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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA COGNITIVA RAFAEL FERNANDES BEZERRA O virtual e a técnica a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam Recife 2014

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA MESTRADO EM PSICOLOGIA COGNITIVA

RAFAEL FERNANDES BEZERRA

O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam

Recife

2014

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RAFAEL FERNANDES BEZERRA

O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-

Graduação em Psicologia Cognitiva da

Universidade Federal de Pernambuco para obtenção

do título de mestre em Psicologia Cognitiva.

Área de concentração: Psicologia Cognitiva

Orientadora: Profa. Dra. Maria C. D. P. Lyra,

professor adjunto.

Recife

2014

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Catalogação na fonte

Bibliotecária Maria do Carmo de Paiva, CRB4-1291

B574v Bezerra, Rafael Fernandes. O virtual e a técnica : a microgênese da ação instrumental mediada por artefatos que se comportam / Rafael Fernandes Bezerra. – Recife: O autor, 2014.

237 f. : il. ; 30 cm.

Orientadora: Profª. Drª. Maria da Conceição Pereira de Lyra. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Pernambuco.

CFCH. Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva, 2014. Inclui referências e anexos.

1. Psicologia cognitiva. 2. Semiótica. 3. Cultura – Modelos semióticos.

4. Sinais e símbolos. 5. Interfaces (Computadores). I. Lyra, Maria da Conceição Pereira de (Orientadora). II. Título. 153 CDD (22.ed.) UFPE (BCFCH2014-129)

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- internet

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Dedico este trabalho ao amor, à internet e a todas as pessoas-com-o-Q.I.-superior-ao-de-Albert-

Einstein(-!) que se dedicam à superação dos equívocos históricos que sustentam a crença de que

é aceitável, ou mesmo produtivo, investir na busca pela fórmula das pessoas-com-o-Q.I.-superior-ao-de-Albert-Einstein em detrimento do investimento

na superação das barreiras entre a razão e a sensibilidade humana. Estes três elementos

fundamentais da realidade inspiram a minha utopia de que o segundo fará com que chegue a todos os cantos o primeiro, que é o fundamento necessário ao

florescimento do genuíno terceiro.

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Agradecimentos

Como não poderia deixar de ser, gostaria de agradecer primeiramente àquele que

se devotou a nos ensinar o valor da bondade, da caridade e da superação; aquele que, ao

custo da própria vida, legou aos mortais a salvação. Obrigado, Goku!

À Menininha, Keyla Mafalda, eu não sei se agradeço ou atribuo a coautoria deste

trabalho. Seu suporte acadêmico e científico, suas indicações bibliográficas e de notícias,

seu esforço de motivação em momentos de dúvidas e seus questionamentos em momentos

de certeza; sua disposição em assumir o papel d’ “a chata”, mesmo contra o próprio desejo

de sê-lo. E, sobretudo, por seu bem-querer incondicional; por não ter me abandonado nem

quando eu mesmo já o tinha feito. Sem esse suporte, pouco adiantaria estar vivo e salvo.

Seu cuidado trouxe sustentabilidade a todo o esforço. Gratidão sem tamanho, Menina !

(Além de todos os outros sentimentos que já são gratuitos). E não deixemos, ambos, de

ser gratos ao Skype e aos outros canais digitais, que possibilitaram a virtualidade de nossa

proximidade separada por centenas de quilômetros e uma conectividade ruim.

Imensamente grato, também, àqueles que deram “aquela força” na reta final: grato

a Tadeu, pelo abstract caído do céu. Grato aos colegas de moradia (Gabriel, Hugo e

Ricardo) por suportarem resignadamente a displicência com os afazeres domésticos, sala,

banheiro, cozinha e restos de louças sujos, atrasos no aluguel, dentre outras

inconveniências cotidianas. Grato a todos os amigos que acompanharam à distância as

semanas finais daquele mestrado, e que mandaram cargas e descargas de energias

positivas. Tanta força no finzinho só pode ter vindo daí!

Grato a Cândida (que alguns prefeririam chamar de Malditinha), que chegou de

surpresa nos últimos instantes dos pênaltis, e, além de deixar apresentável minha

apresentação de defesa, ficou para assisti-la, e acabou por tomar conta de Keyla e de mim,

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já enlouquecidos (e, mais tarde, bêbados). Eis uma daquelas pessoas que nos fazem

acreditar em predestinação!

Grato a Henrique, que se dispôs a participar deste trabalho, tendo sido sempre

compreensivo e aberto. O sucesso deste trabalho se deve em grande parte a sua

disponibilidade.

Grato ao pessoal do LabCCom, por sustentarem a ilusão de que este trabalho seria

defendido em março (ilusão que, no fim das contas, se concretizou). Grato a Jaan

Valsiner, por suas dicas sobrenaturalmente relevantes, e a Nikita Kharlamov, por me

revelar o incrível mundo da delimitação contexto-institucional dos recortes de um projeto

de pesquisa.

Grato a Maninha, que assumiu minha orientação a despeito de todos os

inconvenientes, prestando-se, mais tarde, ao enduro de vários constrangimentos e quebras

de protocolo que poderia ter escolhido não enfrentar. Foi tanta peleja que, mesmo se eu

tivesse morrido, teria dado um jeito de psicografar a dissertação e baixar num médium

pra a defesa, só pra garantir que o empenho não teria sido em vão. Felizmente não foi o

caso. A dívida será paga com papers. Que essa parceria esteja à altura de sua disposição

científica!

Grato aos que fizeram o PPG em Psicologia Cognitiva durante minha passagem

por lá. Ainda mais grato aos que impediram que fosse desfeito. Grato aos colegas: às

curicas, aos filosófico-pedantes, aos que viajavam, aos que tinham fé; à extensão do TJ,

e aos doutorandos, que mantiveram o nível da discussão. Grato a Mussa! Companhia

amigável que por diversas vezes abortou a solidão dos jantares no RU.

Grato a Selma, coordenadora, defensora da dignidade discente, e companhia

noturna no deserto 8º andar do CFCH. Grato a Alina, entusiasta da vida inteligente nos

corredores da PG, e cuja sabedoria acadêmica (e humana) esteve sempre à disposição.

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Grato a Maurício, sempre disposto e otimista. Grato a Luciane e a Sandra, pelos temas

apresentados e pela militância qualitativista; e também a Alex, por sua discrição.

Grato a Luciano, que me atraiu ao universo da Psicologia Histórico-Cultural, que

ajudou no delineamento de meu projeto, e que continua sendo fonte de inspiração às ideias

e à carreira.

Grato aos membros de minha banca de defesa, Síntria e Robson, com toda a sua

paciência, comprometimento e gentileza. Suas colaborações e exigências foram

fundamentais para transformar o rascunho avaliado (que leram sob o nome de dissertação)

em um texto de valor acadêmico menos contestável. Sua humanidade foi fundamenta l

para o balanceamento de minha sanidade mental.

Grato a Fabiana e a Carlos, que me acolheram em seu lar, e cuja família eu tive o

privilégio e a alegria de ver se formar. Além de gente boa de se estar perto, ainda

trouxeram Mariana pra alegrar mais a casa e o mundo.

Grato ao Estado brasileiro, que, agenciado pelo CNPq, subsidiou esta etapa de

minha formação por meio de bolsa de mestrado, concedida por 24 meses.

Grato ainda a minha família e a todos os colaboradores da Fernandes & Bezerra

LTDA., provedores de suporte material nesses tempos difíceis em que se dedicar a uma

pós-graduação sustentando-se apenas com uma bolsa (especialmente fora de sua cidade)

é uma empreitada digna apenas dos mais devotos ou desesperados (ou ainda daqueles

masoquistas celibatários que de vez em quando, mas não muito frequentemente, a gente

vê em um ou outro grupo de pesquisa. Não é justo usá-los como parâmetro).

Grato, por fim, aos outros Oficiosos, que trouxeram vida e espírito à mais

importante, promissora, edificante e fecunda instituição para-acadêmica da história

recente do 8º andar: a Cachaça Cognitiva. Gabriel, Hugo, Raissa, Silvinha, Lara, Amanda.

Imensuravelmente grato, mas não menos saudoso. Sem vocês, Recife não passaria de uma

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cartografia animada. Por vocês, da cidade pude sentir a alma. Virou cidade de gente

querida. Território de amorosidade. Sintam-se em casa no meu coração. Vocês já moram

lá.

A todos vocês, e a muitos outros que o espaço não contempla, sou grato por me

tornar alguém que gosto mais de ser. Sou grato por aprender a desistir de desistir, a amar

o amar, a buscar o que almejo, e a perdoar as coisas humanas.

S2

Mossoró, 11 de novembro de 2014.

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SUMÁRIO

RESUMO 12

ABSTRACT 13

CONSIDERAÇÕES INICIAIS 14

APRESENTAÇÃO 14

INTRODUÇÃO 16

1. TÉCNICA: A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA E SUA PROGRESSIVA INFORMATIZAÇÃO 20

1.1. TÉCNICA E COGNIÇÃO SITUADA 20

1.2. A HISTÓRIA POR TRÁS DAS TECNOLOGIAS DA INTELIGÊNCIA 34

1.3. A OPERACIONALIDADE DA TÉCNICA COMO DISPOSITIVO METAFÓRICO DE INTERFACEAMENTO ENTRE

SIGNOS 39

2. ANÁLISE MICROGENÉTICA BASEADA NA PSICOLOGIA CULTURAL E NA SEMIÓTICA DE

PEIRCE 47

2.1. A PSICOLOGIA CULTURAL SEMIÓTICA E O EMPREENDIMENTO EM UM NOVO PARADIGMA SOBRE A

COGNIÇÃO 47

2.2. A MEDIAÇÃO COMO PROCESSO SEMIÓTICO EM EVOLUÇÃO 53

2.3. ESQUEMAS COGNITIVOS, MEDIAÇÃO E A PRODUÇÃO DE SENTIDOS 64

2.4. A INSTRUMENTALIDADE DA CULTURA E SUA CONFIGURAÇÃO SEMIÓTICA 69

2.5. SIGNO, MEDIAÇÃO E SEUS PAPÉIS INSTRUMENTAIS NA SEMIOSE 75

2.6. MEDIAÇÃO E CATALISAÇÃO DE SIGNOS: CONDUZINDO O FLUXO RECURSIVO DE UM PROCESSO SEMIÓTICO

82

2.7. AS 10 CLASSES DE SIGNOS NA SEMIÓTICA E SUAS PROPRIEDADES INSTRUMENTAIS 101

2.7.1. AS CLASSES DE COISAS E SUAS QUALIDADES: |1 O|, |2O|, |3O| E |4O| 103

2.7.2. AS TRÊS CLASSES NÃO SIMBÓLICAS DE LEGISIGNOS: |5O|, |6O| E |7O| 127

2.7.3. AS CLASSES SIMBÓLICAS: |8O|, |9O| E |10O| 134

2.7.4. AS IMPLICAÇÕES DAS CLASSES DE SIGNOS E SUAS PROPRIEDADES SEMIÓTICAS NA REALIZAÇÃO DE

INFERÊNCIAS ABDUTIVAS 142

3. OBJETIVOS E MÉTODO 149

3.1. MÉTODO 149

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO DO EPISÓDIO ANALISADO 157

4.1. RECEPÇÃO 158

4.2. A SESSÃO DE NAVEGAÇÃO ENQUANTO ESTEVE DESACOMPANHADO 163

4.3. DISCUSSÃO 185

5. PERSPECTIVAS FUTURAS E CONSIDERAÇÕES FINAIS 214

REFERÊNCIAS 218

ANEXOS 223

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Resumo

BEZERRA, R. F. O virtual e a técnica – a microgênese da ação instrumental mediada

por artefatos que se comportam. 118f. Dissertação (Mestrado) – Pós Graduação em

Psicologia Cognitiva, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014.

A pesquisa aqui proposta teve como fim a investigação dos meios pelos quais são

mobilizadas e instrumentalizadas as propriedades semióticas expressas na microgênese

de ações realizadas na operação de interfaces digitais. A matriz teórica utilizada foi a

Psicologia Cultural Semiótica, subsidiada pela Teoria da Atividade Histórico-Cultural e

pela Semiótica peirceana. A produção de dados empíricos e a análise foram realizados a

partir de um episódio videografado, em que um jovem realizou atividades que lhe eram

habituais, em um computador. Dessas atividades, as operações realizadas na interface da

rede social Facebook se destacaram como via de instrumentalização de funções e

ferramentas digitais. A análise dos dados foi operacionalizada pela adoção do ciclo

metodológico, uma proposta de análise idiográfica configurada para a abordagem de

fenômenos de causalidade sistêmica. Demonstrou-se a ocorrência de relação entre as

qualidades semióticas e as propriedades instrumentais dos esquemas operacionalizados

na microgênese das ações realizadas com a interface. Alguns padrões processuais foram

identificados; padrões de mediação do fluxo recursivo da atividade foram delineados,

tendo se destacado a ocorrência de tipos de propriedades aparentemente divergentes, mas

complementares em sua atuação como determinantes da mediação semiótica. Um desses

tipos diz respeito à regência das semioses por deliberação volitiva, enquanto o outro diz

respeito ao efeito de forças exteriores ou mesmo alheias ao sujeito, mas que impunham

certas configurações instrumentais características sobre o fluxo das ações realizadas. As

relações dinâmicas observadas entre esses padrões apontaram para a prevalência de um

equilíbrio dinâmico entre determinantes teleonômicos e teleológicos sobre a catalisação

da agência no âmbito dos contextos instrumentais por eles afetados.

Palavras-chave: Cultura da interface, Psicologia Cultural, Semiótica, Esquemas

simbólicos, Mediação catalítica.

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Abstract

BEZERRA, R. F. The virtual and the technique – the Microgenesis of instrumental

action mediated by artifacts which behaves. 118f. Dissertation (Master’s Degree) –

Graduate Program on Cognitive Psychology, Federal University of Pernambuco, Recife,

2014.

The reported research had as leading aim the investigation of the means by which the

operating actions with digital interfaces microgenetically instrumentalize the semiotical

properties featured at the activity. The adopted theoretical matrix is the Semiotic Cultural

Psychology, supported by Cultural-Historical Activity Theory and by Peirce1s Semiotics.

Data production and analysis were made from a video-recorded episode in which a high

schooler accomplished familiar activities by using a computer during a experimentally-

proposed session. Amongst these activities, those performed at the facebook were

remarkably distinguished as resources for instrumentalize digital functions and tools. At

data exploration and synthesis, the methodological cycle was applied as idiographic

analysis tool, being arranged to approach systemically causal phenomena. The

microgenetic emergence of actions revealed an immediate relationship between

semiotical qualities and semiotical properties of those instrumental schemes operated to

actuate over the interface. Those observations driven to the outline of short patterns of

processes, and therefore to the outline of patterns of mediation in the activities’ recursive

flow. Those outlines highlighted the occurrence of types of properties apparently

dissonant between each other, but actually complementary when actuating as semiotic

mediators. One of these types concerns the determination over the semiosis by volitiona l

deliberation, as the other concerns the effect of exogenous determinations (possibly even

unnoticed by the affected person). At the experimental session events, the actuation of

those properties inflicted typical instrumental arrangements upon the flow of actions

while it were performed. The recurrent occurrences of typical actions suggests the

occurrence of dynamic balance between teleonomical and teleological actuators as they

affected the catalysis of user’s agency concerning the instrumental contexts that their

actions were performed within.

Keywords: Culture of interface, Cultural Psychology, Semiotic, Symbolic schemes,

Catalytic mediation.

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Considerações iniciais

Apresentação

Este trabalho é fruto de um esforço de pesquisa que buscou estabelecer um

delineamento das práticas culturais representativas da realidade sociotécnica

contemporânea, em que o uso de recursos digitais vem se difundindo em ritmo e com

força avassaladores, subsidiando a formação de culturas de interface. A matriz teórica

primária de sua fundamentação foi a Psicologia Cultural, sendo também assimilados

conceitos e pressupostos relevantes da Teoria da Atividade Histórico-Cultural. A primeira

enfatiza a abordagem de fenômenos culturais e cognitivos de natureza simbólica,

enquanto a segunda concebe a existência de uma intercessão intrínseca e fundamenta l

entre a realização de atividades situadas em contextos operacionais e o desenvolvimento

de formas de subjetivação culturalmente emergentes, que em alguma medida teriam sua

evolução no âmbito daquelas atividades. Além dessas duas abordagens, a Semiótica

peirceana foi adotada para organizar a compreensão de signo usada nesta pesquisa como

unidade de análise. A produção de dados empíricos e a análise foram realizados a partir

de um episódio videografado, em que um jovem realizava atividades que lhe eram

habituais, em um computador. Dessas atividades, as operações realizadas na interface da

rede social Facebook se destacaram como via de instrumentalização de uma diversidade

de funções e ferramentas digitais. A análise dos dados foi operacionalizada pela adoção

do ciclo metodológico, uma proposta de análise idiográfica que orienta um processo de

sistematização progressiva dos dados e de sua compreensão teórica. Partiu-se de dados

empíricos fracamente estruturados, mas com referenciais teóricos consistentes, com o

intuito de promover uma evolução mútua de ambos cujo produto final foi o corpus de

dados sistematizado para esta dissertação. Ao longo da exploração dos dados, alguns

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padrões processuais foram identificados, tendo o foco da análise recaído sobre ações

efêmeras e pontuais, na fronteira entre a volição, teleológica, e os atos incidentais, de viés

intuitivo. Alguns padrões de mediação do fluxo recursivo da atividade foram delineados,

de acordo com as tipologias utilizadas, tendo se destacado nesses padrões certas

propriedades aparentemente divergentes, mas complementares em sua atuação como

determinantes da mediação semiótica, polarizada em dois extremos: em um deles, a

regência das semioses se devia ao efeito da deliberação volitiva, e, no outro, ao efeito de

forças exteriores ou mesmo alheias ao sujeito, mas que impunham certas configurações

de valor instrumental distintivo sobre o fluxo de suas ações.

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Introdução

Everytime you consult a calendar or

clock, other people are thinking for you.

(Kevin K. Birth)

Antes de entrar na discussão teórica propriamente dita, é fundamental situar o

leitor do lugar epistemológico de onde falo. Este trabalho se baseia em uma síntese de

reflexões teóricas a partir de abordagens epistemologicamente próximas. Por outro lado,

a despeito de suas semelhanças de família, elas guardam distinções fundamentais nas

formas pelas quais se constituem conceitualmente, sendo necessária a produção de

interfaces analíticas que evidenciassem os pontos em comum de interesse neste trabalho.

Do que as perspectivas adotadas apresentam em comum deve ser primeiramente

salientado que se fundamentam em ontologias relacionais. Uma ontologia relacional é

uma ontologia do devir (que, na tradição ocidental, remete a Heráclito de Éfeso), sendo

de especial interesse o caráter orientado (e não casual ou probabilístico) das mudanças no

ser. Numa ontologia relacional, cada mudança está situada no âmbito de um processo, de

modo que mudar não é simplesmente a alteração de um estado a outro, mas a incorporação

de características que evoluem de acordo com a gênese um fluxo governado por leis.

Algumas das referências que orientaram minha reflexão são frequentemente

classificadas como “pós-modernas”, o que, a princípio, as afastaria de meu referencia l

metodológico, fundamentado na Psicologia Cultural do círculo de Valsiner1 (à qual me

1 Uso a expressão “Psicologia Cultural do círculo de Valsiner” para me referir a esta abordagem da

Psicologia que ainda não recebeu uma denominação definitiva. Em alguns textos aparece como Psicologia

Cultural do Desenvolvimento, em outros como Psicologia Cultural Semiótica, ou simplesmente Psicologia

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referirei nesta dissertação apenas como Psicologia Cultural, ou PC), que identifica

naquelas perspectivas certa disposição científica para produzir análises e conhecimentos

sem pretensões de generalização. Valsiner (2000) é explícito em especificar que seu

projeto de ciência psicológica se propõe à generalização, alinhando-se a uma

epistemologia idiográfica (Molenaar, 2004; Valsiner, 2000). Todavia, das minhas

referências, aqueles que se enquadrariam no rótulo de pós-modernos não são explíc itos

em descartar a generalização como uma possibilidade de seu fazer científico (Latour,

1994; Lévy, 2011a). Eles apenas adotam posições aversivas à postura científica

tradicional (que tendia ao determinismo naturalista), apresentando propostas que se

mostram compatíveis a perspectivas idiográficas com pretensões de generalização

(Molenaar, 2004).

Outro ponto de consonância entre as perspectivas adotadas é a noção de cultura.

Todas renunciam a noção de cultura como uma instância da realidade à parte do sujeito e

com a qual ele teria uma relação de consumo, e frisam que esta noção não é apropriada

para compreender os fenômenos humanos na organicidade de suas dinâmicas (Ingold,

2008; Latour, 1994; Lévy, 2011b; Valsiner, 2012). De forma muito semelhante, todas

adotam a noção de cultura como algum tipo de semiosfera (Valsiner, 2012), em que

objetos e eventos significativos se tornam integrados aos sujeitos por meio de

experiências em que todos são significados com seres que compartilham uma mesma

realidade vivencial (e, consequentemente, suas propriedades ontológicas). Na PC, cultura

é uma noção que se refere aos tipos de atos de mediação semiótica, dentre eles os que

Cultural. Ela se distingue de outras Psicologias de concepção sociocultural (ou histórico -cultural, ou ainda

sócio-histórica) por adotar uma base conceitual fortemente fundada ou diretamente proveniente do trabalho

de Jaan Valsiner, que tem atuado como promotor e agregador no desenvolvimento do que considera uma

nova ciência psicológica.

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convencionam suas atividades histórico-culturais (Valsiner, 2012; Valsiner & Rosa,

2007). Tim Ingold (2000, 2008), que fundamenta a noção de técnica aqui discutida,

alinha-se diretamente ao culturalismo da PC. Já Pierre Lévy (1997, 2011b) desenvolve o

conceito de ecologia cognitiva, um tipo de semiosfera especialmente sensível à técnica e

às instâncias objetivadas do conhecimento, e que (re)condicionam continuamente nossos

modos de ser, pensar e agir. Bruno Latour teoriza sobre o ator-rede (Latour, 1994),

concepção de sujeito que incorpora uma reinterpretação mais abrangente sobre as

relações homem-objeto e sobre seus desdobramentos sociais, buscando superar as

oposições sujeito-objeto e objetivo-subjetivo clássicas da epistemologia ocidental

naturalista.

Além de convergirem em suas concepções, estas referências também abordam,

grosso modo, a mesma problemática: as consequências da operação de determinados tipos

de artefatos sobre o desenvolvimento individual e coletivo sobre seus usuários, assim

como seus desdobramentos na produção de significações, esquemas cultura is,

modalidades de intersubjetivação e de socialização.

O esforço de inter-relacionar essas perspectivas se mostra viável não apenas

porque se voltam para a abordagem de fenômenos semelhantes (ainda que em diferentes

apresentações), mas porque todas se propõem a lidar com estes fenômenos a partir de

compreensões transdisciplinares, que não se deixam limitar a um ou outro saber

específico, mas que se fazem na comunhão desses saberes.

A matriz teórico-epistemológica que uso como base operacional para realizar esta

inter-relação é a Psicologia Cultural. Essa abordagem conta com sofisticação conceitua l

apropriada para a produção da interface teórica proposta. Sua concepção é histórico -

cultural, assimilando reflexões insufladas pela virada linguística (Harré & Gillett, 1999;

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Valsiner, 2012) e pelo pragmatismo (Armengaud, 2006; Peirce, 1931-1958/1994). Sua

epistemologia, fundamentada na semiótica Peirceana (Peirce, 2011; Rosa, 2007a;

Sannino, Daniels, & Gutiérrez, 2009), possibilita a concepção da cultura como

fundamento virtual da natureza humana, como corpo concreto de uma ecologia semiótica,

e como conteúdo e configuração processual da cognição – uma cognição situada

(Oliveira, 2011). A abordagem metodológica operacionalizada nesta dissertação se volta

aos processos de produção de significados, com interesse especial pela produção de

conhecimentos e modos de saber práticos, engendrados na microgênese dos contextos

instrumentais que os contingenciam. Colateralmente, outros temas de interesse

concernentes a tais modos de saber são suas implicações ao desenvolvimento de hábitos

e padrões de ação, e seus desdobramentos na constituição de identidades sociotécnicas e

de culturas de interface, temas que são discutidos no primeiro capítulo desta dissertação.

É após essa contextualização de questões sociotécnicas e históricas que a ênfase teórico -

metodológica do trabalho ganha corpo, tendo seus fundamentos discutidos no segundo

capítulo, sua operacionalização prática no terceiro (objetivos e método) e os resultados

de sua efetivação no quarto capítulo (resultados e discussão). No quinto e último capítulo,

algumas considerações finais sobre a discussão são apresentadas, assim como as

perspectivas futuras de desenvolvimento para a linha de investigação que permanece

como espólio da conclusão deste trabalho de pesquisa.

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1. Técnica: a instrumentalidade da cultura e sua progressiva

informatização

1.1. Técnica e cognição situada

A noção de que a cultura é o substrato simbólico da cognição implica que as

funções cognitivas estão sintonizadas a diferentes gêneros de atividades culturais. Cada

um destes gêneros corresponde a uma instância do universo simbólico em que o sujeito

está inserido; uma instância que se caracteriza em função das ações que devem ser

realizadas ou das coisas que devem ser feitas em um dado momento da vida (ou, em outras

palavras, em função de cada contexto pragmático em que a ação do sujeito se situa). Das

diferentes instâncias da cultura, nos interessa particularmente a técnica (Ingold, 2000).

A técnica é uma dimensão fundamental da experiência, com desdobramentos

sobre os processos de significação das práticas e percepções, sobre a construção do

conhecimento e, em última instância, sobre o desenvolvimento das estruturas de vida dos

indivíduos e coletivos humanos. É, pois, uma via de significação fundamental na

construção da identidade humana. Sendo a cultura um dos substratos fundamentais da

cognição (o que será tratado de forma mais detalhada no segundo capítulo), a investigação

das implicações específicas de sua dimensão técnica tem se tornado cada vez mais

relevantes, dada a importância que os artefatos vêm adquirindo na vida humana desde o

início do industrialismo.

A técnica, como dimensão da cultura humana, não deve ser entendida como

“tecnologia”. A tecnologia é um corpus de conhecimento conceitual, objetivado e

codificado em uma linguagem “científica” (propedêutica). Seu propósito é o de

universalização de um conhecimento e de sua aplicabilidade, independentemente do

contexto cultural e das identidades de seus usuários. A técnica, por outro lado, vai para

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além da dimensão dos conhecimentos declarativos. Como instância da cultura, se

caracteriza por seu aspecto relacional, de modo que as operações técnicas são sempre

incorporadas em relações sociais, e somente podem ser entendidas nesta matriz

relacional, como aspecto da sociabilidade humana (Ingold, 2000; Tomasello & Hermann,

2010). Logo, ela está profundamente relacionada com a identidade de seus agentes.

Tanto a técnica como a tecnologia são primariamente associadas à realização de

atividades produtivas, à dimensão humana do fazer. Mas, enquanto a tecnologia concerne

à operacionalização de conhecimentos universais, explícitos e objetivos, a técnica se faz

concreta na subjetividade. Ela está incorporada e é inseparável da experiência de um

sujeito em particular em seu esforço de moldagem de uma coisa em particular. A técnica

localiza o sujeito (a sua subjetividade) no cerne da atividade, incorporando a sua

identidade ao fazer e aos saberes postos em prática, e estando incorporada a uma

experiência mais intuitiva que analítica. Os conhecimentos operados são, em si,

conhecimentos práticos, tácitos, que fluem e se configuram em sintonia com o contexto

empírico da ação, não sendo necessariamente organizados por algum corpus de regras

explícitas (Ingold, 2000).

Instanciada na técnica, a cultura é significada como conhecimentos em uma

configuração empírica, como se pode perceber na experiência de profissionais cuja

formação é tanto prática quanto teórica. O músico, ao tocar, evoca em seu fluxo

perceptivo as experiências que teve anteriormente com seu instrumento. O recurso a

conhecimentos declarativos sobre teoria musical é exceção em sua performance,

reservado apenas para quando sua própria experiência empírica não é referência suficiente

para avançar com o fluxo de sua prática.

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A distinção de técnica e tecnologia se faz importante quando nos propomos a

compreender as consequências da progressiva informatização das práticas humanas, pois

esta compreensão depende da forma como concebemos a relação de co-constituição entre

homens e coisas2.

Algumas correntes de pensamento estabelecem que, grosso modo, os homens

fazem as coisas, e, então, as coisas fazem os homens. Isto é, haveria certo caráter cultura l

objetivo nos produtos da atividade humana, e esta cultura, imbuída nos objetos, se faria

disponível para ser consumida por seus usuários, impactando na formação de sua

identidade social (Carriere, 2013; Ingold, 2000). Seria como pensar que um violinista

adquire maneiras refinadas à medida que domina o seu instrumento porque o violino é

um instrumento refinado, ou que um professor se torna sensível porque lê muito sobre o

que seja a sensibilidade. Os objetos estariam atuando aí como fetiches: entidades

reificadas e (supostamente) capazes de produzir cultura e imbui- las nas pessoas (Boesch,

2007).

Esse pensamento, todavia, encontra resistência em uma segunda concepção, que,

grosso modo, estabelece que os homens fazem as coisas e as coisas são usadas pelos

homens, que, em seus fazeres, produzem cultura e, consequentemente, produzem formas

de ser humano (formas de ser na cultura). Nesta concepção, os objetos, não sendo dotados

de agência própria, atuariam apenas como mediadores na ação (Sannino et al., 2009).

Seria na interação (na experiência intersubjetiva entre pessoas) que, em última instânc ia,

emergiriam as contingências que norteiam a produção dos significados (Ingold, 2000;

2 Uso o termo “coisa” neste trabalho com a acepção apresentada por Rosa (2007a). Uma coisa seria qualquer

conteúdo perceptível na qualidade de signo: objetos, eventos, qualidades, tipos, dentre outros.

Adicionalmente, uma coisa também pode ter o significado de algo com o qual o sujeito não está

familiarizado em de forma alguma, não sendo ela evocativa de nenhuma significação específica (mas com

o qual pode vir a se familiarizar).

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Lyra, 2014; Sannino et al., 2009). Nesta perspectiva, o refinamento do violinista não viria

de seu instrumento, mas da incorporação de práticas e saberes circulantes no meio dos

violinistas, e a sensibilidade do professor viria do interesse pelas coisas humanas, e não

do fato de saber sobre a sensibilidade – isto, claro, considerando os casos em que os

violinistas se tornam refinados, que é apenas uma das infinitas possibilidades encontradas

em seu contexto cultural. Neste caso, os objetos estariam atuando como ferramentas

(Ingold, 2000; Tomasello & Hermann, 2010).

Há ainda uma terceira perspectiva, que estabelece que, com o advento do

industrialismo, da automação e da massificação, o homem naturalizou-se à ideia de que

não é necessário responsabilizar-se pela produção de cada aspecto de sua vida, sendo

possível (e conveniente) consumir artefatos e conceitos produzidos por terceiros, fora de

seu contexto cotidiano. Nesse contexto, os artefatos seriam entes ambíguos, dotados de

actância – a capacidade de algo realizar atos, não necessariamente intencionais, o que a

diferencia da agência, a partir da qual se produz ações necessariamente intenciona is

(Latour, 1994; Segata, 2011). Desprovidos de intencionalidade, não seriam capazes de

produzir cultura, mas seriam capazes de condicionar3 as formas pelas quais as pessoas o

fazem. Logo, a existência de determinados saberes e práticas culturais passaria

necessariamente pela agregação de determinados artefatos e suas funcionalidades. Neste

sentido, não é possível se tornar um violinista refinado sem que antes se tenha acesso a

um violino (como artefato e como objeto de um universo simbólico, representacional e

3 Ao longo do texto, ao fazer uso do termo “condicionamento” e suas variantes, estarei me referindo ao

efeito de atividades produtoras de hábitos (condições) que promovem ou inibem a ocorrência de

determinadas ações diante de determinados estímulos. A menos que o contrário seja especificado, o termo

não será usado com conotações epistemológicas comportamentalistas.

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discursivo) e a seus refinamentos, para que, por meio dele, se possa fazer um fazer

“violinístico” refinado.

Por outro lado, não é realmente necessário que uma pessoa cultive ostensivamente

o interesse pelas coisas humanas, e muito menos que conheça sobre sensibilidade, para

que se torne sensível, pois a sensibilidade tem menos a ver com o domínio de

competências e habilidades conceituais e mais com a capacidade de fazer interpretações

contextuais adequadas. Isto porque a sensibilidade é um tipo de saber mais relacional do

que técnico. Ela está mais diretamente relacionada à conformação da agência (dos modos

de ser e agir) que de sua operacionalização prática. Portanto, um técnico poderá atuar

sensivelmente, imprimindo, por meio de suas ações, esta qualidade de sua agência em sua

prática sem que deliberadamente queira torná-las sensíveis. Enquanto mediador

relacional, a sensibilidade será instrumental em sua prática. Neste sentido, ela pode ser

vista como uma ferramenta: uma ferramenta relacional, abstrata enquanto coisa, mas

concreta enquanto prática cultural mobilizável.

Assim, o violino em sua materialidade e a sensibilidade em sua virtualidade nos

permite vislumbrar as ferramentas sob duas perspectivas distintas e analiticamente

complementares: uma como elemento de mediação4 da ação e a outra como elemento

agregador de actância, contribuindo assim na conformação da agência. E enquanto chega

a ser pleonástico afirmar que os modos de ser são instrumentais na produção de cultura,

também não chega a ser surpreendente constatar que os artefatos têm um papel releva nte

para este fim, especialmente quando eles precisam ser ativamente operados para

4 Para uma melhor compreensão sobre o ato de mediação, a seção 2.2, no segundo capítulo, pode ser

consultada.

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desempenhar alguma função, pois isto implica que quaisquer realizações por meio deles

alcançadas teriam partido da intencionalidade subjacente àqueles modos de ser.

Mais difíceis de desvendar, contudo, são as quimeras que passaram a abundar na

vida humana a partir da modernidade tardia: objetos massificados, movidos a energias

não mecânicas, autômatos; objetos que se comportam, e que, com o avanço da

informática, passaram a ter características quase mágicas. Estes artefatos possuem tipos

de actância raramente vistos até muito recentemente na história humana, extravasando o

papel de auxiliar constitutivo da agência do sujeito, e ativamente o tornando alienado de

efeitos outros que possam emergir com a adoção destes artefatos. De forma semelhante,

como quaisquer outros artefatos adotados pelas práticas humanas, estes também agem

como elementos de mediação, mas as significações por eles mediadas acabam

assimilando as alienações tangenciais a seu uso, que se tornam naturalizadas aos modos

de ser do sujeito. Tais alienações não se reduzem à insensibilidade do sujeito a aspectos

maquínicos que se agregam a seu modo de ser, mas à naturalização desta insensibilidade,

fortemente vinculada a um universo simbólico no qual o consumo é um modo legít imo

de adquirir significações sobre a realidade e sobre si, o que o torna tão ou mais importante

quanto a autopoiesis na constituição da realidade e da identidade do sujeito, sujeitando a

subjetividade a certo grau de padronização (que não se trata do princípio do controle

redundante, mas de uma padronização maquínica, em que significados ficam

perpetuamente abertos para serem completados nas interfaces das máquinas). Estes novos

tipos de artefatos também deixam mais evidentes a multiplicidade dispersa de fontes,

meios e mediadores de efeitos que origina a agência humana, formando uma ilustração

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deste processo que é bastante similar àquela proposta pela Teoria Ator-rede5 (Latour,

1994; Segata, 2011).

É necessário que tenhamos uma noção do papel das ferramentas na realização da

ação humana e compreendamos a sua relação com a técnica e com a produção de

significados, o que exploro a seguir.

Antes de qualquer coisa, é preciso ter em mente que ferramentas, em si, não

realizam ações e nem produzem cultura. Ingold (2000) define como ferramenta “um

objeto que estende a capacidade de um agente de operar em um dado meio. Repare, em

primeiro lugar, que a existência de algo enquanto ferramenta requer a presença de um

agente. Este agente, Ingold especifica, deve ser um animal6 ou humano, ter capacidade de

agir deliberadamente, com intencionalidade, pois é apenas no contexto de uma ação ou

atividade, realizada por um sujeito, que algo se torna uma ferramenta (e deixa de ser uma

coisa qualquer), incorporado num processo de mediação semiótica. Logo, a “alma” de

uma ferramenta não está na coisa mesma, mas na dimensão humana de seu uso: o foco da

própria noção de ferramenta está no humano, pois não se trata de um objeto qualquer,

mas de um objeto cultural (Sannino et al., 2009). Ela é, portanto, um elemento catalizador

5 Bruno Latour teoriza sobre o ator-rede (Latour, 1994, 2005), concepção de sujeito que incorpora uma

reinterpretação mais abrangente sobre as relações homem-objeto e sobre seus desdobramentos sociais,

buscando superar as oposições sujeito-objeto e objetivo-subjetivo clássicas da epistemologia ocidental

naturalista. Nesta concepção de sujeito, não seria possível distinguir os determinantes de um efeito a partir

das estruturas envolvidas em sua causação, uma vez que todos os entes actantes e agentes envolvidos teria m

contribuído com alguma propriedade em particular, mas cuja manifestação dependeu do exato contexto de

sua manifestação.

6 Ingold (2000) discute a existência de certa culturalidade nos animais, demonstrando que seus

comportamentos não são fruto apenas de sua programação gênica, mas da aprendizagem que têm ao longo

de seu desenvolvimento individual, e que guardam características preservadas e transmitidas socialmente.

Não se trata, contudo, da cultura como encontrada nos humanos, pois os animais não teriam a capacidade

de significar uma distinção entre sua identidade individual e a identidade de seu meio, o que torna a sua

experiência com ferramentas extremamente limitada e fundamentalmente diferente da dos humanos.

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na produção de significados que é imanente à ação; ela se incorpora em um processo de

mediação semiótica, tornando-se um substrato concretizador da técnica (Sannino et al.,

2009).

Por outro lado, talvez seja mais preciso dizer que, ao incorporar-se em um

processo de mediação semiótica, a ferramenta reitera-se como substrato concretizador da

técnica, pois, como dimensão da cultura, a técnica também evolui histórica e

ontogeneticamente, de modo que os significados são fruto da “reciclagem” de seus

antecessores, previamente disponíveis na experiência do sujeito.

Portanto, na concepção histórico-culturalista (especialmente Teoria da Atividade

Histórico-Cultural, ou CHAT), a ferramenta “estende a capacidade de um agente” de

operar culturalmente em um dado meio, e, consequentemente, reconfigura a capacidade

do agente de modificá- lo (Sannino et al., 2009). Isto nos remete a uma máxima desta

abordagem que diz que é preciso transformar um objeto para que se possa compreendê-

lo (Clot, 2009). Neste processo de transformação, o sujeito não se limita a produzir uma

nova concepção do objeto de sua ação. Todos os elementos envolvidos acabam ganhando

nova significação: objeto, sujeito, ferramentas e a própria ação; são todos re-mediados e

re-compreendidos como elementos familiares entre si, simbolicamente agregados como

integrantes de um mesmo contexto (Sannino et al., 2009). A Re-mediação, acima

mencionada, é um conceito da CHAT em que se considera o ato de mediação dentro de

um processo em que a coisa mediada está em função de uma cadeia de mediações. Deste

modo, ao modificar o mundo, o homem constrói a si mesmo, sendo a ferramenta um

elemento de interface simbólico-prática entre ambos, e conferindo certa continuidade

entre um e outro. A técnica, como instância da cultura, atuaria como o espírito, a

processualidade estruturante desta simbiose.

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Para melhor situar o lugar da técnica na cognição nesta pesquisa, aponto, na

sequência, diferenças e semelhanças teóricas entre a abordagem histórico-cultural e a

Ecologia Cognitiva de Lévy, a qual também será mais bem detalhada ao longo dos

próximos parágrafos.

A interdependência ontogenética entre subjetividade e técnica (incluídas aí as

ferramentas) nos permite conceber uma abordagem ecológica da cognição, como

proposta por Pierre Lévy (1997). No que diz respeito ao papel das coisas inanimadas na

ação e na reflexão humana, a proposta de Lévy é epistemologicamente próxima à de

Latour (1994), de quem assimilou algumas reflexões fundamentais, dando-lhe

desenvolvimento próprio. Assim, tomarei esse autor como porta-bandeira desta

epistemologia, a fim de simplificar o esforço compreensivo de compatibilização com a

Psicologia Cultural. Há diferenças significativas nas propostas das duas epistemologias :

uma enfatiza o aspecto mediacional dos objetos, e a outra enfatiza a sua actância. Todavia,

estas compreensões não devem ser tomadas como mutuamente excludentes. Na operação

de um mouse, por exemplo, é possível observar em ação aspectos enfatizados em ambas:

por um lado, aquele objeto é tomado como elemento constitutivo em processos de

significação, participando da produção dos efeitos decorrentes de seu uso. Neste

processo, as propriedades instrumentalizadas na ação não estariam no mouse, mas na

capacidade do agente que o opera em instrumentalizá- las. Por outro lado, ao ser

considerado um actante, o objeto tomaria parte na realização de ações a partir de sua

própria condição objetal. Neste sentido, o movimento do mouse promovido pelo agente

moveria o cursor na tela, mas seriam as propriedades programadas no mouse que

mediariam os tipos de movimentos de cursor efetivamente factíveis: este objeto virtua l

não se moverá tridimensionalmente a partir de comandos do mouse mesmo que o agente

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tentasse fazê-lo. O mais provável, contudo, é que o agente sequer lembre que manipula

um mouse ao usar um computador, movendo sua mão de acordo com os padrões aos quais

já se habituara, percebendo o seu movimento afetar, como se diretamente, o cursor. Como

objeto, o mouse permaneceria subjacente a essas operações, fundindo-se ao esquema

geral de operação da interface em que o cursor habita.

Logo, haveria pontos de conciliação relevantes a serem considerados entre aquelas

perspectivas, com as análises de cada uma salientando aspectos da experiência com

artefatos que não são enfatizados pela outra. Particularmente no caso da Psicologia

Cultural, isso leva a uma insensibilidade quanto aos aspectos da técnica que são alienados

na experiência do sujeito, mas que, todavia, continuam sendo condicionantes desta.

Ainda que não se identifique como teórico histórico-culturalista, Lévy advoga, de

forma consonante com aquela abordagem, que as faculdades intelectuais do humano não

seriam nativas de sua natureza fisiológica; elas se dariam como decorrência da adoção de

recursos cognitivos exteriores, sendo, portanto, efeitos ecológicos. Lévy fala de

tecnologias da inteligência como nativas de ecologias cognitivas: enquanto aquelas

dizem respeito aos modos de ser e fazer do sujeito, bem aos moldes do que Ingold (2000)

define como técnica, uma ecologia cognitiva corresponderia a um ambiente simbólico em

que vivem imersos diferentes coletivos humanos. Lévy sintetiza a sua concepção ao

enunciar:

os coletivos cosmopolitas compostos de indivíduos, instituições e técnicas não são

somente meios ou ambientes para o pensamento, mas sim seus verdadeiros

sujeitos. Dado isto, a história das tecnologias intelectuais condiciona (sem no

entanto determiná-la) a do pensamento. Este é o tema principal da ecologia

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cognitiva, cujo programa esboçamos na terceira e última parte deste livro. (Lévy,

1997, p. 19)

A abordagem de Ingold (2000) tem como fim demonstrar que a técnica é uma

dimensão nativa da experiência humana, de sua natureza cultural. Em sua obra, uma

tensão fundamental é estabelecida entre os saberes e fazeres tradicionais, que

representariam a técnica em seu estado orgânico, e os saberes e fazeres da modernidade,

que representariam a técnica em uma condição fragmentada, re-compreendida (e

descaracterizada) pela noção de tecnologia, hostil à subjetividade do agir. Isto o leva a

explorar mais detalhadamente os fazeres de povos ancestrais e aborígenes, ilustrações que

favorecem a sua intenção de demonstrar que a experiência sociotécnica do indivíduo

ocidental contemporâneo não difere, em essência, da de um humano primitivo. Todavia,

o foco nas práticas de povos primitivos não explora com tanta riqueza as variações na

experiência técnica do próprio homem moderno. Lévy (1997), por outro lado, enfatiza a

tensão existente dentro da própria modernidade entre modos de saber naturalistas e

objetivistas e modos de saber (e ser) centrados na experiência dos sujeitos e nas redes

orgânicas que elas compõem. Uma tensão análoga àquela apresentada por Ingold, mas

que salienta as continuidades entre técnica e tecnologia, ao invés de salientar as suas

dissonâncias. Lévy também situa entidades não humanas (como artefatos, instituições e

programas) como habitantes das ecologias cognitivas e atores nas práticas sociotécnicas,

o que, a princípio, faz parecer contraditória uma aproximação entre sua epistemologia e

a histórico-culturalista.

