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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA Centro de Filosofia e Ciências Humanas Programa de Pós-Graduação em Psicologia – Mestrado NEIVA DE ASSIS JOVENS, ARTE E CIDADE: (Im)possibilidades de relações estéticas em Programas de Contraturno Escolar FLORIANÓPOLIS 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

    Centro de Filosofia e Cincias Humanas

    Programa de Ps-Graduao em Psicologia Mestrado

    NEIVA DE ASSIS

    JOVENS, ARTE E CIDADE:

    (Im)possibilidades de relaes estticas em Programas de Contraturno Escolar

    FLORIANPOLIS

    2011

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    NEIVA DE ASSIS

    JOVENS, ARTE E CIDADE:

    (Im)possibilidades de relaes estticas em Programas de Contraturno Escolar

    Dissertao apresentada como requisito parcial obteno do grau de Mestre em Psicologia, rea de Concentrao Prticas Sociais e Constituio do Sujeito, Linha de Pesquisa, Constituio do sujeito, relaes ticas, estticas e processos de criao. Programa de Ps-Graduao em Psicologia, Curso de Mestrado, Centro de Filosofia e Cincias Humanas. Orientador: Prof. Dra. Andra Vieira Zanella

    FLORIANPOLIS

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    AGRADECIMENTOS minha famlia: Me, Evandro, Mari, Nane, Eduardo e agora com Vitor, novo integrante, pessoas que me apoiaram nesse e em tantos outros momentos da minha vida. Em especial minha me, coautora da mulher, estudante, professora e ser no mundo que tenho me tornado. Professora Andrea Zanella, exemplo na arte de ensinar. Ensinou-se que o mais importante continuar mestre ignorante. Articulou arte, cincia e afetos em suas aulas, orientaes, viagens, e congressos. Professora Ktia Maheirie, por me adotar durante a viagem da Professora Andra ao ps-doutorado Itlia e todas as posteriores ajudas na construo da pesquisa. Obrigada tambm pelo acolhimento afetuoso na UFSC e em sua casa. Professora Leia, coresponsvel por minhas escolhas dentro da Psicologia Social e da Psicologia Histrico-Cultural. A quem agradeo imensamente pela dedicao no incio de minha formao profissional e por tantas vezes ainda to presente na minha trajetria. Professora Jaqueline Tittoni e ao Professor Adriano Nuernberg por todas as importantes contribuies no processo de pesquisa. Aos colegas do mestrado e, especialmente a Fabola Langaro e aos amigos do Nupra. Lugar em que busquei conhecimento e encontrei tambm amigos e alegria. Aos amigos Allan e Jaison que ao dividir carona todas as semanas at Florianpolis, compartilhamos trajetos, congressos, ansiedades, vitrias e construmos amizade. Sentirei saudades do trio reunido toda semana. s novas amigas Eliane, Ana Priscila, Juara e Letcia, que tem me oportunizado bons encontros na trajetria de docncia no ensino superior. aluna Tabata e aos amigos Chrys e Carlinha pelo apoio na finalizao da pesquisa. ONG e seus integrantes, em especial Kau, Michele, Estela e Beatriz, por permitir que eu participasse de seu cotidiano e de seus trajetos (re)inventados. E a tantos outros, tantas vozes presentes, tantas vozes ausentes que se apresentaram neste trabalho.

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    Escrevemos no para significar,

    mas sim para agrimensurar e cartografar regies ainda por vir.

    Escrevemos para arrastar algumas coisinhas. Para borrar alguns contornos. [...]

    Escrevemos com fragmentos de poemas roubados mo armada de uma loucura tambm roubada

    e que tomamos de algum, amm. Escrevemos com base nas coisas,

    sem distino, sem escolhas e sem recusas, sem defesas, com os olhos desprovidos de plpebras.

    Escrevemos para limpar o campo. Para acabar com a sujeira impregnada na pgina.

    Escrevemos para passar margem do sistema fonolgico j institudo e de suas relaes arbitrrias subsequentes.

    Escrevemos para tentar uma escrita feita de outra matria, de outras substncias que no aquelas

    j previsveis e tacitamente aceitas. [..] Escrevemos para fazer passar um vento qualquer;

    um simples sopro de vida. [...] Escrevemos para conseguir um pouco mais,

    para traar novas conexes, para ampliar ressonncias em outros campos,

    para aumentar a orquestra, o salo, as boas e ms companhias, o ritmo.

    No escrevemos apenas para algum, mas tambm e fundamentalmente, por algum ou alguma coisa.

    Se escrevemos sobre algum entre algum e com eco do algum de outros,

    sendo-se (tambm) um algum. Escrevemos para lidar com o vocabulrio dissecado, fazendo-o vibrar cada vez mais em intensidade [...]

    Escrevemos porque lemos, pelo prazer de ler e pelo desejo de escrever [...]

    (Costa e Costa, 2009)

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    RESUMO ..................................................................................................... 9

    ABSTRACT ............................................................................................... 10

    LISTA DE FOTOS.................................................................................... 11

    LISTA DE MAPAS ................................................................................... 11

    1. INICIANDO... ....................................................................................... 12

    2. JOVENS, POLTICAS PBLICAS, CONSTITUIO DO SUJEITO E ARTE: algumas aproximaes ........................................... 15

    2.1. Juventude e polticas pblicas: (des)encontros possveis................. 19

    2.2 Constituio do sujeito criador: a poesia de cada instante ................ 24

    2.3. Por uma educao esttica: para alm da ocupao ......................... 27

    3. COMPOSIES NO TRAJETO: Cores e Texturas ......................... 34

    3.1: Decorando as peas desse mosaico .................................................. 34

    3.2 A moldura do mosaico: consideraes sobre a organizao educativa ................................................................................................................ 36

    3.3. As tesselas do mosaico: relaes entre fragmentos......................... 45

    3.4 Entre tesselas e molduras: procedimentos da pesquisa ..................... 48 3.4.1 Entre imagens e palavras: a experincia dos encontros conjuntos ............................................................................................................ 51 3.4.2. Um mosaico de (im)possibilidades: dilogos com os educadores sobre o ensino da arte ......................................................................... 59 3.4.3. O espao urbano como lugar de encontro na pesquisa: aberturas ao imprevisvel ................................................................................... 61 3.4.4. O reencontro com os jovens: sobre imagens da viagem ........... 76

    4.RELAES POSSVEIS NA/COM A VIDA COTIDIANA ............. 80

    4.1. ESCOLA E ONG: dois contextos para muitas juventudes ........ 84 4.1.1. Institucionalizao e inveno: outra jornada a desenrolar ...... 86

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    4.1.2 Potncias na ONG aqui tudo legal .................................... 94 4.1.3. Preocupao com a questo pedaggica ................................... 98 4.1.4 Perspectivas para uma educao integral: por outro tempo de aprender ............................................................................................ 102

    4. 2. ARTE INSTITUCIONALIZADA - (im)possibilidades de criao .................................................................................................. 104

    4.2.1. Arte e Educao relaes (des)encontradas ......................... 104 4.2.2. Entre arte e artesanato ............................................................. 113 4.2.3 Perspectivas para uma educao esttica ................................. 119

    4.3. FOTOGRAFIA NA CIDADE: Olhares em movimento ........... 122 4.3.1. Bairro e centro diferentes (im)possibilidades na cidade ...... 123 4.3.2. A cidade como potncia: entremeios entre ONG e Escola ..... 137 4.3.3 Perigos e desventuras ............................................................... 141 4.3.4. Relaes estticas possveis grafias e novidades na cidade . 145

    5. CONSIDERAES NO TRAJETO ................................................. 163

    6. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .............................................. 167

    7. APENDICE .......................................................................................... 180

    7.1.Apendice 1 Levantamento de Dissertaes e teses do banco de teses da CAPES ............................................................................................. 180

    7.2. Apndice 2 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (participantes) ....................................................................................... 182

    7.3. Apndice 3 - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (responsvel legal) ................................................................................ 184

    7.4.Apndice 4 Roteiro Da Entrevista Coletiva (Com Jovens) ............ 186

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    RESUMO

    O objetivo desta pesquisa foi investigar os sentidos das atividades artsticas para jovens participantes de um programa de contraturno escolar. A lente que demarcou as anlises compreendeu fundamentalmente as discusses sobre educao esttica e arte, desenvolvidas pelo enfoque histrico-cultural em psicologia e pelos autores do Crculo de Bakhtin. O lcus inicial da pesquisa foi uma organizao educativa no governamental no municpio de Blumenau e os sujeitos os educadores de arte, o coordenador da ONG e jovens com idades entre 10 e 14 anos que frequentavam a ONG. Foi por meio de quatro modos distintos de produo de conhecimentos repensados e reinventados no prprio processo de pesquisar, que essa pesquisa se fez como acontecimento: encontros conjuntos com dois grupos de jovens, conversas individuais com dois professores e uma coordenadora, conversas com quatro jovens no trajeto ONG/Escola e conversas individuais com os jovens no espao da instituio educativa. Como resultados constatou-se que apesar de significativas diferenas da ONG e escola, o contraturno escolar ainda manteve prticas de domesticao e controle, reafirmando-se como espao institudo. Mas os jovens investigados resistiram as amarras da institucionalizao, criaram estratgias de vivncia e de encontro com os outros, ali criaram e recriaram a si mesmos. E por compreender essas estratgias a pesquisa mudou de rumo: o encontro com jovens em uma pesquisa que assume uma perspectiva dialgica trouxe como resultado a necessidade de abrir mo do conceito cristalizado da juventude, da diviso em faixas etrias, e assumir uma posio em favor da opo de compreend-los em suas interaes com a cidade, seus espaos, trajetos e a possibilidade de uma educao esttica tambm no contexto urbano. PALAVRAS-CHAVE: Jovens, Pesquisa-interveno, Contraturno Escolar, Educao Esttica, Cidade.

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    ABSTRACT

    The purpose of this research was investigating the meanings of artistic activities for young people participating in an after-school educational charity program. The analytical understandings were the discussions of aesthetical education and art, developed by the historical-cultural psychology approach and the authors of the Bakhtin Circle. The field research was made firstly in the after-school education program, a charitable institution Non-Governmental Organization (NGO) located in Blumenau city and was researched the art educators, the head teacher of the NGO and young people between 10 and 14 years which attend the NGO. This research was made by four processes of knowledge production and its reinvention on the constructions process of the research: meeting two groups of young people jointly, individual conversation with two educators, with the head teacher, with four young on the NGO/School bus trajectory, and also others individual conversations with the young people in their educational NGO site. This research could understand that even significant differences between the NGO and the youngers regular School, the NGO had maintenance of domestication and control practices, presenting an institutionalized place. However, the young people investigated showed resistance to this aspect of institutionalization, creating strategies of living and meeting among them, creating and recreating themselves. And for understanding these strategies, this research had changed its focus: the meeting with young people in this research, based on a dialogical approach, could bring as result a deconstruction of a youngster concept, especially related to the age divisions, and then, highlight a position of understanding them during their interaction to the city, their places, their trajectories and also indicating the existence of an aesthetical education made in the urban context. Keywords: Young People, Intervention Research, After-School Program, Aesthetical Education, City.

