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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE SANTA CRUZ – UESC
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA – UFBA
EDWALDO SÉRGIO DOS ANJOS JÚNIOR UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A RELAÇÃO CULTURA - TURISMO EM
PORTO SEGURO – BA: REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE
ILHÉUS – BA
2008
i
EDWALDO SÉRGIO DOS ANJOS JÚNIOR
UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A RELAÇÃO CULTURA - TURISMO EM
PORTO SEGURO – BA: REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE
Dissertação apresentada ao Mestrado em Cultura & Turismo, da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC e Universidade Federal da Bahia – UFBA, como requisito para a obtenção do título de Mestre. Orientadora: profª. Dra. Ana Claudia Cruz da Silva
ILHÉUS – BA 2008
ii
EDWALDO SÉRGIO DOS ANJOS JÚNIOR UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A RELAÇÃO CULTURA - TURISMO EM
PORTO SEGURO – BA: REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE
Ilhéus – BA, 25/03/2008.
___________________________________________ Ana Claudia Cruz da Silva – Dr.
UESC/ DFCH
___________________________________________ Wladimir da Silva Blos – Dr.
UESC/DFCH
____________________________________________ Euler David de Siqueira – Dr.
UFJF/ICHL
iii
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho à minha família, especialmente à minha mãe, cujo apoio
incondicional foi essencial para a consolidação deste projeto.
iv
AGRADECIMENTOS
Ao Mestre, pela oportunidade de crescimento.
À Carolinne, pela paciência e compreensão.
Ao Abel, sem o qual tudo isso não seria possível.
À minha orientadora, não só pela sua amizade, mas por apresentar alternativas até
então desconhecidas por mim.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela
concessão da bolsa de mestrado.
À Coordenação do Mestrado, pela colaboração e pelo profissionalismo.
A todos os amigos, pelo incentivo.
v
UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE A RELAÇÃO CULTURA - TURISMO EM
PORTO SEGURO – BA: REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE
RESUMO
A pesquisa que deu origem a este trabalho teve o objetivo de captar quais elementos culturais são privilegiados e apresentados aos turistas pelo trade turístico de Porto Seguro, segundo destino turístico do Estado da Bahia. Para tanto, partiu-se da hipótese de que há certos elementos da cultura privilegiados pelo setor turístico porto-segurense que são, em geral, definidos a partir do conceito de baianidade. Este significa a existência de uma “cultura típica da Bahia” largamente acionada pelo setor de turismo estadual, e que é empregada como uma espécie de síntese não só da cultura no Estado, mas da experiência turística realizada em cidades baianas, inclusive em Porto Seguro. Além da pesquisa bibliográfica, este trabalho também se utilizou do método etnográfico, com observação participante junto a turistas na cidade de Porto Seguro. A investigação demonstrou que o recurso a categorias como “baianidade” ou “identidade baiana” não é útil para explicar as relações estabelecidas a partir do turismo na cidade, seja com relação aos turistas, seja com relação aos moradores. Por mais que os turistas possam ser agrupados em categorias e tipologias, e ainda que apresentem certos padrões de comportamento, eles não constituem uma massa homogênea, pois apresentam formas singulares de interpretar o quê experimentam na atividade turística, inclusive do que significa “ser baiano”. Palavras-chave: Porto Seguro – BA, baianidade, cultura, turismo, etnografia.
vi
A ANTHROPOLOGICAL LOOK ON THE RELATION CULTURE - TOURISM IN PORTO SEGURO – BA: REFLECTIONS ON THE BAIANIDADE
ABSTRACT
The research that gave origin to this work had the objective to define which cultural elements are privileged and presented to the tourists by the tourism trade in Porto Seguro, second tourist destination in the Bahia State. For such, we implemented the hypothesis that there are certain cultural elements that are privileged, in general, defined from the baianidade concept. This implies the existence of a "typical culture of Bahia" vastly promoted by the Tourism state sector, and that it is used as a type of definition not only of the culture in the State, but the tourist experience in Bahian cities, including Porto Seguro - BA. Beyond the bibliographical research, this work also used of ethnographic method, with the participating observation of tourists in the city of Porto Seguro - BA. The investigation demonstrated that the use of categories such as baianidade or bahian identity are not useful to explain the relation established in the tourism in the city in relation to the tourists, or its inhabitants. Even considering that the tourists can be grouped in categories and tipologies, and still considering that they present certain behavioral standards, these do not constitute a homogeneous group, since they present unique ways to interpret what they see and feel in the tourist activity, including the meaning of “to be a bahian”. Keywords: Porto Seguro – BA, baianidade, culture, tourism, ethnography.
vii
LISTA DE FIGURAS
1 Estado da Bahia – localização de Porto Seguro............................................ 60
2 Matéria jornalística sobre Porto Seguro......................................................... 69
3 Programação detalhada do Carnaporto 2007................................................ 112
viii
LISTA DE TABELAS
1 Fluxo global de turistas em Porto Seguro entre 1993 e 1999.......................... 81
ix
SUMÁRIO Resumo........................................................................................................ v
Abstract........................................................................................................ vi
Lista de Figuras............................................................................................ vii
Lista de Tabelas........................................................................................... viii
INTRODUÇÃO............................................................................................. 1
1 BAIANIDADE: A CULTURA QUE SE TORNOU ATRATIVO
TURÍSTICO.................................................................................................. 16
1.1 A cultura como recurso econômico na prática do turismo........................... 19
1.2 Nas trilhas da baianidade........................................................................... 24
1.2.1 Salvador: uma metonímia da Bahia?........................................................... 24
1.2.2 As primeiras representações da “típica” cultura baiana: o surgimento dos
suportes estéticos da baianidade................................................................ 27
1.2.3 As políticas públicas de valorização do patrimônio nacional, o mito da
democracia racial e a política externa pós-50.............................................. 35
1.3 A baianidade como construção do trade turístico........................................ 43
1.3.1 Reafricanização do carnaval de Salvador.................................................... 44
1.3.2 A negritude e a política................................................................................ 48
1.3.3 Ascensão do turismo.................................................................................... 51
1.3.4 A costura de todo o legado estético/artístico............................................... 54
2 PORTO SEGURO: HISTÓRIA, POLÍTICAS PÚBLICAS E
TURISMO.....................................................................................................
58
2.1 Aspectos geográficos de Porto Seguro........................................................ 60
2.2 Porto Seguro: esquecimento e estagnação econômica (1534-1960).......... 61
2.3 Porto Seguro: dos hippies ao turismo de massa (1960 aos dias atuais)..... 67
2.3.1 Década de 80: princípio dos problemas....................................................... 72
2.3.2 Década de 90: consolidação do destino e o Prodetur-NE........................... 73
2.3.3 Conseqüências do Prodetur-NE e a eclosão de novos problemas em
Porto Seguro................................................................................................
79
2.3.4 O processo de segregação em Porto Seguro.............................................. 82
x
2.3.5 A grande dependência do turismo e o descontentamento dos moradores.. 85
3 NOTAS ETNOGRÁFICAS SOBRE O TURISMO EM PORTO SEGURO... 92
3.1 O turista “de massa” e a idéia de manipulação............................................ 93
3.2 Os mediadores da viagem........................................................................... 102
3.3 Viagens ao campo....................................................................................... 107
3.3.1 Primeiras impressões.................................................................................. 107
3.3.2 O mês de fevereiro, o carnaval e as descobertas....................................... 109
O Carnaporto............................................................................................... 110
Carnaporto 2007 Indoor............................................................................... 113
Os blocos tradicionais.................................................................................. 114
3.3.3 Os trajetos dos turistas no carnaval de Porto Seguro.................................. 117
Passarela do Álcool..................................................................................... 117
Cidade Alta................................................................................................... 120
A cultura afro-brasileira na Cidade Alta: as apresentações de capoeira..... 121
A relação dos turistas com o patrimônio histórico-cultural de Porto
Seguro.........................................................................................................
123
Sobre os guias de Porto Seguro................................................................. 125
3.4 Os pacotes turísticos.................................................................................... 128
Embarque, dia 29/07.................................................................................... 129
Segunda-feira, dia 30/07.............................................................................. 131
As cabanas e as praias................................................................................ 132
Terça-feira, dia 31/07................................................................................... 135
Quarta-feira, dia 01/08................................................................................. 137
Quinta-feira, dia 02/08.................................................................................. 138
Sexta-feira, dia 03/08................................................................................... 140
Sábado, dia 04/08........................................................................................ 141
Domingo, dia 05/08: o retorno para casa.................................................... 142
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 143
REFERÊNCIAS........................................................................................... 153
ANEXO........................................................................................................ 160
1 INTRODUÇÃO
O caráter turístico dos lugares não está dado de antemão. Há de se ter
consciência desse fato para que se descortine aos nossos olhos o processo que
leva um dado local a se tornar, às vezes um tanto quanto subitamente, um destino
turístico. Um ponto capital desse processo, designado por Castro (2002) como uma
“construção cultural” (p. 81), é concernente à seleção de narrativas, imagens e
lugares específicos daquela realidade. Assim, há a construção de todo um “sistema
integrado de significados por meio dos quais a realidade turística de um lugar é
estabelecida, mantida e negociada” (idem).
No fundo, o quê se pode depreender desse processo de construção cultural
de lugares turísticos diz respeito à existência de diferentes visões sobre a cultura
dos grupamentos a que se visita passíveis de se tornarem “turísticas”. Algumas
delas, ou mesmo uma única visão sobre essa cultura, acabam por serem
privilegiadas para os turistas dentre outras leituras existentes no próprio tecido
social. Santos (2005) demonstra como isso acontece ao pensar a respeito da cultura
no caso da Bahia: existe uma dada imagem do Estado, dos habitantes e da cultura
dos mesmos, potencializadas para o mercado turístico. Trata-se de uma “leitura
cultural”, entre outras possíveis (p. 88).
A partir da consideração acima, percebe-se que a construção de uma imagem
turística de um local, baseada em seleções, necessariamente passa por uma
concepção naturalizada da cultura. Ou seja, aqueles traços, valores e paisagens
privilegiados pelo turismo tornam-se algo “inerente” ao modo de vida de todas as
pessoas de dada localidade turística. Essa idéia, comum na área do Turismo,
contraria o caráter de diversidade existente em um mesmo grupo. Para que essa
concepção homogênea de cultura seja efetivada, é preciso que se realize a
supressão das diferenças internas ao próprio grupamento, ainda que essas não
deixem de existir.
Articulando as duas concepções – pluralidade das comunidades e existência
de leituras privilegiadas da cultura para o turismo – eis que podemos lançar luz
sobre uma questão importante: a exposição das “identidades”. Algo feito não só em
relação aos lugares turísticos, mas em relação às próprias pessoas que ali habitam,
2
movimento que parece definir naturalmente a “alma” de um lugar e as características
dos anfitriões.
No caso da Bahia, há a conformação de uma forma de “auto-representação
dos baianos” (PINHO, 1998, p. 1), em que “vende-se uma certa cultura baiana’”
(PINTO, 2003, p. 3) ou um “viver baiano” (SANTOS, 2005, p. 89), representações
acionadas pelo turismo, entendido como um setor estratégico para o governo
estadual a partir dos anos de 1970. Essa “cultura baiana” apresentada pelo turismo
é baseada em uma “imagem idealizada de uma Bahia típica” (PINTO, 2003, p. 5)
que, conseqüentemente, desencadeia uma representação calcada em um dado
modelo da cultura, o qual resulta de um conjunto de ações efetivadas pelo trade
turístico estadual, com destaque para a administração pública baiana, capaz de
seccionar algumas manifestações culturais do contexto soteropolitano e, após várias
ações, vinculá-las a um paradigma do que seja a Bahia. Embora não tenha sido uma
ação destinada unicamente a incrementar o turismo no Estado, foi, contudo,
fortemente influenciada por esse fim. Esta representação da cultura na Bahia, bem
como de “padrões culturais vindos do povo [baiano]” (SANTOS, 2005, p. 88) e,
conseqüentemente, seu modo de vida “típico”, é comumente designada de
baianidade.
A estruturação da idéia de baianidade, a partir de autores como Pinho (1998),
Moura (2001), Pinto (2001, 2002, 2003), Barbalho (2004), Santos (2005) e Bomfin
(2006), pode ser apontada, em termos gerais, nos seguintes termos: ações
constituintes de um projeto político-ideológico de parte das elites baianas iniciado no
final da década de 1960 e início dos anos de 1970 e que, ao visarem obter
dividendos políticos e econômicos, buscaram (e ainda buscam) constituir uma
síntese de uma “cultura baiana típica” baseada em um seccionamento e posterior
rearranjo de manifestações culturais pontuais – carnaval, capoeira e candomblé;
“traços culturais” relacionados à população negra – sensualidade, malemolência – e
suportes artísticos específicos – literatura e música de massa – reunidos na
paisagem soteropolitana. Este projeto político-ideológico sempre esteve intimamente
ligado ao turismo, pois um dos desencadeadores desse conjunto de ações foi
justamente a busca de um “diferencial turístico” imbuído de uma “herança africana”
(SANTOS, 2005, p. 88) da Bahia, mais especialmente de Salvador.
Entende-se, portanto, que estamos diante de uma “leitura cultural” específica
e que privilegia alguns componentes presentes no tecido social agenciando-os e, ao
3
potencializá-los como a “cultura baiana típica”, acabam por encopassar toda uma
diversidade sociocultural presente na Bahia.
O que se deseja chamar a atenção aqui é o fato pelo qual esses processos de
construção cultural de lugares turísticos são levados a efeito. Que motivações
escondem? E quem realiza esse processo de selecionar dadas partes do patrimônio
de um lugar em detrimento de outros componentes da cultura? E com que
legitimidade aponta-se quais dados “padrões culturais’ (SANTOS, 2005, p. 88) são
“baianos” e outros não? E o quê é “ser baiano”? Quais manifestações culturais
permanecem à sombra de representações “oficiais”? O presente trabalho tem essas
preocupações como pano de fundo, em especial quando voltadas para o contexto do
turismo no Estado da Bahia.
Não obstante, há no termo baianidade e em seu vínculo histórico ao turismo
soteropolitano uma contradição semântica contida no próprio vocábulo, pois, embora
a categoria faça menção a uma noção de Estado, isto é, à Bahia, a categoria foi,
contudo, historicamente vinculada a Salvador pelo setor turístico do Estado. Tanto é
que, dentre as várias análises existentes sobre a questão da baianidade, a maior
parte delas tem como lócus de estudo a realidade soteropolitana, até porque, até os
anos de 1950, Salvador ocupou uma posição de ampla hegemonia econômica no
Estado, sendo, muitas vezes, tida como uma espécie de síntese do que seja a Bahia
(FREITAS, 2000). Ainda que a realidade socioeconômica seja hoje diversa daquela
que existiu ao longo da primeira metade do século XX, na medida em que houve o
florescimento econômico e aumento da importância geopolítica de outras regiões, há
poucas análises sobre a relação entre cultura e turismo, tendo como um dos eixos a
baianidade, em outra cidade turística do Estado.
O objetivo deste trabalho foi, então, apreender quais elementos culturais são
privilegiados pelo trade turístico de Porto Seguro e, conseqüentemente,
apresentados aos turistas, partindo-se da hipótese de que a “leitura cultural”
empreendida salienta certas manifestações culturais e omite outras.
Como objetivos específicos da pesquisa que resultou neste trabalho,
tínhamos: i) debater as relações entre cultura, turismo e esferas de poder na Bahia a
partir da década de 1970, momento em que o turismo passa a ser entendido como
um setor estratégico pelo governo estadual; ii) traçar um histórico da noção de
baianidade, bem como os suportes e ações que dão sustentação a essa concepção
naturalizada da cultura na Bahia; iii) apresentar um histórico do turismo em Porto
4
Seguro; iv) apreender quais manifestações culturais são privilegiadas pelo trade
turístico de Porto Seguro; v) apresentar quais são as opiniões, expectativas e
julgamentos dos turistas sobre a relação turismo-cultura em Porto Seguro.
Portanto, a preocupação central deste estudo foi compreender como a cultura
é entendida e trabalhada pelo setor turístico de Porto Seguro, o segundo destino
turístico do estado. E essa discussão, necessariamente, passa pelo conceito de
baianidade, pois é impossível estudar a relação entre cultura e turismo na Bahia sem
considerar as referências que vários pesquisadores fazem à baianidade, seja para
compreendê-la, seja para relativizar sua validade1. A despeito de singularidades
presentes nos diferentes estudos, as reflexões são unânimes em reconhecer a força
que essa idéia possui, na medida em que “se tornaria o maior ativo da economia do
turismo” (PINTO, 2003, p. 3) na Bahia. Algo que corrobora ainda a tese de que uma
“cultura baiana” seria utilizada como diferencial de mercado é encontrada no estudo
de Pinho (1998, p. 7) ao considerar que:
A consciência de que o “exotismo” se vende com uma mercadoria, na forma de pacotes de turismo ou de bens de cultura, é pacificamente reconhecida por vários dos principais agentes interessados em promover a Idéia de Bahia.
Mais do que isso, o trabalho de Grunewald (2001) em que há a afirmação de
que o conceito de baianidade pode ser aplicado a Porto Seguro, que “[...] o único
marketing cultural patrocinado por agentes externos na região é o da baianidade” (p.
48), foi o que nos levou a desejar refletir como e em que medida isso realmente
acontece e a buscar vislumbrar pontos de contato entre as diversas representações
da baianidade existentes. Seu trabalho nos coloca diante de um novo dado para a
reflexão: a utilização do termo em outra região do Estado da Bahia, que, ao longo da
história, sempre manteve estreitas relações com outras áreas de fronteira, tais como
Minas Gerais e Espírito Santo, e que só recentemente, isto é, após a década de
1970, se inseriria pungentemente na dinâmica econômica estadual.
Ainda de acordo com Grunewald (2001), a idéia de baianidade em Porto
Seguro seria “hegemônica” dada a sua força e recorrência. Para ele, a experiência
turística do município localizado no Extremo-Sul baiano estaria calcada em quatro
pilares básicos capazes de sintetizar as práticas turísticas ali existentes, sendo, ao
1 Ver, entre outros, Pinho (1998); Moura (2001); Pinto (2001, 2002, 2003); Barbalho (2004); Santos (2005); Bomfin (2006).
5
mesmo tempo, elementos-síntese da baianidade, isto é, teriam uma conotação
emblemática ao demarcar como legitimamente baianas algumas poucas
manifestações culturais. Esses elementos-síntese da cultura local seriam aqueles
privilegiados pelo setor do turismo – inclusive a administração pública – local: “a
morenidade; a história e suas diversas atrações, a mulher e o Sol” (p. 48). Assim,
estaria caracterizado aquilo que, segundo o autor, seria a “baianidade hegemônica”.
O paradigma proposto pelo autor não será adotado neste trabalho, justamente
porque nosso objetivo foi descobrir quais elementos culturais seriam privilegiados
pelo trade turístico local. A obra de Grunewald (2001) nos serve como base para
comparações e, sobretudo, como ponto de partida para a reflexão empreendida.
A investigação que deu origem a este trabalho desejava vislumbrar também
até que ponto questões relativas à baianidade poderiam ser discutidas em outro
contexto turístico relevante do Estado. A escolha de Porto Seguro, o segundo
destino turístico da Bahia e uma das cidades mais identificadas com o turismo no
litoral brasileiro, não foi à toa. O município, segundo expectativa da Bahiatursa –
Empresa de Turismo da Bahia S/A. – e da Secretaria de Cultura e Turismo da Bahia
– SCT –, atingiu a marca de quase um milhão e meio de visitantes no ano de 2007.
Isto significa que há aí investimentos do próprio governo estadual, além de
empresas de turismo de porte nacional que poderiam, segundo a nossa hipótese,
homogeneizar suas ações em Porto Seguro, tomando Salvador como modelo em
função da concepção de baianidade.
A novidade do trabalho que ora apresentamos é a perspectiva por ele
adotada, diferente dos demais trabalhos existentes sobre turismo em Porto Seguro
ou sobre a baianidade em Salvador. Trata-se do ponto de vista dos turistas. Ora, se
entendermos que a construção dessas leituras culturais foi realizada também para a
atividade turística, faz todo sentido considerar uma análise sobre a forma pela qual o
turismo se faz valer da cultura de dado lugar. Além disso, ao se ter em conta que
tudo é organizado para os turistas, é importante levar em consideração a forma pela
qual esses indivíduos se articulam em face desse movimento de privilegiar dadas
manifestações culturais. Associada a isso, a construção de um relato etnográfico de
um pacote turístico em Porto Seguro, momento de contato com os visitantes,
evidencia a conotação inédita desta pesquisa.
A perspectiva antropológica será adota neste estudo como viés analítico de
toda a investigação. Entende-se que a Antropologia é a melhor escolha para tratar
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do tema face ao seu enfoque relativizador; sua preocupação em compreender o
homem em sua totalidade, além do trabalho de campo que põe o pesquisador em
contato direto com aqueles sobre quem estuda. Estes pressupostos irão nortear a
presente análise.
Sendo assim, é importante compreender de que forma tanto a cultura quanto
o turismo são vistos pelo pensamento antropológico.
Utilizar o conceito de cultura sob a ótica da Antropologia é particularmente
relevante devido a três fatores: em primeiro lugar porque o turismo é uma prática
social calcada no contato intercultural, o que demanda que se conheça o que é
cultura; em segundo lugar porque, em muitos momentos, os estudiosos do próprio
turismo utilizam essa categoria de maneira parcial, limitada, por último, o próprio fato
dos estudos turísticos ainda não se constituírem em uma disciplina (PANOSSO
NETTO, 2005, p. 41), o que acarreta ao campo ainda não possuir seus próprios
conceitos. Isto, por si só, reforça o movimento realizado pelos pesquisadores do
turismo em buscar aportes teóricos de outras áreas do conhecimento. De nossa
parte, optamos pelo uso do arcabouço teórico – categorias, conceitos e
metodologias – oriundos da Antropologia.
No que tange à cultura, é inegável que este conceito é polissêmico. Aliás,
esta não é uma constatação nova, visto não ser de hoje que muitos teóricos vêm
debruçando-se sobre esse vocábulo com o intuito de forjar uma definição capaz de
contemplar tudo o quê essa categoria abarcaria.
Geertz (1989, p. 56), ao propor uma idéia de cultura essencialmente
semiótica, crítica o conceito “[...] como [constituída por] complexos padrões
concretos de comportamento – costumes, usos, tradições, feixes de hábitos”,
embora o próprio autor reconheça que tal visão ainda se faça presente nas Ciências
Sociais. Um entendimento de cultura mais coerente daria-se ao levar em
consideração que esta seria antes “[...] um conjunto de mecanismos de controle –
planos, receitas, regras, instruções – para governar o comportamento”. O conteúdo
dessa citação está intimamente associado à outra idéia defendida por Geertz: a de
que o homem é um animal que precisa de tais mecanismos de estruturação e
controle que estariam fora dele, isto é, seriam extragenéticos. Portanto, a cultura
seria aquele interstício entre um homem dotado somente de capacidades inatas e o
conjunto de suas realizações reais (p. 57-58). A concepção de cultura proposta por
Geertz, de natureza essencialmente hermenêutica, concebe que o homem é
7
resultado de teias de significado que ele próprio teceu e em função das quais ele
vive. Uma passagem de outro estudioso vai ao encontro dessa proposição:
Assim, não caracteriza o comportamento humano uma articulação automática entre necessidade e resposta, já que estará sempre presente uma mediação simbólica. É esta mediação que pode ser considerada como a instância da cultura. Não é, portanto, um espaço, eventualmente superior, situado além das necessidades básicas do ser humano, mas uma forma de proceder no interior profundo de todas as necessidades (MENESES, 1996, p. 91).
É a cultura que organiza a experiência do homem e ordena, mediante
símbolos, o próprio comportamento dos sujeitos. Além disso, outra perspectiva
teórica cara a esse estudo diz respeito à tese que refuta o entendimento da cultura
como um mero demarcador da diferença, algo questionado por Sahlins (1997).
A discussão travada na presente pesquisa sobre a relação entre cultura e
turismo terá, assim, quatro eixos fundamentais, a saber: Porto Seguro, baianidade,
cultura e turismo.
Após a apresentação dos três primeiros eixos – Porto Seguro, baianidade e
cultura –, resta-nos situar o leitor quanto ao conceito de turismo que utilizamos neste
trabalho.
A despeito da consideração de ser uma prática econômica das mais
relevantes para a economia mundial (GOELDNER; RITCHIE; MCINTOSH, 2002, p.
63), o presente estudo evidencia outras facetas da atividade turística: a sua
complexidade e a sua característica de rompimento com o cotidiano, na medida em
que aquilo que é buscado pelos turistas é algo de cunho singular, extraordinário.
Quanto à complexidade do turismo, ressalta-se o vínculo com a abordagem
fenomenológica de Moesch (2002), para quem o turismo não pode ser reduzido
somente à sua dimensão econômica, ambiental ou mesmo histórica. Pelo contrário,
a autora compreende a prática turística de forma plena, o quê acarreta conceber
toda a diversidade de elementos que lhe constituem. Assim, o Turismo pode ser
resumido como
Uma combinação complexa de inter-relacionamento entre produção e serviços, em cuja composição integram-se uma prática social com base cultural, com herança histórica, a um meio ambiente diverso, cartografia natural, relações sociais de hospitalidade, troca de informações interculturais. O somatório desta dinâmica sociocultural gera um fenômeno, recheado de objetividade/subjetividade, consumido por milhares de pessoas como síntese [...] (p. 9). (grifo meu).
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O mesmo movimento de compreensão holística do fenômeno é realizado por
Santana (1997):
O Turismo se insere dentro das necessidades de expansão econômica, social, cultural, política e psicológica das sociedades ocidentais de concentração e de formação dos excedentes necessários, potencializando o desenvolvimento das comunicações e dos deslocamentos humanos coletivos, não forçados, como válvula de escape ao seu próprio stress (p. 19).
Um ponto particularmente caro ao debate proposto nesta dissertação é
enfocado por ambos os autores citados: o viés “cultural” das definições. Esse recorte
se faz necessário, visto que a análise sobre todas as dimensões – psicológica,
política, ambiental, econômica etc. – do fenômeno turístico em Porto Seguro é algo
que transcende os objetivos deste trabalho.
O esforço epistemológico por reconhecer que o Turismo, ao se aportar nos
sujeitos e suas respectivas culturas, não meramente uma “indústria sem chaminés”,
mas antes uma prática social (MOESCH, 2002, p. 31) calcada em sujeitos diferentes
– o autóctone e o turista –, é o quê norteará este trabalho. Sempre que necessário e
possível, ressaltaremos a dimensão econômica do Turismo em Porto Seguro,
cientes, no entanto, que esse não é o nosso principal foco. O objetivo é menos
economicista e mais humanista, ao levar-se em conta que o “epicentro do fenômeno
turístico é de caráter humano” (p. 13).
Ainda ligado ao conceito de turismo, é importante situar o leitor em relação à
definição de trade turístico, expressão que perpassará toda a análise e que é
entendida, em muitas ocasiões, apenas como o conjunto de agentes privados que
atuam na área de serviços turísticos, ou seja, uma espécie de sinônimo para o setor
empresarial do turismo. Contudo, no presente estudo, ressalta-se que
compreendemos como trade turístico as “organizações privadas e governamentais
atuantes no setor”, de acordo com a definição do glossário da Embratur contido no
site Ministério do Turismo2. Assim, expande-se o entendimento geral acerca desse
conceito, ao trazer à baila a administração pública vinculada ao turismo.
De maneira mais objetiva, o estudo considera que, dentre o trade turístico de
Porto Seguro, alguns atores são fundamentais, a saber: A Bahiatursa, autarquia
estadual de turismo; a SCT – Secretaria de Cultura e Turismo; a Prefeitura de Porto
Seguro; a Secretaria Municipal de Turismo; empresas aéreas como TAM e Gol;
2 Disponível em: <http://www.turismo.gov.br> . Acesso em: 10 dez. de 2006.
9
operadoras e agências turísticas, com destaque para a CVC; sites e revistas de
turismo relacionados a Porto Seguro. Enfim, embora seja possível identificar muito
mais atores vinculados ao trade turístico em questão, dada a sua amplitude, não foi
feito inicialmente um recorte para concentrar as atenções nas ações desse conjunto,
e que, de maneira lógica, pode-se considerar que não sejam uniformes. Todavia, ao
longo dos três capítulos, o leitor poderá identificar, de forma natural, as empresas e
órgãos públicos mais caros ao debate, bem como as representações da cidade, dos
porto-segurenses e da cultura local mais acionadas por eles.
Ao pensarmos aqui em trade turístico da Bahia, ou de Salvador, ou até
mesmo de Porto Seguro, evidencia-se que não nos atemos, neste caso, à divisão
geopolítica do Estado ou das cidades. Consideramos que, diante dos crescentes
avanços tecnológicos atualmente em voga, dentre os quais os setores de
transportes e de comunicação, o trade turístico vinculado à Bahia é composto
também por firmas de escala nacional e até mesmo internacional, e que sequer
estão sediadas em Salvador. A operadora CVC, as companhias aéreas TAM e Gol –
cujas sedes estão em São Paulo – e até mesmo cadeias de hotéis internacionais
presentes não só em Salvador, mas em todo o Estado, são exemplos disso.
Desde já, entende-se aqui ser o trade turístico, ou melhor, parte dele o
responsável pelo agenciamento, rearranjo e potencialização de uma dada imagem
turística, que, segundo Solha (1999), seria “o resultado dos julgamentos e valores
que os indivíduos atribuem aos seus elementos” (p. 11). Essa responsabilidade pode
ser atribuída pela própria amplitude do trade, que contempla desde órgãos públicos
até o setor de publicidade turística. O desafio posto está em especificar quais atores
são esses que, no caso de Porto Seguro, privilegiam uma dada imagem da cidade e,
concomitantemente, da cultura dos anfitriões.
Resta-nos, agora, apresentar qual foi a proposta metodológica adotada na
execução desta pesquisa.
Como todo estudo acadêmico, foi realizada uma revisão bibliográfica capaz
de contemplar os eixos temáticos mais relevantes para a pesquisa: turismo, em que
pese um olhar sobre o turismo de massa, Porto Seguro e baianidade. Nota-se,
nesses trabalhos, uma ausência do olhar do turista sobre sua prática. Esta
dissertação visa a complementar essa lacuna ao discutir os três eixos temáticos
acima mencionados partindo de um trabalho de campo inspirado menos na idéia de
pesquisar a cidade, enquanto unidade de análise, e mais voltado às diferentes
10
práticas realizadas na cidade (MAGNANI, 2002, p. 25). Neste caso, a prática que
nos interessa em Porto Seguro é o turismo.
Além de lançar mão da pesquisa bibliográfica e da técnica da observação
participante (MAGNANI, 2002) ou pesquisa participante (DENCKER, 1998, p. 128;
BOWEN, 2002, p.10) com turistas, esta pesquisa se fez valer do manejo de dados
secundários contidos em documentos, além do uso de jornais e publicações da
cidade. Assim, as pesquisas existentes da Secretaria de Turismo de Porto Seguro e
da Bahiatursa não foram descartadas. O uso de dados quantitativos dos mesmos
teve um papel bem circunscrito neste estudo: antes de atestarem um dado estado de
coisas, eles foram utilizados para ilustrar as percepções/constatações ou para negar
hipóteses.
Embora em um primeiro momento as estatísticas e os dados históricos
possam parecer elementos periféricos frente aos objetivos desta pesquisa, em
especial ao buscarmos identificar, a partir da perspectiva dos turistas, que elementos
culturais são privilegiados pelo trade turístico da região, ressalta-se que sua
utilização é necessária menos em termos de apresentarmos um cenário onde as
ações se passam e mais no sentido de reconhecer que tudo isso ajuda a entender
relações existentes entre moradores e área pesquisada, versões da história já
contadas, de hierarquias sociais existentes. Conhecer esses elementos propicia um
melhor entendimento das relações sociais estabelecidas entre os diferentes grupos
(SILVA, 2004, p. 66), na medida em que se trazem para o centro das atenções
perspectivas outras além daquelas ditas “oficiais” dos fatos apresentados. Há aí um
alargamento do olhar sobre Porto Seguro ao contemplar também a forma como os
“outros” buscam compreender o quê lá se passa. Com isso, mesmo que o foco da
presente análise esteja centrado no olhar do turista, não se descarta aqui a inserção
de visões de mundo dos moradores, empresários e políticos de Porto Seguro.
É preciso salientar que esta pesquisa não se trata de um estudo da cidade,
mas um estudo na cidade, parafraseando a máxima no qual “os antropólogos não
estudam as aldeias (tribos, cidades, vizinhanças), eles estudam nas aldeias”
(GEERTZ, 1989, p. 32). Ou seja, o lócus do estudo, portanto, não é
necessariamente o objeto do estudo.
Os objetivos a serem alcançados no presente estudo só poderão dar-se a
partir do trabalho de campo ao reconhecer efetivamente quem são aqueles que (re)
produzem os discursos, leituras e interpretações culturais, dentre os quais, está
11
presente o da baianidade. Seriam apenas as empresas e órgãos estatais
componentes do trade turístico? Instâncias antes do que pessoas? E como o
constroem? Os discursos e imagens, lugares e manifestações culturais são
apreendidos pelos turistas?
O trabalho de campo em Porto Seguro foi subdivido inicialmente ao longo de
três meses do ano de 2007: fevereiro, contemplando assim o carnaval; julho e,
conseqüentemente, a alta estação; e outubro, mês de baixa temporada em que se
desejava observar a dinâmica turística da cidade. Ressalta-se que havia o desejo de
realização de um pacote turístico ao longo do ano para estar mais próximo dos
turistas, algo que foi confirmado após 22 dias em campo durante o mês de fevereiro.
Constatado isso, foi incorporado ao trabalho, como um dos objetivos específicos, a
realização de um relato etnográfico dessa viagem. Apesar de não se considerar esse
ritmo descontínuo o ideal, o planejamento foi mantido dessa forma devido ao curto
tempo para a realização da pesquisa, a falta de apoio financeiro para o trabalho de
campo e à própria dinâmica turística da cidade.
O trabalho de campo concentrou-se em alguns espaços considerados mais
turísticos da cidade: a Passarela do Álcool3 e a Cidade Alta e, em menor escala, três
cabanas de praia – Barramares, Axé Moi e Tôa-Tôa. O foco sobre estses pontos
deu-se, sobretudo, ao longo do mês de fevereiro, pois o restante do trabalho de
campo seguiu outra lógica, o quê não significa a exclusão desses lugares.