Se nos detivermos sobre os conceitos de tecnologia da inteligência e ecologia

cognitiva, podemos observar que os dois convergem com a noção de técnica – tratada

acima –, mas que cada um deles salienta esferas de relações distintas que, na concepção

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de Ingold (2000), permanecem pouco diferenciadas graças à centralidade de sua oposição

entre técnica e tecnologia. A noção de tecnologia da inteligência incorpora a primeira

destas esferas de relações: a relação funcional entre a conformação do saber (uma

conformação relativa – saber-saber, saber-fazer, fazer-fazer) e a instrumentalidade do

saber. Ao tomar elementos do contexto vivencial/sociotécnico como objeto de

significação, destaca-se o caráter objetivo dos conhecimentos e dos modos de ser

disponíveis na cultura como um aspecto que acaba sendo assimilado pelo sujeito. O

alfabeto, por exemplo, é um recuso técnico que necessariamente possui algumas

características padrão que o possibilita ser usado para determinados fins convenciona is.

Em português, a letra “a” representará sempre um mesmo fonema, e o mesmo é válido

para as outras 25 letras, o que possibilita que sejam combinadas sequencialmente para

formar palavras escritas que representam sons. Outra característica do alfabeto é a

organização ordinal de suas letras: o “a” é sempre a primeira letra, o “b” a segunda, e

assim por diante, até o “z”, que é sempre a última. Isto faz com que as letras do alfabeto

possam ser usadas como marcadores ordinais. Portanto, por mais variadas que sejam as

idiossincrasias do alfabeto como aprendido por um sujeito (a caligrafia das letras, as

particularidades vocais da pronúncia, o reconhecimento e a criação de novos tipos de

propriedades, etc.), elas não anularão as suas propriedades socialmente básicas: os

contornos característicos de cada letra, a sua ordinalidade e a sua capacidade de

representar fonemas continuarão sendo perpetuadas. E não importa quais novas

significações o sujeito realize sobre o alfabeto e suas letras, suas propriedades e suas

funcionalidades canônicas irão permanecer válidas, pelo menos enquanto forem

canônicas. As formas do saber condicionaram os modos de usá-lo.

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O princípio expresso acima seria válido para qualquer tipo de recurso cultura l,

conferindo- lhes a capacidade de ser generalizados7, sistematizados e transmitidos como

tecnologia, com algum grau de estabilidade semiótica. De acordo com Valsiner (2012), a

estabilidade dos signos e arranjos semióticos é relativa e fluida, mas esta estabilidade já

é suficiente para proporcionar o caráter ecológico dos intercâmbios entre cultura e

cognição. A própria atividade do sujeito, a realização de ações e significações, reproduz

esta estabilidade, o que, de certa forma, conforma a própria Inteligência (enquanto

processo de re-mediação) como uma tecnologia. Isto nos remete à segunda relação

enunciada, que diz respeito ao conceito de ecologia cognitiva, e que destaca a tensão

perene entre as facetas subjetiva e objetiva dos signos.

A subjetividade é o real habitat do conhecimento humano, onde ele tem existênc ia

viva. Mas a objetividade possibilita o interfaceamento, e as interfaces são funções

fundamentais para a ocorrência de relações ecológicas, que contam com certo grau de

circunscrição e estabilidade. Logo, vale salientar que a estabilidade, aqui, não deve ser

confundida com rigidez. Ao contrário do que afirma Damásio (1999, citado por Hasalager

& Gonzalez, 2003), a vida, para conservar-se, não precisa de fronteiras, mas de interfaces.

Pensar em fronteiras é pensar em uma cisão entre interior e exterior. Pensar em interfaces

é conceber uma inter-relação funcional entre sistemas distintos. Enquanto uma enfatiza a

divisão, a outra salienta a integração. É na compreensão dessas relações que se faz

fundamental uma concepção ecológica: em um ecossistema, é por meio das interfaces que

se gerenciam as inter-relações entre os sistemas envolvidos. As distinções entre dentro e

fora, eu e outro, não são absolutas, mas relativas, sendo mais apropriadamente

7 O sentido de generalização a que me refiro aí se refere à captura de uma significação, ação ou seus

produtos por um processo de abdução, de modo a denotá-los como instância de um gênero.

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caracterizadas como tensões8 do que como fronteiras. Não sendo estáticos, ecossistemas

conservam a sua identidade por meio do balanço (e não do equilíbrio) entre seus

elementos e dinâmicas. O organismo vivo, portanto, sendo ele mesmo um ecossistema,

não se preserva por defletir interações, mas por geri-las.

Para Lévy (1997), a objetividade das ideias e coisas no mundo é a qualidade que

possibilita o estabelecimento de vínculos entre instâncias subjetivas e objetos, e, assim,

seu interfaceamento, levando à conformação de relações ecológicas em redes (Latour,

1994; Lévy, 1997). As relações no âmbito dessas redes são dinâmicas e fractais (Lévy,

1997): as mudanças no sistema incorporam suas recorrências, o que leva a uma

reorganização, em vez de uma descaracterização, das estruturas ecológicas. Neste sentido,

a objetividade favorece intercâmbios e interações, possibilitando a geração de interfaces

efetivas entre sujeitos, objetos e dinâmicas culturais. A agência se torna, então, uma

função da rede como um todo, e não apenas da subjetividade como elemento isolado

(Sannino et al., 2009).

Pelo filtro da abordagem histórico-cultural, podemos considerar que uma ecologia

cognitiva se caracteriza, no fim das contas, pela intersubjetivação: interfaceamentos

regulares (mas fluidos) entre modos de ser e fazer e subjetivos, mediados e re-mediados

por instrumentos culturais que favorecem as abduções que integram o objetivo e o

subjetivo.

8 Enquanto fronteiras são bem delimitadas e perenes, tensões se constituem de um jogo contínuo de forças

diversas sobre um mesmo substrato, o qual varia em forma e configuração, na medida em que as forças que

ele suporta oscilam.

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1.2. A história por trás das tecnologias da inteligência

No decorrer da história, as inovações técnicas não substituíram seus antecessores,

sendo mais apropriado dizer que estes foram assimilados e reconfigurados, a exemplo da

história das técnicas de comunicação. Nesta seção, trato da técnica e da cognição situada,

numa breve exploração histórica clássica de como determinadas inovações técnicas

levaram a inovações “cognitivas” (subjetivas, nos paradigmas, nas lógicas, nas

representações de mundo e homem).

Lévy (1997) explora a relação entre técnica e cognição a partir da seguinte

questão: “como e por que diferentes tecnologias intelectuais geram estilos de

pensamentos distintos?” Esse autor passa pela construção e gestão da memória e pela

produção da temporalidade como dimensões da experiência mediadas por tecnologias da

inteligência. Sua análise se inicia pelas sociedades anteriores à escrita, em que a oralidade

é um aspecto técnico primário. Nelas, destaca-se o papel da fala e da escuta como vias de

transmissão do conhecimento, com a sabedoria sendo passada dos velhos aos jovens. A

inteligência é ligada à memória, e as representações auditivas seriam as mais importantes,

com os rituais sociais passando pelas narrativas e pela musicalidade. A palavra teria como

função não apenas a comunicação, mas a gestão da memória social como um todo.

A estratégia de construção de uma representação tem papel fundamental para

evocá-lo na memória. A elaboração de narrativas é uma estratégia de compreensão e

memorização que favorece a guarda de uma memória. As informações são mais bem

retidas quando associadas a esquemas familiares, e são mais fáceis de lembrar quanto

mais estivermos afetivamente envolvidos com ela. Os esquemas simbólicos anteriores

subsumem/corrompem a informação nova a seus tipos. Na oralidade primária, prevalece

a eficiência mnemônica de representações interconectadas entre si, expressando relações

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de causa e efeito, referentes a domínios do conhecimento concretos e familiares, e que se

relacionem ao contexto concreto da vida e da identidade do sujeito. “Não há, portanto,

como opor um pensamento mágico e selvagem a um pensamento objetivo e racional. A

ecologia cognitiva da oralidade primária se baseia na memória de longo prazo e em

recursos narrativos e dramáticos e mitológicos. São as melhores estratégias de codificação

de que dispõem. As temporalidades são cíclicas, com a reiteração das memórias, e, na

ausência de pontos fixos, a cronologia é marcada pelo devir.

A escrita emerge como técnica em momentos históricos de sociedades que

passaram a cultivar os próprios recursos básicos, o que demandou que se fixassem na

terra e no tempo. É desta época que as transições e recorrências vão perdendo lugar para

a permanência: surgem o Estado, os muros, a métrica. A escrita é só mais uma dentre as

várias técnicas desenvolvidas para superar o caráter efêmero da realidade, constituindo

um meio para a criação e gestão de simbologias duráveis, produzindo irreversibilidade no

tempo. Como tecnologia de comunicação, a escrita isola a mensagem de um contexto

vivo, conversacional, substituindo a função empática do orador pelo exercício de

interpretação do leitor. A perda do contexto de interlocução abriu espaço para o

desenvolvimento de gêneros facilitadores da interpretação, universalistas, objetivis tas,

enviesados. Deles surgem as teorias, os mitemas, os discursos com pretensões universa is,

que sempre têm bases textuais. O conhecimento ganha conformação modular, inibindo

seu arranjo em narrativas, ou reconfigurando-as em arranjos mais prosaicos e menos

míticos. A escrita fez da palavra um instrumento de colonização. Seu poder de

padronização aumentou com o advento da impressão.

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No que concerne à razão, os oralistas9 praticam outra forma de pensar: são

propensos a significarem as relações entre coisas em termos de situações, e não de

categorias. Categorias pertencem a uma racionalidade inventarial fundamentada no uso

de símbolos e esquemas escritos. A própria filosofia teria surgido de uma ressignificação

da oralidade primária por uma lógica conceitual prosaica. Também a história, como

gênero literário e de raciocínio, é um efeito da escrita. Criada de forma linear e

segmentada, ela retrata o devir em termos de ser. A escrita, ainda que não tenha

determinado, condicionou tais formas de pensamento, sendo a prosa não só uma forma

de expressão, mas uma identidade constitutiva. As interfaces da escrita impressa

aprofundaram o distanciamento da discursividade concreta, habilitando formas abstratas

e esquemáticas de representação, hoje já naturalizadas. A padronização da informação

(manuais, dicionários, inventários) viabilizaram o surgimento da crítica, que se debruça

sobre um passado terminado. A independência espaço-temporal e a preservação dos

saberes acentuou a cumulatividade do conhecimento e com ela o sentido do progresso.

As descobertas recentes ganharam relevância em relação aos saberes do passado,

iluminando o futuro como temporalidade virtualmente promissora. As seguidas re-

mediações destas técnicas e contextos levaram ao desenvolvimento da ciência moderna,

com sua sistemática de intercâmbio de inovações via papers impressos. A padronização

e fidedignidade trazidas pela prensa padronizaram a objetividade, viabilizando o

surgimento de um novo estilo cognitivo.

Já a informatização trouxe a digitalização dos conhecimentos e das

representações. Sob a roupagem digital, qualquer matéria se torna infinitamente maleáve l

9 O termo oralista vem em substituição à designação “analfabeto”, que toma como referência as culturas

letradas.

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e reproduzível. O desenvolvimento da informática faz com que os especialismos e

proselitismos técnicos caiam em desuso, acessibilizando a manipulação de informação

empírica e programática com níveis de maleabilidade e acessibilidade próximos aos que

possibilitaram a popularização da escrita. Sons podem ser sequenciados, sintetizados e

gravados digitalmente, dispensando a execução instrumental. Imagens e vídeos se tornam

plásticos e tão editáveis quanto textos, transformando o mundo das representações em um

mundo de ideografias dinâmicas (Lévy, 1997). A própria programação se torna

progressivamente simplificada, com linguagens e lógicas mais próximas das naturais e o

desenvolvimento progressivo de interfaces entre interfaces, cada vez mais eficientes em

integrar a cognição e sensorialidade do usuário em uma experiência computacional em

rede. As novas conformações entre representações, hipertextualidade e inteligênc ia

artificial viabilizaram um tipo de bricolagem digital por meio da qual os atores sociais

reconfiguram seus saberes, identidades e suas agências, re-mediando os ordenamentos de

seus universos simbólicos e, consequentemente, suas formas de construir significações.

O estoque, a circulação e a reapresentação da informação são abrangentes e

automatizados, com diferentes codificações e apresentações. Representações em

multimídias cada vez mais desenvolvidas, acessíveis e aprazíveis aludem à possível

obsolescência próxima das mídias impressas e habilitam uma nova forma de saber, que

não se reduz à memorização ou à interpretação, baseando-se na exploração interativa. Tal

saber constitui verdadeiramente um conhecimento por simulação.

O uso das interfaces computacionais está mudando tanto as formas de interação

quanto as de “seleção”. Interfaces cada vez mais abrangentes e sensíveis devem levar a

uma sistemática funcional que integre e unifique as ações mútuas de usuários e sistemas,

o que se torna cada vez mais viável com o desenvolvimento da computação ubíqua.

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Complementarmente, a gestão da informação também vem se tornando progressivamente

automatizada e personalizada, com programas que contam com buscadores sofisticados,

ou que aprendem sobre nossos hábitos e preferências, codificando e filtrando as

informações que nos fornecem de acordo com este aprendizado. O uso de redes e da

potência de cálculo da informática se torna tão naturalizado quanto o da eletricidade e da

água encanada. Estando cada vez mais interconectados entre si, estes vários sistemas se

tornam, de forma consistente, componentes de nossas ecologias cognitivas. Assim,

“aquilo que ontem fora interface torna-se órgão externo” (Leontiev, 2004, p. 101).

Todavia, uma tecnologia não substitui a outra. Com o advento da escrita, e mesmo

da modernidade, a oralidade continua prevalecendo como principal via de transmissão de

representações e modos de ser. Mesmo nos escritos, as modalidades orais foram, por

muito tempo, prevalentes, e até hoje o que caracteriza um bom texto não é seu preciosismo

linguístico, mas a sua fluência, característica da fala. O mesmo pode ser dito da

informática, que surgiu e opera de acordo com os esquematismos da escrita e evolui em

direção à usabilidade intuitiva e coloquial. Contudo, tanto a computação quanto a escrita

modificaram a oralidade, pois deram suporte à reconfiguração das formas de representar,

narrar e esquematizar, constituindo-se como tecnologias da inteligência. Os modos de ser

imbrincados em redes e interfaces ainda não se consolidaram em configurações

canônicas, e nem são claras as implicações do conhecimento por simulação nos processos

de significação (Lévy, 1997).

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1.3. A operacionalidade da técnica como dispositivo metafórico de interfaceamento

entre signos

Há muito as ciências cognitivas reconhecem haver uma relação de co-constituição

entre os saberes e as estruturas epistêmicas dos sujeitos. Esta é uma relação que diz

respeito à conformação de sua visão de mundo: ela diz respeito ao que é concebível como

realidade possível, e também à forma (Gestalt) sob a qual estas concepções estão

conformadas. Diz respeito ainda às facetas do que é possível em termos de conformação

do saber (conceitos, representações) e das interações (discursos, ações) entre sujeitos e

mundo(s). Diz respeito, por fim, à postura assumida por cada sujeito diante deste mundo.

Se eu opto por investir em meu enriquecimento pessoal, não me sentindo

responsável pela desgraça daqueles sem renda em um mundo em que uns têm sorte e

outros têm azar; se eu tenho plena convicção de que o câncer de meu irmão foi curado

pelo poder a mim concedido pelo Divino Espírito Santo; se eu defendo ardentemente a

garantia de direitos humanos mesmo para os autores dos atos mais monstruosos; se eu me

jogo de uma ponte com a perna amarrada a um elástico esperando me sentir bem por isso;

se reajo impulsivamente a um assalto tão logo veja uma arma; ou se me sinto mal ao

conceber a possibilidade de me esgueirar por espaços estreitos ou escuros... isto se deve

à minha concepção do que seja o mundo real, determinante no delineamento de minha

própria identidade.

As lentes de uma visão de mundo são intuitivas e configuram o caráter concreto

dos objetos ao incorporá-los na totalidade gestáltica da realidade como concebida pelo

sujeito (Valsiner, 2007). Esta relação de interconstituição sujeito-objeto tem sido

abordada por diversas teorias nas ciências psicológicas, sob diferentes vieses. A teoria

piagetiana, por exemplo, considera que a intencionalidade centra-se no caráter positivo

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(ou assertivo) dos objetos e informações, sendo a substância de sua objetividade

modelada em um processo de equilibração das estruturas cognitivas. A Psicologia

Cultural Semiótica considera que a intencionalidade humana é compartilhada, de modo

que as significações sobre o objeto e seu caráter como coisa real são construídas no âmbito

de um contexto interacional (entre sujeitos), por meio da re-mediação de signos, símbolos

e dinâmicas semióticas culturalmente disponibilizadas (Rosa, 2007a; Sannino et al., 2009;

Tomasello & Hermann, 2010; Valsiner, 2012). Stephen Pepper (1970) propôs que as

qualidades percebidas nas coisas são generalizadas pelo filtro compreensivo de

metáforas-raiz, as quais condicionam nossas interpretações da realidade de acordo com

determinados delineamentos interpretativos, historicamente próprios de visões de mundo

específicas (mecanicista, organicista, contextualista, etc. – Sarbin, 1986). A Construal

Level Theory (Teoria dos níveis de construção/significação) estabelece que quanto mais

espacial, temporal ou socialmente próximo o fenômeno ou objeto percebido, mais

concretos e minuciosos são os termos e representações usados para se referir a ele, e

quanto mais distantes, mais abstratos e vagos (Milfont, 2010; Milfont, Abrahamse, &

McCarthy, 2011).

Ao mencionar concepções tão diversas, não proponho que se negligencie as

diferenças epistemológicas entre elas. Ao contrário, elas devem ser contrastadas para

salientar que, mesmo no âmbito de teorizações tão fundamentalmente distintas, certa

faceta empírica do fenômeno perceptivo conservada em todas: a realidade diante da qual

o ser humano reage e com a qual interage é uma realidade que existe concretamente em

sua percepção, sendo sua concretude estável, mas dinâmica, e, sobretudo, generalizáve l.

Já no que diz respeito à sistemática sob a qual esta generalização acontece, há distinções

bem demarcadas entre estas teorias. A seguir, exploro algumas destas distinções a fim de

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demarcar em que tipos de fenômenos semióticos cada uma delas tramita, começando pela

noção de metáfora.

Uma metáfora é uma analogia, um dispositivo semiótico que torna

semanticamente análogos, por salientação de suas semelhanças, dois ou mais objetos que

não fazem parte da mesma categoria ou do mesmo contexto prático. Por meio dela, a

essência abstrata que há em comum entre os objetos comparados “preenche”10 as lacunas

da concretude semântica que os caracteriza, gerando assim uma continuidade perceptual

entre eles (Peirce, 2011; Sarbin, 1986). O ato metafórico atua, então, como via

operacional de interfaceamento entre signos distintos ao incorporá-los em uma mesma

ação e orientá-los a uma mesma intencionalidade, situando-os num mesmo contexto

operacional (Sannino et al., 2009). Ao incutir na ação a função de compreensão analógica,

a metáfora atua, portanto, como dispositivo de operação, actuation (Rosa, 2007a) da

cognição semiótica, produzindo mediações e metacognições (Lautert & Spinillo, 2011)

capazes de integrar em uma mesma matriz simbólica os elementos diversos da realidade

percebida. Em última instância, a reorganização de sua realidade de referência leva o

sujeito a repensar a sua própria situação, e, em decorrência disto, a re-mediar a própria

identidade.

No que concerne à significação, uma metáfora é um ato de conceituação: ela

constrói o conceito e conserva os elementos e a dinâmica da construção; ela apresenta o

produto, mas também sua fórmula (Lautert & Spinillo, 2011; Sarbin, 1986). Por outro

lado, uma vez generalizado, o conceito se torna um símbolo, apresentando sentido

10 Valsiner (2007, p. 28) usa o termo pleromatização para referir-se a este efeito de estufagem semântica

de um símbolo, que evoca, a partir de uma mesma representação, uma multiplicidade de significados e

conotações.

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independente e podendo ele mesmo ser tomado como elemento para uma nova analogia

e ser re-mediado ou simplesmente empregado como elemento imediato da ação ou da

comunicação (Valsiner, 2012; Vygotsky, 2007).

A despeito de sua funcionalidade semiótica, a metáfora possui uma marcada

limitação enquanto dispositivo de mediação: ela é uma figura de linguagem, o que faz

dela um recurso reservado às esferas mais elevadas e racionais da cognição semiótica

(Rosa, 2007a). Para operar uma re-mediação sob a forma de discurso, é preciso que uma

metáfora, enquanto dispositivo de significação, lide com signos do tipo símbolo, os quais

são o ethos semiótico das esferas mais conscientes e racionais da linguagem e do

pensamento (Rosa, 2007a; Valsiner, 2000, 2012). Todavia, é fundamental não perder de

vista que a agência humana também tramita largamente, se não majoritariamente, por

signos de tipo index e ícone, os quais operam experiências mais intuitivas, afetivas, que

são, em maior ou menor grau, fugidias à percepção consciente e à representação em

termos explícitos (Rosa, 2007a). Os ícones e índex também possibilitam a significação

de similaridades parciais, como é característico à metáfora, mas neste caso não é possível

simbolizá- las, não sendo, pois, possível compartilhá- las sob a forma de representações.

Assim, estes dois tipos de signos estão mais distantes dos gêneros da linguagem

expressiva e mais próximas dos gêneros das “linguagens” (ou semioses) compreensivas

– as categorias de signos mencionadas são apresentas em detalhes no segundo capítulo.

A noção de metáforas-raiz está entre estes gêneros compreensivos. Proposta no

contexto da teoria das Hipóteses de Mundo (World Hypotheses), as metáforas-raiz são

prismas para conceber a realidade, predisposições para gerar categorias e conceitos e para

reproduzir preconceitos (Sarbin, 1986). Da mesma forma (analógica) que uma metáfora

discursiva contextualiza seus elementos simbólicos em um contínuo semântico, uma

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metáfora-raiz o faz com os signos que fundamentam a visão de mundo e a identidade do

sujeito. Ela estrutura a mediação de experiências a partir de semioses intuitivas e

condicionadas, reverberando não apenas na linguagem, mas também nas diversas formas

de sentir, perceber, experienciar, agir e interagir do sujeito. Enquanto construto teórico, a

noção de metáfora-raiz é homóloga ao conceito de técnica apresentado anteriormente

(Ingold, 2000), mas com um viés mais psicológico (em comparação à abordagem

antropológica de Ingold e à sociológica de Lévy) que favorece a análise acerca de como

as significações constitutivas da objetividade instrumental das coisas são consolidadas

em âmbito individual, mesmo sendo fundamentadas em generalizações culturais coletivas

(Valsiner, 2007).

Por outro lado, enquanto a Teoria das Hipóteses de Mundo, com sua noção de

metáforas-raiz, é adequada para evidenciar as estruturas que subjazem às diferentes

formas de significar a realidade, ela não chega realmente a explicar a dinâmica pessoal

de funcionamento dessas estruturas, e seu uso acaba se limitando à descrição de

disposições perceptuais já consolidadas e que, no fim das contas, se manifestam de forma

mais evidente por meio da ação discursiva (Sarbin, 1986). Tendo em vista tais limitações,

exploro a Teoria da Ação Simbólica (Boesch, 2001, 2007; Valsiner, 2012) como uma

complementação conceitual adequadamente sinérgica. Por meio dela é possível ir além

do aspecto simbolizado das experiências, explorando suas facetas contingencia is,

intuitivas e emocionais, baseadas em signos icônicos e indexicais. De acordo com Boesch

(1991, 2001, 2007), é no âmbito da ação que se entrecruzam todos os níveis de

significação, sendo ela a via de canalização dos processos de produção de sentido. É por

meio da ação que o sujeito incorpora as referências culturais disponíveis dentro das

fronteiras de seu universo simbólico, e também é por meio dela que ele as reinventa e as

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reapresenta, num intercâmbio perpétuo entre cultura pessoal e cultura coletiva. A ação

humana, sempre uma ação simbólica (semiótica), é a verdadeira usina de

intersubjetivações e interobjetivações que fabricam o universo simbólico dos indivíduos

e grupos (Boesch, 2001).

A realização deliberada de uma ação é fundamentada em um fim, mas geralmente

este fim não encerra todas as motivações que levaram a sua execução: muitas destas

motivações (por vezes as mais significativas) subjazem a instância da razão, mediando os

atos e as significações de acordo com dinâmicas despercebidas pelo próprio sujeito.

Dinâmicas que se baseiam na re-encenação de mitos e elementos míticos, assimilando

seus contornos nebulosos e dando-lhes definição concreta.

Na Teoria da Ação Simbólica, os mitos são representações culturais altamente

generalizadas e contingentes de significação suplementar, e não necessariamente se

resumem a formulações discursivas e simbólicas. Aproximam-se do construto de

metáfora-raiz em seu caráter de referência estruturante para a ação, mas é mais flexível e

permeável que aquele, tendo salientado o seu caráter de vicissitude em vez da estabilidade

que caracteriza a metáfora-raiz.

No âmbito da ação, mitos, “estruturas” – condicionamentos (Bateson, 1987),

discursos e artefatos ganham caráter instrumental, atuando (advertida ou

inadvertidamente) como ferramentas na mediação semiótica e na produção de novos

sentidos, e tornando-se semanticamente agregados a eles. Todos se tornam elementos de

uma mesma realidade, contínua e com variados espectros de objetividade – e de

subjetividade, e de lucidez (Boesch, 1991, 2001, 2007). Como fenômeno semiótico, a

ação é, portanto, um ato que costura (uma ato em que o agente costura), em um mesmo

contexto, a agência (Sannino et al., 2009), a ferramenta (Ingold, 2000; Sannino et al.,

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2009), a técnica (Ingold, 2000), a identidade (Boesch, 2007; Lyra, 2014), a visão de

mundo (Pepper, 1970) e os ordenamentos semânticos que lhes conferem coesão; como

se, na prática, fossem diversas manifestações de uma mesma essência.

No âmbito de uma realidade cultural, as possibilidades de conformação da ação

estão restritas às suas “fronteiras”. Estas fronteiras não são espaciais, mas interaciona is,

e se caracterizam pelos limites das significações possíveis em dados contextos; limites

que são estabelecidos pela disponibilidade concreta de signos assimiláveis pelos sujeitos

nas conformações de suas agências, bem como por seus modos de percebê-los e re-mediá-

los. Em termos práticos, as fronteiras de um universo simbólico são difusamente

demarcadas por todos os recursos semióticos disponíveis a seus habitantes, voltados para

sustentá-lo e reforçá-lo, corroborando seus limites, mas também para reciclá-lo, inovando

as suas possibilidades. Mitos, metáforas, objetos, ferramentas, sujeitos, interações,

gêneros, lógicas, dinâmicas, estruturas e processos são apenas encarnações de signos

disponíveis para afetar ou subsidiar os sujeitos no decorrer de suas atividades e no

exercício de suas identidades.

Deste modo, os diversos recursos de mediação semiótica exercem a função de

ferramentas. Os processos de re-mediação, agenciamento e significação no geral,

desempenham, portanto, uma função cognitiva fundamental para a organização da

percepção: (re)configurar continuamente o campo total da realidade percebida,

concebendo-a como a história do possível.

A problemática levantada ao longo deste capítulo certamente não poderia ser

exaurida por um único estudo de mestrado, ainda mais se considerarmos a incipiência dos

estudos sobre a temática no âmbito da Psicologia Cultural. Mais que situar um simples

problema de investigação, ela demanda uma abordagem de envergadura mais abrangente,

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e instaura, na verdade, uma linha de pesquisa. Ciente desta limitação, atenho-me nesta

dissertação ao enfoque das formas de significação possibilitadas pela mediação de

interfaces computacionais ligadas em rede. Meu intuito primário é exploratório, no

sentido de demonstrar empiricamente a ocorrência de tais formas de significação e

mediação, a fim de torná-las familiares à matriz teórica da Psicologia Cultural, que

apresento a seguir.

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2. Análise microgenética baseada na Psicologia Cultural e na Semiótica

de Peirce

2.1. A Psicologia Cultural Semiótica e o empreendimento em um novo paradigma

sobre a cognição

A Psicologia Cultural Semiótica (PC) é uma abordagem da Psicologia que se

diferencia consideravelmente das concepções e metodologias tradicionais da Psicologia

(Valsiner, 2012). A princípio, porque tem sua ênfase epistemológica em uma ontologia

de transições, heraclitiana (Rosa, 2007a; Valsiner, 2003), divergindo das ciências naturais

e das abordagens psicológicas nestas ancoradas. Para a ciência psicológica, a primeira

implicação de sintonizar-se a uma ontologia de transições é abrir mão de um foco teórico -

epistemológico que prioriza concepções fisicalistas como base para a explicação do

funcionamento mental. Nessas concepções, os fenômenos são teoricamente delineados

como manifestações de regularidades, aparentemente perpétuas, nas propriedades

funcionais que os regem (como as leis da física e as interações entre moléculas, por

exemplo), além de basear-se em uma noção de temporalidade reversível. A ênfase

ontológica é posta sobre o estado de ser.

Já para a PC, a cultura passa a ser fundamento funcional do processamento

cognitivo. Neste caso, a cultura é compreendida como uma dimensão processual da

realidade, que é parcialmente imaterial, parcialmente mental, e cuja temporalidade é

irreversível. Os fenômenos mentais são compreendidos como processos de vir a ser,

salientando a condição permanentemente provisória do ser, que apenas estaria sendo

(Rosa, 2007a; Valsiner, 2003). Desta mudança de perspectiva decorre a necessidade de

que as regularidades dinâmicas que regem certos fenômenos, e que são próprias dos

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processos culturais, não mais tenham sua relevância posta em segundo plano ou

desconsiderada em favor de compreensões fechadas de sistemas de regularidades.

A adoção de uma ontologia de transições e o posicionamento da cultura no centro

das operações cognitivas logo demanda uma concepção deste conceito (cultura) que vá

além da concepção historicamente adotada nas ciências sociais e psicológicas.

Tradicionalmente, a compreensão de cultura é limitada a uma coleção de atributos

culturais formalmente transpostos à condição teórica de variáveis, as quais são

representações essencialmente abstratas, desvinculadas das feições de concretude das

realidades das quais seriam correspondentes (Harré & Gillett, 1999; Molenaar, 2004;

Valsiner, 2000, 2012). Sob a roupagem de conceitos, as variáveis na verdade se tornam,

elas mesmas, símbolos culturais, cujo valor qualitativo é invariante: tornam-se

reificadas11. Adicionalmente, esta concepção não se mostra apropriada para a

compreensão de processos regidos por formas de causalidade sistêmicas, por razões que

são explicitadas mais à frente nesta mesma seção.

A PC, por outro lado, demanda uma ótica mais sensível aos aspectos subjetivos

que não são propriamente universais a uma população: estes aspectos estariam

amplamente sujeitos a variações entre indivíduos (interindividual) e até mesmo em um

mesmo indivíduo (intraindividual), em tempos e contextos distintos (Valsiner, 2012). Do

ponto de vista científico, a evolução da subjetividade, quando compreendida como um

11 Este processo de construção progressiva de significados que leva à reificação de um conceito em uma

comunidade científica é muito bem ilustrado por Burman (2012), que analisou a evolução da noção de

meme: inicialmente apresentado como uma metáfora, um “gene de cultura” que operaria na cognição e na

memória, os memes logo foram assimilados como conceitos cientificamente válidos e adotados como

objetos de pesquisa para investigar a evolução da cultura sob a ótica epistemológica do evolucionismo

proposta por Richard Dawkins (2007) no livro O Gene Egoísta. Mas essa assimilação teria sido realizada

sem que houvesse indícios empíricos de que a evolução das ideias na cognição se desse de forma similar a

dos organismos em suas ecologias.

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processo enraizado no substrato cultural concreto de seu respectivo sujeito, demanda a

produção de dados que conservem certos traços de complexidade expressos em suas

manifestações empíricas. Desse modo, a PC conserva em suas formulações teóricas

detalhes particulares e casuais dos fenômenos psicossociais estudados. Por outro lado, há

uma aparente perda de poder de predição, a partir de seus modelos teóricos, acerca da

ocorrência dos fenômenos empíricos que representariam. Essa perda se daria em

comparação aos tipos de previsões extraídas de modelos generalizados a partir de dados

estatísticos e probabilísticos. Nestes modelos, os fenômenos são teoricamente

compreendidos em matrizes de dados que possibilitam uma leitura regressiva dos

processos causais, de modo que as causas que antecedem um evento possam ser

acuradamente deduzidas a partir das variáveis que representariam seus efeitos. A

possibilidade de análises regressivas e lineares se deve à finitude lógica dos sistemas

teóricos operados, configurados como sistemas fechados, de modo que as temporalidades

subjacentes aos processos neles enquadrados podem ser teoricamente tratadas como

temporalidades reversíveis (Molenaar, 2004).

Na ótica da PC, por outro lado, os elementos culturais se manifestam eivados de

atributos subjetivos e simbólicos, e sempre por meio da ação de sujeitos. Nesta

perspectiva, portanto, a cultura não seria algo capaz de existir em estado puro, e cada

aspecto que a compõe se manifestaria sempre em uma configuração própria, sempre

adulterado pelas peculiaridades contextuais e subjetivas da ação que o incorpora (Valsiner

& Rosa, 2007).

Os atributos fundamentais que, do ponto de vista científico, caracterizam cada

prática cultural, são conservados em cada ocorrência concreta dessas práticas. Contudo,

em cada uma dessas ocorrências, algumas características que não estavam previstas na

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definição geral de uma determinada prática também são empiricamente manifestadas (o

ato de ler, por exemplo, costuma ser medido quanto a sua velocidade ou efetividade da

compreensão, mas características como a posição do texto ao ser lido ou a preferência por

certo tipo de iluminação acabam sendo desconsideradas, mesmo que, para certas pessoas,

por razões particulares, elas sejam consideradas traços intrínsecos ao exercício de leitura,

e tenham implicações nas características medidas). Em modelos estatísticos, essas

variações casuais costumam ser consideradas desprezíveis ou categorizadas como outros

e qualitativamente desconsideradas nas análises dos fenômenos (Valsiner, 2012). Na

perspectiva causal (sistêmica) adotada pela PC, no entanto, essas variações devem ser

consideradas a partir daquilo que têm de particular, pois, ainda que sejam bem menos

frequentes que as variações classificadas como variações padrão, elas podem atuar como

catalisadores de alterações significativas no funcionamento de processos, desviando-os

dos seus fins originais e os reconfigurando de tal modo que estes passem a evoluir em

função de novos fins (Cabell & Valsiner, 2014).

Em consequência, o foco da perspectiva aqui adotada não recai sobre uma noção

de processo que equivale ao produto de uma cadeia fechada de funcionamento; nesta os

elementos componentes (causantes) atuam em sequências ordenadas, e suas propriedades

causais, sendo estáveis, constituem a base essencial de processos cujo funcionamento é

algorítmico, mecanicista e maquínico. O foco da PC recai sobre os processos enquanto

cadeias orgânicas de evolução. Cadeias orgânicas porque, ainda que os processos

evoluam de acordo com padrões (padrões metaforicamente análogos às linhas

evolucionárias das espécies, nos seres vivos), cada um desses processos é composto de

agentes causantes que são eles mesmos casos particulares que incorporam aqueles

padrões (seguindo com a mesma metáfora, seriam casos análogos os indivíduos de cada

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uma das espécies). Tais casos estão ainda situados em contextos concretos (análogos a

sistemas ecológicos), interagindo uns com os outros ao longo do tempo, e sujeitos a

variações acidentais no curso de seu desenvolvimento; variações que podem, por fim,

alterar as formas de interação dos agentes modificados, levando-os a novos modos de se

relacionar com os agentes causantes já conhecidos, ou mesmo os de outros tipos. Na

prática, a alteração das propriedades causais de um desses elementos pode repercutir nos

processos dos quais é componente e, consequentemente, modificar- lhes as propriedades

causais em relação aos sistemas dos quais participam. Ao longo do tempo, a agregação

dessas pequenas variações leva à reconfiguração progressiva do sistema: ao mudar os

meios, mudam-se os fins, e, com eles, as cadeias de fenômenos causados pelo todo de sua

interação. Os sistemas se adaptam às variações em seus meios, e, neste sentido, eles

evoluem12. Evoluem por razões casuais (até então imprevisíveis pela lógica sistêmica

afetada), além de terem adulteradas as condições que os permitiriam ser reiterados em

suas configurações pregressas, o que redireciona o progresso de sua evolução. Por esses

motivos, tais sistemas não podem ser considerados logicamente finitos, sendo, portanto,

sistemas abertos, de modo que a temporalidade intrínseca a seu funcionamento é

12 Uma evolução sistêmica desse tipo pode ser ilustrada pela superação de uma relação de duplo vínculo –

double bindng (Bateson, 1987). O duplo vínculo é um tipo de sistema relacional e autorreforçador em que

a interação entre dois lados ocorre por meio de mensagens que são simultaneamente apropriadas e

inapropriadas. Uma das situações comuns que o caracterizam é o caso em que, numa empresa, gerentes

cobram de seus subordinados que apresentem desempenho muito acima da meta (pois considera,

tacitamente, que dessa forma se esforçarão para chegar pelo menos próximo do normalmente desejado), ao

mesmo tempo em que estes controlam sua produção para que esteja sempre abaixo da meta (pois acham

que um aumento em eficiência seria acompanhado de elevação nas metas e aumento da cobrança). Nesta

relação, a relação gerente-subordinados configura um ciclo que afeta negativamente a produtividade. Com

a intervenção de um consultor, as crenças de gerentes e subordinados poderiam ser gradualmente

modificadas, tornando suas relações funcionais, aprimorando a comunicação e levando, assim, à superação

do duplo vínculo. Muda-se, portanto, a lógica do sistema.

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irreversível (Rosa, 2007a; Valsiner & Rosa, 2007). Os sistemas abertos são, pois, típicos

sistemas heraclitianos.

Logo, ao mesmo tempo em que as interações entre agentes causais são os meios

necessários para a perpetuação de uma dinâmica sistêmica já em curso, elas podem ser

também os meios suficientes para a agregação de mudanças no curso de sua evolução,

tornando-o diferente de si mesmo no transcorrer do tempo, mas conservando, a cada

mudança, a sua identidade geral como fenômeno. Esses tipos de sistemas que podem

variar ilimitadamente em suas conformações são denominados sistemas abertos (Valsiner

& Rosa, 2007). Pode-se considerar que o funcionamento e a evolução desses sistemas são

análogos aos de ecossistemas. Mas, no contexto da PC e da Teoria da Atividade Histórico -

Cultural (CHAT), em vez de indivíduos autônomos, os “agentes” (nesse caso, actantes)

dos sistemas são uma diversidade de elementos cultural-cognitivos: signos, símbolos,

ações, semioses e outros tipos de circunscrições teóricas com propriedades causais

semelhantes; em vez de espécies, as linhagens equivalem a cadeias de recursões contínuas

entre aqueles tipos e elementos, e podem ser compreendidos como semioses,

interpretações, atividades, fluxos recursivos, etc.; e todos estes conformam e dinamizam

as totalidades orgânicas que são os sistemas sócio-histórico-culturais, cada um dos quais

corresponde a uma dimensão ou faceta do que habitualmente é referido como uma

cultura, propriamente dita: práticas culturais, sistemas de atividades, técnica, tecnologia,

discursos, representações, mitologias, linguagens, estética, moralidade, valores, ética,

beleza, inteligência, normalidade, identidade, dentre uma infinidade de outros aspectos

aparentemente distintivos dos vários traços próprios de cada um dos diferentes grupos

humanos (Boesch, 1991; Ingold, 2000, 2008; Rosa, 2007a, 2007b; Valsiner, 2012).

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2.2. A mediação como processo semiótico em evolução

Considerando o que apresentei até este ponto do presente capítulo, proponho que

os tipos de fenômenos referidos generalizadamente como “processos” sejam, ao longo

dos próximos parágrafos, ilustrativamente compreendidos como dispositivos de

memória, nos moldes da discussão apresentada por Wagoner (2012). Neste caso, tais

dispositivos são concernentes ao ato de lembrar, ou, mais generalizadamente, de restituir

informações. Tradicionalmente, na Psicologia, essa restituição costuma ser concebida

como o resgate de informações a partir de depósitos em que réplicas dessas mesmas

informações estão guardadas sob formas análogas a seus modelos originais (Wagoner,

2012). Nestes casos, os conteúdos mnemônicos são considerados como pré-existentes ao

ato de lembrar e têm uma configuração formal específica e estável. Quaisquer desvios da

informação recuperada em relação ao padrão memorizado seriam consequências de falhas

no ato de recuperação (ou mesmo de codificação, se apenas a fonte original da informação

for considerada uma referência aceitável), e, portanto, a informação lembrada não seria

fidedigna ao conteúdo originalmente memorizado ou consumido. É neste enquadramento

que fenômenos como as “falsas memórias” (que seriam conteúdos mentais produzidos a

partir daqueles tipos de falhas) encontram validação epistemológica (Gazzaniga, Ivry, &

Mangun, 2006a). Neste panorama, as memórias consideradas genuínas seriam aquelas

em que, entre o consumo e a recuperação de um conteúdo, não teria havido perda de

informação. Assim, a confiabilidade das informações estaria em função da confiabilidade

dos depósitos usados paras conservá-las. Modelos formais e variáveis estatisticamente

bem estruturadas seriam, pois, considerados dispositivos mnemônicos acurados que

proveriam inúmeras possibilidades de armazenamento e restituição da informação a partir

de processos confiáveis, estáveis e de variabilidade restrita (Harré & Gillett, 1999).

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Toma-se como um exemplo dessa perspectiva a Teoria da Mediação Cognitiva

(TMC). Proposta por Campello de Souza (2004), a TMC é apresentada como um modelo

capaz de explicar as formas de mediação que teriam surgido apenas a partir do uso

habitual de DCs. Campello de Souza especifica mediação como uma forma de

transmissão de informação (ou propagação de atributos) entre sujeitos e os objetos de

suas ações e percepções, sendo intermediada pelo ambiente. Neste arranjo, fatores

ambientais específicos atuariam como Máquinas de Turing13, que processariam

informações concernentes aos objetos e as tornariam disponíveis ao sujeito em uma

configuração mais sofisticada do que os tipos possibilitados pelo uso do puro raciocínio

13 Uma Máquina de Turing é um dispositivo computacional hipotético. Campello de Souza (2004) assim a

define: “uma Máquina de Turing é um construto abstrato capaz de realizar computações, ou seja, de realizar

uma seqüência de operações lógicas” (p. 60). Não havendo cabimento para a uma exploração conceitual

devidamente aprofundada deste dispositivo, apresenta-se aqui apenas uma breve definição, extraída

diretamente da Wikipédia:

“Uma máquina de Turing consiste em:

1. Uma fita que é dividida em células, uma adjacente à outra. Cada célula contém um símbolo de

algum alfabeto finito. O alfabeto contém um símbolo especial branco (aqui escrito como ¬) e um

ou mais símbolos adicionais. Assume-se que a fita é arbitrariamente extensível para a esquerda e

para a direita, isto é, a máquina de Turing possui tanta fita quanto é necessário para a computação.