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    LISTA DE FOTOS

    Foto 1 - Parque da ONG........................................................................35 Foto 2 - Espao externo da ONG..........................................................35 Foto 3 - Oficina de musicalizao.........................................................38 Foto 4 - Prdio da ONG..........................................................................40 Foto 5 - Mosaico Coletivo .....................................................................51 Foto 6: - Mosaico de uma jovem ...........................................................53 Foto 7 - Mosaico de um jovem ..............................................................53 Foto 8 - Trajeto com Kau......................................................................70 Foto 9 - Pesquisadora com os jovens ....................................................72 Foto 10 Apresentao de violo..........................................................93 Foto 11 Oficina de musicalizao ....................................................113 Foto 12 Jovens na oficina de musicalizao ....................................113 Foto 13 - Vista dar Margem do Rio Itaja-Ac em Blumenau na dcada de 40.....................................................................................................124

    Foto 14 -Vista dar Margem do Rio Itaja-Ac - Blumenau em 2000.....................................................................................125

    Foto 15 - Parque Vila Germnica.........................................................130 Foto 16 Regio Central de Blumenau...............................................133 Foto 17 - Rua em que mora Estela .....................................................134 Foto 18 - Rua em que mora Estela.......................................................144 Foto 19 Trajeto com Estela ..............................................................148 Foto 20 - Prdio prximo do bairro de Estela.....................................151 Foto 21 - Trajeto com Kau ...............................................................153 Foto 22 - Ribeiro do bairro em que reside Kau...............................155 Foto 23 Trajeto com Michele ...........................................................157 Foto 24 Rua no trajeto com Michele at sua escola .........................158 Foto 25 Comrcio no bairro de Estela ..............................................160

    LISTA DE MAPAS

    Mapa 1 - Cidade de Blumenau ..............................................................44 Mapa 2 - Trajeto percorrido com Beatriz .............................................61 Mapa 3 - Trajeto com Michele e Estela ................................................64 Mapa 4 - Trajeto com Kau...................................................................69

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    1. INICIANDO...

    O menino no conhecia o mar. O pai levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.

    Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcanaram aquelas alturas de areia,

    depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos.

    E foi tanta a imensido do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza.

    E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: - Me ajuda a olhar!

    (Eduardo GaIeano, 1991)

    A pesquisa que apresento tem como temtica as atividades artsticas propostas a jovens participantes de programas sociais no contraturno escolar. Esses programas so denominados de: Programa Jornada Ampliada, Educao Complementar, Educao em Tempo Integral, Escola em Tempo Integral ou ainda Segundo Tempo, conforme a poltica pblica a que se vincula e o pblico alvo atendido. Para fim de discusso neste trabalho, utilizo o conceito de contraturno escolar para todas essas aes, reconhecendo que, apesar das diferenas que as conotam, mantm uma caracterstica em comum: o aumento do tempo de permanncia dos jovens em contextos de escolarizao formal.

    A investigao incluiu o contato com uma organizao educativa no governamental no municpio de Blumenau. Esta opo se deu na medida em que se caracterizam por lugares por onde estes jovens circulam e se ocupam durante a semana. Mas, principalmente, porque os sentidos produzidos pelos sujeitos, foco desta investigao, emergem nestes espaos institucionalizados e ali se transformam, no dilogo com vrias vozes sociais. Deste modo, foi necessrio acompanhar as atividades, conversar com professores, participar do cotidiano para investigar os sentidos das atividades artsticas para jovens participantes de programas de contraturno escolar.

    A lente que demarcou as anlises compreendeu fundamentalmente as discusses sobre educao esttica e arte, desenvolvidas pelo enfoque histrico-cultural em psicologia e pelo Crculo de Bakhtin.

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    Sob o prisma desses referenciais, o enfoque na dimenso dos sujeitos que participam de atividades artsticas no contraturno escolar, buscou considerar no apenas as macropolticas direcionadas juventude, para uma grande populao; mas as experincias tal como vivenciadas nessas atividades e os sentidos que jovens produzem sobre elas com muitos outros.

    Inicialmente trago uma introduo do tema, destacando os afetos que me fizeram encontrar nas discusses entre Psicologia e Arte na perspectiva histrico-cultural possibilidades para minha trajetria profissional. Em Jovens, Polticas Pblicas, Constituio do Sujeito e Arte: algumas aproximaes, incluo uma breve discusso terica sobre conceitos que me acompanharam ao longo de toda a pesquisa.

    Esttica e constituio do sujeito constitui foco de investigaes da linha de pesquisa, Relaes ticas, estticas, processos de criao e atividade criadora, que integra o Programa de Ps-Graduao em Psicologia na UFSC.

    Meu texto traz, portanto, a marca dessa viagem ao sul1, a caminho da UFSC, em associao ao eplogo de Eduardo Galeano apresentado no incio do captulo, que tem me auxiliado a olhar esse mar de possibilidades de estudo sobre a constituio do sujeito.

    No captulo trs descrevo meu trajeto de pesquisa: os procedimentos previstos e imprevistos, cores e texturas dessa composio que possibilitaram o encontro com os jovens, a mudana do prprio rumo da pesquisa prevista e algumas leituras possveis.

    As anlises produzidas nesse processo de pesquisa so apresentadas nos captulos subsequentes: no primeiro intitulado: Escola e ONG: dois contextos para muitas juventudes; semelhanas e diferenas articulando com a discusso sobre juventudes na contemporaneidade.

    As relaes estabelecidas com a atividade artstica no contexto de contraturno escolar so discutidas no captulo seguinte, intitulado Arte Institucionalizada e as (im)possibilidades de criao no contexto educativo.

    E no terceiro e ltimo captulo de apresentao dos resultados trago as anlises produzidas a partir da incluso da conversa com os

    1 E tambm no sentido literal do termo, o encontro com o mar no sul com o deslocamento semanal de Blumenau a Florianpolis para cursar o mestrado.

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    jovens no trajeto ONG-Escola, trazendo novo foco para a temtica inicial da pesquisa. Analiso nesse captulo as (re)invenes de jovens no contexto urbano e suas experincias no trajeto entre escola e ONG. Em Arte na cidade: olhares em movimento trago as imprevisibilidades no processo de pesquisa, entremeios encontrados pelos jovens para reinveno da vida na cidade. Embora a discusso sobre a cidade no fizesse parte do meu horizonte de pesquisa, auxiliou encontrar respostas para a pergunta de pesquisa.

    Ao final da dissertao, arrisco-me a fazer algumas costuras e tessituras possveis a mim pesquisadora, neste momento de pesquisa, aps um mergulho no cotidiano de alguns jovens na cidade de Blumenau.

    Apresento um trabalho que na tentativa de uma escrita de outra matria, esteve constantemente entretecida com outras tantas linguagens: gestos, imagens em movimento, msica, fotografias, sabores, odores, silncios...

    Pesquisa que se fez no trajeto, em dois sentidos: o encontro com os jovens dentro de uma organizao educativa e, posteriormente, no transitar pela cidade e; uma pesquisa em curso, que se fez no caminho, por um caminho. Por isso no trago verdades sobre os jovens que encontrei nesse processo, mas sim o que foi construdo na relao com eles.

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    2. JOVENS, POLTICAS PBLICAS, CONSTITUIO DO SUJEITO E ARTE: ALGUMAS APROXIMAES

    A maior riqueza do homem a sua incompletude.

    Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou - eu no aceito. No aguento ser apenas um sujeito que abre portas,

    que puxa vlvulas, que olha o relgio, que compra po s 6 horas da tarde,

    que vai l fora, que aponta lpis, que v a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros.

    Eu penso renovar o homem usando borboletas. (Manoel de Barros,1998)

    Os processos educativos tm me chamado a ateno desde a

    graduao: primeiro na experincia como professora em sries iniciais e, posteriormente, como psicloga em instituio social de atendimento a jovens dentro da poltica de atendimento do Estatuto da Criana e do Adolescente. Estas experincias trouxeram um incmodo com o significativo nmero de histrias de fracasso escolar.

    Com 18 anos, embora sem conhecer a Psicologia Social, eu tambm no conseguia ser um sujeito que abre portas, que olha o relgio, que compra po... Eu queria ser diferente e provocar movimentos de mudanas nos espaos em que circulava. Por isso, meu texto traz a marca desse inacabamento de que fala Manoel de Barros, de um pesquisador em um momento, dentro de algumas condies e possibilidades, com a marca de tantos outros em mim.

    A Universidade onde cursei Psicologia2 previa a realizao de um Trabalho de Concluso de Curso e, ao realiz-lo pude aprofundar a discusso sobre o fracasso escolar na investigao sobre o Projeto Classe de Acelerao. Esse projeto, implementado em rede nacional em 2000, tinha como objetivo resolver a questo da defasagem idade/srie3. A pesquisa realizada mostrou que, apesar desta poltica pblica de educao no refletir sobre as formas de ensinar e aprender; possibilitou algumas novas prticas educativas no contexto das escolas pesquisadas e mudanas nas relaes entre professores e alunos.

    2 FURB Universidade Regional de Blumenau, concluso em 2002. 3 Termo utilizado no contexto da escolarizao para designar a situao de alunos com idade superior ao esperado dentro da organizao do currculo escolar do ensino fundamental, decorrentes da repetncia e evaso escolar.

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    Instigada com os resultados dessa pesquisa, fui sendo atrada pela possibilidade de inovar o espao educativo, de criao de outro modo de educar, em busca de rupturas e brechas que abrissem para algum novo.

    Posteriormente, a experincia como psicloga em uma Organizao No Governamental em Blumenau possibilitou algumas aberturas e foi provocando a necessidade de incluso no universo da pesquisa. Por quatro anos desenvolvi, junto com outros profissionais, aes socioeducativas com crianas, jovens e professores em duas comunidades de periferia da cidade. A interveno nas prticas educativas e nas relaes estabelecidas nesta instituio, no contato com jovens em seu movimento de constituio, provocou a necessidade de aprofundar estudos dentro desta temtica.