Assim, apesar de estruturar o trabalho de campo previamente, ao chegar a
campo, diante das dificuldades, houve a necessidade de ajustes metodológicos para
a obtenção de dados.
O primeiro desafio enfrentado, em termos pragmáticos, na pesquisa de
campo, é referente ao fato de a “população” aqui em questão, no caso os turistas,
serem indivíduos marcados por enorme fluidez e mobilidade, a exemplo do trabalho
de Almeida & Tracy (2003) ao analisar a dinâmica relação dos jovens cariocas da
night no Rio de Janeiro.
As autoras, ao se depararem com um problema metodológico semelhante,
relativo à grande mobilidade desses jovens, entendidos como um “objeto fluido que
3 A Passarela do Álcool se parece com um corredor comercial, localizado no centro de Porto Seguro. É uma faixa territorial que tem aproximadamente 2 km e concentra uma gama de barracas, lojas e opções de entretenimento. É o ponto mais procurado pelos turistas à noite, seja para adquirirem lembranças, seja para se divertirem. Ver Anexo A.
12
se expande como uma nebulosa”, tiveram de tornar-se um “pouco nômades
também” (p. 18). Assim, a fim de acompanhar os turistas, optamos por nos tornar
cada vez mais um pouco “turistas” sem, contudo, adotar a postura de estar “de
passagem” (MAGNANI, 2002, p. 18), isto é, percorrer a cidade observando seus
diferentes espaços, equipamentos e personagens.
No intuito de compreender os padrões comportamentais dos turistas, mas
sobretudo estar com eles para apreender a que discursos e imagens os mesmos são
expostos, e como as articulam, foi preciso fazer um acompanhamento mais intenso
dos sujeitos do que dos espaços. No começo da pesquisa, imaginava-se que o
contato com os excursionistas, assim como as observações, deveriam ser realizados
em espaços considerados “mais turísticos” da cidade, como a Cidade Histórica e a
Passarela do Álcool. Porém, logo foi possível perceber que esta forma de
abordagem não teria um resultado satisfatório, uma vez que limitava a observação a
momentos fugazes, pois os turistas, quando não estavam em grupos, tinham como
interesse capital a visita aos atrativos turísticos aí contidos. No primeiro momento da
pesquisa de campo, isto é, ao longo de 22 dias no mês de fevereiro – entre dia 6 e
dia 28 –, quando o contato com os mesmos era mínimo, havia uma grande
dificuldade em compartilhar experiências, ouvir aquilo que os visitantes tinham a
dizer e até apreender quais manifestações culturais eram apresentadas a esses
turistas.
Em face disso é que optamos, em dado momento da pesquisa, por privilegiar
um contato um pouco mais próximo com grupos específicos de visitantes. Isto se fez
com o acompanhamento de grupos de turistas ao longo do tempo restante em que
estivemos em campo. Optou-se, então, pela realização de mais dois pacotes
turísticos.
O primeiro pacote turístico, realizado entre os dias 29 de julho e 05 de agosto
de 2007, deu-se via aérea por meio de uma operadora de turismo paulista e que
domina o mercado em Porto Seguro. A escolha desta empresa deveu-se ao fato da
representatividade que a mesma possui no mercado turístico de Porto Seguro,
sendo a responsável, segundo nossas estimativas, por receber aproximadamente
15% de todo o fluxo turístico que se desloca para este destino, o quê corresponde a
aproximadamente 170 mil turistas/ano.
A segunda viagem deu-se por transporte rodoviário. A escolha da empresa
deveu-se a critérios de representatividade no mercado de pacotes turísticos
13
rodoviários de Belo Horizonte. A firma escolhida para a realização do segundo
pacote é reconhecida entre os praticantes desse tipo de viagem como prestadora de
bons serviços a preços competitivos, tendo ainda a característica de contemplar um
público de poder aquisitivo menor em relação ao perfil daqueles que, normalmente,
empreendem uma viagem aérea. Esta segunda viagem deu-se entre os dias 14 e 21
de outubro de 2007 com um grupo de 55 turistas.
A realização de um segundo pacote turístico objetivou a coleta adicional de
material para, posteriormente, contrapor os mesmos àqueles obtidos no primeiro
pacote turístico. Além disso, o retorno a Porto Seguro propiciaria descartar fatos
ocorridos excepcionalmente dentro do primeiro pacote, podendo, assim, centrar foco
naquelas evidências recorrentes na prática desse tipo de turismo em Porto Seguro.
Ao realizar uma breve etnografia de um pacote de viagem padrão de uma
semana em Porto Seguro, esperava-se conseguir apreender o olhar do outro, meta
da Antropologia, algo possível, no nosso caso, mediante um tempo de interação
razoavelmente consistente com os turistas. Para isto, seria necessário ser afetado
pelas mesmas forças que afetam os turistas, segundo defende Goldman (2003).
“Não se trata, portanto, da apreensão emocional ou cognitiva dos afetos dos outros,
mas de ser afetado por algo que os afeta e assim poder estabelecer com eles certa
modalidade de relação” (p. 17). Se há imagens e discursos, manifestações culturais
e espaços privilegiados em Porto Seguro, inevitavelmente, o pesquisador precisa
vivenciar aquelas situações vividas pelos turistas, sendo também afetado por estes
movimentos, para, aí sim, tecer suas conclusões.
Em resumo, o quê se enfatizou foi a maneira pela qual os visitantes se
apropriam do espaço e como apreendem as manifestações culturais lá contidas, ou
seja, desejamos, antes de mais nada, perceber o ponto de vista dos turistas. O
primeiro passo nessa direção foi o de colocar em suspensão os papéis atribuídos
pelo trade turístico aos espaços e às manifestações culturais existentes na cidade.
Se o foco estava antes nos visitantes que nos espaços, fazia sentido nos
esforçarmos por participar das atividades empreendidas pelos turistas, enfim, ir para
onde gostariam de ir. Isto foi particularmente interessante, pois, ao invés de
privilegiarmos o contato em espaços dados de antemão, pudemos constatar que
cada uma daquelas áreas turísticas de Porto Seguro era entendida de forma
bastante peculiar pelos visitantes. E mais: por detrás de imensos fluxos de turistas,
que, em geral, são considerados como grandes massas amorfas, encontramos, na
14
verdade, uma lógica bastante interessante de ser observada. Diante da gama de
atrativos turísticos de Porto Seguro, os turistas movimentam-se embasados em
desejos e motivações muito singulares, constituindo trajetos dotados de lógica e
coerência.
Um revés particularmente interessante para os rumos dessa pesquisa se
deveu a impossibilidade de realizar entrevistas com os responsáveis pela Secretaria
de Turismo de Porto Seguro, assim como a gerência regional da maior operadora de
turismo. Apesar do desejo em se fazer valer das entrevistas de forma mais
constante, os três únicos momentos em que isso foi possível, durante todo o
trabalho de campo, podem ser resumidos assim: entrevista feita com uma guia, outra
com um músico de um bloco de carnaval e uma terceira entrevista realizada com o
responsável por um bloco carnavalesco. No mais, boa parte do material recolhido
em campo foi resultado de informações contidas em jornais, em dados extraídos da
observação direta e de material institucional de empresas.
Quanto a minha identificação em campo, os turistas constantemente me
indagavam se eu era pesquisador, algo que sempre afirmava positivamente. Jamais
necessitei omitir meus objetivos ali e, apesar de responder que estava na cidade
para realizar uma pesquisa sobre a relação entre turismo e cultura em Porto Seguro,
em nenhuma ocasião tive de dar maiores explicações, pois os viajantes pareciam
contentar-se com essa elucidação.
Quanto aos turistas, os nomes citados neste estudo são fictícios.
A dissertação encontra-se estruturada da seguinte forma:
O primeiro capítulo tem como fim traçar um histórico acerca do surgimento da
idéia de baianidade, bem como delinear os vários suportes – estéticos, políticos,
comunicacionais – em que essa representação dos baianos e da “cultura baiana” se
fundamenta. A discussão travada se subdividirá em três momentos: uma seção
contemplará um breve debate acerca do uso, na contemporaneidade, da cultura
como um recurso econômico; o segundo tópico do capítulo tem o intuito de traçar
não somente a gênese da idéia de baianidade, mas apontar ao leitor as matrizes
estéticas, políticas e econômicas que propiciaram a costura desse legado pelo trade
turístico da Bahia, assunto retomado na última seção do capítulo. Além disso,
durante esta parte, evocar-se-á em vários momentos interpretações e enfoques de
vários teóricos que se debruçaram para compreender a baianidade.
15
O segundo capítulo do presente trabalho é voltado não só a apresentar a
história de Porto Seguro, mas também refletir sobre a maneira pela qual se dá a
prática turística nesse destino. Um dos objetivos deste capítulo é compreender o
surgimento, as peculiaridades, problemas e potencialidades de Porto Seguro no que
tange o turismo. E este capítulo também visa, além de apresentar os aspectos
históricos da cidade, expor elementos geográficos relativos ao segundo destino
turístico da Bahia.
A história do município de Porto Seguro será dividida em dois momentos. O
intuito dessa subdivisão é facilitar a compreensão dos períodos que, sob a nossa
ótica, podem ser delimitados em momentos “estanques” por guardarem
características internas específicas. O primeiro momento da história de Porto
Seguro, cujo início deu-se na fundação da Capitania em 1534 e se estendeu até
1960, tem como característica um constante marasmo econômico que vigorou
naquela região; já o segundo período de nossa divisão temporal iniciou-se ao final
dos anos de 1960, década em que se dão as primeiras iniciativas referentes ao
turismo em Porto Seguro, prática esta que chegaria aos dias de hoje como a mais
relevante para a economia da cidade.
O terceiro capítulo visa apresentar uma descrição etnográfica de um pacote
de viagem a Porto Seguro, em que pese a atenção dada aos discursos e
representações, imagens e manifestações culturais que seriam privilegiadas, por
parte do trade turístico municipal, não só para divulgar a cidade, mas que, de alguma
forma, seriam emblemáticas para a construção de uma “autêntica cultura” vigente no
segundo destino turístico do Estado da Bahia. Far-se-á ainda no capítulo uma breve
análise sobre como o turista é entendido nos estudos do Turismo. Isso é necessário,
pois, como veremos adiante, o turista, em muitos casos, costuma ser estigmatizado
sob tipologias que, se têm o mérito de reconhecer diferentes motivações e atitudes
dos visitantes, acabam por circunscrevê-los em modelos fechados. Além disso, o
capítulo intitulado “Notas etnográficas sobre o turismo em Porto Seguro” busca
chamar a atenção para as causas que contribuíram para que o turismo de massa,
formato de turismo comumente identificado com Porto Seguro, seja alvo de críticas e
ressalvas por parte de alguns turistas, de parcela da academia e de profissionais do
turismo.
16
1 BAIANIDADE: A CULTURA QUE SE TORNOU ATRATIVO TURÍSTICO
O objetivo deste capítulo é traçar um histórico acerca do surgimento da idéia
de baianidade4, seus vários suportes – estéticos, políticos, comunicacionais – que,
ao longo do século XX, permitiram a construção de uma imagem da Bahia
fortemente impregnada pela cultura negra e “que hoje parece definir naturalmente a
identidade do estado” (SANTOS, 2005, p. 22). Como conseqüência desse “processo
político de construção de imagens” (idem), surge uma concepção naturalizada do
que é ser baiano. A compreensão do que é percebido como ser baiano parte, assim,
de um enfoque que privilegia a mistura, isto é, a mescla entre a cultura “branca”,
“indígena” e “negra” – em que pese o privilégio desta última – e o sincretismo
religioso. Para o trade turístico da Bahia5, em especial o de Salvador, os baianos
seriam indivíduos dotados de uma religiosidade misteriosa, fruto de um passado
negro mítico, além de viverem, por natureza, em permanente estado de felicidade,
tida como inerente aos habitantes do Estado da Bahia.
Ressalto aqui que a perspectiva que nos interessa neste trabalho, ao
tratarmos da baianidade, é menos referente a suas implicações políticas e mais ao
seu vínculo com o turismo, até porque a construção de uma dada imagem
naturalizante da cultura baiana deu-se, em grande medida, justamente objetivando
atrair dividendos oriundos da atividade turística, algo que o trade turístico baiano e,
em especial, o soteropolitano, soube aproveitar ao reforçar essa imagem específica
da Bahia.
4 Ao conceber aqui uma “idéia de baianidade”, pensa-se, na verdade, em uma dada representação endossada e fomentada por parte do trade turístico baiano, que, embora não seja a única noção de uma “identidade cultural baiana”, nos parece, contudo, ser a mais recorrente. Essa concepção tem a ver, ainda, com a “Idéia de Bahia”, expressão concebida por Pinho (2005, p. 3), e que designaria uma “concepção disseminada por diversos agentes sociais e onipresentes nas afirmações do senso comum em Salvador, que se apresenta como uma rede de sentido [...] capaz de constituir de determinada forma a auto-representação dos baianos”. 5 Ao pensarmos aqui em trade turístico da Bahia, ou de Salvador, ou até mesmo de Porto Seguro evidencia-se que não nos atemos, neste caso, à divisão geopolítica do Estado, ou das cidades. Consideramos que, diante dos crescentes avanços tecnológicos em voga atualmente, dentre os quais o setor de transportes e de comunicação, o trade turístico vinculado à Bahia é composto também por firmas de escala nacional e até mesmo internacional, e que sequer estão sediadas em Salvador, ou outra cidade que seja dentro do Estado. Exemplos dessa observação podem ser vistos desde a operadora CVC – cuja sede está em São Paulo –, até mesmo cadeias de hotéis internacionais que controlam boa parte do parque hoteleiro soteropolitano. Ou seja, faz sentido não só conceber a existência de escalas transversais de poder resultantes de “[...] relações entre atores inter-organizacionais e inter-institucionais” (FISCHER, 2002, p. 11), mas também de uma “pluralidade do poder espacialmente localizado” (idem).
17
E, embora nosso foco seja na relação entre cultura e Turismo, não há como
negar a dimensão política no manejo de elementos culturais para a conformação de
uma “cultura tipicamente baiana”. Constatação feita também por outros autores, que
já haviam chamado a atenção para a existência desse viés político na composição
da baianidade.
Dentre os autores que tratam do tema, Moura (2001) é o que menos contesta
o discurso da baianidade, o quê não significa que não adote um viés crítico,
sobretudo ao levar em conta as associações entre a esfera política, o setor
econômico e a arena cultural para a conformação do carnaval soteropolitano, núcleo
de sua análise. É a partir da festividade soteropolitana que o autor evoca algumas
estratégias, bem como os “traços constituintes” presentes no entendimento de parte
do trade turístico soteropolitano e da mídia local do que é a “identidade cultural
baiana”, mas reconhecendo que a própria dinâmica carnavalesca de Salvador
representa a “identidade” do “ser baiano” (MOURA, 2001, p. 10).
Pinho (1998) vê nessa lógica de conformação da imagem de um baiano
típico, que vivenciaria os princípios da baianidade, a construção de um “outro”, tal
qual na época colonial. De acordo com o autor, esta ação é decorrente de um
projeto associado à edificação da idéia de brasilidade, além de visar à representação
e à invenção de um povo, ou seja, do baiano.
A abordagem de Pinto (2003) privilegia um enfoque que afirma que a
representação de uma Bahia ancestralizante e lúdica, em que pese a matriz negra, é
um poderoso capital simbólico acionado, sobretudo, pelo Estado, em um contexto
nacional mais abrangente como forma de diferenciar a própria Bahia dentre uma
gama de representações regionais – mineiro, paulista, gaúcho etc. Para o autor, esta
representação da cultura baiana pode ser tida como constrativa, pois que é a partir
da contraposição para com outras representações regionais que a imagem da Bahia
“negra” ganharia força. Assim, a “cultura baiana”, tal como entendida por algumas
forças políticas, seria um constituinte privilegiado da “gramática representacional da
brasilidade” (PINTO, 2006, p. 1), cabendo à Bahia o posto de lócus especializado no
lúdico.
Em resumo, a “identidade cultural baiana” estaria calcada na idéia de uma
Bahia cujos habitantes seriam partícipes de uma cultura fortemente impregnada pelo
misticismo e pela malemolência (predisposição à festa e à felicidade) por fortes
raízes nas tradições africanas encarnadas no culto ao candomblé, pela culinária e
18
pela prática da capoeira. Assim, estariam dados os expoentes da baianidade que
representariam, para parte do trade turístico, setores políticos e midiáticos, uma
“singularidade cultural” capaz de diferenciar o baiano – no singular – do “mineiro”, do
“paulista”, ou do “carioca”, noções identitárias também concebidas a partir dessa
mesma perspectiva.
Se entendermos que um destino como a Bahia, por exemplo, é alçado ao
status de lugar turístico a partir de um processo de “construção cultural” (CASTRO,
2002, p. 81), é de se esperar que esse processo envolva o agenciamento e o
privilégio de algumas imagens pontuais da cultura, ou mesmo do patrimônio6 de
dado lugar. Todavia, no caso baiano, em especial na divulgação de imagens
turísticas do Estado, onde nada parece ser mais emblemático do que os discursos e
imagens em torno da “idéia de baianidade”, a questão que se apresenta é relativa
aos objetivos visados por esse processo de “construção identitária”.
Entendida como um “bem turístico”7 (BENI, 2004, p. 37), a idéia de baianidade
representa um uso econômico do patrimônio, mas, não apenas isto, uma vez que
também se pode vislumbrar um uso político e com fins de identificação coletiva,
como assinala Peralta (2003, p. 85).
Parece-nos que nenhuma idéia parte do nada e que a eleição de
determinados traços culturais concebidos como “baianos” para exposição na arena
do turismo, mormente após a década de 1970, filtrou dadas práticas do universo
cultural soteropolitano, em especial da cultura afro-brasileira. Este filtro acabou por
privilegiar manifestações culturais como o candomblé, a capoeira, o carnaval e,
posteriormente, o axé music, entendidos, a partir de então, por parte do setor de
turismo da Bahia, como elementos-síntese da cultura baiana.
O presente capítulo será dividido em três momentos. A seção seguinte
contempla um breve debate acerca do uso da cultura como um recurso econômico,
pois, tal como entendemos, a “identidade cultural baiana” constitui-se como um
atrativo turístico a partir da seleção e mercantilização de dadas manifestações
culturais emblemáticas concebidas como a “típica cultura baiana”. O segundo tópico 6 O conceito de patrimônio que ora utilizamos aporta-se na concepção de Llorenc Prats (1997), e que é retomada por Peralta (2003, p. 2). Para esta última autora, o patrimônio seria uma construção social baseada no resgate de dados elementos culturais e que, após serem submetidos a um processo de “engenharia social”, adquirem assim valor e significados capazes de propiciar uma identificação coletiva de um dado povo. 7 Segundo Beni (2004), um bem turístico pode ser entendido como “todos os elementos subjetivos e objetivos ao nosso dispor, dotados de apropriabilidade, passíveis de receber um valor econômico.” (p. 37) (grifo nosso).
19
do capítulo tem o intuito de traçar não somente a gênese da idéia de baianidade,
mas as matrizes estéticas, políticas e econômicas que, ao serem costuradas pelo
trade turístico da Bahia, geraram a idéia de baianidade, algo que será retomado na
última seção deste capítulo.
1.1 A cultura como recurso econômico na prática do turismo
O presente tópico visa a intensificar o diálogo entre a Antropologia e o
Turismo, com vistas a alargar a compreensão do fenômeno turístico, negando assim
o reducionismo epistemológico que acomete os estudos sobre a atividade, na
medida em que há em voga uma tendência essencialmente economicista de análise
do Turismo. Se concordarmos com Harkin (1995, p. 650), ao considerarmos que o
“turismo, além de ser um grande negócio, é uma estratégia para estruturar e
interpretar a diferença cultural”8, poderemos compreender que o Turismo, ao se
apoiar na diferença cultural, acabaria por imantá-la de certo valor econômico, na
medida em que o é também uma atividade econômica. E a ênfase na dimensão
dessa atividade se dá, em parte, pelo advento, na contemporaneidade, de uma
tendência em privilegiar que as culturas possam ser vistas também como uma fonte
de divisas, isto é, entender a “cultura como recurso” (YUDICE, 2004, p. 25).
A despeito de algumas ressalvas existentes na obra de Barreto (2006), uma
abordagem da relação entre turismo e cultura parece resumir bem o atual contexto
da área, no qual:
A busca dos elementos característicos e diferenciais de cada cultura aparece como uma necessidade de mercado, a cultura autóctone é a matéria-prima para a criação de um produto turístico comercializável e competitivo internacionalmente (BARRETO, 2006, p. 48).
Barreto dá, assim, a exata dimensão de como a diferença cultural tornou-se a
matriz para uma pungente atividade econômica. A busca por diferenciais de
mercado, para usar uma terminologia cara ao métier turístico, acaba por colocar em
muitos momentos o ser humano em segundo plano. Estratégias, planos de
marketing e aparatos comunicacionais, ao exaltarem a cultura, fazendo dela matéria-
prima para o turismo, favorecem uma espécie de naturalização da cultura 8 No original, consta: “tourism, in addition to being big business, is a strategy for framing and interpreting cultural difference” (tradução nossa). Em outra passagem, o autor traça um paralelo entre a Antropologia e o Turismo, ao considerar que “tourism is one of several modes (anthropology is another) of discourse on the exotic.” (p. 656).
20
particularmente cara aos indivíduos componentes da sociedade que se visita,
sobretudo por contribuir para a redução dos mesmos, mediante estereótipos que
classificam o “outro”. Para se dar um exemplo, basta recorrer à crença propagada
por alguns indivíduos – e também por parte do setor turístico – quanto à existência
do “baiano”, do “carioca”, ou do “mineiro”.
Para se ater a discussão à Bahia, recorremos a uma consideração de Cláudio
Taboada9 (2004, p. 2-3):
O publicitário Duda Mendonça costuma dizer que a Bahia tem 13 milhões de publicitários, cada um deles falando bem de nosso estado. Cada baiano vende nossas belezas, nossa cultura, a idéia de que a Bahia é realmente a terra da felicidade10.
O quê parece mais prejudicial em relação a essa linha de raciocínio é o
simplismo presente nessa declaração, na medida em que contribui para limitar
demasiadamente o tratamento epistemológico dado tanto à cultura quanto ao
turismo. E é importante que se diga aqui que, apesar de reconhecermos a forte
relação existente entre economia e cultura, nosso ensejo no presente trabalho é
relativizar a dimensão mercadológica da cultura e do próprio saber turístico calcado
nesse viés. Ao empregarmos o verbo relativizar, não se espera recusar, excluir ou
minimizar a dimensão econômica da cultura para o turismo. Busca-se, sim,
reconhecer que a dimensão econômica imbricada em ambas as categorias – turismo
e cultura – nada mais é do que uma das tantas dimensões possíveis de análise.
Enquanto prática social, o turismo contempla ainda outros enfoques calcados, por
exemplo, em abordagens oriundas da Psicologia, Geografia, História etc. Entretanto,
ressalta-se que a perspectiva a ser privilegiada na presente análise é oriunda da
Antropologia.
Outra consideração acerca da relação cultura - turismo já feita carece de ser
retomada aqui: a necessidade em se reconhecer que a cultura, da forma como às
vezes é apresentada aos turistas, é fruto também de uma ótica decorrente de
projetos políticos e econômicos permeados pela intencionalidade, a exemplo do que
acontece em Santa Catarina, como bem demonstrou Savoldi (1999). No exemplo
9 Cláudio Taboada, um dos nomes mais expressivos do setor público de turismo na Bahia, começou a trabalhar como estagiário na Bahiatursa em 1995 e foi subindo de cargo em cargo até se tornar o presidente da empresa, em 2003. No final de 2006, perdeu o posto em conseqüência da vitória de Jacques Wagner, candidato oposicionista, para as eleições do governo estadual. 10 JORNAL ESTADO DE MINAS. Caderno Viagem e Aventura, 7 de dezembro de 2004, p. 2.
21
citado, o poder público colaborou para o resgate de uma italianidade com vistas a
servir como principal atrativo turístico da região Sul do Estado de Santa Catarina.
Pode-se depreender, a partir de práticas dessa natureza, que um impacto possível
de tais articulações político-econômicas é a edificação de uma noção de cultura
como matéria-prima passível de ser utilizada exclusivamente para o turismo, além de
servir como meio para a obtenção de benefícios políticos e econômicos de dados
atores sociais11.
Obviamente que imagens como a italianidade em Santa Catarina, ou a
baianidade em Salvador, não seriam destituídas de certa lógica. Elas, apesar de
construtos, são decorrentes de matrizes – discursivas, estéticas, políticas –
existentes no tecido social. Castro (2002), ao refletir acerca da inexistência de
destinos naturalmente turísticos, na medida em que o lugar turístico é também
construído culturalmente, lembra que o status de local turístico parte da criação de
“um sistema integrado de significados através dos quais a realidade turística de um
lugar é estabelecida, mantida e negociada” (p. 81). Há menos invenção de
manifestações culturais e símbolos do que o agenciamento e maior privilégio de
alguns elementos de dada cultura.
Antes de adentrarmos nos suportes que deram e ainda hoje dão sustentação
à idéia de baianidade, é necessário tecer breves comentários sobre a construção de
(auto)-imagens culturais, às vezes concebidas como “identidades”, embora se esteja
ciente que essas mesmas “identidades” possam também ser atribuídas a
determinados grupos por agentes externos ao próprio grupamento. E isso é
duplamente verdade para o turismo que “vende” representações, muitas vezes
estereotípicas de dadas comunidades, populações ou sociedades.
A construção e a manutenção de imagens, discursos e representações, seja
em termos individuais ou em termos coletivos, diferenciando os homens uns dos
outros mediante a afirmação de suas respectivas culturas, faz parte da própria
essência humana. Essas diferenças entre as culturas, quando se tem em conta que 11 Neste sentido, segundo Ouriques & Caon (2005), exemplo similar de agenciamento de dados elementos culturais por grupos políticos com vistas a obter dividendos políticos e econômicos, em que pese o papel do turismo, ocorreu em Florianópolis, Santa Catarina, nas eleições municipais em 1992 e 2004. Em ambas as ocasiões, de acordo com os autores, houve a transformação de algo até então entendido como ofensivo, ou seja, o “mané”, tido como sinônimo de ser “atrasado”, “bronco” em algo valorizado. Além de objetivos políticos, os pesquisadores ressaltam que a valorização do “manezismo” objetivou também incrementar uma “identidade açoriana”, do qual o “mané” seria um componente intrínseco, vendida como atrativo turístico.
22
a cultura é também um processo de aprendizado, não são somente herdadas. Elas –
as diferenças culturais – são também construídas, pois “a manipulação adequada e
criativa desse patrimônio cultural permite inovações e as invenções” (LARAIA, 2003,
p. 45). Essas inovações e/ou invenções são o resultado de alterações relativas ao
próprio grupo ao longo do tempo, resultado, dentre outros fatores, de contatos
interculturais, aspecto que o turismo, pela sua própria natureza, fomenta.
É revelador o fato de que os indivíduos, ao se apropriarem do patrimônio
cultural que lhes é legado, manejem-no de forma a construírem também auto-
imagens de si, sobretudo mediante o contato com os “outros”. Ou seja, o processo
de auto-elaboração é constante, na medida em que somos afetados em todos os
momentos por desejos e fluxos, idéias e imagens que não se circunscrevem
somente ao individuo, cujos desejos também são perpassados por valores e
tendências, práticas e representações vigentes no tecido social.
Moura (2001), ao pensar a elaboração dessas auto-imagens no contexto da
Bahia, considera que:
Todos elaboramos textos identitários, portanto. Porém, se é universal o trabalho de produzir textos identitários, certamente não é a mesma a freqüência, intensidade e repercussão com que acontece em diferentes sociedades. A quem percorre o Brasil, salta aos olhos a desproporção com que baianos e piauienses, por exemplo, recitam o texto sobre si próprios, em termos de investimento de tempo, de energia, de expectativas... (p. 8) (grifo do autor).
A partir da constatação de que o ser humano realiza a apreensão, bem como
o aprendizado de um conjunto de narrativas e recordações, signos e representações
dos grupos com os quais ele está envolvido e com o qual ele se identifica12, pode-se
perceber que essa “construção identitária” varia de um grupamento para o outro.
Recursos disponíveis, atores sociais específicos de cada comunidade ou sociedade,
associados às particularidades geográficas e históricas, estão diretamente
implicados nesse processo de construção.
Ressalta-se, portanto, que esse processo de construção de “identidades”
envolve não só fatores de ordem relacional inerente ao próprio homem. Mas importa
12 O pensamento de Morin (apud MOESCH, 2002) vai ao encontro da tese de que o sujeito sistematiza o mundo diante do aprendizado da cultura no qual ele está imerso e da necessidade de relação com o “outro”. Segundo o filósofo: “o sujeito é o autor de seu processo organizador, por meio da singularidade. Sujeito é o ‘eu’ que se coloca no centro do mundo, ocupando o próprio espaço. Sua concepção é complexa, pois o ‘eu’ precisa de uma relação com o ‘tu’ e ambos pertencem ao mundo.” (p. 40).
23
ressaltar a existência de usos possíveis da cultura, muitas vezes permeados por
objetivos econômicos e político-ideológicos, que transcendem a ação do próprio
grupo em questão, ou mesmo dão-se à revelia de parte desse grupamento. E o
turismo pode ser inserido nessa tendência, pois, ao se aportar na alteridade,
contribui para a construção e manutenção dessas diferenças calcadas em
estereótipos, não permitindo assim que o turista vislumbre outras formas de
articulação das pessoas, dos grupos, ou mesmo das sociedades visitadas. A não
ser, é claro, aquelas leituras culturais13 canonizadas, ou mesmo legitimadas pelo
trade turístico.
Feitas essas considerações, o próximo tópico será dedicado à trajetória da
noção de baianidade enquanto somatória de discursos, representações e símbolos
bem definidos, decorrente de um projeto ideológico14 empreendido, sobretudo pela
elite política do Estado a partir de meados do século XX. Os objetivos de tal
empreendimento não se circunscrevem apenas à obtenção de uma suposta unidade
– ainda que calcada na diferença, na miscigenação, no sincretismo – cultural
existente na Bahia, o que é simbolizado pela idéia de baianidade. Parafraseando
Santos (2005, p. 34), a cultura baiana passa a ser tratada como um “bem simbólico”,
ou, de acordo com outro teórico, se tornaria, na década de 1990, “o maior ativo da
economia do turismo e do entretenimento local” (PINTO, 2006, p. 3), algo de grande
valia para os interesses da elite política e do trade turístico estadual.
13 Ressalto aqui a expressão “leituras culturais” utilizada por Santos (2005). Essa expressão ilustra bem o movimento constatado por Castro (2002) de escolha, agenciamento e ênfase em dados elementos do destino turístico. Desta forma, por “leituras culturais” compreendo certa interpretação e, conseqüente, exposição de manifestações culturais pontuais de Porto Seguro que, segundo discursos desses mediadores turísticos, seria capaz de sintetizar e legitimar uma experiência turística na Bahia. 14 Ao pensar aqui no termo ideologia, ressalto a filiação analítica com os trabalhos de Pinho (1998) e Santos (2005). O primeiro, ao se aportar nas considerações de Geertz (1978), assinala que a ideologia, enquanto “modelos interpretativos que dão sentido político às contradições socioculturais”, teria a função de apaziguar uma realidade social problemática, criando assim uma consciência coletiva (PINHO, 1998, p. 3). Um enfoque parecido é apresentando por Santos (2005, p. 16) ao considerar ideologia como uma “falsa consciência”. Enfim, o quê se busca explicitar ao utilizarmos o conceito de ideologia é o da busca por se constituir uma espécie de consenso na sociedade baiana no que tange à representação (naturalizada) que se tem da própria sociedade, que é elaborada de forma intencional e com fundo político, em um contexto social permeado por diferenças e contradições.
24
1.2 Nas Trilhas da Baianidade
Ao se falar em baianidade, uma questão logo salta à vista. Por que essa
categoria é sempre vinculada a Salvador? Por que nas campanhas publicitárias da
Bahiatursa, ou mesmo nos estudos que se debruçaram para investigar tal questão,
Salvador aparece como uma espécie de metonímia da Bahia?
Assim, é preciso primeiramente tentar compreender as causas que teriam
levado, historicamente, Salvador a alcançar uma espécie de representatividade
metonímica tão expressiva do que seja a Bahia. Isto é, por que na maior parte das
vezes em que se menciona algo sobre a Bahia, emerge, tanto na mente dos próprios
baianos, quanto de boa parte dos turistas, a cidade de Salvador? Esta questão
parece fundamental para compreendermos a idéia de baianidade justamente pelo
fato de que praticamente todas as abordagens realizadas pelo trade turístico, bem
com as análises acadêmicas que versam sobre a relação entre o turismo e a cidade
de Salvador circunscrevem o termo à capital baiana, embora a categoria, sob o
ponto de vista semântico, tenha uma conotação mais ampla, ou seja, capaz de
abranger todo o Estado, não uma região apenas. Problematizar esse ponto é o
primeiro passo para o delineamento do escopo da baianidade, suas matrizes, seus
impactos, bem como as singularidades desse “texto identitário” (MOURA, 2001).
1.2.1 Salvador: uma metonímia da Bahia?
Freitas (2000) levanta três aspectos diretamente relacionados à existência
dessa noção de Salvador como síntese da Bahia: i) a percepção dos interioranos
que não se vêem, em sua plenitude, como baianos, visto que se identificariam com
outros estados; ii) dificuldade em integrar o território mediante uma malha de
transportes; iii) a alusão, resquício dos tempos coloniais, à Capitania da Bahia. Tais
componentes, portanto, fizeram com que o habitante do interior do Estado
historicamente se enxergasse como baiano por meio de um reflexo do que seria
Salvador. E as pessoas de outras regiões do país sempre tiveram Salvador como
ícone máximo da Bahia, até porque, ao longo do século XIX e começo do século XX,
não havia no Estado a não ser a florescente região cacaueira, uma região com
tamanha expressividade quando comparada a Salvador.
25
Salvador, mesmo após o advento de uma política de integração estadual,
desencadeada na segunda metade do século XIX com a construção de estradas de
ferro e, posteriormente, hidrovias, continuaria a manter a sua posição de ponto nodal
de toda a malha de transportes (FREITAS, 2000, p. 34).