Assume-se também que células que ainda não foram escritas estão preenchidas com o símbolo

branco.

2. Um cabeçote, que pode ler e escrever símbolos na fita e mover-se para a esquerda e para a direita.

3. Um registrador de estados, que armazena o estado da máquina de Turing. O número de estados

diferentes é sempre finito e há um estado especial denominado estado inicial com o qual o

registrador de estado é inicializado.

4. Uma tabela de ação (ou função de transição) que diz à máquina que símbolo escrever, como

mover o cabeçote ( para esquerda e para direita) e qual será seu novo estado, dados o

símbolo que ele acabou de ler na fita e o estado em que se encontra. Se não houver entrada alguma

na tabela para a combinação atual de símbolo e estado então a máquina pára.

Note que cada parte da máquina é finita; é sua quantidade de fita potencialmente ilimitada que dá uma

quantidade ilimitada de espaço de armazenamento”.

Para informações mais detalhadas, consulte http://pt.wikipedia.org/wiki/M%C3%A1quina_de_turing, em

português, ou http://en.wikipedia.org/wiki/Turing_machine, para uma exploração mais detalhada, em

inglês (as duas páginas foram acessadas em 01/06/2013).

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abstrato ou de dispositivos não computacionais. Deste modo, os computadores atuariam

como “mecanismos de processamento extracerebral”, conferindo vantagens cognitivas a

seus usuários.

A epistemologia subjacente à TMC tem como base uma concepção de causalidade

direta, em que os processos se dão de forma linear: cada etapa do processo é efetuado por

díades, com um elemento sendo causante e o outro manifestante dos efeitos decorrentes

da interação. Em termos práticos, isto equivale à consideração de que a informação

proveniente do objeto afeta os elementos do ambiente, que, por sua vez, afeta a atividade

cognitiva do sujeito, que tem sua percepção do objeto enviesada pela mediação ambienta l

(Campello de Souza, 2004).

Tendo apresentado um panorama geral da TMC, apresento aqui algumas

considerações sobre as limitações da teoria. Primeiramente, é preciso considerar uma de

suas contradições fundamentais, que segue ao longo dos próximos parágrafos: de acordo

com Campello de Souza (2004), para que a mediação cognitiva por DCs propicie

vantagens cognitivas, é preciso que duas condições sejam satisfeitas: a primeira é que

haja algum dispositivo, externo à constituição orgânica do sujeito (ou “disposit ivo

extracerebral”), que seja capaz de processar informação (“transformar dados”, de acordo

com o autor) de uma forma determinada; a segunda condição é que o sujeito esteja munido

de determinados conhecimentos que seriam condições imprescindíveis para o consumo

das informações provenientes daqueles dispositivos: sem estes conhecimentos, o sujeito

não poderia se beneficiar de seus atributos mediacionais.

Nesta formulação há uma contradição, que se torna explícita ao se levar em

consideração as relações funcionais entre consciência e processamento cognitivo. Tome-

se como base as formulações de Gazzaniga, Ivry e Mangun. (2006b) a respeito da

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existência de pelo menos três níveis distintos nesta relação. O primeiro desses níveis é o

da senciência, que corresponde à experiência em que se reage aos estímulos ambienta is

de forma quase automática, de acordo com os conhecimentos e hábitos já condicionados

ao sujeito, e cujos processamentos ocorrem de forma completamente subconsciente, de

tal modo que apenas os seus produtos finais (as reações) se tornam explicitamente

cognoscíveis ao sujeito (assustar-se com um animal temido, sobressaltar-se ao ouvir a

buzina de um carro próximo, reagir emocionalmente a uma fala, rir de uma piada, ou

mesmo manter a coordenação ao andar de bicicleta e caminhar são exemplos de reações

desse tipo). O segundo nível é o do acesso à informação, em que processos

subconscientes (cuja natureza e os procedimentos de processamento são desconhecidos à

consciência explícita do sujeito) processam determinadas informações as quais acabam

se tornando acessíveis à consciência explícita, ainda que o sujeito cognoscente não seja

capaz de perceber a sua origem cognitiva (procedimentos como o uso fluente de

linguagens, as ações motoras inseridas em algum fluxo coordenado, como a de tocar um

instrumento musical; o reconhecimento de objetos e a própria capacidade decisional são

ações que, em parte, se fundamentam em informações provenientes de processos

neurocognitivos subjacentes). O terceiro nível é o do autoconhecimento, no qual as

informações operadas pelo sujeito são explicitamente conhecidas, mas, diferentemente

do simples acesso à informação processada subconscientemente, neste nível está presente

a consciência explícita sobre os procedimentos utilizados para se chegar a determinadas

conclusões, e sobre os estados assumidos ao longo do processo. Neste nível estão a

consciência de si, os raciocínios hipotético-dedutivo ou lógico, bem como o exercício de

automediação denominado metacognição (Gazzaniga et al., 2006b; Lautert & Spinillo,

2011). Cada uma dessas instâncias da consciência se caracteriza não apenas pelo seu

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aspecto funcional no contínuo inconsciente-semiconsciente-consciente, mas também por

sua correlação com determinados padrões de atividades neurais, sendo fisiológica e

topicamente associada ao funcionamento de certas regiões corticais e encefálicas

convencionalmente consideradas centros orgânicos de processamento para tipos

específicos de ações14 (Gazzaniga et al., 2006b).

A distinção entre estas três instâncias de atividade na consciência se suporta na (e

reforça a) noção de que o processamento cognitivo de informações e a sua mediação

ocorrem por meio de diversos canais interligados entre si, indo do funcionamento neural

à deliberação de alta ordem, e passando pelas mediações da mente subconsciente, das

interações ambientais e das estruturas culturais e interacionais em que as ações do sujeito

se situam. Em cada um desses canais, algum efeito mediacional específico é exercido

sobre a conformação da informação, e parte significativa dessa atividade ocorre

inconscientemente, necessariamente alienada à atenção consciente do indivíduo

(Gazzaniga et al., 2006b). Assim, a noção de que “mecanismos de processamento

extracerebral” que seriam capazes de “transmitir informações” (e atributos) à atividade

cognitiva e de modificá- la diretamente sem a mediação da deliberação voluntá r ia

equivaleria a equipará-los funcionalmente àqueles processos orgânico-menta is

subconscientes. Desse modo, a intermediação desses dispositivos atenderia à primeira

condição estabelecida na TMC para a ocorrência das vantagens cognitivas que seriam

características da mediação por estes canais.

14 Vale salientar que há algumas décadas as neurociências vêm se afastando progressivamente da noção de

que as funções neurocognitivas sejam processadas em centros neurais. O que tem se observado é que tais

funções têm como base a atividade de todo o cérebro, tendo nos centros apenas regiões de mediação. A

diminuição ou intensificação da atividade de cada centro, contudo, ainda são considerados indicadores

confiáveis das ênfases funcionais da atividade cognitiva.

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Ainda segundo essa lógica, é possível observar que a contradição mencionada no

início do parágrafo anterior se deve à natureza dos efeitos mediacionais desses

dispositivos. Uma vez que processariam externamente a informação, a segunda condição

proposta é irrelevante ou contraditória: irrelevante porque, processadas externamente, as

funções cognitivas não precisariam ser percebidas e compreendidas pelo sujeito

“paracognoscente”15, que apenas integraria em sua matriz orgânica as informações

fornecidas e se comportaria de acordo com os impulsos desencadeados pela totalidade

processual; contraditória porque, se há a necessidade de conhecimentos prévios para

reconhecer e compreender a informação fornecida pelos mecanismos externos, o que o

sujeito estaria recebendo não seriam propriamente informações equivalentes às atividades

de processamento, mas os produtos informacionais finais dessas atividades. Nesse caso,

não seria apropriado falar em “mecanismos externos de processamento”, mas em fontes

suplementares de informação, sendo o processamento cognitivo mesmo decorrente, de

fato, da atividade neurofisiológica intracorporal. A informação suplementada se

integraria à cognição apenas quando percebida normalmente, interagindo então com

conhecimentos prévios do sujeito, que, nesse contexto, seriam necessários como matriz

epistêmica para a interpretação da informação, e não como matriz algorítmica para o seu

processamento. As informações que constituem os atos de processamento em si,

realizados pelos dispositivos, permanecem completamente alienados à percepção do

sujeito.

15 Uso o termo “paracognoscente” neste caso para salientar a noção de que, a despeito de serem processados

em mecanismos exteriores ao sujeito, esses tipos de funções cognitivas ainda teriam seus efeitos

expressados por meio da consciência individual.

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Nesse sentido, o processamento externo de informações cognitivas esbarra na

impossibilidade orgânica de que os dados processados sejam diretamente integrados à

cognição, uma vez que não há canais de comunicação direta entre o dispositivo

eletrônico-computacional e a estrutura neuromental do agente cognoscente. A forma de

mediação descrita na TMC é, pois, praticamente inviável, o que denota a inexistência de

real mediação direta por DCs à atividade cerebral.

Por outro lado, a ocorrência de desempenho cognitivo superior entre usuários de

DCs, bem como a aparente validade da segunda condição proposta na TMC (a

necessidade de conhecimentos específicos para se beneficiar dos efeitos promovidos

pelos dispositivos), evidenciadas, por meio de correlações, por Campello de Souza

(2004), mostram-se consonantes a outras evidências empíricas e propostas teóricas que

indicam que há, de fato, peculiaridades nos tipos de mediação promovidos pelo uso de

DCs (Aarseth, 2001; Castells, 1999; Fundação Telefônica, 2013; Lévy, 2011a; Lindley,

2005; Meira & Da Rocha Falcão, 1997; Reis, 2013; Rojo & Moura, 2012; Rückriem,

2009). Contudo, essa mediação não se reduziria a um mero atributo intrínseco ao

mecanismo operado e nem a sua mecânica de funcionamento: não haveria relação de

causalidade direta e invariável entre as qualidades das informações fornecidas à

percepção do sujeito e as reações cognitivas por parte deste (Lévy, 2011b). Em outras

palavras, apesar de diferenciada, a mediação da ação pelo uso de DCs partiria dos mesmos

tipos de relação funcional característica de quaisquer outros artefatos: o objeto teria sua

emergência na atividade (Engeström, 2009b). Este pressuposto, que adoto nesta

dissertação, aparenta permanecer empiricamente irrevogado (Lévy, 2011b).

O desenvolvimento da mediação cognitiva pelo uso de DCs não se trataria,

portanto, da assimilação de add-ons (mecanismos de memória e processamento

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adicionais, suplementares) ao funcionamento cognitivo do sujeito, mas da apropriação e

uso competente de ferramentas, agregando à agência possibilidades (e não mecanismos

estruturados) suplementares, o que viabilizaria a realização de atividades e ações que

ocorreriam em condições adversas ou que sequer seriam possíveis sem que o agente se

aparelhasse com as propriedades instrumentais adequadas (Engeström, 2009b; Vygotsky,

2007). Deste modo, apesar de terem possibilitado reconfigurações revolucionárias nos

modos de ser, nos modos de saber e nos modos de fazer, os DCs permaneceriam, ainda,

ontologicamente pertencentes ao que as Psicologias Sócio-Histórica, Histórico-Cultura l

e da Atividade têm denominado de ferramenta (Engeström, 2009a, 2009b; Leontiev,

2004; Rodríguez, 2007; Rosa, 2007b; Valsiner, 2012; Vyigotski, 2004). Não se pode

deixar de notar, contudo, que são ferramentas que apresentam acentuado caráter de mídias

(Rückriem, 2009).

Longe de serem fixas e universais, as propriedades instrumentais de uma

ferramenta variam entre sujeitos, contextos e tempos, de modo que uma infinidade de

meios pode ser utilizada para alcançar um determinado fim, assim como uma infinidade

de fins podem ter uma mesma denominação e um mesmo fenótipo geral sem que sejam

alcançáveis por meios semelhantes. Atos simples como o envio de uma mensagem ou a

escolha de um relógio podem ser vistos como exemplos dessa variabilidade. No primeiro

caso, o envio poderia ser feito por meio de quaisquer dispositivos de mensagem à mão

(SMS, e-mail, chat, mensagem de voz, bilhetes, ou qualquer dispositivo que dê cabimento

a um texto), contanto que ela chegue a seu destinatário e tenha seu significado entendido.

Já a escolha de um relógio de pulso (um dispositivo de marcação de tempo) poderia estar

ligada à necessidade de que as horas possam ser consultadas com agilidade, ou à

necessidade de que o aparelho seja resistente, ou à prova d’água, ou elegante, ou

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ostensivo, ou que seja esteticamente condizente com a indumentária de seu usuário (ou

diferentes combinações e hierarquias dessas propriedades), dentre outras. O tipo de

dispositivo escolhido seria o mesmo, assim como seria a mesma a forma de utilizá- lo

(vestindo-o ao pulso), mas os efeitos instrumentais que cada modelo teria em contextos

específicos seriam variados, e a habilidade de seu usuário em explorar suas propriedades

potenciais também seria um fator essencial na circunscrição de sua identidade cultura l,

seu caráter enquanto ferramenta.

Assim, para que as formas de mediação promovidas pelo uso de uma ferramenta

sejam apropriadamente compreendidas, é preciso considerar os contornos pelos quais as

ações com ela realizadas se configuram como atos instrumentalmente efetivos para os

fins agenciados; e isto só é possível ao se levar em consideração o contexto pragmático

da atividade, assim como aos símbolos culturais que a definem. É relevante ainda

considerar como são operados pelos sujeitos, assim como as formas pelas quais essas

dimensões semióticas se articulam e formam o todo funcional que é a ação (Engeström,

2009a; Rosa, 2007a).

As variações nos significados instrumentais de uma ferramenta (e de suas

implicações mediacionais) são ainda diretamente interdependentes das formas pelas quais

os agentes experienciam a temporalidade em suas ações. Da perspectiva de ontologias de

permanência, a experiência humana equivale ao cumprimento de um script, com o sujeito

seguindo uma sequência de ações causais já previamente estabelecida. Nesse caso, os

determinantes temporais do fenômeno são externos ao mesmo. As singularidades

individuais e a variabilidade delas decorrente não teriam efeito sobre a modelagem da

própria cadeia causal. Segue um exemplo dessa organização causal apresentada por

Campello de Souza (2004), referente ao processo de mediação cognitiva (Figuras 1 e 2).

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Figura 1. O processo de mediação na TMC (Fonte da imagem: Campello de Souza,

2004. Título original: “diagrama 1: o processo de mediação”).

Figura 2. Esquema geral do processo de mediação na TMC (Fonte: Campello de

Souza, 2004. Título original: “diagrama 2: um esquema geral da mediação

cognitiva”).

Observe que neste exemplo as sintaxes dos esquemas causais se encontram

conceitualmente estabelecidas, havendo funções instrumentais já previamente associadas

a determinadas instâncias do processo de mediação: as estruturas de processamento

interno realizariam as operações lógicas e se comunicariam com os mecanismos internos

de mediação; estes, por sua vez, atuariam como vias de acesso entre os processos internos

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e externos, codificando e decodificando as representações percebidas e emitidas; as

representações percebidas seriam advindas dos mecanismos de processamento situados

no ambiente, externos ao sujeito, os quais teriam codificado os atributos cognoscíveis dos

objetos do mundo, atribuindo- lhes valores instrumentais que não estariam disponíveis nos

objetos sem os filtros daqueles processos de intermediação.

No modelo ilustrado nas Figuras 1 e 2, as propriedades instrumentais de cada uma

das instâncias do esquema processual, bem como do modelo como um todo, são estáveis,

e os conteúdos das informações processadas não teriam a capacidade de alterar

significativamente a estrutura geral do processo. Em outras palavras, a mediação como é

concebida na TMC é um processo compreendido em uma temporalidade reversíve l.

Como tipo processual, ela teria um funcionamento regular, como um sistema fechado.

Nesse caso, a capacidade mediacional do processo não estaria sujeita a uma dinâmica

evolutiva, que alterasse, no decorrer do tempo, a natureza ontológica do processo que a

incorpora. Enquanto dispositivo de memória, estes são processos que não demonstram

capacidade de aprender, limitando sua existência aos valores de verdadeiro ou falso

(Bateson, 1987). A causalidade em que o modelo é fundamentado é essencialmente uma

causalidade direta, e não uma causalidade sistêmica. A consequência (epistemológica)

desta configuração em um processo de mediação é que, de uma perspectiva semiótica, ele

não pode ser considerado uma via de mediação genuína16, na medida em que este tipo de

mediação tem base, necessariamente, em uma estrutura triádica (Burgess, s.d; Cabell &

Valsiner, 2014).

16 A mediação genuína se caracteriza pelo contraste com a mediação (ou semiose) degenerada. Enquanto

na primeira a semiose é explicitamente mediada por um terceiro, na segunda a mediação se torna residual

(mas não totalmente ausente), aparentando funcionar de acordo com formas não mediadas de causalidade

(Peirce, 1931-58/1994).

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2.3. Esquemas cognitivos, mediação e a produção de sentidos

Uma vez que a relação entre artefatos, propriedades instrumentais, e as formas

singulares de mediação por elas catalisadas diverge dos tipos de relações causais

possibilitadas pela concepção nomotética de esquema (fechado, de funcionamento

estável, não evolutivo e de causalidade direta), introduzo a seguir uma noção deste

conceito que seja compatível à compreensão que proponho nesta dissertação.

Retomando a analogia proposta na seção anterior (processo enquanto dispositivo

de memória), o que se observa comumente em modelos nomotéticos é a divisão entre um

depósito de memória (o esquema) e um mecanismo de recuperação (o processo) daquela

informação para usá-la em outras operações cognitivas. Tais modelos têm sido o ideal

clássico da Psicologia que busca enquadrar-se em critérios de classificação científica

(Harré & Gillett, 1999).

Alinhando-se aos esforços de desenvolver arranjos epistemológicos mais

fidedignos às abordagens histórico-culturalistas, Wagoner (2012) apresentou uma

reformulação da compreensão de esquema que diverge da cisão conteúdo-processo acima

mencionada. Nesse caso, os esquemas mnemônicos não seriam coleções de conteúdos

mentais depositados na memória individual, mas determinadas conformações de hábitos

e regularidades desenvolvidos ao longo da vida do sujeito e que condicionariam suas

reações a determinados estímulos mentais e ambientais. Estes esquemas seriam, pois,

mediadores diretos entre a percepção imediata e os objetos do mundo, favorecendo, à

mente a partir da qual operam, a tomada de determinadas direções interpretativas e

perceptivas, e, desse modo, dando condução à atividade semiótica (Wagoner, 2012).

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Compreendidos como condutores da atividade semiótica, os esquemas

mnemônicos não se limitam à recuperação de memórias interiorizadas, na medida em que

parte considerável dessas memórias não configuram conteúdos declarativos ou

procedurais, e sim os hábitos em si mesmos: as predefinições sobre como significar

determinados tipos de estímulos e a eles responder. Predefinições estas que já jazem

condicionadas antes mesmo de quaisquer conteúdos que venha a significar. Além disso,

algumas das informações fundamentais para tal exercício de significação mnemônico -

perceptivo não se encontram “arquivados” sob a forma de conteúdos mentais, sendo então

providas pela leitura (da compreensão) dos contextos, das interações e atividades

correntes. Uma concepção de esquema dotada desses atributos implica em uma

caracterização de memória que, mais que um dispositivo de recuperação de informações,

seria uma função cultural-cognitiva voltada para a sua reconstituição (Wagoner, 2012).

Lembrar seria, então, o ato de ressignificar uma informação que teria algo de familiar,

mas com os vieses e contaminações impostos pelas demandas contextuais então atuantes.

Apesar de se estruturarem ao longo de seu próprio fazer, a condução da

reconstituição de significados não se daria em um fluxo acidental: a cognição

intraindividual, com sua dinâmica semiótica, responde às variações nas dinâmicas

interindividuais, e vice-versa. Para os sujeitos culturalmente situados, o ambiente não é

apenas material, mas, sobretudo, simbólico, assim como os outros de sua existência são

apenas atores em behavior settings, mas sujeitos intencionais (Engeström, 2009a; Ingold,

2000). Logo, se os indivíduos vivenciam seus processos de significação a partir de

modalidades (a eles) habituais de condução semiótica, isto se deve às regularidades

encontradas na própria realidade em que habitam (Valsiner, 2000, 2012). Dessa forma,

todos os componentes de um dado grupo cultural têm uma base simbólica comum, a partir

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da qual desenvolvem os elementos semióticos de sua cognição, mas cada um dos

indivíduos nesta realidade inseridos significa e ressignifica as suas ações e compreensões

do mundo em configurações que lhes são particulares. Cada uma dessas configurações,

por sua vez, é resultante de experiências que combinam e recombinam os elementos

culturais coletivos, transformando-os e os diferenciando de referências canônicas, além

de torná-los inteiramente particulares sob a qualidade de signos agregados, com a

experiência, à composição de seu sistema sócio-cognitivo (Sato, Hidaka, & Fukuda,

2009; Valério, 2013; Valsiner, 2000, 2012).

Diferentemente daquilo que se tornou canônico no senso comum das ciências

psicológicas, Wagoner (2012) demonstrou que, assim como os produtos atribuídos a

outras funções mentais, os conteúdos “rememorados” pelo sujeito também são, em grande

medida, leituras diretas de “memórias coletivas” dinamicamente evidenciadas no

desenrolar do contexto em que a lembrança ocorre. Em outras palavras, as memórias são,

em parte, projeções de hábitos e qualidades familiares sobre os objetos da percepção que

representariam; e uma infinidade desses hábitos e qualidades não proveria das

experiências que os sujeitos teriam (ou não) tido diretamente com aqueles objetos, mas

de experiências que os teriam levado a generalizar determinados atributos culturalmente

relevantes. Na percepção dos objetos do mundo, seriam esses os atributos a re-memorar,

tornando familiares certos eventos e objetos que nunca foram realmente experienciados,

e, portanto, não poderiam ter sido a fonte primária de lembranças (Wagoner, 2012).

Vale salientar que os esquemas generalizados não diriam respeito apenas ao

reconhecimento de qualidades sensuais ou espaciais, operando também na significação

de experiências temporais. Logo, ao condicionar e dinamizar a percepção conjugada de

atributos sensuais, espaciais e temporais, os esquemas cultural-cognitivos estabeleceriam

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os parâmetros de adequação estética da realidade, sendo, pois, o “mecanismo” semiótico

produtor dos significados vivenciados no presente experiencial de cada sujeito (Valsiner,

2000, 2012; Wagoner, 2012).

Esse processo de leitura dos elementos dinâmicos de um contexto pode ser

apropriadamente ilustrado com o simples ato de consultar as horas em um relógio

analógico. Este dispositivo apresenta uma superfície circular em que estão marcados os

números de 1 a 12, em intervalos regulares e simétricos, ao longo da borda da

circunferência. Há também um ponteiro que indica as horas e outro que indica os minutos,

que se movem em velocidades constantes, alterando suas posições à medida que o tempo

corre. Uma vez habituados com a forma de perceber as horas nesse tipo de dispositivo,

basta uma breve consulta para que a informação “X horas e Y minutos” seja fornecida, e

situe sobre a altura do dia em que tal consulta foi realizada. Até que esta competência seja

adquirida, contudo, é preciso que o potencial usuário de um relógio analógico se habitue

à ideia de ler os vários indicadores distintos, mas que devem ser percebidos

concomitantemente para que a leitura das horas seja possível: o tipo de informação

especificada por cada ponteiro e o significado de terem suas extremidades posicionadas

sobre determinada região da circunferência; a noção de regularidade métrica, simetria,

proporcionalidade espacial e temporal que possibilitam a analogia entre espaço e tempo;

a divisão invariável de um dia de 24 horas, representadas em dois blocos idênticos de 12;

dentre outros indicadores que, percebidos individualmente, não seriam capazes de

informar ao sujeito a simples informação desejada: as horas e minutos do dia corrente.

É válido considerar ainda que mesmo com o pleno domínio do relógio como

ferramenta, a informação que dele se pretende obter ainda não se faria disponível caso

outros indicadores contextuais não estivessem disponíveis a seu usuário, como o fato de

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ser manhã ou noite, ou de a informação fornecida ser verossímil (caso em que a hora

apresentada não se distanciaria muito daquela intuitivamente estimada pelo usuário a

partir de outros indicadores). Assim, o artefato cultural relógio analógico, ou, mais

especificamente, a sua interface funcional, não seria uma função do objeto mesmo, mas

dos significados constituídos pelo usuário em (e ao longo de) sua utilização, e, não menos

importante, dos vieses simbólicos, contextuais e interacionais que recaem sobre os atos

semióticos que os constituem. Como demonstrado por Wagoner (2012), o

reconhecimento da coisa familiar, contudo, não seria um produto da ação semiótica, mas

um mecanismo (um hábito; uma dinâmica condicionada) atuante na constituição dessa

mesma ação como parte de um fluxo temporal (e o fazendo de forma análoga ao elemento

que, na semiótica peirceana, denomina-se interpretante, e é apresentado mais à frente

neste capítulo).

Considerando, pois, que na operação de artefatos ou na realização de outros tipos

de ações os conteúdos compreendidos pela percepção teriam seus significados sujeitos a

vieses contextuais diversos e dinâmicos e que, portanto, a capacidade de modelizar e

prever sua dinâmica seria limitada, a PC propõe o redirecionamento do foco dos estudos

psicológicos: em vez de dispender seus esforços na busca de processos e conteúdos

mentais prístinos, mas que pouco dizem respeito às atividades significativas para sujeitos

concretamente situados em seus contextos histórico-culturais, a Psicologia encontraria

maior sucesso na busca de explicações sobre como essas realidades sociocognitivas se

manifestam por meio das atividades de seus sujeitos (Valsiner, 2000, 2012). Em outras

palavras, um apropriado entendimento do funcionamento da psique requer um apropriado

entendimento sobre (a) como os sujeitos compreendem os elementos de sua realidade,

naquilo que têm de habitual ou naquilo que têm de inovador, e (b) os instrumentalizam

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para a produção de ações e significados; (c) sobre como as ações instrumentais agregam

os sujeitos e os objetos do mundo na composição de uma mesma interface funcional (a

agência); (d) sobre como as vivências de atividades culturais integram perceptualmente o

material e o simbólico, amalgamando-os na constituição de uma mesma realidade.

2.4. A instrumentalidade da cultura e sua configuração semiótica

Alinhado aos pressupostos das abordagens histórico-culturais, desenvolvo, nesta

dissertação, a compreensão de instrumentalidade enquanto qualidade (de ações e

instrumentos) constituída com base na dimensão cultural das vivências humanas. Tal

compreensão tem início na busca por continuidades funcionais entre cultura e cognição,

e adota o pressuposto de que os elementos da atividade semiótica são os responsáveis pela

constituição das pontes entre essas instâncias, ao terem sua lógica de funcionamento como

fundamento para a configuração das propriedades instrumentais que são mobilizadas nas

ações e práticas pessoais. Ao reconhecer nas atividades humanas as lógicas de atuação

daqueles elementos, viabiliza-se a compreensão acerca das conformações específicas que

elas assumem nos processos de materialização da cultura, uma vez que é a partir da

mesma lógica que são constituídos os padrões emergentes na microgênese das ações

(Valsiner, 2004, 2012). Em uma analogia, pode-se assumir (sem rigor epistemológico)

que os elementos constitutivos dos signos e das atividades semióticas estão para a cultura

assim como os genes e o metabolismo celular estão para a fisiologia.

Ademais, uma vez que os processos cultural-cognitivos de alta ordem são sempre

permeados por símbolos (Peirce, 2011), estes foram os elementos semióticos tomados

como referência inicial para a exploração analítica de como os signos culturais se

engendram em práticas pessoais. Logo, considerar cada ação enquanto instânc ia

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individual de elementos semióticos culturalmente fundamentados é o primeiro passo na

análise da microgênese desses mesmos elementos.

O caráter processual das atividades semióticas é impreterível. Quando a cultura é

operacionalizada como variável, as categorias de análise que organizam a refle xão

psicológica se tornam imprescindivelmente demográficas (nacionalidade, etnia, idioma,

etc.). Nessa lógica, as qualidades casuais e transitórias das ações cotidianas são

desconsideradas, e toda a informação nelas incorporada permanece sob o ponto cego da

ciência que se fundamenta nesse tipo de dado (Molenaar, 2004; Valsiner, 2012). Já para

a PC, a cultura vê intensificado o seu valor como foco de análise à medida que o

delineamento da pesquisa ou atuação se torne progressivamente mais restrito às

características casuais e concretas dos fenômenos sobre os quais se debruça na busca de

características gerais. Neste contexto, é fundamental que as configurações específicas do

caso sejam consideradas, pois é nelas que tais características gerais se incorporam e por

meio delas que se manifestam. Logo, volta-se tanto para a abordagem daquilo que se faz

(práticas pessoais, incluindo as coletivas), quanto para a abordagem daquilo que é sabido

sobre o como fazer (as práticas interpessoais, as representações, as tecnicalidades e os

saberes de um modo geral); fazeres e saberes que, concretamente, configuram-se a partir

de elementos materiais e simbólicos limitados, mas que ocorrem em conformações

infinitamente variadas. Assim, a PC se debruça sobre discursos, representações,

materialidade e corporalidade, bem como no aspecto técnico das vivências humanas, e

abordando cada uma dessas instâncias de fenômenos cultural-cognitivos a partir dos

modos particulares pelos quais os indivíduos e seus coletivos as manifestam nos contextos

vivenciais que lhe são específicos, sendo esses modos as práticas culturais (Meira, 2012).

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Práticas culturais são, em si mesmas, processos culturais ou instâncias de

processos culturais. Para a PC, assim como para outras abordagens sócio-histórico-

culturais (dentre as quais está a Teoria da Atividade – Cole & Engeström, 2007;

Engeström, R., 2009), a dinâmica desses processos é de natureza semiótica (Rosa, 2007a).

Como anteriormente mencionado, para que não percam seu valor intrínseco, processos

deste tipo precisam ser analisados em sua natureza desenvolvimental, não sendo

operacionalizáveis por meio de variáveis abstratas. Consequentemente, demanda também

recompreensão de grande parte dos processos que a Psicologia reivindica como próprios

de sua alçada. Nesta compreensão, os próprios processos (e não apenas seus efeitos) são

variantes em seus valores e propriedades causais, e, portanto, suas implicações nos

variados fenômenos e objetos sobre os quais atuam são de efetividade oscilantes (Cabell

& Valsiner, 2014; Valsiner, 2000). Sobre esta forma de funcionamento, Valsiner (2004)

esclarece que “a maioria dos processos humanos de produção de sentidos não é

diretamente refletida nas formas simbólicas finais (estáticas) – todavia estes processos se

esvaem sem deixar traços durante o processo de construção daquelas formas” (p. 5)17.

Sob a semiótica, a análise dos processos não se limita à comparação entre recortes

temporais espaçados referentes a atributos invariantes desses mesmos processos em

diferentes momentos: demanda-se sensibilidade a sua trajetória de evolução. Sob esta

concepção, mesmo diante da busca ao que o fenômeno tem de geral, a investigação

normalmente acaba por demandar, ao longo de sua progressão, seguidas reconfigurações

no foco de análise em curso, até que a generalidade almejada se torne evidente nos

17 No original: “most of the human meaning-making process is not directly reflected in the static (final)

symbolic forms—but vanish without trace during the process of construction of such forms” (Valsiner,

2004, p. 5).

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atributos do fenômeno que são de interesse. É preciso, portanto, munir-se de lentes

idiográficas (em alguma medida, de caráter etnográfico), a fim de que se possa

compreender adequadamente a dinâmica evolutiva dos signos envolvidos nos processos

analisados. Tanto os condicionantes teleonômicos quanto os condicionantes teleológicos

das semioses devem ser considerados como potenciais condutores do fluxo semiótico

(Rosa, 2007a).

O caráter evolutivo da semiose será mais detalhadamente abordado ao longo da

apresentação das classes de signos na Semiótica, mas é pertinente que algumas

considerações sejam feitas especificamente sobre teleonomia e teleologia. Rosa (2007a)

afirma que, no início de um processo semiótico de desenvolvimento, quaisquer atos

ocorrem, como reações automáticas, de modo que só é possível agir de acordo com os

roteiros já conhecidos, de acordo com o estímulo excitado pelos signos recebidos. Nesse

processo, o organismo pode aprender com suas experiências em esforços de assimilação

do novo ao já conhecido. Todavia, modos teleonômicos de mediação não controlam seus

próprios processos, estando sempre sujeitos a novos estímulos de primitivos signos, que

irão, mais uma vez, incitar os velhos roteiros. A teleonomia diz respeito apenas a

operações compreendidas no tempo presente, não compreendendo representações sobre

o que não é presente. Não se pode recorrer ao passado ou ao futuro, a memórias ou a

estimativas. Para que isso acontecesse, seria necessário o desenvolvimento da capacidade

de representar. Este é o limite das semioses teleonômicas (Rosa, 2007a).

Uma dimensão subjetiva só ocorre quando a capacidade de utilizar signos

convencionais ou sociais se desenvolve. Nesse sentido, a percepção de objetos seria o

resultado da transformação de qualidades em símbolos (Rosa, 2007a). Tais

transformações decorreriam do exercício de modificação progressiva, ao longo da

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microgênese das experiências, dos esquemas primitivos (os roteiros), levando a

alterações de seus fins iniciais, de modo que sua operação acabaria levando a resultados

diferentes dos anteriores. Isso equivale à aquisição de novas por meio do esquema

modificado e à possibilidade de diversificação dos fins para os quais originalmente se

destinava. Nas palavras de Rosa, “o resultado dessa marcha é a criação de novos usos

para objetos e movimentos já familiares” (2007a, p 301).

Valsiner (2014) aponta que o aspecto único da Psicologia Cultural é o foco em

sistemas complexos de significação humana, e que as questões epistemológicas que foram

relevantes para o delineamento deste campo de estudo continuam válidas e não devem

deixar de ser levadas em consideração. Na mesma publicação, advogou que a PC ainda

não superou a carência pelo desenvolvimento de metodologias sensíveis à evolução

dinâmica e à emergência das propriedades ontológicas dos processos semióticos

(Valsiner, 2014). Tal demanda por metodologias mais efetivas parte, sobretudo, da

insipiência de abordagens que levem em consideração a complexidade específica dos

fenômenos semióticos e de suas inter-relações causais.

Na dança dos signos há sempre um destino, e as semioses têm sempre meios e

fins, sendo impelidas ou atraídas, ao longo de seus desenvolvimentos, por relações

causais afetadas por mediadores. As semioses, contudo, nunca alcançam realmente os fins

últimos que referenciam, em dado momento, suas trajetórias de desenvolvimento: estão

sujeitas a diversos fatores catalíticos, de modo que, em algum ponto de sua evolução,

acabam tendo seus meios, fins ou elementos/forças causantes alterados.

A semiose é um contínuo linear (Burgess, s.d.), um mesmo processo que corre

continuamente, sem interrupção. A despeito disso, é uma continuidade que não requerer

que as características que a configuram em um momento estejam presentes em outros –

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de modo que o único atributo que a caracteriza como totalidade unificada é a sua relação

com os sistemas que a incorporam. Sua totalidade enquanto processo é reconfigurada em

cada um desses atos de mediação. Desse modo, uma vez que corresponde apenas ao

estado corrente de alguma cadeia evolutiva nunca descontinuada, os contornos do “iníc io”

de cada processo semiótico (ou de cada uma de suas configurações) são, pois, vagos e

imprecisos, sendo sua definição geral necessariamente dependente da definição de sua

configuração processual corrente (Burgess, s.d.).

Para compreender em sua investigação a complexidade dos processos semióticos,

o pesquisador carece de tipologias e unidades analíticas coerentes e adequadas às relações

causais em questão. Na PC de base semiótica, essas unidades são os signos. O signo tem

uma organização lógica particular que difere daquela que subjaz as propostas

epistemológicas classicamente voltadas ao delineamento dos fenômenos sob causalidades

diretas. No signo, tanto os aspectos estruturais quanto os dinâmicos são sempre e

necessariamente triádicos. Logo, todo fenômeno causal entre dois elementos é, na

semiótica, mediado por um terceiro – o que implica uma causalidade que não é direta.

Por sua função nos processos semióticos, o signo foi adotado como a unidade de análise

primária da PC.

Assim, ciente da provocação de Valsiner (2014), e levando em consideração as

propriedades dos processos semióticos, resta, então, ao pesquisador, a produção de

metodologias que sejam adequadas: (a) ao estabelecimento dos limites, das fronte iras

hipotéticas entre o fenômeno que pretende abordar e aqueles que o tangenciam; (b) à

exploração da dinâmica semiótica dos fenômenos gerais investigados a partir dos casos

em que se manifestam, a fim de (c) definir os determinantes causais das continuidades e

variações que lhes são típicos. No contexto desta dissertação, tais demandas foram

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levadas em consideração, e, buscando maior adequação teórica ao tipo de fenômeno

abordado, utilizei configurações dos conceitos de signo e semiose que permitissem

explorar adequadamente a microgênese das ações instrumentais.

2.5. Signo, mediação e seus papéis instrumentais na semiose

A concepção de signo adotada pela PC provém, originalmente, da ciência geral

denominada Semiótica (Peirce, 1931-1958/1994, 2011). Na Semiótica, o signo é

denominado triádico por conter necessariamente três elementos em relação mútua: (1) o

signo propriamente dito (também chamado de representamen18); (2) seu interpretante, e

(3) seu objeto. Esses são os três correlatos que necessariamente se conformam na

composição de um signo. De modo geral, os fenômenos condicionados a essa

conformação triádica são regidos pela lógica de mesmo nome. Nessa lógica, pressupõe-

se que cada fenômeno que tem ocorrência é sempre composto por algo que afeta, algo

que é afetado e algum ordenamento subjacente àquela relação de afetação (Peirce, 2011).

Sob uma perspectiva semiótica, os fenômenos mentais também estariam condicionados à

mesma matriz triádica, tornando-a formalmente adequada como base analítica para as

ciências cognitivas e uma alternativa viável aos modelos fundamentados na causalidade

direta (Rosa, 2007a; Valsiner & Rosa, 2007). Na concepção de Valsiner (2012),

especificamente, a PC estaria voltada à investigação da emergência e da manutenção da

ordem hierárquica dos fenômenos psíquicos da vida humana. Para este fim, propõe o uso

de metodologias de investigação sistêmicas, qualitativas e idiográficas, as quais, a

18 Até certa altura de sua obra, Peirce usou o termo representamen para se referir ao correlato do signo que

“representa” as coisas ou ideias sob as formas pelas quais são percebidas. Mais tarde, preferiu abrir mão do

termo, usando simplesmente a palavra signo, ou signo imediato, em referência àquele correlato em sua

qualidade de representação do objeto significado na forma pela qual é percebida pelo sujeito (Pe irce, 1977,

p. 193).

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princípio, seriam adequadamente sensíveis aos determinantes semióticos por trás dos

processos de emergência.

Na ciência idiográfica, a possibilidade de realizar generalizações teóricas a partir

de dados provenientes de poucos casos, ou mesmo de apenas um, é considerada viável e

conveniente (Valsiner, 2012). Neste sentido, é imprescindível que a investigação se dê

sobre o fenômeno em sua apresentação empírica concreta (não se limitando à

possibilidade de confirmar ou não as ocorrências de marcadores conceituais previamente

estabelecidos), uma vez que os aspectos fenomênicos generalizáveis estariam contidos

nas transições que regem sua dinâmica, e, por outro lado, poderiam não deixar vestígios

em sua apresentação final, inviabilizando a análise de sua emergência (Cabell, 2011;

Cabell & Valsiner, 2014; Rosa, 2007a, 2007b). Na qualidade de atos mediados, os

processos de transição e emergência incorporam as tendências, regras, hábitos e leis que

regem as atividades de mediação. Tais processos seriam, portanto, a face empírica das

dinâmicas fenomênicas sujeitas à generalização. Por outro lado, os elementos que

constituem o fenômeno, não sendo apropriados para atuar como dispositivos de memória

capazes de fornecer dados generalizáveis acerca dos processos que levaram a sua

emergência, teriam valor secundário nesta abordagem científica. Tais peculiaridades

metodológicas se devem ao fato de que as generalizações idiográficas não advêm das

qualidades empíricas dos fenômenos, mas necessariamente das operações dinamizadas

pela interação entre aquelas qualidades (Cabell, 2011). No caso da PC, as operações de

mediação cognitiva ocorreriam de acordo com as leis que regem a dinâmica triádica dos

signos, de modo que a compreensão das dinâmicas semióticas decorrentes da atividade

desses elementos equivaleria à compreensão das dinâmicas processuais que regem a

própria cognição. Eis o que torna fundamental a utilização de metodologias capazes de

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tornar tais atividades empiricamente acessíveis à percepção do pesquisador (Rosa, 2007a,

2007b).

Pela ótica da semiótica, a mediação equivale ao uso de símbolos para operar os

elementos da realidade (Valsiner, 2012). As possibilidades de mediação e os tipos de

operação disponíveis, no entanto, variam de acordo com as concepções de realidade dos

atores, e tais concepções, por sua vez, fundamentam-se nos diversos modelos de símbolos

e práticas culturais disponibilizados ao longo de sua experiência de vida. As variações

possíveis na realização da mediação são virtualmente infinitas, ainda que a ocorrência de

alguma tenda a prevalecer, enquanto outras se tornam atípicas, na medida em que a

própria dinâmica cultural reproduz determinadas tendências de catalisação, promoção ou

inibição.

É preciso destacar ainda que o ato de significar equivale a um ato de produção de

mediação. Tal especificação é particularmente importante na medida em que a Teoria da

Atividade, também utilizada neste trabalho, se afasta das tipologias semióticas,

priorizando o uso de categorias desenvolvidas em seu próprio campo (e que, portanto, se

adequam mais diretamente a seus objetos e concepções metodológicas). Assim, o ato de

significar o objeto de um processo de mediação que já estaria em vigência seria um ato

de ressignificação, e, pela ótica da CHAT, um processo de re-mediação (Sannino et al.,

2009). Assim, ressignificar equivaleria a alterar o sentido das ações e objetos pela

mudança no sentido dos elementos simbólicos (de suas relações dinâmicas) que estariam

mediando a representação ou atribuição de significados que, até então, equivaleriam às

conformações preceptuais daqueles mesmas ações e objetos. Ao re-mediar um

significado, o sujeito produz um novo tipo de ação, podendo, ao longo de uma cadeia de

re-mediações, gerar um novo tipo de atividade. Adicionalmente, a re-mediação deliberada

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está diretamente relacionada aos processos mentais de alta ordem, que tramitam em

instâncias da linguagem. Logo, a re-mediação é um processo de especial utilidade na

abordagem da instrumentalidade, na medida em que é imbuído pelo interesse

característico da CHAT por operações coletivamente organizadas e orientadas para um

fim. Além disso, conserva-se teoricamente análoga a categorias fundamentais à PC,

atuando como interface conceitual entre as abordagens histórico-culturais que enfatizam

a compreensão e declaração das representações semióticas (como a PC, a Teoria da ação

simbólica de Boesch, 1991, 2007; e a Teoria das Hipóteses de Mundo, de Pepper, 1970)

e aquelas que enfatizam o exercício dessas representações e a operação dos dispositivos

semióticos nelas incorporados (como a CHAT e a Antropologia Cultural, de Ingold, 2000,

2008).