    A instituio desenvolvia o Programa de Jornada Ampliada com jovens no contraturno da escola, oferecendo refeies, apoio escolar e atividades recreativas. Aes marcadas por um espao extremamente regrado com horrios bem definidos, com atividades essencialmente voltadas para a realizao da tarefa escolar, com exerccios repetitivos, dentro de uma perspectiva tradicional de educao. Os professores sempre discutiam e questionavam a frustrao com o fato de que grande parte dos jovens no se apropriava dos contedos escolares. Estes, por sua vez, tinham vergonha de frequentar a instituio, a creche, conforme se referiam e, eram vistos pela comunidade como muito grandes para conviver com as crianas da Educao Infantil. Eram vistos como aqueles que incomodavam, faziam barulho, prejudicavam o andamento das atividades desenvolvidas com as demais crianas. A situao indicava a necessidade de reinventar as prticas naquele contexto.

    Minha aproximao com os textos e conceitos de Vigotski4 na graduao e pouco mais tarde com a Psicologia da Arte (Vigotski, 1999) trouxe a compreenso de que a atividade criadora naqueles processos de ensinar e aprender excederia a rotina, possibilitaria aos jovens projetarem-se para o futuro, contribuiria para criar e modificar o prprio horizonte de suas possibilidades.

    Com o suporte desse referencial, em 2005 organizamos um projeto que previa a oferta de atividades artsticas e recreativas para crianas e adolescentes integrantes do Programa, alternando essas

    4 A grafia do nome do autor seguir a grafia das fontes bibliogrficas utilizadas nesta pesquisa.

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    atividades com os momentos de apoio escolar. Objetivvamos com essa dinmica, a produo de novos sentidos no processo educativo e de novas possibilidades de se ver o que era cotidiano.

    As oficinas foram definidas por meio de dilogos e negociaes com os jovens, que optaram por futebol, voleibol; break (dana de rua), grafite e teatro. Foi oferecida tambm uma oficina de fotografia, financiada pelo Fundo Municipal da Cultura e desenvolvida por um artista plstico. Esta proposta tambm foi apresentada aos jovens, que aceitaram a atividade e envolveram-se significativamente no processo de aprendizagem da fotografia.

    Em um dos encontros da oficina de fotografia, o professor trouxe imagens de objetos do cotidiano fotografadas por ngulos no conhecidos, provocando nos participantes novas possibilidades de olhar o que era supostamente familiar. Pude participar de um destes momentos e a estratgia foi simples: dispor e apresentar imagens registradas pelo fotgrafo aos jovens, organizados num crculo, provocando outras formas de ver, por ngulos diferentes.

    Interessante destacar que em momento algum foi necessria qualquer interveno disciplinar com os jovens tidos como os que incomodavam, pois participaram com entusiasmo da atividade.

    Esta interveno com os jovens indicou a possibilidade de uma educao esttica do olhar, produtora de novos sentidos, resultados de processos psquicos complexos que integram aspectos afetivos, volitivos e cognitivos do sujeito. (ZANELLA et all, 2004). Por meio de uma educao esttica do olhar, o sujeito pode reconhecer e ampliar suas possibilidades, seu poder reflexivo e criativo (ibidem, p. 54).

    O teatro foi outra oficina desenvolvida por uma artista local: os jovens participantes eram convidados a relacionar-se de outro modo com o cotidiano por meio da participao semanal em atividades e jogos dramticos. Uma menina de 13 anos relatou que no incio achou a professora meio maluca porque trazia objetos e pedia que interagissem com os mesmos, criassem histrias e inventassem utilidades diferentes aos objetos. Posteriormente, a menina associou estas atividades sua evoluo na expresso verbal e gestual e at ao seu desempenho escolar, com os textos escritos.

    Seria possvel que oficinas estticas permitissem novas relaes com a aprendizagem, com os contedos escolares? E, para alm disso, a relao no estereotipada, cristalizada com a arte, provocaria relaes estticas, sensveis com o mundo?

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    Uma professora que atuava no apoio escolar, atividade pouco atrativa aos jovens, comeou a comparar suas atividades com as oficinas e passou a reinventar o seu modo de ensinar e aprender e de estar com os jovens. Durante as tarefas passaram a ouvir rap e a usar as letras das msicas no apoio escolar. O muro passou a ser decorado no s com os desenhos das crianas da Educao Infantil, mas tambm pelo grafite, resultado das oficinas de Hip-hop5.

    Destaco ainda, nessa minha trajetria, a participao no Conselho Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente em Blumenau, em que conheci outras organizaes e projetos que desenvolviam aes educativas no contraturno escolar. Espaos organizados das mais diversas formas, mas que geralmente incluam atividades artsticas: o Programa de Medidas Scio educativas da Secretaria da Assistncia Social, que tinha oficinas de grafite; o Programa Pr-Famlia, que desenvolvia break, outros estilos de dana de rua e capoeira; Escolas Bsicas da rede estadual organizando-se em tempo integral e realizando oficinas diversas.

    Todos esses programas indicam o aumento progressivo do tempo de permanncia de crianas e adolescentes na escola ou em espaos educativos e a oferta de oficinas com variadas linguagens artsticas.

    Esta ampliao do tempo de permanncia na escola est prevista na LDBEN 9.394 (BRASIL, 1996), que estabelece diretrizes e bases da educao nacional, no Artigo 34, Pargrafo Segundo: A jornada escolar no ensino fundamental incluir pelo menos quatro horas de trabalho efetivo em sala de aula, sendo progressivamente ampliado o perodo de permanncia na escola. [...] O ensino fundamental ser ministrado progressivamente em tempo integral, a critrio dos sistemas de ensino.

    Para melhor compreender como ocorre essa permanncia no contraturno escolar, em 2008 fiz um breve estudo exploratrio por meio de contatos telefnicos e visitas institucionais e localizei organizaes educativas na regio do Vale do Itaja que desenvolviam aes complementares escola. Aes desenvolvidas por polticas pblicas de educao, polticas de assistncia social, organizaes no governamentais e escolas particulares. Muitos destes projetos incluam

    5 Conforme Hinkel (2008), Hip-hop o movimento esttico-poltico que teve seu incio no final da dcada de 60 nos EUA, envolvendo o Rap (msica) o Break (dana de rua) e o Grafite (artes plsticas). Atualmente o Hip-hop est presentes em diferentes pases, como no Brasil, especialmente no meio urbano.

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    atividades artsticas na proposta educativa. Mas com qual objetivo ou finalidade? Que atividades so estas e de que modo so desenvolvidas?

    Essas foram questes que nortearam o desenvolvimento da presente pesquisa. E para aproximar o leitor das discusses que balizaram sua realizao, apresento uma breve discusso sobre juventude articulada com as polticas pblicas de educao. Na sequencia discorro sobre a temtica constituio do sujeito criador e articulaes possveis com educao esttica.

    2.1. Juventude e polticas pblicas: (des)encontros possveis

    A que juventude me refiro quando opto por estud-la no contexto

    de instituies educativas? Que lugar social ocupa esta juventude nesse cotidiano?

    A tentativa de discutir o conceito de juventude toma aqui a direo de problematizar, conhecer, porm jamais encerrar em uma nica possibilidade de entendimento. Fujo, portanto, de argumentos a-histricos, universalizantes e fragmentados e busco uma viso aberta de juventudes, em permanente processo de construo e reconstruo.

    A ideia de juventude universalizada e naturalizada tal como se tem hoje ganha corpo ao mesmo tempo em que a famlia do sculo XVII foi se consolidando como espao social de educao, afetividade e valorizao dos filhos. ries (1981) indica que primeiramente a famlia burguesa vai assumindo essa configurao e posteriormente esta se expande a outras classes sociais. E que no havia ainda na Idade Mdia um lugar prprio para a adolescncia; era confundida com a infncia tanto que existia apenas a palavra enfant para mencionar tanto criana como adolescncia. ries destaca a persistncia por uma periodizao da vida nas imagens presentes entre os sculos XIV e XIX e a ideia de uma vida dividida em etapas bem delimitadas, correspondendo a modos de atividade, a tipos fsicos, a funes e a modas no vestir. (1981, p.40).

    O autor destaca ainda que a escola torna-se instituio indispensvel para iniciar a vida social e a aprendizagem, isolando a juventude do mundo adulto e controlando-a. Os jovens entre 12 e 20 anos neste perodo passam mais tempo em instituies educativas e retardam a entrada no mundo do trabalho. E assim se constitui um sistema institucional articulado de escolas e internatos, prises e

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    tribunais para menores, servios de ocupao e bem-estar, tudo isso formava parte do reconhecimento social de um status singular para aqueles que j no eram crianas, mas que ainda no eram plenamente adultos. (CACCIA-BAVA, et all, 2004, p. 297).

    A educao no sculo XIX torna-se instituio obrigatria e universal ao mesmo tempo em que se cristalizam socialmente idades, grupos etrios, fases da vida, separando adultos de seres em desenvolvimento. (RIES, 1981). No ltimo sculo, com o processo de urbanizao e industrializao, os jovens foram confinados no interior das famlias e nas escolas, distanciando-os de seus grupos de pertena e das situaes vivenciadas no entorno de onde vivem. possvel afirmar que a transformao do modo de se compreender os espaos pblicos pode contribuir para a explicao dessa poltica de confinamento dos jovens nos espaos privados.

    De acordo com Coimbra

    Na antiguidade e na Idade Mdia, [...] as ruas, as praas, os locais pblicos eram os pontos de encontro da populao atravs das feiras, dos atos polticos e artsticos [...] Ao longo do sculo XX, perodo em que os espaos pblicos so ostensivamente desqualificados, vistos como ameaadores, perigosos e, por conseguinte, tornam-se reas de risco, ou seja, zonas que devem ser evitadas. (2001, p.94)

    Por sua vez, se podemos dizer que o conceito de juventude est diretamente ligado s formas institucionalizadas de atend-la, isso significa que esse conceito uma construo cultural. A instituio educao se desenvolve paralelamente, ocupa lugar administrativo, jurdico e institucional; estabelecendo disciplina, vigilncia e enquadramento da juventude. E, portanto, instituio conservadora de um modo pretendido de viver em sociedade e reprodutora cultural e social de determinados grupos e classes (PERALVA, 1997). A escolaridade vai ento constituindo a experincia do que chamamos de juventude com prticas, formas de lazer, estilos, vestimentas, etc. (ARIES, 1981).

    Construes tericas do sculo XX, principalmente no campo da Pedagogia, Pediatria e Psicologia, consideraram juventude como uma ideia universal, uma fase natural, biolgica de desenvolvimento do

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    homem, de preparao e amadurecimento para a vida social adulta e que estaria presente em todas as sociedades e nos diversos momentos histricos.