Além disso, a adoção do nome Salvador, em substituição à “Capitania da
Bahia”, não modificou o quadro daqueles que, saindo de regiões limítrofes do estado
– normalmente marcadas pela seca e pela pobreza –, se destinassem à capital,
deslocamento curiosamente sintetizado na expressão “Eu vou para a Bahia”
(FREITAS, 2000, p. 36).
A tendência em vislumbrar Salvador como uma cidade distante, ao longo do
século XX, contribuiu para a permanência deste “centralismo representacional” da
capital, o que desencadearia uma baixa identificação dos baianos com o próprio
Estado, na medida em que Salvador traduziria quase que completamente a Bahia. A
representatividade metonímica do Estado conquistada pela capital soteropolitana
nesse período é decorrente ainda do fato de a região gozar de certa autonomia em
relação às demais regiões, conquanto seja uma área até certo ponto autônoma, ou,
nos dizeres de Araújo (apud MOURA, 2001), uma região “individualizada,
consistente e articulada” (p. 12).
A imagem de Salvador, enquanto núcleo máximo – e por que não único? – da
Bahia era motivada ainda pelo intercâmbio das zonas de fronteira baianas com
Minas Gerais, Espírito Santo, Sergipe e Goiás, o que significou para essas regiões
um crescimento, até certo ponto, alheio a Salvador. E com o surgimento da TV e do
rádio, a identificação dos habitantes do interior passou a ter como eixo o Sudeste,
sede desses aparatos comunicacionais, propiciando a que “os moradores de quase
todas as áreas, de todos os sertões, passassem a não se sentir na Bahia, e dela não
participar” (FREITAS, 2000, p. 35).
Entretanto, a partir da metade do século passado, a Bahia passaria por
mudanças que traçariam um novo mapa geopolítico estadual, na medida em que a
abertura de rodovias e a diversificação econômica contribuiriam para um ganho de
representatividade por parte de outras regiões do Estado, amenizando assim a
imagem-síntese da Bahia representada por Salvador. Percebeu-se que se poderia,
ao menos, pensar em “Bahias”, isto é, reconhecer a diversidade existente no oeste
baiano, no sertão, na Chapada Diamantina, no Extremo-Sul, ou mesmo na região
cacaueira.
26
Esse movimento de ascensão de outras áreas dentro do Estado é
particularmente visível em Porto Seguro que, a partir da década de 1970 e ao longo
dos anos de 1980 e de 1990, se tornaria, gradativamente, o segundo destino
turístico da Bahia e um dos mais expressivos do Nordeste. Aliada a esta questão,
teríamos pela primeira vez em um estudo acadêmico desenvolvido por Grunewald
(2001) a constatação quanto à operação de uma baianidade em uma região outra
que não Salvador. Essas questões serão retomadas adiante. Antes, o quê nos
interessa por agora é delinear as raízes desse modus vivendi concebido como
“tipicamente baiano”, ou seja, a baianidade.
Ao longo de todo o século XX, é importante frisar como o Estado, tanto o
nacional, quanto o Estado da Bahia, se vêem diante de um novo desafio, sobretudo
após a década de 1960 e, em especial, no contexto da ditadura militar: como
incorporar o legado cultural dos negros, historicamente marginalizados, mas
necessários naquele momento para compor o nosso patrimônio nacional, nossa
brasilidade? Como veremos, essa apropriação da cultura negra, entendida como
pano de fundo que perpassa a construção da idéia de baianidade, foi feita sob
diferentes formas e permeada por conflitos, embora visando algo bem claro:
enquadrar os símbolos culturais dos afro-descendentes dentro da proposta de
construção de uma “identidade nacional”.
É possível estabelecer dois momentos em relação à construção da noção de
baianidade. O primeiro momento ou fase, em que pese a formação dos suportes, ou
seja, as bases estéticas, não teria um caráter propriamente intencional na
construção de um projeto político-ideológico baseado na conformação de uma
“identidade cultural”, seja ela nacional ou regional. Esse período pode, grosso modo,
ser delineado do final do século XIX até a década de 1960. O segundo momento
pode ser caracterizado como tendo sido permeado de toda uma intencionalidade,
visto que se deu a construção de uma amálgama “identitária” calcada no sincretismo
e que agenciou certos traços da cultura negra vigente na Bahia transmutando-os em
manifestações culturais baianas. Nesse período, que viria à tona a partir do final da
década de 1960, acontecimentos de grande relevância para a valorização da cultura
negra se deram, como, por exemplo, o processo de reafricanização15 do carnaval de
Salvador, cuja reflexão se dará em momento oportuno. Eventos dessa natureza, ao
15 Termo utilizado por Risério (1981).
27
privilegiar a cultura negra, favoreceram, a posteriori, que manifestações culturais
afro-descendentes fossem vinculas à idéia de uma Bahia sincrética, híbrida. Essa
seria, assim, para dados atores econômicos e políticos, a singularidade do Estado.
1.2.2 As primeiras representações da “típica” cultura baiana: o surgimento dos
suportes estéticos da baianidade
Esta seção busca reconstituir os caminhos relativos à gênese das matrizes
estéticas que assentariam os alicerces dessa extensa e complexa “identidade
cultural” efetivada ao longo do século XX, a baianidade.
No que diz respeito à organização desta parte do trabalho, optou-se por
estabelecer, ao longo da exposição, diálogos entre representações do baiano no
passado e no presente, sobretudo para referendar o quanto a visão naturalizada da
cultura na Bahia ainda está em voga. Haverá assim, em alguns momentos, “saltos”
no tempo, não respeitando de maneira rígida a subdivisão previamente estabelecida
da seção, cujo marco temporal é a década de 1960, momento em que a atividade
turística começa a influenciar decisoriamente a conformação da lógica da
baianidade.
Ressalta-se aqui que o percurso da noção de baianidade não pode ser
facilmente identificado de forma linear sob o paradigma de causa – efeito. Antes
disso, espera-se reconhecer e apontar que uma gama de fluxos e movimentos,
acontecimentos e indivíduos se influenciavam concomitantemente16, o quê resultou
em vasta produção artística que foi posteriormente reapropriada por segmentos
políticos – com destaque para os seguidores do carlismo – e econômicos – em que a
ênfase recai sobre o trade turístico – para, a partir da reafirmação de uma
“identidade cultural baiana”, obter dados benefícios, e que serão alvo de uma análise
mais pormenorizada na próxima seção.
Fiquemos por ora com o debate sobre as representações que se tinha da
“cultura baiana” em diversos segmentos artísticos no final do século XIX e início do
século XX. 16 Procurou-se, neste tópico, tomar cuidado para não isolar as obras de grandes artistas representativos da idéia de uma “cultura tipicamente baiana” do imaginário social. Ao evocarmos Dorival Caymmi ou Jorge Amado, Pierre Verger ou Carybé, verdadeiros emblemas da noção de baianidade, é importante, senão indispensável, contextualizar o momento vivido por estes artistas e que elementos os mesmos captaram do imaginário social, reforçando-os em suas obras, tanto para pensar a Bahia quanto para pensar os baianos.
28
Quando Moura (2001) afirma ter o “texto da baianidade [...] se originado do
contraste entre os padrões civilizatórios que se tornaram emblemáticos do Rio de
Janeiro e da Bahia, já no século XIX” (p. 136), o autor chama a atenção para algo
representativo na construção da idéia de baianidade: o contraste17. Tal questão,
recorrente em muitas análises, em especial na abordagem de Pinto (2003), parece
emblemática para o fato de a Bahia ter buscado, sobretudo após a década de 1970,
com o crescimento do turismo, uma constante afirmação de si mesma mediante o
reforço – levado a cabo pela elite política e setores econômicos ligados ao turismo –
de diferenciação em relação às demais regiões do Brasil. Coube ao Estado ser
entendido como uma terra fortemente impregnada por valores da África, o que, aliás,
já se dava desde o final da década de 1930 ao levarmos em conta que a imagem de
uma Bahia mística, da cordialidade e do candomblé (ALBERGARIA, 2005, [s.p.]) foi
reforçada por artistas e pelo rádio em oposição aos ideais de progresso e civilização
vigentes no Rio de Janeiro e em São Paulo. Em suma, na construção da
“brasilidade”, projeto já existente naquele momento, coube à Bahia ser a antítese do
Sudeste, em prol de uma imagem da “cultura brasileira” edificada naquele momento.
No percurso em busca da gênese de substratos, mais tarde acionados como
componentes da baianidade, o marco temporal mais antigo atribuído a um aspecto
dessa idéia de Bahia – como uma cultura típica – seria, segundo Moura (2001, p.
129), a obra Memórias de um Sargento de Milícias (1852), de Manuel Antônio de
Almeida. Em sua análise, Moura entende que o realce dado às baianas durante um
cortejo ocorrido ao longo da narrativa poderia ser percebido como a mais antiga ou a
primeira manifestação da idéia de uma Bahia típica com alguma relevância no
campo artístico nacional. Este fato, visto sob uma dimensão mais global, isto é, de
que a narrativa não está contida somente em si mesma, e que, antes, ela incorpora
elementos vigentes no imaginário da sociedade, faz com que, na verdade, já esteja
implícita naquela obra a visão permeada de exotismo pela qual parte da sociedade
brasileira, especialmente do Sudeste, conceberia a Bahia, entendida naquele
momento como uma terra festiva e da negritude. Ou seja, a obra de Manuel Antônio
de Almeida apresentaria, já no século XIX, uma imagem da Bahia permeada de
17 A existência de contraste é condição para a elaboração de uma concepção de identidade, como é o caso da noção de baianidade. Para Barth (1998), a definição de grupo étnico – e o mesmo vale para outras formas de organização baseadas na noção de pertencimento – necessariamente passa pela relação de fronteira e diferenciação entre “nós” e “eles”.
29
ancestralidade e tradicionalismo, situando-a como o pólo afro-brasileiro da nação
(MOURA, 2001, p. 130).
De certo modo, a visão da Bahia “ancestral” e “exótica” que se tinha em
meados do século XIX, tal como descrita no romance de Manuel Antônio de
Almeida, parece ser uma constante nas décadas seguintes. Posteriormente a essa
imagem, somar-se-iam outros elementos que seriam entendidos como “tipicamente”
baianos. Um deles seria uma suposta característica “imanente” do baiano: a
malemolência. E esse aspecto, caro ainda hoje aos habitantes da Bahia, pois muitas
vezes eles são tidos como “preguiçosos”, teve, se é que podemos dizer assim,
Dorival Caymmi como um “expoente” de destaque no início do século XX.
Ao evocarmos de modo mais direto a figura de Caymmi, é necessário
evidenciar que a obra do compositor está situada na esteira de uma plêiade de
músicos do Rio de Janeiro que, desde o início do século XX, embevecidos de dadas
imagens e valores referentes à Bahia, colaborariam para expressar traços da
“baianidade” em seus repertórios. A Bahia era proferida, pelos sambas cariocas,
como o local, por excelência, da ancestralidade (MOURA, 2001, p. 143). Para
conceber a imagem da Bahia até então em voga no país, teríamos de,
necessariamente, perpassar por uma análise de como o então nascente samba
carioca projetava aquela região. A presença da Cidade da Bahia e o seu povo eram
de tais proporções existentes no acervo de músicas desse período que “separar a
Bahia do Rio de Janeiro na história do samba carioca seria mutilar o Rio de Janeiro
de um órgão vital, como tirar do Recôncavo seu palco principal” (MOURA, 2001, p.
142). Essa participação da Bahia na cena musical carioca pode ser atribuída à
grande quantidade de baianos que então viviam no Rio de Janeiro naquela época18.
Além de ter tido contato com uma produção musical relativamente grande, na
qual a Bahia já vinha sendo cantada como um paraíso místico, a produção de
Caymmi tem de ser imersa também no contexto de produção do projeto ideológico
18 A forte presença da Bahia na música popular brasileira não se restringe às primeiras décadas do século XX, momento de ascensão do samba. Em A presença da Bahia na música popular brasileira, obra citada por Moura (2001), há a identificação de ícones recorrentes acerca da Bahia na música. A pesquisa que contemplou repertórios das seis primeiras décadas do século XX constata que os elementos mais recorrentes nos repertórios da MPB seriam: i) a culinária, com destaque para a tríade dendê – acarajé – vatapá; ii) a sensualidade, entedendo-se aí a mulher; iii) a religiosidade, com ênfase ao Senhor do Bonfim; iv) a arquitetura, cujos emblemas, entre outros, seriam o Farol de Itapuã e a Praça da Sé. Enfim, a noção de Bahia permeada de misticismo, terra da culinária exótica e da sensualidade já vinha sendo apresentada desde o inicio do século, seja por músicos cariocas ou baianos, famosos ou não, ou mesmo de outros estados como o mineiro Ari Barroso e suas famosas canções No Tabuleiro da Baiana e Quando Eu Penso na Bahia.
30
vinculado à brasilidade. Havia, naquele momento – década de 1930 –, como já dito,
um desejo do governo brasileiro de delinear uma “cultura própria do Brasil”. A
imagem de Carmem Miranda, vestida de baiana, parece encarnar bem qual
concepção identitária o Brasil procurava apresentar ao mundo naquele período: a da
mulher sensual, festiva e mágica, ao passo que o “ethos carioca” complementaria
essa noção de brasilidade com seu jeito malandro de ser, o gosto pelo samba e pelo
futebol imersos em um contexto – o Brasil e mais especificamente o Rio – em pleno
progresso19.
Essa matriz da noção de baianidade – a música da primeira metade do século
XX – pode ser assim engendrada no processo de edificação da idéia de brasilidade,
como já dito anteriormente. Nesse momento, as imagens e representações, apesar
de contrastivas, tanto do carioca quanto do baiano, seriam largamente empregadas
contribuindo para edificar a noção de um “ethos brasileiro”. Destaque para as
manifestações culturais afro-brasileiras, usualmente vinculadas aos cariocas ou aos
baianos e que seriam rapidamente agenciadas como ícones possíveis da
brasilidade. Para ilustrar esta consideração, basta nos lembrarmos da notoriedade
nacional primeiramente do samba (carioca) nas décadas de 1920 e 1930 e,
posteriormente, do candomblé (baiano) nos anos de 1960 e de 1970.
A Bahia que encarnaria o Brasil, pois poderia ser pensada como uma parte
capaz de representar o todo, teve, ao longo do século XX, uma grande soma de
artistas e intelectuais que, através de suas obras, reafirmariam uma peculiaridade
cultural do baiano. Se as análises de Pinto (2003) e Barbalho (2004) mencionam
Caymmi como um daqueles que ajudou a construir as matrizes estéticas para a idéia
de baianidade, a análise de Moura (2001) é ainda mais enfática, ao assinalar que o
músico baiano, que chegou ao Rio de Janeiro em 1938, ilustra elementos da
baianidade, em especial a preguiça, não somente por meio de suas canções, mas,
sobretudo, por sua própria atitude de assumir-se integralmente como baiano, a partir
da formação de uma imagem de si do que seria ‘ser baiano’. O músico “não cantou
19 A noção de complementaridade presente na obra de Moura (2001) entre os traços culturais dos cariocas e dos baianos para uma costura da idéia de brasilidade vai de encontro ao tratamento dado por Santos (2005). Para este último, a evocação e a elevação de símbolos cariocas no cenário nacional deu-se em um momento diferente ao período em que o mesmo processo deu-se na Bahia. Ainda de acordo com este autor, se o Rio de Janeiro tem seu ápice, em termos de exposição simbólica, na década de 1920-1930, o processo equivalente na Bahia se delineou a partir da década de 1960.
31
apenas a Bahia, como se sabe; é, contudo, o baiano cantando a Bahia no rádio”
(MOURA, 2001, p. 146).
Para se ter uma idéia de como o estereótipo da preguiça ainda hoje é
presente nas representações e discursos sobre a Bahia, Bomfin (2006) demonstra
que a preguiça é um elemento utilizado pela Bahiatursa para ilustrar as
particularidades do destino turístico “Bahia”. A relevância dessa matriz para a “idéia
de baianidade” atualmente em voga é percebida em sua análise de uma recente
peça publicitária da autarquia de turismo estadual, cuja conclusão é que a alusão ao
ócio e à preguiça, bem como ao carnaval e às demais festas, são substratos de vulto
para a construção do “ser baiano” (BOMFIN, 2006, p. 61).
As balizas para a construção de uma idéia de cultura baiana não estariam
circunscritas somente ao papel efetivado pela música, especialmente na década de
1930. Avançando um pouco no tempo, encontraríamos, a partir das décadas de
1940 e 1950, substratos da noção de baianidade também no campo das artes
plásticas e da fotografia. Pinto (2006, p. 19-20) considera que tanto Carybé por meio
de seus quadros, quanto Verger com suas fotografias, apresentam iconografias
“clássicas” da baianidade, embora não sejam os únicos, pois Calasans Neto,
Hansen Bahia e Mário Cravo Jr. também seriam bons representantes.
Entretanto, o que mais chama a atenção em Carybé e em Verger é como
esse olhar estrangeiro corroborou, principalmente a posteriori, com o projeto de uma
“cultura típica da Bahia”. Esse olhar do outro acaba por reafirmar uma gama de
narrativas que já vinham sendo produzidas por brasileiros, como, por exemplo, Jorge
Amado, que abordaremos logo em seguida.
Os dois artistas estrangeiros, responsáveis por discursos iconográficos, ao
focarem, de maneiras distintas, o cotidiano dos habitantes de Salvador, seja
enfatizando por meio de tomadas próximas o traço fenótipico do povo como Verger,
seja com a rotina dos habitantes da capital soteropolitana apresentada por Carybé,
teriam um papel complementar nesse processo de ratificação da lógica da
baianidade: além de legitimar discursos, tais como o de Jorge Amado, os artistas
trouxeram para o cotidiano essa vivência um tanto quanto essencialista da cultura,
isto é, naturalizaram as imagens daquela Bahia negra, religiosamente híbrida e
mística; ancestral. A representação não tinha somente nomes fictícios presentes nos
romances amadianos, mas “atores” reais, de carne e osso. A negritude não estaria
mais no campo do imaginário. Estava lá, posta em imagens, com grande vivacidade.
32
Sabe-se que as obras de Verger e Carybé partem de enfoques pessoais de
ambos os artistas, algo legítimo, na medida em que se tem uma interpretação e
registro do cotidiano soteropolitano tão válido quanto os demais existentes, embora
sejam menos evidenciados.
Que a contribuição na seara iconográfica de Verger e Carybé tenha sido
representativa para o texto da baianidade, bem como a de Caymmi no âmbito
musical, não parece haver dúvidas. Entretanto, o papel de Jorge Amado, no que
tange ao fornecimento de matrizes para a “cultura típica da Bahia”, parece ser mais
expressivo, não somente por sua produção, sobretudo decorrente da primeira fase
de sua carreira, mas também pelo fato de este autor ser entendido como uma
espécie de eixo que capitaneou outras representações complementares da própria
lógica da baianidade20.
Em termos cronológicos, a obra de Jorge Amado deu-se concomitantemente
às obras de Caymmi, Verger e Carybé. A produção amadiana, embora imersa no
mesmo contexto dos demais artistas “baianos”, pode ser tida como mais
representativa para uma exposição arquetípica da Bahia e de seus habitantes, tal
como atesta Pinho (1998)21. Isso porque, embora o livro Bahia de todos os santos,
datado de 1945, possa parecer o mais emblemático para a construção de uma idéia
do baiano com traços singulares, esta obra é representativa da prosa regionalista da
década de 1930, cujos expoentes nacionais de destaque são, além do próprio Jorge
Amado, José Lins do Rego e Graciliano Ramos.
Esse segundo momento do Modernismo nacional, do qual a obra amadiana
faz parte, tem como característica a valorização da cultura regional de outros
estados do país, além do eixo Rio - São Paulo. Portanto, imbuído dessa concepção
literária, é que Jorge Amado tem como matéria-prima e pano de fundo para os seus
primeiros romances o cotidiano dos baianos, estejam eles em Salvador ou na região
cacaueira. Deste modo, as referências ao candomblé, à culinária, às festas, à
pobreza e aos monumentos arquitetônicos soteropolitanos seriam elementos
recorrentes nesse período de sua produção literária. 20 Goldstein (2002, p.113) referenda a idéia da cumplicidade entre os artistas baianos desse período, especialmente tendo Jorge Amado como núcleo, na medida em que muitos desses artistas iriam ilustrar os seus livros: “Existe na Bahia um círculo de intelectuais e artistas auto-referentes e produtores de uma certa representação de ‘baianidade’, no qual Jorge Amado toma parte, juntamente com artistas como Mestre Didi, Carybé, Floriano Teixeira, Calasans Neto, Mário Cravo e outros”. 21 Ainda segundo Pinho (1998, p.10), a obra de Jorge Amado pode ser considerada “como síntese exemplar do processo ideológico-discursivo de formação de uma representação universalista e, portanto, arbitrária, da ‘cultura baiana’”.
33
Não podemos compreender, em sua plenitude, o aporte que a obra de Jorge
Amado deu à noção de baianidade, sem termos em vista que a década de 1930 foi
um momento de grande reflexão do país acerca de si mesmo por parte de alguns
intelectuais de renome.
Nessa época, paralelamente à gênese dos romances do escritor baiano, vêm
à tona obras de considerável valor reflexivo sobre o processo de formação da
nacionalidade brasileira como Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque de
Holanda e Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre. De certo modo, Jorge
Amado, ao se apropriar de tais contribuições, iria dialogar sobretudo com Freyre e
apresentar sua visão otimista do processo de miscigenação, que acabaria por
subsidiar o mito da “democracia racial”, ao qual será dada atenção especial adiante.
Além do surgimento de obras que buscavam identificar as matrizes para a
conformação de um Brasil enquanto nação, sobretudo sob a perspectiva étnico-
racial, outros fluxos/acontecimentos se influenciavam mutuamente naquele momento
do país com implicações para a elaboração da idéia tanto de baianidade quanto de
brasilidade. Como nos lembra Goldstein (2002), em sua análise antropológica da
obra de Jorge Amado, a expansão dos cultos de candomblé, a legalização da
capoeira em 1937 e a massificação do futebol, embora essa última manifestação
não tenha um vínculo com a questão racial propriamente dita, colaborariam para o
delineamento do que seria eminentemente nossa “cultura nacional”.
Aliás, na questão aparentemente binária, pois que se aproxima mais da
complementaridade entre Bahia e Brasil, na conformação de suas identidades,
Goldstein (2002) irá defender o postulado de que a literatura amadiana teria, ao
mesmo tempo, a capacidade de representar os traços típicos – e tradicionais – não
só dos baianos, mas também dos próprios brasileiros. Para a pesquisadora, a
brasilidade e a baianidade, na obra de Jorge Amado, andariam novamente de mãos
dadas. A capoeira, o malandro, o candomblé e a culinária, elementos apontados
pelo escritor como expressivos da cultura baiana, estariam conformados em uma só
imagem: a do baiano como uma espécie de metonímia do brasileiro. À esteira disso,
surgiria o reconhecimento e, conseqüentemente, a valorização de uma cultura
regional – entenda-se baiana –, nitidamente expressa pelo escritor itabunense:
Existe uma cultura baiana com características próprias, originais? Creio que sim. Aqui em toda cultura nasce do povo, poderoso na Bahia é o povo, dele se alimentam artistas e escritores [...] Essa ligação com o povo e com seus
34
problemas é marca fundamental da cultura baiana que influencia toda cultura brasileira da qual é célula mater (AMADO apud PINHO, 1998, p. 5). (grifo nosso)
Interessante notar como, para Jorge Amado, as características constituintes
da baianidade estariam presentes também na noção de brasilidade. A relação entre
Bahia e Brasil em sua obra, a partir da contribuição de Goldstein (2002), poderia ser
tida da seguinte maneira:
A região da Bahia – em todas as suas facetas, como a paisagem marítima, o cotidiano, a pobreza, as festas, a comida, a capoeira e os cultos afro-brasileiros – fornece a moldura para a sua criação. Grosso modo, na representação que Jorge Amado constrói do Brasil habita a crença de que, entre nossas virtudes estão: a grande mestiçagem cultural e biológica entre índios, africanos e europeus; a exaltação dos cinco sentidos e dos prazeres sensuais; o amor à festa e a alegria de viver; a tolerância racial, a solidariedade; e, finalmente, a excepcional riqueza da cultura popular brasileira, na música, no artesanato, na culinária, nas trovas populares (p. 109-110).
Pode-se constatar, após esse breve percurso analítico sobre parte da obra de
Jorge Amado, que a esfera da literatura, tida por Pinto (2003, p. 4) como uma das
seis arenas da baianidade – a literatura; as artes visuais; a música de massa; o
carnaval; a mass media; o turismo –, seria um suporte estético privilegiado na
construção de uma “identidade cultural”. Entretanto, seria ingênuo afirmar que a
literatura de Jorge Amado teria sido a causa de um processo de sedimentação da
idéia de baianidade. Preferimos pensar que todos os percursos – música, literatura,
artes plásticas, a sociologia de Gilberto Freyre, ações estatais outras – se
retroalimentavam, até porque Jorge Amado também sofreu influências dos
romancistas de 30, de artistas como Verger e Carybé e vice-versa, visto que suas
obras foram permeadas por certa noção de baianidade herdada de diálogos
estéticos, políticos e científicos.
Se o empreendimento brasileiro de formação do Estado-Nação, processo
iniciado na Independência e que se estende para muito além da República, deveu-
se sobremedida à literatura, com destaque para a prosa romântica, não há como
negar também o vínculo entre a edificação de uma idéia de Bahia como uma
“comunidade imaginada” (PINHO, 1998, p. 1) e a literatura. Embora sob outros
termos, afinal de contas a literatura amadiana tinha um peso bem menor que o
Romantismo – movimento que viu no índio, não no negro, o “outro” exótico por
natureza –, a literatura dos romancistas de 30, em que pese a participação de Jorge
35
Amado, contribuiu, como discurso artístico, não só para inventar o Nordeste
(BARBALHO, 2004), mas também para reforçar uma “identidade cultural baiana”.
Após uma rápida passagem sobre alguns alicerces estéticos da baianidade
da primeira metade do século XX e que ainda hoje encontram ecos em setores da
sociedade22, a exemplo da preguiça e da visão metonímica da Bahia representando
o Brasil, pôde-se constatar que o campo das artes foi influenciado por idéias
oriundas da academia, como a Sociologia de Freyre, e da política, como o projeto de
forjar uma brasilidade. Todas estas ações são entendidas aqui como fluxos que se
afetavam mutuamente e que, portanto, não podem ser entendidos de forma isolada.
Feito isso, continuemos a nossa análise, mas agora sob a perspectiva
governamental, tomando as políticas públicas relacionadas à cultura após os anos
de 1950. Colocar esse tema como um item à parte se deve mais à busca de uma
exposição mais didática do que propriamente a um seccionamento dessas esferas –
política, estética, acadêmica, econômica etc. – que, como já ressaltamos, se
retroalimentam e que são interdependentes.
1.2.3 As políticas públicas de valorização do patrimônio nacional, o mito da
democracia racial e a política externa pós-50
Há alguns parágrafos acima, onde analisamos a plataforma estética composta
pela literatura, música e artes visuais, e que evidenciaram um “jeito de ser baiano”,
mencionamos que um dos fluxos ou movimentos responsáveis pela idéia de
baianidade, além das produções artísticas, se resumia em ações estatais. Foi dito,
de forma breve, que estava em voga, sobretudo a partir dos anos de 1930 e nas
décadas subseqüentes, um projeto de produção de uma “cultura brasileira”,
decorrente da tentativa de se formatar a “identidade nacional”.
22 Aliás, parece ser histórica, além de atual, a vinculação entre uma idéia de Bahia, cuja “cultura típica” estaria fortemente impregnada da alegria, da sensualidade, do exotismo e do sincretismo religioso, e de Brasil. Tanto é que Neto (2007, p. 8), ao analisar peças publicitárias recentes da Bahia, em especial a campanha “A Bahia é o Brasil” referenda essa associação de longa data. Depoimentos de turistas, ao longo das propagandas, endossam a tese de que há uma busca ainda vigente em associar fortemente a Bahia à história do Brasil e aos brasileiros mediante o uso de analogias e metonímias. As sentenças a seguir, citadas pelo autor ao analisar algumas peças publicitárias do Estado, são emblemáticas para ilustrar uma vinculação ainda maior entre uma suposta “cultura do baiano” com uma “cultura do brasileiro”. “A Bahia está muito dentro da gente [...]; “Brasileiro que é brasileiro tem sempre um pedacinho da Bahia”; “O Brasil começa na Bahia”; “A Bahia é o coração do Brasil”; “Baiano é sangue bom. [...] “Todo brasileiro é baiano também”.
36
Eis que adentramos em mais um capítulo dessa iniciativa: a
institucionalização do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o SPHAN,
em 1937. De início, sabe-se que um dos objetivos da criação do órgão era “a
identificação de um patrimônio cultural brasileiro, reconhecido como distinto das
sociedades norte-americana e européias” (SANTOS, 2005, p. 77).
Da década de 1930 até a década de 1970, temos uma contínua intervenção
do Estado na esfera da cultura, sobretudo por meio do incentivo à criatividade, à
difusão das criações culturais e da preocupação com a preservação do patrimônio
nacional. Preservação essa que, se no início tinha uma visão restrita do patrimônio,
ao focar primordialmente as construções físicas, em um segundo momento, passou
a incorporar manifestações imateriais do patrimônio, dissociando-se gradativamente
de um paradigma patrimonial calcado em pedra e cal. Valores tradicionais de várias
regiões do Brasil passaram a ser alvo de ações governamentais visando assegurar a
sua continuidade, especialmente a partir de 1966/67, quando a linha de ação do
tombamento oficial passou a contemplar valores tradicionais (SANTOS, 2005, p. 79).
Parece claro que ações oficiais referentes ao patrimônio cultural tiveram peso
ao colaborar para uma construção arquetípica da Bahia, em que pese a
ressignificação do Pelourinho no final da década de 1960, na medida em que a
intervenção nessa área seria resultado dessa política valorativa de elementos
culturais relevantes para a “nação brasileira”. Assim, o Pelourinho, ao pensarmos no
caso da Bahia, se tornaria o lócus patrimonial privilegiado em âmbito estadual,
mormente ao levar-se em conta sua íntima associação com o turismo. A relação do
Pelourinho com o turismo pode ser mais bem compreendida ao se ter em conta que
um dos objetivos da intervenção urbana no Pelourinho com vistas a revitalizá-lo
pode ser atribuído aos benefícios econômicos que tal intervenção poderia suscitar,
como bem nos lembra Santos (2005, p. 80)23.
Entretanto, qual era a situação econômica na Bahia por volta de meados do
século passado? Qual era a situação do Estado naquele momento em que,
subjacente ao projeto de preservação de áreas relevantes para o patrimônio
histórico-cultural brasileiro, havia um projeto de reanimação econômica?
23 Segundo o autor, a iniciativa de preservar áreas significativas do patrimônio cultural “implicava, através do turismo e valorização cultural, em reativar a economia de determinadas áreas que apresentassem ‘aspectos dos mais ricos em história e arte, em belezas naturais e em verdadeiros mananciais de costumes e tradições dos mais caros à nossa etnografia’” (SANTOS, 2005, p. 80).
37
A Bahia viveu uma grande estagnação econômica desde a metade do século
XIX até a década de 1950, situação somente contornada a partir de 1953 com a
instalação da Petrobrás no Recôncavo Baiano e, posteriormente, do Pólo
Petroquímico de Camaçari juntamente com o aporte da indústria siderúrgica e
alimentícia na região (MOURA, 2001, p. 120-121). Esse período, conhecido no
Estado por “enigma baiano”, (RISÉRIO, 1981; MOURA, 2001, p. 121) deu lugar a
uma tentativa de superar esse marasmo econômico por meio de um amplo processo
de “planejamento integrando áreas diversas como a saúde, educação, habitação, o
turismo e a cultura” (SANTOS, 2005, p. 55). Assim, esta ação governamental,
associada à política de valorização do Pelourinho, colaborou para que regiões de
grande excepcionalidade do ponto de vista patrimonial, como é o caso de Salvador,
pudessem ter suas economias reativadas mediante atividades como o turismo.
A relação entre o aspecto econômico e a questão cultural na Bahia parece ter
ainda outros desdobramentos, em especial ao considerar que essa lacuna de
aproximadamente 80 anos entre o final do século XIX e meados do século XX possa
ter impactado a própria idéia do que seria uma cultura baiana ou baianidade. É o
que defende Antônio Risério ao afirmar que o isolamento cultural e econômico da
Bahia nesse período colaborou para a formação de uma “cultura baiana”. Segundo o
ensaísta, “[...] foi em meio ao mormaço econômico e ao crescente desprestígio
político que práticas culturais se articularam no sentido da individuação da Bahia no
conjunto brasileiro de civilização.” (RISÉRIO apud MOURA, 2001, p. 122).
Na contramão de Risério, Pinho (1998) e Moura (2001) vêem esse espaço
temporal em que a economia da Bahia se encontrou estagnada com um olhar mais
crítico, não atribuindo diretamente a ele a causa para a conformação de uma lógica
cultural única capaz de “sintetizar” aquilo que seriam os baianos.
Ainda no que tange à idéia de “enigma”, Moura (2001, p. 123) vê aí, na
própria adoção desse termo, a operacionalização de uma lógica que visa esconder
as reais causas para o marasmo econômico da Bahia. O uso do termo “enigma”
pelas elites baianas é um demonstrativo da busca por esconder que os motivos
dessa estagnação econômica são, na verdade, decorrentes da falta de um projeto
político consistente que equiparasse o Estado aos avanços do sistema capitalista
mundial e ao desenvolvimento tecnológico da própria economia brasileira.
Deste modo, a atividade turística, como nos lembra Silva (2004), que já vinha
sendo acalentada como alternativa econômica para o Estado desde o início dos
38
anos de 1950, momento pelo qual o Estado passa por um surto de industrialização,
passaria a ter um papel de destaque ao impulsionar economicamente regiões como
Salvador. Nota-se mais uma vez como a esfera econômica está diretamente
imbricada com a dimensão cultural, sobretudo no que tange às políticas públicas
para turismo e cultura.
Essa política cultural de preservação do patrimônio oriunda do Governo
Federal na década de 1960, associada ao desenvolvimento econômico de certas
regiões, tinha como um dos objetivos forjar uma “personalidade brasileira”, discurso
adotado já antes pelo presidente Juscelino Kubitschek ainda nos anos de 1950.
Novamente, nos deparamos com essa permanente busca por delimitar uma “cultura
nacional“, um “patrimônio nacional”.
