem sem morrer, sem nem saber o porquê. Para conseguir ser feliz, o povo labuta na esperança de um novo mundo. O senhor mire e veja. Os olhos mansos que aqui passarão são os filhos e filhas de Nossa Senhora que choram aos pés do senhor. E são esses olhos que, sofrendo, mergulham em cantos e também regalias. Feito rezas de crianças, feito cocos e folias. E vejam bem os olhos mansos, neste espetáculo que se principia.

(Entra o cortejo cantando: um canto de louvor à mor te de um anjo: ( Lá +)

Um anjinho ta na janela, dois anjinho ta na janela Ta olhando o que passa (bis) Na baetinha vermelha (bis)

Olha a saudade na praça (bis) Há de estar com França e ser folião, para louvar este anjo ê (bis)

(Entra a atriz 1 gritando, os demais atores olham e voltam a cantar)

A mãe do anjo sai lá de fora no salão (bis)

Há de estar com França e ser folião, para louvar este anjo liana ê (bis) Atriz 1 : Meu filho, não deixe a sua mãe chorando minha ternura. Não vai embora minha criança. Hoje você se torna uma estrela no infinito do Pai, mas deixa aqui em mim, toda uma constelação de sofrimento. Meu menino. Ele ainda está tão quente. Por que meu Senhor? Por que fizeste isso comigo? Justo eu que por sete meses aguardei a vinda do meu anjinho. Atriz 2 : Ninguém entende ou conseguirá entender a dor que uma mãe sente, quando perde uma criança.

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Atriz 3 : A morte vem como passo de travessia marcada. Ela salta por estas bandas, como os meses da seca e da chuva. Ator 1 : Coitada de Emília. Ela amava esta criança, como se já estivesse viva por muitos anos. Atriz 4: Vê como chora? Ator 2 : Cavalo que ama o dono até respira do mesmo jeito. Ator 1: A morte anda cada dia mais perto. Só este mês foram quatro crianças e um adulto. A cada dia se aprende uma qualidade nova de medo. Atriz 1 : Hoje ele chora. Está calado, como as rosas e as estrelas. Seus olhos brilham. Mas não com a mesma luz. (2 atores pegam o caixão e saem ). Não leve meu anjo, não. É ele que eu tenho. Ele vai ficar comigo. Ele vocês não levam. Deixe eu olhar para ele pela última vez. Não!

(Sai o cortejo cantando: Com minha Mãe estarei.)

Com minha mãe estarei, na Santa Glória um dia. E junto a Virgem Maria, no céu, com minha mãe estarei (bis)

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Cena 2: Estrelas e Anjos Atriz 1: É, agora é aceitar. Vou tentar entender a sua morte. A morte é como um rio, não tem coisa de pasmar. Pois não há rio, nem regato, que no mar não vá parar. Ele agora chega no céu. Viver aqui é um descuido prosseguido. Atriz 2: É difícil entender a morte. Quanto mais assim. . . tão nova. Ela vem nos lares mais humildes, onde a luz da lua é a única claridade do lugar. Morte nova. Mas crianças não morrem, viram estrelas. E . . . . seus olhos viram estrelas para ficar mais perto de Deus. No céu tem festa todo dia. A noite desce e encobre as almas que voando procuram sonhos. Não são lidas as incelências. A serenata é a própria morte anunciada. Por aqui passam anjos. Por aqui passam estrelas. Eles passam e ficam como eu que procura outros anjinhos pra levar aos pés de Deus. Ator 3: Dizem que Nossa Senhora encontra debaixo dos laranjais muitos anjinhos, arrancando flores brancas, brancas pra lhe dá. Em um sorriso assim, meio que nuvem. Ela perguntará às vidas novas e já mortas porque estão a chorar. E eles responderão: Ator 2: É a fome que nos traz aqui. Atriz 3: Tu bem sabes, pois meus ossos podeis enxergar. Ator 3: E os olhos, com esta anunciação, começarão a chorar. Por isso é que eu digo: Remai, remai, remadores, que estas águas são flores. Vejam bem águas novas, nestas faces que acabam passando quase que despercebidas. Olhem para os pés e lembrem, por assim dizer, de suas vidas. E veja se a morte é válida neste espetáculo, meu céu . . . Atriz 2 : Meio lua. Atriz 2 ator 3: E meio vida.

(Atriz 1 canta e ator 3 junto com atriz 2 repetem ) Lá no céu tem uma estrela, perfeição da maravilha.

Os anjos no céu celebra, vida nova todo dia.

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Cena 3: Lavadeiras Ator 1 : Mas nem tudo consiste em melancolias. O povo vive: mire e veja o seu dia a dia. Essas são as mazelas do Vale, com seus cantos mortuários, seus langues e seus acordes. Esse é o sertão onde manda quem é forte, com astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado. Já estamos à beira de um corguinho onde essas cenas de vida e de morte se passam. Onde o povo sabe cantar. Já começo a ouvir o canto das lavadeiras, as lavadeiras são cena comum neste lugar.

(Entram lavadeiras cantando / Na beira do Calhauzin ho)

No dia que estou danada, na beira do Calhauzinho, Meu benzinho quer me buscar, está com medo de mim.

Chora morena, chora morena, chora morena, quando ce for, ce me leva morena (bis)

Mulheres quando se ajunta pra falar da vida alheia, Começa na lua nova e termina na lua cheia.

Chora morena, chora morena, chora morena, quando ce for, ce me leva morena (bis)

Ator 3: Pobre sofre por aqui. Cada dia é roupa e mais roupa para lavar. Ouvindo esse barulho de rio que aparece não mais acabar. Esse barulho chega a me dar medo. Atriz 2: Deixe de bobagem, você não vê que nada disso significa nada. O rio apenas segue o seu destino. Ele sai do fundo da terra, vai cobrindo caminho e criando forças com as águas de outros rios e córregos. E assim dá vida por onde passa. Até morrer no mar. Quando deságua. Como é bonita a vida de um rio. Ator 3: Nós ainda temos sorte em ter esse córrego. Tem lugar por aqui, que não tem nada de água. Para encontrá-la você deve levar. Atriz 2: O que será que Josualdo tem? Ultimamente anda tão carrancudo. Parece vagar por outros mundos. Atriz 1: É saudade. Toda vez que ele vem aqui, ele se lembra de Otacília. Ela morreu aqui perto. Ela foi a única mulher que ele amou. E assim ele fica triste, toda vez que vem aqui. Dizem que morreu de doença de chagas.

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Atriz 2: É, isso é saudade mesmo. Toda saudade é uma espécie de velhice. E ter tristeza é mortal. É cumprir choro e doidera em juízo. Mas, Hermínia, eu queria te falar uma coisa... Atriz 1: sobre a procissão. Atriz 2: É. você viu? Que tristeza! Ator 3 : Eu também vi uma procissão hoje de manhã. Ela era sensata enchendo a estrada de poeira com barulho das alpercatas. As velhas tiravam ladainhas. Rezavam, indo da miséria para a riqueza. Atriz 1: O cortejo dava parecença com uma festa. Aqui até enterro comum vira festa. È melhor mudarmos o rumo dessa conversa. Quem muito fala da morte, chama sem querer ela pra si. Atriz 2: Há mais de um ano que não nasce uma criança saudável por estas bandas. Só doente e fraca. O povo agora até evita ter filho, porque assim evita sofrimento. Seria tão bom se nascesse uma criança que vivesse. Assim acabaria com esse mau agouro. Atriz 1: Eu preciso falar uma coisa. Eu estou grávida. Atriz 2: Você ta embuchada? Ator 3: Você ta prenha é? Atriz 1: To. Ator 3: Eu sabia que a vida ia vencer. Isso deve ser festejado e anunciado por todos. Afinal de contas, não é todo dia que se tem uma notícia dessas. Ator 1: Mente pouco, que a verdade toda diz. Agora os malguardos do sertão se encerram. O sertão é sem lugar. Mas o sertão é traiçoeiro. Se alguns morrem, é porque o morto morrido não sofrerá mais.

Música: Noites do sertão

Não se espante assim seu moço. Com as noites do meu sertão. Tem mais perigo que é poesia.

Do que o jogo da razão. Atormenta e gera estórias, é tão viva quanto sol.

Ator 1: Mire, afinal de contas é uma vida e seja ela qual for merece festa. O sertão é a grande arma e Deus é o gatilho.

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Atriz 2: E você, Hermínia, foi abençoada e batizada em três noites de lua cheia. Isso dá a entender que você será iluminada. Ator 3: Invejo sua criança e abençoou vocês duas. Mesmo que viver seja muito perigoso, a vida assim começa por principiar. Ator 2: Vai nascer uma criança. Atriz 3: E é um menino. Atores 1, 2 e 3: Então vamos louvar esse menino!

(Todos cantam a música: Batuquinho de Presépio)

Refrão: Oi dão, dão, dão doe (bis). Vamos dar louvor esse menino (bis) Esse menino diz que tem (bis) é um pezinho de alecrim (bis)

Ator 1: Eu pedi ele um gainho. Ator 2: E ele te deu o galho? Ator 1: Ele me deu gaio e meio. Todos: ele te deu gaio e meio. Esse menino diz que tem (bis) É um pezinho de coco. Ator 3: Eu pedi ele um coquinho (bis). Ator 1: E ele te deu o coco? Ator 3: Ele me deu coco e meio. Todos: Ele te deu coco e meio. Esse menino diz que tem (bis). É um pezinho de cana (bis). Ator 2: Eu pedi ele um

gominho (bis). Ator 3: E ele te deu o gomo ? Ator 2: Ele me deu gomo e meio. Todos: Ele te deu gomo e meio.