    Neste trabalho, assim como em ries (1981), Coimbra (2001), Castro e Correa (2005), Bava-Caccia et all (2004), Peralva (1997), Sposito (2004), estabelece-se uma viso aberta de juventude, incluindo as particularidades que no se enquadram em uma viso totalizadora (CASTRO E CORREA, 2005)

    No cotidiano e na mdia, a juventude toma a forma por vezes de enaltecimento, de valorizao, de visibilidade ao jovem como autor, assim como contraditoriamente alvo de preocupaes, vtima de problemas e alvo de diversas polticas pblicas repressivas, preventivas. Abramo (2000) considera tambm estes dois olhares sobre a juventude: produtor ou vtima de problemas.

    No captulo do mtodo descrevo mais propriamente as juventudes em que os sujeitos da minha pesquisa esto inscritos. Cabe aqui apenas indicar que so jovens oriundos de famlias usurias da poltica de assistncia social, de camadas populares; bem como problematizar a visibilidade dada a esses jovens no campo terico. Compreendo a pobreza a partir das discusses do materialismo histrico e dialtico em que o processo de industrializao e urbanizao produz o que Coimbra (2001) denomina de territrios de pobreza, utilizando-se como mecanismo de acumulao da riqueza a produo da pobreza, da misria.

    Segundo Coimbra (2001), o confinamento de pessoas pobres em instituies assistenciais teve por objetivo disciplinar e moralizar desde a infncia, evitando assim a constituio de classes perigosas. neste contexto e para essas pessoas em situao de pobreza que se consolida o Cdigo de Menores em 1927, com foco naquele que est em situao irregular (menor abandonado, menor infrator, etc.).

    Aos pobres dignos, aqueles que trabalham, mantm a famlia unida e observam os costumes religiosos, necessrio que lhes sejam consolidados os valores morais, pois pertencem a uma classe mais vulnervel aos vcios e as doenas. Seus filhos devem ser afastados dos ambientes viciosos, como as ruas. [...] Os pobres considerados viciosos, por sua vez, por no pertencerem ao mundo do trabalho [...] so

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    vadios. Representam um perigo social [...] justificam-se, assim, as medidas coercitivas [...] Entretanto para a parcela de ociosos que se ir enfatizar o seu potencial destruidor e contaminador. [...] sero utilizados dispositivos disciplinadores e moralizantes. (COIMBRA, 2001, p. 93)

    Essa viso presente at os dias de hoje nas leituras sobre

    infncia e juventude, apesar das duas dcadas de implementao do Estatuto da Criana e do Adolescente. Constata-se sua presena na pesquisa desenvolvida por URNAU (2008) e nas observaes realizadas no meu percurso profissional, em que polticas pblicas de ateno criana e ao adolescente visavam prevenir situaes de vulnerabilidade, distanci-los do espao pblico e dos seus riscos, atravs da oferta de atividades de carter assistencialista e ocupacional.

    Historicamente, estes contextos institucionalizados no tm favorecido espaos de negociao e discusso, fundamentais para qualquer processo de aprendizagem, prevalecendo a ordem e a manuteno das regras em detrimento das possibilidades de inveno de novas prticas sociais. Por outro lado, so poucos os espaos de sociabilidade destinados aos jovens, tornando a escola ainda lugar central de encontro (CASTRO e CORREA, 2005.).

    Instituies educativas podem contribuir para a construo de um espao coletivo com a juventude. H experincias educativas nesta direo como as discusses e proposies promovidas pelo CENPEC Centro de Estudos e Pesquisas em Educao, Cultura e Ao Comunitria (2006) 6.

    Esta organizao defende uma educao integral com base nas discusses de Heller (1994), ao indicar que a formao dos indivduos tem como base a vida cotidiana, espao onde se objetivam as aes humanas e os resultados dos conhecimentos produzidos, e no apenas uma aposta no aumento de tempo de escola para melhorar o desempenho escolar.

    6 O CENPEC segmento da sociedade civil desde 1987 rene profissionais com laos na academia (tais como Bader Sawaia e Isa Guar) e na gesto pblica da educao. Trabalham com as demandas da poltica pblica de educao no Pas, pautadas pela compreenso de que a qualidade social da educao depende do enraizamento das aes socioeducativas no territrio e na maior intersetorialidade das polticas sociais. Ver mais em www.cenpec.org.br

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    O CENPEC traz a ideia de espaos de contraturno escolar como proteo social para jovens em situao de pobreza, como complemento scioeducativo s atividades oferecidas na escola. Ou seja, aes sistemticas e planejadas, envolvendo prticas educativas, culturais e esportivas aos jovens do ensino fundamental. Valoriza a educao complementar, na medida em que as classes sociais mdia e alta tm meios de ampliar a educao de seus filhos, matriculando-os em estabelecimentos de ensino privado, facilitando o acesso e fruio de outras oportunidades culturais, privados e pblicos. O que difcil, ou impossvel, para a grande maioria dos jovens da escola pblica. (GONALVES, 2006)

    Os Programas de contraturno escolar evidenciam a possibilidade de os jovens poderem reaproximar-se do espao pblico, da vida em sociedade, podendo constiturem-se reivindicaes de outras formas de se constituir sujeito e de estar com os outros. possvel que os jovens destes programas aproveitem as [...] margens e seus interstcios para configurarem outros devires que se sobrepem, s vezes silenciosamente, ao ritmo e ao modus vivendi hegemnicos [...]. (CASTRO e CORREA, 2005, p. 16).

    Nesse sentido, interessa nesta pesquisa, conhecer possibilidades de fissuras, de linhas de fuga, criao de espaos pblicos que se contrapem aos discursos e prticas determinantes.

    Para tanto, seria necessrio, investigar os significados que jovens atribuem s relaes com essas instituies formadoras para alm de uma submisso aos modelos normativos e hegemnicos da reproduo cultural ou uma situao meramente instrumental e distanciada de seu modo de funcionamento. (SPOSITO, 2004, p.15).

    Contextos educativos consistem em lugares de constituio dos sujeitos, de relaes com os outros, de mediao com a cultura, de singularizao da coletividade, de (re)produo de sentidos e cultura.

    A juventude tambm um aberto para a novidade; o que significa dizer que espaos educativos tambm podem possibilitar a estes jovens novas possibilidades de olhar, de se relacionar uns com os outros.

    Este o aspecto que interessa neste campo de pesquisa. Trazer tona esta tenso entre institucionalizao e possibilidades de fissuras, de ordem e inovao, de repetio e criao de algum novo nos contextos educativos. A condio humana que possibilita a construo de outros modos de ser e estar no mundo vale o investimento de pesquisa e interveno em Psicologia.

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    2.2 Constituio do sujeito criador: a poesia de cada instante7

    Enxergar este mar de possibilidades epistemolgicas sob o prisma

    do enfoque histrico-cultural em psicologia significa que cada criana, jovem ou adulto que integra os programas de contraturno escolar conjunto de relaes sociais, encarnado no indivduo (funes psicolgicas, construdas pela estrutura social) (VIGOTSKI, 2000, p. 33).

    Desta forma, o sujeito constitudo por e constituidor das relaes sociais caractersticas do contexto social, cultural e histrico em que est inserido. Os processos psicolgicos so compreensveis, portanto, a partir das condies sociais, das relaes sociais e suas significaes. Assim como Maheirie (2002), Zanella (2006), Urnau (2008), opto por utilizar o termo constituio do sujeito como processo aberto, inacabado, produzido na relao entre os sujeitos como alternativa aos termos personalidade ou identidade que acabam por remeter a uma estrutura fechada, acabada, dando a ideia de igualdade e rigidez.

    O enfoque histrico-cultural em Psicologia, fundamentado no materialismo histrico e dialtico, difere de outros estudos psicolgicos justamente por romper com a dicotomia entre o individual e o social, entre o objetivo e o subjetivo e por criticar a compreenso de um sujeito descontextualizado da histria e da cultura. Rompe assim com o pensamento determinista, com concepes subjetivistas, biologicistas, com padres de normalidade generalizveis e aes restritas ao indivduo, ideias que, historicamente, tm contribudo para instituir e manter hierarquias, relaes de dominao.

    Uma das concluses mais importantes de Vigotski para a Psicologia, apontadas por Pino (2000), quando ele inverte a direo do vetor na relao indivduo-sociedade.

    O desenvolvimento segue no para a socializao, mas para a individualizao [...] geralmente perguntam, como esta ou aquela criana se comporta no coletivo. Ns perguntamos: como o coletivo cria nesta ou

    7 Expresso de Vigotski ao valorizar a esttica da vida cotidiana, em que a criao esteja em todo movimento humano (2003, pg. 239).

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    aquela criana as funes superiores? (Vigotski, 2000, p.29)8.

    Ou seja, no devemos mais nos dedicar a forma como os sujeitos se socializam ou nos perguntar como o comportamento da criana socialmente, devemos nos perguntar como o social atua na criana para criar os processos psicolgicos superiores que tm origem e natureza social.

    Enfatizo a discusso sobre sujeito e alteridade (ZANELLA, 2005), em que o processo de constituio do sujeito se d na relao com um outro; consistindo em um contexto de conflito, produo permanente, diferenas, semelhanas, tenses. Ou seja, num mundo de significaes produzidas nos encontros com muitos outros e particularmente apropriadas. As discusses e investigaes sobre alteridade tratam de mostrar o outro como diferena, desvendando suas caractersticas e especificidades.

    Outra categoria explicativa do desenvolvimento humano, para o enfoque histrico-cultural em Psicologia, o conceito de atividade. Para esse referencial [...] atravs da atividade humana que o ser humano transforma o contexto social no qual se insere e nesse processo constitui a si mesmo como sujeito, ou seja, constitui o seu psiquismo. A histria do desenvolvimento da sociedade e de cada pessoa, portanto, est diretamente relacionada s transformaes da atividade humana e dos motivos que a impulsionam. (ZANELLA, 2005, p. 101).

    Pode-se dizer que a constituio do sujeito consiste num processo social e dialtico, em que os processos psicolgicos superiores so a converso no mundo privado, por meio da mediao semitica, da significao das posies sociais, das relaes sociais (PINO, 2000). Os signos so ferramentas, meios de intervir no mundo, produzidos socialmente, que mediam essas relaes com o mundo. Os processos psicolgicos superiores so constitudos atravs das mediaes com o mundo, da apropriao dos signos sociais em sua significao, enfim da apropriao da cultura.