A busca por uma “identidade nacional” teve, como já vimos, fortes
repercussões para a valorização dos regionalismos culturais, na medida em que
essa cultura nacional seria também resultado de uma maior evidência de traços
culturais “típicos” de nosso povo24·. Vejamos como isso impulsionou, agora de forma
mais detalhada, a ascensão de um modus vivendi tipicamente baiano entre as
décadas de 1950 a 1970. Ressalta-se mais uma vez que essa contextualização se
fará agora sob a ótica das ações governamentais, visto que os suportes estéticos e
acadêmicos já foram alvos de análise, e, apesar de a gênese desses processos
estéticos remontarem à década de 1930, os mesmos ainda repercutiam em vários
setores da sociedade após a segunda metade do século passado.
Com o intuito de objetivar a análise das ações governamentais referentes à
questão da cultura concernentes ao período acima delineado, buscar-se-á mostrar
como ações desencadeadas pelo Governo Federal, em associação com alguns
intelectuais brasileiros, fomentaram a emergência de mais um elemento passível de
ser acionado pela lógica da baianidade: o mito da democracia racial.
O mito da democracia racial já havia sido, de certo modo, preconizado por
Gilberto Freyre na década de 1930, na medida em que o intelectual via com ares
positivos o encontro das três “raças” no Brasil, chegando mesmo a considerar o
nosso país como um “paraíso racial”. Entretanto, Freyre não estava sozinho, visto 24 Um documento emblemático para ilustrar essa tendência em conceber a cultura nacional em espaços regionais é o Compromisso de Brasília, resultado de um encontro que congregou governadores, secretários de educação, prefeitos e representantes de entidades culturais de todo país. Desencadeado pelo Ministério da Educação, em 1970, esse acontecimento foi de suma importância para estimular a exposição, em espaços regionais, de elementos culturais capazes de cunhar uma “consciência nacional” (SANTOS, 2005, p. 83).
39
que uma gama de intelectuais, nas décadas seguintes, corroboraria a existência
dessa idéia, dentre os quais figuram Josué de Castro e Thales de Azevedo. Este
último é especialmente importante em função de sua tese sobre a hierarquia social
baiana subdividida em três estratos, a qual ajudou a camuflar, como nos lembra
Santos (2005, p. 13), a discriminação racial.
Mas, como o mito da democracia racial se vincula efetivamente com a lógica
da baianidade?
Em primeiro lugar, expliquemos o que significa este mito. O Brasil,
diferentemente dos EUA em que subsiste ainda hoje uma lógica racial binária –
negros x brancos –, ao ter na miscinegação uma característica da própria
empreitada colonial, passaria a ter, dentro desse processo de construção da “cultura
nacional”, a figura do mestiço como ícone, por natureza, do brasileiro legítimo.
Associada à questão da mestiçagem, que é um fato, a utilização dessa característica
singular no processo de formação social do Brasil, por parte dos governantes,
culminou em uma idéia disseminada em grande parte do tecido social: de que no
Brasil não há preconceito de cor, já que aqui todos seriam descendentes de negros,
índios e europeus.
Em segundo lugar, lembremos que ainda na década de 1950, na esteira das
contribuições de Freyre e Jorge Amado25, dentre tantos outros, continuava em voga
no Brasil o projeto de consolidação de nossa “identidade nacional”. Para tanto, era
preciso trazer à tona a herança negra na formação cultural de nosso povo, na
medida em que a inserção do elemento afro era fundamental para atestar a
coexistência harmônica das três raças dentro do processo de formação cultural do
Brasil. Esta valorização gradativa da população negra será a matriz para que, ao
mesmo tempo em que se reafirma o mito da democracia racial, se edifique também
uma suposta cultura típica baiana fortemente calcada no substrato oriundo da
cultura afro.
Ao analisar a associação entre a Bahia e o Brasil, em termos institucionais,
Silva (2004, p. 30) alerta que ambos buscavam nesse período configurar
25 Apesar de Jorge Amado ter sido alvo de nossa análise na seção anterior, é importante reforçar que a sua contribuição para a consolidação de uma cultura tipicamente baiana não se circunscreveu às décadas de 30 e 40. Pelo contrário, pois, como afirma Pinho (1998) ao dividir a obra de Jorge Amado em dois momentos – 1934-1958 e 1958 até atualmente –, a produção amadiana, em sua segunda fase, é voltada para “festiva polifonia de estereótipos baianos”, com ênfase para a obra Gabriela Cravo e Canela (1958) (idem, p. 9).
40
representações da cultura oficial tendo como matriz comum a questão da cultura
negra. Nas palavras da autora:
Trata-se da própria postura do governo brasileiro, assim como do governo baiano, que desde os anos de 1950, e ainda mais explicitamente nos anos de 1960 e de 1970, investem em esforços na produção de uma “cultura afro-brasileira” que, desde que abrigada no domínio do folclore, é importante na produção de uma “cultura nacional”, de uma “cultura brasileira”, que reflita a nação “misturada” e sem “preconceitos raciais”.
Alguns acontecimentos relevantes ainda na década de 1950 reforçam a tese
dessa associação entre Estado e intelectuais em prol da “cultura nacional”. Em 1959,
se deu a fundação, por parte de Agostinho Silva, do Centro de Estudos Afro-
Orientais (CEAO) da UFBA. Além disso, o anseio do governo federal por uma
afirmação brasileira referente às relações internacionais levou o mesmo a valorizar e
a reforçar os traços culturais negros vigentes em nossa sociedade com o intuito de
referendar o mito da democracia racial, visando assim a uma maior articulação
econômica com países africanos. Interessante notar que, apesar dessa busca por
uma unidade representacional do brasileiro composta pelas três raças ter sido um
projeto de longa data, há, a partir da década de 1950, um maior investimento do
Estado nesse projeto, por intermédio de
[...] políticas públicas, cujo leitimotiv é a convivialidade racial como matéria-prima na implementação dessas políticas, tanto em termos políticos e econômicos quanto culturais stricto sensu (SANTOS, 2005, p. 20-21).
Ainda na década de 1960, e retornando à figura de Agostinho Silva, o mesmo
pode ser visto como um articulador dessa guinada na política externa do Brasil em
direção ao continente africano, na medida em que ele teve papel de destaque na
reestruturação das relações diplomáticas brasileiras com países da África no
governo Jânio Quadros. Este herdou de seu antecessor, Juscelino Kubitschek, a
concepção de que o Brasil poderia e deveria, em função de seus vínculos ancestrais
com a África, desempenhar um papel de destaque no intercâmbio entre os
continentes africano e sul-americano.
Assim, visando dividendos econômicos – superávit na balança comercial – e
políticos – reafirmar o seu papel de liderança entre os países subdesenvolvidos no
que tange à política externa – o Brasil se lança, na década de 1960, em direção à
África, embora desde o governo de Juscelino (1956-1960) existisse uma pró-
atividade maior do país concernente aos assuntos daquele continente, no sentido de
41
apoiar a independência daquelas nações coloniais, além, é claro, de reconhecer o
legado cultural advindo da África para o processo de formação da “identidade
nacional brasileira”. Foi o próprio Juscelino que afirmou que:
Orgulhamo-nos de agora proclamar isto, do muito que devemos aos que vieram um dia da África para participar do engrandecimento deste país. Reconhecemos a contribuição do sangue negro para a formação do povo brasileiro, como dele nos orgulhamos. [...] Nossa dívida com os oriundos da região africana, e cujos descendentes são nossos irmãos patrícios iguais aos de qualquer outra cor ou de origem, durará enquanto durar o povo brasileiro (apud SANTOS, 2005, p. 33).
Assim, a política externa brasileira passou, a partir daquele momento, a se
calcar fortemente no ideal, reforçado por teóricos como Ignácio M. Rangel e Josué
de Castro, que há um vínculo por demais forte entre o Brasil e a África. A questão
racial, como ordem do dia nas relações externas brasileiras, impulsionou o
estreitamento das relações políticas e econômicas com a África, sobretudo ao se ter
em mente que seríamos o país mais africanizado fora do próprio continente africano.
Deste modo, essa valorização do fenótipo negro implicou automaticamente em uma
mudança de postura referente às políticas culturais então em voga no Brasil. É
razoável conceber, desta maneira, que o papel da Bahia dentro desse processo de
valorização da cultura negra no país seria fundamental.
Além de uma política externa cada vez mais “preocupada” com a África, havia
concomitantemente no Brasil uma política cultural fortemente imbuída pelo ideal da
preservação do patrimônio cultural do país, mas, agora, de uma maneira mais
holística, na medida em que o foco não estava somente nos monumentos
propriamente ditos. As manifestações culturais do “povo”, em especial aquelas de
origem afro-descendente, seriam, a partir daquele momento, levadas em conta sob a
ótica dessas ações governamentais.
O turismo começava então a despontar como alternativa não só econômica,
mas até mesmo como meio para assegurar a preservação de sítios históricos de
natureza única. Importante ressaltar que a atividade turística na Bahia, quando
vinculada às manifestações culturais negras, teve seu início ainda na década de
1950, época em que o candomblé já tinha assegurado um novo status: “de prática
de origem africana perseguida pela polícia para símbolo da Bahia” (SILVA, 2004, p.
45). O candomblé tornava-se, assim, o ícone, por excelência, da “cultura baiana”, ou
mesmo da “cultura brasileira”. E o turismo, ao se aportar em manifestações culturais
42
de matriz negra, incentivava a valorização das mesmas, desde que essas fossem
percebidas como algo da Bahia e, no fundo, do próprio povo brasileiro.
Necessário se faz frisar que a valorização da cultura negra, feita por parte do
Estado, não foi algo isolado. Uma parte da população negra de Salvador, desde a
década de 1960, já vinha se organizando para demarcar sua diferença. Isso pode
ser visto com a criação dos blocos de índios, que alguns autores consideram como
os precursores dos blocos afro, instituídos nas décadas de 1960 e 1970, período em
que se deu o processo de reafricanização do carnaval de Salvador. Evocamos esse
dado aqui para ilustrar que esse processo de emergência da cultura negra no
cenário nacional, e também baiano, deve ser percebido muito mais como uma
mistura de fluxos ou movimentos, do que tido sob a ótica de uma linearidade – que
implica o paradigma de causa e efeito. Voltaremos logo adiante a essas questões,
em especial, o movimento de reafricanização do carnaval soteropolitano.
O fato mais marcante na década de 1960, momento em que se visualiza uma
maior valorização da cultura negra, e que é intensificada visando diferentes fins
pelos diversos atores envolvidos – movimento negro, Estado, artistas –, é a natureza
do próprio processo de valorização, na medida em que as diversas ações partem
tanto dos afro-descendentes mais pobres de Salvador quanto do Estado Nacional.
Tanto as políticas públicas quanto as subjetividades dos indivíduos estão inseridas
em um contexto mais abrangente de valorização do afro, momento em que o
movimento rastafari e o reggae, bem como a soul music americana e o movimento
de independência de países africanos alcançam grande notoriedade e, sobretudo,
repercussão no Brasil, influenciando aqui a subjetividade da população negra ao
longo do processo de valorização da negritude do país, em especial em Salvador e
no Rio de Janeiro. Todos esses fluxos agenciavam-se uns aos outros no Brasil em
uma espécie de rede e repercutiram contundentemente no processo de
reafricanização do carnaval soteropolitano (SILVA, 2004, p. 21-22), assunto que irá
nos deter na próxima seção.
Na próxima seção, este trabalho irá mostrar como esses movimentos –
estéticos, políticos e econômicos – afetaram a subjetividade da população negra,
bem como foram afetados por ela, favorecendo assim não só um crescente orgulho
de ser negro, mas favoreceram acontecimentos como o próprio movimento de
reafricanização do carnaval de Salvador. Este debate é particularmente caro à
questão da baianidade, pois, como já foi constatado, a valorização de manifestações
43
culturais afro-descendentes, em que pese o papel do carnaval soteropolitano,
propiciou que essas mesmas manifestações, primeiramente de essência
eminentemente “negras”, alcançassem um estatuto “oficial”, isto é, passassem a
usufruir da insígnia de manifestações “baianas”, ou mesmo “brasileiras”.
1.3 A Baianidade enquanto construção do trade turístico
A construção da idéia de baianidade continuaria, a partir dos anos de 1970,
mediante outros termos. É importante frisar que essa divisão temporal que tem a
década de 1970 como referência não exclui a produção posterior a essa data de
outros suportes estéticos – música, literatura, artes plásticas – que contribuíram para
forjar a idéia de uma cultura tipicamente baiana. Entretanto, há, naquele momento,
algumas particularidades para o delineamento de uma idéia de “cultura baiana” que
não podiam ser observadas anteriormente, como: i) reafricanização do carnaval
soteropolitano; ii) associações entre os afoxés e os blocos afro com a elite política da
Bahia, capitaneada por Antonio Carlos Magalhães, que, se favoreceu uma maior
visibilidade das manifestações afro-brasileiras, acabou por circunscrevê-las em um
aparato governamental que colaborou para a conversão do patrimônio cultural negro
em patrimônio cultural – e oficial – baiano; iii) ascensão do turismo como vetor
econômico relevante para Salvador e fortemente calcado nos atrativos culturais de
matriz negra; iv) a costura de todo o legado estético/artístico oriundo da música,
literatura e artes visuais pelo trade turístico soteropolitano. Esses acontecimentos, e
é importante destacar até pelo fato de ocorrerem concomitantemente, devem ser
entendidos como fluxos que se entrecruzavam, um colaborando para a conformação
do outro. Novamente a divisão visa a favorecer uma exposição mais clara, antes de
analisar cada aspecto de maneira compartimentada.
Obviamente que muitas matrizes da baianidade remontam a um passado
mais longínquo, entretanto, a década de 1970 é pródiga em acontecimentos – como
a ascensão do turismo em Salvador e a substancial quantidade de políticas públicas
no setor do turismo e da cultura – que viriam a colaborar para a sedimentação dessa
“lógica identitária”. Sedimentação no sentido de que a lógica da baianidade passaria,
pelo menos por parte do poder público, a ser assumida com grande recorrência com
o intuito de ser usada para sintetizar o que seria a Bahia.
44
Uma pequena amostra dessa consideração pode ser extraída da revista
soteropolitana Turismo, realidade baiana e nacional, publicada nos anos de 1970.
Segundo uma matéria do periódico, o “jeito de ser baiano” se resumiria no
[...] povo e seus cantares. O ritmo lento que invade corações agitados e acalma. A doçura que ocupa os espaços vagos da conturbação geral. A sensualidade livre não inteiramente atingida pela cultura do ocidente. Herança, entre outras, do negro viver africano. [...] A malandragem sábia e discreta, como a capoeira que não agride. Mas resolve. “Capoeira, meu filho, é ginga, é malícia, é tudo que a boca come” (Pastinha, mestre de vida e capoeira). E a comida, feita com o ouro líquido do dendê. Dividida delicadamente em pequenos pedaços de civilização: acarajé, abará e doces sem dendê, mas com muito coco e açúcar (apud SANTOS, 2005, p. 88).
E a valorização da cultura negra poderia ser concebida como um estágio
intermediário para a constituição de uma cultura baiana, tal como apresentado na
mesma revista:
O contágio é tanto que não há aquele que não retorna na primeira oportunidade. Aí, então, é que reside o grande mérito e sucesso da Bahia como centro de atração turística, pois raramente o turista é induzido a revisitar um mesmo local. Na Bahia o turista se vê envolvido por encantos que o entrelaçam ao povo baiano. O enfeitiçamento é grande e maior ainda a sensação de ter encontrado algo de si, alguma coisa de sua vida íntima. O fenômeno é inexplicável. Sabe-se apenas que na Bahia todos se comunicam e se identificam mutuamente, de maneira bem simples e com bastante afetividade (apud SANTOS, 2005, p. 89).
Passemos agora para a análise de processos e movimentos ocorridos a partir
da década de 1970 e que, posteriormente, acabaram por favorecer que a cultura
afro fosse aos poucos, segundo a ótica do trade turístico, sendo menos negra e mais
baiana.
1.3.1 Reafricanização do carnaval de Salvador
Um fator que contribui para a consolidação de uma suposta “cultura baiana”
com fortes alicerces na negritude foi o processo intitulado reafricanização do
carnaval de Salvador. Não é nosso objetivo detalhar esse processo, nem mesmo
pormenorizar as variantes internas e externas que possibilitaram esse movimento
que atingiu seu auge no carnaval soteropolitano na década de 1970. Deseja-se aqui
elencar alguns pontos relevantes para ilustrar como a reafricanização do carnaval de
Salvador participa da constituição da idéia de baianidade.
45
Primeiramente, o processo de reafricanização26 não deve ser entendido como
algo circunscrito somente ao carnaval soteropolitano. Antes disso, o seu lastro de
alcance é considerável, na medida em que esse processo “tomou conta da cidade
de Salvador nos anos de 1970 e de 1980. Nesse período, ou mesmo anteriormente
a ele, surgiram inúmeros grupos de teatro, de dança ou grupos folclóricos cuja
temática era o candomblé” (SILVA, 2004, p. 45).
Esse processo chamado de reafricanização deve ser visto dentro de uma
lógica mais ampla: a de que a partir da década de 1970, vários movimentos sociais
que não tinham seus anseios atendidos pelo Estado organizaram-se demandando
seus direitos. É o caso dos afrodescendentes – fossem eles institucionalizados ou
não – que, a partir das influências recebidas dos movimentos de independência
africanos, dos movimentos negros norte-americanos Black Power e soul music, do
reggae e do rastafarianismo e movimentos da contracultura – hippie, rock etc. –,
juntamente com fatores internos – ascensão do candomblé, criação de afoxés,
vigência dos blocos de índio, impulso econômico da região de Salvador pós-1950,
crescente organização do movimento negro –, afirmariam de vez o orgulho de ser
negro. E consolidariam isso ao se assumirem no carnaval soteropolitano por
intermédio dos blocos afro (SILVA, 2004).
Todos os movimentos acima citados, em especial aqueles de alcance
nacional fazem parte da proposta de diferenciação da população negra no interior da
sociedade brasileira. Naquele momento, como ainda hoje, “ser negro trazia
problemas específicos e, portanto, exigia também direitos específicos” (p. 27).
Assim, a busca por distinção por meio da assunção de uma especificidade – a
herança africana – trouxe à baila não só um crescente interesse pelo continente
africano nos anos de 1970 e de 1980, mas reforçou a implementação de um
conjunto de práticas, tais como a criação de afoxés, a formação dos blocos afro e a
criação de organizações que buscavam defender os interesses dos negros. Mas,
ironicamente, esse movimento – a reafricanização do carnaval de Salvador – que
consolidaria um conjunto de práticas e agenciamentos – estéticos, políticos,
econômicos e religiosos – que buscava a diferenciação do negro foi, logo em
seguida, utilizado justamente para inserir a cultura negra dentro de algo mais
26 O termo reafricanização é utilizado por Risério porque “a presença maciça dos afoxés e dos blocos afro nas ruas de Salvador no carnaval o fez lembrar uma antiga afirmação de Nina Rodrigues, de que ‘a festa brasileira é ocasião de verdadeiras práticas africanas’” (RISÉRIO apud SILVA, 2004, p. 32), referindo-se aos carnavais do início do século XX.
46
“abrangente”: a cultura baiana. E, no que diz respeito ao carnaval, como veremos a
seguir, esse movimento é nítido.
Milton Moura (2001) vislumbra no carnaval soteropolitano reafricanizado a
síntese das categorias constituintes do texto identitário da baianidade, a saber: a
unanimidade – evento de todos, independente da classe social ou origem –, a
familiaridade – temáticas carnavalescas de diversas origens e gradações – e a
religiosidade – culto aos artistas e entidades partícipes da trama carnavalesca. Além
disso, uma quarta categoria da baianidade, a sensualidade, estaria vinculada à
negritude, como um elemento fundamental do padrão de beleza do “autêntico”
baiano. Moura deixa clara a importância do carnaval para a noção de baianidade:
Ora, quem passa aí como a grande atração do Carnaval não é esta ou aquela entidade; tampouco é este ou aquele modelo organizativo. É o próprio arranjo civilizatório que o texto da baianidade procura organizar espetacularmente como razoável e amável. Inicialmente, esse texto se apresenta como dramático e fortemente marcado pelo elogio da unanimidade: o Carnaval é a festa de todos os baianos e de todos os turistas [...] Além disso, o texto do Carnaval apresenta os baianos aos baianos como pessoas felizes, familiares, alegres, sensuais, de bem com Deus e com os outros. Tudo pode se reconfigurar no espaço do Carnaval, de modo que os diferentes vetores podem atuar no mesmo campo que é a festa. O afro logrou legitimar um determinado padrão de beleza negra, mediante um acordo tácito com as oligarquias que detêm o controle dos aparelhos político-institucionais (p. 244-245).
Em suma, o que se quer evidenciar aqui é que o processo de reafricanização
do carnaval, ao afirmar o peso dos afro-descendentes para a conformação desse
grande evento, colaborou para que a própria festividade se tornasse um substrato
privilegiado na lógica da baianidade. Se, em um primeiro momento, o carnaval era
visto como uma manifestação cultural vinculada à negritude, o evento soteropolitano,
passaria, cada vez mais a ser uma espécie de flâmula dos baianos. Aqui, a lógica de
domesticação do patrimônio cultural negro ao ser transformado em patrimônio
cultural baiano – o que implica a mestiçagem – é recorrente. Embora Risério afirme
que “foram exatamente os pretos que deram as características originalmente básicas
ao carnaval baiano” (1981, p. 48), é preciso nos indagar acerca de que signos ou
símbolos estão majoritariamente presentes no carnaval soteropolitano na
contemporaneidade. Seriam os afoxés ou os blocos afro? Até pode ser, mas, parece
pouco razoável negar que o carnaval soteropolitano hoje não tenha como imagens-
força privilegiadas os trios elétricos, o axé e o pagode baiano, mesmo que
compareça aí o elemento negro, normalmente associado à questão da
47
sensualidade. O que importa é que o carnaval contemporâneo de Salvador, ainda
que privilegie hoje menos a matriz negra e mais a mistura quando em comparação
com a década de 1970, por exemplo, pode ser tido, juntamente com o produto
“Verão”, como o maior captador do montante financeiro deixado por turistas no
Estado, como assinala Castro (2005).
O que se afirma aqui não é novo, diga-se de passagem. Risério (1981), já na
década de 1980, alertava para o enquadramento e neutralização das entidades
negras frente à estrutura carnavalesca proposta pela Bahiatursa naquela época. A
domesticação do fenômeno negro se deu a partir da regulamentação dos desfiles
dos blocos afro, isto é, houve a inserção dos mesmos em todo o aparato
carnavalesco oficial. É o que comenta o próprio autor:
Esta inserção dos blocos afro-brasileiros na estrutura oficial do carnaval, a Bahiatursa conseguiu não só disciplinar o fenômeno, adquirindo uma certa ascendência e um certo controle sobre ele, como, além disso, logrou estabelecer um vínculo, ou, mais precisamente, forçou os blocos afro a estabelecerem um vínculo com ela (p. 121).
De certo modo, já adiantamos aqui o tema do próximo tópico do presente
trabalho, que visa pormenorizar algumas implicações do domínio da política sobre o
domínio da cultura na Bahia, colaborando, assim, para que a cultura afro, ao se
associar a instituições e políticos baianos, acabasse por favorecer que a “cultura
baiana” sobrecodificasse a cultura negra.
A partir dos anos de 1970, os órgãos governamentais de turismo passariam a
se legitimar e, de certo modo, a centralizar as imagens de várias agremiações da
cultura negra apresentadas aos turistas. Ou seja, as imagens dos blocos e dos
terreiros de candomblé para o turismo teriam de, necessariamente, passar por uma
“filtragem” da Bahiatursa. Mais do que nunca, estariam dados os termos para o
abrandamento da cultura negra, ao consubstanciá-la como baiana por meio da ação
pública, mormente pela atuação da autarquia estadual de turismo.
Neste sentido, Santos (2005) assinala que, nessa época, a Bahiatursa deu
farta notoriedade ao candomblé, algo que pôde ser observado tanto na “elaboração
de cartazes que mostravam filhas-de-santo incorporadas pelos orixás, quanto na
divulgação do calendário litúrgico dos terreiros” (p. 87). São imagens dessa natureza
que ajudariam a consolidar a idéia de um “jeito tipicamente baiano de ser”.
48
1.3.2 A negritude e a política
A influência da política na arena da cultura na Bahia é de longa data e
presente em praticamente todo o movimento de valorização da cultura negra. Não
somente as agremiações carnavalescas negras foram afetadas por essa
repercussão do domínio da política, mas também o candomblé e a capoeira.
Lembremos que ainda no final da década de 1970 estava presente a própria idéia de
democracia racial que antes abafou do que extinguiu o preconceito racial no Brasil,
cujas conseqüências podem ser vistas ainda hoje com a permanência da concepção
de que não há preconceito de cor, e sim de classes. Bahia, no domínio da cultura,
desde o final da década de 1960, uma proeminência do papel do estado, em
especial representado pela Bahiatursa após 1972. E esta se tornou ainda mais
significativa a partir de 1995, quando o governo estadual instituiu uma secretaria
conjunta para turismo e cultura - SCT -, o que denota a importância estratégica que
a cultura possui para o Estado (BARBALHO, 2004), não só como um recurso
econômico, mas também como um recurso simbólico de grande valia.
Santos (2005) apresenta sucessivos eventos vinculados ao candomblé em
que se pode perceber o quanto certas manifestações afro-brasileiras passaram a
receber a atenção de políticos estaduais. Destaque para o aniversário de cinqüenta
anos de liderança de Mãe Menininha no Terreiro do Gantois, em fevereiro de 1972,
e que contou com a participação de várias personalidades políticas, como Antônio
Carlos Magalhães. Ainda segundo Santos, as relações entre políticos e o candomblé
se notabilizaram pelo fato de que o culto religioso afro deixava de ser alvo da
perseguição estatal e passava a ser veiculado, de forma positiva, pelas autoridades
políticas do Estado, sobretudo como ícone da cultura negra, visando, assim,
reafirmar o diferencial turístico da Bahia.
Ora, para vislumbrar esse vínculo entre políticos e candomblé, basta nos
lembrarmos de como o ex-senador Antônio Carlos Magalhães se notabilizou por
relacionar a sua imagem aos terreiros e aos blocos afro. Foi ele que, ao criar a
Bahiatursa em 1972, colaborou para que a autarquia de turismo estadual tivesse
como uma de suas incumbências a busca por zelar pelo patrimônio cultural advindo
dos negros na Bahia, com destaque para o candomblé. Nos anos de 1970, portanto,
“[...] constitui-se uma política de incremento turístico em que o candomblé passou a
49
ser uma ‘imagem força’, sintetizando todo o ‘ser baiano, as raízes profundas da
cultura e do povo da Bahia” (SANTOS, 2005, p. 132).
Outro exemplo dessa conversão de manifestações culturais afro-
descendentes em “imagens força” da cultura baiana é a capoeira. Tida como ícone
da brasilidade e elevada como esporte nacional em 1973 pelo Conselho Nacional de
Desportos (CND), órgão vinculado ao Ministério da Educação e Cultura, a capoeira
seria adotada pela polícia militar da Bahia ainda na década de 1970 (SANTOS,
2005, p. 119). Entretanto, o que chama a atenção é a diferenciação feita entre a
capoeira angola e a capoeira regional, sendo essa última a privilegiada nos quartéis.
Essa institucionalização de uma capoeira que primava pela mestiçagem, além de
contribuir para a idéia de brasilidade, colaborou para o abrandamento do legado
cultural negro, pois a manifestação cultural, no caso a capoeira, seria designada
como algo “brasileiro” (p. 118), “baiano” ou “mestiço”, e não essencialmente negro. E
não só isso. O estímulo dado pelo governo estadual ao incentivar a capoeira como
manifestação folclórica, visando agregar valor turístico ao Estado, é mais uma
mostra da interferência estatal na seara da cultura.
Contudo, o vínculo entre cultura e política se dá de forma dialógica, isto é, há
certa pró-atividade também das entidades negras em relação ao domínio da política
instituída. Exemplo disso é o fato de que o próprio Ilê Aiyê, segundo Moura (2001, p.
230), manteria boas relações com a burocracia governamental. A imbricação, ao se
estudar a baianidade, entre política e cultura é de tal ordem relevante que, em todas
as análises, em especial a de Pinho (1998), se percebe que o domínio político
comparece como esfera proeminente para a conformação de uma “lógica identitária
baiana”. Segundo o próprio autor,
Esta ideologia é tanto a base para a construção de um consenso político com vistas à dominação, como a base para a reprodução de uma multiplicidade de bens simbólicos, negociados no mercado internacional da cultura (p. 4).
Dito isso, pode-se depreender que a existência de uma “cultura baiana” se
inscreve em toda uma lógica política singular que, tal como defendem Melo e
Procópio (2005, p. 4), estaria associada ao carlismo e a todo o aparato
50
comunicacional27 vinculado à figura do ex-senador Antonio Carlos Magalhães. A
idéia de uma Bahia como Land of Hapiness28, ou do baiano como um sujeito “festivo,
alegre e cantante”, largamente divulgada pelos meios de comunicação29, é
interessante para essas instituições políticas, já que essas imagens minimizam a
percepção da pobreza, da violência e da desigualdade social vigentes em boa parte,
não só em Salvador, mas do próprio Estado.
Além disso, a forte presença do poder público na seara da cultura, em
especial a negra, contribui para a formação de uma imagem de políticos
preocupados com as demandas do povo. A criação de um Centro Folclórico
vinculado à Prefeitura Municipal de Salvador e que buscava incrementar o fluxo
turístico no final dos anos de 1960 é mais um exemplo desse esquadrinhamento das
manifestações culturais negras realizado pelo Estado, as quais eram entendidas,
naquele momento, como folclóricas.
O quê se quer destacar aqui é a grande ingerência do poder público sobre a
cultura negra em Salvador, que acabou por favorecer a que esse patrimônio cultural
negro fosse transmutado em baiano. Pergunta-se, então: quais são os interesses do
Estado, ao legitimar uma gama de imagens-força, antes dos negros, agora dos
baianos, ao referendá-las como ícones da baianidade? Ao tomarmos as indagações
de Santos (2005) acerca das motivações pelas quais se deram as ações oficiais que
envolviam o candomblé, por exemplo, notamos, em uma dimensão mais abrangente,
que
[...] são mais os dividendos políticos que econômicos o que está em jogo. A tradição, nesse sentido, relaciona-se ao discurso do poder, na medida em que as instâncias oficiais, ao defenderem a pureza dos candomblés, simbolicamente, criam um lugar de reconhecimento daqueles que, aos seus olhos, também são imbuídos de poder. Nesse sentido, eu diria que em nível oficial se estabeleceu um lugar para aqueles que detêm um poder cultural. (p. 154-155).
27 Nesse contexto, Pinto (2003, p.5) considera que a partir da década de 1970, além do setor turístico e fonográfico, o setor midiático passa a compor uma tríade responsável por potencializar a questão da baianidade. 28 Mote adotado pela Bahiatursa, ao longo da década de 1980, para publicizar a Bahia no mercado internacional. 29 Um aparato comunicacional privilegiado da indústria cultural baiana, a Rede Bahia, e que controla as afiliadas da Rede Globo no Estado é pertencente ao grupo outrora capitaneado pelo ex-senador Antonio Carlos Magalhães.
51
E, para referendar a tese de Santos, evocamos mais uma contribuição para
estabelecer a relação entre política e cultura em Salvador, porém sob a ótica do
carnaval:
Em contrapartida, esse grupo político [oligarquia política baiana coordenada por Antônio Carlos Magalhães] logrou consolidar, também pela via do Carnaval, uma hegemonia singular, mantendo-se no poder quase ininterruptamente. A força dos arranjos familiares, dos ambientes simples e domésticos às esferas de grande magnitude, se faz sentir na partilha das vantagens institucionais. Convites e oportunidades, financiamentos e apoios logísticos, homenagens – reiteradas homenagens! –, tudo contribui para reforçar a velha teia do patriarcado baiano, marcadamente personalista.[...] A colegialidade desse perfil costura a coesão e solidez dessa teia patriarcal de cima para baixo e de baixo para cima. Não vejo o que poderia ser mais identificável com o texto da baianidade... (MOURA, 2001, p. 246).
Deste modo, podemos retomar uma colocação de Pinho (1998) já
mencionada neste trabalho quando o autor considera que a lógica da baianidade
tem um objetivo político claramente definido. Ou seja, é simplista afirmar que essa
visão naturalizada da cultura baiana seja eminentemente mercadológica. Até
porque, como vimos, os principais atores sociais que formataram essa concepção
identitária são agentes públicos. E o turismo, o que ganhou? Bem, não sabemos
exatamente até que ponto a representação de uma “cultura tipicamente baiana”
contribuiu para uma renda turística alcançada em 2004 da ordem de US$ 2,37
bilhões30, em que pese o papel de Salvador, mas que foi um fator considerável para
isso, parece não haver dúvidas. Analisemos agora como a ascensão dessa prática
econômica favoreceu bem como foi beneficiada pela idéia de baianidade.
1.3.3 Ascensão do turismo
Como já vimos, no final da década de 1960 e início da década de 1970,
ocorria um amplo debate acerca da necessidade de preservação do patrimônio
histórico-artístico do Brasil, que na Bahia teve como ponto primordial a restauração e
preservação do Pelourinho. Essa concepção preservacionista foi estendida para o
domínio imaterial da cultura baiana, ou seja, a preservação do “modo de vida
tipicamente baiano”: a baianidade. A lógica estatal se resumia em
30 Dados da Secretaria de Cultura e Turismo da Bahia. Disponível no site: < http://www.sct.ba.gov.br/estatisticas/analise_desempenho.asp>. Acessado em: 15 de jun. 2007.
52
[...] provar que o turismo, ao invés de ameaçar a cultura pode se constituir num fator de preservação e estímulo às artes, ao artesanato, ao lazer e mesmo à vivencia baiana. Para isso era necessário uma ‘tomada de consciência’ do cotidiano baiano (SANTOS, 2005, p. 90-91).