(Todos saem e só ficam atores 1 e 2 junto com a atr iz 3)

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Cena 4: Seca e penitências Atriz 3: Mesmo com a vida assim por nascer, outros problemas ainda dão pra ver, e o maior deles é a seca; seca marcada de fome. De fome! A plantação é dizimada. E quando o povo espera vir a chuva, vê que na verdade não vem nada. Queria eu tomar banho de chuva. . . Atores 1 e 2: Eu também quero tomar banho de chuva. Atriz 3: E assim poder ter a alma lavada. Ator 1: Mas vê? As nuvens estão quietas, muito quietas. Eu ainda hei de ver um grande rio com ponte. E vai ser o nosso. Ator 2: Só quando se tem rio fundo ou cava buraco é que a gente por riba põe ponte. Êta vida de malfazejo! Ator 1: A nossa vida só assim, porque é mutirão de todos. Por muitos remexida e temperada. A gente teme pela vida, mas é pela vida que a coragem se faz. Bem-te-vi! Ô Bem-te-vi. Chega aqui. Ta vendo só o tamanho do mundo? Ta vendo só essa chapada. Isso tudo aqui verde não haveria maior boniteza. Ator 2: O tempo carece é de penitência. Assim vai a procissão com latas d’água e pedras na cabeça. As pessoas vão depondo suas pobrezas e desgraças. Deus deu para nós um brinquedo que é o mundo. Atriz 3: Aqui agora as coisas vão melhorando. Com o filho de Hermínia prestes a nascer, a vida do lugar vai criando forças. Ela é mesmo uma mulher de sorte. Ator 1: Sorte é isso; merecer e ter. É com as estiagens. Ninguém escolhe o dia. Ela vem mesmo a gente não querendo. Música: Penitência – Ó Deus pai do céu!

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O meu pai do céu, que de nós tem dó! Que seca ta grande e já está tudo em pó (bis) Ôôôô

Ator 3: Do jeito que as coisas vão, será necessário fazer mais penitências para chamar a chuva. Como aquelas mulheres que estão ali, tirando oração. Nós também devemos tomar parte no confronto da religião. Assim ficamos fortes para Deus e não tarda aí sim vem a chuva. Ser forte é parar quieto, permanecer. Ator 2: Vê as lavouras, todo trabalho perdido por desando das chuvas temporãs, do sol grave e das doenças sucedidas. Atriz 3: Então rezemos para as Nossas Senhoras Sertanejas. E coloquemos as orações na intenção das águas finas das chuvas e no ar dos ventos. Peguemos nossos rosários, pedras e água e lavemos o nosso cruzeiro em louvor aos nossos anseios.

(Saem cantando) Ator 3: E assim morrem os anjos Claro que alguns desmerecem a sorte da morte. Mas é assim mesmo. O prazer do sertão é viver em constantes sofrimentos. (sai) Atriz 1: Quando não é a seca é a morte que, mesmo tão presente, ainda não tira alegria de nossa gente. Vou seguir meu caminho pra casa. Pois o sol já vem, tombando pra o entrar das chuvas. Chuva e vida é ter promessa cumprida. Esse é o poder da oração.

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Cena 5: Anjos Ator 2: Como andas? Ator 3: Com as pernas, né, seu besta. Ator 2: Claro que é com as pernas! Com a mão é que não ia ser. De que morreste? Ator 3: De mal de sete dias. Ator 2: O que é isto? Ator 3: Tétano no umbigo. E você? Ator 2: Eu? Ator 3: É, você. De que morreste? Ator 2: Caganeira mesmo. Tomei muito leite e aí não agüentei. Caguei até os oios revirar e o bucho estrebuchar e aí, morri. Meu irmão morreu de pneumonia e outro irmão mais velho que eu, morreu porque minha mãe não se alimentou bem durante o tempo de gravidez. Ator 3: Meu irmão morreu, porque escorpião mordeu minha mãe antes do parto. Enrolaram ele num pano e enterraram ele numa caixa de papelão. Resolveram não cantar nada. Mas eu acho que ele morreu foi por outros motivos. Ator 2 : Pois quando morri, foi assim. Como a minha casa ficava muito afastada das cidades, as crianças morriam por qualquer motivo, porque os partos eram feitos em casa. E como sempre fomos pobres, não tínhamos condições de fazer tratamento fora e aí acabava morrendo.

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Ator 3: Eu me lembro de sua morte! Vestiram você de azul e sua mãe passou a mão nos seus olhos para que eles se fechassem. Enfeitaram você com flores de papel não foi? Ator 2: Como é que você sabe? Ator 3: Eu era o seu irmão mais velho.

Ator 2: É mesmo, a quanto tempo. Desde a minha morte que eu não te vejo.

(cena em câmera lenta de abraço). Ator 3: (Se afasta) Eu tenho uma coisa ruim para te falar. Ator 2: Ah! Meu irmão pode falar. Hoje estou tão alegre que estou preparado para tudo. Ator 3: Nosso pai morreu. Ator 2: (gritando) Meu Deus, como você me dá uma notícia dessas? Ator 3: De emboscada, por causa de urnas terras que ele tinha. É engraçado, como tem gente neste aborrecido mundo que mata o outro só pra ver alguém fazer careta. Ele vinha em um caixão feito às pressas por estas estradas. E por ser um homem bom, nós, os anjos, devemos levar a alma dele. (cena mostra o medo dos anjos, atores cantam ao fun do incelências e entra

em cena o ator 1 que representa o país dos anjos.)

Incelências

Deus quer levar, deixa levar, é pra nos consolas (4x) Nós era irmão, adeus irmão, adeus irmão, adeus irmão, inté o dia do juízo. Nós era dois irmãos, adeus irmão, adeus irmão, adeus irmão, inté o dia do juízo.

Uma incelência, dizendo que a hora é hora Ajunta os carregadores que o corpo que ir embora.

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Cena 6: Meninos (Oi Sú Neném)

Ator 3: Estou aqui a pensar nessa gente e versar estrada onde o vento vem do poente. Mire e veja o que é a sorte. O povo volta a sua lida, esperando o nascimento de uma criança que pode mudar a rotina do lugar. Ator 1: Talvez a esperança da vida seja uma farsa. Mas, se for fars, Ela, a morte, disfarça. O sofrimento é continuação inventada. Tudo que sucede em nossa estrada é vingança. E vingar é lamber frio o que o outro cozinhou quente demais. Ator 3: Deixe de arrelia. Finalmente depois de tanta morte vem chegando a vida. Céus estrela e lua poderão com a vida mostrando a vida em raios de luz. Ator 1: Então podemos até comparar a importância desse nascimento, com aquele, do menino Jesus: Música: Oi Sú Neném!

Oi sú, ou sú neném. Quem é a mãe desse neném (bis)

Oi sú, ou sú neném. Tome esse neném pr’ocê (bis)

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Cena 7: Rosas Atriz 2 : Está chegando a hora. Mal consigo esperar para Ter essa criança aqui junto de nós. Atriz 1 : Nem fale. É como se eu já tivesse ele aqui, nos meus braços. Ator 3: Eu sinto a mesma coisa que vocês. Mas tem algo que me aperta por dentro. Atriz 1: O que é? Ator 3: Não sei. É um aperto tão forte, que até tenho medo de que seja. Atriz 2: Deixe de assustar Hermínia, criatura, e ficar jogando má sorte onde não tem: Seu filho vai nascer. Tudo que é bonito é absurdo. Ator 3: Não fique tão alegre Hermínia. Você sabe que aqui as crianças são como as rosas, nascem, se abrem, mas também morrem. E o destino é ficar manso pra morte. Mas vamos esperar. Tudo que é lida, merece prazo resumido para ver no que vai dar.

Música: Quando a rosa nasceu! Lá.

Quando a rosa nasceu um anjinho apareceu! (bis) Quando a rosa se abriu um anjinho no céu chorou! (bis) Quando a rosa murchou um anjinho no céu chorou! (bis)

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Cena 8: Anunciação do Nascimento Ator 1: Meus caros companheiros, as casas agora viram platéias e nós todos nos tornamos embaixadores nesta jornada. Digo, desligo e redigo. Esse menino é uma rica prenda, proclamada em um reino de incertezas. Com o sinal da Cruz armada, Deus proteja essas casas. E que essas mortes sumam, pois a esperança, neste momento reluz. Arre águas, aguarias. Que Hermínia já sente as dores para o começar de uma nova vida. Louvado seja honra dessa gente. Ator 2: Ta chegando a grande hora; pra alegrar o menino que vem! Uma cabra toca o sino; o sabiá já se esgoela de tanto cantar. E a galinha põe o ovo que já vai servir para o almoço. Eu tenho certeza de que, com esse nascimento, as coisas deste lugar irão se resumir, em toda a sua tristeza. Tem algumas pessoas com medo. Mas o medo resiste em si de muitas formas. Atriz 3: O que o povo tem, na verdade, é medo, medo da morte. Ator 1: A vida é passagem. A morte é uma viagem. Ator 3: Todo mundo já canta para aquele que vem chegando. Atriz 3: Até os anjos da guarda se portam para essa vida que tem grande importância. Nem é necessário ação de voz para se perceber isso. Ator 3: Quando uma criança nasce, meu Senhor dono, o mundo torna a começar. Atores 1 – 2 e 3 cantam a música: Disparada

Prepare o seu coração, pra as coisas que eu vou contar Eu venho lá do sertão (3x) E posso não lhe agradar.

Aprendi à dizer não. Ver a morte sem chorar. E a morte o destino e tudo (3x) Estava fora de lugar.

Eu vivo pra consertar.

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Ator 2: Eu já estou tão alegre com esse acontecimento que já começo a ceder lágrimas. Agora a gente revira esse sertão ao contrário. Ator 3: É vamos todos mostrar para a vida que nós aguardamos a vinda dela. Ator 2: Vamos. Todos já estão chegando para acompanhar de perto esse milagre. Cheguemos na casa dela cantando e dando forças para Hermínia que já entrou em dor para a chegada do menino. (pega o par dela esquerdo) Música – Dão dão – doê!