Para a pesquisa aqui apresentada (no Capítulo 4), a abordagem metodológica

utilizada como interface compreensiva entre a base conceitual apresentada neste capítulo

e os exercícios de exploração e análise dos dados foi o ciclo metodológico, proposto por

Branco e Valsiner (1997) e Valsiner (2000, 2012, 2014). Tal abordagem propõe que o

pesquisador atue como centro operacional nas atividades de produção de dados empíric os

e analíticos de sua pesquisa, mas não se limitando, em seu fazer, aos papéis instituciona is

que regulam a realização de sua prática (professor, cientista, bolsista de produtividade,

etc.): o pesquisador, nas qualidades de produtor de conhecimento e de sujeito histórico e

culturalmente situado, deve reconhecer a si mesmo como elemento de coesão entre os

diversos corpos de informação, analisados sob um nexo comum, e, posteriormente,

transformados em novos conhecimentos. Munido de seus conhecimentos operacionais e

teóricos, mas também inevitavelmente imbuído de seus valores pessoais e culturais, de

suas crenças gerais sobre o mundo, e dos objetivos que orientam a sua atuação (e que,

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sabidamente ou não, fundamentam-se em todos os atributos anteriores), o pesquisador

seria o único “recurso de análise” capaz de prover nexo comum a informações de origens

e naturezas diversas. Através de inferências abdutivas, o analista projeta sobre os

conteúdos que examina os ordenamentos epistemológicos que lhe são familiares (pois

habitam seus sistemas pessoais de conhecimento), o que, ao longo de seu

empreendimento de reclassificação progressiva, acaba por aproximar seus significados e

a reorganizar as informações inicialmente diversas em um todo compreensivo (ou pelo

menos em uma menor quantidade de conjuntos, e mais próximos entre si). Sistematizado,

o corpo de informações apresenta significações próprias, novas, e potencialmente

instrumentais para a produção de novos conhecimentos (Branco & Valsiner, 1997;

Valsiner, 2000, 2012).

Todo o ciclo condiciona a atividade de pesquisa de tal modo que a produção de

novos dados repercute na estrutura metodológica engendrada, que sofre algum tipo de

evolução (Branco & Valsiner, 1997; Valsiner, 2000, 2012). Essas mudanças, por sua vez,

reverberam tanto nas formulações teóricas que sustentaram a reflexão analítica ao longo

da investigação quanto nos sistemas de conhecimentos implícitos e explícitos do próprio

pesquisador (o esquema básico do ciclo é ilustrado pela Figura 3). Deste modo, as

considerações acerca dos fenômenos investigados (mas também as suas bases científicas)

são continuamente revisadas e reformuladas, e as diretrizes metodológicas vigentes

continuam a ser ajustadas e reiteradas até que se chegue a formulações teoricamente

consistentes, coerentes com todas as instâncias compreensivas que compõem o ciclo, e

que respondam às questões que contingenciaram a investigação, de acordo com as

pertinências que conservaram ou adquiriram ao longo do processo (Branco & Valsiner,

1997).

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A evolução científica ocasionada por este exercício promove ainda o

desenvolvimento da coerência vertical que alicerça a abordagem científica posta em

prática, reforçando assim a coerência mútua entre seus elementos constituintes: suas

assunções e construtos teóricos, os fenômenos por ele abordados, os conhecimentos que

lhe são concernentes, os métodos pelos quais opera, e também entre o sistema como um

todo e as competências pessoais do investigador (Valsiner & Rosa, 2007). Como

consequência, a ciência em questão se torna progressivamente menos dependente de

modelos explicativos cuja coerência é fundamentalmente horizontal. Em outras palavras,

aquela ciência se torna mais próxima da realidade que aborda, aprimorando a sua

operacionalidade e a efetividade de suas formulações e intervenções (Valsiner, 2014;

Valsiner & Rosa, 2007).

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Figura 3. Representação abstrata do ciclo metodológico (ou círculo metodológico).

Adaptado de Branco e Valsiner (1997). A imagem representa as vias de interação

entre as instâncias do processo de pesquisa, interligadas e orientadas pela

subjetividade do pesquisador. As setas sólidas representam o sentido em que as

inferências estão metodologicamente estruturadas. As setas vazadas representam as

inferências que podem ocorrer intuitivamente, independentemente do plano

metodológico, mas que promovem modificações na compreensão de partes ou do

todo do esquema de pesquisa.

Ademais, talvez o ciclo metodológico seja uma ilustração adequada de um dispositivo

(conceitual) organizador de atividades que têm como finalidade, especificamente, a

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promoção de re-mediações: a adoção desse esquema metodológico leva a alterações

progressivas nos valores das informações (sejam semânticos, sintáticos ou semióticos),

conferindo- lhes novos significados. Nesses processos, o ciclo é instrumental na

orientação conferida à progressão semiótica das informações, que se tornam

progressivamente convergentes, o que favorece seletivamente o incremento, a cada novo

ciclo de re-mediação, de compatibilidade entre cada uma delas.

2.6. Mediação e catalisação de signos: conduzindo o fluxo recursivo de um processo

semiótico

Na concepção de Valsiner (2012), a mediação semiótica é realizada através de

dois tipos de processos gerais: a regulação e a catalisação. Estes, por sua vez,

correspondem aos efeitos dos signos (ou condições) reguladores e dos signos (idem)

catalisadores sobre o fluxo da semiose (Cabell, 2011; Cabell & Valsiner, 2014; Valsiner,

2012). Os reguladores afetam diretamente a progressão dos processos semióticos,

promovendo ou inibindo a emergência de novas configurações processuais. Já os

catalisadores funcionam como condicionantes do contexto perceptivo, agindo

indiretamente sobre os agentes reguladores da atividade semiótica: estes são mobilizados

por demandas pragmáticas do contexto em que seu agente está situado, atuando tanto no

sentido de manter a configuração desse contexto, ocasião em que uma conformação

catalítica prevalece, sustentando seus condicionantes sobre os reguladores (Figura 4b)

quanto no sentido de promover ajustes que o tornem mais coerente à totalidade da

percepção, quando condicionantes distintos competem pela predominância do processo,

levando à evolução dinâmica do contexto e de suas demandas (Figura 4a). Desse modo,

as funções catalíticas dos signos atuam como um dos fatores causais essenciais na

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atividade semiótica, conferindo aos processos que mediam a capacidade de serem

operados por padrões causais sistêmicos (Cabell & Valsiner, 2014; Valsiner, 2004). A

Figura 4 ilustra esquematicamente esse processo, e é explicada a seguir.

A Figura 4 apresenta esquemas ilustrativos da catálise semiótica. No exemplo a

seguir, ela representará o fluxo de trabalho de um ilustrador. (a) Na tarefa de editar

ilustrações para um trabalho, seu editor poderia ser afetado pela catalisação de um terceiro

estado contextual (A–B: edição de esquemas suficientemente explicativos, dentro de

dado prazo) a partir de dois estados antecedentes distintos (A: demanda por trabalho de

ilustração; e B: demanda por qualidade estética). Os elementos contextuais que atuariam

como catalisadores (habilidades de uso geral de computadores), inicialmente

representados por C, assimila as propriedades semióticas de A, que lhe são compatíve is,

tornando-se C–A; este, por sua vez torna-se demandante de B, que agrega-se à

conformação contextual total C–A–B. Após a produção de certo padrão estético (A–B),

este passará a ser contextualmente demandado, a despeito das demandas que A e B teriam

individualmente. (b) A e B atuam como elementos em comum entre estratos contextua is

distintos (E. de C e E. de AB), os quais conformam um estado contextual mais amplo

(Atividade), dos quais são elementos semióticos comuns. O contexto maior, enquanto um

todo, não existe sincronicamente; sua totalidade se estende pelo tempo, manifestando no

espaço, em cada um de seus momentos, as diversas configurações que caracterizam seu

equilíbrio dinâmico (a autocatálise do processo), em emergência contínua (Cabell &

Valsiner, 2014). A constituição de A–B e sua interação com C no contexto da atividade

levam à re-mediação (Rm) contínua de C como estrato contextual independente, de modo

que as habilidades gerais do editor são modificadas por sua operação na produção de A–

B.

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Figura 4. A catalisação sistêmica de contextos – um exemplo de

processo catalítico que produz síntese. (a) A catálise do signo

contextual A–B pela interação entre A, B e C, demandada, por sua vez,

pelo fluxo do contexto vigente. (b) Representação espacial do processo

catalítico A+B+C A–B+C, que seria extensa no tempo. Rm

representa a irreversibilidade do tempo, decorrente da modificação de

C no decorrer da Atividade. Imagem Adaptada de Valsiner, 2007.

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A despeito das especificidades casuais que configurem atos de mediação

semiótica, os efeitos desta serão sempre equivalentes à emergência de alterações nos

processos de significação em curso. Os atos catalíticos, no entanto, são especialmente

relevantes para a conformação da agência e a assunção de finalidades, funções e

propriedades instrumentais que a caracterizam. Essas são noções naturais à CHAT, mas

que podem ser analisadas com maior detalhamento através de categorias da PC, a fim de

que uma compreensão mais aprofundada sobre a conformação da agência e da

instrumentalidade seja atingida. Neste exercício, as duas abordagens se complementam,

tornando-se sinérgicas como ferramentas de análise: enquanto a PC refere-se à

conformação do contexto mais amplo (que compreende as noções correntes sobre a

constituição da realidade), no âmbito do qual se insere a atividade, a CHAT diz respeito

à contextualização dos atos semióticos no âmbito da atividade mesma, que governam as

ações do sujeito de acordo com as demandas que se apresentam continuamente (e que

apresentam apenas elementos eventuais da realidade constituída). Duas instâncias da

experiência semiótica referente a duas escalas contextuais: mesogenética e microgenética

(Rosa, 2007a; Valsiner, 2012).

Ao agir como catalisadores, os signos incorporados aos (ou presentativos dos)

objetos do mundo afetam os sujeitos de modo impositivo, mobilizando-os a adotarem

certos padrões situacionais de atividades semióticas. Na PC, o conceito de catálise diz

respeito ao provimento de condições que facilitam ou dificultam, com diferentes graus de

seletividade, a ocorrência de ações e processos já previamente conhecidos ou

condicionados (Valsiner & Rosa, 2007). Deste modo, a atuação catalítica dos signos

conduz o fluxo recursivo das semioses de forma potencialmente independente da

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deliberação consciente do sujeito afetado a menos que o esforço de catalisação tenha

partido da ação deliberada do sujeito, o que também é possível (ver Cabell & Valsiner,

2014).

Diferentemente da regulação, a catálise não promove diretamente a realização de

ações, mas ativa (ou desativa), seletivamente, os padrões condicionados que favorecem

(ou inibem) a disposição para que o sujeito venha a apresentar reações ou realizar

comportamentos associados aos padrões mobilizados. Neste sentido, a catálise é um

processo de provimento de acessibilidade (ou restrição) a recursos necessários para a

realização de determinados processos. No caso dos processos cognitivos, os recursos em

questão seriam semióticos (dentre estes estando os simbólicos, necessários às funções

mentais superiores).

Uma possível implicação dessa dinâmica (ainda não investigada) é a possibilida de

de que os efeitos catalíticos mobilizados pelos signos se tornem mais fortes à medida que

estes representem componentes de realidade ou situações culturalmente estruturadas;

nesse sentido, os vários objetos, eventos ou qualidades estruturantes atuam de forma

redundante, reforçando-se mutuamente, reforçando os efeitos semióticos do signo-

estrutura dos quais são componentes e, por fim, reforçando seus efeitos recursivos sobre

a condução das semioses que passaram a afetar. Este funcionamento seria equivalente ao

fenômeno de regulação dos processos culturais denominado Princípio do Controle

Redundante (Valsiner, 2012).

As dinâmicas de mediação acima apresentadas reproduzem em sua progressão a

natureza semiótica de evolução dos fenômenos, mas normalmente têm sua atuação

associada a esquemas e práticas culturais concernentes a interações entre sujeitos ou a

padrões de mediação hipergeneralizada e coletiva, ou ainda a operações simbólicas em

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que são hegemônicas as ações de alta ordem (Cabell, 2014; Valsiner, 2012). Tais

fenômenos em evolução também abrangem dimensões interpessoais, que se estendem ao

longo de períodos suficientemente vastos para que, aparentemente, a memória

operacional se torne uma instância desimportante para a perpetuação de seus efeitos sobre

os sujeitos envolvidos. A ênfase na linguagem, na significação deliberada e nos

fenômenos psicológicos superiores é uma característica marcante da PC, que acaba sendo

refletida em seu repertório conceitual. A análise que aqui proponho, por outro lado, visa

ao exame de processos muito menos abrangentes no tempo e no espaço, e de natureza

essencialmente microgenética. A pesquisa se volta à investigação das formas pelas quais

o agente operacionaliza sua ação com os recursos (simbólicos ou de outros tipos)

disponíveis ao seu alcance imediato. Em função disso, assimilo à análise dos dados deste

trabalho elementos da semiótica de Peirce (2011), cuja escala conceitual se adapta de

forma mais adequada aos tipos de processos abordados.

Provém da Semiótica de Peirce a proposição original da estrutura triádica do signo

(Peirce, 2011). Basicamente, a forma como Peirce lida com a evolução de processos

semióticos (chamado aqui de interpretação) é análoga à catálise. Nesse sentido, a catálise

pode ser considerada um condicionamento dos contextos. Na semiótica, os signos não

têm significado por si mesmos. É a atividade do interpretante que lhes dá a significação.

Nesse cenário, o primeiro fator relevante a se considerar é que os signos são de diferentes

tipos (a depender dos diferentes interpretantes que ele pode ter), exercendo diferentes

efeitos sobre a semiose.

O signo se manifesta como o objeto, a coisa representada na percepção do ser que

o percebe. O signo está sempre em evolução, porque o interpretante imediato de um

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momento será o signo imediato de outro (Peirce, 2011). Várias interpretações acontecem

simultaneamente, mas uma delas predomina na regência do progresso19 (Burgess, s.d.).

Os interpretantes e os objetos são divididos em subtipos, e cada um deles ligados

a um efeito sobre, ou a uma forma de funcionamento da atividade semiótica. Tanto o

signo quanto os interpretantes imediatos são diretamente percebidos pela mente, são

aquilo que é visto, os elementos empiricamente explícitos; mas existem efeitos ulteriores

que são causados por interpretantes e objetos dinâmicos20. Nesta pesquisa, me refiro aos

tipos de efeitos que podem ser promovidos como recursão (direta ou indireta), para me

referir ao fato de que eles são causados pelo interpretante ou pelo objeto – estando os

efeitos do interpretante ligados a interpretações volitivas, e os do objeto ligado a respostas

reativas a partir de hábitos condicionados.

Por meio de operações simbólicas (às quais eventualmente me refiro como

recursões diretas), o sujeito media a própria atividade, enquanto a afetação por elementos

externos o faz sem que ele necessariamente tome consciência desses atos de mediação

(configurando o que me refiro como recursões indiretas). O objeto dinâmico impõe, sobre

a mente, efeitos que não são perceptíveis na experiência imediata. O interpretante

19 Considerando que o efeito de um interpretante pode ser predominante sobre os efeitos concomitantemente

ativos de outros interpretantes, esclareço que, ao mencionar, ao longo do texto, um signo como sendo aquele

que rege um processo semiótico, estarei, na verdade, me referindo a sua prevalência no fluxo recursivo em

um dado momento. A expressão de qualquer signo sempre compreende a atuação da primeiridade, da

segundidade e da terceiridade, cada uma das quais se manifesta sob algum correlato no ato que mediam.

20 Quando usada em referência a efeitos, objetos ou interpretantes, a palavra “dinâmico”, No jargão de

Peirce, o termo dinâmico é usado em referência à propriedade de objetos e interpretantes de causar, sobre

um intérprete, efeitos semióticos que não são significados de forma imediata. Nas palavras de Peirce (1977),

“O interpretante dinâmico é um evento singular e real” (“The Dynamical Interpretant is a single actual

event”; p. 110). Nesse sentido, as propriedades dinâmicas dos objetos e interpretantes não sã o

primariamente referentes a signos, mas a seus efeitos semióticos sobre seu intérprete (1977). “Dinâmico” é

usado por Peirce como sinônimo de “atributo de interesse científico”, cujo efeito real é objeto de explicação

das ciências dinâmicas. Tal acepção não deve ser confundida com o uso do mesmo termo em referência à

possibilidade de variação constante, comum às abordagens Histórico-Culturais e presente nesta dissertação.

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dinâmico, por sua vez, promove efeitos (comportamentos) explicitamente perceptíveis,

mas apenas por meio da experiência mediada, logo os tornando sujeitos à mediação

voluntária.

Além desses tipos de objetos e interpretantes, também existem outros tipos de

interpretantes, que são o final e o último. É o interpretante final que confere o caráter

teleológico da ação. Eles também são condicionados pela ação, de modo que também

advêm, de alguma forma, do objeto, que causa na emergência da mediação semiótica o

aparecimento de outro tipo de interpretante, o interpretante último. Este é o interpretante

que finaliza uma linha de interpretação, fazendo com que outros processos tomem seu

lugar na atenção. Assim, uma linha outrora secundária assume a regência, o

direcionamento da interpretação, e, portanto, muda o futuro imediato do intérprete21.

Como eu havia sinalizado anteriormente, a adoção do sistema semiótico de Peirce

se deu em decorrência do interesse em compreender os processos de conformação da

instrumentalidade em sua microgênese, mas buscando explorar sua evolução desde suas

propriedades semióticas mais elementares. Em sua abordagem da PC, Valsiner (2000,

2012), assim como Peirce, compreende o signo (e seus processos) como a totalidade

perceptiva unificada e coesa proveniente da síntese das diversas dinâmicas que afetam a

subjetividade de seu intérprete. Por outro lado, a abordagem semiótica de Valsiner não se

detém à exploração da relevância específica de cada um dos correlatos envolvidos na

conformação (triádica) dos signos para a configuração de suas propriedades

instrumentais. Na abordagem de Valsiner (2012), é frequente que a expressão do signo

21 Intérprete é o termo usado por Peirce (2011) em referência ao ser cuja mente é afetada. Uma vez que o

termo mente foi usado neste trabalho apenas com implicações psicológicas ou cognitivas, os termos

“intérprete,” “sujeito”, “indivíduo” e seus sinônimos fazem referência a um mesmo tipo de ser (a menos

que o contrário seja indicado).

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seja descrita como o efeito da significação de esquemas cognitivos que incorporam

dinâmicas culturais maduras, de conformação simbólica complexa, e moldados por

processos de aculturação efetivados em instâncias mesogenéticas e ontogenéticas. A

mediação por esquemas fortemente condicionados à realização de operações de alta

ordem, permeadas por inferências e elaborações discursivas, civilizam os atos

instrumentais, tornando-os menos operacionais (ou mais afastado de funções executivas)

e mais deliberativos (e mais próximos de funções de planejamento) ao nível da atividade

individual. Menos sensível ao significado de atos que, aparentemente, são puramente

energéticos, esta é uma abordagem que favorece a investigação de fenômenos de

mediação teleológica (Rosa, 2007b).

O favorecimento (acima mencionado) ao desenvolvimento de funções

instrumentais sob conformações simbólicas, contudo, não se deve a qualquer suposta

superioridade operacional dos símbolos sobre as outras categorias de signos, mas à

imersão do sujeito em campos (semióticos) de regulação cultural coletiva (Valsiner,

2012). Nesse contexto, a recorrência a representações convencionais e à linguagem tende

a sobrepor a recorrência às práticas baseadas em formas de expressão mais rudimentares

(gestuais e reativas) – que, na concepção de Peirce (Peirce, 1931-1958/1994), seriam

expressivas de funções semióticas pré-simbólicas –, o que é alusivo à hipótese

vygotskiana de que a imersão na linguagem leva a uma gradual substituição da

inteligência primitiva pela inteligência linguística (Vygotsky, 2007). Ou, de acordo com

Rosa (2007a, 2007b), da evolução gradual de funções teleonômicas para funções

teleológicas.

Ainda na abordagem de Valsiner, um signo se apresenta sempre como um

fenômeno que é psicológico e cultural, numa simbiose indiferenciável ao sujeito que o

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percebe. Em conformações deste tipo, a instrumentalidade do signo pode ser identificada

por meio da atividade por ele mediada; a dinâmica semiótica evidenciada, contudo, não

é mais expressiva de qualidades operacionais concernentes às práticas sociais e cultura is

coletivas, operadas pela inteligência linguística, que das práticas instrumentais da

atividade individual, em que a atividade intelectual se conservaria em instâncias mais

primitivas (procedurais – sendo, também, mais suscetíveis à ação de forças teleonômicas).

Essa discrepância entre operações instrumentais mais sofisticadas, de viés linguístico, e

operações instrumentais mais primitivas, de viés intuitivo22 e procedural, é uma constante

na Psicologia histórico-cultural desde seus primórdios (Leontiev, 2004; Valsiner, 2000;

Van der Veer & Valsiner, 2009; Vygotsky, 2007). A Semiótica de Peirce, por outro lado,

apresenta um arranjo teórico que permite integrar esses diferentes tipos de operações

(simbólicas e não simbólicas; teleológicas e teleonômicas) sob uma lógica cognitiva

comum: a dinâmica triádica do signo.

Das classificações de signos apresentadas por Valsiner (2000, 2012), a que recebe

maior ênfase é a que os divide em três tipos: signo tipo ponto, tipo campo e signo

hipergeneralizado (ver também Cabell, 2011; Cabell & Valsiner, 2014). Tal divisão,

contudo, não leva em consideração apenas as suas propriedades semióticas, como a

classificação peirceana, mas também as suas propriedades psicológicas. Logo, esses

signos não podem ser considerados apenas em sua qualidade de tipos operativos básicos

da dinâmica semiótica da cognição, uma vez que estes já se apresentam, em certa medida,

como esquemas cognitivos. Quando comparados aos signos clássicos de Peirce, os da

22 Na Semiótica, a intuição não é compreendida como a capacidade de agregar à cognição, de forma

imediata, atemporal, certo saber ou capacidade apriorísticos. Esta concepção, criticada por Peirce,

desconsidera a processualidade no desenvolvimento dos signos. Na semiótica, as intuições são cognições

rápidas (mas ainda temporais), tangenciais à experiência simbólica, mas que foram constituídas por hábitos,

a partir da experiência, seja ela ontogenética ou filogenética (Peirce, 2011).

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classificação de Valsiner apresentam constituição semiótica composta, e sua dinâmica

mais básica de funcionamento não se limita às propriedades semióticas básicas dos signos

clássicos. Os signos valsinerianos agregam, às suas propriedades semióticas, outras

propriedades, que são de natureza psicológica, e que não advêm apenas de uma lógica

universal básica, mas de lógicas já evoluídas, contaminadas por formas evolutivamente

elaboradas de inteligência (filogeneticamente e, sobretudo, sociogeneticamente).

Levando em conta a natureza predominantemente energética (procedural) dos tipos de

ações analisadas, nesta pesquisa, demandou-se a utilização de um suporte analítico que

favorecesse uma abordagem da estruturação e emergência da instrumentalidade a partir

de suas propriedades mais básicas e primitivas, de caráter teleonômico acentuado, tendo

sido necessário adotar uma teoria de maior sensibilidade à sua dimensão semiótica (Rosa,

2007a, 2007b). Logo, assimilei a Psicologia Cultural de Valsiner para esta pesquisa, em

sua estrutura geral (incluindo aí a sua proposta metodológica, que supre a ausência de

uma metodologia especificamente psicológica na semiótica), para a análise propriamente

psicológica do fenômeno como um todo (a operação da interface), e como complemento

para a compreensão das sintaxes entre os signos e seus elementos, mas não se limitou à

sua concepção de signo. A fim de lidar com a escala que a investigação proposta

demandou, adotei o conceito de signo com a conformação originalmente proposta por

Peirce (2011), o signo triádico, como a unidade analítica na minha pesquisa.

Em Peirce, o signo é composto por três correlatos experienciais concomitantes,

referentes às suas qualidades fenomenológicas fundamentais. Cada um dos correlatos em

um signo incorpora um dos três aspectos ontológicos (ou qualidades essenciais) que lhe

são característicos: primeiridade, segundidade e terceiridade, cada um dos quais definido

por três categorias. No signo, cada aspecto é representado por uma de suas categorias,

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cujas propriedades semióticas específicas se apresentam incorporadas em um dos

correlatos (Burgess, s.d.; Peirce, 2011).

O primeiro dos três aspectos, a primeiridade, diz respeito ao próprio signo em sua

instância imediata, como uma qualidade que é fenomenologicamente percebida pelo

intérprete. A segundidade diz respeito ao caráter presentativo ou representativo do signo,

à sua forma de denotar o seu objeto, também em uma instância fenomenologicamente

imediata. A terceiridade ainda diz respeito à forma de o signo denotar o objeto, mas em

sua instância mediacional, concernente ao efeito do interpretante sobre o signo em sua

representação do objeto à percepção. A terceiridade é, portanto, a instância do signo

verdadeiramente responsável pelo efeito interpretativo que na Psicologia é conhecido

como mediação (Peirce, 1931-1958/1994; Rosa, 2007a; Valsiner, 2012).

Cada um dos três correlatos componentes de um signo incorpora as propriedades

de um dos três aspectos. As categorias características do primeiro correlato são

qualisigno, sinsigno e legisigno. No segundo, ícone, índex e símbolo. No terceiro

correlato, rhema, dicensigno e argumento (Figura 5). Referir-me-ei às propriedades de

cada uma dessas categorias no decorrer desta seção. Para as categorias da primeiridade,

todavia, as propriedades relevantes correspondem às de seu respectivo aspecto, descritas

no parágrafo anterior.

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Figura 5. Os três aspectos essenciais e as nove categorias do signo triádico.

As categorias do segundo correlato se referem à relação entre o signo e seu objeto

no que diz respeito a como o primeiro denota este último: como ele o torna empiricamente

manifesto, ou ainda, como o signo representa seu objeto. O ícone é um signo que denota

a qualidade algo por semelhança. Perceber um ícone significa evocar à mente a existênc ia

de seu objeto, seja pela projeção (ou incorporação) da qualidade que o representa neste

objeto, seja pela senciência de um estado afetivo. Já o índex é uma categoria de signo que

direciona e arranja a percepção. Ele alude a seu objeto, o qual, mesmo ausente à percepção

direta, é salientado por elementos do contexto. O índex é um signo de relação,

presentativos das sintaxes na percepção, e se expressam como uma compulsão sobre a

atenção do sujeito (Peirce, 1931-1958/1994, 2011).

O símbolo, por sua vez, é uma categoria de signo que tem como objeto um

segundo símbolo, o qual substitui em procedimentos operacionais ou formais (Peirce,

2011). É por meio do símbolo que a ação instrumental pode ser ativamente exercida

(diferentemente do que ocorre com índex e ícone, que, quando mediados por um

legisigno, também possibilitam ações instrumentais, mas apenas de forma reativa ou

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automatizada, por meio de funções emocionais ou energéticas/comportamentais – Peirce,

2011; Rosa, 2007a).

Na experiência humana regular, os três correlatos são concomitantemente atuantes

e perceptualmente sinérgicos. São, de fato, categorias abstratas, que dizem respeito às

propriedades constitutivas de um signo, não se manifestando de forma pura, sem os vieses

dos outros dóis correlatos (Burgess, s.d.) É por serem necessariamente constituídos por

três aspectos ontológicos (hipoteticamente instanciados nos correlatos) que o signo na

Semiótica é denominado triádico: o primeiro diz respeito ao que o signo é; o segundo, ao

que o signo é para seu intérprete; e o terceiro diz respeito a como o signo é, ou o que ele

conota. Tais correlatos equivaleriam, respectivamente, ao signo (representamen), ao

objeto imediato e representante imediato (Burgess, s.d.; Peirce, 1931-1958/1994, 2011;

Rosa, 2007a).

No sistema de Peirce, cada uma das nove categorias se combina com outras duas,

formando tríades. Todavia, nem todas as combinações entre correlatos e qualidades

semióticas são factualmente possíveis: as leis da lógica intrínseca à Semiótica impõem,

sobre esses elementos, limites hierárquicos invariantes que as restringem a apenas 10

combinações possíveis. Cada uma dessas combinações corresponde a uma das classes de

signos genuínos, que serão apresentadas mais adiante (Peirce, 2011).

Cada uma das dez classes de signos apresenta propriedades semióticas

características, que se manifestam nos atos de significação, determinando efeitos que lhe

são específicos na mente que afetam. É a partir da dinâmica operada por meio da interação

entre diversas combinações de signos dessas 10 classes que a atividade semiótica é

configurada (Peirce, 2011). A atividade evolui em fluxo contínuo, e a progressão desse

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fluxo corresponde aos processos de significação (ou processos semióticos; ou semioses)

(Rosa, 2007a; Valsiner, 2000, 2012).

Um dos pressupostos fundamental da PC Semiótica é o de que os processos de

significação, tais como foram propostos por Peirce, também estão presentes na atividade

psicológica, com quem compartilha as propriedades semióticas que configuram a

emergência da atividade mental (Peirce, 2011; Rosa, 2007a, 2007b; Valsiner, 2012).

Nesse sentido, é valioso levar em consideração que, sendo uma teoria geral, formal, de

caráter lógico e que se propõe a subsumir todos os ramos das ciências (incluindo

Psicologia), a Semiótica não tenderia a privilegiar epistemologicamente a abordagem de

nenhum tipo específico de processo, seja natural, mental ou qualquer outro, pois é sobre

as facetas de natureza semiótica da realidade que sua instrumentalidade recai.

A tipificação da atividade psicológica (ou do que é expresso em decorrência dela)

pela semiótica oportuniza decodificação de sua emergência e a produção de dados

referentes à sua evolução contínua (Rosa, 2007a, 2007b). Ao caracterizar determinadas

práticas, estabelecendo relações entre seus atributos empíricos e as propriedades

semióticas das categorias de signos, o pesquisador decodifica o comportamento em sua

emergência, podendo a partir dos dados então produzidos inferir a lógica de determinação

das práticas a partir de sua sistematicidade semiótica, ou de como tal lógica é

continuamente mediada (Rosa, 2007a). É, portanto, uma abordagem suficientemente

sensível à distinção de instâncias causais cuja atuação seja relevante na mediação

concomitante das ações do sujeito que afetam. Mediações que podem ser determinantes,

a despeito das instâncias semióticas de onde partam, estejam elas operando a partir da

agência do sujeito (de seus esquemas cognitivos, de sua intencionalidade e orientação

teleológica) ou de forças actantes com as quais interajam (conferindo caráter teleonômico

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a suas ações). Tais forças interagem numa dinâmica sistêmica com o sujeito, mas também

entre si (Cabell & Valsiner, 2014; Rückriem, 2009).

Se tomarmos como exemplo elaborações discursivas, poderemos inferir que

demandam a mobilização de signos da 10ª e mais elevada das classes, necessários para

coordenar a operação dos esquemas simbólicos dentro de certos limites lógicos e de

acordo com os fins relevantes (Peirce, 2011; Rosa, 2007a, 2007b). Os processos dessa

ordem mobilizam impositivamente a volição deliberativa, e esta, por sua vez, é regida de

acordo com os esquemas simbólicos habituais e acessíveis ao sujeito que os realiza (Rosa,

2007b; Valsiner, 2012). Esses esquemas dizem respeito a ações simbólicas, de alta ordem,

e passam pela linguagem ou por qualquer outro sistema instrumental esquematizado. As

ações a partir deles produzidas (que são familiares ao seu agente) irão, portanto,

corresponder a comportamentos que são, em si mesmos, a expressão de símbolos

(também familiares), e o fluxo dessa expressão é regido pela mediação volitiva, que opera

dentro de certos limites e de acordo com determinadas modalidades, que são

culturalmente estabelecidos e individualmente apropriados – e que também são, todos

estes, habituais e familiares, ainda que não necessariamente correspondam, com aquilo

que o sujeito, de sua própria perspectiva, acha que eles significam (Rosa, 2007b).

O comportamento não linguístico, por outro lado, não necessariamente é

produzido pela volição deliberada, mobilizando, neste caso, signos de outras classes, que

podem prescindir da volição deliberada (Peirce, 1931-1958/1994, 2011). Estas também

funcionam de acordo com esquemas culturalmente mediados, em sua apropriação e em

sua operação, mas, no caso das ações operativas em que o uso da linguagem é acessório

ou residual, a importância das estruturas simbólicas disponibilizadas pela cultura se

mostra menos relevante, e ainda menos na medida em que a atividade é operada por

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signos de classes progressivamente mais baixas. Consequentemente, quanto mais baixas

forem as categorias mobilizadas pelos processos semióticos correntes, menos relevante,

necessária ou (auto)perceptível é a mediação simbólica (Rosa, 2007). Todavia, a

habituação a uma realidade técnica em que as abstrações simbólicas sejam relativamente

menos importante do que atividades operativas (em que a lógica intrínseca ao dispositivo

operado “pensa por seu usuário”) para a experiência de um sujeito não necessariamente

implica prejuízos intelectuais – ainda que isso possa ocorrer (Castells, 1999; Ingold, 2000;

Johnson, 2001; Lévy, 1997; Rückriem, 2009).

Desse modo, se, por exemplo, observarmos um indivíduo digitando uma

mensagem em seu computador, podemos inferir que, além de digitar, ele provavelmente

estará também elaborando discursivamente o texto que escreve, o que faz por meio da

operação de esquemas simbólicos que habitualmente mobiliza quando realiza ações em

que use linguagem, que difere daqueles mobilizados ao dirigir, andar de bicicleta, ou

cantar em karaokê. Por outro lado, se o canal da mensagem for o Facebook23, é possível

que um dos diversos sinais de notificações deste site surja inadvertidamente em sua

interface ou saia das caixas de som. Uma vez percebido, é provável que este sinal atraia

a sua atenção e por um breve instante ele volte seus olhos para um dos cantos da tela em

que informações sobre o notificante e a mensagem são brevemente mostradas, a fim de

verificar tais informações. Tal ato, quase involuntário, irá condicionar a natureza e a razão

de seu ato seguinte. Neste caso, um signo inesperadamente manifesto teria determinado

sobre sua atenção um efeito que interceptou fluxo semiótico que regia a sua atenção. Este

23 O Facebook um serviço de redes sociais on-line, utilizado na pesquisa concernente a este trabalho como

ferramenta de pesquisa. Será mais detalhadamente descrito no capítulo de método e debatido no capítulo

de resultados.

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signo, de uma classe não simbólica, o fez realizar o ato automatizado de procurar por uma

mensagem de um tipo específico depois de percebê-lo (Rosa, 2007b; Rückriem, 2009).

Na ação subsequente à percepção do conteúdo encontrado, o destino do fluxo

semiótico alternativo, iniciado involuntariamente, será determinado. Caso a mensagem

seja de uma pessoa desinteressante, por razões às quais não atribui importância, o

operador da interface irá dirigir sua atenção de volta à tarefa anterior e reassumir a postura

e o fluxo de ações que realizava antes da interrupção. Nesse caso, a função interpretante

da semiose previamente vigente, ainda na atenção de seu intérprete, predominaria sobre

aquela que acabara de surgir, voltando a tornar-se um signo plenamente manifesto e

determinando, assim, o signo que será interpretado a seguir, e este o que será interpretado

depois dele, e assim por diante, até que outro signo inesperado volte a desviá-lo (Burgess,

s.d.; Rosa, 2007a).

Se, por outro lado, a mensagem for de alguém com quem deseja muito se

comunicar, sobre um dos tópicos prioritários de sua vida corrente, é possível que este

operador abandone a elaboração da mensagem, abra um novo canal na interface e inicie

uma conversa com o responsável pela notificação. Nesse caso, a nova semiose iria se

desenvolver, e seus signos seguintes seriam signos de classes superiores, culminando em

ações simbólicas que levariam à sustentação deliberada do novo fluxo (Burgess, s.d.;

Peirce, 1931-1958/1994). Deliberada, mas apenas em parte, pois alguma parcela de seu

interesse, não simbólico, de natureza afetiva, mas ainda em sua memória operacional,

poderia ter permanecido sobre a atividade anterior, concorrendo, com este até que a

parcela deliberativa de sua consciência se voltasse para a significação da nova semiose

(Burgess, s.d.; Rosa, 2007a, 2007b); o que teria ocorrido com certa facilidade porque

outra parcela de seu interesse o afetaria neste sentido, fazendo com que a qualidade afetiva

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“aquela-pessoa-interessante”, recém-significada, reforçasse o efeito da nova semiose, que

se tornara predominante.

Esta aparente concorrência ou sobreposição entre signos e linhas de emergênc ia

semiótica distintos ocorre, na realidade, no âmbito da experiência perceptiva total, que

configura ela mesma um signo (Peirce, 2011; Valsiner, 2012). Uma atividade semiótica

realizada na mais elevada das classes, que, em parte, conduz a atenção, é fundamentada

na apropriação e na re-mediação (ou ressignificação) dos signos conformados sob as

classes que lhe precedem. Logo, os processos de alta ordem acabam sofrendo a mediação

colateral de signos de classes mais baixas, que, por serem mobilizados como informação

de fundo, afetam, em alguma medida, processos volitivamente orientados, como os de

controle atencional ou os de contextualização mnemônica (Peirce, 2011; Rosa, 2007a).

Ao serem mobilizados, os signos de classes mais baixas passam a determinar seus efeitos

na mediação do fluxo da atividade semiótica. Esses efeitos podem acabar repercutindo

sobre a dinâmica daquele fluxo de forma suficientemente consistente para modificar os

fins do fluxo de ações em curso, concorrendo com signos de classes superiores na

operação de atividades semióticas, exercendo atos de mediação que permanecem na borda

ou fora da percepção consciente, ou mesmo se desenvolvendo, assumindo classes mais

elevadas e tornando-se conteúdo da atenção deliberativa (Burgess, s.d.; Rosa, 2007a). De

acordo com Valsiner (2007), tais signos marginais, se desenvolvidos, “perdem sua

natureza simplesmente ‘computável’ e passam para o domínio da significação dos

conteúdos semióticos no porvir, de um tipo gestáltico” (p. 254). Em outras palavras, eles

passam da condição de fundo à condição de figura na percepção.

Neste sentido, Peirce (1931-1958/1994, 2011), através da leitura psicológica de

Rosa (2007a, 2007b), nos leva a concluir que, num balanço perpétuo, ressignificado (e

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re-mediado) a cada instante, diferentes fins e meios atuam sobre a efetivação de uma

atividade semiótica entre eles comuns, reforçando ou antagonizando as efetividades uns

dos outros. Na ação humana, portanto, teleonomia e teleologia estariam em balanço,

determinando, em diferentes medidas, a condução do fluxo semiótico. Mas, numa era em

que os dispositivos “pensam pelo usuário” (Lévy, 1997), orientando suas ações

automatizadas, e, mais recentemente, se comportam (aleatoriamente e

independentemente dos imputs do usuário), parece especialmente relevante investigar em

que medida os determinantes teleonômicos, em sua dinâmica sistêmica, são mediativos

da ação do sujeito, e em que configuração semiótica eles se associam à faceta teleológica

do sujeito e de suas ações.

Nesse respeito, é necessário investigar a emergência microgenética das ações

realizadas entre sujeito e dispositivo, enfocando-se os determinantes que aparentemente

mediaria a relação instrumental sujeito-artefato, especialmente quando concernentes à

dinâmica de variações no comportamento do usuário. Tal dinâmica seria denotativa dos

efeitos da interação sobre a atividade interpretante do usuário, bem como da configuração

semiótica que media as transições entre suas ações.

2.7. As 10 classes de signos na Semiótica e suas propriedades instrumentais

Symbols grow. They come into being by

development out of other signs,

particularly from likenesses or from

mixed signs partaking of the nature of

likenesses and symbols. We think only in

signs. These mental signs are of mixed

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nature; the symbol-parts of them are

called concepts. If a man makes a new

symbol, it is by thoughts involving

concepts. So it is only out of symbols that

a new symbol can grow. Omne symbolum

de symbolo. A symbol, once in being,

spreads among the peoples. In use and in

experience, its meaning grows. Such

words as force, law, wealth, marriage,

bear for us very different meanings from

those they bore to our barbarous

ancestors. (Charles Sanders Peirce, 1894,

grifos do autor)

A seguir, apresento as propriedades semióticas das 10 classes de signos formadas

pelas combinações entre categorias, bem como alguns de seus efeitos típicos,

especialmente no que concerne à operação do Facebook (utilizado na pesquisa empírica),

interfaces e dispositivos digitais.

Antes de prosseguir, saliento que, na terminologia da Semiótica, cada uma das

categorias de signos tem um nome composto formado pela junção dos nomes dos três

signos envolvidos na configuração. Isto implica em nomes longos ou de abreviações

confusas, razão pela qual preferi me referir a cada uma daquelas categorias pela posição

ordinal que ocupa entre as dez. Assim, o Qualisigno (icônico-rhemático) é chamado neste

trabalho de |1o|; o Sinsigno icônico-rhemático de |2o|; o Sinsigno indexical-rhemático de

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|3o|, e assim por diante. Os números ordinais referentes às categorias de signos são

apresentados entre barras verticais, para reduzir as possibilidades de ambuiguidade na

leitura. Esta tipologia foi arbitrariamente elaborada. Adicionalmente, advirto que inicia re i

abordando o |2o|, e apenas após o |4o| abordarei o |1o|, para que seja possível explicá-la em

termos menos vagos ou abstratos do que os que precisariam ser utilizados para apresentá -

la antes das outras (ver Figura 20 para uma apresentação sumarizada).

2.7.1. As classes de coisas e suas qualidades: |1 o|, |2o|, |3o| e |4o|

As quatro primeiras categorias dizem respeito a signos cujos sentidos se ancoram

fundamentalmente na experiência fenomenológica em primeira pessoa, o que os

impossibilita de serem diretamente compartilhados. São signos que residem apenas na

experiência imediata do sujeito, de condução hegemonicamente intuitiva (Peirce, 2011).

No que se refere às significações de elementos da interface do Facebook (o instrumento

de referência para este trabalho, operado pelo voluntário da pesquisa em sua etapa

empírica), pode-se considerar que os objetos perceptualmente conformados sob os signos

destas classes são correspondentes aos atributos de forma mais basilares e habituais na

conformação da interface: formas, cores e contrastes entre estas; bordas, linhas,

circunscrições espaciais; noções de arranjos temporais, de cadência e ritmo entre os

eventos; de arranjos espaciais, de distribuição, proporcionalidade e ordenamento entre

elementos interativos e áreas; dentre outros elementos (inclusive os dinâmicos, que

expressam movimento e transição), sendo todos caracterizados fundamentalmente por se

manifestarem à percepção sob conformações intuitivas, não sendo (em um primeiro

momento) realmente o objeto da ação deliberada, mas apenas seu fundo referencial. Em

outras palavras, é nas quatro primeiras classes de signos que são conformados e

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representados os atributos que possibilitam ao intérprete perceber os objetos e coisas do

mundo enquanto tais; objetos e coisas distintos de outros objetos ou coisas a partir de sua

percepção como entidades discretas (Peirce, 2011; Rosa, 2007a).

No Facebook, os objetos da percepção são cada um dos elementos discretos que

se apresentam na interface (ao sujeito que os percebe): ícones, links, imagens, campos,

planos de fundo, textos, algarismos, sons, padrões de formas, tamanhos e cores. São todos

objetos que podem ser individualmente tomados pela percepção e que possuem

qualidades objetais específicas de cada um deles. Tais qualidades são, grosso modo,

representadas por signos da segunda classe (Sinsígno icônico-rhemático – na

terminologia deste trabalho simplesmente chamado de |2o|; Peirce, 2011), cujas

representações são aglomerados coesos de qualidades que se manifestam como um todo

(o objeto).

Ao decompor (abstrata ou virtualmente) um objeto qualquer em seus elementos

componentes, pode-se ter uma ideia da natureza do |2o|. Um pop-up de notificação do

Facebook, por exemplo (Figura 6): antes de ser reconhecido como uma totalidade

unificada, a qual se denomina “pop-up de notificação”, algum de seus atributos singulares

(suas qualidades objetais) é percebido individualmente, e vai gradualmente sendo

associado aos outros elementos daquele objeto na conformação perceptiva de um todo.

No caso do pop-up, esse precursor pode ser visto como uma forma retangular de

extremidades levemente arredondadas, ou como uma fotografia situada em certa

localização da tela (nesse objeto, o canto superior esquerdo), ou como um ícone quadrado

ao lado de um texto que é sempre o mesmo (“Há alguns segundos”), ou ainda como umas

poucas linhas de texto enquadradas no espaço restante no retângulo. Mas o objeto “pop-

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up de notificação” é, na verdade, um signo que reúne todas estas qualidades objetais em

sua apresentação, atuando como |2os|.