    8 Conforme Pino (2000), O termo funo no tem qualquer relao com as teorias

    funcionalistas. Vygotsky utilizou diferentes termos: formas superiores de conduta, formas mentais, processos mentais superiores e funes mentais superiores compreendidos como relaes sociais internalizadas, tais quais: pensamento, memria, linguagem, ateno e base afetivo-volitiva.

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    Neste captulo, trouxe a crtica a uma juventude naturalizada e universalizada justamente porque a constituio do sujeito se d na relao com a cultura, nessa produo constante de si em que participam muitos outros. Assim, considero que o humano est submetido condio de inacabamento, da processualidade em que na relao com os outros se funda e vai sempre se refazendo, se reinventando. Portanto, no h essncia, a priori, sujeito natural ou cristalizado em um modo de ser.

    Refiro-me, em suma, ao sujeito como pessoa concreta, interativo, ativo, intencional e emocional. Sujeito que se relaciona com os outros nos contextos sociais em que est inserido, vivencia emoes, toma decises e constri significaes para as situaes das quais participa.

    Constituio do sujeito, nesse sentido, um processo social e permanente de (re)inveno de si em que um outro fundamento e expresso do prprio eu. (ZANELLA, 2006, p.34).

    Por conceber a constituio do sujeito deste modo, cabe falar em sujeito criador. A poesia de Manoel de Barros no eplogo deste captulo destaca o devir do ser humano, sempre como novo comeo, novo eu, devir como condio. Ali a borboleta aparece como essa possibilidade de transformao, homem como processo, sujeito sempre inacabado, [...] pessoa que se projeta, que se lana ao futuro na intrincada e criativa trama de relaes tecidas com os vestgios das histrias passadas, constantemente rememoradas, e as possibilidades que no presente se objetivam como um em aberto, como devir. (ZANELLA, 2006, p. 34)

    S tem sentido a pesquisa a que me proponho tendo como pressuposto o sujeito reconhecido como potncia criadora, como pessoa que reinventa possibilidades para si e para os outros nas resistncias, nas linhas de fuga, nas dissonncias. (ibid). A palavra criao aqui entendida no como processos exclusivos de grandes gnios e artistas, mas processo em que

    Todos e qualquer um inventam, na densidade social da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer novos desejos e novas crenas, novas associaes e novas formas de cooperao. [...] ela potncia do homem comum. (PELBART, 2003, p. 23)

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    Por isso, interessa as possibilidades de criao no contexto cotidiano da vida, a (re)inveno de novas formas de habitar o mundo, de estar com os outros. Para alm de abrir portas, olhar o relgio, comprar po e apontar lpis, que (re)invenes e criaes de outras relaes e de sujeitos so possveis?

    Acredito que, apesar das amarras das institucionalizaes e prticas disciplinares, borboletas so possveis de serem formadas em contextos de ensinar e aprender... possvel ao homem superar a fisicidade e as amarras do cotidiano e da natureza, transformando o existente, qualidade que para Vigotski base da liberdade poltica e individual (SAWAIA, 2006, p. 85). Para Sawaia, a afetividade, a esttica e a imaginao so os ingredientes que potencializam a vida e a criao.

    sob esta perspectiva que se olha para os espaos educativos; considerando as configuraes subjetivas deste lugar concreto, relacionado a elementos de sentido de outros espaos da vida social, que provocam os seus integrantes e possibilitam transformaes e novos caminhos.

    2.3. Por uma educao esttica: para alm da ocupao

    Alguns autores no campo da educao tm estabelecido dilogos

    entre a Psicologia Social e a Esttica, como Molon (2006), Smolka (2000, 2006), REIS (2004), Goes (2006), Maheirie (2007), Pino (2006, 2007), Sawaia (2006) Zanella (2004, 2006, 2007), entre outros. Estes autores contribuem para configurar novos significados aos processos de ensinar e aprender, que incluem a dimenso sensvel e criativa do ser humano.

    No caso dos jovens que participam de atividades artsticas no contraturno da escola, poderamos perguntar: estas se caracterizam como atividades estticas? Possibilitam a criao, inveno e imaginao?

    A discusso aqui presente no pretende definir o que arte, apenas consider-la como produo cultural e simblica que, na relao entre os sujeitos faz sentido e possibilita processos criativos (VIGOTSKI, 1999).

    O ensino da arte nas escolas toma muitas vezes a forma de instrumento, meio de transmisso de uma moral ou de conhecimento. Torna-se mera ilustrao, no considerando o valor da arte em si

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    mesma. A educao artstica tem ainda conotao disciplinarizante e moralizante nas prticas escolares.

    Atualmente, o ensino das artes assumido e reconhecido como rea de conhecimento, como campo terico especfico e obrigatrio no currculo escolar brasileiro, conforme Lei de Diretrizes e Bases da Educao de 1996 e Parmetros Curriculares Nacionais PCNs.9

    equivocado ainda compreender a atividade esttica como mera vivncia de sentimento agradvel, entretenimento ou atividade de recepo, de passividade, de gozo do sujeito que dela participa. Ao contrrio, a atividade esttica exige um difcil e rduo trabalho psquico, de grande gasto de foras, descarga de energia que estrutura e organiza o prprio psiquismo. (Vigotski, 2003).

    A vivncia esttica experincia emocional que envolve percepo, memorizao, associao, sntese da totalidade da obra, interpretao e elaborao. Nesse sentido podemos dizer claramente que a vivncia esttica estruturada conforme o modelo exato de uma reao comum que necessariamente pressupe a presena de trs componentes: excitao, elaborao (processamento) e resposta (VIGOTSKI, 2003 p. 229).

    A vivncia esttica desperta no organismo uma reao diferente do conhecido, envolve uma atividade complexa em que a pessoa constri e cria um objeto esttico em que se liga suas reaes posteriores (ibid). Uma atividade artstica vivenciada realmente afirma a potncia criadora do ser humano, parte dos nveis alcanados e se apoia nas possibilidades fora de si, ampliando o olhar e organizando situaes totalmente dispersas.

    Vigotski afirma que na vida o ser humano realiza apenas uma parte insignificante das possibilidades que surgem no sistema nervoso. Assim, pode-se dizer que a criao concretiza essa diferena entre o potencial e o real, encontra uma sada para o no realizado, pois [...] a criao surge a partir do instante em que certa energia no aplicada e no gasta em um fim imediato no se realiza e ultrapassa o limiar da conscincia, do qual retorna transformada em novos tipos de atividade (VIGOTSKI, 2003, p.231).

    A atividade humana pode caracterizar-se na reproduo de algo j criado, como tambm pode ir alm, criando algo novo, imaginando

    9 Para aprofundar essa discusso, ver em COSTA (2004).

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    novas situaes, superando as foras histricas em contrrio (Vigotski, 1999). A criao portanto, no ocorre apenas quando se criam grandes obras, mas sempre que o homem imagina, combina e cria algo novo, mesmo que pequeno. Ou seja, tudo que ultrapassa os limites da rotina, mesmo que na pequena novidade est relacionado ao processo de criao do homem.

    E ai reside a importncia da educao esttica, onde a arte torna-se mecanismo que acompanha toda a existncia humana, no s como complemento mas como resultado daquilo que excede a vida do ser humano(VIGOTSKI,2003, p.233).

    Aqui est a chave para a tarefa mais importante da educao esttica: inserir as reaes estticas na prpria vida. A arte transforma a realidade no s em construes da fantasia, mas tambm na elaborao real das coisas, dos objetos e das situaes. A moradia e a vestimenta, a conversa e a leitura, a festa escolar e o modo de caminhar: tudo isso pode servir como material [...] para a elaborao esttica. (VIGOTSKI, 2003, p. 239)

    Vigotski (1999) afirma ainda que s possvel educar esteticamente incluindo o sujeito em processos criativos, em contextos estticos. O educador ento pode contribuir na formao esttica10 dos jovens, sob uma perspectiva sensvel, tornando toda a vida um trabalho criador.

    De forma alguma se considera que o jovem que participa do contraturno escolar vivencie relaes estticas e, processos de criao pelo simples fato de participarem de atividades artsticas. Em uma educao esttica, a vivncia intensa cria um estado muito sensvel para as aes posteriores e, nunca passa sem deixar marcas no sujeito em sua vida posterior. (VIGOTSKI, 2003, p. 234) A partir desse pressuposto pode-se dizer por antecipao que a ideia de inserir oficinas artsticas em programas de contraturno escolar pode ser interessante

    10 Esttica aqui compreendida como dimenso sensvel, enquanto modo especfico de

    relao com a realidade, pautado por uma sensibilidade que permita reconhecer a polissemia da vida (ZANELLA, 2006 p. 36).

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    para o desenvolvimento destes jovens, porm, h que se perguntar: estas oficinas oportunizam a atividade criadora?

    A possibilidade de produo de algo novo, de combinao de novo modo para as experincias j vivenciadas, de um processo de criao o que denominamos de atividade criadora; atividade em que o sujeito no presente modificado por um projeto de futuro. Os processos de criao decorrentes de atividades artsticas podem possibilitar a emergncia de outras possibilidades de vida, de futuro, de projeto aos jovens. Quando o sujeito participa de uma atividade esttica constri e cria um objeto para si, reelabora criativamente o objeto artstico que lhe oferecido, tornando seu tambm. (VIGOTSKI, 2003).

    A produo artstica que surge neste processo de ensinar e aprender pode caracterizar-se como meio de expresso e transformao de emoes, alm de conhecimento tcnico e reflexo do sujeito que dela participou. preciso conhecer ento em que medida estas oficinas desenvolvidas constituem-se em atividade esttica.

    Tenho como pressuposto que o fazer artstico no mero lazer ou ocupao, que estas atividades artsticas no passam despercebidas pelos participantes. Podem possibilitar a imaginao de outra possibilidade de vida, de futuro, de projeto a estes jovens que esto inseridos em diversos espaos de contraturno escolar.

    Atividades com arte geralmente fazem parte de programas de contraturno escolar, sejam polticas pblicas, espaos privados ou organizaes no governamentais. So includas com que propsito? Divertir? Ocupar? Prevenir situaes de risco? Atividades estticas poderiam compor as atividades diversificadas propostas nos programas de educao em tempo integral?

    Mas como os jovens significam estar em instituies participando destas atividades artsticas? Interessa-me justamente investigar a possibilidade de relaes estticas em contextos de ensinar e aprender.