Oi dão dão dão doe (bis) Vamos dar louvor esse menino (bis);

Oi quem sair com esse menino (bis) Ocê saí com ele devagarinho(bis)

Pra livrar de trupicão (bis) Oi o buraco no terreiro (bis)

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Cena Final Ator 1: A noite era boa de boa claridade. Luar como naquela noite, só o sertão viu. E o povo virou água ficando como um rio que não quer ir à nenhuma parte. Todos queriam somente chegar. Chegar para a esperança. A folia entrou na casa para louvar a criança que iria mudar o destino do lugar. Fiz oração para fechar o corpo para qualquer desgraça. A alegria, essa sim! Tomou conta da praça. E todos nós nos tornamos de estudia valia.

(Som de criança (choro)). Ator 1: De repente. . . Atores 2 e Atriz 3: Ó meu Jesus, perdoai, livrai nos do fogo do inferno. Levai as almas para o céu e socorrei principalmente aqueles que mais precisarem. Ator 3: (mostra a criança) – É nascido morto o Menino. Ator 1: Deus é muito contrariado. Mire e veja. Aqui as esperanças se acabam e o mundo volta a ficar cinza para a vida. No sertão seu moço, rir antes da hora engasga. Nossa vida é de seguidas forças, como quem pula a largura d’um buraco, ou como quem saca a faca para reluminar no sol. Os olhos; esses ficam nos prantos e tudo a ser como era antes. Esse é apenas o começo de um grande penar. Os Senhores nem precisam dizer nada. Eu já sei. Vida é noção que a gente completa. Ele nasceu tão magro, tão descriado que até parecia já Ter prática de todos os sofrimentos. É preciso socorrer as infâncias do sertão e os seus olhos. Cobertos de luto e tão necessários de vida. Porque são assim. . . Os olhos mansos!

(Voltam a cena inicial do cortejo)

FIM

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ANEXO II – Texto do espetáculo “História de pescadores”

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ANEXO III – Entrevista com Luciano Silveira Entrevista com o ator e diretor do grupo Ícaros do Vale

Como foi feita a pesquisa que serviu como fonte de repertório para o espetáculo “Os olhos mansos”? Luciano - Foi um pouquinho de várias cidades. A parte da mortalidade infantil foi toda feita em Chapada do Norte, com os cantos de anjos, os cantos de louvor à morte (de anjo e incelências). A parte de lavadeira já foi feita em Coronel Murta, uma parte em Araçuaí também porque lá é mais forte essa questão do canto das lavadeiras. Então, em um trabalho com um grupo de teatro em Itaporé, que é um grupo de teatro que foi criado por mim... que esses grupos eu crio junto com os adolescentes. Que são atendidos pela instituição. E aí a gente faz um trabalho meio que de resgate cultural da cultura local. Se tem lavadeira, se tem folia de reis, se tem congado, batuque, o que tiver. A gente começa a descobrir... é tipo um mapa mesmo das manifestações locais e a gente começa a andar, a pegar essas manifestações e transformar. Essa pesquisa que é realizada diretamente com as pessoas envolvidas a gente transformar em cenas, traz isso para o teatro. E devolvemos depois para as comunidades onde foram realizadas as pesquisas. Aí boa parte desse trabalho, pra não ficar solto, pra não ser uma coisa só de um dia, dois dias... porque é associação, né... as crianças elas (têm o projeto) de teatro, já entra pra capoeira e depois pra computação... então são vários projetos por meses, mas cada mês tem uma turma, de quatro em quatro meses. Tem uma turma diferente. Aí esse trabalho de pesquisa é todo utilizado também no coral das crianças, que eu utilizo, e também no Ícaros para os espetáculos e fora que o próprio Fundo Cristão que tem o seu acervo também, da pesquisa da cultura. E como se deu esse trabalho? Você chegando em Coronel Murta... me conta como foi... É o seguinte: Chega lá na cidade... cada ano escolhe alguma unidade. A hora que eu falo que o trabalho está pronto aí eu já vou pra outra comunidade. Porque cada instituição, ela atende um número de comunidades. Virgem da Lapa é que tem o maior número de comunidades rurais. E aí eu chego lá, já existe um grupo formado, já atendido há muito tempo pela associação... já é uma coisa mais organizada... já tem alguns lugares que já tem até espaço como creche, casinhas de cultura, tem também salas de reuniões, tudo pronto. Aí é feita uma reunião com a comunidade falando o que vai ter no projeto... de 4 em 4 meses se leva alguma coisa diferente. E aí eu vou e começo a trabalhar com técnicas de teatro, de técnica vocal, de expressão corporal, de circo... e depois disso, de fazer essa sensibilização e preparação também, nós vamos pra pesquisa de campo... com as pessoas da comunidade. Mesmo que aí eu já conheço as pessoas da comunidade, eu já sei mais ou menos até o que tem lá... o que seria mais interessante pra aquela região, pra ta montando. Daí você chega lá e as pessoas já estão sabendo que vão ter essas oficinas. Então elas se inscrevem? Como funciona? Se inscrevem... é livre. Desde que sejam atendidos pelo fundo cristão. Mas na maioria das vezes, quase que toda comunidade é atendida. E mesmo... tem pessoas que é assim... começam a

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participar mesmo não sendo atendidas, e elas não são excluídas, elas continuam no grupo se elas quiserem. Ela não vai ter o benefício de apadrinhamento, no caso que as outras crianças têm... que são dinheiro que vem do exterior e tal. Se ela já sabe que ela pode continuar no grupo mesmo não sendo apadrinhada, a maioria continua. (se continuou, se não sai não). É livre. A comunidade não quer excluir ninguém. E essa pesquisa que você faz, como se dá? Quando você vai pra resgatar essas manifestações culturais dessa comunidades... para fazer um trabalho com a própria comunidade, e depois retornar isso para eles... pra comunidade... como funciona? Os olhos mansos mesmo, eu montei um olho, um olho pequeno, um olho meio mais manso... Então eu pesquei algumas coisas quase com eles e eles apresentam até hoje. A minha tia trabalha em uma comunidade, ela é professora de matemática, e alguns alunos, que alguns alunos não estudam a oitava série lá numa comunidade chamada Santo Inácio. E aí ela falou que até hoje eles apresentam Os olhos mansos. Que é um esquete bem assim... não tem figurino...mas a roupa do grupo mesmo, a blusa... é um uniforme que eles usam alguns materiais que sejam produzidos dentro da comunidade mesmo. Aí tem um caixãozinho, e só tem a primeira cena dos olhos mansos. Só que a primeira parte : “Nessa noite de lua vamos cantar, vamos louvar a criança”, em vários blocos de pessoas. São 5 pessoas falando ao mesmo tempo. E eles buscaram, dentro da comunidade, uns personagens da comunidade. Então quem assistia via ele lá apresentando. Porque eu pedi pra eles irem na casa, pra olhar como a pessoa falava, como é que ela andava, é um trabalho de mimese corpórea mesmo. Aí as pessoas se viam, choravam, se emocionavam, porque falava: ah, meu filho morreu já tem não sei quantos anos... e tal. Eram as histórias deles mesmos. Eu tentei levar pra o palco. No dia que foi a estréia do grupo, a gente chama de encerramento... é como se fosse um espetáculo de formatura pra eles, então a comunidade toda, os meninos... lá é uma região muito árida, tem a água, mas é árida a terra. Então eles foram lá e arrancaram bambu, enfeitaram toda a creche... que a creche era da prefeitura na época em que emprestou o espaço. Enfeitaram, aí fizeram balão, e mataram porco, foi uma festa na comunidade. Aí apresentou e as pessoas se emocionaram. No mesmo dia foi a entrega do certificado do curso de resgate folclórico das senhoras. E é engraçado, uma coisa que me surpreendeu em Sampaio, que eu comecei a trabalhar lá e tem uma certa resistência. Porque era uma comunidade que sempre se reunia. Mas como veio a luz elétrica, aí o pessoal começou a ficar em casa assistindo televisão. Assistiam Ratinho. Ninguém segurava o povo na hora do Ratinho. Aí o que aconteceu? Eu comecei a reunir as pessoas e a cantar e essa comunidade não tem mais nada, é 40 quilômetros distante de Chapada do Norte, é mais próxima de Peri do que de Chapada, e o pessoal começou a ir, porque começou a ir mais gente, começou a fazer barulho...lá... e tinha gente de outras comunidades que andava 10 quilômetros pra ir pro grupo. Andavam. Tinham pessoas de 5 quilômetros que andavam no escuro, com lanterna, eles iam com lanterna...pra ensaiar no grupo que chama Zabelê. Que é um pássaro muito comum lá. É uma coisa que eu peço também é que o nome seja de alguma coisa da comunidade. Que é uma coisa que eles têm la. Tem vários outros... O grupo de teatro chama Pilão por que lá tem um enorme pilão que era da comunidade de um moinho que tinha lá e tinha esse pilão no moinho. Aí colocou o nome do grupo Pilão. Então é assim que é feito o trabalho, e na maioria das vezes continua. Tem um grupo em Coronel Murta que continua, que já fez uma pesquisa sobre Ouro Fino mesmo, uma comunidade. Eles pesquisaram toda a história de Ouro Fino, do garimpo, que lá tem muito garimpo de pedra preciosa...Aí algumas pessoas elas morre no túnel soterradas... algumas ficam 20 anos caçando pedra e não acham nada...alguns compram carro, moto, porque já achou