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Figura 6. Elementos abstraídos de um pop-up de notificação. A conformação

semiótica de um pop-up de notificação (um |4o|) a partir de qualidades objetais

(|2os|) virtualmente discretas: (de cima para baixo, à esquerda) contorno retangular

(borda); imagem do publicador (no canto superior esquerdo do contorno); texto

caracteristicamente circunscrito; ícone “X”, em seu canto habitual no Windows;

ícone do tipo de mensagem notificada, acompanhado de frase invariável. À direita,

objeto integral “pop-up de notificação”: um |4o| que incorpora os diversos |2os|.

Uma observação válida: uma vez que um signo (independentemente de sua classe)

é, para as ciências psicológicas e comportamentais, um produto da percepção individua l,

não há uma fórmula regular e prescritível para que a percepção de sua representação ou

de seus efeitos equivalha aos percebidos por outra pessoa (Cabell, 2010; Peirce, 2011;

Rosa, 2007a, 2007b; Valsiner, 2012). Nos termos da Semiótica, uma percepção seria um

efeito causado sobre a mente de seu intérprete (o sujeito aferrado pela função

interpretante do signo), ou mesmo a expressão de uma ação física, o que equivale a um

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ato de significação instanciado no corpo (o signo de um interpretante energético – o que

equivale a dizer que um ato de significação e também é um ato de percepção) (Peirce,

1931-1958/1994, 2011). Logo, a despeito do quão aparente e comum sejam suas

características empiricamente objetivas, um mesmo termo ou representação pode ser

interpretado de formas muito discrepantes por dois sujeitos, a depender de suas histórias

microgenéticas e das dos esquemas simbólicos ao longo delas desenvolvidos (Cabell,

2010; Wagoner, 2012).

No nosso exemplo do pop-up de notificação, um indivíduo poderia ver, na imagem

que delineia a figura, um retângulo, enquanto um segundo poderia ver um invólucro,

percebendo uma qualidade virtualmente tridimensional no objeto, diferentemente do

primeiro para quem a imagem era plana, projetando-se apenas em duas dimensões. Em

termos de efeitos sobre a percepção, o |2o| atua como compleição do objeto percebido ou

operado, fazendo as vezes de corpo para que uma “alma” (as propriedades semióticas de

classes superiores) lhe seja incorporada. Antes de as noções (os signos) classificatór ias

de “retângulo” e “invólucro” produzam seus vieses sobre a percepção, deve haver alguma

coisa para ser classificada, e, para aqueles dois sujeitos, a mesma coisa produz a

percepção objetiva de dois objetos com qualidades empíricas distintas,

independentemente de seu significado generalizado. Desse modo, dois objetos

parcialmente distintos, representados por dois signos distintos, e expressando

propriedades semióticas distintas, seriam, na verdade, duas manifestações mentais a

respeito da mesma coisa, de modo que, esta seria instrumentalizada de formas também

distintas por cada um dos sujeitos. Em outras palavras, o mesmo artefato faria as vezes

de duas ferramentas distintas.

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Para além da intuição do que seja (para a mente do sujeito) um objeto, há certas

qualidades semióticas presentativas, à percepção, das noções mais basilares de orientação

espaço-temporal. Estas qualidades são significadas por Sinsígnos indexicais-rhemáticos

(|3o|). Noções da percepção de contrastes, proporcionalidade, distanciamentos,

distribuições, simetrias e quaisquer outras qualidades de relativização (as qualidades

indexicais) que façam alusão à instância objetal encerrada no caráter |2o| de um signo. Seu

efeito é compulsório, de modo que seu sujeito tem a atenção necessariamente atraída no

sentido do objeto indicado (Peirce, 2011).

No Facebook, a organização da interface gráfica em diferentes áreas é sustentada

na indexicalidade fundamentada nesta categoria semiótica: o contraste entre áreas

paralelas de cores distintas propicia a delimitação simultânea de ambas como objetos

distintos (Figuras 7 e 8). De forma semelhante, a interface visual total distingue-se pela

circunscrição definida (mas não representada) pelos limites materiais da tela do monitor

(Figura 7). Outro exemplo de objeto composto, mas que é ainda mais intuitivo e efêmero

que a interface visual, é o próprio espaço virtual percebido através da tela; esse espaço

não chega a ser topograficamente definido, mas acaba sendo delimitado pelas relações

analógicas tácitas entre as ações no mundo material (que demandam certos tipos de

espacialidades) e aquelas realizadas no ambiente digital (Johnson, 2001; Lévy, 2011b).

Ver Figura 8.

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Figura 7. A interface gráfica do feed de notícias do Facebook (em versão para

desktop, acessada via navegador), em sua apresentação inicial, no topo da

página. Sua delimitação é feita por elementos gráficos invariáveis (a interface

do navegador e, abaixo, a barra de tarefas do Windows), e todos esses elementos

estão espacialmente delimitados pelas bordas do monitor. Há vários objetos

distintos em seu interior, mas a própria interface como um todo pode ser

percebida como um objeto ela mesma.

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Figura 8. Na interface do feed de notícias do Facebook, cada área graficamente

representada tem uma ênfase funcional específica, sendo elas delimitadas entre si pela

diferença de cores e tons. Não há representações de barreiras entre elas. Os signos

interpretados na sua distinção são de tipos indexicais. Na imagem, cada um dos campos

principais está em destaque.

A propriedade indexical característica do terceiro não se reserva à percepção

espacial, expressando-se também na dimensão temporal (Peirce, 2011). É o caso, por

exemplo, quando algum objeto se desloca, modificando as suas propriedades relativas

(como sua posição), ou mesmo quando ele surge na interface visível, modificando as suas

propriedades relativas às de outros objetos, mas também às de si mesmo. As notificações

de mensagem no Facebook são uma ilustração adequada ao caráter temporal desta função

semiótica: tais objetos tanto se manifestam sob a forma do sinal de alerta vermelho

(alterando o ícone que abre a aba de notificações, mas também a si, por passar da condição

de invisível à de visível) quanto como uma janela pop-up, que surge na borda inferior da

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tela e se desloca até um ponto em que se torna estacionária por alguns segundos, até

evanescer e sumir (Figura 9). Todas essas variações constituem diferentes configuraçõ es

imediatas de um objeto cuja identidade permanece a mesma em diferentes tempos e

espaços virtuais: a “interface do Facebook” (Figura 7) (Peirce, 1931-1958/1994).

Figura 9. As duas principais funções para a sinalização do recebimento

de uma ou mais novas notificações de mensagem: abaixo em versão

pop-up, e acima, na barra de navegação superior (ou barra azul), o sinal

de alerta vermelho, que quantifica o número de novas mensagens desde

o último acesso à aba de notificações.

O |3o| diz respeito somente ao direcionamento da atenção do intérprete para seu

objeto de referência (Rosa, 2007a). Todavia, ele não é um signo deste objeto – ele não o

representa. Seu objeto se resume a algum tipo de alusão que denota a presença ou

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existência daquele. Neste arranjo semiótico, os atos de aparecimento ou o deslocamento

de uma notificação de mensagem apenas salienta a sua presença; a percepção daqueles

atos nada especifica sobre as propriedades de seu objeto de referência (pois, na percepção

indexical, são os atos em decorrência ou a imposição de contrastes, e não a notificação

enquanto objeto, que estão sob o foco da percepção imediata; Peirce, 1931-1958/1994).

O |3o|, sendo objeto da experiência intuitiva, não é percebido como uma forma (no nosso

exemplo, a qualidade do surgimento ou a do deslocamento de uma janela pop-up), mas

sim no que concerne a sua função, indexical, sempre e necessariamente voltada ao reforço

da percepção de um segundo signo (sendo o surgimento e o deslocamento pertinentes,

portanto, apenas porque são o surgimento e o deslocamento d’a notificação; um objeto

perceptual diferente destes mesmos). Ver Figura 10: na imagem, estática, as setas

representam o movimento. Este expressa qualidade indexical, ou qualidade de referência,

que afeta a atenção, redirecionando-a para o quadro (Rosa, 2007a; Peirce, 1931-

1958/1994, 2011).

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Figura 10. As setas representam o movimento de ascensão do

quadro, o qual surge como se de fora da tela, em movimento

ascendente até ocupar sua posição estacionária.

O |3o|, portanto, é um signo que representa objetos efêmeros e que existem

enquanto coisas reais (virtuais) apenas no que diga respeito à denotação de uma relação

(na Figura 10, o movimento denota o quadro, que só é percebido como o objeto que é

após a atenção ter sido capturada pelo movimento; ao se tornar estacionário, a função

indexical acaba). O |3º| nada é capaz de representar sobre as propriedades do objeto em

função da qual a relação existe (o qual se encontra fora da experiência imediata). Esta é

uma capacidade semiótica do Sinsigno (indexical-) dicente (|4o|) (Peirce, 2011).

Diferentemente de seus antecessores, o |4º| é capaz de agregar diversas qualidades

indexicais e objetais em um mesmo signo, fornecendo informações de naturezas diversas

acerca do objeto da percepção imediata que ele interpreta, e que se referem

especificamente àquele objeto, n’aquele ato perceptivo (Peirce, 2011). No Facebook, isto

significa que um retângulo se elevando a partir do canto inferior esquerdo da tela, mas

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parando não muito longe dali; um retângulo que é delineado por uma borda formada pelo

contraste entre o seu exterior azul e seu interior quase branco, e que, além disso, é realçado

por um leve sombreado; um retângulo que contém em seu interior duas imagens e mais

alguns blocos de texto; que teve sua emergência concomitante à emergência de certo

barulho pontual; que some dentro de poucos segundos, dentre outras características. Este

retângulo não é percebido como uma sobreposição de diversos signos explicitamente

distintos (|1os|, |2os| e |3os|), cada qual referente a um objeto distinto da experiência, em um

mesmo momento; ele é visto como uma composição em que as várias propriedades

semióticas (qualidades, objetalidade e indexicalidade) se apresentam incorporadas em um

mesmo objeto, com suas características perceptivamente unificadas (Rosa, 2007a). Esse

retângulo (um signo com propriedades de um |4o|) tem o potencial de representar cada um

dos objetos abstratos acima mencionados, ou diferentes combinações destes, mas tem

fundamentalmente a capacidade de ser percebido como um objeto diferente de todos eles,

a despeito de apresentar suas características (Figura 11).

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Figura 11. Um |4o| é conformado a partir de uma conjunção de |1os| e

|2os|, e ganha coesão e identidade próprias como objeto no mundo pela

mediação colateral de |3os|.

O |4o| é um Dicensigno, e, portanto, é um signo que se refere a seu objeto em

relação ao que lhe é fenomenologicamente particular, ao que é percebido como um ser

concretamente provido de identidade, único no tempo, no espaço e na consciência (Rosa,

2007a). Cada objeto interpretado como um |4o| é, portanto, intuitivamente significado

como um ente singular, diferente de quaisquer outros objetos existentes, pois apresenta

peculiaridades que o identificam. Um |4o| é sempre uma versão única de um objeto ou

evento: assim como, nas palavras de Heráclito, “não é possível entrar duas vezes no

mesmo rio”, não é possível perceber ou significar duas vezes o mesmo Dicensigno

(Peirce, 1931-1958/1994, 2011). Este apenas diz respeito a ocorrências e casos em sua

singularidade fenomenológica, e não diz respeito a tipos de eventos ou objetos (apesar de

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poder representar fenomenologicamente objetos e eventos que, sob classes mais elevadas,

representariam tipos e categorias gerais – como será explicado mais à frente). Fotografias

são um exemplo notório de Dicensignos; especialmente em se tratando de pessoas

conhecidas: os significados determinados sobre a mente do sujeito que as aprecia o fazem

sentir a qualidade de que seu objeto tem existência real e que sua existência tem algum

tipo de implicação em sua vida (Peirce, 2011). Ver Figura 12.

Mas o objeto de um |4º| não se limita a entidades, podendo ser qualquer coisa cuja

existência seja encarada como concreta e operacionalmente relevante (Peirce, 2011). As

notificações do Facebook, por exemplo, se recebidas enquanto o usuário está diante da

interface deste site, informam-lhe uma série de características contextuais, como quem

enviou a mensagem e qual o seu conteúdo, ou até mesmo evocam significações que não

têm a ver com os estímulos sensoriais correntes, mas com associações e conhecimentos

contextualizados à identidade de seu amigo, como, por exemplo, ver a notificação de

mensagem de Oxente Jogador como uma coisa única no mundo e cujo caráter ontológico

é completamente dependente daquele contexto; como se o objeto pudesse ser denominado

“esta-notificação-de-mensagem-por-pop-up-de-Oxente-Jogador-me-dizendo-isto-

agora”. Tal notificação é percebida como um traço da existência do próprio Oxente, como

se a notificação fosse uma extensão virtual de si.

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Figura 12. Imagem de pessoas conhecidas: cada uma dessas imagens representa uma

personalidade pública. Como |4os|, não são diretamente representativos daquelas

pessoas em si mesmas; cada uma é uma “imagem-daquela-pessoa”. Nas fotos vê-se

Albert Einstein (a menos que o observador não o conheça); acima, um A. E. de meia

idade, segurando algo, naquela pose em que se encontra; abaixo, A. E. apontando o

dedo para uma superfície borrada diante de várias pessoas. A ideia isolada de A. E.,

fora desses contextos perceptivos, seria um |2o|.

Esta distinção passa a ser relevante porque, uma vez que nas três primeiras

categorias peirceanas de signos a atividade interpretante se restringe à percepção de

objetos, qualidades e alusões enquanto coisas unitárias e diferenciadas de quaisquer

outras a partir de óticas simples e intuitivas, suas propriedades instrumentais se voltam

primariamente à mediação de distinções, reconhecendo o que cada objeto é como coisa

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discreta (Figura 12). A quarta categoria, por outro lado, apresenta propriedades

instrumentais compreensivas, o que a possibilita atuar como ponte entre as significações

próprias das categorias que as sucedem com as que são próprias das categorias que as

antecedem. Assim como um |2o| e um |3o|, um |4o| é significado na experiência imediata

como um objeto, um ente perceptual específico e concreto, e com atributos dotados (na

mente que os percebe) de extensão24, o que lhe permite ser denotado (Peirce, 1931-

1958/1994). Já os signos de categorias mais elevadas dizem respeito a significações

progressivamente mais abstratas, em que os objetos vão ganhando versões genéricas e

conceituais, passíveis de serem referenciados na experiência mediata, por meio de

funções volitivas (Rosa, 2007a). A partir do |5o|, a intenção se torna relevante à

significação dos objetos, sendo esta a propriedade que permite a sua constituição e

reconstituição simbólica – é a partir dessa classe que as funções analógicas se tornam

possíveis (Peirce, 1931-1958/1994).

Antes de prosseguir com o detalhamento das classes seguintes, todavia,

introduzirei a esta explanação as características da primeira dessas classes de signos, bem

como o seu valor instrumental e os seus recaimentos na composição das categorias

sucessoras.

O contexto (a dimensão semiótica que catalisa atividade interpretante) dos signos

de classes 1 a 4 é a constituição do próprio objeto da significação, do objeto sob a forma

em que ele se apresenta à percepção imediata, no âmbito da ação ou interpretação por

24 Extensão e intensão são classificações que dizem respeito à relação entre semântica e sintática da

informação significada por um signo. Quanto maior a extensão, mais objetivo é o signo, e maior é

seu efeito denotativo. Quanto maior a intenção, mais sentidos conotativos ele evocará, atuando como

signo para mais de uma ideia, ou como elemento de transição entre ideias, com uma função analógica.

Não são qualidades mutuamente excludentes, podendo um signo ser, ao mesmo tempo, altamente

objetivo, mas altamente alusivo, como os símbolos de sinalização convencionais de placas de locais

públicos (Peirce, 1931-1958/1994).

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parte do sujeito. Em outras palavras: os signos sob as quatro primeiras classes constituem

os objetos e qualidades percebidos na experiência imediata. Neste sentido, os objetos

seriam relações entre (ou expressões conjuntas de) qualidades (Peirce, 2011). Algumas

destas qualidades são derivadas das 10 combinações específicas entre as nove categorias

de correlatos; são derivadas das propriedades de cada classe de signos. Outras qualidades

são signos elas mesmas, manifestando-se por estarem incorporadas em objetos e outros

tipos de signos: estas são os Qualisignos (icônico-rhemáticos), a primeira das 10 classes

de signos.

Como categoria da primeiridade, o Qualisigno se manifesta em todos os tipos de

signos. Uma de suas manifestações é como fundamento perceptivo do caráter ontológico

como objeto, padrão ou símbolo – por exemplo, experiências intuitivas como a percepção

de que algo é ou não real enquanto um ser, um predicado ou uma ideia, ou a noção de

si/self, bem como a de outro (Rosa, 2007a). Bakhtin (1997) sintetiza este caráter dos

Qualisignos na seguinte afirmação: “Se nada esperamos da palavra, se sabemos de

antemão tudo quanto ela pode dizer, esta se separa do diálogo e se coisifica” (p. 351).

A outra forma de manifestação dos Qualisignos é como qualidade sensíve l

enquanto tal (a percepção de que algo é vermelho, molhado, bom ou mal, duro, lento,

dentre outras características que são predicativas). Esta faceta também é ilustrada por

Bakhtin (1997): “A imagem-objeto do homem não se reduz a uma pura coisificação. Pode

despertar o amor, a piedade, etc. Mas o importante é que ela seja (e deve ser)

compreendida. Na obra literária (como em todas as artes), tudo, até mesmo as coisas

inertes (correlacionadas com o homem), é marcado de subjetividade” (p. 341).

Como classe, o Qualisigno (icônico-rhemáticos) é necessariamente um signo

genuíno, sendo percebido em sua integralidade. Todavia, o |1º| não é um signo que denote

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objetos; e como uma qualidade é “o que quer que seja positivamente em si mesmo” e

“pode denotar um objeto apenas por virtude de um ingrediente comum ou similaridade”

com este (Peirce, 2011, p. 115). De acordo com Peirce (2011), um |1º| só pode atuar como

signo uma vez que esteja incorporado em outro de classe superior. Todavia, mesmo se

manifestando apenas por meio de outro objeto, o |1º| não perde sua independência como

signo (ou seja, o azul não deixa de ser a cor/qualidade de azul porque é o “azul da barra

do Facebook” – Figura 13).

Sigamos expondo alguns exemplos para ilustrar as definições gerais acima

apresentadas.

Mesmo necessitando de um objeto que incorpore para que seja percebido como

signo em seu próprio direito, o |1o| não precisa mais desta incorporação uma vez que já

exista como signo independente na mente de seu intérprete. Na interface do Facebook,

por exemplo, podemos ver a cor branca, bem como dois tons principais de azul (Figura

13). Temos, então, o “sentimento de branco” (sentimos a qualidade cor branca) e o

“sentimento de azul”. Ao percebermos essas cores incorporadas à interface e

compreendê-las como qualidades em si mesmas, podemos apenas chamá-las branco, azul

X e azul Y. Caso algum dos tons de azul seja desconhecido, e não venhamos a saber como

denominar especificamente cada um daqueles tons de azul, seríamos capazes de enxergá -

los como as cores que são, percebendo-os, neste caso, enquanto |1os|. Uma vez

significadas, tais cores podem (caso sejam lembradas) ser percebidas como qualidades

independentes e específicas, mesmo quando apresentadas em contextos e incorporadas a

signos diferentes dos originais (Figura 13).

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Figura 13. As cores principais da interface do Facebook. A despeito de serem

características da interface desse site, suas cores podem ser percebidas e utilizadas

como qualidades independentes do signo- interface que as incorporava originalmente.

A independência perceptual dos |1os| é proporcional à medida que sejam

lembrados em suas especificidades (Rosa, 2007a). E, como salienta Wagoner (2012), a

qualidade da memorização de um signo é dependente de um (ou mais) contexto ao qual

se torna associado. Ao lidarmos com a interface do Facebook, nos deparamos, na verdade,

com uma infinidade de |1os|: cores formas, dimensões, sons, proporções, movimento,

dentre outras qualidades que, quando incorporadas, constituem as propriedades das coisas

que se apresentam, como se apresentam, à percepção.

As qualidades são a base para a composição perceptiva para todos os outros tipos

de signos, manifestando-se neles de formas peculiares. As qualidades próprias dos

Sinsígnos genuínos (|2os|, |3os| e |4os|), por exemplo, estão necessariamente incorporadas a

uma coisa ou evento (Peirce, 2011). Mas não coisas e eventos de qualquer tipo: estes,

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quando percebidos como sinsignos, são percebidos em seu caráter de elementos concretos

e efêmeros da realidade vivencial. São signos próprios da experiência no presente (ou,

abstratamente, como aspectos atemporais da experiência), representando ocorrências em

vez de tipos (Armengaud, 2006).

Ao nos depararmos com a interface do Facebook, percebemos os azuis, os

retângulos e a sutil tridimensionalidade aparente de sua interface visual. Mas não nos

limitamos a percebê-los como signos discretos. Suas qualidades conformam unidades

perceptivas totais que são mais que a soma de suas partes: objetos, regularidades (no caso

dos legisignos) e símbolos.

Como artefatos isolados, cada um dos elementos da interface do Facebook é um

arranjo coeso de |1os| ou de |2os|, mas nem todas qualidades destes arranjos precisam ser

percebidas para que cada elemento seja individualmente identificado (Rosa, 2007a). Um

pop-up de notificação de mensagem, por exemplo, é, na qualidade de objeto dinâmico,

composto por grande variedade de |1os| e |2os|: letras, que se organizam em textos, que são

representados em fontes específicas e são restritos em extensão e em localização;

imagens, também restritas espacialmente, e que só podem representar a imagem de

identificação do remetente e o tipo de mensagem recebida; um retângulo de tamanho

específico, delineado por um contorno fino e escuro e por um sutil sombreado, e que

necessariamente ocupa o canto inferior esquerdo da interface (Figura 14). Todas estas são

característica de um pop-up de notificação, mas se qualquer uma delas for percebida

isoladamente e ainda assim evocar na mente de seu intérprete a ideia de um pop-up de

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notificação como objeto específico, tal característica já estará atuando como um signo

deste objeto, na qualidade de réplica25 de um signo de classe superior (Peirce, 2011).

Figura 14. Exemplos de atributos (objetos e qualidades) característicos de um pop-

up de notificação, decompostos em elementos que, isoladamente, têm significados

próprios, distintos dos significados dos objetos que os incorporam: linhas retas e

ângulos compõem o retângulo; linhas retas e pontas arredondadas compõem o ícone

“X”.

Um |3o| tira cada um dos |2os| de seu isolamento qualitativo, espacial ou temporal,

e, ao significá- lo como em relação organiza o campo perceptivo em uma dimensão

extensa (Rosa, 2007a). Desse modo, no Facebook, antes de ocupar um espaço

determinado no canto inferior esquerdo da interface, um pop-up de notificação se

materializa nela, aparecendo inicialmente como uma pálida transparência retangular, mas

que rapidamente se torna opaca (Figura 14). Este evento de surgimento se dá

25 O conceito de réplica é explicado mais abaixo.

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simultaneamente ao movimento ascendente do mesmo elemento, que se desloca do

extremo inferior da interface até alcançar uma altura determinada, quando ele para e

permanece por alguns segundos, até que esvaneça e suma, ou até que o usuário interaja

com ele. Todos estes atos são indexicais, e, se percebidos pelo usuário, direcionarão sua

atenção para a janela de notificação em vez de serem percebidos eles mesmos como

objetos finais da significação que promovem. São, pois, |3os|, de modo que sua presença

é causada pelo objeto em função do qual atua: não haveria movimento ou efeito de

transparência caso não houvesse o pop-up. Por outro lado, não haveria a percepção de

que este elemento atua na região da interface em que atua se não houvesse o contraste

entre seu local de manifestação e o canto inferior esquerdo da interface, que se encontra

próximo (Figura 15).

Figura 15. A posição ocupada pelo elemento pop-up também exerce função

indexical na determinação de suas propriedades instrumentais como

elemento da interface.

Quando genuíno, o |3o| é signo da relação entre o pop-up (um |2o|) e o canto infer ior

esquerdo da interface, mas este último elemento, não significado como objeto, jaz

transparente ao sujeito em tal evento semiótico, pois neste caso o |3o|, como signo da

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experiência imediata, tem como seu contexto pragmático o próprio |2o|, e este, por sua

vez, tem como contexto a experiência fenomenológica do objeto no momento de sua

significação, de modo que este é evocado à mente, mas seu signo não é capaz de

representar nada além da sua qualidade objetal específica. Neste sentido, ao perceber uma

janela de notificação, o sujeito apenas a perceberia nesta qualidade, sem a obtenção de

informações adicionais, como o conteúdo da notificação.

Figura 16. Emergência de um pop-up de notificação: surge palidamente, tornando-

se opaco à medida que ascende. O objeto, combinando-se à função indexical do

movimento, conforma-se na ocorrência de um evento na interface, no tempo e espaço

corrente, significado por um |4o|.

Por outro lado, caso tivesse sua atenção captada pelo movimento do pop-up

(Figura 16), direcionasse seu olhar para a imagem do remetente e visse a foto de um

amigo de quem espera uma resposta, seu olhar acabaria recaindo, em seguida sobre o

texto abreviadamente notificado, e, vendo que se tratava da resposta aguardada sentiria

certa qualidade de contingência por acesso ao resto da leitura, fazendo emergir, assim,

em sua mente, a qualidade da janela como um link direto a ela e o fazendo mobilizar, em

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seguida, o cursor, com o qual clicou sobre aquele elemento virtual, acionando o seu link.

Neste exemplo, a percepção do signo janela de notificação não se limitou a sua qualidade

objetal mais básica, tendo se expandido com a busca de informações adicionais referentes

àquela janela, especificamente percebida naquela experiência fenomenológica. Foi-se da

percepção indexical à percepção objetal, e daí à percepção de outras qualidades que

expandissem a significação daquele objeto inicial, seguindo-se uma sintaxe

intuitivamente eficaz entre objetos e relativizações/relações entre eles, restringindo suas

possibilidades de contextualização até que fosse possível apreciar os sentidos específicos

decorrentes daquela notificação. Este breve processo semiótico explorou as

especificidades concretas de seu objeto, produzindo um signo altamente restrito a seu

contexto original, mas qualitativamente mais rico, mais informativo sobre este mesmo

contexto. Experienciou-se um |4o| (Figura 16).

O |4o|, com sua capacidade de produzir significações mais complexas por meio do

estabelecimento uma sintaxe indexical-objetal especificamente engendrada para a

exploração do aspecto dinâmico de seu objeto, atua como ponte entre os objetos da

experiência imediata e os objetos da experiência mediada (Rosa, 2007a). É, portanto, a

classe de signos que está na base da instrumentalidade que possibilita a operação de

esquemas semióticos que se dispersam entre um âmbito geral e abstrato e outro, específico

e concreto, de uma mesma realidade subjetiva. É a partir do |4º| que a interface como um

todo (uma totalidade perceptiva) pode ser efetivamente apreendida na experiência como

um signo e, deste ponto, operada como uma ferramenta integral, mas composta de

diversas subpartes.

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2.7.2. As três classes não simbólicas de legisignos: |5o|, |6o| e |7o|

Enquanto a segunda, a terceira e a quarta classe são instrumentais na significação

de coisas sob uma roupagem de Sinsignos (constituindo os objetos elementares, de caráter

imediato), os |5os|, |6os| e |7os|, sendo Legisignos, significam relações entre coisas;

essencialmente no que concerne às regularidades e no que há de geral nestas relações. Os

Legisignos, na experiência imediata, não são diretamente percebidos como objetos, mas

como tipos, sendo denotados nas qualidades de hábitos, gêneros, leis ou ideias gerais

(Peirce, 2011). Por meio de signos dessas classes, percebe-se qualidades comuns entre

objetos e eventos, tornando-se possível significar generalizações.

Legisignos, na qualidade de tipos gerais, não representam a existência física e nem

coisas em seu caráter objetal “puro” na realidade imediata (atos semióticos que

caracterizam as classes a eles inferiores). Para que sejam empiricamente experienciados,

os signos desta categoria demandam réplicas, que são (signos de) os objetos da

experiência direta com os quais guardam alguma relação habitual, e que incorporam seus

significados generalizados (Peirce, 2011). Nestas instâncias semióticas, os objetos e

eventos deixam de ser significados apenas como coisas em si mesmas, passando,

adicionalmente, a representar qualidades que não são sensorialmente exibidas em seus

correlatos físicos; elas emanam de experiências memorizadas, sendo, portanto, de

natureza primariamente virtual (Lévy, 2011a), mas manifestam-se incorporadas àqueles

objetos fisicamente representados (suas réplicas), que passam a agregar seus significados.

Desse modo, o genérico (Sinsignos) só existe como coisa ou representação por meio do

específico (Sinsignos): não há tipos sem objetos que os representem (Peirce, 2011).

Por meio de atos de generalizações, os legisignos mediam a percepção de objetos

que não estão presentes na percepção imediata da realidade física, possibilitando, desta

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forma a significação por meio de analogias (Rosa, 2007a, 2007b). A mediação por atos

de analogia implica a ocorrência de saltos qualitativos que transcendem a experiênc ia

imediata, fazendo com que o sujeito vivencie, na realidade que o envolve, significações

que correspondem, em alguma medida, à re-experienciação de outra realidade,

previamente memorizada (Rosa, 2007a). Tal realidade, “reconstruída” na percepção do

indivíduo, o leva a experienciar uma realidade que é a fusão do seu presente, o seu “aqui-

agora” (incorporado nas coisas da realidade imediata), com algum “lá-então”

(representado por aquelas coisas), onde se situam temporalidades, espacialidades e

qualidades que estão para além dos horizontes de sua experiência imediata. Os Legisignos

possibilitam a representação de extensão temporal, ligando presente, passado e futuro em

uma mesma continuidade interpretativa (a capacidade de re-mediar de forma

hegemonicamente voluntária os significados que encadeiam certa concepção de passado

a certa concepção de futuro, contudo, é uma função propriamente simbólica, apresentadas

na seção seguinte). Nas palavras de Peirce (2011), “no fluxo do tempo na mente, o

passado parece agir diretamente sobre o futuro, com seus efeitos sendo chamados de

memória, enquanto o futuro só age sobre o passado por meio de terceiros” (p. 79).

Este tipo avançado de totalidade perceptiva não se resume à formação de signos a

partir da relação entre qualidades: os Legisignos são signos compostos a partir da relação

entre objetos já simbolizados. As três primeiras classes de legisignos, os |5os| |6os| e |7os|,

progridem de uma classe a outra numa dinâmica similar à dos |2os|, |3os| e |4os|, razão pela

qual nos deteremos menos nas descrições de suas propriedades.

Os |5os| dizem respeito à significação de tipos de objeto; os |6os|, à significação das

relações entre aqueles tipos; enquanto os |7os| (Dicensignos, que sempre são signos da

experiência imediata) significam a percepção daquelas relações e tipos como ocorrências

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concretas do mundo real (Peirce, 2011). Mas se as quatro primeiras classes são próprias

de signos constitutivos de objetos e suas propriedades ontológicas, as três classes que lhe

procedem são significantes do contexto em que aquelas coisas e seus atos são

interpretados, situando-os enquanto elementos de uma realidade típica (uma realidade

formada por tipos), cuja totalidade fenomenológica é abarcada pelo |7o| (Rosa, 2007a).

De acordo com suas propriedades, são essas as classes em que ocorre a maior parte das

atividades semióticas concernentes à cognição como fenômeno situado em contextos, na

medida em que é na esfera dos tipos que a maior parte da informação contextual é

catalisada (Cabell, 2011).

Ao denotar o tópico de um signo, o |7o| promove uma comunhão entre os

significados particulares (Dicensignos) e os gerais (Sinsignos) envolvidos em sua

composição. Ocorre aí uma projeção de significados gerais sobre signos que, em um

primeiro átimo, são percebidos apenas em seu caráter fenomenológico, enquanto

ocorrências. Este processo, que engloba signos plurais sob uma mesma generalidade

contextual, é ele mesmo um processo de generalização (Peirce, 2011); neste caso,

promovida pela atuação semiótica de um |7o|.

A generalização permite a minimização da atividade simbólica em ações mediadas

por um signo generalizado; nestes o potencial de causação por contingência contextua l26

é acentuado na medida em que as ações sejam a interpretação de hábitos e crenças (Peirce,

2011). Aumenta-se a capacidade de um signo denotar, objetivamente, o seu significado

no contexto generalizado. Quanto mais acentuada esta objetividade (que corresponde à

26 Considero o termo “contingência contextual” mais apropriado (neste trabalho de interesse psicológico)

para me referir ao que Peirce (1931-1958/1994, 2011), a fim de acentuar o caráter de causalidade direta das

operações sobre as quais atuava, comumente designava como necessidade mecânica, compulsão, ou força

das circunstâncias. Esta corresponde ao que em seu sistema filosófico foi denominado anancasm.

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capacidade de um signo determinar um significado específico sobre uma mente), menor

se torna a relevância de possíveis ambiguidades no processo de interpretação do signo

contextualizado. Assim, a generalização produz o estreitamento das possibilidades de

interpretação do signo, delimitando o potencial que o mesmo apresentaria para a

compreensão de novos (e desconhecidos) objetos experienciados no mundo (Peirce,

1931-1958/1994).

As possibilidades de significação podem ser tão estreitamente delimitadas que

acabam assumindo propriedades funcionais do que, em termos valsinerianos, são

chamados de signos de tipo ponto, os quais têm significação contextual maximamente

objetiva (Valsiner, 2012). Em termos peirceanos, tal estreitamento implica o

condicionamento da mente para interpretar um signo de modo a evocar majoritariamente,

ou sempre, alguns objetos ou tipos previamente contingenciados (|2os| e |3os|) para atuar

como réplicas de conceitos objetivos. Por outro lado, a generalização pode acarretar em

uma ampliação das possibilidades de significação, caso em que se perde a noção do signo

enquanto objeto, passando-se a atribuir as suas qualidades diretamente a outros objetos e

tipos. Em Valsiner, tamanha amplitude caracteriza um signo hipergeneralizado, enquanto

em Peirce, caracteriza a percepção icônica de um qualisigno (|1o|). Em outras palavras, as

generalizações geram hábitos de interpretação semiótica, que, por sua vez, condicionam

a mobilização de determinadas réplicas para a incorporação de determinados signos.

Tomando os elementos da interface já apresentados ao longo do capítulo como

ilustração, observamos que são nessas classes que cada um deles adquire a sua identidade

geral. O pop-up de notificação, por exemplo, é como |2o|, |3o| ou |4o|, percebido como

coisa da experiência imediata, mas, numa instância já intuitivamente mediada, esses

objetos deixam de ser simples ocorrências e passam a ser percebidos como instrumentos

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para o cumprimento de uma função: notificar novas mensagens. De forma semelhante,

cada um dos campos da interface ganha, nessas classes, um significado que liga o

reconhecimento do objeto gráfico à sua função, de modo que o usuário atribui

significados específicos a cada um dos retângulos, o que torna efetivamente possível

operá-los, e não apenas expressar reações a eles (Figura 17).

Figura 17. Na qualidade de Legisignos, cada campo da interface do feed tem sua

ênfase funcional especificada a si, de modo que cada uma delas é percebida com

valores instrumentais determinados: no feed de notícias é onde se deve procurar as

postagens ainda não vistas de amigos, enquanto na barra azul é onde as notificações

podem ser notificadas, e a barra de anúncios pode ser ignorada ou consultada, de

acordo com a disposição do usuário para consultá- los. Na imagem, cada um dos

campos principais está em destaque.

Outra forma de ilustrar a função dos Sinsignos não simbólicos é voltando às

ilustrações anteriormente vistas (Figura 12). Se, na qualidade de |4os|, cada uma das

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imagens seria apreciada apenas com ilustração ou fotografia, na qualidade de |5os| elas

podem ser apreciadas como fotografias ou ilustrações de coisas, pessoas ou eventos

situados em contextos. Na Figura 18, podemos ver as qualidades generalizadas

(abstraídas) de Marilyn Monroe em uma ilustração minimalista que não apresenta

diretamente as suas qualidades visuais, mas que consegue conotá-la a partir das formas

apresentadas: as formas amarelas conotam seus cabelos loiros e com penteado de época,

enquanto branco, representando sua pele, contrasta com o fundo preto. A marca vermelha

sob um ponto preto intensifica a alusão especificamente a sua identidade, representando

sua boca pintada e um sinal característico. Uma coleção de qualidades e objetos que,

arranjados numa disposição pertinente, aludem a ideias gerais (|5os|) com ela associadas

por algum padrão generalizado (Peirce, 2011).

O mesmo pode ser visto com as imagens de Maradona, Adolf Hitler, Barack

Obama e Albert Einstein, conotados por representações de traços marcantes de cada um

deles (Figura 18). Mas enquanto os padrões alusivos entre Marilyn Monroe e os três

primeiros apresentam certa semelhança, os representativos de Einstein são evidentemente

discrepantes. A função semiótica pela qual se estabelece relação de semelhança e

distinção entre esses tipos de ilustrações alusivas decorre da atuação de |6os| (Peirce,

2011). Mas enquanto as ilustrações situam seus personagens retratados em um contexto

estilístico, elas não se referem ao contexto de qualquer atividade (exceto, talvez, a

atividade de posar). Nas fotografias, por outro lado, é possível distinguir com maior

clareza os contextos pragmáticos nelas retratados: acima, Einstein posa para uma

fotografia; talvez durante uma apresentação. Abaixo, ele claramente se encontra em uma

apresentação, talvez ministrando uma aula. Todas as ações que acabo de citar pertencem

a gêneros de atividades cultural e contextualmente situadas, e que não podem ser

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diretamente objetificadas como Sinsignos, mas que podem ser representadas por meio

deles.

E se os Sinsignos se limitam a identificar a coisa ou evento como sendo ela

mesma, os Legisignos são capazes de associá-las a outras coisas ou padrões, situando-as

em uma rede de significações que possibilita significar uma mesma ideia por meio de

vários signos que, a princípio, diriam respeito a coisas diferentes (como a ilustração e as

fotografias de uma mesma pessoa, mas em diferentes idades, e que, a princíp io,

representariam objetos diferentes), assim como possibilitam significar várias coisas

distintas por meio de um único signo (como o termo Albert Einstein, que poderia ser

usado em alusão a suas imagens, ou o termo “celebridade”, referente a qualquer uma das

pessoas retratadas). Em qualquer caso, alguém ou algo estaria realizando algum tipo de

ação (mesmo que seja o simples ato de existir), e a função semiótica que contextualiza a

ação de um agente, em um contexto, como uma ocorrência específica do tipo de ação em

questão, pelo tipo de agente em questão, no tipo de contexto em questão, é um |7o|.

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Figura 18. Imagem de personalidades públicas. Como |5os|, cada uma das

imagens conota a ideia de uma personalidade, mesmo que não haja uma

retratação de sua identidade real. Como |6os|, é possível estabelecer relações

de semelhanças ou diferenças gerais, classificando e generalizando sob

categorias comuns. Como |7os|, cada uma das imagens é percebida como

uma “encarnação” específica de certas ideias gerais.

2.7.3. As classes simbólicas: |8o|, |9o| e |10o|

As classes de signos até aqui apresentadas (|1o| ao |7o|) operam primariamente

(quando signos legítimos, e não apenas réplicas) na mediação da experiência imediata,

determinando, na mente do sujeito, representações que equivalem aos elementos da

realidade como são percebidos nas qualidades de objetos ou tipos de objetos (Peirce,

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2011; Rosa, 2007a). A mediação deste tipo de experiência semiótica é intuitiva e fluida;

ela pode mobilizar a atenção voluntária, mas não depende dela para ser vivenciada (Rosa,

2007a). Ela também é a experiência que media os atos instrumentais realizados a partir

de competências e habilidades já apreendidas (ou, no jargão de Peirce, habituais).

Os símbolos, por outro lado são signos que necessariamente incorporam, em

alguma medida, a atenção voluntária e explicitamente deliberativa, atuando como

veículos de funções psicológicas dessa ordem. A partir da lógica de estruturação

semiótica apresentada por Rosa (2007a), deduz-se que esses, de certa forma, seriam seus

equivalentes funcionais.

Peirce definiu um símbolo como “um signo que realiza sua função,

independentemente de qualquer similaridade ou analogia com seu objeto, assim como de

qualquer conexão factual com ele, mas [o representa] somente porque será interpretado

para ser um signo”27 (Peirce, 1931-1958/1994, Volume 5, parágrafo 73, tradução minha ).

Contudo, várias foram as definições de símbolo apresentados por Peirce. A seguir, ofereço

uma síntese das mais usuais, apresentando suas principais características.

Um símbolo é uma representação geral regida por um conjunto de regras a eles

referentes, e que conota (significa) outra ideia geral (não equivalente ao próprio símbolo),

a qual, por sua vez, denota (representa) um objeto, evento ou qualidade. As leis que regem

a interpretação de um símbolo não dizem respeito à interpretação do objeto final que a

partir dele se interpreta; tais leis se voltam apenas à interpretação do próprio símbolo, mas

não das interpretações que o sucedem. Sua interpretação evoca à mente do intérprete

27 Na definição original se lê: “A symbol is a representamen which fulfills its function regardless of

any similarity or analogy with its object and equally regardless of any factual connection therewith ,

but solely and simply because it will be interpreted to be a representamen. Such for example is any

general word, sentence, or book” (Peirce, 1931-1958/1994; Volume 5, parágrafo 73).

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apenas a ideia geral à qual o símbolo se refere, e, só então, a interpretação deste tipo evoca

à mente a ideia do objeto mediatamente representado pelo símbolo (Peirce, 1931-

1958/1994, 2011). Este objeto, por fim denotado, difere do objeto da atividade

interpretante do próprio símbolo: o objeto do símbolo é diferente do objeto de seu

interpretante. O símbolo é um dispositivo semiótico, enquanto seu interpretante é uma

função deste dispositivo que tem o próprio símbolo como objeto. O objeto do

interpretante é um objeto especificamente concernente à experiência imediata de um

símbolo, enquanto o objeto do próprio símbolo é fruto da experiência imediata da

interpretação do tipo (em consequência da qual se manifesta como uma réplica);

adicionalmente, a percepção do objeto do símbolo é produto de uma experiência mediada,

o que o configura como seu objeto dinâmico (Peirce, 1931-1958/1994). A consequência

mais emblemática desta capacidade instrumental de mediação é a possibilidade de um

símbolo representar um objeto com o qual não necessariamente guarda qualquer relação

de semelhança (e que, portanto, não poderia atuar como réplica do próprio símbolo).

Um exemplo de interpretação simbólica é a simples leitura de uma palavra.

Tomemos o termo “homem”, que, como símbolo (um conjunto de letras ordenadas) não

tem qualquer semelhança com um ser humano, e nem mesmo com o som que derivaria

de sua leitura. A palavra não está existencialmente conectada por um index a qualquer

homem, o que não seria possível porque o significado imediato da palavra não existe

como objeto independente (uma coisa), sendo apenas uma réplica do símbolo. Sua

natureza se resume à de uma regra geral operacional que estabelece que aquele conjunto

ordenado de letras, vistas por um sujeito alfabetizado em português, afetará seu

comportamento e pensamentos de acordo com o que esteja estabelecido por aquelas

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regras; neste caso, o fará lê-las, e, a partir desse interpretativo, evocar a sua mente a ideia

do que compreenda como “homem” (Peirce, 1931-1958/1994).