A afirmação de uma “concepção identitária” na Bahia surge intimamente
ligada à preservação do patrimônio, à busca de símbolos culturais, como o
Pelourinho, capazes de unir o projeto político-ideológico de nação e o turismo. Aliás,
é na década de 1970 que ocorre em Salvador a profissionalização da indústria
turística associada ao florescimento dos meios de comunicação de massa e à
ascensão do carnaval (PINHO, 1998, p. 4). As políticas públicas para o turismo
implementadas pelo governo estadual passam a vincular o destino Bahia a um tipo
específico de leitura da cultura: a baianidade. As ações estatais passariam a se fazer
valer de algumas manifestações culturais vigentes em Salvador como forma de
afirmar a existência de uma vivência diária da cultura baiana, algo tido como um
importante atrativo turístico. Essa concepção de uma “cultura natural da Bahia” é
muito explícita nos discursos do trade turístico da época. Não poderíamos nos furtar
a expor, apesar de longas, as considerações de Gaudenzi, uma figura política
emblemática para a formatação da idéia de baianidade:
Na Bahia e, especialmente em Salvador, as manifestações culturais, os elementos históricos e a paisagem associam-se para criar um encanto e um potencial turístico de alta qualidade. Convém ressaltar que a sua força de atração manifesta-se inseparadamente do seu povo, na sua tradição e nos seus bens culturais e paisagísticos.
O seu povo e os que a visitam vivem e consomem essas tradições populares, paisagens e monumentos. Assim, desde que essa característica se apresenta, também, como uma potencialidade turística, é necessário preservá-la, aperfeiçoá-la e promovê-la para que se fortaleçam, como conseqüência, a curiosidade e o interesse dos visitantes.
Diante da possibilidade de certas atitudes provocadas pelo cosmopolitismo e outras manifestações, tomadas em nome do turismo, possam vir a desvirtuar as manifestações culturais, especialmente populares, e comprometer o acervo de monumentos e o paisagístico, cabe a todos os baianos e, em particular, ao poder público, ações de proteção desses valores. A Bahia será acolhedora e bela, enquanto o seu povo viver, coexistindo com seus dotes culturais e naturais (GAUDENZI, 1977 apud PINTO, 2006, p. 21).
Enriquecedor notar que a baianidade, mesmo que entendida sob diferentes
formas e fins, continua a ser acionada hoje pelo turismo como uma síntese da
cultura baiana, sobretudo em Salvador e na região do Recôncavo, como mostram as
análises de Pinto (2001, 2002, 2003), Pinho (1998), Barbalho (2004) e Moura (2001).
53
A própria figura de Gaudenzi, ao ocupar até recentemente um cargo de relevância
no âmbito turístico estadual, nos dá uma mostra de que determinada concepção
política ainda esteve presente até recentemente nas políticas de cultura e turismo na
Bahia31.
Se a idéia de baianidade surge no bojo de ascensão do turismo na Bahia,
nunca mais os dois vetores se dissociariam. Não se pode compreender as políticas
públicas desencadeadas pela Bahiatursa sem levar em conta a propagação de uma
“ecologia da baianidade” (PINTO, 2006, p. 10) que associa o carnaval, a música, a
literatura, as artes visuais, o turismo de massa e a comunicação de massa, na
medida em que desde a década de 1970, como lembra Santos (2005, p. 94), há um
“viés político sobre a cultura afro-brasileira”.
Algo relevante para o qual chamamos a atenção é referente ao fato de que,
se a prática turística realizada atualmente no Estado, sobretudo em Salvador, aciona
elementos da baianidade, pode-se depreender também que o próprio turismo
passou a ser um dos elementos constituintes dessa noção, pois essa lógica
representacional da cultura visa justamente atingir turistas em potencial e sua
retroalimentação depende, em grande parte, do êxito do setor turístico. Mais do que
discursos e representações dos próprios baianos para si mesmos, a noção de
baianidade é algo que está intimamente ligada aos outros, os turistas.
É preciso trazer à tona, no entanto, que esse processo de turistificação de
manifestações culturais afro-descendentes em Salvador não foi um processo isento
de conflitos. Por um lado, na medida em que as políticas públicas de turismo,
sobretudo da década de 1970, visavam a aumentar sua ingerência sobre o
candomblé e a capoeira, e que uma parte das pessoas vinculadas a esses setores
apoiou o incremento turístico propiciado por essas manifestações culturais, por outro
lado, temos notícia de um importante movimento de oposição dentro desse mesmo
contexto.
Isso é particularmente visível no terreno do candomblé, visto que o estímulo
dado pelo Estado, por intermédio da Bahiatursa, para uma maior notoriedade das
religiões de matriz africana como atrativo turístico baiano, desencadeou reações
entre lideranças intelectuais e religiosas, causando cisão entre os próprios terreiros,
31 A ruptura com sucessivas administrações de partidários do ex-governador Antônio Carlos Magalhães se deu no início de 2007 com a vitória do candidato de oposição ao governo do Estado, o petista Jacques Wagner.
54
que se autodenominavam e se acusavam mutuamente como “sérios” e os
candomblés “para turista ver” (SANTOS, 2005, p. 135). Edson Nunes, vice-
presidente do Centro de Estudos Etnográficos e do Instituto Histórico e Geográfico
da Bahia, chegou a dizer que a abertura de candomblés para o turismo seria um
desvirtuamento desses terreiros, já que muitos deles estavam movimentando-se fora
de época, somente para os turistas apreciarem (apud SANTOS, 2005).
O que se vê nesses conflitos e negociações no âmbito da Bahia é, sem
dúvida, um desafio para os demais contextos turísticos que, assim como qualquer
região, além de possuírem forças políticas e econômicas conflitantes, se vêem
diante de uma nova realidade – o turismo – que, ao mesmo tempo em que adota um
discurso preservacionista, potencializa certas imagens da cultura local, ao mesmo
tempo em que ressalta a importância das manifestações das minorias, é levado a
cabo por grandes corporações empresariais, e, se evidencia a importância da
participação popular nos processos de tomada de decisão, se faz valer, muitas
vezes, de planos de marketing e estratégias publicitárias alheias aos próprios
produtores da “cultura” propagada.
Posto isto, passemos agora para uma exposição mais minuciosa de toda a
costura desses vários elementos – comunicacionais, estéticos, políticos e
econômicos – que, ao longo do século XX, foram produzidos e, posteriormente,
agenciados para a conformação da baianidade, tal qual chega ao turista hoje.
1.3.4 A costura de todo o legado estético/artístico
Um dos pontos nodais dessa intricada rede da qual a baianidade resulta é
referente à produção artística da primeira metade do século passado. Na construção
de seu projeto de baianidade, o trade turístico de Salvador privilegiou certos
elementos e representações, discursos e imagens específicas presentes nas letras
de Caymmi e na literatura amadiana, dentre outros elementos para moldar o “texto
unificador” (MOURA, 2001, p. 165) da baianidade.
A baianidade pode ser compreendida como uma interface cujos componentes têm seus contornos adaptados no sentido de serem compatibilizados pelos agentes da própria interação. Não são os elementos simplesmente combinados para produzir uma mistura, síntese ou simbiose. Nem são os elementos inteiros que vêm constituir o universo do resultado. O admirador de um músico, pintor ou escritor pode considerar de menor importância aquele aspecto de seu ídolo priorizado na operacionalização da
55
interface... Por que, então, uma obra amada teria que ser compatibilizada pelas beiradas? Ora, assim é que se viabiliza, muitas vezes, a interface: a conexão acontece pela superfície, pelas bordas (MOURA, 2001, p. 165).
Assim, podemos notar como a operação da baianidade, sobretudo por parte
do trade turístico soteropolitano, irá remontar ao passado, seccionar dados discursos
em voga em um contexto próprio, como, por exemplo, a prosa regionalista de 30, e,
ao descontextualizá-los, reafirmar a existência de uma “cultura tipicamente baiana”.
Essas narrativas, para fazer uma analogia com o Estado-Nação, seriam documentos
fundadores de outra nação, a Bahia.
Em que pese o papel dos políticos na solidificação dessa imagem de Bahia, o
que parece cada vez mais visível é que na trama da baianidade, após a década de
1970, discursos amadianos, ícones de Verger e Carybé, além da música, não só de
Caymmi, mas oriunda dos Novos Baianos, Caetano Veloso, Carlinhos Brown e
Gilberto Gil, dentre outros, passariam a ser acionados por parte do trade turístico
para reforçar uma vivência típica dos baianos. Essa vivência parte essencialmente
de uma compreensão naturalizada de cultura, pois, tinha-se em mente que todo
baiano primaria pela malemolência, comungaria com candomblé e com a culinária
de origem africana, praticaria a capoeira e seria constituinte de um cenário
soteropolitano bem definido, bem verdade que circunscrito ao Farol da Barra, ao
Farol de Itapuã, ao Elevador Lacerda, ao Mercado Modelo e ao Pelourinho. Isto é
claramente perceptível nos trabalhos de Bomfin (2006) e Neto (2007). Ambos os
trabalhos afirmam que a imagem turística da Bahia se assenta nesses ícones
canonizados, apresentando uma imagem cristalizada e parcial do que seja a cultura
na Bahia.
Essa visão do que seria o “típico” baiano objetivava alcançar um diferencial
turístico com vistas a maximizar os benefícios políticos e econômicos mediante a
utilização da cultura como um poderoso recurso simbólico. Não por acaso, partes do
Pelourinho após a reforma da década de 1990, mais especificamente entre 1992 e
1997, seriam batizadas com nomes de personagens amadianos, como os Largos
Tereza Batista e Pedro Archanjo. Além de acionar fragmentos das narrativas de
inúmeros artistas, o trade turístico baiano se associaria fortemente a eles com o
intuito de que a imagem turística da Bahia estivesse impregnada dessas narrativas e
dos elementos nela contidos para conformar, assim, a idéia de uma “vivência
tipicamente baiana”.
56
Contudo, dentro dessa suposta entidade denominada trade turístico, há dois
indivíduos que podem ser considerados como os grandes mentores da idéia de
baianidade: Paulo Gaudenzi e Antônio Carlos Magalhães. O primeiro, ex-secretário
de Cultura e Turismo do Estado da Bahia, pode ser tido como um grande articulador
dessa noção de baianidade, já há 30 anos. Gaudenzi já exerceu a função de
presidente da Bahiatursa em três mandatos, além de ter respondido, até o final de
2006, pela Secretaria Estadual de Cultura e Turismo da Bahia. Já a figura de ACM
está intimamente associada, como já relatado ao longo deste capítulo, a todo o
percurso dessa idéia de baianidade após a década de 1970, tanto por intensificar os
discursos e representações dessa proposta, quanto por se beneficiar, em termos
políticos, de sua ligação com entidades afro-descendentes.
Outro elemento importante se refere ao fato de que a junção pelas “beiradas”
(MOURA, 2001) de todo o legado estético capaz de endossar a idéia de baianidade
não quer dizer, automaticamente e por exclusão, que não há a incorporação de
novos elementos culturais a essa lógica nas décadas de 1980 e 1990. O axé music
e os trios elétricos vêm à tona nos anos de 1980 mudando a imagem de uma Bahia
lenta e malemolente para uma conformação quase que frenética em termos
musicais.
Axé music e pagode baiano integram hoje o texto da baianidade tanto quanto um tabuleiro de acarajé, a praia de Itapuã ou a figura de Caetano Veloso. Na dinâmica da interface, os elementos são conectados pelo agenciamento de nuclearidades, às vezes de beiradas; não estão descolados das referências anteriores. Antes, esta dinâmica conecta o velho e o novo; o afro-descedente e o euro-descendente; o Brasil moderno e progressista de São Paulo e Santa Catarina e o Brasil antigo e negro da Bahia. Tanto quanto assimilam seletivamente ícones já consagrados da tradição (na acepção convencional), contribuem para atualizar e manter a enunciação dessa mesma tradição no texto emitido agora (MOURA, 2001, p. 237).
A inserção de novos elementos estéticos na lógica da baianidade nada mais é
do que um movimento característico da cultura: a dinâmica, a mudança. A inserção
do axé music e do trio elétrico, por exemplo, nos revelam duas questões: a primeira
se refere à plasticidade da idéia de baianidade, na medida em que ela incorpora
tantos elementos quanto sejam necessários para se manter; outra concepção se
reporta a como esses símbolos contemporâneos da baianidade já não têm mais o
substrato negro como ícone máximo. Como já mencionado aqui, e agora mais do
que nunca, o negro se tornou baiano.
57
E, por fim, importa destacar que nem só de novas matrizes estéticas se deu a
consolidação dessa idéia de uma “cultura tipicamente baiana”. Como Albergaria
(2005, [s.p.]) bem nos lembra, há também uma gama de novos mecanismos de
projeção dessas imagens surgindo atualmente. A propagação dessa idéia
reducionista da cultura baiana não se faz valer só da TV ou do rádio. Sites, revistas
e suplementos turísticos são também mecanismos utilizados atualmente pelo trade
turístico e que favorecem a potencialização dessas imagens da “cultura baiana”.
E, quanto ao turismo, tido muitas vezes como uma importante prática capaz
de incrementar a economia e de valorizar as manifestações culturais de diferentes
povos, coube o papel não só de se apropriar dessa leitura cultural específica do que
seja a Bahia e dos baianos, mas de colaborar para a sua propagação. Se contribuiu
para o aumento dos benefícios econômicos em Salvador, endossou também todo
um projeto, com forte cunho político-ideológico, de fazer da diferença – em especial
dos negros – uma similaridade, onde, a partir de então, todos, supostamente, seriam
baianos e “felizes”.
58
2. PORTO SEGURO: HISTÓRIA, POLÍTICAS PÚBLICAS E TURISMO
O capítulo anterior apresentou como o projeto de construção de uma idéia de
baianidade foi gestado e reelaborado ao longo de décadas. Se, em um primeiro
momento do século XX, mais especificamente até os anos de 1960, tem-se a
formação das matrizes estéticas – música, literatura, artes plásticas e fotografia – da
idéia da baianidade, realizada, sobretudo, por artistas e intelectuais, em um segundo
momento – a partir da década de 1960 –, há a conformação de um projeto
ideológico assumido pelo governo estadual que visava, ao se apropriar de dados
elementos da cultura negra, formatar uma “identidade cultural baiana” a partir
mesmo daquelas matrizes artísticas previamente estabelecidas. Essa “identidade
cultural” passaria a ser, a partir de então, o principal elemento de definição e
representação da Bahia na seara do turismo, e logo tornar-se-ia também um de seus
principais atrativos turísticos, senão do Estado, pelo menos de Salvador, visto ser
grande a recorrência de referências, por parte da mídia e do trade turístico da capital
baiana, à essa “identidade”. Como vimos, Salvador é um lócus privilegiado por vários
fatores para a veiculação da idéia de que o baiano possui uma “identidade” típica e
que essa mesma “identidade cultural” seria algo positivo, passível de estreita
vinculação com a divulgação turística da cidade – e também da Bahia – realizada
pelo trade turístico local.
Posto isto, o segundo capítulo do presente trabalho é voltado não só a
apresentar a história de Porto Seguro, mas também refletir sobre a maneira pela
qual se dá a prática turística nesse destino. Um dos objetivos deste capítulo é
compreender algumas das peculiaridades, problemas, contradições e
potencialidades de Porto Seguro no que tange ao turismo. E, para isso, necessário
se faz trazer à tona, em diferentes momentos deste capítulo, recursos distintos para
ilustrar como a prática turística se estrutura na segunda destinação turística do
Estado da Bahia. Assim, o uso de estatísticas oriundas de órgãos estatais, tais como
a Secretaria de Cultura e Turismo e a Bahiatursa, bem como aquelas citadas por
outros pesquisadores, entrevistas veiculadas em trabalhos investigativos e dados
oriundos do trabalho de campo realizado pelo próprio pesquisador serão evocados.
A opção em trazer material resultante do trabalho de campo para esta parte do texto
59
visa a estabelecer um diálogo mais rico entre os dados e conclusões de pesquisas
pretéritas e o material obtido em campo ao longo de 2007.
Este capítulo também visa, além de expor elementos geográficos relativos a
Porto Seguro, apresentar aspectos históricos da cidade. Não obstante, tomamos, a
exemplo de Silva (2004, p. 66) ao pesquisar a cidade de Ilhéus, a opção por não
conceber o município em análise como “uma totalidade social ou cultural fechada”. O
recorte será feito tomando como base os limites geográficos de Porto Seguro, o
mesmo que orienta as ações públicas, bem como parte das práticas de dados atores
sociais, como os habitantes da cidade, ou mesmo os turistas.
É necessário realizar outra consideração acerca da estrutura desta seção que
versa sobre a história de Porto Seguro. Optamos aqui por pormenorizar um pouco
mais a história da região pelo fato de encontrarmos uma série de informações
relevantes esparsas em várias obras, tais como Bueno (1999), Paraíso e Guerreiro
(2001), Ramos (2002), Bianchi (2005), Araújo (2005), Sá (2006) e Gertze (2006), o
que referenda a importância de agregar essas contribuições no presente trabalho.
Os aspectos históricos não podem ser dissociados de práticas econômicas
específicas. Esta consideração é duplamente verdadeira para os casos de Ilhéus e
Salvador, em que o cacau para a primeira e o comércio de escravos para a segunda
foram práticas econômicas determinantes para a conformação dessas cidades tal
como as entendemos hoje, dada a relevância que esses produtos tiveram em suas
respectivas economias. Entretanto, o caso de Porto Seguro parece se diferenciar um
pouco dessa tendência, pois, ao que tudo indica, não houve ali nenhum grande
momento de florescimento econômico até o final do século XX. Somente a partir do
final da década de 1960, e em especial após os anos de 1990, é que se tem um
período relativamente mais próspero que o anterior, momento em que se dá a
consolidação de uma prática econômica – o turismo – capaz de exercer grande
influência na conformação social e espacial do município.
A história do município de Porto Seguro será dividida em dois momentos
nesta seção. O intuito dessa subdivisão é facilitar a compreensão dos períodos que,
sob a nossa ótica, podem ser delimitados dessa forma por guardarem características
internas específicas. O primeiro momento da história de Porto Seguro, cujo início se
deu na fundação da Capitania em 1534 e se estende até 1960, tem como
característica um constante marasmo econômico que vigorou na região; já o
segundo período se iniciou no final dos anos de 1960, década em que se dão as
60
primeiras iniciativas referentes ao turismo em Porto Seguro, prática esta que
chegaria aos dias de hoje como a mais relevante para a economia da cidade.
2.1 Aspectos geográficos de Porto Seguro
Porto Seguro possui uma área de 2408,41 km² e conta com aproximadamente
90 km de faixa litorânea (RAMOS, 2002, p. 63). A cidade está localizada no Extremo
Sul da Bahia (ver figura 1), a 15º26’ Latitude Sul e 39º05’ Longitude Oeste, e possui
cinco distritos, a saber: Porto Seguro (sede municipal), Arraial D’Ajuda, Caraíva,
Trancoso e Vale Verde (ARAÚJO, 2005, p. 323).
Figura 1 – Estado da Bahia – Localização de Porto Seguro
Fonte: SEI/SEPLANTEC (in RAMOS, 2002)
A sede municipal é ligada à capital, Salvador – distante 707 km –, e à região
Sul do país pela BR-101, cujo acesso até Eunápolis dá-se via BR-367. Porto Seguro
faz limites ao Norte, além de Eunápolis – município que se emancipou de Porto
Seguro em 1988 –, com Santa Cruz de Cabrália; ao Sul com Itamarajú e Prado; a
Leste com o Oceano Atlântico e a Oeste com o município de Itabela. Segundo dados
do IBGE de 200732, a população estimada é de 114.334 habitantes.
32 Portal IBGE Cidades. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php. Acesso em 15 set. 2007.
61
O município de Porto Seguro se encontra inserido na zona turística intitulada
Costa do Descobrimento33, composta ainda pelos municípios de Santa Cruz de
Cabrália e Belmonte.
2.2 Porto Seguro: esquecimento e estagnação econômica (1534-1960)
Embora os portugueses tenham desembarcado na região de Porto Seguro em
1500, somente no ano de 1534, com a divisão da América Portuguesa via regime de
Capitanias Hereditárias, é que temos oficialmente o advento da Capitania de Porto
Seguro. O lote de terra referente à capitania foi concedido pela Coroa Portuguesa ao
donatário Pero do Campo Tourinho (GERTZE, 2006, p. 48-49), e, desta forma, Porto
Seguro foi a segunda vila fundada no Brasil, sendo a primeira a Vila de São Vicente,
localizada em São Paulo (RAMOS, 2002, p. 71)34.
O donatário Pero do Campo Tourinho foi o responsável, juntamente com
outros seiscentos colonos, por fundar a Vila de Nossa Senhora da Pena, além das
vilas de Santo Amaro e Santa Cruz, estando a primeira localizada na margem
esquerda do rio Buranhém, ao sul, e a segunda ao norte de Porto Seguro (GERTZE,
2006, p. 49). Bueno (1999) nos dá uma interessante descrição não só do
mandatário Pero Tourinho, mas também da própria disposição da Vila de Porto
Seguro em seu primeiro momento:
Homem “prudente e atilado”, Tourinho decidiu instalar-se numa colina próxima à praia, junto à foz do Rio Bunharém, no exato local onde hoje se ergue o centro histórico de Porto Seguro. Ele cercou a vila com uma paliçada de taipa, ergueu uma capela, uma forja e uma ferraria, fez um estaleiro e construiu, para si, uma casa com amplo avarandado, do que desfrutava ampla vista da baía (p. 233).
33 A Costa do Descobrimento é uma das sete zonas prioritárias relativas ao turismo no Estado da Bahia definidas pelo Prodetur-NE (Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste) juntamente com o Prodetur-BA no início dos anos de 1990. Este programa estabeleceu zonas turísticas prioritárias no estado para a concentração dos investimentos mediante a criação de pólos regionais. No âmbito da Bahia, além da Costa do Descobrimento, foram definidas outras seis zonas: Costa do Dendê, Costa do Cacau, Costa dos Coqueiros, Costa das Baleias, Chapada Diamantina e Baía de Todos os Santos (incluindo Salvador). De posse dessa polarização de municípios por afinidades, o Prodetur-BA definiu as zonas que deveriam receber maior aporte de recursos do Prodetur-NE. 34 Embora a ocupação tenha tido início, em termos formais, em 1534, isso não impediu que ainda na primeira década do século XVI, padres franciscanos aportassem na região, dando início ao projeto de catequização dos Tupiniquins. Um resquício dessa ocupação são as ruínas do Outeiro do Glória, então a primeira igreja do país dedicada a São Francisco de Assis (BUENO, 1999).
62
Araújo (2005, p. 323) assinala que, nesse primeiro momento, a Capitania de
Porto Seguro teve na extração do pau-brasil a sua principal fonte de renda, sendo
essa atividade rapidamente substituída pelo ciclo da cana-de-açúcar. Mas, Bueno
(1999, p. 234) atesta que, além do pau-brasil, outras duas práticas econômicas
podem ser apontadas como importantes para a então nascente capitania: a pesca
da garoupa, abundante nos baixios de Abrolhos35 e a comercialização de búzios,
tipo de concha encontrada no Rio Caravelas, que, na época, era utilizada como
dinheiro em Angola, o que favoreceu o comércio de escravos, na medida em que os
portugueses se fizeram valer desse produto para obter parte da mão-de-obra negra
oriunda do continente africano.
O mesmo autor, aliás, chama a atenção para o estágio de pobreza que já
acometia aquela Capitania no começo de sua implantação, em função, dentre outros
fatores, de sua localização geográfica:
Devido aos afiados recifes de Abrolhos (aglutinação de “abra os olhos”), as naus da chamada Carreira da Índia – que faziam tráfego entre Portugal e o Oriente – passavam ao largo da capitania de Torinho, sem fazer escala nela. Como os navios que seguiam para a costa do ouro e da prata também não paravam ali, Pero do Campo Tourinho tinha dificuldades em exportar seu peixe-seco, seus búzios e seu pau-brasil (BUENO, 1999, p. 234).
Não bastasse a situação econômica precária daquela capitania na primeira
metade do século XVI36, a implantação da cultura da cana-de-açúcar, que poderia
resolver parte dos problemas econômicos de Pero do Campo Tourinho, não obteve
êxito. A Capitania de Porto Seguro, a exemplo da Capitania São Jorge dos Ilhéus
(GUERREIRO; PARAÍSO, 2001), encontrou grande dificuldade em consolidar essa
prática econômica em função dos constantes ataques de grupos indígenas, é o que
costuma argumentar uma espécie de “senso comum” histórico sobre toda essa
região.
Na verdade, a própria alteração da dinâmica econômica da Capitania teria
contribuído para suscitar essa série de conflitos entre indígenas e europeus que
viriam a marcar a história da região. Até porque Bueno (1999) ressalta que entre
35 A Capitania de Porto Seguro não se circunscreveu somente à região onde hoje se encontra a sede do município. Segundo Bueno (1999, p. 232), “o lote referente à capitania tinha 50 léguas de largura, cujo início se dava na foz do rio Coxim, 20 km ao sul da ilha de Comandatuba e se prolongava por cerca de 300 km para o sul, até a foz do rio Mucuri, na fronteira entre os atuais estados da Bahia e do Espírito Santo”. 36 Pero do Campo Tourinho, em carta destinada ao rei de Portugal por volta de 1540, desabafa quanto à situação vivida por sua Capitania: “Ainda agora, ao presente, somos tão pobres que não podemos fazer nada sem ter favor e ajuda de Vossa Alteza” (BUENO, 1999, p. 235).
63
1536 e 1546 a vida na Capitania de Porto Seguro transcorria sem grandes
oscilações e problemas, situação em grande parte favorecida pela convivência
pacífica entre os colonos e os Tupiniquins, que, aliás, colaboravam para suprir parte
das necessidades alimentícias dos europeus, sobretudo devido à produção de
farinha de mandioca e à extração de frutas, além da obtenção de caça e pesca
(BUENO, 1999, p. 233). De acordo com Gertze (2006), o empreendimento
extrativista do pau-brasil não teve grandes dificuldades na obtenção de mão-de-
obra, na medida em que a prática era realizada por uma quantidade pequena de
índios em troca de pequenos artefatos. Contudo, a instalação da monocultura
açucareira na região desencadeou um aumento pela demanda de mão-de-obra
indígena para trabalhar na lavoura e nos engenhos de açúcar. Deste modo, os
colonizadores passaram a escravizar uma crescente quantidade de ameríndios, o
que implicou uma série de fugas em massa (GERTZE, 2006, p. 49), além de
inúmeros confrontos resultantes da violação dos acordos entre os indígenas e os
colonos.
A situação cada vez mais tensa entre os autóctones e os europeus contribuiu
para a instalação de uma crise política na Capitania de Porto Seguro decorrente do
descontentamento de parte da população em relação a seu donatário que, segundo
Sá (2006, p. 14), cairia em desgraça devido ao insucesso de seu empreendimento.
Para completar a delicada situação vivida pela Capitania, Tourinho seria acusado de
heresia pelo Tribunal do Santo Ofício em 1543 (BUENO, 1999, p. 235).
Não bastassem os problemas já enfrentados pelo donatário da Capitania de
Porto Seguro, inúmeros conflitos posteriores viriam a reforçar a dificuldade de
ascensão econômica da Capitania. Destaque para a revolta indígena do Espírito
Santo e Porto Seguro em 1546 (GUERREIRO; PARAÍSO, 2001, p. 15), fato que
desencadeou uma severa intervenção da Coroa portuguesa por meio do
estabelecimento de um Governo Geral na Colônia, o que contribuiu ainda mais para
o quadro de crise em que a Capitania se viu, sendo a mesma vendida por uma
herdeira de Tourinho em 1559 (BUENO, 1999, p. 236).
Os constantes atritos com os indígenas acabaram por comprometer de vez o
avanço do projeto açucareiro na região. Outro fato marcante dessa relação
conflituosa ao longo de boa parte do século XVI foi deflagrado em 1595, ocasião em
que é declarada oficialmente a primeira Guerra Justa aos índios das Capitanias de
Ilhéus e Porto Seguro, tal como atestam Guerreiro e Paraíso (2001, p. 23).
64
Os problemas da Capitania de Porto Seguro não se devem somente à má
administração de seu donatário, nem mesmo aos constantes ataques de grupos
indígenas, mas também à própria administração da América Portuguesa. A
determinação da Coroa de restringir, em 1605, a venda de madeira extraída das
Capitanias de Ilhéus, Espírito Santo e Porto Seguro, por exemplo, trouxe grandes
prejuízos. O monopólio da Coroa sobre esse bem pôs por terra qualquer
possibilidade de inserção dessas capitanias no circuito comercial atlântico
(GUERREIRO; PARAÍSO, 2001, p. 24).
Apesar da escassez de registros históricos sobre o século XVII, Ramos (2002,
p. 72) considera que Porto Seguro ainda se encontrava imersa em um processo de
estagnação nesse período. A falência das Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro foi,
inclusive, tema de argumentação do então Governador Conde de Castelo-Melhor
que, em 04 de março de 1669, ao defender a tese de que os índios seriam os
culpados pelo insucesso de ambas, declarando, em seguida, nova Guerra Justa
contra os povos indígenas da região (GUERREIRO; PARAÍSO, 2001, p. 26).
Essa mesma constatação quanto ao marasmo econômico da Capitania de
Porto Seguro é reforçada por Araújo (2005). A autora assinala que esse quadro se
estenderia até 1759, ano em que a Capitania passaria a ser constituinte dos bens da
Coroa. A partir deste momento, a região passaria a integrar a Província da Bahia,
servindo como fornecedora de gêneros alimentícios, algodão e madeira para esta e
passando a usufruir da condição de Comarca37 (p. 324).
Ao longo do século XVIII, a estagnação econômica de Porto Seguro teria
continuidade, mas agora isso se daria a partir de dois duros golpes oriundos de
determinações reais. A primeira iniciativa da Coroa, e que comprometeu o avanço
econômico da região, tem relação com a descoberta, nesse período, de ouro em
Minas Gerais e Goiás, o quê contribuiu para um grande afluxo de pessoas para
essas regiões, além de favorecer a formação de várias vilas e povoados nas
adjacências dos locais em que se extraía esse metal. Em decorrência desse
crescente fluxo de pessoas entre a faixa costeira e o sertão – e vice-versa –, a
37 Sá (2006, p. 15), baseado no estudo de Alencastro (2000), afirma ainda que a Capitania de Porto Seguro teve um papel de relativo destaque na produção de cachaça, artigo bastante apreciado como moeda de troca no comércio de escravos entre a América Portuguesa e a África ao longo dos séculos XVII e XVIII. Apesar de alguma relevância na produção desse bem, isso não foi suficiente para inserir efetivamente a Capitania de Porto Seguro no circuito comercial.
65
Coroa se defrontou com um novo problema capaz de afetar diretamente, em termos
econômicos, o desenvolvimento da região de Porto Seguro: o contrabando de ouro.
Assim, com vistas a minimizar o comércio ilegal desse metal, que se dava na
época a partir do Sul da Bahia e Norte do Espírito Santo, uma extensa área de mata
“correspondente às capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, foi interditada para o
transporte e exploração econômica” (SÁ, 2006, p. 16). Deste modo, há um proposital
isolamento de toda essa faixa territorial até as primeiras décadas do século XIX.
Um segundo fator que contribuiu para comprometer o tênue avanço
econômico da região foi a promulgação da Carta Régia de 13 de março de 1797 que
passou a regulamentar severamente a extração de madeira para a construção na
região, atividade econômica mais relevante até então, não só na Comarca de Ilhéus,
mas também em Canavieiras e Porto Seguro (GUERREIRO; PARAÍSO, 2001, p. 33-
34). Essa interferência viria a prejudicar de vez o quadro econômico de Porto Seguro
e região.
Um dos poucos relatos existentes sobre a situação econômica de Porto
Seguro no início do século XIX dá conta que
Com suas roças de mandioca, algodões e canas, que reduzem a aguardente, mel e pouca quantidade de açúcar, planta esta de que é próprio todo o terreno de Porto Seguro, em que hoje há algumas engenhocas. O gênero em que hoje maior negociação é a pescaria de garoupas, e meros de que ali se pesca prodigiosa quantidade. O haver excelentes pastagens para os gados concorre muito para a propriedade que o terreno tem para a lavoura de canas (VILHENA apud SÁ, 2006, p. 14).
Ainda de acordo com relato, o contexto geral dos moradores que habitavam a
região de Porto Seguro poderia ser resumido na proposição de que “há muitos
poucos moradores ricos nesta vila, o comum é serem pobres” (VILHENA apud SÁ,
2006, p. 14).
No século XIX temos mais um importante capítulo referente à história da
região: a inserção do cacau no Sul da Bahia. A expansão da lavoura cacaueira no
sul-baiano deu-se a partir da década de 1920, nas bacias dos rios Almada e
Cachoeira (GUERREIRO; PARAÍSO, 2001, p. 29). Interessante notar que, apesar do
cacau ter dinamizado toda a economia sul-baiana, em especial de Ilhéus,
Canavieiras e Camamu, os benefícios do cultivo dessa lavoura não se estenderam
até Porto Seguro, pois, para isso, “contribuiu principalmente a baixa fertilidade das
terras cultiváveis desse espaço” (SÁ, 2006, p. 18). Mais uma vez, a prosperidade
66
econômica, outrora concentrada na cidade de Salvador, entreposto comercial de
grande relevância para América Portuguesa até o início do século XIX38, não se
estenderia à cidade de Porto Seguro.
O quadro de pobreza vigente na região é retomado pela descrição da vila
realizada por Durval Vieira de Aguiar, visitante que esteve na região em 1888:
Dois compridos amuados quase em seguida, pela margem do rio, e de um terceiro, onde se acha a velha Matriz e o estragado, porém bem construído e assobradado edifício da Câmara, no alto da montanha, que é circulada em baixo pela povoação; de forma que substituindo-se pela parte do mar, pode-se descer pelo lado oposto, e subir-se na rua de Pacatá, onde está o melhor comércio. A morada do alto é excelente pela beleza da vista e dos bons ares; porém na parte baixa, onde aliaz reside a maioria da população, é humilde e às vezes doentia (apud COSTA, 2005, p. 106).
O trecho acima ratifica a tese de que não houve sequer um grande momento
de prosperidade econômica na região onde hoje se encontra o município de Porto
Seguro39 até o final do século XIX, época do relato citado.
No que diz respeito ao século XX, duas atividades primárias seriam
privilegiadas em Porto Seguro a partir de 195040 como alternativas ao plantio do
cacau na região de Ilhéus, mesmo que não tenham resultado em grandes avanços
econômicos: a extração de madeira e a pecuária extensiva. Como conseqüência
imediata dessas ações, tem-se que “estas duas atividades econômicas foram as
principais ações antrópicas modificadoras do ambiente natural do município – e da
região de modo geral –, dando ao mesmo o aspecto que pode ser observado nos
dias de hoje” (GERTZE, 2006, p. 50).