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muita pedra... então, contando a história, qual material que usa né... porque que eles estão nessa vida, porque não tem de outra coisa... o trabalho é todo feito mais de entrevista mesmo, de ir na fonte e depois transformar. Aí a gente fez adaptação, da hora que tem a cena lá do garimpo de Ouro Fino, aí eles começam “Quem te ensinou garimpeiro...” que é uma parte do jequiticanta que tinha, que eu mostrei pra eles um pouco. Falei do Jequiticanta. Aí tem uma outra coisa que... uma outra música que eles cantavam, que fala assim “A minha pedra morena / saudade, saudade / Eu vou e não sei se eu volto / Saudade, saudade / Mas se você quiser morena / Me leva para a cidade”. E cantava essa música os garimpeiros. E até hoje isso é muito forte lá em Ouro Fino. Vem pessoas de Valadares pra comprar as pedras lá. Nessa região que mexe com pedra em Teófilo Otoni. As pessoas arriscam a vida por nada. Quase nada. Esse foi o trabalho pelo fundo cristão em Ouro Fino? Em Ouro Fino que já é Coronel Murta. Então lá em Coronel Murta tem essa questão do garimpo, das lavadeiras, que você buscou também... Esse grupo Batuque existe até hoje. Grupo Batuque. Que os (pais) de lá, eles usavam... os (pais) na verdade já tinham um grupo de batuque. Só que o Grupo de (Pais) já tinha o batuque mas não tinha o nome. Aí colocou Grupo para-folclore como Mandu. Mandu é o nome do rio que secou lá no passado. E é para-folclore porque eles pegaram umas músicas tudo de trovadores, que cantam, porque tinha fitas, cds, eles cantavam já. Antes de eu ir, esse grupo já era formado. E tem um rapaz lá também que foi para o Paraná trabalhar um tempo e aprendeu muita coisa no Paraná e trouxe. Aí começa a existir a mistura de região, de cultura. Mas só músicas folclóricas que eu li um pedaço e fiz adaptação dele... de algumas coisas. Tinha uma fala assim: “Ô ferreiro bate-bate / oi iaiá / No sertão do Paraná / Ô iaiá / Vou casar com essa morena / Pra aprender balancear / Vou casar com essa morena / Pra aprender balancear / Edição de vagabundo oi iaiá / É gostar de travesseiro oi iaiá / Depois fica de olho gordo / Em cima do meu dinheiro / Depois fica de olho gordo / Em cima do meu dinheiro.” É assim que eu trabalho com as comunidades. Lá em Francisco (Badaró) agora, eu estou trabalhando pela prefeitura. Prestando serviço pra prefeitura pra um grupo de agentes jovens que é um programa do governo federal. Desde a época do Fernando Henrique Cardoso que foi criado esse programa. E aí, esses agentes jovens, eles ficam durante 1 ano, eles recebem uma bolsa pra participar do programa, aí eles vêm e fazem um serviço pra prefeitura. Tem que estudar. Tem que estar na escola porque senão eles não podem participar do agente jovem. E uma das opções, a prefeitura escolhe o que vai querer, foi o teatro. O grupo começou com 20 pessoas. Mas já começou já no mês de outubro. Quando deu em dezembro, alguns foram pra São Paulo, outros pra BH... a comunidade rural ta com 12 pessoas que continuam mesmo outra turma. Esse continua. Aí eu falei “Que vocês querem montar? E eles não tinham nem noção do que eles iam... aí eu levei um poema de Gonzaga Medeiros, entendeu? Algumas coisas de Rubinho do Vale e fomos montando um espetáculo baseado na poesia de Rubinho e de Gonzaga Medeiros. Porque lá em Badaró o que é forte é a festa de Nossa Senhora do Rosário. Mas antes de fazer esse trabalho maior, porque vai ter o ano todo pra gente ficar lá, eu queria fazer uma experiência até pra levar o grupo pro Festivale, pra conhecer Gonzaga Medeiros e fazer, quem sabe, até uma parceria em algum projeto. Que já foi até mostrado pra prefeitura, que também é uma outra opção. Mas eles vão começar a pesquisar já, a partir do mês de maio, a Festa do Rosário. Que é muito forte lá, e uma das mais bonitas da região. E vai chamar Sá Rainha o espetáculo... tem uma música de Maurício Tizumba que fala assim: “Sá Rainha chamou, ê viva / Com chicote na mão ê viva / Eu não sou de apanhar / Eu não sou negro

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dela / Eu não vou lá / Eu não vou lá eu não / Ela vem com conversa de dona mandona mandando a gente trabalhar / Seio que dói a chibata no lombo a canga no ombro pra que eu vou lá? / Sá Rainha Chamou ê viva / Ê viva”. Fala mais da pesquisa que você fez lá em Chapada para o espetáculo “Os olhos mansos” Quem você ouviu lá? Me fala dos velhos... Lá eu gostei mais de uma senhora que se chama D. Nenzinha. Foi assim. Ela tinha tudo pra ser a chefe do grupo de pais, cantava com o grupo folclórico. Ela tirava as músicas. Era ela quem lembrava das músicas antigas e todo mundo seguia. Ela sabia muita coisa. Só que era uma mulher muito sofrida, questão de doença... Aí ela passava essas músicas, e tinha 3 filhos: 2 meninas e 1 rapaz que estava em São Paulo num café. E dentre essa pesquisa ela falou que já tinha tido 7 filhos que havia morrido. 7 filhos... E ela ensinou várias músicas de canto de louvor a anjo pra mim. Tinha uma que ela cantava, que não entrou no espetáculo, mas ela cantava assim: “Lá vem um anjin no céu / évem um anjin no céu / Topá com os que levai / Topá com os que levai / Lá évem a barra do dia / Lá évem a barra do dia / Topa com a barra do mar / Topa com a barra do mar”. Aí rezava uma Ave Maria, um Pai Nosso e cantava: “Lá évem 2 anjin no céu...”. Aí Pai Nosso e Ave Maria. “ Lá évem 3 anjin...” Até completar 12. Quando morre uma criança, só canta canto de louvor à morte de anjo porque são cantos que falam... é um anjo que vai pro céu. Não tem pecado. Então não tem motivo de tristeza. E quando é um caso de adulto, canta incelência. Acredita-se que as incelências vão ajudar a preparar a alma do falecido pra ir pra glória, pra alcançar a glória. Então eles cantam 1 Pai Nosso, 1 Ave Maria e 1 incelência até completar o número 12. Em caso de prostitutas ou de pessoas que já haviam matado alguém, em casos mais graves cantavam 33 incelências que seria a idade de Jesus Cristo. E dentre essas incelências tem uma que me chamou a atenção que foi essa “Estamos no fim do mundo / Não temos pra onde ir / Vamos dar contas a Deus / Vamos todos concluir / Quem tiver que ir pro inferno / Vai em vista caminhando / Vai rezar pra o Deus / Que a morte ta te chamando”. E elas cantavam isso assim. Elas não gostam de cantar. Em nenhuma comunidade rural que eu pesquei, ninguém gosta de cantar incelência. É questão de respeito. Eles não cantam. Eles só podem cantar realmente quando alguém... Quando a pessoa morre mesmo. E na maioria das vezes eu não consegui quase fazer pesquisa. É muito difícil de arrancar isso das pessoas. A incelência de São Gonçalo, que D.Neném passou pra mim, eu demorei quase 1 semana pra recolher ela. Que o Araras canta. Que ta no repertório do Araras. Só que é uma incelência que diferencia das outras, só que é agitada, e normalmente as incelências são cantos mais (...) e fala assim: “Uma incelência / Incelência de São Gonçalo / Despedida de quem vai-se embora / Uma incelência / Incelência de Santa Rita / Minha Santa formosa / Minha Santa me dá vida / Incelência de Santa Rita / Uma incelência / Incelência do Senhor do Bonfim / É ele o princípioe também será o fim / Incelência de São Gonçalo / Duas incelência / Incelência de São Gonçalo / Despedida de quem vai-se embora / De quem vai-se embora / Lá vai-se embora”. Essas músicas que eram pesquisadas, e na maioria tem muito canto. Eu descobri também que não canta só incelência. Canta muito canto de bendito. Bendita Nossa Senhora da Conceição. O ofício de Nossa Senhora da Conceição. Eles cantam Bendito pra N. S. das Candeias, pra o Menino Jesus de Praga, são cantos religiosos da comunidade de Chapada do Norte. E que eles cantam isso com toda vida que eles têm, sabe? Então eles se entregam mesmo. Eles não cantam por obrigação. Quando eu pedi eles pra cantar, eu tinha que pedir pra eles pararem de cantar, porque eles não paravam. Não, ta bom, ta bom...