É possível ter uma compreensão semelhante em relação à operação da interface

do Facebook (Johnson, 2001; Rojo & Moura, 2012). Ao se deparar com os elementos

visuais exibidos na tela do computador, seu operador se depara com um conjunto

ordenado de elementos que, como signos individuais, têm sua própria identidade como

objetos, mas que ao serem percebidos em determinadas conformações, são percebidos

como outro signo, em sua própria totalidade, e que simboliza um objeto ou ideia diferente

de seus elementos constituintes. É o caso do signo interface, simbolicamente constituído

a partir dos ordenamentos e comportamentos dos elementos que a constituem

simbolicamente, mas não sem que seu usuário saiba “ler” as regularidades compostas por

todos aqueles elementos. O próprio signo-interface, uma vez interpretado enquanto tal,

passa a ser símbolo das diversas funções operacionais para as quais é operada, informando

continuamente o usuário sobre o fluxo de operações realizadas (correspondente a seu

objeto) e levando-o a comportar-se de acordo com as contingências dos momentos

subsequentes deste fluxo (comportamento que corresponde à parte energética de sua

atividade interpretante). A interface total do Facebook, graficamente representada na

Figura 7, é instrumentalmente mais ampla do que esta representação, que, numa primeira

instância, simboliza as possibilidades oferecidas por sua totalidade (cada uma delas

representadas nas áreas e elementos apresentados nas imagens ao longo desse capítulo).

Em sua totalidade, a interface como signo, ou esquema semiótico, se estende, na

experiência imediata, não apenas pelo espaço e sensações, mas também pelo tempo, sob

a forma de possibilidades instrumentais iminentes oferecidas pelas instânc ias

imediatamente disponíveis do esquema (Figura 19).

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Figura 19. Na imagem, o surgimento de um pop-up de notificação

representa a emergência da possibilidade instrumental de acessar

a mensagem enviada por meio deste elemento. No momento

seguinte, uma segunda notificação surge abaixo da primeira, antes

que esta suma, apresentando uma segunda possibilidade

instrumental iminente, mas que, pela limitação temporal da

manifestação deste tipo de elemento, é concorrente com a que já

estava posta. Há, pois, duas possibilidades de futuro iminente

concorrendo entre si (ou três, se contarmos com a possibilidade de

que se prescinda de ambas), e que dependem da ação seguinte do

usuário para serem concretizadas ou não. Nessa configuração, a

totalidade da interface como signo operativo se estende,

virtualmente, àquelas possibilidades de futuro iminente.

Instrumentalmente, as instâncias simbólicas habilitam a mente e determinam

deliberadamente significados sobre signos que atuam como representações de outros

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signos (e não simplesmente como signos de qualidades, objetos ou tipos da experiênc ia

imediata, como as classes pré-simbólicas). As representações simbólicas, diferentemente

das não simbólicas, são percebidas alternativamente à experiência imediata, o que

possibilita ao sujeito re-mediar os significados dos tipos, objetos e qualidades que estejam

nelas incorporados, por meio da experiência mediata. Logo, os símbolos são

instrumentais na condução deliberada da atividade significante, atuando, portanto, como

ferramentas de mediação, em terceira pessoa, da experiência do próprio sujeito que as

opera. Ao operar símbolos que representam os elementos de seu mundo, e ao usá-los para

vivenciar experiências virtuais que ocorrem à parte da realidade empírica, o sujeito realiza

operações semióticas por meio de recursões; neste caso, recursões diretas.

Por meio da recursão, a mediação simbólica aprimora o controle da atenção. Esta

função psicológica superior pode ser descrita na terminologia da semiótica como a

percepção imediata dos efeitos da atividade interpretante, de modo que sua coordenação

voluntária implica a seleção dos efeitos aos quais o sujeito irá se submeter e,

consequentemente, reduz a determinação de contingências contextuais e RIs sobre a

determinação da atividade atencional. A realização de inferências é uma das operações

que depende fundamentalmente da capacidade de controlar a atenção por meio de

símbolos.

Por outro lado, as operações simbólicas não são necessariamente organizadas por

uma estrutura formal, de sintaxe objetivamente definida. De acordo com Bezerra (2009)

e Bezerra e Meira (2006), o pensamento interior assume a configuração da fala abreviada,

que aqui podemos entender como uma atividade de simbolização com termos gerais

(|8os|). Dentre as características desta modalidade de pensamento, destacam-se para os

fins deste trabalho: (a) a tendência à aglutinação de significados, condensados em um

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termo geral; (b) a intensificação da produção de sentidos, com significações polissêmicas,

mais compreensiva e sensível à atividade contextual, mas menos objetivas, mais vagas;

(c) a tendência de erradicação da sintaxe formal dos esquemas simbólicos utilizados em

atividades de comunicação e reflexão, simplificando a estrutura geral desses esquemas e

agilizando sua operação nas atividades para as quais é instrumentalizado (Bezerra, 2009).

No pensamento abreviado, a instrumentalidade lógica ainda é acessória, e se baseia

substancialmente nas contingências do contexto, com a atividade atencional sendo regida

em função deste e simbolicamente mediada apenas de forma acessória (Figura 20).

Figura 20. Síntese instrumental das 10 classes de signos: Significações intuitivas e

reflexas, involuntárias, compulsórias (|1o|, |2o|, |3o| e |4o|) Significações

parcialmente intuitivas, mas sujeitas à mediação volitiva direta (|5o|, |6o| e |7o|)

Mediação volitiva diretamente ligada à experiência intuitiva (|8o|) Mediação

volitiva que converte o signo intuído em signo declarado (|9o|) Mediação volit iva

que cria novos signos (e significados) a partir da abstração de outros símbolos (|10o|).

Apesar das bases epistemológicas dessas duas abordagens serem originalmente

diversas, a caracterização apresentada por Bezerra (2009 – elaborada a partir de

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Vygotsky, 2000, citado pelo autor) é ainda muito próxima da caracterização do

funcionamento do símbolo rhemático (|8o|), sendo mais apropriado em ambos os casos

falar em condução em vez de controle da atividade atencional.

A realização de inferências tem implicação direta na organização da

aprendizagem, pois os signos só podem ser memorizados em referência às configurações

específicas sob as quais foram experienciados pelo sujeito. A mediação rhemática do |8º|

promove a integração dos objetos “puros” da percepção imediata a uma camada

conceitual, ainda intuitiva, mas que já os torna aptos a serem efetivamente integrados e

operados abdutivamente, como parte de esquemas conceituais e, posteriormente, serem

operados por outras modalidades inferenciais (Peirce, 1931-1958/1994) como parte de

esquemas simbólicos mais elaborados, via |9os| (dicensignos) e |10os| (argumentos). Caso

o sujeito não elabore a caracterização de suas experiências majoritariamente intuitivas (as

quais se limitam à consideração ativa apenas do futuro imediato), se apropriará delas

apenas sob a forma de saberes vivenciais, comparativamente intuitivos; é apenas ao re-

mediar os significados e dar-lhes alguma conformação formal que os símbolos se tornam

propriamente conceituais e podem ser operacionalizados como parte de esquemas

complexos capazes de incorporar hipóteses precisas sobre o desenrolar de uma sequência

de fatos em um futuro remoto, conjectural, que está para além do contexto imediato do

sujeito (um futuro referente ao futuro do contexto então corrente). Logo, as conformações

sob as quais os elementos simbólicos são operados é determinante na conformação dos

sistemas individuais de conhecimento e em sua mobilização por meio de atos semióticos

atencionais, mnemônicos, e reflexivos.

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2.7.4. As implicações das classes de signos e suas propriedades semióticas na realização

de inferências abdutivas

Mas se os conhecimentos habituais (|5os|, |6os| e |7os|) apresentados acima

fundamentam a significação de hábitos, é só com os símbolos que estes podem realmente

constituir crenças. Um dos comentários em que Peirce apresentou uma definição do que

sejam crenças foi o seguinte: “[a prontidão para] agir de certo modo, sob dadas

circunstâncias, e quando operado por um dado motivo caracteriza um hábito; e um hábito

deliberado, autocontrolado, é precisamente uma crença” (Peirce, 1931-1958/199428). O

“motivo” mencionado na definição é o signo que opera a condução do hábito. “Operar”,

neste caso, se traduz no fato de que as recursões que determinam o fluxo contínuo de

significações são fruto de tendências mediativas já incorporadas nos signos de classes não

simbólicas, do |1o| ao |7o| (ou seja, mediações pré-programadas na memória). Em outras

palavras, mediações operadas por recursões indiretas, experienciadas por meio da

percepção fenomenológica de si, em primeira pessoa, carregada de instâncias imediatas.

Já as crenças são experiências fundamentadas em atividade de alta ordem e que

constituem, em si mesmas, atos de mediação. Neste sentido, é possível compreender, a

partir das reflexões de Peirce, que as crenças são partes intrínsecas dos conhecimentos

operacionalizados na ação, na medida em que cada símbolo incorpora signos de classes a

ele inferiores, e, consequentemente, também o fazem com parte de seus significados e de

suas propriedades instrumentais.

28 Eis a definição originalmente consultada: “[Readiness] to act in a certain way under given

circumstances and when actuated by a given motive is a habit; and a deliberate, or self-controlled ,

habit is precisely a belief” (Peirce, 1931-1958/1994; Volume 5, parágrafo 480). Recuperado de

http://www.hels inki.fi/science/commens/dict ionary.html

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Os conhecimentos sistematizados nas memórias de cada indivíduo assumem,

portanto, conformações que os tornam pré-dispostos a encarar e experienciar o mundo

sob as formas e significados que lhe são habituais. Pode-se daí deduzir que tais hábitos

mediadores de hábitos também se manifestam nas atividades inferenciais, de modo que

são privilegiadas as práticas que instrumentalizam significações voltadas para o futuro

imediato, como também a prontificação de ações realizadas com base em significações

intuitivas.

Nas significações legítimas da primeira à sétima classe, prioriza-se o uso da lógica

abdutiva, mais sujeita à realização de recursões indiretas; à extração de significados a

partir do que se crê ser o real (Peirce, 2011; Rosa, 2007b). Adicionalmente, o saber tende

a tornar-se mais vivencial do que declarativo, favorecendo o fluxo das atividades prática

e internacionalmente orientadas sobre a concentração característica das atividades

reflexivas (Rosa, 2007a, 2007b). Este parece ser o caso das atividades de operação de

interfaces digitais (Fundação Telefônica, 2013; Comit~e gestor da Internet no Brasil,

2011, 2013), e talvez seja também a condição que predispõe certa divergência de valores

entre usuários e não usuários de DCs (Johnson, 2001; Lévy, 1997), ou até mesmo entre

gerações diretamente subsequentes em um contexto cultural de modernidade tardia, com

rápido desenvolvimento tecnológico e a banalização de artefatos que se comportam

(Castells, 1999; Lévy, 1997, 2000, 2011a, 2011b).

É possível compreender, então, que ao favorecer certos vieses de significação da

experiência, as crenças acabam, consequentemente, alienando ao sujeito outras

possibilidades compreensivas na medida em que o exercício dos hábitos sejam

reforçadores dos significados já estabelecidos (Peirce, 2011; Rosa, 2007a, 2007b;

Valsiner, 2012). A lógica abdutiva, que opera fundamentalmente por meio de conceitos

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abreviados ou não verbais, densamente polissêmicos, torna o fluxo da atividade semiótica

mais sujeito a interpretações acidentais, promovidas por mediações provenientes da

interação, dos condicionantes contextuais e de outras formas de RI (Bezerra & Meira,

2006; Peres, 2007; Oliveira, 2011; Valsiner, 2007).

Na Figura 21 há exemplos de interpretações possíveis do signo evolução. Em cada

imagem, as conotações de evolução seriam significadas por: (a) analogia pelo contraste

antigo-novo; (b) representação do fenômeno homônimo na franquia Pokémon; (c)

analogia entre progressão e superioridade da mulher em relação aos homens; (d)

progressiva simpatia a práticas homossexuais (nas placas lê-se, da esquerda para a direita

“isso é ilegal”; “Deus te odeia”; “Deus te odeia, mas Will and Gracel [programa de TV]

é divertido”; “que tal uma união civil?”; “Parabéns, Sr. e Sr. Smith”); (e) um problema,

implicado na advertência do homo-sapiens; (f) outro problema, implicado na

“progressão” de uma noção pessimista de homem à espécie de porco. Repare que o

significado específico do que seja evolução reforça os sentidos implicados nos outros

signos, com a produção de um esquema autocatalítico pela operação de tendências

abdutivas na condução do fluxo semiótico de interpretação. O significado do signo ass im

circunscrito poderá ser re-mediado pela intervenção acidental ou simbólica. (d) Por

exemplo, pode significar simpatia ou antipatia à causa homossexual ou à evolução, na

medida em que uma das duas tenha valência negativa (“gayzistas evolucionistas” (SIC)

ou positiva (progressismo científico e de valores).

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Figura 21. Representações de um mesmo signo (Evolução), mas significadas a partir

de coisas (|1o|–|4o|), contextos interpretativos (|5o|–|7o|) e esquemas simbólicos (|8o|–

|10o|) diversos. Em cada imagem, a ideia geral de evolução é conotada pelo que os

objetos e os contextos em que aparentam estar imersos, denotam.

Na Figura 22, contextualizo o signo “evolução” em esquema já utilizado na Figura

4. Os elementos envolvidos são: o signo contextualizador de novas demandas

interpretativas (A); o signo “evolução” abstraído; (B), equivalente a significados como

“progressão”, “mudança”, “melhora”, etc.; as propriedades instrumentais do signo

“evolução” em suas configurações interpretativas habituais, como é compreendido pelo

intérprete (C). – (b) Contingenciado por demandas emergidas do contexto corrente (T-A

T-AC), o signo (C) é abduzido, na mente do intérprete, e, então, abstraído (t-CA t-

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CAB) a fim de adequar-se (B) à compreensão demandada (t-CAB tAB). Emergem

desse processo um novo contexto interpretativo e as significações nele incorporadas e

dele emergidas (AB): “evolução tecnológica”, “evolução social”, “ruina da espécie”, etc.

Essas, por sua vez podem (atuando como B em uma nova ação) vir a mobilizar outras

concepções de evolução (então modificadas) ou novos tipos de “C”, a depender da

contextualização em voga ou de sua re-mediação deliberada. C conserva-se ao fim do

processo, ainda que sofra algum tipo de rearranjo dentro dos sistemas que o incorporam

enquanto signo. Este processo equivale à interação entre dois sistemas contextua is

(semióticos) adjacentes na condução do fluxo semiótico (alternando-se), que agem

complementarmente: |A+B+C| e |A–B+C.|, formados, respectivamente, das demandas

interpretativas em conjunto com as compreensões correntes de evolução, e da atividade

interpretativa em conjunto com as novas compreensões (que podem ser aparentemente

idênticas às anteriores). A atividade instrumental contextualizadora do fluxo de

interpretações (No esquema, “Atividade”) equivale à compreensão das analogias entre o

funcionamento dos conceitos abstratos apresentados na dissertação e as operações

interpretativas oferecidas como ilustração.

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Figura 22. Processo recursivo na ressignificação do signo

“evolução” – A+B+C A–B+C + ação produzida (interpretação )

+ Rm (novos sentidos de evolução). – Em (a), a sequência catalít ica

que produz as transições entre os atos de significação que conduzem

à nova compreensão do conceito. – Em (b), interação sistêmica entre

os estratos ou conformações contextuais |A+B+C| e |A–B+C.|. Rm

ressitua a instrumentalidade de C, ainda que não altere

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significativamente suas propriedades como signo. Adaptada de

Valsiner, 2012).

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3. Objetivos e método

O objetivo geral desta pesquisa é investigar por quais meios são mobilizadas e

instrumentalizadas as propriedades semióticas expressas na microgênese de ações

realizadas na operação de interfaces digitais, por um usuário habitual deste tipo de

instrumento.

São objetivos específicos:

(1) Identificar a microgênese de fluxos de ações (atividades) característicos de

práticas com o uso habitual de interfaces digitais;

(2) Analisar a interação sujeito-interface, a fim de identificar as dinâmicas de

percepção e operação dos elementos semióticos disponíveis no contexto de

sua operação;

(3) Identificar, a partir do comportamento manifesto, as propriedades

instrumentais agenciadas na operação de elementos da interface (signos) e

analisar a microgênese de sua emergência no fluxo de ações.

(4) Identificar, a partir do comportamento manifesto, as propriedades semióticas

aparentes dos objetos (signos), com base nos procedimentos realizados em sua

operação.

3.1. Método

A fim de atingir os objetivos propostos nesta pesquisa, de caráter qualitativo e

idiográfico, foram realizadas três etapas de produção e análise de dados:

1. aplicação de questionário on-line (Anexo 4);

2. entrevista individual com roteiro semiestruturado (Anexos 5 e 6);

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3. análise videográfica de uma sessão de operação de interfaces em um

computador.

Cumpre relatar que, quanto aos cuidados éticos, os participantes foram

comunicados sobre sua liberdade de escolha em participar da pesquisa e foi garantido seu

anonimato. Os contatos estabelecidos com eles seguiram protocolos conforme projeto

aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPE, ou CEP-UFPE (Anexos 1-3).

A parte empírica da pesquisa foi realizada em três etapas:

(1) Na primeira etapa (questionário on-line), participaram 42 estudantes de Ensino

Médio de uma escola técnica estadual localizada em Recife-PE, e com educação em

tempo integral. A escolha dessa escola se deu por ser ela o locus de execução de projeto

do Governo do Estado em parceria com organizações privadas e filantrópicas, que oferece

ensino técnico de Programação de Jogos Digitais, assinalando a esse contexto um caráter

diferenciado em termos de uma cultura da interface. O contato com os alunos foi feito na

própria escola, ocasião em que foram convidados para participar da pesquisa, tendo cada

um deles recebido duas cópias do TCLE (Anexo 3), de acordo com as orientação do CEP-

UFPE. A divulgação on-line com da pesquisa, com o link do site em que o questionár io

on-line esteve disponível, foi feita pela própria escola, que conta com uma via de

comunicação direta com seus alunos via facebook. O instrumento, com perguntas abertas

e fechadas, tratava dos hábitos de uso pessoal de dispositivos computacionais, e também

acerca de quais dispositivos costumavam ser usados pelos participantes, bem como sobre

quais atividades costumavam ser realizadas a partir de suas funcionalidades. Havia ainda

questões voltadas à medição da valoração dada pelo estudante àqueles dispositivos e a

seu uso. O instrumento foi utilizado para o levantamento do perfil individual de cada

respondente como usuário de DCs, a fim de subsidiar a estruturação das etapas seguintes

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da pesquisa com informações básicas sobre os hábitos de uso. Os dados foram avaliados

em tabelas automaticamente tabuladas pelo serviço de survey contratado

(surveymonkey.com.br), tendo levado ao levantamento dos perfis dos participantes.

(2) Todos participantes que, nos questionários, dispuseram-se a participar da etapa

posterior (11, no total) foram convidados individualmente, e 3 deles foram entrevistados

em datas e locais por eles escolhidos. Nas entrevistas, buscou-se identificar a regularidade

com que realizavam práticas fundamentadas nas funcionalidades de dispositivos

computacionais. As entrevistas foram gravadas em áudio para fins de registro. Esta etapa

teve como fim a seleção do participante para a seguinte (sessão videografada), levando

em consideração a sua disponibilidade e a acessibilidade empírica das práticas para a

observação das práticas relatadas.

(3) Por fim, a terceira etapa do estudo empírico constituiu-se do registro e análise

de um episódio único. O participante (nesta dissertação, chamado de Henrique, um nome

fictício) foi videografado enquanto realizava as atividades de sua preferência em um

computador de mesa (desktop) com acesso à internet, em um escritório onde foi deixado

sozinho. Três fontes de imagem foram utilizadas: uma câmera de vídeo digita l,

posicionada à sua esquerda, sobre um tripé, em uma posição que possibilitou o registro

simultâneo de sua expressão e da imagem na tela do computador; uma webcam

posicionada sobre o monitor do computador, para um registro mais detalhado de sua

expressão; um software de captura de tela (Camtasia Studio, versão 8), para a

videogravação do que fosse apresentado na tela do monitor ao longo da operação. O áudio

da sessão também foi registrado separadamente, com um gravador de áudio digital, por

segurança e como fonte suplementar de dados. Uma segunda câmera de vídeo esteve à

disposição na sala, como equipamento de reserva, mas permaneceu desligada durante

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toda a sessão. Todos os equipamentos operantes e recursos disponíveis no setting foram

explicitamente apresentados a Henrique, para que ele estivesse ciente das condições em

que atuaria. A análise se debruçou sobre a realização das ações registradas, tendo como

foco a emergência microgenética de padrões que circunscrevessem diferentes atividades

a partir de suas propriedades instrumentais, bem como as transições que caracterizavam

tais padrões e as atividades que configuravam.

Quaisquer dados não utilizados nesta dissertação serão mantidos em banco de

dados, podendo ser reciclados em pesquisas além da que aqui é apresentada.

Com auxílio do software de análise qualitativa Nvivo (Anexo 7), a análise dos

dados videografados foi fundamentada no ciclo metodológico (descrito no capítulo

anterior, ilustrado na Figura 3). Os trechos do vídeo foram codificados em referência às

categorias emergidas ao longo do processo de análise, e cada categoria representou um

aspecto relevante do fenômeno em relação às diversas manifestações empíricas dos

padrões de processos semióticos circunscritos durante a investigação.

A tipologia utilizada para a sistematização dos dados e organização da análise

adveio da Semiótica peirceana, sendo a lógica triádica do signo e a sua classificação, de

acordo com suas propriedades semióticas, as referências centrais nessa teoria. As classes

simbólicas (|8o|, |9o| e |10o|) foram as inicialmente utilizadas como parâmetros de análise,

uma vez que são nelas que os signos de classes inferiores se incorporam, e por meio deles

que são interpretados; sendo, pois, a partir delas que as etapas analíticas de decomposição

abstrata do signo podem ser realizadas com maior coesão (de acordo com a proposta

subjacente ao ciclo metodológico de ter como referência os dados menos ambíguos e mais

bem estruturados e fundamentados). Leve-se em consideração que as interpretações

abaixo mencionadas se referem à função interpretante no fluxo recursivo da semiose

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(correspondente, no signo triádico, à função do terceiro correlato) – e deve, portanto, ser

compreendido como aquilo que é expressado ou representado, verbal ou

proceduralmente/energeticamente. Relevando as observações anteriores, e tomando essas

classes como ponto de partida, na análise levou-se em consideração que:

(1) nos fenômenos psíquicos superiores, as interpretações expressivas de Rhemas

são identificadas nas frases (ou ações) formadas de um único termo (ou ato

gestual) que exprime a qualidade (ou sentimento) de uma ideia intuída, mas

não extensivamente interpretada. O Rhema atuaria como um esquema de

extensão conceitual mínima, e as significações rhemáticas são o fundamento

semiótico funcional de modalidades intuitivas de volição instrumental, em que

as ações ocorrem no limiar da automatização e a temporalidade é

fundamentalmente sequencial;

(2) nos fenômenos psíquicos superiores, as interpretações expressivas de

Dicensignos são identificadas nas frases (ou sequências gestuais) deliberadas,

mas se restringiriam à função de esquemas conceituais contextualizados às

significações dirigidas ao presente experiencial. O Dicensisigno representa

descritivamente uma ocorrência, uma cena ou caso percebido, significando

contextualizações pragmáticas; dentre elas, as que remetem a contextos

instrumentais. O Dicensigno é uma instância semiótica de transição entre a

intuição e a declaração volitivas, conferindo substância espaço-temporal (ou

perceptual) às significações iminentes de relevância, antes que estas sejam

envolvidas por um manto conceitual;

(3) nos fenômenos psíquicos superiores, as interpretações expressivas dos

Argumentos são identificadas nas sequências gestuais ou verbais que

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correspondem a interpretações de esquemas simbólicos (ou textuais) que já

sejam percebidos como algum tipo de elaboração recursivamente complexa,

cuja extensão perceptual (mas não necessariamente sensorial) significada

ultrapasse os horizontes temporais, espaciais ou conceituais do presente

experiencial. O Argumento concatena, em um mesmo fluxo recursivo,

instâncias puramente conceituais de signos, subsumindo-os a esquemas

simbólicos que lhes confere propriedades semióticas comuns, significando -os

sob um mesmo tipo ou, em outras palavras, tornando-os elementos de uma

mesma instância da realidade. Ao serem envolvidos por esse manto conceitua l,

os signos se tornam esmaecidos de sua natureza material, assumindo feições

virtuais ou até puramente abstratas. Sua instrumentalidade é impositivamente

simbólica, regendo padrões, esquemas e correlações racionais que competem

com interpretantes de outras classes (iminentemente representados nas

réplicas que o Argumento incorpora), de acordo com os efeitos determinados

pela deliberação volitiva sobre a configuração recursiva das semioses em

curso. O Argumento é, pois, o signo que sustenta a experiência mediata,

constituindo teleologicamente a ecologia simbólica (ou semiosfera) em que o

sujeito se faz perceber imerso. É o signo das Recursões diretas, e o tipo de

recurso instrumental necessário para a primazia da volição, sobre os

condicionamentos, na orientação das ações e da experiência espacial-

temporal-conceitual extensa.

A identificação dos usos dessas propriedades instrumentais ao longo da sessão,

regulado pelo esquema de orientação analítica do ciclo metodológico, produziria um

corpus conceitual que, não sendo resumido ao status de dados finais, atuaria também

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como referencial para novas interações na exploração dos dados. Desse modo, o

progressivo desenvolvimento das referências de análise levaria a compreensões

sequenciais, a partir das quais as propriedades semióticas das classes inferiores poderiam

ser inferidas a partir das propriedades das classes superiores, por meio de suas aparentes

expressões, mas respeitando-se os limites conceituais estabelecidos pelo corpus de

referência.

O rigor epistemológico do processo seria reforçado por ser verificado em dois

eixos: horizontalmente, com a avaliação da coerência entre as instâncias de saber

relevadas na investigação (os axiomas subjacentes à ontologia adotada; as teorias que a

fundamentam; o fenômeno investigado, sob as diversas perspectivas que venha a ser

contemplado; a subjetividade e intuição do pesquisador; e os arranjos metodológicos

adotados e em evolução); e verticalmente, com a manutenção da coerência entre os

diferentes níveis ou aspectos componentes de cada uma daquelas instâncias (na

metodológica, por exemplo, equivaleria à coerência entre o modelo, os dados, as

ocorrências empíricas, e sua produtividade em potencial – que deve ser mantida em

patamares aceitáveis). É possível estabelecer correspondências entre os estratos verticais

no âmbito de cada dimensão, horizontalmente, entre estas, ou transversalmente, entre

estratos variados de dimensões distintas, nunca devendo o rigor da coerência exigida ser

prescindido por aparentes (ou desejadas) correspondências, na medida em que o erro

métrico daí decorrente seria reproduzido nas iterações analíticas seguintes.

A despeito de não ser um procedimento de evolução linear ou progressão regular,

a evolução do corpus promovida por esse processo equivaleria à elaboração de um

modelo teórico que, submetido a critérios formais de rigor crescente, evidencia r ia

determinadas ocorrências como potenciais representantes das tendências e padrões

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semióticos que caracterizariam os tipos de ações e atividades realizadas na sessão. Um

modelo idiográfico, cujo potencial de generalização residiria na fidedignidade aos

sistemas semióticos que representaria, e, adicionalmente, nas possibilidades de ocorrência

factual de outros fenômenos que incorporem a mesma sistemática.

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4. Resultados e discussão do episódio analisado

Organizo os resultados deste trabalho em seções para uma melhor circunscr ição

do escopo do que cada uma delas trata.

Inicio pelo relato da recepção de Henrique (o voluntário desta pesquisa; nome

fictício) e de nossa interação antes que este fosse deixado sozinho na sala. É neste

momento em que ocorre a negociação da proposta da atividade que viria a ser realizada

na ocasião seguinte. Nessas descrições foram omitidos detalhes sobre os conteúdos das

conversas que não se voltaram explicitamente para este esforço de negociação.

Segue uma seção em que faço considerações sobre a condução da sessão naquele

primeiro momento, levando em conta ajustes metodológicos que foram demandados no

processo de negociação.

Na seção seguinte, apresento os eventos ocorridos na sessão de operação da

interface, o que faço por meio de dados simplesmente descritivos. Ao longo das

descrições, algumas imagens são apresentadas como exemplos de aspectos visuais dos

eventos em questão. Tratam-se de reconstituições da interface retratada, que enfatizam

os elementos virtuais utilizados em cada momento. Não são usadas imagens da interface

enquanto fora operada por Henrique, para que sua identidade seja preservada.

Nas descrições textuais, os episódios selecionados como ilustrações da análise

ganharam ênfase descritiva nos seus atributos correspondentes a aspectos teóricos

explorados na seção seguinte, de análise e discussão. Assim, enquanto algumas ações são

descritas em minúcias, outros momentos do trecho total analisado são mencionados de

forma mais superficial, apenas para que o leitor adquira uma noção geral do que ocorreu

na sessão até o seu fim.

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Na seção subsequente, de análise e discussão, alguns dos eventos apresentados na

seção que a antecede são considerados à luz do referencial teórico apresentado nos

capítulos anteriores. O uso de reconstituições visuais também é explorado nesta seção.

4.1. Recepção

Recebi Henrique por volta das 15:20h, no espaço do Programa de Psicologia

Cognitiva da UFPE. Há cerca de uma hora eu já me comunicava com ele via telefone e

SMS, para explicar como chegar ao local da sessão. Acompanhei-o, então, à sala

organizada como laboratório e logo pedi sua permissão para ligar a câmera de vídeo

disposta no canto da sala (já mesmo tendo ele sido alertado de que a sessão seria

videogravada), o que fiz imediatamente após sua concessão. Ao ligá-la, convidei-o a

sentar na cadeira diante do computador (do tipo móvel, com rodas). Comentei, então, que

a sala fora provisoriamente arrumada para a realização da pesquisa, pois havia um

problema de energia com o laboratório; logo em seguida, sente-me na cadeira na quina

da mesa visível à câmera.

Comentei que o computador usado era melhor do que o padrão usado na

universidade, pedindo, em seguida, a sua permissão para gravar também as imagens que

seriam exibidas na tela ao longo do uso, bem como a sua face, por meio de uma webcam.

Após sua concessão, comentei que, antes de especificar o que pediria para ele

realizar usando o PC, gostaria de saber o que ele andava fazendo, normalmente, em seu

contexto habitual de vida, para ajustar aquela situação de laboratório a um contexto

maximamente próximo do natural. Sua primeira afirmação foi a de que estava procurando

emprego; como não havia conseguido vaga para a UFPE e havia ficado na lista de espera

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da UFRPE (em posição favorável), não tinha certeza do que faria nos próximos meses,

de modo que, na incerteza, preferiu prevenir que ficar sem uma atividade.

Perguntei, então, o que ele achava de retomar suas atividades de busca de trabalho,

e também como ele estava buscando emprego, se na internet ou em outros lugares. Sua

resposta veio direto à segunda pergunta. Ele respondeu que, além da indicação de amigos,

buscava mais na internet, por haver uma página no Facebook (especializada em anúncios

de emprego) que sempre era atualizada. Também comentou que até chegara a ser

chamado, mas que houve problema com a documentação.

Em seguida, voltei a propor a retomada da busca por trabalho como atividade a

realizar, mas inquirindo na mesma frase se ele tinha alguma proposta que achasse mais

interessante. Sua resposta foi que não estava usando muito o PC nas últimas semanas por

causa do estresse da busca por emprego.

Perguntei a que ele achava que se devia tal afastamento, tendo ele respondido que

se devia mais a estresse. Relatou a dificuldade em achar trabalho por não ter experiênc ia

e por buscar algo que fosse conciliável com o horário de aula da UFRPE, acrescentando

que, a despeito de só realizar tais buscas no PC, vinha sofrendo pressão da família ao ficar

em casa, que sua mãe vinha comentando precisar de dinheiro, que pretendia sair do

emprego, e outras coisas que acentuavam sua insegurança (sendo a relação com sua mãe

um dos principais fatores de estresse naquele momento). Portanto, estava entrando na

internet muito rapidamente.

No início do oitavo minuto de gravação, procurando retomar o delineamento de

uma proposta como tópico da conversa perguntei: “o que é que você me diz, então? ”. Ele

respondeu que se fosse no dia de nosso encontro anterior (quando o entrevistei, cerca de

um mês antes) ele saberia, mas naquele momento realmente não. Propôs-se, então, a

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“fazer o que fazia antes, como se estivesse fazendo agora”. Em vez de insistir no tópico

da proposta, mudei de foco ao pegar o gravador de voz sobre a mesa e mostrar- lhe,

informando que o ligaria, por segurança. A isso ele replicou com um comentário sobre

como uma das câmeras o evocava a um seriado que assistia.

Por volta do nono minuto de gravação, reposiciono minha cadeira para um ângulo

menos cômodo à interação face a face, mas que me dava mais acesso ao mouse e melhor

visão da tela do monitor. Perguntei, então, como estavam as pesquisas que ele relatara

realizar em nosso encontro anterior. Ele falou que estavam paradas, reiterando que nas

últimas vezes que sentara ao PC e não passara mais de meia hora, por não querer se expor

ao clima de estresse em sua casa (já que a máquina ficava em um cômodo aberto); que

estava preferindo não estar em casa, e que sequer sentia falta desta prática (que relatara

como umas das que mais fazia), pois quando está estressado não sente falta de nada.

Em sequência (após a metade do décimo minuto), disse: “ontem eu até dei uma

pesquisadinha, assim; porque no Facebook agora tem... Tu vai ver, agora! Tem internet

aí?”. Respondi que sim; que ele poderia entrar; mas antes que qualquer coisa ocorresse

eu pedi para ligar a captura de tela e face, empunhando o mouse e ativando o software.

Nos 20 segundos seguintes, o software sinalizou estar carregando, e neste meio tempo

comentei mais algumas informações sobre o PC, e acabamos dirigindo a conversa para

aspectos técnicos de computação pelos três minutos seguintes.

Por volta do 13o minuto de gravação, após falar de sua experiência com hardware,

passei a constatar que Henrique não começaria a fazer uso espontâneo do computador na

minha presença, a menos que fosse solicitado. Uma vez que meu interesse recaía sobre o

uso espontâneo, decidi que seria adequado me ausentar da sala, fechando o canal de

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interação direta comigo ao mesmo tempo em que o deixaria livre para fazer uso da

máquina da forma que achasse adequado.

Ao longo dos cerca de oito segundos durante o qual esta reflexão (na ocasião, mais

uma intuição abreviada que um raciocínio elaborado) ocorreu, fez-se silêncio e ambos

olhamos para o monitor; fiz um comentário em voz baixa, para mim mesmo, após o qual

retomei a conversa. Perguntei: “antes dessa época de estresse, sua, o que era que você

estava costumado a fazer para passar o tempo, mesmo; no computador?”. Henrique

respondeu: “após a nossa entrevista, eu comecei a assistir coisas. Animes [animações

japonesas] que eu gosto e filmes”. Disse que os baixava no computador, mas assistia -os

na televisão. Acrescentou que em sua casa havia TV a cabo, na qual “estava passando o

tempo assistindo jornal; e filmes que passam, né? Porque de vez em quando o jornal fica

repetitivo, repetitivo! Passa notícia de ontem...”. Notícias que já assistira, e cuja repetição

é estressante.

Após sua fala, comentei, num tom retórico, que já estava daquele jeito havia um

bom tempo e que por isso parara eu de assistir televisão. Terminei a fala olhando para o

monitor; após concluir minha fala, ele tirou os olhos de mim e fez a mesma coisa. Seguiu-

se um breve instante de silêncio, equivalente a uma quebra na interação.

Após este instante, de cerca de três segundos, retomei a interlocução. Disse

“então” numa voz bem baixa (para dentro) e ainda olhando para o monitor. Prossegui

num tom mais alto, olhando para ele após iniciar a fala, e anunciando que minha presença

era um fator de inibição e que eu deixaria a sala. Segue a transcrição do áudio a partir do

14o minuto de videogravação (um minuto e quinze segundos antes que eu me retirasse da

sala):

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Pesquisador: então, pode... Na verdade, eu aqui sou um fator de inibição! Então,

se você quiser, eu vou sair, vou passar uns vinte minutos ali fora para você fazer

o que você faria em qualquer momento da sua vida; inclusive no sentido de sair

do estresse nesse momento e aproveitar algum momento de computador,

internet... longe de casa, assim. Isso é mais um contexto de LAN house,

propriamente, do que um contexto natural.

Henrique: aham [acena positivamente com a cabeça].

Pesquisador: aí, deixar... Posso sair e deixar você aí? Tudo bem? Você vai se

sentir...

Henrique: pode ser! [responde no meio da minha fala, imediatamente depois de

afastar sua cadeira para frente, para aproximar-se da mesa e engajar-se com a

interface material do computador].

Pesquisador: ...abandonado não? [concluo a pergunta enquanto ele se aproxima

da mesa].

Henrique: [responde com uma risada breve – ainda enquanto avança para frente]

Pesquisador: [emendo após um segundo – já me levantando enquanto começo a

falar] É um procedimento mesmo para iniciar! Porque... Se eu ficar aqui é um

fator de inibição muito forte!

Henrique: [após passar a última fala olhando para mim, sentado, responde com

mais uma risada breve e já vira para o monitor, empunhando o mouse].

Pesquisador: [pegando o gravador de voz sobre a mesa] Então, vou ali, daqui a

um tempo eu volto... Pode ficar à vontade! Pode explorar! Vou deixar isso aqui

gravando! [falo enquanto volto a largar o gravador sobre a mesa. Henrique volta

a olhar para mim, após abrir um navegador]. Se quiser água, pode ficar à vontade!

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[digo, já me afastando da mesa e me voltando em direção à porta]. Se quiser

circular por aqui, pode ficar à vontade também! Se sinta preso, não!

Henrique: certo! [ele diz sorrindo e volta, imediatamente, a virar-se para o

monitor, reempunhando o mouse. Enquanto ele inicia sua sessão de navegação,

retiro-me da sala, fechando a porta atrás de mim à aproximadamente 15 minutos

e 15 segundos após o início da videogravação].

Antes de passar para a seção seguinte, esclareço que vários detalhes das conversas

acima descritas foram omitidos, pois não tiveram relação explícita com o processo de

negociação em si. Tais omissões se deram em oposição à exposição de temas e conteúdos

tangenciais, referentes a outros eventos da vida do voluntário, bem como de opiniões

concernentes a tais eventos, e que não tiveram relevância para fins da análise apresentada

nesta dissertação. Nas conversas omitidas, falamos dos meios atuais e da dificuldade de

acesso à universidade, de tensões familiares enquanto algo corriqueiro, das transições

comuns a determinadas fases de vida, dentre outros tópicos mais ligeiros e esses

associados.

4.2. A sessão de navegação enquanto esteve desacompanhado

Imediatamente após concordar em ser deixado só na sala para que usasse à vontade

o computador, Henrique já afastou a sua cadeira para frente, aproximando-se do

computador e adotando uma distância adequada para operar o mouse e o teclado (Figura

23). Enquanto ele o fazia me levantei, reiterando a pertinência de minha saída, que

acabara de informar (ver últimos parágrafos da seção 4.1).

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Figura 23. Começando a sair (A, B, C, D). À medida

que inicio minha retirada, ele se posiciona para

operação do PC.

Ao levantar, chequei o funcionamento do gravador de voz. Ao mesmo tempo,

Henrique orientava sua postura (direcionando o rosto e o corpo) no sentido do monitor

(e, portanto, desengajando sua postura em relação à interação comigo), e, na sequência,

abria o Firefox (FF) (mozilla, s.d.), um dos navegadores disponíveis na barra de tarefas

(Figura 23a). A página apresentada com a abertura da janela foi a interface de busca do

google, na versão personalizada para este navegador, que vem pré-estabelecida como

página inicial padrão (Figura 24). Também é padrão que apenas uma aba seja aberta na

interface do FF quando este é iniciado.

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Figura 24. Interface padrão do FF.

Ao longo dos dez segundos transcorridos a partir do momento em que reposicione i

o gravador sobre a mesa, voltei a comentar que deixaria aquele aparelho ali (onde o estava

largando), emendando que, se quisesse água, poderia pegar na jarra a seu lado, e

complementei dizendo que se quisesse circular pelo espaço, poderia ficar à vontade; que

não se sentisse preso (Figura 25b). Enquanto o dizia, me encaminhava à porta, e, ao voltar

a falar, ele virou seu rosto para mim e foi acompanhando o meu movimento, até que

encerrei minha fala e ele voltou a olhar para a tela do monitor (Figura 25c).

(De navegação)

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Figura 25. Saída do pesquisador da sala (A, B, C, D).

Nos cinco segundos seguintes, enquanto eu abria a porta, saía da sala e voltava a

fechá-la, Henrique empunhou o mouse, selecionou a barra de navegação (Figura 25c),

voltou a largar o mouse e digitou o endereço eletrônico do Facebook, usando as duas

mãos (da mesma forma como voltaria a fazer em todas as vezes em que digitasse algum

texto); e apertou o botão enter do teclado numérico com a mão direita e voltou a empunhar

o mouse (Figura 25d).

A interface de login do Facebook apareceu rapidamente (cerca de quatro segundos

depois do enter), e ele imediatamente selecionou (clicando com o mouse) o campo de

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entrada do e-mail do usuário29, digitando, em seguida, esta informação (Figura 26).

Passou para o campo seguinte (de entrada da senha do usuário) pressionando a tecla tab30

e digitou sua senha. Apertou o enter do teclado numérico e voltou a empunhar o mouse.

Figura 26. A interface da página de login no Facebook; com os campos em

branco e preenchidos (no detalhe).

Imediatamente após pressionar o enter, o pop-up do gerenciador de senhas do FF

surgiu na tela, oferecendo a memorização do login e da senha utilizados. Após dois

29 No Facebook , o endereço de e-mail cadastrado corresponde, também, ao nome de usuário; este é o código

usado pelo usuário para se identificar ao sistema e ter acesso a sua conta (ou para a realização de login).

Para mais informações sobre estes termos e procedimentos, ver http://en.wikipedia.org/wiki/User_name

30 No Windows, há algumas convenções no que concerne ao uso de teclas (e suas combinações) como

atalhos para a realização de funções especiais, mas comuns, nas interfaces do sistema. A tecla tab, por

exemplo, possibilita avançar o cursor de escrita ou a seleção de objetos para o campo/objeto seguinte (sendo

a ordem específica de cada interface). Shift+tab tem função parecida, mas em vez de avançar, esta

combinação faz o cursor retroceder; alt+F4 fecha o programa, enquanto ctrl+F4 fecha apenas uma

instância daquele. Estas convenções estão ligadas ao que Johnson (2001) chama de “cultura da interface”.

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segundos, Henrique clicou sobre o menu do gerenciador e, ao fim do terceiro segundo,

clicou sobre a opção “nunca memorizar senhas deste site” (Figura 27), tendo o pop-up

desaparecido imediatamente na sequência.

Figura 27. Pop-up de aba de memorização de senha; no detalhe, subaba com opções

alternativas à memorização.

A interface inicial do Facebook (o feed de notícias do usuário) terminou de ser

carregada em oito segundos desde o enter. A configuração visual encontrada foi comum

para esta rede social: uma combinação de textos e imagens distribuídos nos vários campos

da interface gráfica (Figura 28). Tal configuração correspondia, além dos elementos

habituais da interface desta rede social, a uma imagem acompanhada de algumas linhas

de texto no primeiro post exibido, logo abaixo do qual se encontrava um segundo post,

cujo conteúdo era uma figura que estava parcialmente oculta e sobre a qual havia uma

breve linha de descrição; apenas cerca de três ou quatro centímetros de sua parte superior

estavam sendo exibidos, e o resto de sua extensão jazia “abaixo”31 do limite inferior da

tela do monitor, em uma dimensão virtual não visível.

31 Ponho o “encoberta” e o “abaixo” entre aspas porque, na forma pela qual são dispostos na interface, estes

objetos acabam mobilizando as funções indexicais que se manifestam intuitivamente em nossa percepção,

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Figura 28. O feed de notícias: a interface inicial do Facebook. Nesta imagem, o

campo de publicidade está parcialmente coberto pela aba do chat (que pode ser

ocultada).