    Para conhecer a produo cientfica da rea e melhor definir meu foco de pesquisa, em maio de 2009 fiz um levantamento na base de dados online de teses e dissertaes da CAPES. Por meio das palavras-chave arte e ensino fundamental foram encontrados 245 resumos. Encontrei tambm 63 resumos com arte e ensino informal/educao em tempo integral/educao complementar, variaes que utilizei por existirem muitas denominaes para as aes de contraturno escolar, conforme mencionado anteriormente. Em uma primeira seleo a partir dos ttulos, foram eliminados aqueles trabalhos que no se relacionavam

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    a aes/atividades desenvolvidas no horrio contrrio do ensino regular. Outra combinao de descritores para localizar algumas pesquisas foi com as palavras atividade artstica e aes complementares escola, totalizando 6 resumos; e com Atividade artstica e ensino fundamental localizei 46 resumos.

    Posteriormente, as pesquisas foram analisadas e eliminadas por meio da leitura dos resumos, em que a maioria tratava do ensino da arte no processo de escolarizao. Em vrios momentos como disciplina e, em outros, como alternativa ao processo de aprendizagem na escola. Outros discutiam projetos de educao popular, alguns com foco no associativismo.

    Do total de pesquisas sobre o tema, restaram 9 resumos que relacionam atividades artsticas com aes no contraturno da escola e apenas duas sob o olhar da psicologia. (Apndice 1). A tese de doutorado em educao de Cortez (1999) trata de espaos de lazer na Escola Integral a partir da implantao da proposta de trabalho de arte/educao, destacando a importncia das oficinas culturais desenvolvidas, em especial as atividades de teatro. Zanatta (2004) investiga, em um mestrado profissionalizante de Cincias Sociais, o projeto "Dana criana" na cidade de Porto Alegre, que consiste no bal desenvolvido como atividade complementar com crianas e adolescentes de uma escola e comunidade, analisando os sentidos dessa prtica naquele contexto popular e reflexos na poltica educacional. Ainda a tese na rea do Servio Social de Herkenhoff, (2004) sobre a contribuio das aes complementares escola e a articulao entre proteo, educao e emancipao, em que analisa a contribuio das Aes Complementares Escola (ONGs finalistas do Prmio Ita-Unicef em 1999 e 2001) e aborda, dentre outras categorias, a utilizao da linguagem artstica, identificando mudanas ocorridas na vida dos adolescentes.

    Carvalho (2005) discute, em sua tese de doutorado em Artes, o ensino de Artes empregado em projetos poltico-pedaggicos de Organizaes No governamentais - ONGs, especialmente naquelas dedicadas a promover os direitos fundamentais de crianas e adolescentes em situao de pobreza. J o trabalho de mestrado em Educao de Santos (2007) versa sobre o Hip-hop e a Educao Popular em So Lus do Maranho. Analisa o papel da educao e da escola em relao aos jovens negros e pobres e compreende que o movimento

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    Hiphop maranhense, por meio do Quilombo Urbano, se constitui como uma possibilidade de identificao e mobilizao.

    Duas outras pesquisas foram desenvolvidas por Costa (2005) e Soares (2004), tambm na rea da educao: a primeira, relativa a uma proposta scio educacional em uma ONG, indica o uso do teatro em um currculo multirreferencial e crtico para a formao de adolescentes das classes populares de Salvador, desenvolvendo o que denomina de uma cidadania esttica. E o segundo analisa atividades artsticas e culturais do projeto Barraces Culturais da Cidadania SP e conclui que novas prticas educativas, adotadas em um espao de educao no escolar, permitem que o jovem usufrua experincias criativas que contribuem para a formao integral de um sujeito participativo na comunidade.

    Dos resumos localizados que relacionavam atividades artsticas em espaos de contraturno escolar com o olhar da Psicologia, um de Pinheiro (2008) que investiga, com base na teoria histrico-cultural, os processos de mediao simblica atravs da dramatizao em intervenes de Psicologia Comunitria com um grupo de jovens de uma ONG em Fortaleza. O outro, desenvolvido por Telles (2005), tambm com base na abordagem histrico-cultural, em especial a Psicologia da Arte em Vygotsky, analisa a participao de crianas de 9 a 12 anos em uma interveno no campo da educao em arte, tendo a experincia esttica como ponto de partida para a anlise da interveno.

    Destaco ainda que programas sociais que atendem jovens j se constituram como lcus de pesquisas do Ncleo de Pesquisa Relaes ticas, Estticas e Processo de Criao da UFSC (NUPRA), ao qual me vinculo. Entre estas, a desenvolvida por Urnau (2008) analisou um projeto social em Florianpolis. A autora constatou que o trabalho com arte tinha como objetivo principal prevenir situaes de vulnerabilidade e manter as crianas e jovens distantes das ruas e de seus chamarizes, como trfico de drogas e violncia (p.122). Nas oficinas de arte investigadas, prevalecia o fazer qualquer coisa, qualquer atividade, com qualquer material, com qualquer qualidade, predominando um carter assistencialista com os participantes e com finalidades utilitaristas.

    Esta busca em bases de dados, somada experincia junto s instituies educativas de contraturno escolar e as visitas exploratrias realizadas no incio da caminhada nesta pesquisa permitiram delinear como questo central para esta pesquisa: quais os sentidos das atividades artsticas para jovens participantes de programas de contraturno escolar?

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    Como objetivos especficos a pesquisa buscou: 1. Conhecer os discursos produzidos pelos jovens sobre si no

    contato com os espaos institucionais que participam. 2. Investigar o lugar social das atividades artsticas em um

    programa de contraturno escolar. 3. Investigar possveis relaes estticas estabelecidas com as

    atividades artsticas oferecidas nos programas de contraturno escolar. Importante destacar que estes objetivos previstos no incio da

    pesquisa, foram reinventados no contato com o campo. Foram necessrias algumas modificaes e ampliaes no processo de investigao com os jovens. Da pergunta inicial, outras estratgias de pesquisa foram necessrias e levaram ao encontro da cidade. A imprevisibilidade encontrada no processo de pesquisa, que descrevo a seguir, permitiu a assuno de uma perspectiva dialgica e de outras possibilidades de educao esttica aos jovens, no s nos programas de contraturno escolar.

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    3. COMPOSIES NO TRAJETO: CORES E TEXTURAS

    3.1: Decorando as peas desse mosaico

    Neste captulo explicito alguns aspectos metodolgicos que

    nortearam a construo do mtodo nesta investigao. Reafirmo a opo epistemolgica fundamentada nas contribuies de Vygotski e do Crculo de Bakhtin, que se ocupa da diversidade de vozes, das lnguas e dos tipos discursivos. Ambos nortearam a discusso terica das temticas educao esttica, constituio do sujeito e juventudes na busca pelos sentidos das atividades artsticas para jovens participantes de programas de contraturno escolar.

    Este aporte metodolgico perpassou o olhar, a entrada no campo, o encontro com os sujeitos, os procedimentos para a coleta de informaes, a anlise dos dados e a produo de conhecimentos. Para mim, foi uma das tarefas de maior importncia nesse momento do processo de constituir-me pesquisadora.

    A palavra sentido presente em minha pergunta de pesquisa carrega uma intencionalidade epistemolgica. Vygotski (1992) trabalha com os conceitos de sentido e significado que so produzidos pelos sujeitos em suas relaes por meio da atividade, das experincias, em determinado contexto histrico. Assim, a formao dos processos humanos tem o signo como centralidade, evidenciando o forte papel da palavra (GES, 2006). Para Vigotski, o sentido

    [...]es la suma de todos los sucesos psicolgicos evocados em nuestra conciencia gracias a la palabra. Por consiguiente, el sentido de la palabra es siempre uma formacin dinmica, variable y compleja que tiene varias zonas de estabilidad diferente. El significado es solo uma de esas zonas del sentido, la ms estable, coherente y precisa. La palabra adquiere su sentido em su contexto y, como es sabido, cambia de sentido em contextos diferentes. (VYGOTSKI, 1992, p.333)

    Ento, os signos so ferramentas psicolgicas que possibilitam a organizao e a regulao da prpria vontade. Permitem, assim, a insero do homem na ordem da cultura e o estabelecimento de relaes qualitativamente diferenciadas com a realidade: ao invs de diretas e

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    imediatas, estas passam a ser mediadas pelos signos, pela cultura. (ZANELLA, et all 2007)

    Ao considerar o sujeito como histrico, cultural, como produto e produtor da realidade em tenso e constante movimento; o mtodo de pesquisa tambm se definiu como processo em aberto, como produto de um determinado tempo e contexto. Tal qual defende Vygotski, A busca do mtodo se converte em uma das tarefas de maior importncia na investigao. O mtodo, nesse caso, ao mesmo tempo premissa e produto, ferramenta e resultado da investigao. (VYGOTSKI, 1995, p. 47).

    Portanto, coube a mim, pesquisadora, produzir compreenses sobre a realidade em seu fluxo e ao mesmo tempo problematizar o que aparece como um possvel dentre a infindvel gama do que e do que pode vir a ser. (ZANELLA, et.all 2007, p.32).

    Vygotski traz algumas orientaes metodolgicas fundamentais na construo de uma psicologia concreta e que nortearam a presente investigao: compreenso do objeto de estudo como processo, dinmico e no como algo estvel, dado; o cuidado para no naturalizar, fossilizar os processos psicolgicos, desconsiderando sua historicidade e a anlise de unidades ao invs de elementos, ou seja, de fragmentos que expressam a complexidade do foco de investigao. (ibidem)

    As anlises foram realizadas tendo por base as relaes que constituam o objeto de pesquisa, estabelecendo conexes entre diversos fenmenos. Assim como Amorim, considero a pesquisa com os jovens um acontecimento, um encontro com um objeto cujo carter de alteridade no deixa nenhuma margem de previsibilidade ou de controle. (2002, p.8).

    Importante deixar claro que, nesta perspectiva epistemolgica, o objeto especfico o discurso. Amorim (ibidem) indica, com base em Bakhtin, que na pesquisa com seres humanos o sujeito produtor de discurso e com seu discurso que lida o pesquisador. Discurso sobre discursos, as Cincias Humanas tm, portanto, essa especificidade de ter um objeto no apenas falado, como em outras disciplinas, mas tambm um objeto falante (BAKHTIN, 2003). Isto porque

    [...] o sujeito como tal no pode ser percebido a ttulo de coisa, porque, como sujeito, no pode permanecendo sujeito, ficar mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele s pode ser dialgico. (ibidem, p.403)

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    A pesquisa ento uma relao entre sujeitos, e a anlise do discurso considerada dialgica e polifnica; discurso de mltiplas vozes em contraposio aos discursos dogmticos, monolgicos, em que se ouve apenas uma voz: todo enunciado constitutivamente dialgico, uma vez que haver sempre, ao menos, a voz do leitor que falar no texto ao lado da voz do locutor. (AMORIM, 2002 p.12).