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Mas isso na área urbana também ou só na área rural? Em Chapada isso não é forte só na área rural. É forte na área urbana também porque é uma cidade pequena, onde é muito forte ainda a questão do rosário e as manifestações de cultura banto. Cultura africana... então é muito forte sim em Chapada. Então a mortalidade infantil elevada foi o que mais chamou sua atenção na região de Chapada do Norte? Sua pesquisa para Os olhos mansos partiu dessa observação da vida cotidiana dessas pessoas? É. Uma mãe que falava que tinha 7 filhos que havia falecido, a outra 4... E tudo criança. Tem um rapaz que inclusive é pra você aprender a dar valor às pessoas quando ta viva mesmo. Ele chama João André. Inclusive eu comentei isso com o João, na hora que eu vi o nome dele eu arrepiei todinho. Que eu conhecia João, mas só João. Ele falou assim: Qual o seu nome? João André. Eu arrepiei porque esse rapaz, ele era do grupo lá de Sampaio. E tinha os lábios roxos, mas era um rapaz muito bonito. Mas ele tinha os lábios roxos e aparentava que tinha algum problema. Quando a gente cantava ele fazia segunda voz. Tem uma música gravada na fita eu cantando a 1ª ele fazendo a 2ª voz. A gente se apresentava pra algumas comunidades lá e tal. Depois de algum tempo que eu havia saído já de Sampaio, já havia terminado o trabalho, eu perguntei Cadê João André? Falaram que ele havia falecido em São Paulo na mesma semana de Doença de Chagas. E ligaram pra mim pra avisar que ele havia morrido. E aí fui saber que o rapaz morreu. Doença de Chagas a gente fala no espetáculo que o pai do menino morreu de Doença de Chagas. Em Chapada a questão do barbeiro é forte né? O animal barbeiro. Então a pesquisa foi toda direcionada dessa forma. O repertório você foi pegando... No repertório já tinha muita coisa da 1ª montagem. Na 1ª montagem eu peguei a referência da minha pesquisa que eu tinha em Araçuaí mesmo, porque não tinha uma direção a pesquisa, então eu fui recolhendo algumas coisas que eu já tinha. Aí peguei o canto de louvor à morte de 2 anjos ... É dois cantos de louvor à morte de anjo. Então são 2 cantos de louvor à morte de 1 de anjo. Tem músicas igual Com Minha Mãe Estarei que canta em velório que pertence à igreja católica, são cantos tradicionais da igreja católica, Lá no Céu tem Uma Estrela é um canto da minha pesquisa com o Araras que a pessoa que me informou não sabe se é um canto de incelência ou se é um canto de louvor à morte de anjo. Mas com certeza, pela letra é canto de louvor à morte de anjo que fala: “Lá no céu tem uma estrala / Perfeição da maravilha / Os anjin no céu celebra / Vida nova todo dia”. E tem uma música na 1ª montagem que a gente tava limpando a nossa sede e começou a brincar. Tava montando os olhos mansos na época e começamos a limpar a sede eu e Mônica começamos a brincar, e ela começou: “Quando a rosa nasceu / Um anjinho apareceu”. Aí eu fui e criei: “Quando a rosa se abriu...” Ô Mônica, isso dá pra entrar na peça. Vamos continuar. Começamos a brincar e aí criamos essa música. É a única que foi composta para o espetáculo. Que fala assim: “Quando a rosa nasceu / Um anjinho apareceu / Quando a rosa nasceu / Um anjinho apareceu / Quando a rosa se abriu um anjinho no céu sorriu / Quando a rosa murchou um anjinho no céu chorou”. Que ninguém fala que não é folclórica essa música. Mas ela foi composta dentro de uma brincadeira.

E quais foram as pessoas mais velhas que você procurou pra montar Os olhos mansos?

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Foi a D. Nenzinha em Chapada, Ermínia, que é uma personagem de Guimarães Rosa também, mas que também... Porque não é Ermínia. Ela chama Ermina. Lá em Chapada. Também canta, mexe com igreja, mexe com terço, com culto lá. Daqui também de Araçuaí... Não. De Araçuaí até que não. Lira Marques não? Não, mas Lira não foi tanto, mais questão da música. Não foi como direção... Direcionada pra pesquisa de composição de personagem e nada não. E uma das coisas que eu peguei como referência também foi o trabalho do Grupo Galpão. Na área de pesquisar mais a religiosidade mesmo popular... Como é que foi essa pesquisa? Eu assisti mesmo aos espetáculos, lia muita coisa dos livros que eles já lançaram, da forma de trabalho usando algumas técnicas deles. Essa técnica de usar mesmo a cultura popular, de transformar isso em teatro. A gente sempre pega isso como referência. E buscando as nossas próprias interpretações, criando as nossas formas... mas como suporte mesmo. Não seguindo daquela forma, mas criando a partir daquele, criar a nossa forma. Mas aí você assistiu, procurou... Rua da Amargura principalmente. Li muito Morte Vida Severina de João Cabral. Eu li demais Grande Sertão Veredas de Guimarães Rosa. Li uma página, eu fiquei voando assim... voltava a página todinha... eu to com o livro ali, ta todo riscado de lápis, vou te mostrar depois, ta todo riscado de lápis, caneta... Algumas partes eu achava bonita, que poderia ta usando no texto... muita coisa não usei, mas a maioria, acho que a maioria que eu arrisquei usar. E porque Guimarães Rosa? Como é que surgiu essa vontade... Eu queria trazer o universo do sertão, do sertão mesmo. Porque lá em Sampaio é sertão, só que é um sertão que tem água. Tem o rio Araçuaí que passa lá embaixo mas você não vê nada, você só vê seca porque é morro, as casas ficam nos morros, vários morros e o rio passa assim no meio. Aí eu queria trazer pro sertão mesmo, pro universo que eles viviam, que é aquela realidade deles. Que tudo era complicado na cidade, com exceção dos derivados da cana. Mas eles tinham pasto também, plantavam horta na beira do rio onde é a parte mais fértil.. aí foi assim... Então os velhos foram D. Ermina... D. Ermina, D. Nenzinha... De Chapada. E o que você recolheu delas foram as músicas, as incelências, os cantos de anjos... Isso. E esses depoimentos delas mesmo, de que morreram e tal. Eu acho que essas pesquisas estão guardadas... mas não te garanto, porque lá eles guardam até uma parte, depois entra coordenador, sai coordenador... “ah, isso é pesquisa... tá ...” aí jogam fora. Eu acho que nem existe essa pesquisa em Chapada. Isto pelo Fundo Cristão, uma ong...

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Existe uma coordenação de uma pessoa mais instruída e tal, que vai coordenar os trabalhos da associação. Mas tudo tem que ser aprovado pela diretoria das comunidades rurais. Por isso um conselho fiscal, uma diretoria, um conselho deliberativo... tudo que uma associação precisa. E elas têm convênio com o Fundo Cristão pra criança que manda verbas, subsídios, pra manter a associação. Aí, as crianças tiram fotos. Essas fotos vão em revista, em jornais, em anúncios de tv no mundo inteiro. Aí apadrinham a criança. Aí esse padrinho dá contribuição, de 17 dólares. Por volta de 35 reais. Desses 35 reais esse dinheiro é juntado porque são muitos padrinhos no mundo inteiro, tem pessoas que dá até mais, e existem convênios também com as empresas e tal, e esse dinheiro volta pra criança através de programas. Aí tem atendimento às mães gestantes, tem o controle da mortalidade infantil, controle de natalidade também porque o pessoal da zona rural, eles têm muitos filhos... Tem também dentista de graça. Eles têm teatro, capoeira, aí eu entro na área educacional que também está ligado à cultura, na parte de educação. Mas tem saúde, apoio pedagógico tem um monte de programas dentro da associação. Itaobim não atende zona rural, é só a cidade porque a maioria dos problemas lá são de prostituição infantil, e está na cidade. Padre Paraíso também é a mesma coisa, só atende a cidade. Mas Araçuaí é só zona rural. Chapada é só zona rural. Virgem da Lapa é só zona rural. Jequitinhonha já é a cidade. Comercinho só zona rural... ah não... só a cidade também. Então Minas Novas, Turmalina, Chapada do Norte, Virgem da Lapa... Em quase todos os municípios... Em quase todos do vale. Inclusive eu fiquei sabendo ontem que o coral de Veredinha que é um coral do Fundo Cristão, que já foi contratado um professor chamado Tadeu, gravou um Cd agora. Rubinho que patrocinou o CD. Eles gravaram o CD. São só meninas e é um coral maravilhoso de Veredinha. Acho que fica no Baixo Jequitinhonha. Veredinha é no baixo. Então Os olhos mansos, a 1ª versão surgiu mesmo em 98. Foi a partir desse esquete... É. Na verdade Os olhos mansos a 1ª versão eu nem sonhava de ir pro Fundo Cristão. Ele começou a surgir através do trabalho de pesquisa de Folia de Reis e da mortalidade infantil. Isso em 98. Era um trabalho que ele não tinha uma dramaturgia definida, nem música, meio e nem fim. Eram várias cenas que retratavam as lavadeiras, a mortalidade infantil e eu queria falar um pouco do Vale. Só que como o grupo tava muito novo, apesar que esse espetáculo, mesmo com toda dificuldade, ganhou prêmio na mostra Estadual de teatro de Minas Gerais que tinha grupo de Juiz de Fora, de Minas inteira. E Os olhos ,mansos conseguiu, com toda dificuldade que a gente tinha, conseguiu ganhar prêmio de melhor espetáculo de Minas Gerais. O grupo tinha 3 anos de existência. Mas então ele surgiu a partir desses... fragmentos? A partir de falar um pouco do Vale. Aí na 2ª versão já quis colocar mesmo um enredo. Como é que foi esse salto pra montar um espetáculo? Porque por acaso eu tava num lugar que tinha todas as informações dos espetáculos que eu já havia montado, então falei assim: “ah, vou remontar agora tudo de novo”. Porque tem muita coisa.