Durante mais quatro segundos, Henrique apenas observou a tela (cuja

configuração visual permaneceu a mesma neste interim), e, passado esse tempo, rolou seu

feed para baixo com o botão scroll (a “roda do mouse”, entre os botões direito e esquerdo)

percorrendo, contudo, uma curta extensão, apenas até revelar a totalidade da imagem do

propiciando a experienciação de certa espacialidade na interface digital. Fora da tela , contudo, a existência

de qualquer objeto gráfico é puramente virtual (não sendo acessível à percepção direta). Assim, um signo

apenas parcialmente aparente também é um signo apenas parcialmente representativo da identidade do

objeto que (virtualmente) representaria. Logo, em relação a seu suposto objeto, um signo parcialmente

revelado é também um signo parcialmente objetivo: em sua flagrante condição de incompletude, não pode

evocar as significações que o objeto, em sua integralidade, evocaria, e, portanto, não é capaz de provocar

todos os efeitos que lhe seriam potenciais.

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segundo post, cujo último centímetro (que estava parcialmente encoberto) foi revelado

(Figura 29).

Figura 29. Exemplo de elemento da interface

parcialmente encoberto (A) e integralmente revelado

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(B). Em “B”, não apenas a integralidade da imagem é

revelada como a de todos os elementos de interface

componentes de um post.

Menos de um segundo após esta breve rolagem, clicou sobre o ícone de

notificações, que estava marcado com o “sinal de alerta vermelho” que sinaliza que o

usuário possui mensagens ainda não lidas (Figura 30a). Ao clicar sobre o ícone, a aba

com as notificações de mensagem revelou-se na interface. Havia uma nova mensagem,

destacada com a tonalidade mais escura que caracteriza aquelas que nunca foram

acessadas (ou marcadas como lidas, contrastando-as das que já foram) desde a última vez

que acessara o serviço (Figuras 30b e 30c).

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Figura 30. A: ícone de notificação de mensagens (globo); no destaque, o mesmo

ícone com um sinal de alerta vermelho notificando o recebimento de uma nova

mensagem. B: aba de notificações de mensagens, apresentada ao se clicar no ícone

do globo (o fundo foi escurecido para melhor contraste do elemento). C e D: faixas

da barra de notificação de mensagem. Cada uma delas notifica individualmente uma

mensagem. Em “C”, tonalidade mais escura, que destaca a mensagem como não lida.

Em “D” tonalidade mais clara, que destaca a mensagem como lida.

A nova mensagem na aba de notificações era uma resposta da página oficial da

Prefeitura do Recife a uma pergunta que Henrique fizera algumas horas mais cedo sob a

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forma de comentário em um dos posts realizados pela instituição, no mesmo dia. Henrique

abrira a mensagem em uma nova aba do navegador, via menu de contexto (Figura 31b).

No FF, esta operação corresponde a clicar com o botão secundário do mouse sobre a

notificação e selecionar (no menu que é então aberto) a opção “abrir em uma nova aba”

– o que, por padrão, faz com que o link seja aberto em segundo plano (“fora” da interface

imediatamente visível, na qual a abertura do link é sinalizada com a imagem de uma nova

aba, adicionada à barra de abas no extremo superior da janela), sendo necessário que o

usuário selecione a aba correspondente para que seu conteúdo seja apresentado na tela

pela primeira vez32 (Figura 31c).

32 O resultado deste procedimento, via menu de contexto, difere do padrão do Facebook para a abertura de

links – que faz com que um clique direto com o botão esquerdo abra uma nova aba em primeiro plano,

sobrepondo-se à interface gráfica da página em que foi acessado, mas sem substituí-la; a página anterior

continua aberta na aba adjacente. Ela também difere do padrão comum, em que o link é aberto na mesma

aba, substituindo a interface da página em que foi acessado.

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Figura 31. A: FF com apenas uma aba aberta, e link sendo aberto em uma segunda,

via menu de contexto. B: menu de contexto. C: nova aba no FF, já aberta e

selecionada.

Entre os três cliques que o possibilitaram ver e abrir a notificação, cerca de três

segundos foram transcorridos: dois segundos entre o primeiro e o segundo clique e um

segundo entre o segundo clique e o terceiro. Transcorridos mais quatro segundos (durante

os quais não é possível inferir sobre que elementos visuais a percepção visual do usuário

recaiu), Henrique fecha a aba de notificações com um clique sobre o plano de fundo da

página principal do feed. A configuração visual geral continuava a mesma desde que

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rolara pela última vez, quando revelara a integralidade da imagem do segundo post. Logo

após seu último clique, Henrique rola a interface de seu feed de notícias, revelando o

terceiro post, constituído por algumas linhas de texto e uma imagem, além de dois

comentários visíveis (estando o segundo parcialmente oculto abaixo do limite da tela).

Passou cerca de sete segundos observando a tela, voltando a rolar em seguida, revelando

o resto do segundo comentário e mais um terceiro. Um quarto post também fora revelado;

este constituído de uma imagem e uma linha de descrição. Observou por mais dois

segundos e retomou a rolagem.

Henrique rola o feed por mais um segundo, deixando o quarto post no topo da

interface visível e revelando um quinto (também com uma imagem) para o qual olha por

cerca de três segundos. Segue rolando por mais dois segundos, passando o quinto post

(que foi “para cima” da interface visíve l) e para com um sexto no topo do feed, com a

imagem de uma mulher. Um sétimo post é revelado, mas sua imagem fica parcialmente

encoberta. Esta configuração é observada por 2,5s, até que Henrique passa para a segunda

aba, aberta havia alguns segundos, mas ainda não acessada.

Na nova aba, Henrique reencontrou a mesma imagem e texto de mais cedo e,

adicionalmente, a resposta da prefeitura: um texto com cinco parágrafos curtos, de três a

cinco linhas. Passou os 35 segundos seguintes observando esta mesma configuração. Nos

14 segundos finais, movimenta o mouse, correndo o cursor sobre as linhas do último

parágrafo, sem ativar passivamente e nem clicar sobre qualquer elemento da interface.

Ao fim deste tempo, gasta um segundo para mover o cursor até o botão na barra de abas

e clicar sobre ele, abrindo uma nova aba diretamente em primeiro plano (que é o

comportamento padrão da ativação daquele elemento da barra).

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Na nova aba, clica, após um segundo, sobre a barra de endereço (que estava em

branco, como seria esperado do procedimento anterior), e após outro segundo começa a

digitar. Já ao acionar a primeira tecla, o menu com as sugestões de busca baseadas no

histórico do navegador aparece sob aquela barra. Ele clica sobre a sugestão imediatamente

abaixo da barra de endereço e, em seguida, volta a clicar sobre esta, selecionando com

este clique (por default do navegador) todo o texto do endereço que a preenchera

automaticamente por ter-se ativado um link. Começa a digitar mais uma vez, diretamente

sobre o texto selecionado (o que, por padrão do Windows, o substitui pelo novo texto).

Enquanto escrevia o endereço principal do google, os elementos gráficos da interface

evocada pela seleção da sugestão de busca começam a surgir na tela, mas não carregam

totalmente, tendo apenas alguns textos e contornos de elementos gráficos aparecido sobre

o plano de fundo em branco quando o enter fora pressionado, acionando o link digitado.

Após pressionar a tecla, e com o mesmo movimento de braço que posicionara seus

dedos sobre ela, Henrique leva a sua mão para o mouse, voltando a empunhá-lo (levando

0,9s até que toque o periférico). A interface carrega completamente em 2,2s33,

apresentando um doodle34 em vez do logo tradicional do google. Passou cerca de 2,5s

observando a interface, voltando, então para a publicação aberta na segunda aba, que

observara por 3s antes de retornar para a página inicial do buscador. De volta, começou

a digitar algo, olhando para o teclado, fazendo-o por cerca de 1s até que voltou a olhar

para a tela, onde encontrou as sugestões de busca do google. Escreveu por mais 1s,

33 O google já havia sido usado por mim enquanto testava a rede da sala, antes da sessão, o que levou suas

informações a serem depositadas no cache. 34 Um doodle é uma imagem que o buscador google costuma apresentar em sua página principal em vez de

sua logo tradicional, fazendo referência a datas e eventos comemorativos ou em homenagem a figuras

públicas. Na ocasião acima descrita, o doodle fazia referência aos jogos de inverno de 2014, realizados na

Rússia.

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parando para dirigir seus dedos aos botões direcionais do teclado, mas, sem apertá-los,

voltou a mover sua mão, desta vez para o mouse. Entre o movimento que levou sua mão

às teclas direcionais, parar brevemente sobre elas e depois repousá-la sobre o mouse, 2s

se passaram. Retornou, então, para a aba com a postagem da prefeitura, clicando sobre

ela e permanecendo por 1s antes de retornar para a aba do buscador, também com um

clique. Mais 1s decorreu entre o mouse e o teclado, quando retomou a digitação por mais

1,5s, interrompendo-a para selecionar a segunda sugestão de busca que apareceu na aba

de sugestões (que modificou o texto no campo de busca, substituindo-o pelo sugerido), e,

em seguida, voltar a digitar (tendo gasto 2,5s entre a saída e o retorno de sua mão direita

ao teclado alfabético). Por mais 1,5s, pulsou algumas teclas em uma velocidade mais lenta

que a anterior, olhando para a tela, enquanto o novo texto ia sendo aumentado e novas

sugestões de busca iam surgindo a cada letra inserida no campo de busca. Dirigiu, então,

mais uma vez, seus dedos ao teclado direcional, selecionando a segunda sugestão e, desta

vez, pressionando enter em seguida (levando 2s até a segunda pulsão, 0,5s entre o

direcional e o enter, e mais 1s entre sair deste e sua mão já estar empunhando o mouse).

Ao serem exibidos os resultados da busca, Henrique os observa por dois segundos

antes de abrir um dos links apresentados, e na sequência um segundo, ambos abertos em

uma nova aba, via menu de contexto. Entre a abertura do menu e a ativação da opção

“abrir em uma nova aba, cerca de se meio segundo se passou, aproximadamente, em cada

caso. Um terceiro link foi aberto na mesma janela, clicando-se com o botão esquerdo

sobre outro resultado de busca. Antes que os elementos da página solicitada fossem

carregados na tela, Henrique logo passa para a aba seguinte (levando menos de dois

segundos entre o clique no resultado e o subsequente, sobre a aba), na qual fora aberto o

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primeiro destes links que acabara de abrir. Entre a abertura do primeiro e do terceiro

resultados de busca selecionados, cerca de cinco segundos decorreram.

A primeira aba acessada continha uma interface apenas com textos, que Henrique

observa por treze segundos, rola-a até o final, até que passa para a aba seguinte. Nesta

nova interface também predominam textos escritos, mas havia algumas imagens e o

design gráfico apresentava espaços e campos mais bem delimitados que na página

anterior. Henrique passa 55s segundos nesta página, com pausas maiores entre as rolagens

e parando para ler dois trechos por 25s e 14s. Após algumas rolagens e a leitura breve,

Henrique seleciona um trecho do texto, copiando-o e colando na barra de busca do

Firefox, que fica ao lado da barra de endereços. O google era o buscador selecionado no

momento, tendo Henrique o mantido como mecanismo de busca escolhido. Uma vez

carregada a interface com os resultados da busca, um link é aberto em uma nova aba (via

menu de contexto) após seis segundos observando a interface. Em seguida, um segundo

resultado é acionado, desta vez com um clique direto (o que, na interface do google, leva

o link a ser aberto na mesma aba); este resultado não foi apresentado como um texto, sob

forma típica do google, mas como uma pequena imagem acompanhada de uma descrição,

sob a forma pela qual o google costuma apresentar alguns dos resultados que são vídeos

publicados no youtube (www.youtube.com – um serviço de publicação e exibição de

vídeos digitais).

O link acionado foi o de uma reportagem sobre obras de drenagem urbana

realizadas em Natal/RN em alguma altura do governo de sua (então) ex-prefeita. A

interface do youtube começou a ser carregada, substituindo os resultados de busca do

google. Primeiro, apareceram os elementos textuais e estilísticos da página. Enquanto o

vídeo carregava (com apenas um quadro preto sendo exibido no espaço em que sua

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interface surgiria), Henrique rolou a interface em alguns centímetros, deixando metade

do espaço onde surgiria o vídeo fora da tela. Clicou sobre o ícone mostrar mais logo

abaixo daquele espaço, sendo, então, exibido todo o texto postado como descrição do

filme. Observa esta configuração muito rapidamente, até que o carregamento do filme é

concluído e ele começa a ser reproduzido (imediatamente, como é o padrão do youtube).

Henrique, então, retorna para o topo da interface, deixando o vídeo completamente

visível.

Ao ser reproduzido, o filme apresenta não apenas sua imagem, mas também o seu

áudio. Henrique pausa a reprodução após quatro segundos de seu início, e, aparentemente,

começa a procurar a fonte do som, verificando próximo ao monitor, sobre e dos lados da

mesa, até que voltou a sua posição inicial, reengajou-se com o computador, empunhando

o mouse, e aumentou o volume do som por meio do controle de volume disponível (por

padrão) por meio do ícone na barra de notificação. Arrasta o marcador da barra de volume

(que surgiu na tela em resposta ao acionamento do ícone) até o máximo disponível, no

extremo superior da barra. Retoma, então, o vídeo a partir do ponto em que fora pausado,

retira a mão do mouse, repousa as mãos sobre o colo e se posiciona para assistir ao vídeo;

inicialmente, em uma postura mais ereta que a anterior, quando operava a interface, mas

com o passar do tempo vai se arqueando e fica com os olhos na altura do quadro de vídeo

na tela.

Após retomar a reprodução, assiste ao vídeo por mais 49s e, quase no seu fim (o

que é visível na barra de progresso do tempo de reprodução, nativa da interface do

youtube), reempunha o mouse, rola a tela em alguns centímetros (até que o vídeo fique

parcialmente oculto) e muda para a aba seguinte (que ainda não visitara) seis segundos

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antes do fim da reprodução. Neste tempo, a interface do vídeo permaneceu acessível

apenas auditivamente.

Na aba recém-selecionada, encontra um texto, sem imagens (a não ser pelas de

publicidade, ao lado) cuja extensão ia a muitas rolagens abaixo na interface; lê por vários

segundos, rolando de vez em quando. Após várias rolagens, Henrique seleciona um trecho

do texto com mouse, copiando-o via atalho de teclado (ctrl+C). Em seguida, seleciona,

com um clique no mouse, a barra de busca do FF (cujo buscador selecionado no momento

era o google) e cola o trecho copiado também com o uso do teclado (ctrl+Z), pressionando

o enter em seguida. Volta então a empunhar o mouse. A nova interface abre na mesma

aba e Henrique imediatamente clica sobre o ícone que aciona a busca de imagens do

google, o que faz com que este buscador use o mesmo texto da busca corrente como

referência para buscar imagens. Após alguns segundos, a interface desta função de busca

substitui a anterior, apresentando diversas pequenas imagens, dispostas lado a lado. Após

observar a tela por dois segundos, Henrique seleciona uma imagem usando o cursor,

ampliando-a (o que seria o comportamento esperado desta interface). Quando é aberta,

Henrique reclina sua postura, aproximando seu rosto do monitor (numa aparente reação

espontânea a algum detalhe da imagem). Após observar por alguns segundos, rola alguns

centímetros, revelando mais imagens (e encobrindo as que estavam no extremo superior

da interface). Ele então amplia outra imagem (com o mesmo procedimento da anterior),

observa por alguns segundos e, em seguida, amplia uma terceira imagem, desta vez

presente entre as sugestões da interface apresentada ao se realizar tais ampliações de

imagem. Segue ampliando uma segunda sugestão, retomando a rolagem em alguns

segundos, percorrendo apenas meia tela antes de observá-la por mais três segundos e

finalmente fechar aquela aba com quatro cliques (dois dos quais foram próximos, mas

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não acertaram sobre o ícone). Menos de um segundo depois, com um quinto clique. A

imagem exibida na sequência é a da interface aberta em uma das abas anteriormente

visitadas (com a formatação de Web 1.0), que é deixada em menos de um segundo, com

um quinto clique sobre o ícone da aba que a antecede (que abrira, mas ainda não visitara).

A interface apresentada é a de um blog, com uma imagem como cabeçalho, um texto

central (de parágrafos curtos entremeados de imagens) e, ao lado deste, campos com

vários links textuais e imagens menores, algumas delas animadas. Após observá-la por

menos de um segundo, Henrique a rola, exibindo outras partes do texto, até que para em

certa altura para ler, o que faz por 33 segundos, rolando, então, até o extremo inferior da

interface, o que faz em 1s. Em seguida, volta ao feed do Facebook, clicando sobre sua

aba, mas quase imediatamente clica sobre a aba adjacente a esta, onde estava aberta a

postagem da Prefeitura do Recife. Henrique então seleciona o campo de texto para a

redação de comentários (logo abaixo da resposta a seu comentário anterior) e começa a

digitar, alternando a direção de seu olhar entre o teclado e a tela várias vezes durante esta

operação. Após 37s, a tecla enter é pressionada, publicando-se o texto escrito, de três

linhas. Após observar a interface por mais 12 segundos, Henrique fecha a sua aba com o

mouse e, quase instantaneamente, fecha também a seguinte (com o olhar voltado para a

barra de abas, e não para a página fechada), caindo na última aba que fora aberta (com

layout de web 1.0). Rola o texto e o lê por 45s, largando o mouse, adotando uma postura

ereta e repousando as mãos sobre o colo nos últimos 10s; mas logo volta a empunhá-lo e

fecha também esta aba, caindo no seu feed do Facebook, onde encontra a mesma

configuração visual que deixara ao sair dele pela primeira vez.

Após retornar ao Facebook, o padrão geral descrito acima se repetiu: Henrique

retomou a rolagem de seu feed e se deparou com novas postagens. Visualizou postagens

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no próprio Facebook e abriu links em segundo plano enquanto explorava seu feed, até

que, sem qualquer motivo aparentemente relacionado a algum estímulo dela à percepção

imediata, abandonou-a (sem fechá-la) e acessou alguma das abas anteriormente abertas,

reiniciando um ciclo de afazeres relacionados aos temas nelas encontrados.

Deste ponto em diante, Henrique comutou entre abas abertas em suas explorações

no feed e em outras páginas, assistiu a um vídeo sobre a realidade social do bairro de

Brasília Teimosa, em Recife (às vezes escutando apenas o áudio enquanto visualizava o

texto na mesma página); passou mais de 10 minutos explorando o seu feed, abrindo

postagens na mesma aba (Figura 32) ou em outras. Neste meio tempo, abriu as

notificações que iam sendo sinalizadas, tanto no caso daquelas com o sinal de alerta

vermelho quanto no das notificações instantâneas. Ouviu uma música, reproduzida no

youtube, voltando para selecionar uma segunda após o término daquela. Acessou um

vídeo anunciado em um post em seu feed, abrindo-o em uma nova aba. O vídeo, de cerca

de 14 minutos, satirizava a então presidente do Brasil, Dilma Rousseff. Henrique pausa a

segunda música para assistir à sátira, o que faz por mais de 11 minutos, até fechar a aba,

antes da conclusão do filme, e voltar a seu feed. Explorou mais um pouco, abriu novas

abas e chegou a visitar uma delas, mas não teve tempo para se deparar com as outras, pois

alguns segundos após este novo ciclo de exploração ser iniciado, eu retornei à sala.

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Figura 32. À esquerda, a interface de uma página do Facebook com várias postagens

disponíveis para visualização. À direita, uma postagem aberta em uma instânc ia

individualizada, sobrepondo e bloqueando a interface anterior, que permanece

esmaecida e inerte, ao fundo, até que a instância que a sobrepõe seja fechada.

Do instante em que se engajou com o computador até o momento em que acabou

de redigir a resposta na página da prefeitura e retornou ao seu feed, nove minutos e meio

foram transcorridos. Deste momento até voltar a se deparar com seu feed, pouco menos

de três minutos transcorreram; e daí até o de meu retorno à sala, quando ele se desengajou

do PC (fechando, ao me ver, todas as abas abertas e depois o navegador, afastando-se

fisicamente do computador, em seguida), mais 37 minutos foram transcorridos,

totalizando 49 de uso desacompanhado (decorridos desde a minha saída aos 15 minutos

e 13s de gravação). Deste momento em diante, interagimos por mais duas horas e 15

minutos, durante as quais conversamos sobre aspectos diversos de seus hábitos de uso de

computadores e interfaces digitais.

Das mais de três horas de videografia, a análise a seguir se debruça apenas sobre

os primeiros momentos de atividade desde quando Henrique fora deixado só, descritos

acima nesta seção.

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4.3. Discussão

Sob a luz da Semiótica (Peirce, 2011), a análise da microgênese das ações

realizadas por Henrique levou ao delineamento de alguns conjuntos de propriedades

instrumentais em emergência. Algumas delas se salientaram a partir de características da

própria interface (operada sob a qualidade de signo), enquanto outras pareceram se

manifestar por contingência do próprio fluxo da atividade, em que a ação no presente se

conformava para atender às demandas interpretativas35 da que virtualmente a seguiria. A

ação como ato expressivo de um processo semiótico, no entanto, é constituída em sua

totalidade tanto pelos signos contextuais nela envolvidos quanto pela materialização da

agência do sujeito que os interpreta. Este processo de condução do fluxo de ações,

equivalente à catalisação e materialização das transitividades entre um signo e seu

sucessor, é conhecido, na Semiótica e nas Psicologias de base histórico-cultural, como

mediação (Peirce, 1931-1958/1994; Rosa, 2007a, 2007b; Sannino et al., 2009; Valsiner,

2001, 2012).

Os tipos de processos apresentados representam elementos microgenéticos

comuns na ação cotidiana, a partir dos quais é possível fazer a leitura da interface como

elemento operativo da dinâmica entre contextos que competem pela atenção do sujeito.

Analisei as sequências microgenéticas realizadas por Henrique, e que estavam situadas

no âmbito de uma atividade cuja rede social Facebook se destacou como artefato (virtua l)

de mediação. Ao longo da atividade, a instrumentalidade das interfaces e a volição do

35 Rememorando uma informação já apresentada no segundo capítulo: “interpretar” , na semiótica, não

necessariamente se refere à obtenção de um significado textual ou linguístico. Uma interpretação é qualquer

ato resultante da atividade semiótica mediada por um interpretante, uma instância da terceiridade (Peirce,

1931-1958/1994).

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sujeito manifestaram-se numa simbiose incorporada pela ação, catalisando um fluxo de

mediação que situou esta ação no âmbito contextual de uma atividade. Tal atividade

mediadora atuou autocataliticamente sobre o fluxo de ações, e levou à dinamização de

processos semióticos que corresponderam às sequências, nunca descontinuadas, de

recursões entre os signos e seus interpretantes.

Por meio da tipologia da Semiótica, a hipótese analítica que apresentou mais

consistência ao longo da investigação foi a de que a interface inicial do Facebook, o feed

de notícias, é, em sua totalidade, percebida e operada como um signo total. Um signo

suficientemente genérico e familiar a seu intérprete para ser utilizado como uma

ferramenta: seria, então, instrumentalizado como base empírica para a operação dos

esquemas simbólicos que lhe são incorporados, e que lhe conferem funcionalidades

específicas.

Cada um dos elementos componentes da configuração visual do feed de notícias

(ou da configuração sonora, para notificações, filmes ou audiogravações) representa a

ocorrência de certos tipos de eventos em outras instâncias da interface total (não se

restringindo a sua apresentação imediata), que não se limita ao que é sensorialmente

apresentado no presente experiencial. Instâncias que não estariam, então, à mostra na tela,

mas que fariam parte da experiência instrumental corrente do usuário, constituídas tanto

como parte de sua memória operacional quanto pelas informações periodicamente

fornecidas pelo que é visualizado na tela. A ferramenta-interface constituiria, assim, um

elemento instrumental que conferiria continuidade funcional entre os esquemas

simbólicos internalizados e a atividade que contextualiza a sua mobilização. Logo, a

interface seria uma ferramenta cuja realidade se estende virtualmente ao futuro. Tal

possibilidade só ganha valor no fato de que esta existência virtual ulterior mobiliza os

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hábitos operacionais do sujeito, os quais também acabam virtualmente estendidos ao

futuro experiencial.

No ato semiótico que formata a interface como ferramenta, a despeito do aparente

predomínio da função interpretativa dos símbolos, há também signos de classes inferiores

envolvidos. De modo geral, eles constituem o fundo da totalidade perceptual

imediatamente abarcada pela percepção (o signo imediato). Estes outros signos,

incorporados aos de classes superiores como suas réplicas36, compartilham com eles parte

dos seus sentidos. Em decorrência, compartilham os seus valores semióticos,

fundamentando os valores instrumentais do signo imediato.

A composição dos significados (e instrumentalidades) por este processo de

incorporação de signos inferiores pelos mais elevados se daria de acordo com o esquema

hierárquico proposto por Peirce (2011), por meio das 10 classes de signos (apresentadas

no Capítulo 2), sendo os sentidos comportados por cada uma delas (inclusive os sentidos

instrumentais) sempre provenientes da incorporação de signos de classes

progressivamente inferiores. Antes de seguir com a discussão da análise, uma breve

recapitulação das dez classes será apresentada, contextualizando suas propriedades à

discussão que a procede.

36 Os conceitos de réplica e os outros advindos da Semiótica são apresentados no Capítulo 2, na seção As

10 classes de signos na semiótica e suas propriedades instrumentais.

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Figura 33. As 10 classes de signos na semiótica de C.

S. Peirce.

As quatro primeiras classes (|1o|--|4o|) dizem respeito a signos cujos sentidos se

ancoram fundamentalmente na experiência fenomenológica em primeira pessoa. São

signos que residem apenas na experiência imediata do sujeito, vivenciados de forma

predominantemente intuitiva (Peirce, 2011). No que se refere às significações de

elementos da interface do Facebook enquanto signo-instrumento, pode-se considerar que

os objetos perceptualmente conformados sob os signos destas classes são correspondentes

aos atributos estruturais mais basilares e habituais na conformação da interface: formas,

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cores e contrastes entre estas; bordas, linhas, circunscrições espaciais; noções de arranjos

temporais, de cadência e ritmo entre os eventos; de arranjos espaciais, de distribuição,

proporcionalidade e ordenamento entre elementos interativos e áreas; dentre outros

elementos (inclusive os dinâmicos, que expressam movimento e transição), sendo todos

caracterizados fundamentalmente por se manifestarem à percepção sob conformações

intuitivas, não sendo (em um primeiro momento) realmente o objeto da ação deliberada,

mas apenas seu fundo referencial. Em outras palavras, é nas quatro primeiras classes de

signos que são conformados os atributos que possibilitam ao intérprete perceber os

objetos e coisas do mundo enquanto tais; objetos e coisas distintos de outros objetos ou

coisas a partir de sua percepção como entidades discretas (Ver Figuras 6, 13 e 14).

No âmbito da interface como uma totalidade semiótica, cada uma das réplicas que

a constitui agrega algumas das propriedades instrumentais dos objetos que as incorporam

e dos tipos incorporados. É na mobilização dessas propriedades por parte das

competências habituais do usuário que alguns desses objetos acabam associados a tipos

específicos de ações e contextos de atividades, enquanto outros são compreendidos como

elementos de valor mais geral. Tais objetos, percebidos como componentes concretos da

realidade (que são virtuais, mas reais), aparentam ser significados de forma idêntica ou

muito próxima aos materiais, mas com parte da sua realidade desprovida de propriedades

físicas, projetadas a outros tempos e espaços iminentes. É este caráter objetal-virtua l

imbuído em cada um dos elementos da interface que predispõem a percepção de

continuidade entre as dimensões virtual e material, que por meio deles compartilham

características ontológicas (expressas nos tipos que os compõem).

Os signos das categorias um a sete (|1o|--|7o|) sempre fundamentam, sob a forma

de réplicas e tipos, a emergência dos de alta ordem, tanto no que diz respeito a seu

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significado habitual quanto o sentido específico que adquire no contexto da ação. Estas

classes ainda são regidas de forma intuitiva, repercutindo condicionamentos e logo

apresentando efeitos mentais mais impositivos quando comparados aos promovidos pela

experiência simbólica, e menos quando comparados à experiência dos signos de classes

inferiores. Possibilitam, assim, a realização de atos volitivos, mas mantêm a

predominância dos condicionamentos na condução do fluxo semiótico por parte da mente

que os percebe.

Ao transpormos essa tipologia para a análise da operação do Facebook, logo foi

percebido que, da interface como um todo, o feed de notícias se destacou como o objeto

instrumental mais atuante na promoção de desvios e rupturas no fluxo da atividade

interpretante. O simples ato de rolar o feed de notícias do Facebook demonstrou ser a

mais rhemática de todas as atividades realizadas ao longo da sessão, atuando como ponte

entre atos automatizados (a rolagem e sua observação superficial) e atos de deliberação

explícita – a apreciação mais atenta das postagens sobre as quais se detinha e,

possivelmente, sua evolução para atos plenamente deliberados, ou seja, energeticamente

expressos sob a atuação de |9os| (Rosa, 2007a, 2007b).

Já o planejamento tácito de ações baseado na objetivação simbólica de um futuro

remoto, mas bem estruturado (valendo-se da instrumentalidade do |10os|), seria

necessariamente evidenciado, em alguma medida, de forma expressiva, pois a atividade

desta ordem (planejar) demandaria a realização de ações bem encadeadas, sem a

prevalência de mediações acidentais, e, sobretudo, elaborada em termos de

representações simbólicas (Peirce, 1931-1958/1994). Isso implica serem ações extensas

no tempo experiencial, tanto no que concerne a seu planejamento quanto a sua execução,

de formas semelhantes às esquematizadas nas Figuras 4 e 22. Logo, não importaria quais

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signos estivessem sendo operados, ou como o estivessem: uma cadeia de recursões

sustentada pela atividade de |10os| demandaria o desligamento temporário entre o sujeito

e o contexto operacional de manejo da interface total, o que foi expressado por Henrique

em ações energéticas características, focadas na operação de signos incorporantes de

funções instrumentais flagrantemente simbólicas, como a atividade de escrita, analisada

mais adiante, nesta seção.

Em outras ocasiões, concernentes apenas ao delineamento de um futuro próximo,

referente ao contexto concreto a ser iminentemente experienciado – por meio das

propriedades de |9os| (Peirce, 1931-1958/1994), a mediação simbólica se mostrou menos

complexa e extensiva, mas tão bem organizada, como a de um |10o|, e também foi

evidenciada pela percepção ou realização de eventos extensos por parte de Henrique.

Nesse sentido, atos como a rolagem do feed, ou a operação da aba de sugestões do google

foram denotativos de significações por meio de |9os|: ambas evidenciaram a realização de

atos perceptivos em que a atenção se engajou com elementos específicos da interface (o

conteúdo das mensagens e as sugestões devolvidas de acordo com os imputs

apresentados), mas que logo eram seguidas pela retomada do fluxo anterior de ações (ou

a ele similar) não chegaram a se converter em operações instrumentalmente focadas,

denotativas de |10os|. Tal dinâmica se assemelha à descrita por Burgess (s.d.) acerca das

atividades degenerativas (de oscilação para classes inferiores) e regenerativas (de

oscilação para classes superiores) no progresso da semiose. A dinâmica pela qual |8os|

progrediram a |9os| e esses a |10os|, que também diz respeito a tais oscilações, será abordada

mais à frente nesse capítulo.

Ações características da operação de Argumentos (|10os|) foram observadas nos

momentos de elaboração de discurso escrito, dos quais apenas um foi detalhado na seção

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descritiva deste capítulo. Nesse episódio, Henrique manteve-se focado na elaboração das

linhas que publicara, sem rupturas na trajetória da atividade em curso, e com a operação

dos mesmos recursos instrumentais para a sua realização (o teclado, na qualidade de

ferramenta de escrita, o campo para comentários na interface do post, que comportava o

texto, e os próprios esquemas simbólicos, mobilizados durante a redação). Por outro lado,

é preciso considerar que o texto foi curto e escrito em menos de 40 segundos, como

também deve ser relevada a ausência de notificações ou outros estímulos casuais ao longo

da operação, de modo que não foi possível verificar a ocorrência hipotética de recursões

indiretas (cujos efeitos decorrem da atuação dos objetos dinâmicos e da adoção

automatizada de hábitos generalizados) como mediadoras do fluxo de elaboração

simbólica na mais alta das classes de signos – fenômeno cuja possibilidade foi inferida a

partir de Peirce (2011) e Rosa (2007b), pela mediação de crenças operacionais sobre os

atos volitivos.

Nos momentos em que estive presente, Henrique elaborou suas ideias por meio

da fala, cujo caráter simbólico é emblemático na Psicologia (Van der Veer & Valsiner,

2009; Vygotsky, 2007; Wertsch, 1991). Contudo, como não houve realização desta

atividade no contexto instrumental de operação do computador, também não houve

evidências que possibilitassem a verificação de quaisquer possíveis interações de suas

instrumentalidades. Talvez seja válido mencionar que evidências de interações relevantes

entre as instrumentalidades da fala e da operação de interfaces ocorreram em momentos

posteriores à sessão individual, quando conversei com Henrique enquanto ele estava

engajado no computador. Nessas interações, algumas funções discursivas foram

complementadas por representações deliberadamente apresentadas na interface para

ilustrar determinadas ideias abordadas na fala, sobretudo as de cunho descritivo. Todavia,

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considerando que estas passagens não foram abrangidas no trecho selecionado para esta

investigação, não apresento nela a análise de tais dados. Com essa limitação, uma análise

válida da interação interface-discurso como via de mediação não se mostrou relevante

para os fins desta dissertação.

Por outro lado, bem mais comuns que as ações fundamentais na mediação de |10os|

foram as ações fundamentadas na mediação de |9os|. Atos de percepção apreciativa, como

revisar um texto ou avaliar detalhes de imagens, demandam coordenação volitiva para

que sejam percebidos como totalidades extensas (e não totalidades abreviadas, como as

mediadas por |8os|). Tais ações requerem a consideração de representações de acordo com

determinados parâmetros, realizando-se o cotejamento através de certas características

que requerem análise dedicada, o que implica uma leitura diacrônica e extensa – como a

um campo (Valsiner, 2012), e não sincrônica e pontual (em que todas as características

seriam legíveis por meio da ocorrência de um único ato perceptivo) do signo avaliado

(Valsiner, 2012).

As ações que melhor ilustram tais modalidades de interpretação puderam ser

observados no episódio em que Henrique utilizou as sugestões de busca do google –

instrumentalizando, especificamente, sua função autocompletar (Figura 34) como

recursos de expressão simbólica. Henrique interrompeu o fluxo da escrita (com frases e

palavras ainda incompletas) para avaliar as sugestões oferecidas, selecioná-las, editar seu

texto, repetir este processo uma vez e, finalmente, adotar o texto de uma das opções

apresentadas na terceira rodada de sugestões na busca deste episódio. Em vez de pesquisar

por um termo que representasse adequadamente suas expectativas de busca, ou de

elaborá-lo ele mesmo por meio da reflexão racional, Henrique instrumentalizou-se da

função autocompletar, compartilhando com ela o ônus (em tempo e esforço reflexivo, por

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exemplo) de produzir uma representação adequada para ser usada como referência à sua

pesquisa (Rückriem, 2009). Pode-se considerar que a ocorrência da representação não se

deveu apenas à habilidade de Henrique como operador daquele recurso da interface: a

realização do processo se valeu fundamentalmente da função “declarativa” da ferramenta,

que, a partir de fragmentos de palavras, expressa sentenças completas, coesas e

simbolicamente representativas, semioticamente demandante da função de |9os|, mas não

necessariamente de |10os|.

Figura 34. Sugestões de busca do google. As opções variam de acordo com o que for

escrito no campo de texto.

Assim, ao operar a ferramenta de sugestões de busca, Henrique valeu-se

deliberadamente de sua função autocompletar, o que equivaleu a um ato de fazer com

que a ferramenta (ou a dimensão técnica a ela subjacente), em certa medida, “pensasse

por si” (Lévy, 1997). Diferentemente da hipótese de Campello de Souza (2004), a

mediação cognitiva decorrente do artefato não equivaleria ao processamento de

informações e a sua instrumentalização direta por parte do usuário, como se o computador

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funcionasse como uma extensão de sua mente. O contexto operacional observado implica

o reconhecimento tácito pelo usuário de que a totalidade do conhecimento

instrumentalizado não é o produto de sua atividade mental, mas da interação e

comediação entre esta e a atividade computacional do dispositivo utilizado. Os produtos

dos processamentos complementares não são assimilados e instrumentalizados como

informações computacionais, mas como representações e signos; signos perceptivamente

conformados às modalidades habituais, estéticas e funcionais da técnica (Ingold, 2000;

Lévy, 2011b; Sannino et al., 2009). Tal modo de apropriação e operação da técnica

configura, em alguma medida, a modalidade de instrumentalização do saber denominada

conhecimento por simulação, largamente fundamentada na operação e aplicação de

esquemas conceituais (possíveis pela mediação de |9os|), ainda que não necessariamente

implique no empobrecimento da reflexão, do raciocínio ou da elaboração discursiva

(Lévy, 1997) – atividades em que as funções de Argumentos (|10os|) são imprescindíve is

(Peirce, 2011; Rosa, 2007a).

Deve-se, adicionalmente, observar que, sem divergir do que seria esperado na

evolução das semioses, não foi observado nenhuma atividade caracterizada por um fluxo

de ações baseadas na atividade de uma única classe de signo (Peirce, 1931-1958/1994,

Rosa, 2007a). Ao longo da sessão, ações que denotassem atuação de |9os| puderam ser

vistas frequentemente. Contudo, poucas foram as vezes em que puderam ser observadas

atividades que apresentassem fluxos sustentados de atos que lhes fossem característicos.

Na maior parte do tempo, os |9os| ocorreram entremeados de ações expressivas de |8os|,

tendo sido mais raro observar manifestações de semioses hegemonicamente regidas por

|10os|. Tais ocorrências foram geralmente breves, e a maioria se limitou a atos de até três

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segundos, quase sempre expressados por interrupções na manipulação da interface para

observar algum elemento que nessa surgia.

No Facebook, as ações que denotavam padrões de oscilação do fluxo semiótico

entre |8os| e |9os| foram as do tipo mais frequentemente realizado, tendo ocorrido ao longo

de quase toda a seção. Ainda na página de login da rede social, ao digitar seus dados de

acesso (login e senha), pôde-se observar que Henrique os “pronunciara” graficamente por

meio do conjunto de gestos (ações energéticas) em que o teclado foi operado para tal fim;

mas este tipo de ação não demanda necessariamente a simbolização de |10os|, nem a

vivência sustentada de |9os|, podendo ser executada conforme uma composição simbólica

de Rhemas e Dicensignos, cujas propriedades instrumentais já seriam suficientes para

conduzir um fluxo de concatenação de “pedaços de ideias”. Tal dinâmica se semelha à

demonstrada no uso da ferramenta de sugestões, mas, neste caso, os “pedaços de ideias”

são informações ainda mais familiares (login e senha), que apenas precisam ser dispostas

em campos específicos da interface. Não há muita flexibilidade ou demanda para

variações e ressignificações (Figura 26).

Outro episódio em que propriedades semióticas de |9os| e |8os| foram exploradas de

formas semelhantes, alternando-se na condução do fluxo, foi a busca de imagens que

realizou logo após assistir à reportagem sobre as obras de drenagem em Natal, quando,

em meio a uma grande quantidade de pequenas imagens, uma chamou a sua atenção,

levando-o a ampliá-la e observá-la brevemente, o que se repetiu logo em seguida com

outras figuras. A atividade equivaleu a um fluxo de oscilações entre varreduras

(volitivamente orientadas) por características denotativas de seu objeto de interesse (o

qual não foi explicitado por Henrique) e a apreciação limitadamente extensa daqueles que

vieram a se tornar salientes a sua percepção.

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Diferentemente do que ocorre com as sugestões autocompletadas, na busca de

imagens não há um sentido linearmente lógico para completar a representatividade de

uma imagem. É necessário encontrar alguma que corresponda satisfatoriamente à

referência em mente. Na observação superficial da página com os resultados da busca,

funções rhemáticas são empregadas para localizar representações pontuais do objeto de

interesse (e quaisquer fragmentos que, para o sujeito, lhe sejam alusivos atuarão nesse

sentido; ainda que se reduzam a ícones); o fluxo interpretante é mantido (na varredura de

potenciais significados – |8o| ... |8o| |8o| ...) ou desenvolvido (e canalizado à análise

de alguma representação – |8o| |9o|) de acordo com os potenciais de significação

percebidos nos fragmentos perceptivos de objetos que sejam percebidos nas imagens

observadas. Tal processo é análogo ao ilustrado na Figura 6, mas em vez de referencia is

padronizados (como no pop-up de notificação), na busca de imagens (Figura 35), o futuro

iminente do fluxo de significações é determinado pelo reconhecimento de tipos (|5os|, |6os|

e |7os|) a partir de objetos (incorporados no símbolo rhemático – |8o|) que podem ou não

representá-los. Eleva-se, assim, a incerteza do futuro iminente, e, com ela, a demanda por

orientação deliberativa na mediação da percepção, levando as funções teleológicas a

assumirem a regência das ações para as quais as teleonômicas passaram a se mostrar

insuficientes (Rosa, 2007a, 2007b).

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Figura 35. Henrique durante busca de imagem. Na interface, as imagens aparecem

como representações integrais. A última imagem foi aberta a partir de sugestão da

segunda.

De fato, não só a busca de imagens como a grande maioria dos episódios

observados foi constituída por fluxos alternantes entre ações que denotavam |9os| e ações

que denotavam |8os|. Logo, o que despertou maior interesse ao longo da análise não foram

as ocorrências alternadas em si, mas as possibilidades de distinção entre as duas

mediantes das classes de símbolos, que se tornaram progressivamente mais evidentes à

medida em que os ciclos de exploração dos dados se tornavam progressivamente mais

sensíveis à detecção das características de cada uma daquelas classes nos contextos

operacionais de ações distintas. O estabelecimento de qual das classes foi efetivamente

predominante na emergência de determinadas significações, as implicações dessa

predominância, e ainda quais padrões de alternância entre as funções predominantes

foram característicos de certos tipos de significações, foram algumas das hipóteses

provisórias modeladas ao longo da implementação do ciclo metodológico (Branco &

Valsiner, 1997; Valsiner, 2000, 2007).

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Neste gênero de variabilidade de propriedades na emergência da semiose (|8o|

|9o|), certos comportamentos foram realizados em relação a determinados objetos,

mas não a outros, a despeito de tais objetos serem réplicas de tipos virtualmente idênticos.

Foi também um gênero que se manifestou em todos os tipos de espaços virtuais visitados,

estando presente ao longo de toda a sessão.

A prevalência aparente de uma classe sobre a outra demonstrou ter decorrências

funcionais relevantes. No que se refere especificamente à pesquisa por imagens (no

google), acima mencionada, a prevalência de |9os| seria o determinante que teria feito com

que Henrique percebesse a caixa de sugestões de busca como um objeto relevante a sua

ação, de modo que as características específicas daquele objeto (dinâmico) afetaram o

signo que o representou, tornando-as salientes à percepção do sujeito sob uma

configuração consonante às propriedades que através dele foram instrumentalizadas.

Por outro lado, em algumas das vezes em que voltou a usar o buscador, Henrique

apenas digitou o texto referente aos tópicos de seu interesse, não dando relevânc ia

instrumental à mesma caixa de busca. Nestes episódios, esta não teria sido percebida

como elemento semiótico relevante ao fluxo de ações do contexto operacional corrente

(a busca por um termo já especificado ao ser usado como referência de busca). Nesses

casos, a caixa de sugestões não teria sido, portanto, significada pelas propriedades

semióticas de um |9o|, mas pelas de um |8o|, como um objeto em potencial (dotado de

instrumentalidade em potencial, de valores utilitários e pragmáticos já conhecidos).