    Portanto, na anlise dos dados utilizei os pressupostos da psicologia histrico-cultural de Vygotsky, dialogando com as reflexes de Bakhtin e seu crculo. Nessa perspectiva, no se objetiva a anlise lingustica, mas uma busca pelas vozes; vozes presentes e as ausentes tambm, [...] uma tentativa de identificar os limites, os impasses e a riqueza do pensamento e do saber que so postos em cena no texto. (AMORIM, 2002, p. 8)

    3.2 A moldura do mosaico: consideraes sobre a organizao educativa

    Com o objetivo de melhor definir o mtodo de pesquisa, e os

    procedimentos adotados, visitei em 2009 trs organizaes educativas em carter exploratrio: duas ONGs, inscritas no Conselho Municipal de Assistncia Social e uma organizao governamental vinculada poltica de educao na cidade de Blumenau - SC11.

    Na primeira visita, encontrei uma ONG que desenvolvia suas atividades em uma antiga casa de alvenaria, de estilo colonial. A instituio oferecia apoio escolar, refeies, apoio psicopedaggico e atividades artsticas. Quando visitei a ONG, acontecia a oficina de mosaico em uma varanda adaptada com mesas e bancos. O professor, artista plstico estava junto s crianas e me explicou como o processo de construo do mosaico: recebem os azulejos de doao, outras vezes trabalham com papelo cortado e pintado. As crianas auxiliam a quebrar os azulejos em pedaos e organiz-los em potes com separao por cores. Na explicao do professor, o processo de desmontar e reconstruir um princpio da arte e que fundamental para as crianas.

    11 O conhecimento destas entidades ocorreu quando atuava como psicloga em outra ONG que tambm desenvolvia o programa de contraturno escolar e como conselheira dos Direitos da Criana e do Adolescente CMDCA em Blumenau, entre 2004 e 2007.

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    Disse que ali tambm se desmontam e se remontam novamente. Achei interessante o modo como conduzia a atividade com os meninos e o olhar que tinha sobre o que ocorria com eles.

    Estas visitas exploratrias deram visibilidade a atividades diferenciadas que ocorrem no contraturno escolar e at mesmo intencionalmente opostas ao que se encontra na escolarizao formal, como na segunda organizao no governamental visitada, que apresento nas Fotos 1 e 2. As duas imagens mostram o espao externo da ONG, destaco a ausncia de muros, grades e separaes entre a rua e a organizao.

    Na Foto 1, o balano bastante utilizado principalmente pelas crianas, afirmao possvel pela ausncia da grama logo abaixo do balano. Ao fundo possvel visualizar a casinha de boneca, rvores, grama e flores. Na foto 2, destacam-se as paredes do lado esquerdo do prdio, coloridas com azul e em timo estado de conservao. No centro da foto, a presena de jardineiras com flores e a vista para os vizinhos da ONG, residncias grandes, de alvenaria.

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    Foto 1: Parque da ONG.

    Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

    Foto 2: Espao externo da ONG. Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

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    Essas fotografias me permitiram algumas leituras, provocaram a pensar na interessante possibilidade de organizao de um espao educativo que se prope a abertura, o contato com o mundo, com o cotidiano, com o entorno, com a natureza.

    As crianas circulavam pelo espao, desenvolviam atividades sem permanecerem restritas a um s ambiente, assim tambm os adultos conversaram, combinavam tarefas entre si e pareciam participar de um processo de trabalho no rotinizado, mecanizado. Nessa visita,

    [...] a coordenadora explicou sobre as reunies que promovem, cafs com as diretoras, orientadoras e professores das escolas das crianas. E que nesses encontros, os professores da escola saem incomodados ao ver que as crianas realizam as atividades e participam ativamente das propostas da ONG, e ainda, que as crianas ficam muito receosas quando estes visitam a ONG, perguntam o que esto fazendo ali e no demonstram qualquer afeto pelos professores. (Dirio de campo, outubro de 2009)

    Na terceira visita exploratria, encontrei uma organizao

    governamental, localizada num bairro prximo ao centro, ao lado de uma escola particular e outros rgos pblicos (Estratgia de Sade da Famlia, Centro de Educao Infantil). Chamou a ateno o prdio de cor bege clara, sem atividades dos alunos nas paredes, em contraposio ao espao com visualidade mais atrativa encontrado nas duas entidades anteriormente visitadas.

    Era um galpo com um andar trreo aberto que d acesso quadra de esportes, aberta tambm. No piso superior so desenvolvidas as atividades artsticas (capoeira, percusso, ginstica olmpica, artes visuais, teatro).

    Observei um grupo jogando bola dentro da instituio, sem superviso ou vigilncia. Eles mesmos se organizavam com o jogo e suas regras. Gostei de ver as crianas correndo de um lado para o outro, circulando entre as atividades sem filas, regras, sem gritos de professores. Os professores permaneceram circulando e acompanhando suas atividades, conversando sobre quem ganhou o jogo, quem jogou bem, sobre a pintura a ser feita, a outra que borrou etc.

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    A opo por pesquisar as atividades artsticas dentro de uma organizao educativa se deu na medida em que o lugar por onde os jovens circulam e se ocupam durante a semana. Mas principalmente porque os sentidos produzidos pelos sujeitos, foco desta investigao, emergem nestes espaos institucionalizados e ali se transformam, no dilogo com vrias vozes sociais.

    Portanto, no conversei apenas com os jovens. Tenho claro que os sentidos so coletivamente produzidos e particularmente apropriados e por isso precisei estar na instituio, acompanhar as atividades, entrevistar professores, enfim, participar deste cotidiano, para analisar os sentidos das atividades artsticas para quem estas se destinam; suas condies de emergncia e seus movimentos.

    Nessa caminhada, optei por realizar a pesquisa na segunda entidade relatada, a organizao no governamental cujo espao externo foi possvel visualizar nas Fotos 1 e 2, por se apresentar com melhores possibilidades para a realizao da investigao. Considerei para essa escolha a abertura como campo de pesquisa, a intencionalidade de construir uma proposta educativa diferenciada do espao escolar e, principalmente, a oferta de atividades artsticas, mosaico e msica, que conheci ao acompanhar a rotina da entidade.

    Outra foto que produzi nesse momento exploratrio no campo de pesquisa conta da oficina de msica que aconteceu numa sala grande na frente da casa. (Foto 3). Observando a foto, no lado esquerdo, uma menina, com um copo plstico na mo, produz sons sobre a mesa; no centro da imagem encontram-se os jovens em crculo, atentos s orientaes da professora, que est a frente da menina de rosa e no aparece na imagem. No fundo da imagem, prateleiras com obras de mosaico, potes com os cacos de azulejo, teares e ls materiais usados nas oficinas artsticas.

    O espao era arejado, com janelas grandes e baixas que davam para grama e o sol que finalmente aparecia depois de semanas de chuva12. A professora de msica convidou-os para formarem um crculo com as cadeiras. Logo, cada um se posicionou e percebi que era atividade de praxe a roda com o violo.

    12 A cidade ainda vivenciava a chuva como algo perigoso aps as enchentes de 2008.

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    Foto 3: Oficina de Musicalizao Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

    Outros trs jovens se posicionaram ao lado de uma mesa com

    dois copos plsticos. Trabalharam uma msica que j conheciam, com um ritmo marcado que falava da fome: fome de cultura que mastiga a cantiga, que engole se for conversa mole13, algo assim... Cada grupinho tinha sua parte prpria de canto e os outros trs, que pouco aparecem na fotografia, iniciavam a msica utilizando os copos para fazer sons e manobras. Foi legal ver a agilidade com que eles movimentavam os copos, batendo-os sobre a mesa, produzindo sons em composio com o violo e as vozes dos colegas.

    Essa organizao consiste em uma associao sem fins lucrativos que desde 2006 oferece atividades continuadas na perspectiva da educao complementar, em contraturno escolar, diariamente, com quatro horas de durao, nos turnos matutino e vespertino.

    13 Posteriormente, em conversa com a coordenao soube que a msica chama-se Fome Come, do grupo musical Palavra Cantada voltado ao pblico infanto-juvenil, que se utiliza dos sons de objetos na produo musical. http://www.palavracantada.com.br

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    Ao iniciar o atendimento em 2006, atendia 25 crianas no turno vespertino, sem oferta de almoo. Mantinha-se com recursos da comunidade local, empresas parceiras e voluntrios que desenvolviam as atividades educativas. A partir de 2007 o Programa vinculou-se Secretaria Municipal de Assistncia Social, dentro da poltica de proteo social bsica, no Sistema nico de Assistncia Social SUAS, de onde atualmente recebe recursos para execuo de atividades de Jornada Ampliada para famlias que se encontram com os direitos violados e/ou em famlias em situao de vulnerabilidade social14.

    As atividades incluem alimentao, apoio escolar e aes educativas para 50 jovens entre 6 e 16 anos. So desenvolvidas em espao fsico alugado em bairro de periferia da cidade, com 320m2 de rea construda e 380m2 de rea livre.

    Conforme descrito anteriormente e tambm presente na Foto 4, a organizao revela-se com cara de casa, pintada com cor azul e com decoraes nas paredes produzidas pelos prprios participantes.

    A foto mostra principalmente o prdio utilizado pela organizao educativa: de cor azul, janelas brancas e grandes, varandas no piso trreo e no andar superior, colorida com ilustraes e desenhos com motivos infantis e alegres nas paredes. Nas laterais da imagem, a presena do jardim preservado pela organizao, folhagens, grama e rvores.

    14 A Poltica Nacional de Assistncia Social define como pblico da Poltica de Assistncia Social, cidados e grupos que se encontram em situaes de vulnerabilidade e riscos tais como: famlias e indivduos com perda ou fragilidade de vnculos afetivos, excluso pela pobreza e, ou, no acesso s demais polticas pblicas, estratgias e alternativas de sobrevivncia que podem representar risco pessoal e social. (BRASIL, 2004)

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    Foto 4: Prdio da ONG

    Fonte: Arquivo Pessoal de 2009

    O que a imagem no mostra outro espao localizado no lado

    direito da foto, um rancho/galpo de madeira para realizao de atividades de arte e uma horta. Novamente destaco a grama ao redor de toda a casa, o jardim com rvores, sem o muro to presente nas escolas que justificam sua presena em virtude da necessidade de proteger crianas e seus patrimnios. Essa ONG sem muros uma casa aconchegante, e essa condio aparece como intencionalidade no documento da proposta educativa: um espao para aes diversificadas e alternativas quelas oferecidas no ensino regular.