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Mas antes de você remontar. Essa 1ª vontade de montar, não na remontagem, esta entendendo? Você começou a fazer a pesquisa para o coral. Por que a partir do coral você quis fazer um espetáculo? Por que a gente queria falar um pouco do Vale. É isso que eu to te falando, vários assuntos, várias sinas. Não só a mortalidade. A gente falava da Folia de Reis, entrava cantando OS DEVOTOS DO DIVINO, de Ivan Lins. “Os devotos do Divino / Vão abrir sua morada...” Danduê era outra música que a gente cantava. Tinha a cena das lavadeiras “No dia cantou danado / Na beira do caiozinho”. Não era ela. Era Sereia. “Eu morava na areia / Sereia mudei pro sertão / Sereia aprendi a namorar / Sereia com aperto de mão / Ô sereia...”. Aí as meninas que faziam as lavadeiras, ao invés de ter o diálogo igual hoje tem por causa da mortalidade infantil, porque fulano morreu né, que tem a mulher lá que fica esperando o marido dela que morreu afogado, então existe o que? A disputa das lavadeiras nos versos. Então cantava a música e a cena era de uma lavadeira jogar verso pra outra. “Você me chamou de feia / Sereia eu não era feia assim / Sereia que você foi lá em casa / Sereia pegou feiúra em mim / Ô sereia” Aí as outras riam e começavam a jogar o verso: “O verso que ocÊ jogou / Sereia que em mim não assentou / Sereia assim então foi em você / Sereia que comprou e não pagou / Ô sereia”. E era mais pra mostrar mesmo a cena das lavadeiras, mais a questão da música das lavadeiras e os versos que eram jogados na beira do rio. Porque a maioria das lavadeiras elas cantavam pra isso. Pra uma insultar a outra... As lavadeiras são Verônicas que enxugam o suor do rio, choram por si e por seus filhos que amamentam leite de barro. Mas as lavadeiras resistem e preservam a memória de si, detalhes tão belos da vida que o tempo não ousa encardir. E isso ali na vida, elas trabalhando, elas trabalhavam assim... Brincavam, brigavam, amavam... E você pesquisando as música acabou presenciou tudo isso... Presente isso até hoje no Vale. O fantástico já fez uma reportagem sobre as lavadeiras de Araçuaí. Então Os olhos mansos surgiu nesse primeiro momento a partir dessa... Os olhos mansos I, a gente pode separar assim. Os olhos mansos I e Os olhos mansos II. É diferente. Fala dessa passagem, quando você remontou? Nós montamos depois Os olhos mansos. O Caroá do Juá, de mala e cuia, e nós iríamos começar a montar o ensaio de História de Pescadores. Em 2003. Só que Caroço de Juá foi pra São Mateus e lá aconteceu algumas coisas internas do grupo de briga mesmo, e desentendimento do grupo todinho, e desestruturou. E até teve uma reunião pro Ìcaros acabar. Em 2003? É. No outro dia nós reunimos o grupo e eu falei assim: Seguinte. Eu não vou acabar não. Quem vai querer continuar? E Grace, na época fiquei muito magoado com ela porque eu percebi que ela queria mesmo acabar com o grupo de teatro, então fez de tudo pras pessoas saírem. Narjara e Dener eram muitos amigos meus e continuaram no grupo, e Fabiana continuou e acabou que só Grace saiu. Então começamos a montar o espetáculo. Só que pra eu montar o História de Pescadores não dava. Porque além de montar um espetáculo que teria um trabalho muito maior porque as mais experientes do grupo tinham saído, que eram os alicerces do grupo também, eu

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pensei de remontar A Filha. Só que A Filha não era interessante pra mim na época. Não sei porque mas não era. Precisava montar Os olhos mansos porque eu já tinha um trabalho lá em Chapada muito grande da mortalidade infantil, e por acaso não comecei a ler Guimarães Rosa por causa dos olhos mansos, eu já tava lendo já... Então foi casando as coisas. A ocasião foi casando. Eu já tinha uma pesquisa que foi realizada lá em Chapada onde eu já havia montado Os olhos mansos num esquetezinho pequenininho com os meninos. Já tinha esse livro que eu tava pensando de montar um espetáculo. Baseado no Guimarães Rosa. No final de 2002. Aí começamos a montar. Só que as pessoas começaram a sair e ter falta de compromisso. Ia no ensaio, não ia e tal tal... Aí Fabiana que estava também no (complô) todo, o espetáculo estava quase no final aí ela saiu. Já tinha uns 8 meses e o espetáculo não saía. E faltava ainda muita coisa. O Adriano tava, o Iglei era do grupo e começou a faltar, depois a gente tirou. E ficou nessa. Vai, sai, tira, entra e não sei o que... e ficou parado o espetáculo. Aí convidamos Lucas do Grupo Vozes pra entrar no espetáculo, porque o Vozes estava sem espetáculo nenhum, tava fora de atividade. Lucas era o presidente mas estavam acontecendo coisas internas no grupo... aí ele entrou. E foi uma mão na roda porque ele entrou com personagem, entrou como assistência de direção, encaminhou pra Fabrício figurino e foi assim. Ele contribuiu demais com o grupo na época. Até hoje contribui. É do Ícaros, com uma asa quebrada, mas ele é do Ícaros. Então coincidiu de você querer remontar um espetáculo, você já tinha a pesquisa e estava lendo Guimarães Rosa, o que não aconteceu quando você fez a pesquisa. Foi casando as coisas, as coisas foram andando e daí surgiu o que é hoje Os olhos mansos. Você tinha quantos anos? 16. Como surgiu esse “sentimento” como você diz aqui no histórico da Companhia: “vamos fazer teatro, essa era a frase que vários jovens pronunciavam juntos em novembro de 1996”? A gente pertencia a um grupo, Novo Caminho. Só que o grupo a gente montava o que a igreja queria. Era um grupo de catequese, da pastoral da juventude. Não tinha muitas saídas pra outras coisas. O Grupo Vozes em Araçuaí era o auge tanto com Jequiticanta, explodindo, já 2 anos de sucesso. Era um grupo que não abria oportunidade pra gente porque tava com espetáculo lá em cima, no auge, estavam em turnê no país inteiro e nós pensamos: “ah, vamos montar um grupo pra gente”. Surgiu depois do Novo Caminho o Grupo Vida, surgiu o Grupo Som e Luz... aí um dia nós nos reunimos e o pessoal que era do Novo Caminho disse: “ah, vocês não podem ficar usando o nome do grupo Novo Caminho, porque somos nós e tal...” Daí a gente mudou o nome do Grupo. Quando criou Os olhos mansos, A Filha que Bateu na Mãe na Sexta-Feira da Paixão e Virou Cachorra já existia há uns 2 meses, porque ela foi montada dentro do grupo com o nome de Novo caminho. No primeiro cartaz até é o Grupo Novo Caminho apresenta. Quando o Ícaros surgiu, já tinha A Filha.. Que não era dentro daquele grupo de teatro da igreja. Não era dentro do grupo de teatro da igreja. Era dentro mas a gente já tava saindo já. Então vocês estavam fazendo as duas coisas? Fazendo as duas coisas. Inclusive, A Filha. Só que pra montar a filha a gente foi na igreja, a gente viu a semana santa, e começou esse trabalho que o Ícaros vem desenvolvendo ate hoje, de

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ir atrás, pesquisar, de buscar... é mais ou menos o que o LUME de Campinas faz. Só que é uma proposta um pouco mais integrada porque a gente sabe que é nosso, que está aqui. Que a gente vive mesmo, de uma realidade que está aqui presente em todos os lugares. Fala do artesão que está ali no peito da sola, da lavadeira que ta aqui no Rio Araçuaí, do boiadeiro que está numa zona rural próxima, das rezadeiras, da Folia de Reis... então a gente tem que falar de um universo que a gente (não) conhece. Que é fácil. Qualquer pessoa que chegar aqui e quiser saber onde é que está as lavadeiras, o artesanato, esses personagens, eles vão achar isso... muito fácil... Então surgiu mesmo o Ícaros, embora tenha outros nomes, de necessidade... vocês faziam teatro vinculado à igreja. Baseado na cultura popular do Vale do Jequitinhonha. Pela igreja, e não pelo Fundo Cristão. Não. O Fundo Cristão entrou quase... E vocês queriam montar outras coisas, mas, você nessa época com 15, 16 anos, quais eram as suas referências? O que você via, lia... Toda vida eu li muito. E eu desde novo, acho que com uns 10 anos eu queria fazer teatro. Porque mãe me levava muito pra ver o coral dos Trovadores... O centro Cultural de Araçuaí era uma entidade muito ativa, então tinha programação cultural o tempo todo. Tinha muita coisa lá e mãe sempre levou. E ela cantava música de (...) quando a gente Era criança... ela era nova, e ia pro coral Trovadores assistir os ensaios. E eu desde pequeno via mãe cantando Beira Mar, e achava essa música maravilhosa. Então escutava muito dentro de casa. E depois foi surgindo as coisas. Foi andando, foi tendo um processo todo de criação. Então, mas como que surgiu esse processo de “quero fazer teatro”? Eu queria ter um grupo na verdade bem egoísta. Queria ter um grupo meu. Pra fazer tudo o que eu queria. De teatro, de música. Esse texto fiquei sabendo que o Grupo Vozes foi no (em Vitória). Aí o pessoal começou a contar pra mim que tinha um espetáculo que chamava A Filha que... e que era maravilhoso, e na hora que eles contaram meu olho brilhou e eu vi na hora o espetáculo passando na minha cabeça. Esse espetáculo já existia... Já. Foi criação do grupo não. É um texto de autores conhecidos. Talvez de cordel. Existe mesmo grupo (Emboaça) de Sergipe que já montou. E aí eu tomei eles lá, e por um acaso passou, contou, passou um tempo... tinha uma amiga minha chamada Sandra, que era da FECAJ, eu fui pra Jequitinhonha, ela estudava em Araçuaí, e era lá no Jequitinhonha. Enquanto ela tava aqui, ela freqüentou o grupo Vozes e ela viajou com o grupo na época pra Vitória. E o rapaz do grupo que ela namorou é do grupo que apresentou A Filha... e deu os textos pra ela. Aí eu cheguei na casa dela e ela tinha os textos. Aí eu comecei a estudar e começamos a montar. Eu to com o original do texto até hoje, todo amassado. Aí começamos a montar, mas teatro toda vida eu quis fazer. Desde novo na escola eu já montava esquete. E qual foi a primeira sensação que você teve na vida, “ah quero fazer teatro”. A partir de quê? Você lembra? De uma música, um verso, uma imagem...