Mesmo apresentando certo comportamento visual (o surgimento súbito de uma caixa

contendo textos – logo abaixo do campo de busca), cujo efeito é potencialmente indexical,

a manifestação iminente daquele elemento gráfico já estaria prevista nos esquemas

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habituais de Henrique (que tinha o google como buscador habitual37), sendo ele

significado como elemento periférico na percepção, diluindo-se e tornando-se indist into

do signo incorporante da interface total. Teria se tornado, pois, componente da face

dinâmica, e não imediata, do signo cujo objeto seria a interface.

A partir de uma leitura que compreende as propostas de Johnson (2001) e Peirce

(1977), levantei a hipótese de que o tipo de configuração perceptiva acima mencionada

não se forma casualmente, de acordo com razões econômicas – de acordo com o que é

advogado pelo princípio da Navalha de Ockhan (Campello de Souza, 2004). Seria a

ressignificação dos hábitos e esquemas aos quais o sujeito estaria condicionado que

organizaria a percepção do sujeito, bem como suas respostas a efeitos dinâmicos (Peirce,

2011). Tais hábitos e esquemas, por sua vez, teriam suas próprias lógicas intrínseca s, em

grande parte assimiladas do ambiente cultural em que foram desenvolvidas. Desse modo,

no que concerne à operação de ferramentas como a função autocompletar, os esquemas

mobilizados teriam vindo das experiências anteriores com a interface de busca do google,

bem como de outras interfaces com propriedades instrumentais semelhantes, cujas

significações compartilhariam esquemas instrumentais comuns. Assim, a conformação

da perceptiva (ou agentiva, num escopo mais abrangente) contingenciada pelos efeitos

dinâmicos da ferramenta estaria configurada de acordo com esquemas do que Johnson

(2001) denominou cultura da interface, assimilando, pois, concepções de emergência do

real que assimilam as modalidades experienciais próprias do virtual – e que, a princíp io,

teriam modalidades de dinamização da atividade semiótica consideravelmente distintas

37 A adoção do google como buscador habitual fora uma das informações obtidas na primeira entrevista,

que antecedera em um mês a sessão videografada.

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daquelas provenientes de culturas não informatizadas (Johnson, 2001; Lévy, 1997, 2000,

2011a, 2011b).

A simples atividade de transitar pelo feed foi expressiva de um modo de condução

perceptiva caracterizado pelo predomínio de um padrão de exploração e operação mais

errático, fundamentado na atividade do |8o|. Empiricamente, a prevalência desta classe

pôde ser observada nas ações realizadas com o uso do mouse, que era continuamente

manipulado ao longo do fluxo de significações rhemáticas, fosse com a movimentação

aleatória do cursor; fosse com cliques cujo fim era apenas a transição da área a qual a

rolagem afetaria, ou à seleção de textos (a fim de destacá-los); fosse, ainda, com a rolagem

do botão central (scroll). A leitura superficial da interface ocorreu predominantemente

acompanhada desses tipos de comportamentos, que se manifestavam diretamente no

espaço virtual contido na tela do monitor. Isso os fazia contrastar com ações que

denotavam da prevalência de |9os| ou |10os|, quando a rolagem era interrompida, enquanto

o direcionamento do cursor, seu olhar (e às vezes a sua postura) se debruçavam sobre

elementos de valor específico na interface (os quais, até então, a princípio haviam

despertado seu interesse apenas naquilo que continham em potencial, significados como

|8os|). Em outras palavras os comportamentos integrados a ações simbólicas de função

aparentemente rhemática indicaram que a atenção agentiva não possui um foco distinto,

aparentando projetar-se sobre os signos mais abrangentes na interface.

No que diz respeito à perspectiva temporal que lhe é característica, |8os| são

significados sob a qualidade de algum tipo de iminência (ou de caráter positivo) em

relação à experiência cronológica (Peirce, 1931-1958/1994). Na sessão analisada, esta

seria característica das experiências referentes ao futuro imediato – a configuração que

vem logo na sequência do momento no presente, lhe sendo adjacente (Rosa, 2007a). A

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despeito disso, um |8º| seria capaz de significar quaisquer tipos de iminênc ias

subjetivamente percebidas como reais – sendo o real aquilo cuja existência seria, para o

sujeito, factual e independe das concepções que se possa ter sobre ele (Peirce, 1931-

1958/1994). Temporalmente, e em contextos operacionais, o Rhema apenas tornaria as

possibilidades mais salientes do futuro imediato, ajustando-as às propriedades semióticas

das classes adjacentes; mas também seria ele que legitimaria, à percepção subjetiva, a

possibilidade de algo improvável ou jamais experienciado vir a ocorrer ou existir (Rosa,

2007a). De certa forma, sua função semiótica seria constitutiva da interface simbólica (na

qualidade de função cognitiva – não necessariamente como artefato digital) entre o sujeito

e aquilo que lhe seja perceptível como o real – cujos significados germinariam a partir

das classes pré-simbólicas (Rosa, 2007b)38.

Levando em consideração o que consideram Burgess (s.d.) e Rosa (2007a, 2007b)

e sobre a constituição e dinâmica semióticas do ato perceptivo, é possível supor que na

operação de interfaces digitais esta função temporal, de valor ontológico, parece ser

fundante na constituição das coisas virtuais-digitais como contínuas à realidade mesma.

Uma continuidade cuja característica mais distintiva não se expressaria espacialmente,

sob a forma de representações sensuais (comuns à experiência materialmente imediata),

mas temporalmente, sob a forma de representações potenciais que agiriam sobre a

concatenação das ações no presente experiencial com aquelas que, a despeito de não

serem materialmente possíveis naquele instante, já contariam com a existência virtual dos

38 A interpretação, rhemática, do futuro imediato pela atividade de um |8o| condiciona o signo interpretado

no presente às possibilidades de recursão iminentes, tornando-os assim sujeitos à prevalência mediacional

de outras classes de signos. A percepção de um signo que represente um objeto ou situação que demande

reações aversivas, por exemplo, pode condicioná-lo à mediação por tipos – que se expressam em

interpretações energéticas, como um sobressalto ou a apresentação de feições de medo ou desgosto – ou

por emoções –sentidas, mas não necessariamente expressas, a despeito de poderem ter sua ocorrên cia

simultaneamente condicionada à de atos expressivos (Burgess, s.d.).

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objetos que operariam. Nessa perspectiva, para o sujeito operante da interface, os objetos

ausentes no aqui-agora simplesmente estarão lá no momento seguinte do fluxo de ações,

de modo que as ações realizadas no presente se fundamentariam na sua iminência como

um evento regular, de ocorrência experiencialmente garantida (real), de tal modo que o

ato em curso não se restrinja a demandá-las, mas já atue sobre elas.

Henrique, ao longo de toda a sessão, apresentou comportamentos condizentes com

esta concepção de interface, agindo em sequências rápidas de ações instrumentalizadas

por elementos aos quais parecia já estar bem habituado, como já discutido neste capítulo.

As sequências de operação da aba de notificações, descritas na seção anterior deste

capítulo, também constituem bons exemplos desta extensão temporal das atividades

semióticas. Adicionalmente, este exemplo também é ilustrativo da produção de

temporalidades potenciais, expresso no ato de abrir um link em nova aba, mas não

consultá-lo imediatamente, reservando-o para um futuro possível.

Além das ações que realizou com a aba de sugestões de busca do google, o uso do

menu de contexto e menus similares é um exemplo que ilustra o mesmo efeito em uma

configuração mais pontual, em que os fluxos de atos rhemáticos se intercalam com atos

dicentes (referentes a Dicensignos). Logo ao realizar o login no Facebook, quando o pop-

up de memorização de senhas surgiu (Figura 27), Henrique prontamente acionou o menu

nele embutido e selecionou a opção “nunca memorizar senhas deste site”. Este menu, no

entanto, não é um elemento evidente da aba apresentada, que apresenta um saliente botão

com a opção “memorizar senha” ao lado do qual se encontra um botão bem menor,

ambiguamente diferenciado do daquele outro, como se ambos fossem um mesmo

elemento (já que a união dos dois forma o contorno que delineia uma única barra

retangular), e cuja única imagem é uma discreta seta apontando para baixo (Figura 27).

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Caso não estivesse habituado com a cultura de uso que estabelece um valor

simbólico específico para este pequeno objeto, comum aos menus drop-down (um

elemento de interface que se apresenta visualmente após ser acionado com um clique

sobre seu ícone, que geralmente contém aquela mesma imagem), é possível que a noção

de que um menu poderia ser aberto pela aba surgida não lhe tivesse ocorrido, o que

demandaria outros tipos de ação para dispensar aquele elemento (como clicar sobre o “X”

na sua extremidade superior direito ou pressionar a tecla esc do teclado – nenhuma das

quais oferece a possibilidade de que a mesma oferta nunca mais venha a ser exibida).

Todavia, a rápida sequência de ações realizada denota familiaridade com a operação e

com seus significados instrumentais, indicando não apenas que estava aculturado à

realidade daquela função de interface, mas que a tinha dominado como ferramenta de

atuação nos contextos operacionais em que ela ocorre.

Levando em conta que Henrique acabara de concluir um curso técnico de

produção de games (jogos eletrônicos) e que os computadores que lá utilizava, bem como

o que usa em sua residência, são compartilhados com outros usuários, não me parece

pretencioso especular que esta seja uma sequência frequentemente realizada por ele.

Nesse caso, sua familiaridade a certas culturas de interface não teria sua expressão restrita

a seus atos operacionais individualizados, mas também na singularização de seu uso,

conformados em um estilo (uma configuração habitual) próprio de instrumentalizá- los e

operá-los (Clot, 2009).

No caso dos menus de contexto (Figura 31) o modo de funcionamento é

basicamente o mesmo, mas em vez de se usar um botão na interface, seu acionamento é

feito diretamente ao se clicar com o botão secundário do mouse (geralmente o direito)

sobre algum elemento ou campo da interface. A peculiaridade desses menus está no fato

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de que as opções neles disponibilizadas variam entre diferentes softwares, e, mesmo na

interface de um mesmo programa, diferentes opções são apresentadas, a depender do

elemento sobre o qual tenha sido aberto.

No Firefox, abrir um menu de contexto sobre um link disponibiliza a opção de

abri-lo em uma nova aba, que, quando acionada, dissipa o menu e leva ao surgimento de

um ícone adicional (representado na imagem de uma aba) na barra de abas, mas a nova

interface é aberta em segundo plano, deixando a interface da página que continha o link

inalterada (Figura 31).

Esse comportamento difere do que ocorre ao acioná-lo diretamente com o botão

primário, o que em algumas páginas leva à sobreposição da sua interface pela que será

aberta na mesma janela, e em outras, como no Facebook, abre-se o link em uma nova aba,

mas em primeiro plano, sendo a configuração visual na tela imediatamente substituída

pela da página recém-aberta. Henrique realizou os três tipos de operações, o que pareceu

fazer sempre de forma deliberada, consonante com as ações que realizaria na sequência.

No google, abriu links em segundo plano enquanto ainda verificava outros resultados da

busca, abrindo um último em substituição à mesma página e passando para uma das

opções abertas antes que a nova interface fosse carregada. Todas essas operações

realizadas em sequências rápidas, que denotam o domínio operacional de tais formas de

uso da ferramenta-interface, e que se baseiam predominantemente na atividade

significante de |8os|.

Mas se os |8os| são efetivos na sustentação de semioses, são os atos de mediação

de |9os| e |10os| que possibilitam a síntese de significados específicos, redefinindo os

sentidos que os Rhemas deixaram em aberto, ou até mesmo sendo necessários para

sustentar o fluxo da cognição quando a ação rhemática não se mostrar adequada. Ainda

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sobre a navegação entre links: antes mesmo da primeira busca realizada, uma nova aba

fora aberta diretamente pelo ícone presente na barra de abas cuja função exclusiva é essa.

Neste caso, a nova página surgira em branco (o que ocorre por padrão); nenhum link foi

aberto diretamente e Henrique teve que digitar o endereço do site que pretendia acessar

(o google). Assim, em vez de se valer dos encaminhamentos pré-definidos ofertados pelos

links nas páginas, Henrique produziu sua própria rota de navegação, a partir da qual

poderia seguir em sua exploração amparando-se no mesmo tipo de procedimento ou

simplesmente seguir pelas hipervias já disponibilizadas pelas redes de links que

encontrasse nas páginas que chegasse a visitar. Já em um momento posterior, uma busca

foi realizada diretamente via barra de pesquisas, demonstrando que Henrique estava

ciente desta opção. Neste caso, os resultados apresentados sobrepõem a página

anteriormente aberta, que estava à mostra quando o texto da busca foi confirmado.

A variabilidade na ocorrência de todos esses tipos de ações deliberadas demonstra

que não foram realizadas por Henrique de forma acidental. Ele tinha conhecimento acerca

das opções instrumentais que dispunha para realizar as ações demandadas pelo contexto

em cada momento, tendo tomado decisões concernentes a quais delas seriam as mais

ajustadas aos fins pretendidos (não necessariamente com plena consciência de tê-lo feito).

Ao optar por abrir links em novas abas, as fontes potencialmente úteis de informação já

abertas eram mantidas, enquanto as desnecessárias eram eliminadas. Nem sempre,

contudo, a informação assumia formatos válidos aos fins almejados no contexto, não

sendo possível seguir as vias de inferência já previamente estabelecidas. Nesses casos,

era preciso criar novas vias de exploração para mais uma vez possibilitar a continuidade

do fluxo de atividade rhemática, e essas novas vias, novos esquemas simbólicos,

dependem necessariamente da operacionalização de |9os| e |10os|. Esses atos de re-

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mediação restabelecem a efetividade instrumental do |8o|, viabilizando a produção de

novos significados, conhecimentos e aprendizagens por meio de funções mentais

(simbólicas) que não se baseiam no controle predominantemente voluntário de todos os

processos de simbolização e condução do fluxo semiótico. Em vez de serem geradas

hipóteses mais ou menos bem estabelecidas, com o estabelecimento de marcos

sequenciais objetivos por meio do uso da racionalidade linguisticamente elaborada (|10os|

-- o que favoreceria a ocorrência de Recursões diretas39), a condução do fluxo de ações

(e mesmo o estabelecimento e as variações nas finalidades que lhe serviam como

referência) contava com significativa proporção de Recursões indiretas, ocasionadas pela

combinação sinérgica entre a disponibilidade de interfaces que permitiam a realização de

ações suficientemente consonantes com os fins pretendidos e de funções cognit ivas

vastamente fundamentadas em atividades simbólicas menos elaboradas (|8os| e |9os|).

Nessa realidade sociotécnica, como nas anteriores, as atividades fundamentadas

em Recursões diretas continuam a ser anunciadas como superiores e mais desejáveis para

o uso do raciocínio, a aprendizagem e para o governo das próprias ações. No entanto, o

que pôde ser observado na operação extensiva e habitual de interfaces digitais foi a

ocorrência massiva de Recursões indiretas, que se mostraram tão importantes na

realização desses tipos de atividades quanto a própria capacidade de deliberação.

Também não foram manifestadas quaisquer ações voltadas à inspeção ou ajuste

das condições técnicas da interface como ferramenta. Em nenhum momento em que as

ações habituais foram realizadas Henrique interrompeu o fluxo da atividade para

observar, por exemplo, se seus imputs surtiriam ou não o efeito esperado sobre a interface.

39 Recursões diretas são aquelas mediadas pelo controle volitivo da semiose, por meio de símbolos. Como

informado no segundo capítulo, o termo foi cunhado para uso neste texto.

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Esta sempre respondeu de modo a permitir a continuação engajada do fluxo (pelo menos

até o momento em que significações de outras classes se tornavam predominantes,

interrompendo ou desviando o fluxo e catalisando este modo de funcionamento rhemático

em função de outras sequências de ação), pois, na qualidade de dispositivo virtual, as

características gerais e propriedades instrumentais da interface permanecem constantes,

não se desgastando nem adquirindo comportamentos imprevistos ao longo do tempo,

como ocorre com objetos e máquinas materiais. Quaisquer maus funcionamentos que

pudessem ter ocorrido teriam se dado em decorrência de variações no hardware, o que

alteraria o processamento do sistema, ou de algum tipo de reprogramação deste (como

por ataques de vírus ou por conflitos entre formatos de arquivos que levam a falhas na

execução dos programas que os usam), o que tenderia a tornar a interface uma ferramenta

de uso inviável em vez de demandar ajustes e consertos pontuais, como ocorreria com

objetos materiais. Como ferramenta, as interfaces se valem de padrões totalmente

padronizados.

Sendo o |8o| a ponte entre as formas intermediárias, intuitivas (|5os|, |6os| e |7os|), e

as superiores de mediação, ele tende a ser mais suscetível aos estímulos exteriores do que

o |9o| e o |10o|, que tendem a filtrá- los. A princípio, sua função é a de sensibilizar seu

intérprete quanto a novas possibilidades de significação do mundo; mas, uma vez que

parte desse mundo corresponda a espaços virtuais vivenciados por meio de interfaces

digitais (em vez de espaços materiais onde a interação é direta e se dá por via corpórea),

a função essencial do |8o| pode ser subvertida pelo excesso de operações indexicais e pelo

empobrecimento do compartilhamento intencional direto. Nesse caso, a percepção tende

a se tornar mais vulnerável a acidentes atencionais, e o fluxo semiótico passa a tramitar

mais entre diversos estímulos, sob um padrão mais acidental e uma orientação mais

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intuitiva, em vez de tender a se elevar para as formas superiores de significação. Em

outras palavras, a atividade rhemática é mais suscetível aos efeitos do objeto dinâmico,

promotor de Recursões indiretas.

Este padrão foi mais evidente no feed do Facebook que em outras páginas,

possivelmente porque a interface desta rede social envolve grande diversidade de

operações específicas em seu manejo, mas a maior parte delas se trata de operações cujo

caráter instrumental é preponderantemente baseado no acionamento de ícones, sendo

possível realizar várias ações de navegação entre instâncias de interface total, bem como

realizar enunciações de significado fechado (como curtir ou compartilhar uma postagem)

apenas com a operação do mouse, sem que haja necessidade efetiva da elaboração escrita.

Apesar de enfatizadas as funções de |8os| e |9os|, é pouco provável que não tenha

havido nesses episódios (caracterizados pela oscilação a função dessas duas classes), em

alguma proporção, a mediação de |10os| sobre o fluxo de atividades, não sendo possível,

contudo, estimar quão efetividade instrumental teriam tido, já que, se ocorreram, foi

apenas em instâncias privadas da cognição, não tendo sido energeticamente manifes tas.

Não obstante, é certo que em alguns momentos houve a mediação de |10os| sobre a

atividade semiótica, na medida em que esta é a única classe que possibilita a realização

de abstrações de novos símbolos a partir de outros signos, sendo esta atividade necessária

para a produção de novos significados (Peirce, 1931-1958/1994, 2011); sobretudo quando

a ambiguidade de um signo percebido é suficientemente complexa para não ser redefinida

por nenhuma das classes anteriores, demandando uma nova compreensão dos elementos

ali dispostos. Após decidir buscar informações para só então elaborar um comentário à

resposta apresentada pela Prefeitura do Recife, Henrique necessariamente realizou a

interpretação de um |10os| pelo menos uma vez, quando obteve o novo arranjo simbólico

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correspondente a sua resposta, sendo esta mesma um símbolo de algum signo hipotético,

produto daquela (pelo menos uma) mediação argumentativa. É provável, no entanto, que

tenha realizado diversos atos deste tipo neste meio tempo, pois o trabalho das funções

psicológicas superiores não é plenamente possível sem o uso de argumentos (Rosa,

2007a). O valor instrumental específico destes atos de mediação permaneceu, contudo,

empiricamente inacessível à análise, não tendo sido possível discutir a possibilidade de

que a operação de interfaces tenha algum efeito relevante sobre sua ocorrência.

As réplicas colateralmente sustentadas com a operação de símbolos se suportam

na mediação acessória de outras réplicas (de efeitos também intuitivos, mas

necessariamente menos impositivas – ou não possibilitariam atos volitivos). Por este

motivo, os processos propriamente racionais (processos superiores, de alta ordem,

operados com símbolos), além de, por padrão instrumental, serem entremeados de afetos

(em que predominam qualisignos) e afiliações (índex e ícones), também são

frequentemente desviados.

Operar os elementos de uma interface já familiar, por meios que já lhe seriam

habituais, para acessar recursos e espaços virtuais que também fazem parte de sua

experiência cotidiana, denota contenção da totalidade de um conjunto comum de

possibilidades instrumentais (a ferramenta), não sendo necessário re-mediá-lo para

produzir uma instrumentalidade contextualmente contingenciada, mas imediatamente

ausente.

Tendo se engajado virtual e materialmente, e estando situado quanto aos signos

representativos de padrões familiares na área de trabalho, Henrique desvia o contexto

instrumental de sua percepção e verifica ativamente, em adequação a algum desses

padrões interpretativos, mas por determinação própria, a disponibilidade imediata e

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factual de recursos instrumentais ulteriores (voltados para o contexto de ação futuro) na

barra de tarefas. Localizar as opções disponíveis, já previamente reconhecidas, decidir

por uma delas e clicar sobre o ícone correspondente é a realização de um padrão familiar,

um roteiro de ações.

Só é possível direcionar a re-mediação de forma deliberada (o que implica uma

Recursão direta) por meio de uma ação ou com significações que estejam generalizadas

em instâncias legisígnicas ou simbólicas (de média ou alta ordem). Isto implica que

atividades que promovam redirecionamentos semióticos causados por efeitos do objeto

dinâmico (Recursão indireta) ou que sustentem (em instâncias predominantemente

rhemáticas) as consequências dos padrões acidentalmente iniciados, contribuem

diretamente para a produção de significados, mas sem que a determinação voluntária seja

o fator preponderante nesse processo. As Recursões indiretas contribuem para a produção

de significados fomentados por processos semióticos sobre os quais o intérprete está total

ou parcialmente alienado; significações realizadas de acordo com fins que se relacionam

à manutenção destes mesmos padrões desconhecidos, e não necessariamente dos

interesses declarados do sujeito. Desse modo, a actância do instrumento, por meio de seu

caráter objetal e dinâmico, acaba sendo promotora das significações cujo sentido é

alienado a seu usuário, mas que constituem suas práticas e inferências.

Por fim, tendo sido observada frequentemente durante o trecho analisado, é

possível inferir que as Recursões indiretas são intrínsecas à operação das interfaces

computacionais, que geralmente são desenvolvidas para serem maximamente intuit ivas

em termos de usabilidade. Logo, elas podem ser deliberadamente programadas para

produzir efeitos de mediação que atendam a interesses de atores sociais específicos. O

indivíduo pode acabar tendo sua atenção desviada pelos infinitos estímulos da rede de

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recursões, distanciando-se da possibilidade de realizar ações que vão em direção a de

outros fins (possivelmente habituais, ou mesmo deliberadamente planejados, mas, no fim,

não lembrados), especialmente se estas se basearem na operação da mesma máquina.

Mesmo na ausência de interação direta entre operações com |10os| e atividades

semióticas de signos de classes inferiores, é possível levantar a hipótese de que a baixa

ocorrência de atividades evidentemente expressivas de elaboração de alta ordem seja, em

si, um efeito colateral da operação sistemática de atos de significação fortemente icônicos,

indexicais e rhemáticos (favorecidos pela dinâmica de funcionamento do Facebook, em

que é possível realizar ações pré-configuradas para interagir efetivamente com outros

usuários). Nesse contexto, tais propriedades, características de signos e operações

semióticas mais primários, teriam se revelado suficientemente efetivos para a realização

de atos de comunicação e para o consumo da informação lá disponibilizada, sem a

demanda por extensa elaboração esquemática ou discursiva.

Caso a validade desta hipótese venha a ser efetivamente demonstrada (o que não

faz parte da proposta deste estudo), será corroborativa a alguns dos pressupostos adotados

nesta pesquisa, que, por sua vez, tomam como fundamento a relevância distinta da

microgênese das ações cotidianas na caracterização da identidade individual e histórico -

cultural de seu agente. É especialmente o caso da Antropologia Cultural (Ingold, 2000,

2008; Tomasello & Hermann, 2010), da ótica da Psicologia Cultural Semiótica (PC) sobre

o funcionamento cognitivo (Rosa, 2007a, 2007b; Toomela, 2003; Valsiner, 2000, 2012;

Valsiner & Rosa, 2007; Vygotsky, 2007; Wagoner, 2012), e da Teoria da Atividade –

CHAT (Cole & Engeström, 2007; Engeström, R., 2009; Engeström, Y., 2009a, 2009b;

Leontiev, 2004; Rosa, 2007a, 2007b; Wertsch, 1991). Essas abordagens, que têm a

microgênese das ações como a dimensão vivencial em que indivíduos e grupos se fazem

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reais, reconhecem, contudo, que é na mesma instância que suas condutas se tornam mais

suscetíveis às dinâmicas interindividuais e a efeitos mediativos alheios à percepção

cônscia.

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5. Perspectivas futuras e considerações finais

A pretensão inicial deste trabalho foi explorar a microgênese das ações

instrumentais realizadas com dispositivos digitais como potencial via de significação da

experiência. Para tanto, foram realizadas análises teoricamente fundamentadas na

Psicologia Cultural, na Teoria da Atividade Histórico-Cultural, e operacionalizadas pela

lógica funcional da Semiótica peirceana. Os dados apresentados equivalem a uma fração

dos que foram produzidos. Alguns resultados parciais também não foram sistematizados

a tempo de serem incluídos. Os procedimentos de produção de dados tiveram como foco

as dinâmicas de emergência aparente dos processos semióticos. Já os processos

observados e investigados equivaliam, a princípio, a ações comuns ao uso de

computadores, mas à medida em que a análise progrediu e dados parciais foram

produzidos, a leitura da interface dinâmica entre o agente e sua ferramenta tornou-se

progressivamente favorável. Desse modo, uma compreensão semiótica geral da

emergência da ação instrumental pôde ser engendrada, revelando-se simultaneamente

complementar à Psicologia Cultural e à Teoria da Atividade e mostrando-se uma ponte

conceitual entre suas compreensões específicas de desenvolvimento.

Dentre os objetivos inicialmente formulados estava presente o de analisar a

interação sujeito-interface, a fim de identificar as dinâmicas de percepção e operação dos

elementos semióticos disponíveis no contexto de sua operação. Também estavam entre

eles os de identificar e analisar os atos recursivos realizados nos processos semióticos

operados por meio daqueles signos, bem como o de delinear as suas instrumentalidades

no que dissesse respeito à condução do fluxo de ações ao longo dos processos semióticos.

Esses últimos objetivos seriam conclusivos acerca da circunscrição de valores

instrumentais que começou a ser delineada pela execução dos objetivos que foram

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listados nesta dissertação (Capítulo 3). Nesse sentido, continua em aberto a determinação

sobre como as propriedades mobilizadas nas formas típicas de operação de esquemas e

ferramentas atuam como canais de Recursão indireta. Para a condução de uma análise

capaz de cumprir estes objetivos, seria necessário analisar os atos recursivos com um

plano de pesquisa especificamente voltado para a determinação de seus efeitos

específicos sobre o sujeito, sendo necessária a produção de dados sobre as suas

impressões (a posteriori e em tempo microgenético), a fim de avaliar a relação entre a

perspectiva do sujeito, interna, com as observações de seu comportamento. Essas seriam

informações imprescindíveis à elaboração de modelos que lhe fossem fidedignos na

diferenciação dos determinantes, em cada ação, que sejam explicitamente volitivos e

daqueles que atuam por vias teleonômicas (possibilitando, assim, avaliar em que

proporção teleonomia e teleologia se apresentam na constituição de diferentes tipos de

atividades e contextos – ou, em outras palavras, o quão efetiva é a autodeterminação do

sujeito em suas ações, e o quanto essas são conduzidas a partir de esquemas operados por

meio de estímulos).

Neste contexto científico e levando em consideração as propriedades dos

processos semióticos em questão, demanda-se do pesquisador a disposição para acolher

o projeto atual de desenvolvimento das ciências idiográficas (Valsiner, 2014), voltando-

se para a produção e aperfeiçoamento de metodologias que sejam adequadas: (a) ao

estabelecimento dos limites, das fronteiras hipotéticas entre os fenômenos que pretende

abordar e aqueles que os tangenciam, atendo-se a suas correspondências concretas na

realidade empírica em vez de reificá-los por bem da conveniência metodológica; (b) à

exploração da dinâmica semiótica do fenômeno de interesse a partir dos casos em que se

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manifestam, a fim de definir os determinantes das continuidades e variações que

caracterizam, na configuração do processo, a sua generalidade.

Outro tema de investigação que requer uma abordagem mais especificamente

estruturada, e que se beneficiaria do aperfeiçoamento de metodologias de orientação

idiográfica, é a investigação de como o interpretante, de funções e constituição

formalmente caracterizadas na Semiótica, se materializam efetivamente nas práticas

concretas. A natureza deste terceiro, ou sua identidade simbólica, suas identidades como

gênero, não foram acessíveis neste estudo, demandando que sejam abordadas por

investigações subsequentes, a fim de que se compreenda as articulações entre futuro

imediato, próximo e remoto no ato interpretativo. Compreender esta articulação é

requisito para a compreensão de como uma virtual concretude da realidade, residente nos

signos, é desdobrada em uma visão de mundo e em uma perspectiva de futuro que se

manifestam na microgênese da experiência.

Compreender tais articulações entre pressupostos ontológicos, teorias e seus

correlatos dinâmicos na realidade concreta será compreender as distinções entre a

mentalidade moderna (fundamentalmente ancorada em mídias materiais ou audiovisua is

não interativas, de acordo com Lévy, 2011a), que aparenta ainda ser o padrão atualmente

hegemônico, de tipos de mentalidade ancorados nas vivências de realidades virtua is,

hiperespaciais e hipertemporais, instrumentalizadas por multimídias interativas e com

potencial de infinita abundância de recursos digitais: uma mentalidade cybercultural,

fundamentalmente nutrida por culturas de interfaces (Castells, 1999; Johnson, 2001;

Lemos & Lévy, 2010; Lévy, 1997, 2000, 2011a).

O desenvolvimento desta linha de pesquisa estaria, pois, direcionado à

compreensão da relação entre vivências técnicas e suas determinações no

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desenvolvimento da afetividade, uma vez que seria a partir desse nível tão primitivo da

experiência subjetiva que, evoluindo a partir do estado originário de qualidades intuídas,

os elementos do mundo ganhariam continuidades e distinções entre si. Pela compreensão

desse processo, em que tais elementos seriam experiencialmente fundidos ao indivíduo,

uma noção expandida de sujeito se tornaria conceb: um sujeito que transcende sua

condição filogenética, integrando-se a instrumentos (materiais ou conceituais) evoluídos

e aperfeiçoados ao longo de suas linhagens históricas. Por meio da dimensão instrumenta l

da cultura, esse sujeito estaria integrado a suas ferramentas, que passariam a ser, de certo

modo, uma extensão de si mesmo, levando-o a superar os limites supostamente naturais

da percepção e da agência para integrar-se a sua ecologia simbólica através da técnica.

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Anexos

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Anexo 1

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Anexo 2

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Anexo 3

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Convidamos você para participar, voluntariamente, da pesquisa A emergência de ciberculturas entre adolescentes – Uma análise da subjetivação decorrente da performatização de habilidades com computadores. Esta pesquisa é da responsabilidade do pesquisador Rafael Fernandes Bezerra, sob a orientação dos Professores Drs. Maria C. D. P. Lyra e Luciano Rogério de Lemos Meira, filiados ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Cognitiva da Universidade Federal de Pernambuco. O link para o questionário é

https://pt.surveymonkey.com/s/smartcog

Após o esclarecimento sobre as informações da pesquisa, caso aceite fazer parte do estudo, assine ao final deste documento (no verso), que está em duas vias. Uma delas é sua e a outra é do pesquisador responsável. Em caso de recusa, nem você nem os seus responsáveis serão penalizados de forma alguma. Você tem o direito de retirar o consentimento de participação a qualquer momento, sem qualquer penalidade.

INFORMAÇÕES SOBRE A PESQUISA:

Esta é uma pesquisa acadêmica, não invasiva, que investiga as relações entre o uso de dispositivos computacionais e a cognição. Seu objetivo é explicar como se dá o desenvolvimento desta relação. Os participantes responderão a questionários online; uma amostra reduzida será convidada a participar de procedimentos adicionais (entrevistas, diários de campo, sessões interativas).

Sua participação se resumirá a preencher um questionário online sobre seus hábitos de uso de computadores, mas pode se estender, caso se interesse em participar das etapas adicionais.

A pesquisa não envolve risco físico ou fisiológico. As etapas mais avançadas envolvem procedimentos conversacionais, sujeitos apenas a constrangimentos triviais equivalentes aos de situações cotidianas.

A realização dos procedimentos por parte dos participantes é de caráter metacognitivo, com potenciais benefícios ao aprendizado relativo ao tema e ao pensamento investigativo.

Após a conclusão da pesquisa, seus resultados serão apresentados aos participantes em um evento de Restituição de Conhecimento aberto a toda a comunidade envolvida. As identidades dos participantes serão sempre protegidas.

As informações reunidas nesta pesquisa serão confidencias e serão divulgadas apenas em eventos ou publicações científicas. Os voluntários não serão identificados, sendo assegurado o sigilo sobre a participação nesta pesquisa. Todos os dados gerados nesta pesquisa ficarão armazenados em banco de dados, em formato digital, sob a responsabilidade do pesquisador Rafael Fernandes Bezerra, pelo período de cinco anos.

Nem você nem seus responsáveis pagarão nada para participar desta pesquisa. Caso haja necessidade, as despesas para a sua participação serão assumidas pelo pesquisador, ou serão por ele ressarcidas. Fica também garantida indenização ou reparação em caso de injúria decorrente da participação nesta pesquisa.

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Em caso de dúvidas quanto aos aspectos éticos deste estudo, você poderá consultar o Comitê de Ética em Pesquisa Envolvendo Seres Humanos da UFPE (localizado no campus da UFPE, na Avenida da Engenharia s/n – 1º Andar, sala 4 - Cidade Universitária, Recife-PE; CEP: 50740-600; Fone: (81) 2126.8588 – e-mail: [email protected]). Informações adicionais podem ser procuradas diretamente com o responsável pela pesquisa.

________________________________________________________________

Assinatura do pesquisador Rafael Fernandes Bezerra – Mestrado – Pesquisador Responsável Av. Acad. Hélio Ramos, s/n – Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), 8º Andar CEP 50670-901 – Recife PE Brasil https://pt.surveymonkey.com/s/smartcog – [email protected]

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CONSENTIMENTO DE PARTICIPAÇÃO DA PESSOA COMO VOLUNTÁRIA

Eu, _____________________________________________, CPF _________________, abaixo

assinado, após a leitura (ou a escuta da leitura) deste documento e de ter tido a oportunidade

de esclarecer as minhas dúvidas com o pesquisador responsável, concordo , voluntariamente,

em participar do estudo A emergência de ciberculturas entre adolescentes – Uma análise da

subjetivação decorrente da performatização de habilidades com computadores. Foram-me

devidamente fornecidas e esclarecidas, pelo pesquisador, informações sobre a pesquisa e

sobre os procedimentos nela envolvidos, assim como sobre os possíveis inconvenientes e

benefícios decorrentes da participação nela. Foi -me garantido que posso retirar meu

consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade, e que posso

entrar em contato com o responsável a qualquer momento, para elucidar qualquer dúvida ou

sugerir contribuições.

Local e data:

___________________________________________________________________________

_______

Assinatura do participante:

______________________________________________________________________

ASSENTIMENTO DO RESPONSÁVEL PARA A PARTICIPAÇÃO DO DEPENDENTE

Impressão Digital

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Eu, _____________________________________________, CPF_________________, abaixo assinado, responsável por ______________________________________________________, autorizo a sua participação voluntária no estudo A emergência de ciberculturas entre adolescentes – Uma análise da subjetivação decorrente da performatização de habilidades com computadores. Foram-me devidamente fornecidas e esclarecidas, pelo pesquisador, informações sobre a pesquisa e sobre os procedimentos nela envolvidos, assim como sobre os possíveis inconvenientes e benefícios decorrentes da participação nela. Foi-me garantido que posso retirar o meu consentimento a qualquer momento, sem que isto leve a qualquer penalidade, e que posso entrar em contato com o responsável a qualquer momento, para elucidar qualquer dúvida.

Local e data:___________________________________________________________________

Assinatura do responsável: _______________________________________________________

(opcional)

TESTEMUNHAS (Duas)

Declaramos que presenciamos a solicitação de consentimento, esclarecimentos sobre a pesquisa e aceite do voluntário em participar.

Nome: Nome:

Assinatura: Assinatura:

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Anexo 4

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Anexo 5

SmartCog - Convite para participação em pesquisa [UFPE]

Oi, XXXX,

em outubro de 2013 você participou da pesquisa SmartCog, respondendo um

questionário online, e deixou o seu contato se disponibilizando para a etapa seguinte de

nossa pesquisa. Nesta etapa eu gostaria de conversar um pouco com você sobre os seus

hábitos de uso de computadores e outros dispositivos com interfaces digitais. Podemos

marcar um encontro?

Meu telefone é (81) 9514-XXXX. Se você me enviar um SMS se identificando eu

retornarei a ligação. Se preferir, nos comunicamos por e-mail.

O projeto SmartCog investiga a influência do uso de computadores no desenvolvimento

cognitivo.

Obrigado pelo interesse!

Rafael Fernandes Bezerra

Mestrado em Psicologia Cognitiva – UFPE

[email protected][email protected]

http://www.ufpe.br/psicologiacognitiva/

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Anexo 6

Roteiro para entrevista

2014-01-20

Rafael F Bezerra

Pesquisa SmartCog

>>> Pedir para Gravar <<< Ligar gravador

- Explicação sobre a pesquisa Qual o lugar dos dispositivos computacionais,

interfaces virtuais e da web na vida das pessoas, na forma como pensam, sentem e na

forma como se relacionam. Mas não se preocupe se isto parece muito amplo, pois

estas coisas moram nos pequenos detalhes dos atos cotidianos.

- Então meu foco não é em você enquanto aluno do NAVE: estou aqui para saber sobre

o XXXX Usuário de computadores e redes . Meu interesse no NAVE vai até onde ele

é importante na sua experiência como usuário.

Qual o tempos disponível? – Previsão de uma a duas horas.

- Explicação sobre a entrevista

- Vou fazer algumas perguntas planejadas com antecedência, mas outras podem

surgir ao longo da conversa, para esclarecer detalhes que pareçam interessantes <ou

levantar novas questões>.

- Também poderei fazer algumas anotações e rabiscos, mas não se preocupe. É só para

eu não me perder no decorrer da conversa.

Obs:

- Quando eu falar sobre “computadores”, considere quaisquer tipos de dispositivos

computacionais para uso humano, incluindo os games.

- Vou fazer um monte perguntas, para garantir que não vou considerar como

respondida alguma questão sobre a qual você teria algo diferente a dizer.

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- Então algumas questões poderão parecer repetitivas. Se considerar que o assunto já

foi abordado é só dizer em que momento da entrevista falou sobre ele.

- Não precisa ter pressa em responder, tome o tempo que precisar para refletir.

Questões

Relação com computadores – Inicialmente, queria saber sobre sua relação com

computadores.

Como eles fazem parte da sua vida? <te suportam, te completam, te

atrapalham...>

o O que você realiza com computadores? Pode dizer tudo o que você faz,

mesmo. Não precisa dizer o que prefere não dizer.

o Quais dessas atividades você faz só por obrigação, quais delas faz por

prazer, e quais ficariam no meio?

o Quais delas passa mais tempo fazendo?

o Quais delas passa menos tempo?

o Há alguma que você preferiria não fazer?

o Há alguma que você gostaria de fazer, mas por alguma razão não faz?

o Quais daquelas atividades você considera mais significativa para você,

como pessoa?

o Você considera como forma de expressão artística alguma dessas

atividades, ou qualquer outra coisa que você faça com computadores, ou

que dependa do uso de computadores?

o Considera que alguma delas te torna mais próximo de “algo superior”, de

algum ideal, ou te torna uma pessoa melhor?

o Alguma delas faz com que você se sinta realizado como pessoa ou

“artista”, ou se sinta muito bem, como outras atividades de sua vida não

o fazem sentir?

Exploração das atividades mais significativas – deve ter aparecido até este momento.

Fale um pouco mais sobre esta atividade.

Quando costuma realizar?

Em que circunstâncias costuma realizar?

Em que local ou locais costuma realiza- la?

O faz com que você comece a realiza-la, no dia a dia?

Quando você considera que deve parar de fazê-la? <satisfeito; exausto; fim do

tempo?>

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Como você começou a realizar esta atividade? – O que te motivou a praticá-la?

Algum momento de transição em sua vida? Houve uma pessoa motivadora? O

contato com algum recurso com o qual não contava? Ou foi uma coisa

complexa?

Como você avalia o impacto desta prática em sua vida?

Como você avalia o impacto desta prática em seu desenvolvimento como

pessoa?

Como você percebe/vê a realização desta prática modificando a sua vida ou o

seu desenvolvimento?

Convidar – Se tiver tomado muito tempo, pular questões seguintes e convidar para

videografia.

Daqui pra frente, priorizar a abordagem das atividades relatadas sobre a noção genérica

de “uso de computadores e web”.

Relação geral com computadores

Sua vida seria diferente sem computadores? Ou com computadores melhores?

Ou piores?

O uso de computadores te deu acesso a coisas e atividades às quais você não

teria acesso por outras vias?

Se vê realizando atividade relatada sem computadores? Como seria?

Qual a sua experiência ideal no uso de computadores? – Para a atividade

relatada, mudaria alguma coisa

Internet – O uso da internet é importante na sua relação com computadores?

Como imagina que seria sua vida sem internet?

Conseguiria viver sem internet?

As coisas que você costuma fazer quando tem acesso à internet são diferentes

das que você costuma fazer quando não tem?

Suas motivações sobre o que você faz e sobre como você pensa mudam muito

quando você está com ou sem acesso à web?

Quando você tem que fazer alguma coisa com computadores, mas não tem

acesso à web, a sua experiência subjetiva de uso é muito diferentes de quando

você tem?

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Você acha que as pessoas serão capazes de viver sem computadores e sem

internet daqui para frente?

O que você acha que aconteceria se as pessoas deixassem de ter acesso a

computadores e à internet?

Dispositivos móveis – Você conseguiria fazer tudo o que você faz e o que quer fazer

usando apenas dispositivos portáteis (fora note e net)?

Se, de repente, você passasse a ter acesso a apenas a dispositivos móveis, isto

afetaria muito a forma como você vive hoje? Afetaria os tipos de coisas que

você produz?

Se fosse o contrário, e você passasse a ter acesso apenas a computadores

estacionários?

Há alguma coisa que você faça usando apenas dispositivos móveis? – Coisas

que você poderia fazer com qualquer computado ou outros dispositivos.

Há alguma coisa que você tenha passado a fazer só depois que passou a usar

dispositivos móveis, em decorrência das possibilidades que este agregou a sua

vida?

Como você descobre novos recursos para usar e novas atividades para fazer com

Smartphones? (indicação? Pesquisa? Acidente?)

Ideais – Que tipo de dispositivos computacionais você acha mais importante mais

importante no mundo de hoje? Por quê?

Como você imagina que será a computação pessoal nos próximo cinco anos?

Parecido com o que é hoje? Muito diferente? Você acha que os dispositivos irão

mudar? (como?)

Cultura – Você acha que há algum tipo de cultura ou subcultura específica dos usuários

de computadores?

Conhece algum tipo de subcultura?

Conhece alguma cultura/subcultura que é especificamente ligada a um tipo

específico de dispositivo? Por que acha que há esta ligação?

Você se identifica com alguma cultura deste tipo? Por que? O que acha que te

faz partidário dela?

Fim da entrevista – Convidar para videografia.

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Anexo 7

Figura Anexo 7. Interface do Nvivo, mostrando alguns trechos de tempo codificados e o setting onde a sessão foi

realizada (registrado a partir da câmera principal). Acima do monitor, a webcam se encontra visível. A câmera ao

lado do pesquisador (com o rosto visível) era o equipamento de reserva (desativado).