Deste modo, pode-se depreender que a região de Porto Seguro, devido a
diferentes fatores endógenos e exógenos, desde o século XVI até aproximadamente
o último quarto do século XX, jamais conseguiu ascender economicamente.
Estagnação econômica, pobreza e isolamento parecem ter sido elementos
recorrentes na história dessa cidade, algo que, no entanto, tenderia a mudar a partir
da década de 1960 do século passado.
38 A transferência da capital do reino português para o Rio de Janeiro, em 1808, dá início ao processo de crise econômica de Salvador. 39 Até 1891, de acordo com Araújo (2005, p. 324), Porto Seguro ainda gozava do status de distrito, fato que só viria a mudar em 30 de junho de 1891, quando o então distrito de Porto Seguro é elevado à categoria de cidade. 40 Gertze (2006, p. 50) assegura que o ciclo relacionado à extração madeireira se estendeu até a década de 80, época em que se dá um declínio do interesse em relação à cobertura vegetal da região.
67
2.3. PORTO SEGURO: DOS HIPPIES AO TURISMO DE MASSA (1960 AOS DIAS
ATUAIS)
Se em Porto Seguro existe festa todas as noites do ano, no Carnaval e no verão a cidade simplesmente vai à loucura.41
Porto Seguro não precisa de promoção [...].
Porto Seguro se vende sozinho, sem esforço 42.
As duas epígrafes retratam uma cidade que, no final dos anos de 1990 e
início do século XXI, parece ter alcançado seu auge enquanto destino turístico.
Contudo, um retorno a um passado nem tão distante assim é revelador acerca de
como era a cidade de Porto Seguro antes da institucionalização da prática turística.
Para se ter uma tênue idéia acerca do modo de vida de boa parte dos porto-
segurenses antes da chegada do turismo, as pesquisas de Araújo (2005) e Bianchi
(2005) dão conta de que os moradores da cidade, no início da década de 1970,
“vivia[m] basicamente isolado[s], sobrevivendo da pesca, do corte de madeira e da
agricultura de subsistência” (ARAÚJO, 2005, p. 325).
Costuma-se considerar os anos de 1970 como o marco histórico a partir do
qual a cidade de Porto Seguro deixaria de ser um simples povoado de pescadores e
pequenos agricultores e passaria a assumir sua vocação turística. É verdade que
esse pode ser apontado como um momento em que a cidade passou por
transformações socioeconômicas significativas decorrentes da crescente, porém
ainda incipiente, atividade turística. Isso se deu, em especial, devido a dois fatores: i)
a inauguração do trecho baiano da BR-101, em que pese o ramal BR-367, que liga
Eunápolis a Porto Seguro e que conecta Porto Seguro a Santa Cruz de Cabrália; ii)
a elevação do município, por parte do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico-
Artístico Nacional –, à categoria de monumento nacional, em 1973, por decreto
presidencial (BIANCHI, 2005, p. 1).
Embora esses acontecimentos tenham contribuído para um maior interesse
por Porto Seguro enquanto destino turístico, na medida em que propiciaram,
respectivamente, uma melhor acessibilidade e realçaram o interesse turístico pelo
lugar, é preciso retomar alguns fatos ocorridos no final da década de 1960 que
41 Disponível em: <http://www.terra.com.br/turismo/roteiros/2001/10/22/000.htm>. Acesso em: 21 jun. de 2007. 42 Depoimento de um funcionário vinculado a um meio de hospedagem dado à Solha (1999, p. 111).
68
podem ser considerados os antecedentes para o delineamento da cidade turística
que hoje conhecemos.
A própria inauguração do trecho baiano da BR-101 não deve ser
compreendida como uma ação isolada do Governo e que acabou por beneficiar
Porto Seguro. A iniciativa em questão deve ser contextualizada na prática do
governo militar que buscava a integração do território nacional mediante a ampliação
e melhoria das rodovias. O regime militar, preocupado então com a integração do
Nordeste ao restante do território, encarava esse projeto como uma “questão
nacional” (CRUZ, 2000, p. 39).
Além disso, segundo Bianchi, as primeiras tentativas de fazer de Porto
Seguro um pólo turístico remontam ao ano de 1967, quando tiveram início excursões
para a divulgação da cidade. Entre esse ano e o ano de 1973, tem-se na região a
prática de um turismo de cunho prospectivo ou exploratório43. O perfil desses
visitantes é destacado pela historiadora:
A maioria dos visitantes eram jovens que buscavam paraísos ecológicos para passarem férias ou ainda indivíduos que procuraram fixar residência e levar uma ‘vida alternativa’ em lugares isolados. Muitos deles, no entanto, acabaram tornando-se posteriormente pequenos empresários ao adquirirem terrenos e moradias que foram, já em fins da década de 1970, transformados em pousadas, restaurantes e demais construções voltadas para o turismo (BIANCHI, 2005, p. 6).
Além do turismo exploratório que se deu ao final da década de 1960 e início
dos anos de 1970, entendido por Mesquita Filho (2006, p. 113) como uma prática
restrita a “grupos hippies e de uns poucos ricos”, temos ainda outra importante ação
para a turistificação do destino. Em 1968, o IPHAN decidiu tombar uma parte da
cidade, sendo esse ato o precursor de uma gama de ações referentes ao patrimônio
de Porto Seguro, município entendido como “lugar de origem da nação brasileira”
(BIANCHI, 2005, p. 6)44. Desse modo, pode-se considerar que ações estratégicas
precursoras de turismo em Porto Seguro tiveram início nos anos de 1960, fossem
43 Cruz (2000, p.21) assinala que “inúmeros destinos turísticos da atualidade foram ‘inaugurados’ por turistas que, em muitos casos, não seriam capazes de preconizar o uso turístico ulterior de lugares que pioneiramente visitaram”. Dentre os muitos exemplos em que houve a presença pioneira de turistas, ainda que não houvesse a devida infra-estrutura turística, encontram-se, de acordo com a autora, os casos de Porto Seguro, na Bahia, e de Canoa Quebrada e Jericoaquara, no Ceará. 44 Essa ação, ainda segundo Bianchi (2005), carece de ser contextualizada no período da década de 60. Naquele momento havia uma tendência em se praticar o turismo cultural em áreas tombadas pelo IPHAN. Destarte, o patrimônio seria entendido não só como uma mercadoria de consumo para a indústria do turismo, onde visitá-lo permitiria gozar de certo status, mas, também se tornariam representantes únicos de episódios significativos da história nacional.
69
elas motivadas por ações que transcendiam os limites do município, tal como a
decisão do governo militar de integrar cidades do Nordeste ao contexto econômico
nacional, fossem elas em decorrência de ações circunscritas à própria cidade, como
a criação de instalações de apoio ao turista, iniciativa levada a cabo pelos primeiros
visitantes que, posteriormente, fixar-se-iam em Porto Seguro.
Já no começo da década de 1970, principalmente a partir da inauguração da
BR-101, são recorrentes as matérias publicadas em jornais que anunciavam a
“vocação turística” de Porto Seguro. Um exemplo desta tendência pode ser
observado por meio da Figura 2.
FIGURA 2 – Matéria jornalística sobre Porto Seguro. Fonte: Jornal da Bahia, de 29 de março de 1974 (in ARAÚJO, 2005, p. 325).
Rapidamente, tal como se pode perceber na matéria acima, a imprensa
passaria a ter um papel de destaque na divulgação turística de Porto Seguro.
Curioso é o fato de que a veiculação da cidade por parte da mídia nesse período
esteve atrelada a um discurso de certo modo grandiloqüente, isto é, Porto Seguro
tornar-se-ia um grande pólo turístico do Brasil. Seria como se, a partir de uma
associação entre as belezas naturais da cidade e sua importância histórica para o
Brasil, Porto Seguro tivesse de assumir naturalmente sua vocação de destaque no
turismo brasileiro. Como veremos adiante, essa crença de que a cidade seria uma
referência turística não se restringiu ao passado, mas ainda encontra ecos no
presente, sobretudo na concepção de muitos moradores e empresários. Havia a
crença – e ainda há – de que a cidade seria um grande espaço de oportunidades
para, a partir do turismo, se alcançar a prosperidade econômica. Porto Seguro foi
70
tida assim, em muitos momentos, como uma espécie de “Eldorado”. Adiante
retomaremos essa questão.
Outro exemplo de matéria jornalística que exalta o potencial turístico de Porto
Seguro pode ser visto na edição de 21 de setembro de 1973 do jornal Estado de
Minas:
Antes Porto Seguro era apenas o berço do Brasil, cidade esquecida pelos turistas, de acesso difícil. Hoje, com a estrada litorânea, a BR-101, é um dos locais de natureza mais bonita do Brasil, e uma aula viva de História, de respeito pela sua conservação, da criança que Cabral descobriu, e que nunca mais parou de crescer (apud BIANCHI, 2005, p. 7).
Importa frisar que após a década de 197045, a história de Porto Seguro se
confunde intimamente com a história do turismo no município, visto que sucessivas
intervenções na cidade podem ser atribuídas a ações ligadas ao setor turístico,
como, por exemplo, a já citada inauguração da BR-101. Também a concepção do
Plano Diretor da Orla Marítima de Porto Seguro e Santa Cruz de Cabrália, em 1974,
pode ser apontado, de acordo com Araújo, como a “primeira tentativa de se regular o
uso do solo urbano, apontando-se para a necessidade de demarcação das zonas de
interesse histórico [e] a localização de equipamentos turísticos” (BIANCHI, 2005, p.
325).
As diferentes ações governamentais em Porto Seguro na década de 1970
podem ser mais bem compreendidas ao inseri-las na mentalidade turística adotada
pelo Governo do Estado naquele momento. Nesse período, o Governo da Bahia
passaria a conceber o turismo como uma prioridade estratégica. Como já vimos no
capítulo anterior, surgiria em 1972, por iniciativa de Antônio Carlos Magalhães, na
época governador do estado da Bahia, a Bahiatursa46, um órgão estadual, mas que
limitou sua ação, sobretudo em um primeiro momento, a Salvador47. Havia no
Estado, portanto, o desejo de apostar no turismo como uma atividade capaz de
45 Em 1974, Porto Seguro já contava com uma pousada, três hotéis e quatro pensões, contabilizando aproximadamente 344 leitos e registrando a visita de 30.131 visitantes (ARAÚJO, 2005, p. 325). 46 Segundo Risério (apud SILVA, 2004), cabia à Bahiatursa, quando em sua criação, promover “[...] a faixa lucrativa da cultura, aquelas manifestações de cultura (dos folguedos tradicionais ao artesanato) que podem gerar dividendos”. (p. 46). 47 Interessante destacar que a autarquia estadual de turismo baiana nasceu com a incumbência de divulgar “[...] a singular herança folclórica africana na Bahia” (SANTOS, 2005, p.132), o que demonstra como as atenções do órgão se voltavam para Salvador, na medida em que Porto Seguro ainda se encontrava em um estágio incipiente de desenvolvimento do turismo.
71
colaborar para o desenvolvimento econômico da Bahia, apesar dos investimentos se
limitarem ao contexto soteropolitano.
Assim, se ações oriundas do governo estadual ao longo da década podem ser
tidas como pouco representativas em termos de planejamento da atividade turística,
na medida em que não conseguiram conter, dentre outros problemas, a ocupação
desordenada do município, as incipientes intervenções da administração municipal
também não favoreceram a mudança desse quadro. Ainda sim, pode-se concluir que
a década de 1970 foi marcada por várias ações privadas tentando adequar os
serviços e produtos turísticos de Porto Seguro e região à crescente demanda. O
trecho abaixo é bem ilustrativo dessas iniciativas esparsas:
Mas o esconderijo de Arraial se transformou em mais uma atração da região. Já ganhou um camping... e agora se prepara para receber turistas de “alto padrão”.
[...] vai construir alguns bangalôs para hospedar turistas de muito dinheiro (PRADO, 1978 apud SOLHA, 1999, p. 62).
Se o turismo em Porto Seguro, ao longo da década de 1970, começava a
ganhar contornos mais consistentes por meio de ações pontuais, ora da iniciativa
privada, ora do setor público, é na década de 1980, no entanto, que medidas mais
intensas passam a ser tomadas visando melhorar a qualidade do destino. Solha
(1999) atesta que:
Paralelamente ao desenvolvimento turístico de Porto Seguro, que se acentua a partir da década de 1980, começaram a se multiplicar as opções de entretenimento. Bares, barracas com bebidas típicas, como o “capeta”, shows musicais, manifestações folclóricas, como a capoeira e danças, como a lambada e suas variações, contribuem para entreter os turistas durante sua permanência em Porto Seguro (p. 67).
O aumento da demanda ao longo da década de 1980 desencadeou, dessa
forma, a “ampliação dos equipamentos e serviços turísticos” (SOLHA, 1999, p. 62).
Além disso, nesse período é que se tem a inserção de agências e operadoras
turísticas na localidade48.
48 Embora a CVC, principal operadora turística do país e responsável por significativo fluxo de turistas para Porto Seguro, tenha iniciado suas atividades no país em 1972 (REJOWSKI, 2005), foi em 1980 que surgiram as condições, sobretudo em termos de infra-estrutura, para a operação dessas companhias em Porto Seguro. E hoje, a CVC é a principal operadora turística da cidade, na medida em que é a responsável pela entrada de aproximadamente 170 mil turistas por ano, de acordo com informações obtidas junto ao gerente da filial da empresa em Porto Seguro.
72
Contudo, à esteira desse florescimento turístico do município, ou de parte
dele, surgia em Porto Seguro um conjunto de problemas daí oriundos que, embora
não possam ser atribuídos somente à prática turística, acabaram por ser
intensificados por ela, tal como veremos a seguir.
2.3.1 Década de 1980: princípio dos problemas
Um primeiro problema digno de menção é relativo ao crescimento urbano
desordenado de Porto Seguro, em grande parte decorrente da ausência de
planejamento urbano (GERTZE, 2005, p. 50) e da significativa migração de
trabalhadores da lavoura de cacau do sul-baiano, que entrara em crise devido a uma
praga chamada vassoura-de-bruxa no final da década49. Estes dois fatores
contribuíram para o advento de efeitos negativos sobre a região, tais como:
modificação do aspecto arquitetônico da Cidade Baixa no município (BIANCHI, 2005,
p. 7); contaminação, assoreamento e/ou desaparecimento dos cursos d’água devido
ao lançamento de esgotos; desmatamento e destruição de falésias (GERTZE, 2005,
p. 50).
Há recorrentes relatos acerca dos diferentes problemas que acometeram a
cidade de Porto Seguro nos anos de 1980, os quais demonstram que a qualidade do
destino começava a se comprometer naquele momento. O relato de um jornalista é
muito apropriado para ilustrar a situação do município no final dos anos de 1980 e
no começo dos anos de 1990:
Enquanto a cidade histórica dorme em cima do morro tombada (um pouco esquecida, pois há casas caindo) pelo patrimônio, na Cidade Baixa se cantam e dançam músicas de verão. [...] Apesar do turismo em Porto Seguro estar crescendo ano a ano... a infra-estrutura e os serviços que a cidade tem a oferecer ainda não podem ser comparados a outros lugares da moda como Salvador ou Parati por exemplo... (MODERNELL apud SOLHA, 1999, p. 63).
49 Segundo Silva e Fernandes (2005), “com a crise da Vassoura de Bruxa, cerca de 200.000 empregos na lavoura cacaueira foram perdidos desde o começo da crise. Sem opções de para onde ir, grande parte desses lavradores e suas famílias migrou para as grandes cidades da região, amontoando-se nas periferias. Em Porto Seguro, já havia um grande déficit habitacional que se acumulara ao longo dos anos e a cidade não estava preparada para abrigar a nova onda migratória. Assim, os novos habitantes da cidade abrigaram-se em casebres feitos da noite para o dia em qualquer local que estivesse desabitado, sobre mangues e encostas de morros nas periferias da zona urbana, sem [um] mínimo de planejamento”. (p. 1).
73
Além dos problemas acima citados, outro relato ilustra bem a gênese de um
conflito iniciado na década de 1980 entre empresários e administração municipal e
que viria a se tornar uma constante nos anos seguintes. Os empreendedores da
cidade ressaltavam que “se fosse depender de água da cidade, não dava nem para
começar a funcionar” e que “até hoje o empresariado de Porto Seguro se organizava
e a prefeitura era omissa” (NOGUEIRA apud SOLHA, 1999, p. 63).
A situação delicada do destino parece ter alcançado seu auge no final dos
anos de 1980 com o acirramento das disputas entre o empresariado local e a
prefeitura, tida como desorganizada e alheia às demandas dos empreendedores.
Aliás, a administração pública municipal, ao longo da década, apesar da lei
municipal nº. 80, de 27 de outubro de 1988, que delimitou o perímetro urbano e a
área de expansão urbana, pode, ainda sim, ter a sua atuação questionada. Ramos
(2002, p. 76) vê nessa lei uma ação que buscou valorizar o solo urbano, o que de
fato aconteceu, na medida em que um conjunto de empreendimentos ligados ao
turismo – restaurantes, hotéis e pousadas – foram construídos na faixa litorânea da
cidade após a sua promulgação.
A situação crítica vivenciada por Porto Seguro ao final dos anos de 1980 pode
ser atribuída aos conflitos entre empresários e administração pública; ao
crescimento urbano desordenado50 decorrente do fluxo migratório; à ausência de
políticas públicas e à crescente degradação ambiental do destino. Este quadro
desalentador parece ter sido pouco amenizado a partir das iniciativas vigentes na
época, cujo objetivo era a busca por atenuar, direta ou indiretamente, os impactos
decorrentes do turismo. Mesmo diante da mobilização de moradores por meio de
associações, de movimentos em defesa do meio ambiente e de um processo movido
em janeiro de 1987 pela Procuradoria da Justiça contra o então prefeito de Porto
Seguro – acusado de autorizar diversas obras lesivas ao patrimônio da cidade –
pedindo, inclusive, o seu impeachment (BIANCHI, 2005, p. 10), a situação geral da
cidade parecia piorar.
Desta maneira, Porto Seguro chegaria à década de 1990 imersa em graves
problemas ambientais, situação socioeconômica pouco favorável e com recorrentes
50 Ramos considera que o crescimento desordenado de Porto Seguro, nos anos 80, propiciou o surgimento de uma área de favela em meio ao manguezal no Rio Bunharém. Além da insalubridade e da total falta de infra-estrutura, o autor assinala que estaria aí uma das “primeiras formas do espaço urbano segregado” (2002, p. 80).
74
contestações à administração pública. Tudo isso colocava em xeque a posição de
destaque da cidade em comparação com outros destinos turísticos do Nordeste.
2.3.2 Década de 1990: consolidação do destino e o Prodetur-NE
No início da década de 1990, a despeito dos graves problemas, sobretudo de
ordem ambiental e social, Porto Seguro se consolidou como um importante destino
turístico, não somente em escala estadual, mas também regional, visto que se
tornaria o segundo destino turístico mais visitado do Nordeste51. A partir da metade
da década, tem início um conjunto de intervenções decorrentes de políticas públicas
que visavam a minimizar os efeitos negativos decorrentes do turismo que acometiam
a cidade, embora os mesmos não tenham sido causados somente pela inserção da
atividade turística na dinâmica local.
Deste modo, pode-se perceber, sobretudo ao final da década de 1980 e início
dos anos de 1990, que Porto Seguro apresentava realidades controversas: a
atividade turística se tornava cada vez mais relevante para a cidade, trazendo
consigo dividendos econômicos, ao mesmo tempo em que surgiam grandes bolsões
de pobreza, dia após dia, em áreas periféricas do município, e a degradação
ambiental se intensificava.
Tofani (apud BIANCHI, 2003, p. 7) aponta seis fatores responsáveis pela
maior notoriedade do destino nesse período, a saber: i) desenvolvimento de serviços
ao longo da BR-101; ii) estabelecimento de linhas regulares de ônibus e vôos diretos
ligando o sul da Bahia às grandes capitais; iii) saturação do turismo em algumas
cidades litorâneas do sudeste; iv) as freqüentes e elogiosas reportagens publicadas
pelos meios de comunicação; v) desenvolvimento de infra-estrutura turística na
cidade; vi) crescente número de pacotes de viagens que começaram a ser
oferecidos pelas agências de turismo.
As repercussões, em especial as negativas, da ascensão turística de Porto
Seguro a partir de 1990 são inúmeras. A primeira delas é o excessivo crescimento
populacional, com a triplicação do número de habitantes em relação a 1970 (Araújo,
2005, p. 325). Segundo Ramos (2002, p. 92), a taxa de crescimento médio anual da
população urbana de Porto Seguro nos anos de 1990 foi de 14,61%, ao passo que a
média estadual foi de 2,51% e o percentual nacional alcançou 2,41%. Um dos 51 ROTEIROS TURÍSTICOS FIAT BRASIL. São Paulo: Folha da Manhã, 1995.
75
fatores mais importantes para esse acréscimo foi o grande e contínuo fluxo
migratório de trabalhadores da região cacaueira em busca de novas oportunidades
de trabalho em função da crise da lavoura cacaueira.
Outro problema decorrente da prática do turismo em Porto Seguro é
apresentado por Bianchi (2005, p. 8). A autora afirma que a valorização de áreas
próximas aos sítios históricos colaborou para que ocorresse uma grande
especulação imobiliária na região. Os moradores dessas áreas, pescadores em sua
maioria, venderam seus imóveis, o quê suscitou uma modificação na função dessas
construções, as quais passaram a receber pontos comerciais. A especulação
imobiliária, além disso, ocasionou a mudança forçada dos antigos proprietários para
áreas periféricas da cidade52.
Ainda sobre a questão de moradia, Ramos revela que na década de 1990 se
acentuou a segregação espacial em Porto Seguro devido ao aumento da ocupação
do “Baianão”, área composta por um conjunto de loteamentos localizados na
periferia do município, praticamente invisíveis aos olhos dos turistas53, já que essas
residências estão localizadas do lado oposto da “cidade turística”, seccionada pela
BR-367. Além de fins eleitorais, o surgimento dessa área teve o intuito de absorver
“a população espacialmente segregada e que serve de suporte para a mão-de-obra
ao turismo” (RAMOS, 2002, p. 100). Para se ter uma dimensão do que o Baianão
representa hoje, Araújo (2005, p. 327) informa que a população atual do Baianão
ultrapassa os 40.000 habitantes.
Solha (1999), ao refletir sobre as mudanças ocorridas ao longo dos anos de
1990, destaca ainda que houve um “colapso na infra-estrutura de apoio” (p. 64) da
cidade frente ao aumento excessivo do fluxo de turistas. Segundo Araújo (2005, p.
52 Há, na literatura recente de turismo, vários exemplos relativos a especulação imobiliária em áreas de importância histórica e que passaram por um processo de maior visibilidade a partir da prática do turismo. Os trabalhos de Resende (2005) e Silva (2006) descrevem situações semelhantes referentes à intensa especulação imobiliária causada pelo crescimento do turismo, respectivamente, na cidade de Canavieiras e no distrito de Trancoso, este último pertencente a Porto Seguro. Meneses (2004), ao estudar o caso de Tiradentes, cidade colonial de Minas Gerais, também constata que houve, em seu centro histórico, um processo de aquisição em massa dos imóveis tombados pelo IPHAN por empresários oriundos de grandes centros, tais como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. 53 Ao longo de todo trabalho de campo realizado em 2007, poucos foram os turistas que manifestaram alguma reação, ou mesmo apresentaram curiosidade quanto à existência do Baianão. Porém, um fato marcante se deu ao longo de um diálogo com Wanda, uma turista mineira, que, além de indagar ao guia quanto ao “lugar que o povo da cidade vive”, asseverou: “aqui a agente não vê o povo dessa cidade. Diz que é no tal de Baianão que esse povo vive [...], e que dizem que é uma favela. E deve ter muita gente lá. Você vai pro Arraial e não vê ninguém... Vai pra Trancoso e não vê ninguém. Passa pelo aeroporto e não dá para ver nada. Aqui só vê turista. Lá em Trancoso você vê comércio, umas casas”.
76
327), tomando como base dados da Bahiatursa, em 1993, foi registrada a entrada de
cerca de 570 mil turistas em Porto Seguro, o que corresponde a aproximadamente
seis vezes a população local no final dos anos de 199054.
Laércio Gomes Silva, atual presidente do Conselho Regional de Turismo da
Costa do Descobrimento, resume com clareza toda a situação vivida por Porto
Seguro a partir da década de 1990:
Com a fama de que Porto Seguro era um Eldorado, as pessoas começaram a vir para cá, principalmente pessoas de baixa renda. Com a administração criminosa de ex-prefeitos de quatro em quatro anos, nasce uma sub-cidade em Porto Seguro. Nós temos um crescimento médio maior de 10% ao ano, um dos maiores do Brasil. Veja que nós não temos emprego para isso [...]. (apud COSTA, 2005, p.110).
A consideração acima não só retoma a idéia sobre a concepção presente no
imaginário de muitas pessoas a respeito do potencial quase infindável de Porto
Seguro, mas revela a difícil situação vivida pelo município a partir daquele momento.
Assim, quando o “caos, em termos de organização do espaço [...] começou a
configurar-se como um possível fator limitante à manutenção dos fluxos
conquistados e, principalmente, à sua expansão” (CRUZ, 2000, p. 86), o município
passaria a ser uma das principais prioridades do governo do Estado, por meio do
Prodetur-BA55 e do governo federal, via o Prodetur-NE.
O Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste – Prodetur-NE – foi
implementado em 1991 pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste –
Sudene – e pela então Embratur, que, naquela época, se chamava Empresa
Brasileira de Turismo56, visando consolidar as diretrizes da Política Nacional de
Turismo, instituída pelo governo federal em 1991, embora sua implementação só
tenha tido início em 1996. As macroestratégias desta política de turismo, na qual o
Prodetur-NE está inserido, seriam: i) a implantação de infra-estrutura básica e
turística; ii) a capacitação de recursos humanos para o setor; iii) modernização da 54 Segundo Araújo (2005, p. 327), utilizando estimativas da Bahiatursa, a demanda turística de Porto Seguro, no ano 2000, atingiu a marca de 1.037.045 turistas, ao passo que Salvador, no mesmo período, recebeu 1.886.027 turistas. 55 O Programa de Desenvolvimento do Turismo da Bahia – Prodetur-BA – foi instituído em termos formais no ano de 1991. O Prodetur-BA pode ser concebido como um “[...] programa multi-setorial de implantação de infra-estrutura básica destinada ao desenvolvimento do turismo, compreendendo ações em: obras públicas, marketing e educação para o turismo” (MENDONÇA JUNIOR; GARRIDO; VASCONCELOS, 2000, p. 17). 56 A EMBRATUR ou Empresa Brasileira de Turismo foi criada em 1966. Atualmente, a sigla designa o Instituto Brasileiro de Turismo, autarquia de turismo nacional vinculado ao Ministério do Turismo desde 2003, ano da criação desse mesmo ministério. Sua principal atribuição atualmente é referente a promoção internacional do Brasil.
77
legislação; iv) a descentralização da gestão do turismo; v) a promoção do turismo no
Brasil e no exterior (DIAS, 2003, p. 136).
Araújo (2005, p. 326) ressalta que o Prodetur-NE contou com financiamentos
do Banco do Nordeste e com recursos repassados pelo Banco Interamericano de
Desenvolvimento – BID. Entretanto, houve a necessidade de contrapartidas
estaduais e da União da ordem de 40% do valor total do investimento, que, segundo
dados do site oficial do Programa57, seriam da ordem de 670 milhões de dólares em
sua primeira fase. Além disso, coube aos estados contemplados instituir não só
políticas regionais para o programa, bem como delinear quais seriam os pólos
prioritários passíveis de receber os recursos disponibilizados pela primeira fase
dessa ação governamental58. Aliás, com isso foi desencadeada uma série de
mudanças nos projetos referentes aos pólos prioritários estaduais, visto que os
Estados encontraram dificuldades em responder pelas contrapartidas locais exigidas
pelo programa (CRUZ, 2000).
Embora não faça parte dos objetivos deste trabalho pormenorizar os aspectos
estruturais do Programa de Desenvolvimento Turístico do Nordeste, faz-se
necessário indagar: qual a importância que o Prodetur-NE teve e ainda tem para
Porto Seguro?
De início, podemos assinalar que os maciços investimentos oriundos desse
programa causaram profundas transformações, primeiramente espaciais, na
estrutura da cidade de Porto Seguro. Houve, assim, uma reestruturação da atividade
turística nesse município e, conseqüentemente, toda uma reogarnização
socioeconômica ao intensificar sua dependência em relação à atividade turística.
Ainda buscando responder a questão acima proposta, faz-se necessário
trazer à tona a consideração de que o Governo da Bahia, por meio do Prodetur-BA,
enquanto correspondente estadual do programa federal, elegeu a Costa do
Descobrimento, zona turística composta por Santa Cruz de Cabrália, Belmonte e
Porto Seguro, como prioridade para recebimento de investimentos do programa.
Essa escolha, em particular de Porto Seguro como zona prioritária, revela o quanto o
57 Disponível em: < http://www.bnb.gov.br/content/aplicacao/PRODETUR/Apresentacao/gerados/apresentacao.asp >. Acesso em 17 set. 2006. 58 Segundo Cruz (2000, p. 113), “o Prodetur-NE foi subdividido em três etapas, cujo limite de vencimento das operações se dará em 12 de dezembro de 2007”. Sabe-se que houve atrasos na primeira fase do programa, visto que em 2005-2006 ainda havia obras em execução.
78
Governo Estadual entendia ser esta região uma área vital para o aumento do fluxo
de turistas no Estado.
Dentre os motivos que levaram o Governo da Bahia a priorizar a Costa do
Descobrimento, podemos assinalar três: i) o aumento expressivo da demanda,
conforme já apontado nesta seção; ii) deterioração do produto turístico passível de
comprometer a imagem turística de Porto Seguro; iii) a importância estratégica da
região diante da proximidade pela comemoração dos 500 anos do Brasil. Esta última
justificativa é corroborada por uma publicação patrocinada pela Secretária da Cultura
e Turismo da Bahia. O documento atesta que uma das causas para a escolha da
Costa do Descobrimento como prioridade estadual se deveu:
[...] às comemorações dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, uma oportunidade única para sua inserção na mídia nacional e internacional, além de fomentar a motivação histórico-cultural com a necessidade de preparar aquela região para receber o contingente de pessoas atraídas pelos eventos comemorativos (MENDONÇA JUNIOR; GARRIDO; VASCONCELOS, 2000, p. 17). (grifos meus).
A opção por eleger Porto Seguro como uma das áreas que receberiam
grande aporte de recursos foi, portanto, estratégica. Em termos gerais, o município
concentrou um conjunto significativo de intervenções públicas relacionadas ao
Prodetur-NE voltadas para o turismo, ao compararmos com outros pólos turísticos
do Estado. Aliás, Ramos (2002) já havia alertado para a crescente importância de
Porto Seguro no cenário turístico estadual, visto que ele e Salvador, segundo dados
obtidos pelo autor “[...] concentraram mais de 50% de toda a receita destinada ao
desenvolvimento turístico no período entre o fim dos anos de 1980 e início dos anos
de 1990” (p. 82). Podemos destacar abaixo, segundo informações contidas no site
da Secretária de Cultura e Turismo, as intervenções relacionadas ao programa para
a cidade de Porto Seguro em sua primeira fase59:
• Aeroporto Internacional de Porto Seguro60;
59 Importa ressaltar que o município foi amplamente privilegiado no que tange ao aporte de recursos recebidos pelo programa quando comparado com as demais cidades do Extremo-Sul da Bahia. O trabalho de Anjos, Castro e Brumatti (2007) demonstra que essa disparidade gerou conflitos e protestos de outras cidades do Extremo-Sul baiano, em especial com os municípios de Alcobaça, Prado e Caravelas, cidades constituintes da Costa das Baleias, que é uma das sete zonas turísticas prioritárias definidas pelo Prodetur-NE para o Estado da Bahia. 60 O aeroporto de Porto Seguro foi inaugurado no ano de 1982. Seu terminal de passageiros, inicialmente simples e pequeno, hoje ocupa o antigo prédio do Corpo de Bombeiros da cidade. Em 1997, em decorrência dos investimentos do Prodetur-NE, o aeroporto foi reinaugurado, tendo
79
• Sistema de abastecimento de água de Porto Seguro – Orla e Frei Calixto;
• Receptivo turístico – Centro histórico de Porto Seguro;
• Atracadouro Porto Seguro/Apaga Fogo;
• Sistema de abastecimento de água e esgoto sanitário de Porto Seguro –
setor A;
• Drenagem Porto Seguro/Acesso Apaga Fogo/Arraial D’Ajuda;
• Rodovia Porto Seguro/Trancoso;
• Plantio de gramas e hidrossemeadura Porto Seguro/Trancoso;
• Recuperação de matas ciliares de Porto Seguro;
• Recuperação do patrimônio histórico de Porto Seguro/Trancoso.
Essas intervenções urbanas promovidas pelo Prodetur-NE, embora capazes
de dotar o município de melhores condições infra-estruturais para receber os
turistas, não impediram a continuidade e o surgimento dos problemas de Porto
Seguro, como veremos a seguir.
2.3.3 Conseqüências do Prodetur-NE e a eclosão de novos problemas em Porto
Seguro
O conjunto de intervenções implementadas pelo Prodetur-NE para a cidade
de Porto Seguro ao final da década de 1990 e início da primeira década do presente
século contribuíram para a ascensão de Porto Seguro ao status de uma cidade
turística e de um centro turístico consolidado, gerando o incremento da demanda
turística.
A denominação de cidade turística foi atribuída em virtude da classificação
dos municípios brasileiros em Municípios Turísticos (MT) e Municípios com Potencial
Turístico (MPT) realizada em 1999 pela EMBRATUR. O objetivo desta ação era
classificar os municípios a partir de sua potencialidade turística com vistas a
maximizar os investimentos públicos em áreas de relevante interesse turístico do
Brasil. A cidade de Porto Seguro foi inserida nessa classificação, pois seria um
recebido um novo terminal de passageiros, novo pátio de estacionamento de aeronaves e ampliação da pista de pouso. Atualmente, há a proposta prefeito em vigência, Jânio Natal, de construir um novo aeroporto, na medida em que a atual estrutura é insuficiente para suportar, com um mínimo de conforto, a grande quantidade de turistas que chegam à cidade durante os finais de semana por intermédio de vários vôos charter.