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Acho que foi os Trovadores mesmo. Tem hora que eu fico pensando hoje, na hora que eu tava vindo, eu fico pensando se tem a necessidade de eu ir estudar. As vezes fico pensando. Vou pra fora, como é que vai ficar o Ícaros? Será que vai acabar? 3 anos ficar fora... Então começa a preocupação também de sair, e um trabaho que foi construído há muito tempo, dele acabar. Eu não sei se é a coisa certa a fazer, começar tudo de novo. Eles podem até continuar, mas não vai continuar tão forte porque não ta preparado pra isso. Se fosse Grace, Nelita, continuaria claro. Mas eu sinto essa necessidade também de ir atrás buscar outras coisas novas. De tentar até minha carreira mesmo, eu Luciano sair e tentar outras coisas. Não ficar só no mundo do Ícaros, não só no mundo do Araras, tentar crescer mesmo. Ai tem hora que eu penso sair e tentar outras coisas. Será que vale à pena? Querer ir pra fora... qual o objetivo de eu querer ir pra fora? É ir pra televisão? Porque isso é conseqüência de um trabalho. Também não quero ir pra televisão. Eu fico em dúvida de ir ou não ir. Em fevereiro agora meu objetivo é fazer a seleção pro TU que é o Teatro Universitário. Mas o grupo surgiu assim. Eu sempre quis fazer, sempre quis fazer melhor. E isso que você coloca no histórico da companhia: “Pensamos cultura enquanto um sistema de atitude, costumes, modo de agir e instruções de um povo. Percebemos que havia resistência”. Eu queria falar do Vale, falar das nossas coisas, mas quem falou que o povo daqui queria ver a vida deles? “Isso é teatro?” “Isso aí eu vejo lá na rua” “ Esses cantos de macumba?” O grupo criou um público hoje que é fiel, mas antes era uma luta e pensar teatro como costume e modo de agir é justamente isso mesmo, pintar uma referência. E no caso, a nossa referência é o Vale do Jequitinhonha. Ou até a cultura popular do país. Enquanto a cultura, o que você entende que caracteriza o teatro que você faz como teatro popular? E não como uma manifestação popular? Eu escutei uma coisa no Paraná que um jurado falou: “Você fala que seu teatro é popular, mas eu nunca vi um teatro tão erudito. Porque você pega as coisas do povo e transforma em teatro”. Eu falei com ele: “Não é erudito o espetáculo. É (para-folclórico). A gente pega o folclore que existe e transforma isso em show, em espetáculo, em teatro, em apresentação. Porque o folclore, quando a pessoa já nasce na Folia de Reis ou no Congado, nas manifestações e desde cedo vai passando de pai pra filho. Quando você vai atrás dessas pesquisas e pega para suporte ela já é (para-folclórico)”. E eu acho que o grupo em questão de preservar a cultura... a gente ´isso. É pegar as manifestações... A Filha... eu vou pra Diamantina na semana santa. Quero estar em Diamantina vendo as pessoas lá olhando, tirando foto, a gente vai filmar algumas pessoas pra pegar alguns trejeitos que eu vou ver lá de diferente pra construir esse espetáculo. Porque Diamantina? Porque a manifestação da Semana Santa lá é fortíssima. Lá dá muita coisa do séc. passado. Os cantos ainda em latim. “Orai por Nobis”. Canto de Verônica que não tinha na primeira versão, já vai ter. Aqui são as Verônicas, em Diamantina são as Marias (...) são várias mulheres. Mas tem uma que pega o pano pra dar pra Maria Madalena. No caso da Verônica mesmo e enxuga o rosto de Cristo e sai. Então eu quero fazer A Filha... numa procissão que sai e dentro dessa procissão acontece as cenas. Então tem que ter toda aquela questão da Semana Santa, do Cristo na cruz... E você vai levar algumas pessoas pra Diamantina pra registrar isso e passar isso pra atores? Vou. Inclusive algumas pessoas do grupo mesmo. Pra ver como é que é.

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Você coloca assim na Filha: “O grupo procurou fazer uma adequação do texto à realidade do Vale, inserindo na peça elementos presentes no cotidiano das pessoas que vivem nesta região”. A Filha... é um texto do nordeste. Tem muitas palavras que são de vocabulário de Pernambuco. E a manifestação da Semana Santa de lá diferente daqui. A gente adequou com a nossa Semana Santa. Com o que a gente tem aqui. Com os Trovadores que é responsável pelo (...) na cruz encontro aqui, Nossa Senhora das Dores com Senhor dos Passos. É uma semana que o povo, quase ninguém vai na missa de páscoa, de quando Jesus ressuscita. Mas pra matar Jesus na Semana Santa, são mais de 5.000 pessoas em Araçuaí. Pra ressuscitar, quase ninguém. Mas é gente, que parece um rio. Um rio de gente. É enorme. E tem o povo que pela Semana Santa não come carne. É o maior respeito. Pai não bate em criança, que é pecado, mas Sábado de Aleluia bate. Então, o que é fazer essa peça, que você faz uma crítica social? É uma crítica à religião mesmo. Mas a gente (...) a Semana Santa mais como pretexto de fundo. Tanto é que ta criticando a igreja.Tem hora que a mãe, que é toda beata, fala: “Maria minha filha, pare com isso, é dia do juízo, pouco riso, muito ciso.” “ Que religião que nada. Essa história de religião é tudo tapeação. Se ela realmente existe então me transforme num cão”. “Maria, por Deus te peço, não zombes da mãe do Salvador”. “ Ah minha mãe, a fogueira da carne é algo superior. Imagem? Cristo? Deus pra mim. Nada disso tem valor. Porque quando a gente nasce, nasce com a gente o prazer. E sabe o que eu quero mesmo? É rosetear. Eu pensaria de outro modo se um dia Deus chegasse pra mim e dissesse: Maria pare com isso. Agora, eu que não conheço Cristo, nunca o vi, o que eu vou crer? E agora com licença que eu tenho mais o que fazer. Como trepar”. Aqui você coloca: “Representação de choque entre as crendices populares, muitas vezes fantasiosas, e uma sociedade excessivamente cética e sem padrões morais pelos quais se possa conduzir”. Esse espetáculo na verdade foi um choque em Araçuaí porque a gente, tudo novo. O povo com 16 anos, 15, 14. e nós pedimos o padre pra fazer na Sexta Feira da Paixão depois da missa. No dia? Foi a 1ª apresentação do grupo? Não. Já tinha acontecido outra, mas eu queria fazer na Sexta Feira da Paixão. Terminou a missa e o povo todo saiu. A igreja da Matriz tem tipo um palco que acontece até o (... da cruz) com os quadrinhos vivos, os eventos quando é missa campal... então tem um palco lá e o pessoal ficou todo em volta da igreja. Nós fechamos a porta da igreja. O Ícaros saiu da porta da igreja como se fosse uma procissão e contava a história. E as pessoas: “Crê em Deus Pai! Ave Maria!” E as pessoas, muitas das pessoas até que tava criticando... a gente achava graça porque achava super errado uma mãe, uma filha bater numa mãe, mas ao mesmo tempo fazia isso com o pai. Não tinha padrão moral nenhum pra falar do espetáculo. Falavam: Credo, vocês tão montando isso? Outra vez que aconteceu foi na escola que eu estudava. Tinha uma professora da igreja Assembléia de Deus, e nós apresentamos essa peça a convite da escola, porque era tudo aluno, todo mundo adorou a peça, o diretor e tal e essa mulher: “Herege! Isso é uma afronta a Jesus! Ta amarrado em nome do Senhor!”. Então nós colocamos uma parte onde os beatos falavam:” Ta amarrado em nome do Senhor!” em homenagem a ela e ela foi umas da que matou o espetáculo.

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A gente foi e pegou as superstições, as crendices populares e foi jogando algumas coisas e inseriu no texto. As músicas, , todas as músicas, na hora que a Maria da Conceição vira cachorra, que chama o padre pra vir exorcizar ela, a gente não tinha padre, só tinha mulher pra fazer. “Ah, taca uma mãe de santo aí...” Ai a mulher entrava. Entrava a Mãe de Santo pra exorcizar Maria. “Vai de reto Satanás! Que isso é coisa de comunista, que eu não sou artista nem o padre do exorcista. Arreda Capeta Cão, que essa nunca foi nem será Maria da Conceição.” Aí vinha povo cantando: “ Sai sai sai pelos poderes das trevas / sai sai sai minha fé você não leva / Não leva não não leva não Jesus Cristo está morando dentro do meu coração”. Nós misturamos cantos de candomblé, canto da igreja católica, canto da igreja evangélica e cantos populares. Da pesquisa geral. Esse canto eu eu cantei por último é da igreja evangélica. Na hora que a mãe ta lamentando que ela virou cochorra, nós já cantamos o Bendito da Conceição porque o personagem chama Maria da Conceição. “Levantarei de madrugada / Levantarei de Madrugada “ e os atores estão rodando, apontando pra cachorra e rindo. E ela está virando cachorra e uivando. “Pra varrer a Conceição / Pra varrere a Conceição / Encontrei Nossa Senhora / Encontrei Nossa Senhora / Com seu raminho na mão / Com seu raminho na mão”. Quando eu começava o espetáculo dizia: “ Vou contar um exemplo dentro da realidade, pois toda alma descrente vivi na obscuridade. Tenho vago o coração, condeno a religião com toda incredulidade. Maria da Conceição era uma cientista praticante, que trabalhava com afinco nas coisas do coração. Era, porém, atéia. Mas bastava encontrar platéia pra começar a sua discussão. Eu só to contando pra vosmicê essa história porque foi, foi...” Aí a música: “Foi Maria que mandou / Que eu contasse primeiro / Ô Mariazinha Você é tão lindinha / Ô Mariazinha Você é demais / Ô Mariazinha Você é lindinha / Ô Mariazinha você é demais”. “ Se é que esse tal Deus aí existe (...) porque não acaba com as guerras, com a inflação e com outros (...)” “Ó minha filha, se é que o tal desse seu Deus aí realmente existe, e fica cantando aí horas e horas, porque então já não disparou um raio de um trovão na cabeça dessa triste figura, minha mãe que está aqui sentada? Cadê o raio? Cadê? Não falei? Esse tal desse Deus seu não existe”. Então de onde que esses cantos que você pesquisou em tudo quanto é região pra Filha... foi dentro dessa pesquisa para o teatro? Foi. Você fala, quando remontou Os olhos mansos: “cantos de louvor à morte de anjo, incelências, batuquinho de presépio, usando uma dramaturgia sertaneja. Aqui os personagens são anjos, fantasmas do imaginário, doidos, profetas, mas acima de tudo humanos”. Profetas, anjos... Esse universo que pertence à pesquisa que havia sido feita (...). Tinha hora que tinha anjo, os fantasmas são os desesperos, as loucuras, as mágoas, o arrependimento por não ter feito, por não ter falado, as lembranças... Numa hora que Ermínia pega a foto do marido e olha: “porque ele morreu?” “Dizem que ele morreu aqui perto, morreu de Doença de Chagas”. Seriam essas lembranças. Os profetas, as pessoas do sertão, as rezadeiras, são verdadeiros profetas. Eles sabem quando vai ser tempo de seca. Porque essa coisa de passar de pai pra filho começa a ter muita muriçoca já é sinal que vem chuva. A lua que é boa pra caçada... Então tem essas coisas que são passadas. Tem muita coisa no Vale que ainda não foi estudada e que é um mistério até pra gente. As simpatias. Eu tenho um irmão que tinha asma. Falam que simpatia não funciona, mas a asma dele era de ir pro hospital todo dia. Desde quando fez uma simpatia que vó ensinou, meu irmão curou asma. Não foi nada na área de umbanda porque vó não gosta. Ela tem raiva. Mas quem foi que ensinou ela isso? Que fazer essa simpatia atiraria a asma? Talvez seja a fé que