    Dentro da casa os espaos so divididos em: brinquedoteca, sala de dana, espao administrativo e almoxarifado, salas para as turmas nvel 1 (6 e 7 anos), nvel 2 (8 a 9 anos), 3 ( 10 e 12 anos) e 4 (13 a 16 anos).

    No documento Projeto Institucional (2007) consta que a instituio tem por objetivo desenvolver aes socioeducativas que valorizem a infncia e a adolescncia, favoream o processo de ensino-aprendizagem, o acesso ao conhecimento para exerccio da cidadania e a

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    construo de valores ticos, o respeito pluralidade cultural e demais diferenas. Prev a realizao das seguintes atividades:

    Apoio pedaggico; realizao das tarefas todos os dias com orientao de um educador;

    Oferta de alimentao: almoo e lanche; Encontros de tica: uma vez por semana ocorre discusso

    de temas de urgncia social, respeito aos seres humanos, diversidade; Assembleia geral: todas as sextas-feiras, com todos

    discutindo sobre situaes vivenciadas naquele perodo, com foco na convivncia social;

    Brinquedoteca: espao fsico que os jovens freqentam em horrio definido, onde tem acesso a jogos, brinquedos, livros, fantasias, etc;

    Oficinas de artes: desenvolvidas durante toda a semana, conforme o seguinte cronograma:

    Segunda-feira Tera-feira Quarta-feira Quinta-feira Sexta-feira Violo Musicalizao Mosaico Tear Sapateado

    O documento do projeto institucional da ONG indica ainda que a

    organizao prope-se a contribuir para a aprendizagem destes jovens, bem como a garantia de seus direitos sociais; pretende ir alm do acompanhamento escolar, criando espaos para a fantasia, a brincadeira e o desenvolvimento da criatividade (Projeto Institucional, 2007).

    Com relao incluso da arte nas atividades da instituio, o documento reduzido e objetivo: no explicita, por exemplo, de a intencionalidade da incluso da atividade artstica no cotidiano das aes desenvolvidas. Apenas define as atividades artsticas como oportunidade para desenvolver possibilidades de expresso dos sentimentos e pensamentos, sendo que com a msica, a dana e as artes plsticas pretendem trabalhar a coragem, a persistncia, o equilbrio (ibid). Esses aspectos foram investigados no decorrer da pesquisa, no contato com os sujeitos e na busca dos sentidos dessas atividades para eles.

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    3.3. As tesselas 15 do mosaico: relaes entre fragmentos

    Os jovens que participam das atividades artsticas nesta

    organizao tm entre seis e dezesseis anos. Aps os dezesseis anos16, diante das condies socioeconmicas das famlias, os jovens inserem-se em atividades de primeiro emprego e/ou cursos de profissionalizao com apoio e encaminhamentos da instituio.

    Sobre o contexto familiar e social dos jovens atendidos, o documento do projeto institucional da ONG indica que 63% das famlias vinculam-se aos programas assistenciais do municpio e os demais 37% necessitam de aes complementares em contraturno escolar por motivo de trabalho dos responsveis. Os adultos responsveis trabalham como: diarista, costureira, repositor, manobrista, servente de pedreiro, pintor e jardineiro com baixas remuneraes e vnculos informais de trabalho. Destes, 80% no possui ensino fundamental completo.

    Ao elaborar o projeto para a pesquisa em 2009, optei por pesquisar o grupo de jovens que esto entre 10 e 16 anos, integrantes dos Nveis 3 e 4, no perodo vespertino, totalizando 15 jovens. No entanto, no contato com a instituio em 2010 deparei-me com o fato de que alguns dos jovens haviam alterado o perodo de freqncia para o matutino. Por isso optei por realizar alguns procedimentos de pesquisa tambm no perodo da manh, com o objetivo de incluir os jovens que participavam das oficinas artsticas em 2009. E assim os procedimentos para produo de informaes para a pesquisa abrangeram o contato com 28 jovens na faixa etria de 10 a 16 anos, dois professores e a coordenadora.

    Estes 28 jovens com idade entre 10 e 16 anos, participaram da entrevista coletiva ou conversa conjunta17 realizada em dois grupos, nos turnos matutino e vespertino. E destes, quatro participaram de duas entrevistas individuais que descreverei a seguir. Usei como critrio de escolha o modo com que participaram da conversa conjunta, o envolvimento nas discusses e contribuies que desejei aprofundar em um momento singularizado.

    15 Tesselas so os pequenos fragmentos utilizados na composio do mosaico, que podem ser dos mais variados materiais: cermicas, mrmore, granito, pastilhas de vidro, etc. 16 A organizao tem definido como pblico alvo o atendimento at os 16 anos. 17Justifico melhor o uso desse termo ainda nesse captulo do mtodo.

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    Os quatro jovens que participaram desse segundo momento de pesquisa foram Estela, Michele, Kau e Beatriz,18 frequentadores da ONG no contraturno da escola h mais de quatro anos. Todos os quatro estudam em escolas pblicas, so usurios da Poltica da Assistncia Social do Municpio e moram em bairros distantes da regio onde se localiza a ONG, indicada no Mapa 1 com na legenda pelo nmero 11.

    Estela e Michele tm 10 anos, estudam na 5 srie na mesma escola no bairro em que residem na regio Norte da cidade, localidade indicada na legenda do mapa com o nmero 33. Beatriz tem 13 anos, estuda na 7 srie de uma escola pblica na regio Leste da cidade, indicada na legenda do mapa com o nmero 14. E Kau tem 12 anos, mora com seus pais mais sete irmos, quatro maiores de 18 anos que trabalham e auxiliam na renda familiar. Estuda na 5 srie de uma escola de tempo integral no bairro da regio Sudeste de Blumenau, indicada na legenda do mapa com nmero 13.

    A presena do mapa da cidade de Blumenau neste texto tem por objetivo dar visibilidade distancia fsica entre o bairro destes jovens e a ONG, o deslocamento geogrfico que realizam todos os dias e principalmente os encontros entre jovens de diferentes regies de Blumenau que viabilizado com a participao na ONG.

    18 Os nomes dos jovens participantes foram substitudos por estes fictcios, criados por eles no incio dos procedimentos de pesquisa.

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    Mapa 1: Cidade de Blumenau

    Fonte: www.blumenau.sc.gov.br

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    3.4 Entre tesselas e molduras: procedimentos da pesquisa

    Logo nos primeiros contatos com o campo de pesquisa, esclareci

    instituio, pais e responsveis, bem como aos jovens participantes do programa, sobre os objetivos da pesquisa. Solicitei que autorizassem o registro em filmagem e fotografias das atividades desenvolvidas, bem como das entrevistas coletivas e individuais, por meio Termo de Consentimento Livre e Esclarecido - TCLE19, em atendimento aos requisitos do Comit de tica em Pesquisa com seres humanos.

    Para tanto, participei de uma reunio institucional direcionada aos pais e responsveis pelos jovens, com presena de aproximadamente vinte e cinco pessoas, alm de duas professoras e a coordenadora da ONG. Esclareci os objetivos da pesquisa, procedimentos e li o TCLE. Todos os pais ou responsveis aceitaram participar da pesquisa. Foi preciso auxlio no preenchimento do documento, pois muitos eram analfabetos ou tiveram dificuldade para entender onde deveriam assinar. Fiquei pensando na minha responsabilidade tica como pesquisadora com sujeitos que no tm familiaridade com o texto escrito ou habilidade de compreenso da mensagem verbalizada.

    Do mesmo modo, realizei um encontro com cada grupo de jovens, que frequentam a ONG no perodo matutino e vespertino, para esclarecer sobre a pesquisa, convid-los a participar como sujeitos de pesquisa com autorizao de uso das falas e imagens.

    Apesar do Comit de tica exigir apenas o TCLE dos pais ou responsveis de crianas e adolescentes participantes de pesquisas, optei por solicitar autorizao tambm aos meninos e meninas, considerando-os sujeitos no processo de pesquisa e na produo do conhecimento. Isto porque [...] se a autorizao quem d o adulto, e no a criana, cabe indagar mais uma vez: ela sujeito da pesquisa? Autoria se relaciona autorizao, autoridade e autonomia. (KRAMER, 2002, p. 53).

    Na mesma ocasio combinamos que escolheriam outros nomes para identific-los na dissertao, como modo de garantir o sigilo das opinies que emitiriam nas nossas conversas. Por meio dessa atividade foi possvel provocar processos criativos, inventivos. Muito rapidamente os meninos e meninas inventaram seus nomes: nomes de jogadores de

    19 Possvel de visualizao no Apndice 2 e 3.

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    futebol, como Ronaldo; de cantoras famosas, como Ivete Sangalo, e outros nomes. Uma delas justificou que no gostaria de mudar seu nome, pois conforme sua me havia lhe contado, era o nome de uma rainha muito importante e justa e tinha orgulho de ser chamada assim.

    Iniciei a coleta de informaes com a caracterizao da proposta educativa para conhecer o contexto em que as atividades artsticas ocorriam. Para tanto, alm da anlise do documento institucional descrito anteriormente, ocupei-me da observao participante no cotidiano da instituio, registrada em dirio de campo e fotografias.

    Uma das observaes foi realizada na oficina de violo com trs jovens de cada. A professora conduzia calmamente a atividade, circulava entre eles, atendendo-os individualmente. Eles cansavam, queixavam-se que o dedo doa e continuavam tentando. A professora explicou que trabalham meia hora por semana e por isso o resultado no conforme suas expectativas. Ao final os meninos ficaram pedindo pra levar o violo pra casa, que j falaram pra todo mundo em casa que iriam levar e ainda nada o que indicava a implicao deles no processo de aprender a arte da msica e o desejo do olhar de acabamento de seus familiares.

    Segui observando e registrando as atividades artsticas de mosaico e musicalizao, por meio de filmagens e fotografias, assim como as objetivaes artsticas produzidas pelos jovens. E em cada situao o mergulho nas mincias, nos vestgios das relaes estabelecidas ali e dos lugares sociais destinados a esses jovens em diversos contextos era evidenciado.

    Em um destes momentos, cheguei ONG quando estavam no lanche, sentei e fiquei conversando com os meninos que estavam todos juntos no refeitrio. Trs meninas estavam na minha frente, uma de 9 anos, e duas de 8 anos. A menina de 9 anos, me chamou de professora e pediu um beijo. Eu dei, disse que no era professora, apenas visitante. Perguntei se elas gostavam de visitantes. A menina respondeu que sim, s n