80
município turisticamente consolidado, já que detentor de um turismo efetivo e capaz
de gerar fluxos permanentes de visitantes. Além dessas características, o município
pode ser designado como uma cidade turística por ter o turismo como base da
economia local, sendo mesmo a principal fonte de renda para a população (SILVA,
2005, p. 88-89).
Segundo Rodrigues e Xavier (2004), a cidade de Porto Seguro, ao ser
entendida a partir do Prodetur-NE como parte de um processo de regionalização dos
espaços turísticos, também denominado de zonas turísticas61, foi inserida, bem
como boa parte do litoral nordestino, no cenário turístico internacional. Essa posição
de destaque do município baiano desencadeou as condições necessárias para que
Porto Seguro assumisse as funções de um centro turístico consolidado, isto é, “[...],
aglomerado urbano que detém em seu próprio território e raio de influência atrativos
de qualquer tipo de hierarquia capazes de motivar viagens turísticas” (p. 10).
Outra característica dessa categoria oriunda da Teoria dos Espaços
Turísticos62, e que pode ser percebida em Porto Seguro, ao longo dos anos de 1990,
seria sua crescente capacidade de exercer influência regional, pois todas as
destinações turísticas da Costa do Descobrimento acabaram por se submeter ao
poder centralizador exercido pelo município. Essa dependência se dá não só pela
importância econômica que Porto Seguro desempenha regionalmente, mas por ser
um centro turístico que agrega inúmeras funções (RODRIGUES; XAVIER, 2004),
tais como: centro de distribuição, ou seja, uma localidade que detém a maioria dos
serviços e equipamentos turísticos utilizados pelos turistas; centro de estadia, ao
possibilitar que os visitantes possam restringir sua visita à própria localidade devido
à grande variedade de atrativos; e a função de centro de escala, isto é, servir como
ponto intermediário para os turistas que desejam chegar às demais destinações da
Costa do Descobrimento.
61 De acordo com Mendonça Júnior; Garrido e Vasconcelos (2000, p.58) as zonas turísticas da Bahia foram subdividas não somente por afinidades geográficas ou socioeconômicas, mas também tomando como referência os seguintes critérios: i) constatação da qualidade dos atrativos turísticos; ii) existência de um produto turístico já conhecido e colocado à venda; iii) existência de recursos naturais preservados com áreas disponíveis para implantação de complexos turísticos; iv) capacidade de implantação de infra-estrutura receptiva sem prejuízos aos recursos naturais e ao meio ambiente. 62 A Teoria dos Espaços Turísticos, de Boullón, e citada por Rodrigues e Xavier (2004), surgiu com o intuito de atender aos propósitos do planejamento turístico estabelecendo um conjunto de categorias, cujos critérios criam condições de classificar os espaços turísticos a partir de suas funções, estruturas, dimensões e inter-relações.
81
Quanto ao aumento da demanda turística para Porto Seguro, não podemos
atribuir tal situação ao fato de que as instâncias públicas dotaram a cidade, por
intermédio do Prodetur-NE, de uma ampla infra-estrutura básica e de apoio ao
turista. Aliás, Cruz considera que a infra-estrutura urbana implementada via
Prodetur-NE não é capaz de ampliar o fluxo de turistas, ou aumentar a sua
permanência, muito menos gerar mais empregos, pois, para a autora, o programa
funcionaria enquanto política de urbanização para o turismo, isto é, seria “uma
política de turismo que faria as vezes de uma política urbana” (CRUZ, 2000, p. 112).
Entretanto, parece lógico afirmar que a incorporação de novos equipamentos e
serviços aos atrativos naturais e culturais já existentes fez com que o município, ao
menos em termos cênicos, se tornasse mais atraente. Tal fato pode justificar uma
motivação adicional por parte dos turistas para visitar a cidade.
Apesar das ressalvas, assim como faz Araújo (2005, p. 327) quanto ao fato do
Prodetur-NE ter concentrado os seus projetos nas áreas turísticas da cidade, não
contemplando assim o município como um todo, parece pouco fundamentado negar
a repercussão que o programa desencadeou para a melhoria da imagem da cidade
nos pólos emissores, em especial após as festividades que marcaram os 500 anos
do Brasil. O gradativo aumento da demanda para a cidade ao longo dos anos de
1990 corrobora esta assertiva, tal como exposto na tabela abaixo:
TABELA 1 – Fluxo global de turistas em Porto Seguro entre 1993 e 1999 (em 1.000 turistas). Fonte: Bahiatursa.
0
200
400
600
800
1000
1200
1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999
Fluxo de
turistas (em mil)
82
Embora o fluxo turístico de Porto Seguro tenha crescido vertiginosamente ao
longo da década de 1990, saltando de aproximadamente 570 mil turistas em 1993
para mais de um milhão de visitantes em 1999, o que representa um acréscimo de
quase 100%, faz-se necessário, antes de finalizarmos esse percurso ao longo da
história de Porto Seguro, pormenorizar uma última repercussão da atividade turística
na cidade. Referimo-nos à grande desigualdade socioeconômica vigente no
município, mesmo levando-se em consideração que não só a quantidade global de
turistas cresceu com o passar dos anos, mas também a entrada de divisas.
Se, tal como já foi apontado aqui, o crescimento urbano desordenado da
década de 1980, aliado ao grande fluxo migratório que se deslocou para Porto
Seguro nesse período e à ausência de políticas públicas colaboraram para a
formação de bolsões de pobreza – por exemplo, o Baianão –, nos anos posteriores,
a situação parece não ter sido atenuada. Assim, a pobreza – um aspecto recorrente
da história de Porto Seguro – estaria presente no contexto de vida da maioria da
população em pleno século XXI. Há de se dar ênfase para a tese de que não foi
somente o turismo, seja pela sua má gestão, seja pela natureza da própria atividade,
que desencadeou uma série de impactos negativos sobre a cidade, como, por
exemplo, a segregação ou os conflitos sociais. A atividade turística deve ser vista
enquanto prática econômica imersa em um contexto mais abrangente, seja ele
econômico – o capitalismo –, seja vinculado à estrutura política do país, marcada
pela má gestão e pela corrupção. Esses fatores, aliados a outros já tratados nesta
seção, podem justificar o delicado quadro socioeconômico vigente no segundo
destino turístico da Bahia. Posto isto, tentar-se-á, nos próximos tópicos, apresentar
alguns desses impactos negativos do turismo em Porto Seguro de forma mais clara,
em especial ao evocarmos dados coletados durante o trabalho de campo realizado
por este pesquisador.
2.3.4 O processo de segregação em Porto Seguro
Ao tecer considerações sobre a questão do espaço urbano em Porto Seguro,
em especial sobre as áreas marginalizadas da cidade, como os loteamentos à
margem da BR-367, Ramos (2002) alerta que:
Em Porto Seguro, o antagonismo nas condições de urbanização se inicia na divisão entre a cidade baixa e a alta, com a primeira sendo o centro
83
privilegiado do turismo e sobre a qual recaem todos os benefícios urbanos, onde vive a parcela que se não é beneficiada pelo implemento do turismo, ao menos não é tão discriminada ou segregada quanto aquela que vive na “outra cidade”, aquela que mais parece ser uma cidade paralela, tanto na percepção de seus moradores, quanto em termos fisiográficos quanto sócio-espaciais (p. 129-130).
A questão da segregação espacial em Porto Seguro se deve em parte ao fato
de que as intervenções urbanas realizadas, especialmente aquelas relacionadas ao
turismo privilegiaram, em grande medida, o centro da cidade e a Passarela do
Álcool63 em detrimento de áreas periféricas como, por exemplo, a região do Baianão.
Aliás, Cruz (2000, p. 25) também defende que a dimensão urbana e os serviços
complementares ofertados pelas cidades turísticas têm papel de destaque na
escolha das destinações pelos visitantes, conclusão parecida com a existente na
obra de Santana (1997, p. 39). Ou seja, os espaços turísticos, a exemplo de Porto
Seguro, funcionariam ao mesmo tempo como atrativo e suporte para a prática do
turismo. Se como atrativo os aspectos físico-naturais do destino são privilegiados
pela mídia turística (SOLHA, 1999), o suporte, isto é, o conjunto de serviços
oferecidos pela infra-estrutura urbana e turística é essencial para a satisfação do
turista, visto que “a grande maioria das pessoas que fazem turismo ser originária de
centros urbanos e de buscar, como turista, o atendimento de necessidades urbanas
trazidas de seus lugares de origem” (CRUZ, 2000, p. 25)64. Podemos depreender,
assim, que o privilégio por alocar recursos públicos na faixa litorânea de Porto
Seguro, área de maior trânsito dos turistas, visava também a maximizar o índice de
satisfação dos próprios visitantes.
Embora esse movimento de urbanização da Passarela do Álcool e do centro
de Porto Seguro tenha suscitado benefícios para a própria população local, o que é
inegável, esse modelo de turismo parece, entretanto, estar inserido no paradigma
que favorece a apreensão metonímica do que seria a cidade e sua dinâmica, além
de dificultar uma compreensão mínima de como os habitantes locais se articulam, na
63 A Passarela do Álcool, uma das áreas turísticas de Porto Seguro, foi amplamente beneficiada por ações decorrentes do Prodetur-NE ao receber equipamentos e serviços turísticos. Ainda hoje aquela área é recorrentemente alvo de investimentos do poder público. Um exemplo disso pode ser encontrado na edição do jornal Topa Tudo, de 29 de julho de 2007, ao informar que há um projeto da Prefeitura Municipal orçado em mais de oito milhões de reais que propõe uma reurbanização da Passarela do Álcool com vistas a criar um Shopping a Céu Aberto. 64 Ainda de acordo com a autora, o fato da maior parcela do turismo brasileiro se concentrar na faixa litorânea é um indicativo do quanto as cidades, por si só, se tornaram também elas um objeto de atratividade para o turista. Não só por agregar uma boa infra-estrutura de acesso, hospedagem e de apoio às atividades de lazer, mas por concentrar grande soma de equipamentos turísticos (CRUZ, 2000, p. 33).
84
medida em que o turista que vai a Porto Seguro fica concentrado na Cidade Baixa,
que corresponde ao centro da cidade. É lá que ele se hospeda, se alimenta, adquire
as suas lembranças, vai ao banco, parte para os passeios em alto mar, dentre outros
serviços. Essa “limitação espacial”, como se verá de forma mais pormenorizada no
próximo capítulo, não chega a se constituir em um modelo “bolha” (URRY, 1996), ou
em “enclaves turísticos” (PEARCE, 1990; LOZATO-GIOTART, 1993 apud CRUZ,
2000), isto é, que distancie ou descole o turista do entorno dos empreendimentos
turísticos, mas colabora para minimizar uma apreensão mais holística do que seria
Porto Seguro. Isso não impede, contudo, de que haja “rotas de fuga” de turistas
dessas limitações, pois há instâncias de interação que aparentemente subvertem
essa circunscrição dos visitantes, tal qual veremos no capítulo seguinte ao centrar a
atenção na relação dos turistas com os símbolos, discursos e imagens privilegiados
pelo trade turístico de Porto Seguro – prefeitura, operadoras e agências de turismo,
companhias aéreas, setor de serviços e a Bahiatursa.
Além da segregação espacial vivenciada pelos moradores do Baianão, os
mesmos também são estigmatizados por parte de alguns agentes turísticos. Um
caso ilustrativo aconteceu durante minha pesquisa de campo quando, por intermédio
de uma agência de turismo local e juntamente com um grupo de turistas, ia para a
Praia do Espelho. O guia da excursão, ao passar pelo Baianão, fez sucessivas
piadas e alusões quanto ao perigo de se adentrar naquela área, bem como à
pobreza dos habitantes daquela região. E ainda fez questão de mostrar a delegacia
de polícia instalada em frente ao bairro, que, para ele, seria um local que os
moradores do Baianão sempre “visitariam”.
A situação do Baianão é emblemática para ilustrar que em Porto Seguro,
sobretudo após a década de 1990, houve um agravamento da disparidade
socioeconômica, questão ainda mais delicada ao levar-se em conta que o fluxo de
turistas, embora crescente, não permitiu uma melhor redistribuição de renda para a
população. Para se ter uma tênue idéia dessa desigualdade vigente na cidade, Porto
Seguro ocupava em 2000, de acordo com a Superintendência de Estudos
Econômicos e Sociais da Bahia, a 17ª colocação no Índice de Desenvolvimento
85
Econômico – IDE –, ao passo que no Índice de Desenvolvimento Social – IDS – o
município ocupava o 48º posto65.
Essa disparidade econômica suscita não só um movimento de segregação
vigente na cidade, mas desencadeia ainda outro problema recorrente na dinâmica
turística de Porto Seguro, como veremos em seguida: um grande número de queixas
dos moradores quanto ao turismo da cidade.
2.3.5 A grande dependência do turismo e o descontentamento dos moradores
A dependência econômica de Porto Seguro em relação à prática do turismo
gera uma grande quantidade de reclamações de seus moradores. Essas queixas
são facilmente apreendidas face à recorrência nos discursos, sobretudo de guias e
nativos. Pode-se constatar que há na cidade, no que diz respeito às pessoas
vinculadas à atividade turística, que são moradoras do município, certas ressalvas
quanto à estruturação da atividade turística em Porto Seguro.
Em termos gerais, podemos resumir essas ressalvas dos moradores, algo
bastante presente nos discursos de guias, vendedores ambulantes, funcionários de
agências e operadoras na seguinte dicotomia: empresários e empreendedores que
prosperaram versus nativos que se encontram em uma posição econômica
periférica.
A constatação de que há certa tensão entre moradores e empresários,
mormente os ligados ao setor turístico, já havia sido alvo de comentários de
Mesquita Filho (2006). Após realizar várias entrevistas em campo com moradores, o
autor chega às seguintes conclusões:
Alguns moradores culpam o grande número de estrangeiros estabelecidos na cidade, sem compromisso com o desenvolvimento local. A população foi praticamente expulsa do centro da cidade, por empresários “de fora”, do ramo da hotelaria e pousadas. [E] que esses empresários, geralmente, não participam da política local ou apenas dela se beneficiam por meio de negociatas (p. 114).
Exageros à parte quanto ao fato de considerar que vários empresários vindos
de fora de Porto Seguro estariam envolvidos com práticas ilegais, a conclusão do
pesquisador é reveladora para ilustrar o quanto a vinda em massa de 65 Sistema de dados estatísticos - SIDE - da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Disponível em: <http://www.sei.ba.gov.br/side/frame_tabela.wsp?tmp.tabela=T164&tmp.volta>. Acesso em: 12 out. de 2007.
86
empreendedores de outras partes do país e estrangeiros colaborou para um
sentimento de injustiça por parte dos porto-segurenses. Um guia da CVC,
comentando sobre a necessidade de novos produtos turísticos para dinamizar a
economia da cidade, afirmou, em dado momento do diálogo: “[...]” os donos de hotel
são de fora e o dinheiro acaba indo para essas cidades, sobrando pouco para nós.”
O que se observa é que os habitantes de Porto Seguro, sobretudo aqueles
oriundos da região cacaueira, se restringiram, em sua maioria, à venda de sua mão-
de-obra para empreendimentos turísticos, os quais têm como proprietários
empresários advindos de outros Estados. E embora em pólos distintos – moradores
baianos versus empreendedores “de fora” –, algo os une: a grande dependência do
turismo.
A ausência de oportunidades de ascensão social e o quadro de desigualdade
socioeconômica em Porto Seguro são admitidos até mesmo em termos
institucionais. A Superintendência de Investimentos em Pólos Turísticos, a
Superintendência do Banco do Nordeste e do Banco Interamericano de
Desenvolvimento – BID – elaboraram em 2002 o Plano de Desenvolvimento
Integrado do Turismo Sustentável da Costa do Descobrimento – PIDTS. Esse
documento, que é indispensável para a inserção do município na segunda fase do
Prodetur-NE, e que é citado no trabalho de Gertze (2006, p. 54), chega à seguinte
conclusão:
Socialmente, poucos são os nativos que se beneficiam do turismo. O custo de vida em geral (alimentação, aluguel, etc.) ficou muito alto. A maioria tem emprego de baixa qualificação e salário pequeno, além de sazonal, vivendo em subúrbios ou favelas. Essa marginalização, a prostituição e o tráfico de drogas, também estimulados pelo turismo “festivo” ali promovido, geram um contexto social de pobreza, criminalidade e violência muito parecido ao que ocorre a periferia de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo.
As conseqüências desse contexto social vivido por Porto Seguro não são
limitadas aos próprios moradores da cidade. Há desdobramentos também
percebidos pelos turistas, como a questão da segurança. Pôde-se constatar, uma
grande preocupação, tanto dos turistas, quanto dos intermediários turísticos –
agentes de viagem, guias e demais profissionais envolvidos com a oferta de
87
produtos para os turistas – acerca dos altos índices de violência, assunto recorrente
nos jornais66 e em conversas com moradores da região.
A fala de um guia da CVC durante o segundo dia do pacote turístico que
realizei entre julho e agosto ilustra bem essa preocupação. Durante o trajeto que
levava os turistas da CVC para uma Barraca na praia chamada Tôa-Tôa, após o city-
tour na Cidade Histórica, o guia se fez valer de algumas brincadeiras e eufemismos
para avisar aos turistas quanto aos riscos de se andar na praia, sobretudo
carregando pertences de valor:
Iremos passar pela Praia do Mundaí, que, na língua indígena quer dizer ladrões. E tenham atenção porque lá há muitos “mundaízinhos”, ou seja, “ladrõezinhos”. Não andem sozinhos para partes da praia mais afastadas.
O aumento da insegurança e do desemprego, a ausência de outras atividades
econômicas e a falta de novas perspectivas para a população são questões
presentes na declaração de Laércio Gomes Silva (apud COSTA, 2005, p. 110) ao
descrever a situação da maior parte dos habitantes de Porto Seguro:
Veja que nós não temos emprego para isso, devido a sazonalidade de nossa economia. Nós não apostamos na indústria. [...] Como Ilhéus fez. [...] Não é como aqui que só é turismo, turismo, turismo. A padaria, o mercado, a lavanderia, tudo esperando pelo setor. Então inchou a cidade, mas houve benefícios para a população? Todo esse inchaço causa um grave problema para o setor turístico e para a população nativa. Essa especulação em torno do turismo não melhora em nada a vida do pequeno empresário.
Para piorar o quadro de dependência econômica67 com relação ao turismo, o
município não consegue atualmente manter um fluxo de turistas equilibrado ao longo
do ano, capaz de ocupar permanentemente os mais de 40 mil leitos instalados na
cidade (MESQUITA FILHO, 2006, p. 113). Uma das principais causas para essa
concentração do fluxo turístico na alta temporada se refere a Porto Seguro ter
optado por priorizar a modalidade de turismo de lazer (GERTZE, 2006, p. 52), que,
como se sabe, é realizado, em grande medida, nos meses de férias e nos feriados 66 No mês de julho de 2007, foi grande o destaque dado pelos jornais locais ao “Manifesto contra a violência” realizado em Arraial D’Ajuda. O jornal Topa Tudo, de 22 de julho, reporta que naquela ocasião, além da paralisação da principal estrada que liga o povoado de Arraial D´Ajuda a Porto Seguro, 1200 assinaturas foram coletadas com o intuito de pressionar as autoridades a tomar providências. Já um jornal de Eunápolis, o Correio do Sul, de 17 de julho, destaca uma reunião entre o prefeito de Porto Seguro e seus secretários com o então Secretário de Segurança do Estado, Paulo Bezerra, em Salvador. Na ocasião foram reivindicadas ações do Estado para atenuar a grave situação referente à segurança pública no município. 67 Segundo Mendonça Júnior; Garrido e Vasconcelos (2000) “mais de 2/3 da população da Costa do Descobrimento [zona turística do qual Porto Seguro faz parte] dependem direta ou indiretamente do turismo” (p. 82).
88
prolongados, além dessa modalidade turística não contemplar uma segmentação
mais clara68. Essa dependência do turismo de lazer enquanto um inibidor da
diversificação econômica da Costa do Descobrimento já havia sido, inclusive, motivo
de preocupação por parte de um documento patrocinado pela Secretaria de Cultura
e Turismo da Bahia em 200069.
O contexto atual de dependência e de grande oscilação da demanda colabora
para a existência de duas questões recorrentes em Porto Seguro: i) a presença, no
imaginário de muitos porto-segurenses, de uma espécie de volta aos “tempos
áureos” do turismo em Porto Seguro; ii) a criação de novos produtos turísticos
objetivando minimizar os efeitos da baixa estação.
A questão de uma volta aos “tempos áureos” se resume à esperança que
muitos moradores e empreendedores do município acalentam de que a cidade
voltará a ser o que era antes, isto é, um pólo de grande atratividade para o turismo
capaz de gerar muitos lucros para esses indivíduos. A questão aqui se refere menos
a um suposto decréscimo da demanda turística de Porto Seguro, que de fato não
aconteceu, e mais a uma opção estratégica equivocada do planejamento turístico de
Porto Seguro que priorizou o turismo de lazer. Lembro-me bem da insatisfação de
um empresário de São Paulo, dono de um restaurante, ao reclamar da cidade
“vazia” em pleno período pré-carnaval. Ele assegurou que “nos outros anos, essa
rua aqui não tinha nem como estacionar. Estava tudo tomado de carro e de ônibus.
Já nessa época [véspera do carnaval] isso aqui já estava lotado”.
Quando a prática turística atual não é lembrada em face de um passado
pródigo, a reflexão é projetada para um futuro, sobretudo ao se ter em mente as
dificuldades acarretadas pelos períodos de baixa estação. Uma guia constatou que
“devia ter um calendário aqui até mesmo na baixa estação”. Uma empresária ratifica
as considerações acima ao reforçar a necessidade de paciência para enfrentar a
baixa temporada: “Agora é descansar e esperar a Semana Santa, as férias de julho
e por aí vai”70.
68 Um documento oficial da Prefeitura é emblemático para ilustrar como há a ausência de uma segmentação de mercado, isto é, não existe um foco específico quanto ao público-alvo, o que acaba por favorecer o deslocamento de um grande fluxo de pessoas. “Em Porto Seguro, visitantes de todas as idades – jovens desacompanhados ou em grupos de amigos, famílias com filhos, casais em lua-de-mel, turistas da terceira idade, executivos viajando a negócios – todos têm diversão e segurança garantidos” (PORTO SEGURO. Nasci aqui, meu nome é Brasil. Porto Seguro: um grande destino desde 1500, [s.d.].). 69 Mendonça Júnior; Garrido; Vasconcelos (2000). 70 Declaração extraída do jornal Tribuna da Costa, n. 52, 25 fev. de 2007.
89
Apesar de a baixa temporada ser de grande incômodo para os porto-
segurenses envolvidos com a dinâmica turística, sucessivas iniciativas do trade
turístico visaram minimizar os efeitos nocivos do decréscimo de turistas fora da alta
estação. A principal medida adotada por esses stakeholders foi a diversificação dos
produtos turísticos ofertados pelo destino, cujos destaques são o rearranjo do
Carnaporto, o carnaval prolongado da cidade, a criação do Festival Gastronômico da
Costa do Descobrimento e a “Semana do Saco Cheio”.
A partir do ano de 1997, o carnaval de Porto Seguro passou gradativamente a
assumir uma nova estrutura e, concomitantemente a isso, se consolidou como o
segundo maior carnaval da Bahia, ficando atrás somente de Salvador. Uma
pungente alteração da festa, que tinha como objetivo atrair mais foliões para a
cidade, refere-se à mudança de sua duração, a qual passou a ser de oito dias,
transcendendo o calendário normal dos demais carnavais, e que ocorrem
normalmente até a terça-feira predecessora da Quarta-Feira de Cinzas. Essa
alteração, posteriormente incorporada à “identidade” da festa, possibilita o
deslocamento de turistas das demais cidades baianas, inclusive de Salvador, para
Porto Seguro, visto que as festividades já estariam encerradas nas demais
localidades. Além disso, a prefeitura de Porto Seguro firmou recentemente uma
parceria que concede à empresa Axé Moi Complexo de Lazer a formatação da festa.
Em 2007, por exemplo, essa parceria rendeu dois carnavais: o de rua e o indoor. Se
o primeiro foi tido por muitos moradores como sendo “mais fraco” do que nos outros
anos, pois as principais atrações foram deslocadas para a versão indoor do
Carnaporto, a festa realizada em ambiente privado contou com cerca de quinze mil
pessoas por dia, de acordo com matéria do jornal Tribuna da costa, de 25 de
fevereiro de 2007, página 9. De acordo com a mesma fonte, a esse número soma-se
a média de 50 mil pessoas por dia na versão de rua no carnaval.
O Festival Gastronômico da Costa do Descobrimento, iniciativa do SEBRAE,
se encontra em sua terceira edição e ocorreu, em 2007, entre os dias 20 de julho e 5
de agosto. O festival, inspirado no Festival Gastronômico de Tiradentes, não só
busca apresentar às pessoas a grande diversidade cultural da região, mas também
incrementar o fluxo turístico dos municípios envolvidos71, especialmente de Porto
Seguro.
71 Belmonte, Santa Cruz de Cabrália e Porto Seguro.
90
A “Semana do Saco Cheio” foi, durante muito tempo, uma alusão à semana
do mês de outubro que contempla não só o feriado de 12 de outubro, dedicado a
Nossa Senhora Aparecida, mas também o feriado do dia 15 de outubro – Dia do
Professor. Diante desta “janela” no calendário letivo, o trade turístico de Porto
Seguro formata, há anos, uma série de shows e eventos visando atrair um fluxo
maior de turistas, em especial grupos de jovens. Destaque para a grande quantidade
de adolescentes que se encontram no último ano do ensino médio e que se
deslocam para Porto Seguro para se despedirem do ensino médio e da turma.
Contudo, há alguns anos, a prefeitura de Porto Seguro, em associação com
empresários locais, detectando esse novo nicho de mercado – jovens de classe
média em viagens de formatura – estendeu a programação da “Semana do Saco
Cheio” para todo o mês de outubro72. Desta maneira, ao longo de 30 dias, há shows
diários com grandes nomes da música brasileira, sobretudo do axé music. Ressalta-
se que todos os shows são realizados em espaços privados – cabanas de praia e
arenas – e custam entre 50 e 100 reais, e a variação do preço do abadá depende do
nível da atração. Os ingressos mais caros permitem ao turista desfrutar uma
apresentação de uma atração de fama nacional, ao passo que os ingressos mais
baratos são, em geral, referentes a bandas conhecidas, no máximo, dentro do
próprio Estado da Bahia.
Contrapondo-se às arrojadas metas de turismo propostas pelos agentes
públicos e às constatações a que chegaram vários autores evocados ao longo desse
capítulo, resta concluir a existência de várias situações vivenciadas pelo município,
expressas na constatação de que mesmo o substancial crescimento do fluxo de
turistas que se deslocam para Porto Seguro, gerando assim mais dividendos para a
cidade, não foi capaz de atenuar o profundo quadro de desigualdade
socioeconômica vigente. E que, embora programas governamentais, com destaque
para o Prodetur-NE, tenham aportado milhões de reais sobre a infra-estrutura da
cidade, há ainda um quadro de segregação espacial e social em Porto Seguro.
E resta ainda menos consolo para os porto-segurenses o fato de que uma
cidade detentora de um aeroporto internacional e próxima à BR-101, rota estratégica 72 Durante uma entrevista com uma guia de turismo, a mesma confirmou que a extensão da semana do Saco Cheio se deu nos últimos 4, 5 anos com a chegada da Forma Turismo, empresa de turismo de São Paulo especializada em viagens de formatura. Segundo a guia, essa empresa, especializada em viagens de formatura, é responsável pelo aumento do fluxo maior de turistas jovens entre o final de junho até dezembro.
91
para ligar o Sudeste ao Nordeste do país, não tenha conseguido diversificar a sua
economia, sendo dependente do turismo. A cidade de Porto Seguro, 500 anos após
a chegada de Pero Tourinho, ainda seria marcada pela pobreza, embora a
prosperidade seja, sempre, uma possibilidade bem próxima, mas dificilmente
alcançada.
Realizada esta análise sobre a história do município, em que pese o papel do
turismo após os anos de 1970, buscar-se-á no próximo capítulo lançar um pouco de
luz sobre a relação entre cultura e turismo em Porto Seguro, mas, desta vez, sob a
ótica dos próprios turistas. O acompanhamento do cotidiano dos mesmos, bem
como a forma pela qual estruturam sua visita, permitirá apreender que
representações e discursos, imagens e símbolos são privilegiados pelo trade
turístico daquela localidade.
92
3. NOTAS ETNOGRÁFICAS SOBRE O TURISMO EM PORTO SEGURO
Quem são esses sujeitos, produtores e consumidores do turismo? (MOESCH, 2002, p. 37)
Na primeira parte deste trabalho, foi realizado um percurso acerca da idéia de
baianidade ao longo do século XX. Vimos que os discursos e representações
relacionados a essa “identidade cultural baiana” sempre foram vinculados à imagem
turística de Salvador, visando o incremento do turismo. Ao segundo capítulo, coube
apresentar versões da história de Porto Seguro, buscando ainda pormenorizar como
deu-se a ascensão da atividade turística nessa cidade do Extremo Sul da Bahia.
Visando enriquecer as observações feitas ao longo de todo esse capítulo, optou-se
por trazer à tona discursos provenientes de atores sociais – pequenos comerciantes,
guias e moradores – que usualmente são relegados a uma posição secundária pela
administração pública.
Posto isso, passemos ao terceiro capítulo que visa apresentar uma descrição
etnográfica de um pacote de viagem a Porto Seguro, em que pese a atenção dada
aos discursos e representações, imagens e manifestações culturais que seriam
privilegiados, por parte do trade turístico municipal, não só para divulgar a cidade,
mas que, de alguma forma, seriam emblemáticas para a construção de uma
“autêntica cultura” vigente no segundo destino turístico do Estado da Bahia.
Importa ressaltar que a apreensão desses ícones culturais que seriam
privilegiados por atores sociais vinculados ao turismo de Porto Seguro, e que,
segundo Grunewald (2001, p. 48), seriam matrizes para a idéia de “baianidade
hegemônica”, se deu a partir de um estreito contato com os turistas, indivíduos para
os quais, de maneira óbvia, essas manifestações são destinadas. E a busca por
compreender o que pensam os turistas fez com que se optasse, no presente estudo,
pela adoção do viés antropológico, na medida em que a própria empreitada
antropológica pressupõe sua ligação a um modo de conhecimento baseado na
observação direta, mediante impregnação lenta e contínua de grupos sociais com os
quais mantemos uma relação pessoal (LAPLANTINE, 1993, p. 21).
Entretanto, antes de adentrarmos no cerne deste capítulo, faremos uma breve
análise sobre como o turista é entendido nos estudos do turismo, com destaque para
análises da Sociologia e Antropologia do Turismo, ou mesmo em obras que
dialoguem com esses campos. Isso é necessário, pois, como veremos adiante, o
93
turista, em muitos casos, costuma ser estigmatizado sob tipologias que, se têm o
mérito de reconhecer diferentes motivações e atitudes dos visitantes, acabam por
circunscrevê-los em modelos fechados.
A opção pela abordagem antropológica busca evitar ainda que a análise seja,
a priori, norteada por um desses modelos. A apresentação de um panorama sobre o
conceito de turista pretende tanto marcar distância da análise aqui empreendida em
relação a alguns modelos, quanto expor aquelas interpretações sobre o turista que
mais se aproximam de nossa proposta analítica.
3.1 O turista “de massa” e a idéia de manipulação
No fim do caminho o cansaço, do sobe e desce do ônibus, do entra e sai dos lugares desconhecidos que, parece, continuaram desconhecidos, o olhar e os passos medidos religiosamente em tempo, um tempo produtivo que aqui se impõe sem que disso as pessoas se dêem conta. Nesse sentido a viagem cronometrada torna-se travessia, toda ela é percurso, é preciso pôr-se em movimento para não perder nada. Flâneire passos lentos, olhares perdidos não cabem. Tudo é diferente e ao mesmo tempo sempre igual. [...] O tempo do relógio se impõe, aqui ele é até mais importante que no trabalho pois indica uma rigorosa repartição programada do tempo. O contemplar uma fachada ou uma criança brincando pode levar o turista a perder o ônibus. (CARLOS, 1999, p. 31-32).
O turismo de massa, segundo Urry (1996, p. 40), teve sua gênese nas
estações de água do interior da Inglaterra do século XVII. Estas estações, no século
XVIII, e mais ainda no século XIX, deixaram gradativamente de ser visitadas para
fins medicinais e passaram a servir como lugares para prática do lazer. Além da
própria mudança de mentalidade quanto ao litoral, na medida em que o mar passa a
ser visto também como um ambiente para desfrute e prazer (CORBIN, 1989), outros
fatores propiciaram a ascensão de um turismo das massas populares. Urry (1996)
elenca alguns aspectos que contribuíram ainda para a emergência do turismo de
massa: a racionalização do trabalho; a crescente importância das férias e da
recreação73; o aumento da renda da população industrial e a melhoria dos meios de
transporte, sendo esse último aspecto claramente identificado com a nova realidade
turística de Porto Seguro, visto que a inauguração da BR-101 e a ampliação do
73 Neste sentido, Castro (2005, p. 80) considera que o aumento da importância da noção de lazer, em oposição ao stress e as cobranças relativas ao trabalho, é um importante elemento que dá sustentação a concepção do turista.
94
aeroporto internacional da cidade, fato ocorrido em 1997, foram decisivos para o
aumento do fluxo turístico para o município.
Porto Seguro reúne todas as características, em especial aquelas
mencionadas por Urry (1996), para a efetivação plena do turismo de massa74. Além
disso, ao analisar a questão dessa modalidade de turismo no caso do Brasil, Cruz
(2000) relembra que a maior fatia da atividade turística se concentra na faixa
costeira do país, até porque as cidades do litoral brasileiro concentram os
equipamentos turísticos75 necessários para a efetivação do “chamado turismo de
massa” (p. 33-34).