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tirou. Acho que são as lembranças, o imaginário popular do Vale. Essas coisas que ta entre o céu e a terra. Fala um pouco sobre esse imaginário popular. O que você apreende dessas pesquisas que você faz com a sua avó, com os mais velhos... essa memória. O que alimenta esse imaginário popular e o que alimenta os personagens que você escreve? Acho que é a continuidade mesmo, essa coisa de pai pra filho. Da necessidade de sempre de estar colocando isso pra ser feito. Enquanto tiver asma na nossa família vai tr essa simpatia. Se alguém deixar de ter asma acaba. Acho que é a necessidade mesmo. Porque eu pesquiso? Porque eu preciso desse material pra poder montar os espetáculos. A necessidade mesmo que faz a ocasião. “A Cia de Teatro Ícaros do Vale busca documentar e recriar em seus espetáculos o material recolhiido em que se detectam elementos sócio-culturais que são parte da memória histórica da região. Então ela extrai da realidade esses elementos essenciais pra construção da identidade desse teatro popular. A Cia de organiza coletivamente no modo de construção de seus espetáculos”. Eu coordeno o Ícaros, mas tudo lá é decidido em grupo. Desde o dinheiro que vai ser gasto, se está precisando de alguma coisa ou alguém pra pintar tal coisa. Todo mundo contribui. No grupo. Antes não. Até o Caroço do Juá era muito eu. O que eu queria. A partir do Caroço do Juá a gente aprendeu que rende mais as opiniões. O Caroço eram cenas, várias histórias. Então precisou dessa coletividade, e aprendemos a trabalhar dessa forma. Rendeu muito. Peguei a direção, cenário. Lucas pegou o figurino. Denner a parte musical e eu a parte vocal. Agora tem os meninos de História de Pescadores que a (...) já sabe que são eles que têm que mexer, eles que tem que organizar. Então é todo o trabalho feito em grupo mesmo. E até pra mais tarde, tem o curso de produção pro grupo aprender, e descentralizar as coisas que ficam em cima de mim. Isso já acontece um pouco de forma aleatória. Tem curso de produção, curso de secretaria, curso de tesouraria. Pro pessoal aprender a andar da forma mais profissional possível. Sem precisar depender de ninguém. Nessa busca de documentar... que você documenta as regiões como Chapada... Documentar como arquivo, material... Como repertório? É. Como repertório. Como se dá? É recriar. Aquilo existe e você recria de uma outra forma. Uma realidade que já existe e que ela entra com o trabalho lúdico, com elementos que compõem essa imaginação, que eu vou voando e vou tentando colocar isso vivo no palco. Muitas vezes nem é possível ter tudo que eu penso. A luz que não é essa que eu quero, por falta mesmo de recurso, por falta até de instrução, informação profissional. E na maioria das vezes ela não fica sem acontecer não. Acha um jeitinho aqui, outro ali, que vai dar pelo menos a idéia que eu quero. E leio. E o Caroço do Juá, que foi em 2000?

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O Caroço do Juá, tem gente que acha que é o melhor espetáculo porque é comédia. O Ícaros é uma Cia de comédia. Veio com Os olhos mansos e quebrou isso. Foi um espetáculo muito bom porque na época existiam os causos de D. Zina. D. Virgínia Chaves, que é a mãe do Sérgio Vasconcelos do jornal Gazeta de Araçuaí. Sérgio é poeta, escritor, foi coordenador do Conselho Estadual da Juventude, já foi vereador em Araçuaí. Tinha uma coluna no jornal, NOSSOS CAUSOS. Cada dia um causo diferente. E teve um que eu li que contava a história de Gracinha, a mulher que não conhecia dinheiro. Todos os causos são verídicos. Depois em outro jornal, mensal, falava de Raimundinho, um boêmio inveterado que foi pra Virgem da Lapa pra vender uns santos de um artesão da região na festa de agosto. Chegou lá, os santos quebraram. Muito esperto, ele machucou os santos, moeu, a imagem (...) pó milagroso, curador de todos os males, até dor de chifre. Sobrou 1 santo, que estava com a cabeça quebrada, ele colou a cabeça do santo com tinta vermelha. Só que a tinta escorreu. Uma mulher chegou e perguntou: ”Que santo é esse?” “Santo Antônio”. “Uai, Santo Antônio... mas eu nunca vi Santo Antônio com essa fita no pescoço”. “A senhora não sabe não? (...)agora que todo Santo Antônio tem que usar gravata. Pode levar sem susto porque você vai ficar bem com Deus, com o papa e até com Santo Antônio”. A gente viu que essas histórias todas davam pra serem transformadas em teatro. Eu fui conversar com D. Zina e disse que queria montar um espetáculo com os causos dela, e ela me abriu toda a caixa dela com todos os causos. Eu li, escolhi alguns e transformei isso em cena. Peguei o causo da Gracinha e o de Virgem da Lapa. Numa cena eu queria falar dos crentes, porque eu ainda estava com a questão da religião. Tem uma história que vó, mãe do meu pai contava, que chegou uns crentes aqui e começaram a fazer milagre. Que tinha uma mulher que caía no chão, depois estava morta e depois saravam, curavam em Nome de Jesus. E vó sempre contava essa história que eu guardei dentro da minha cabeça que está incluída dentro dos causos da D. Zina. Achei que a gente podia montar alguma coisa sobre Minas Gerais. Como a história da D. Zina era toda local, peguei a história da estrada de Ferro Bahia- Minas que passava aqui. Incluí serenatas, brincadeiras... Eu já tinha falado tanto do Vale que queria agora falar de Minas. E essas brincadeiras? Não entrou. Só alguns elementos que foram criados, mas não entrou. Aí fui atrás de Josino Medina pra compor a trilha. Ele aceitou o desafio, montou a trilha e entregou pra gente faltando 1 semana pra estrear. E saiu o Caroço do Juá. Que todo lugar que vai arrasa. É um espetáculo pra rir. Quando chega chega na hora da serenata é um espetáculo pra pensar.

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ANEXO IV - Pesquisa com as Lavadeiras

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ANEXO V – Currículo do grupo Ícaros do Vale 2006 – 1º. Festival Nac. de Teatro de Araçuaí

2005 – 33º Festival Nac. de Teatro de Ponta Grossa

2004 – Mostra Teatral do 23º FESTIVALE

2004– 1º FESTEJE, Jequitinhonha / MG

2004– Festival Nac. de Teatro de Gov. Valadares

2002 – 5º CARBOARTE – Carbonita / MG

2002– XV Festival de Teatro de São Mateus / ES

2002 – 21º FESTIVALE – Pedra Azul / MG

2002 – VII Semana do Semi-Árido – Belo Horizonte

2001 – II Encontro Nacional de Convivência com o Semi-Árido – Fortaleza / CE

2001 – 4º CARBOARTE – Carbonita / MG

Prêmios

2006 – Festival Nacional de Teatro de São Mateus / ES Com o espetáculo “Os Olhos Mansos” Melhor Espetáculo pelo júri popular

2005 – 33º Festival Nacional de Teatro de Ponta Grossa / PR Espetáculo “Os Olhos Mansos” Melhor Espetáculo pelo júri popular Prêmio especial pelo Conjunto da Obra Indicações: Melhor Atriz / Melhor Figurino

2004 – 1º Festival de Teatro do Vale do Jequitinhonha (FESTEJE), Jequitinhonha/MG Espetáculo “Os Olhos Mansos” Prêmios: Todas categorias.

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2004 – III Festival Nacional de Teatro de Governador Valadares/MG Espetáculo “Os Olhos Mansos” Prêmios: Melhor Espetáculo Melhor Ator Melhor Cenário Melhor Trilha Sonora Melhor Atriz Coadjuvante Indicações:Melhor maquiagem / Melhor direção/ Melhor Atriz

2002 – XV FENATE – Festival de Teatro de São Mateus / ES Espetáculo “No Caroço do Juá” Prêmio de melhor atriz

1998 – XV Mostra Estadual de Teatro de Minas Gerais – Pompeu / MG Com o espetáculo “Os Olhos Mansos” Prêmios: Melhor Espetáculo Melhor Atriz Melhor Atriz Coadjuvante Melhor Trilha Sonora Melhor Direção Melhor Pesquisa Cênica

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