O turismo, mais especialmente o turismo de massa, se encontra atualmente
diante de um desafio: como assegurar o caráter individual de cada visitante e, ao
mesmo tempo, garantir a efetividade de um aparato cada vez maior de “tecnologias
da viagem” (NERY, 1998, p. 185) que provocam, a cada dia, mais rigidez na
organização das visitas? Como assegurar a satisfação do visitante face ao conjunto
de procedimentos organizacionais que acabam por homogeneizar o trato em relação
aos próprios turistas76? Este desafio tem merecido destaque nos debates acerca da
necessidade de novas formas de conceber e estruturar a própria atividade turística,
preocupação também de Carlos (2000). Nesta direção, constata-se o surgimento de
novas teorias para conceber o fenômeno turístico. Conceitos como “pós-turismo”
(MOLINA apud PANOSSO NETTO, 2005, p. 80), com ênfase para o caráter
tecnicista e primazia das novas tecnologias da atividade turística, e “pós-turista (de
massa)” (URRY, 1996, p. 139) vêm à tona como carros-chefe de uma nova forma de
estruturar, ou mesmo compreender, o turismo. No que tange aos “pós-turistas”,
74 Ao contrapormos a tese de Cruz (2000, p. 25), quanto ao fato das cidades turísticas terem de, necessariamente, ofertar boa infra-estrutura para os visitantes, com os relatos de turistas contidos no trabalho de Costa (2005, p. 98-99), pode-se constatar o quanto a questão da infra-estrutura é importante para os turistas que se deslocam para Porto Seguro, na medida em que é um tópico recorrentemente citado pelos visitantes. 75 Segundo o Glossário de Turismo, localizado no portal do Ministério do Turismo, pode-se entender como equipamentos turísticos o “conjunto de edificações, de instalações e de serviços indispensáveis ao desenvolvimento da atividade turística. Compreendem [ainda] os meios de hospedagem, os serviços de alimentação, o entretenimento e diversão, o agenciamento, os transportes, a locação de veículos, os eventos, os guias, a informação e outros serviços turísticos”. Disponível no site: http://www.braziltour.com/site/br/dados_fatos/conteudo/lista_alfabeto.php?pagina=3&in_secao=387&busca=E. Acesso em: 10 fev. de 2008. 76 Durante os pacotes turísticos que participei, é fácil notar certa impessoalidade no trato, pois há uma ênfase no uso, por parte dos guias e motoristas, em códigos e números para identificar as pessoas. “Hóspede do quarto 5”; “o pessoal do quarto 30”. Talvez o fato dos guias e motoristas usarem expressões como a “Família CVC” e expressões análogas seja uma maneira de amenizar essa impessoalidade.
95
ainda segundo Urry (1996), haveria, nesse novo paradigma turístico77, uma maior
consciência por parte dos visitantes de seu papel durante a sua estada no destino
turístico.
Aliás, reflexões sobre o turismo de massa não faltam. É bem verdade que
essa modalidade de turismo, ao se basear, dentre outros fatores, “em técnicas de
grande volume de produção, para explorar economias de grande escala, em
marketing, hospedagem e transporte” (GOELDNER; RITCHIE; MCINTOSH, 2002, p.
204), além de não favorecer que o turista tenha um tempo de contato mais extenso
com o local visitado78, acaba por fomentar uma visão reduzida dos destinos
turísticos (FERRARA, 1999), além de incentivar o consumo (CARLOS, 1999, p. 25).
Mas, o que se propõe inicialmente é que o turismo de massa não seria só isso.
Cohen (2001, p. 231), ao término de sua reflexão acerca do “turismo
institucionalizado”, expressão cunhada pelo próprio autor para designar aqueles
tipos de turistas que são tratados de maneira rotineira pela “organização” turística79,
relembra a ironia no qual o turismo institucionalizado moderno se encontra imerso:
Quanto mais o fluxo do turismo de massas crescer, mais institucionalizado e padronizado o turismo será e, conseqüentemente, mais fortes serão as barreiras entre turista e a vida do país anfitrião. O que eram barreiras formais anteriores entre países diferentes se tornam barreiras informais dentro dos países (COHEN, 2003, p. 231). (grifos do autor).
A despeito da citação acima, que aponta para os limites da atividade turística
de massa, este trabalho busca reconhecer que há outras dimensões importantes no
turismo de cunho massivo que são muitas vezes relegadas pela academia. O próprio
Cohen (apud URRY, 1996, p. 24), asseguraria, em outro momento de sua análise
que essa modalidade de visita tem, ao menos, o mérito de propiciar que pessoas
conheçam outros lugares que, de outra forma, não visitariam. Algo que vai ao
encontro desta consideração é a contribuição de Moesch (2002) ao questionar o
paradigma que taxa o turismo de massa como um “movimento de alienação e
consumismo cultural”. Segundo a autora, essa linha de análise não é capaz de fazer
compreender a complexidade de um fenômeno responsável pelo deslocamento de
77 Para uma crítica a esse modelo de “pós-turismo”, ver Filho (2005). 78 Uma abordagem que vai ao encontro dessa concepção é a abordagem de Cruz (2000, p.22), pois a autora considera que a efemeridade do turista com o território que visita é ainda mais aguda na modalidade tida como turismo de hotelaria. 79 Por “organização turística”, o autor entende o complexo de agências de turismo, empresas de viagem, redes hoteleiras, dentre outras empresas que alimentam o setor turístico (COHEN, 2001, p. 230).
96
quase 700 milhões de turistas na contemporaneidade, sobretudo ao reduzi-los a
uma “massa alienada de consumidores” (p. 40).
É importante atentar que, à esteira de análises generalistas acerca do turismo
de massa, visões não menos abrangentes sobre o turista se constituíram. E já que
este capítulo se propõe a realizar uma descrição etnográfica do turismo em Porto
Seguro, nada faz mais sentido do que realizar uma breve reflexão sobre o turista,
buscando, nesta pesquisa, sair de um lugar-comum que aponta o turismo de massa
como uma atividade alienante, capaz de fomentar exclusivamente o consumo e que
tem como premissa a passividade dos turistas nela imersos.
A literatura sobre o turismo, em especial aquela relacionada às disciplinas
Sociologia, Psicologia e Antropologia do Turismo, é pródiga em forjar tipologias de
turistas. Moesch (2002) exemplifica essa tendência generalista e reducionista ao
assegurar que o sujeito do turismo tende a ser reduzido a um “homo economicus,
como participante ativo do fenômeno ou consumidor potencial a ser despertado por
uma publicidade eficiente” (p. 41).
Em primeiro lugar, não se pretende aqui realizar uma revisão bibliográfica do
conceito de turista, muito menos construir uma teoria do comportamento turístico,
algo que transcende aos objetivos desta pesquisa80. Muito menos é nosso desejo
realizar uma defesa em favor dos turistas, mormente aqueles que, a priori, se
encaixariam em uma “concepção” de turista de massa presente em nosso senso
comum. Nessa concepção, o turista é tido como um sujeito mal-educado,
excessivamente extrovertido, passivo e incapaz de exercer a crítica diante daquilo
que vê e vivencia. Este enfoque, que pode ser atribuído a uma classe média que
deseja ver-se diferenciada da população com menor poder aquisitivo, contém em si
uma visão negativa em relação ao “passeio popular” oriundo da classe trabalhadora,
identificado comumente com o turismo de massa, que, “ao apreciar a convivência, a
sociabilidade e o fazer parte de uma multidão, é encarado freqüentemente com
desprezo [...]” (URRY, 1996, p. 72).
Este posicionamento perante o turismo de massa não foi evocado aqui ao
acaso. Ao manejar estatísticas da Bahiatursa de 1997, Solha (1999, p. 84) assinala
que 88,9% dos turistas entrevistados em Porto Seguro têm o passeio como a
principal motivação para viajar. Além de estigmatizar essa prática turística e
80 Além disso, existem bons estudos a respeito dos diversos comportamentos do turista, como a obra de Ross (2002).
97
defender o turismo como “viagens de prazer”, tomadas como expressão elitista e
individualista da cultura ocidental moderna” (NERY, 1998, p. 184)81, a visão dos
passeios populares e do turismo de massa como algo inferior acaba por ser
reproduzida por parte dos formadores profissionais de opinião, incluindo aí até
mesmo membros de comissões oficiais relacionados ao turismo (URRY, 1996, p.
72)82.
Um exemplo digno de menção quanto ao empobrecimento conceitual do
turista pode ser apreendido em um recente trabalho sobre Porto Seguro, cujo foco é
a relação entre a cibercultura e o turismo no município. O autor, em dado momento
da pesquisa, assinala que:
Essa concepção [de cidade turística] implica no (sic) entrelaçamento dos aspectos que caracterizam a produção do senso do local, incluindo nessa perspectiva, a produção de espaços e ações que espetacularizam a cultura, propondo, muitas vezes, aos visitantes apenas uma falsa experimentação do espaço. Afinal, deve-se ressaltar que em um espetáculo, a cidade e turista tornam-se, respectivamente, atração e público passivos, entregues às manipulações, produzindo e desfrutando apenas o ilusório em um processo que se pode chamar de ‘alienação coletiva’ (COSTA, 2005, p. 119). (grifos meus)
O que nos parece problemático aqui é menos a conclusão do pesquisador e
mais uma dificuldade, a partir de generalizações dessa natureza, em apreender, por
exemplo, dados aspectos dos comportamentos dos turistas que poderão ser de
grande valia para a compreensão de que imagens os mesmos possuem de Porto
Seguro e, conseqüentemente, das manifestações culturais apresentadas pelo trade
turístico. A compreensão dos turistas como uma massa amorfa, homogênea,
propensa à alienação parece menos uma visão equivocada e mais uma
compreensão parcial, pois que constituída de “longe e de fora” (MAGNANI, 2002).
Enfim, ainda hoje se vislumbra, por meio de exemplos dessa natureza, a postura
“intelectualmente chique [...] de ridicularizar os turistas” (MACCANNELL, 1976, p. 9).
81 Por “viagens de prazer” pode-se entender aquele tipo de empreendimento em que o indivíduo, diferentemente da dimensão coletiva dos passeios populares, se desloca mediante um projeto de “desenvolvimento de si” (NERY, 1998, p. 123). Além de a viagem passar a exercer o papel de um deslocamento físico-moral do individuo na construção de sua própria pessoa, o deslocamento se dá, sobretudo, mediante uma projeção de uma expectativa referente ao destino turístico. 82 Neste sentido, Urry (1996, p. 33-34) relembra que à medida que houve o processo de democratização das viagens no Ocidente, começam a surgir também as distinções de status. Não ao acaso, os balneários britânicos, por exemplo, bem como outros lugares para o qual havia um fluxo maior de turistas foram alvo de ressalvas. Enfim “grandes diferenças de ‘tom social’ se estabeleceram em lugares que, de resto, eram semelhantes. Alguns desses lugares desenvolveram-se rapidamente como símbolos do turismo de massa, lugares de inferioridade que representavam tudo aquilo que os grupos sociais dominantes consideravam de mau gosto, comum e vulgar” (URRY, 1996, p. 34).
98
O estigma que se criou em relação ao turismo de massa foi, portanto, um
elemento adicional para que a presente pesquisa se debruçasse sobre o universo
dos “turistas de pacotes”. O objetivo de tal intento não é só a tentativa de apreender,
mediante uma imersão junto a essas pessoas, que representações as mesmas
possuem de Porto Seguro e as manifestações culturais destinadas aos visitantes,
mas, o que nos move também é justamente decifrar de “perto e dentro” (MAGNANI,
2002) quais são suas motivações, suas posturas e suas explicações diante daquele
novo universo, sobretudo de ordem cultural, que se descortina.
Retomando à questão do turismo de massa, Carlos (1999) considera que a
busca pelo lazer na contemporaneidade fez com que o homem se tornasse um ser
passivo, na medida em que a sociedade de consumo tudo transforma em
mercadoria, não sendo mais o lazer uma atividade constituinte do cotidiano. Assim, o
turista seria um espectador em busca de espetáculos e que, sobretudo, se deixaria
levar pelos rígidos programas das visitações que se dão por meio dos pacotes
turísticos. Os turistas, ainda de acordo com a autora, seriam destituídos de um
senso crítico capaz de se diferenciarem uns dos outros, já que é desconsiderada a
possibilidade desses visitantes apresentarem suas próprias leituras dos espetáculos,
isto é, tratar-se-ia, então, de uma “multidão amorfa” (CARLOS, 1999, p. 26).
A abordagem de Boorstin (apud NERY, 1998, p. 195) prima por uma visão do
turista de massa como um indivíduo incapaz de experimentar a “realidade”, fadado a
vivenciar “pseudo-eventos”. Para o autor, o turista poderia ser tido como um
emblema de uma “inautencidade” da vida contemporânea. Semelhante à abordagem
de Carlos, Boorstin entende ser o visitante um indivíduo passivo e que ficaria
circunscrito aos limites impostos aos grupos de turistas, o que acaba por lhe
distanciar de um contato mais intenso com os anfitriões.
Apesar das especificidades dos estudos acima delineados, tanto Carlos
quanto Boorstin retomam um debate caro à Antropologia do turismo: a questão da
autenticidade e as variações decorrentes dessa questão, como, por exemplo,
“inautencidade” e “autenticidade representada” (DREDGE, 1999 apud WAINBERG,
2002, p. 51).
A questão da autenticidade é particularmente cara a MacCannell (1976), na
medida em que o autor considera que o turista busca, em suas viagens, a
autenticidade, ainda que encenada, como uma forma de expressar uma
necessidade humana em relação ao sagrado. Suas conclusões em muito se
99
assemelham à visão defendida por Boorstin (apud NERY, 1998), ao colocar em
xeque a autencidade das experiências turísticas, o que, segundo Grunewald (2001),
parece ser um discurso, no mínimo, deslocado, pois todas as experiências turísticas
seriam autênticas, “não importando se um elemento cultural foi construído
exclusivamente para encenação” (p. 33-34). Destarte, concordamos com a tese de
que não há experiências mais ou menos autênticas, pois todas o são, não
importando se são vistas como espetáculos.
Uma terceira visão que comunga com a tese de que os turistas teriam a
passividade como uma característica inerente é defendida por Silveira (2006). A
autora, cujas conclusões são decorrentes de sua etnografia sobre a dinâmica e os
comportamentos dos turistas em resorts, considera que sua atitude passiva seria
fruto da disposição dos pacotes turísticos oferecidos no Brasil, os quais primam, em
sua maioria, por apresentar de forma programada e metonímica os atrativos
turísticos. Embora a autora reconheça as diferentes fases vividas pelos turistas,
mormente ao se basear no modelo binário de Graburn (1989), ela considera que o
turista seria oposto ao viajante, este, sim, detentor de uma motivação calcada no
espírito de aventura, ou seja, de conhecer efetivamente a cultura dos “outros”.
É importante ressaltar que visões mais céticas quanto à valorização da
dimensão individual de cada turista, além do baixo reconhecimento de sua pró-
atividade, surgem a reboque de análises bastante críticas83 em relação à própria
estruturação da atividade turística de massa tal como existe hoje. Urry (2003) é um
dos maiores críticos. Para o autor, essa modalidade de turismo busca tratar os
indivíduos da mesma forma, não concebendo assim diferenciações entre eles. Este
tratamento é desencadeado pelos prestadores de serviço em questão, ou seja, os
“mediadores turísticos” (1996, p. 123), alvo de nossa análise ainda neste capítulo.
Na contramão de análises dessa natureza, tidas aqui como céticas quanto à
função do turismo em propiciar um efetivo conhecimento do lugar, o que favoreceria
uma apreensão menos holística do destino e da cultura daqueles que lá habitam,
existem trabalhos que apresentam outra visão do turista de massa. A concepção
defendida por esses trabalhos, embora critiquem certas práticas dessa forma de se
estruturar o turismo, é mais otimista quanto aos benefícios acarretados.
83 Além das obras já mencionadas até aqui, o estudo de Cruz (2000) também se insere nessa linha de abordagem quanto aos benefícios questionáveis do turismo de massa.
100
A abordagem de Smith (1989) se diferencia das acima mencionadas por não
enquadrar os turistas em um paradigma único, concepção também adotada por
Cohen84. Antes, a autora elabora sete tipologias de turistas85 buscando relacionar os
tipos de visitante ao volume de turistas e ao nível de adaptação dos mesmos ao
destino. O quê nos importa aqui é o turista de massa, pois este é comumente
entendido como aquele que se desloca para Porto Seguro. De acordo com Smith
(1989, p. 12-13), esse perfil de turista tem como características o fluxo constante e a
busca de amenidades, isto é, alguns suportes capazes de lhe propiciar maior
conforto ao longo de sua viagem, tal como em sua origem, o quê não seria algo
negativo em si mesmo.
Wainberg (2002), ao argumentar que a essência do turismo é a capacidade
de atração que a alteridade possui, forja quatro tipologias de turistas, a saber:
turistas com alta conexão étnica, turistas passivos, turistas consumidores e turistas
com baixo interesse étnico. O quê nos chama a atenção nessa linha de abordagem
é que mesmo reconhecendo que dadas modalidades de turistas têm um baixo
interesse pela diferença, ainda assim elas não seriam destituídas de algum tipo de
relação com o outro, esteja essa relação circunscrita ao consumo – turistas
consumidores –, seja ela sintetizada apenas nas manifestações culturais dos nativos
– turistas passivos. O próprio autor lembra que o turismo tem conseguido
estabelecer diálogos (interculturais) em que, em muitas ocasiões, a própria
diplomacia fracassa (p. 51).
Castro (2002) refuta a existência de experiências turísticas melhores do que
outras. Essa concepção seria fruto, segundo o autor, de um pensamento de fundo
elitizado que atribui ao turismo de massa uma carga depreciativa, como sendo uma
prática vulgar, ou mesmo tido como algo menor. Ao centrar a sua atenção na figura
do visitante, Castro (2002) constata “que o turista viaja por um plano da realidade
84 Cohen (2001) considera que há dois elementos essenciais componentes da atividade turística: a novidade e a familiaridade. Com base nesses dois critérios, e a partir de suas diferentes combinações, o autor estabelece uma tipologia baseada em quatro papéis turísticos: de um lado, na forma de turismo institucionalizado, figuram o turismo de massa individual e o turista de massa organizado; de outro lado, na prática não-institucionalizada de turismo aparecem o explorador e o andarilho. Ainda de acordo com o sociólogo, os turistas de massa são indivíduos vinculados aos mediadores turísticos, ao passo que o andarilho e o explorador seriam pessoas mais abertas, independentes do “establishment turístico” (p. 230). 85 Segundo o estudo empreendido pela autora, os tipos de turistas podem ser caracterizados como: explorador, elite, excêntrico, usual, massa incipiente, massa, charter.
101
que não é falso, inautêntico ou mentiroso; apenas diferente, com um estilo cognitivo
especial” (p. 86).
O modelo constituído por Graburn (1989, p. 25) advoga que o turista se vê
inserido em diferentes estágios. De cotidiano/usual/ordinário ao fora do cotidiano/
incomum/extraordinário. Este paradigma, de certo modo, não só será retomado
adiante por Nery (1998) e Urry (2003), mas será percebido durante boa parte da
construção etnográfica propriamente dita.
Na análise de Nery (1998), o turista seria aquele indivíduo que, ao se inserir
em uma viagem turística, precisa sentir que não está em seu mundo ordinário, mas
imerso em uma experiência sagrada. Assim, as viagens turísticas se assemelhariam
com
Peregrinações seculares nas quais as pessoas se lançam para fora de seus mundos habituais, quais seja, o da vida cotidiana, para uma experiência de liminariedade na qual as convenções e códigos da experiência social normal são alterados, invertidos ou neutralizados (p. 214-215).
Ora, ao adotarmos aqui a concepção de turista que concebe o visitante como
alguém que busca, por meio de um deslocamento espacial, uma ruptura entre o
ordinário e o extraordinário, nós entendemos não fazer sentido mensurar, sobretudo
com fins depreciativos, as práticas de dado turista porque o mesmo se “encaixaria”
em um “perfil” de turista de massa. Consideramos, portanto, que os turistas que se
destinam a Porto Seguro não estão inseridos em um engodo, ou mesmo em uma
manipulação, na medida em que aquilo que os motiva é justamente romper com a
sua rotina, isto é, com o seu lugar usual de residência, de trabalho.
Obviamente que nossa compreensão do turista não busca isolar o individuo
dos aparatos comunicacionais, das práticas econômicas ou mesmo de ideologias
vigentes no tecido social, mas reconhecer no turista “o epicentro do fenômeno
turístico” (MOESCH, 2002, p. 13) e não meramente um sujeito que viria a reboque
das práticas econômicas. O turista não estaria, então, à mercê de ideologias,
manipulações de sonhos e desejos relativos ao turismo (CARLOS, 1999, p. 33), nem
mesmo como um “prisioneiro de construções simbólicas falsas, não autênticas”
(CASTRO, 2002, p. 85), mas como um desencadeador, isto é, a razão de ser de
toda a atividade, visto que a decisão de viajar do turista é que “desencadeia o
conjunto completo de mecanismos de prestação de serviços” (BURNS, 2002, p. 58).
102
A abordagem adotada nesta pesquisa entende os turistas como a alma da
atividade turística. Pretende-se ressaltar aqui que a expansão do turismo depende
do encantamento cognitivo e emocional do viajante, isto é, de seus desejos e
pulsões (WAINBERG, 2002, p. 52-53). Até porque, como já dito anteriormente neste
trabalho, não se deseja privilegiar a dimensão econômica do fenômeno, esfera para
a qual a definição de turista calcada sob parâmetros quantitativos – tempo e espaço
–, tal qual a adotada pela Embratur se encaixa bem86.
3.2 Os mediadores da viagem
O turismo de massa contemporâneo não pode ser dissociado da atuação dos
“mediadores turísticos” (CHAMBERS, 1997; NERY, 1998), ou da “organização
turística” (COHEN, 2001). Aliás, a própria condição de turista contemporâneo coloca
em evidência a existência desses intermediários, em especial para a formulação de
demandas por parte dos turistas (NERY, 1998, p. 184-185). Esta visão é duplamente
verdadeira ao se ter em conta a atuação das agências de viagem e,
conseqüentemente, dos vendedores durante a organização das viagens que realizei
para Porto Seguro.
Entendemos aqui como mediadores da viagem todos aqueles indivíduos ou
mesmo instituições que compõem o setor do Turismo e que são responsáveis por
intermediar a relação entre o sujeito – turista – e o destino, em especial os seus
atrativos. Assim, guias e agências de viagens, recepcionistas e redes hoteleiras,
revistas de turismo e jornalistas, guias especializados e suplementos literários,
mapas e agentes de viagem seriam alguns dos exemplos de mediadores existentes
entre o viajante contemporâneo e aquilo que ele almeja conhecer.
Segundo Panosso Netto (2005, p. 29), a viagem turística começa bem antes
do embarque. E o papel das agências de viagem é importante, uma vez que “a
comunicação realizada pelas companhias de turismo carrega microvalores éticos,
religiosos, culturais, sexuais [e] produtivos” (MOESCH, 2002, p. 39).
86 De acordo com a EMBRATUR, que se faz valer do conceito de turista utilizado pela Organização Mundial do Turismo – OMT –, turista seria aquele indivíduo que permanece, no mínimo, 24 horas em outra localidade. Esta definição, como defendemos, é bastante útil para fins estatísticos do turismo (ROSS, 2002), isto é, a mensuração de fluxos turísticos, algo que requer certa padronização dentre os diferentes órgãos responsáveis por quantificar o turismo nos diferentes países do mundo.
103
As experiências que tive nas diferentes agências de viagem que visitei foram
interessantes em diversos aspectos. O primeiro deles é que as agências antecipam
ao turista uma gama de símbolos e discursos que são privilegiados pelo trade
turístico porto-segurense e que, posteriormente, pude apreender in loco.
Durante a ida até as agências para acertar os detalhes referentes às compras
dos pacotes turísticos para Porto Seguro, algo que despertava minha atenção, logo
de início, era a grande visibilidade dada à cidade. As fachadas das agências
apresentam inúmeras fotos do destino, além de expor “ofertas sensacionais”
relativas a Porto Seguro, apresentando com grande destaque as facilidades para
compra de pacotes turísticos. Nessa direção, Solha (1999, p. 92) aponta que os
turistas buscariam nas agências não apenas comodidade na compra de passagens
e escolha de hotéis, mas ainda preços baixos, além, é claro, do desejo de se ter a
presença de um guia para um melhor conhecimento do lugar que se visita87. Essas
são algumas das demandas dos turistas de massa, tal como nos relata Smith (1989,
p. 13-14).
Essa intensa exposição de Porto Seguro nas agências de viagem pode ser
mais bem compreendida ao se ter em mente duas declarações obtidas ao longo do
trabalho de campo. A primeira observação é oriunda de uma turista paulista; a
segunda, de uma guia da Decálogo Turismo, empresa mineira de turismo rodoviário.
Durante uma visita à Cidade Alta, uma turista de São Paulo disse-me que o
quê mais a motivara a conhecer Porto Seguro era a agitação e o preço, pois, “é
inegável que o preço ajudou porque era o pacote mais barato”. O destino Porto
Seguro é o mais barato dentre todos aqueles comercializados para o Nordeste nos
fôlderes da CVC. Como vimos no segundo capítulo, a existência de uma maciça
oferta de leitos – cerca de 40 mil vagas –, além de boa infra-estrutura e grande
dependência do turismo são elementos capazes de explicar a contundente redução
dos preços de uma viagem para o segundo destino turístico da Bahia.
A questão da dependência com relação ao destino pode também ser
visualizada sob a ótica das agências de viagem. Uma das guias da Decálogo
afirmou que o único lugar para o qual a empresa tem saídas garantidas
semanalmente era mesmo Porto Seguro. Segundo ela, saídas para os demais
87 Uma turista explicou-me que prefere conhecer os lugares com guia para “para não se perder nada”. Um outro turista defendeu que “a primeira vez que se vai a alguma cidade é melhor mesmo ir de pacote. É meio que perder tempo ir por conta própria na primeira vez. Na segunda [vez] tudo bem.”
104
destinos da operadora – Cabo Frio (RJ), Beto Carrero (SC) e Caldas Novas (GO) –
muitas vezes eram viabilizadas porque as empresas de turismo rodoviário de Belo
Horizonte – São José Turismo, Decálogo, Rafatur e Schindler – agrupavam todos os
turistas interessados nesses destinos em um só ônibus, normalmente o da empresa
que já tinha vendido a maior quantidade de bilhetes.
A forma pela qual Porto Seguro é apresentada muito se assemelha à forma
de um paraíso permeado de belezas naturais – reforçadas por belas fotos –, cujo
povo se compõe de gente alegre e receptiva. O excerto seguinte extraído de um
fôlder da CVC é emblemático para ilustrar a imagem turística88 de Porto Seguro
divulgada por essa agência:
São 90 km de belíssimas praias acompanhadas por recifes de corais que formam piscinas naturais e possibilitam mergulhos incríveis. Além da alta temperatura constante, Porto Seguro conta com o calor do povo baiano e de todos aqueles que se apaixonam pela cidade, e fazem dela um lugar tão especial. (CVC. Férias de Julho em Porto Seguro. [s.d.])
É interessante notar ainda que as diferentes visões que os agentes de viagem
apresentaram-me são em muito semelhantes a imagens de Porto Seguro veiculadas
em outros suportes, e que também assumem a função de “mediadores de viagem”.
Ao analisar as imagens de Porto Seguro veiculadas em periódicos de turismo, Solha
(1999) ressalta que essas representações solidificam a imagem da cidade como um
“local paradisíaco” (p. 105). Além disso, também para Costa, a imagem privilegiada
da cidade seria a de um “cenário mágico” detentor de “um povo bom, festeiro e
receptivo” (2005, p. 79).
A ênfase dada pelos agentes da Decálogo Turismo e da São José Turismo –
empresa em que fui realizar um orçamento para o pacote turístico de outubro – às
“baladas” de Porto Seguro, em uma clara menção ao caráter festivo da cidade,
associadas as conclusões de Solha (1999) e Costa (2005), contribuem para ratificar
a tese de que há certas imagens privilegiadas pelo trade turístico em detrimento de
outras. O discurso adotado pelos agentes turísticos é recorrente até mesmo em
documentos institucionais da Prefeitura de Porto Seguro, passando por sites
88 Solha (1999, p.10) entende imagem “como fenômeno perceptivo formado pelas interpretações racionais e emocionais dos consumidores e tem ambos os componentes cognitivos (crenças) e afetivos (sentimentos)”. No caso do turismo, a autora se faz valer do termo imagem turística, que seria, segundo ela, “o resultado dos julgamentos e valores que os indivíduos atribuem aos seus elementos.” (p. 11). Além disso, a imagem turística de um lugar, embora resulte de experiências pessoais, estaria intimamente associada às informações disponíveis sobre o lugar a ser visitado.
105
especializados em turismo e alcançando, finalmente, os guias de viagem. Segundo
um documento da prefeitura de Porto Seguro:
A cada noite uma cabana de praia – diferente de tudo o que já se viu por aí – ou uma casa temática oferece uma festa diferente. De domingo a domingo o visitante pode curtir fogueiras à beira mar, mesas de frutas, vários ambientes e shows musicais que vão desde axé, passando por lambada e forró e até uma providencial MPB (PORTO SEGURO. Nasci aqui, meu nome é Brasil. Porto Seguro: um grande destino desde 1500, [s.d.]).
E ainda:
Em Porto Seguro, há uma regra geral: não fique parado. O agito e os ambientes festivos – com muita axé music – tomam a cidade até durante o dia, nas praias. (COSTA DO DESCOBRIMENTO: GUIA DE VIAGENS PANROTAS, [s.d.].)
Um novo dado que corrobora com essa visão festiva – e parcial – de Porto
Seguro propagada por agentes de viagem pode ser evocado a partir da obra de
Grunewald (2001, p. 39) que, durante o seu trabalho de campo em Santa Cruz de
Cabrália e Porto Seguro, mencionou um encontro em que:
Uma operadora de turismo de Santos (SP) que estava conhecendo a região para a qual vendia pacotes contou-me que ‘o que é vendido é passeio de escuna e barracas de praia para tomar cerveja ao sol e dançar músicas do verão de dia e de noite [...].
O papel desempenhado pelo agente de viagem, como um mediador turístico,
chama a atenção por fornecer, antes mesmo do início “oficial” da viagem,
informações e leituras específicas sobre Porto Seguro. Essas leituras fornecidas
pelos agentes de viagem têm a “autoridade” proveniente do conhecimento in loco da
cidade. Algo próximo da conclusão a que chegou Nery (1998) ao afirmar que:
Os agentes, em regra, obtêm reconhecimento público na medida em que se mostram competentes como "especialistas" que no mínimo "viajaram muito". [...] ‘Ter viajado’ a muitos lugares pressupõe uma visão mais acurada e um conhecimento e compreensão mais amplos dos lugares visitados assim como das pessoas que os habitam (p. 209).
O quê se notou, ao longo da experiência etnográfica realizada neste trabalho,
é que antes mesmo da chegada a Porto Seguro, o turista se depara com uma gama
de aparatos, principalmente de ordens imagética e discursiva. Imagens estas
permeadas por um “caráter mágico” (FLÜSSER apud SIQUEIRA, 2006, p. 7) que
provocam encantamento por aquele contexto apresentado. Esses suportes
favorecem assim, de antemão, não só o direcionamento de seu olhar acerca do que
106
parcialmente encontrará no destino, mas também servem para “demarcar as
fronteiras de significação e valor dos lugares ‘turísticos’, bem como regular os
códigos que orientam a ‘experiência’ turística” (NERY, 1998, p. 213).
Outro ponto digno de menção durante a relação que mantive com os agentes
de viagem e, posteriormente experienciado em campo, foi o fato de que eu viajasse
só. Na agência da CVC, houve uma relativa mobilização da atendente para sanar
uma possível “dificuldade” referente à minha condição, aconselhando-me
insistentemente que eu inserisse no pacote alguém da família, ou mesmo um amigo.
Este fato parece apontar que os turistas que se deslocam para Porto Seguro vão
normalmente em grupos, ou mesmo em casais, o quê foi confirmado por ambas as
atendentes quando indagadas posteriormente, isto é, após eu ter fechado a compra
dos pacotes. E este fato parece se concretizar quando, já em campo, durante um
café da manhã com uma turista de Juiz de Fora, a mesma afirmou que “não entende
como eu [o pesquisador] vim para cá [Porto Seguro] sozinho” e que ela “não
conseguiria” fazer isso. Há sempre muito poucos turistas que viajam sozinhos. Foi
visível durante todo o tempo o esforço dos diferentes grupos ao buscarem “envolver”
esses turistas “solitários”.
A experiência nas agências de viagem mostra que os agentes têm um papel
fundamental nas decisões dos próprios turistas. Desde as sugestões de hotéis até
lugares “que ninguém conhece para ir”, os atendentes são responsáveis por grande
parte da organização prévia da viagem, sempre embasados em suas experiências, o
que fazem questão de afirmar, daquilo que indicam no destino turístico.
Algo que ilustra essa tendência do agente de viagem de ser um ponto de
confluência das expectativas e do planejamento das viagens se deu durante o
primeiro pacote turístico que realizei, via CVC. Uma turista de Belo Horizonte com
quem tive grande contato, ao afirmar que não estava “gostando nem do
atendimento, nem do guia”, ressaltou que assim que retornasse para Minas Gerais,
iria telefonar para a agente de viagem que a atendeu para reclamar dos serviços e,
principalmente, do guia.
Concluindo, a análise acerca da postura de ambas as agentes de viagem, na
medida em que reafirmavam conhecer muito bem Porto Seguro, aponta para o fato
das mesmas assumirem para si um papel que as legitima a tecer uma “autêntica”
107
imagem da cidade89. Há aí um reforço das conclusões de Nery (1998) ao considerar,
em sua análise sobre os mediadores turísticos, que caberia a esses intermediários o
trabalho em demarcar as zonas de liminaridade entre a experiência ordinária e a
experiência extraordinária a ser vivenciada em um território “sagrado” (p. 212): o
“agente de viagem constitui-se desse modo na instância mediadora entre a rotina e
o acontecimento, entre o ficar em casa e o sair de casa” (p. 215).
3.3 Viagens ao campo
A partir deste ponto, adentraremos ao relato etnográfico de minhas viagens a
Porto Seguro. O objetivo da primeira viagem ao longo do mês de fevereiro, tal como
já exposto na introdução deste trabalho, visava atender aos seguintes objetivos: i)
conhecer a cidade; ii) apreender como se dá a dinâmica turística do município; iii)
buscar identificar que manifestações culturais são privilegiadas pelo trade turístico
de Porto Seguro, bem como aquelas que não seriam marginalizadas por ele.
3.3.1 Primeiras impressões
Ao longo de 2006, a impressão que possuía de Porto Seguro era de que a
cidade não sintetizava somente meu objeto de pesquisa. O município serviu, durante
a realização de meus créditos na Universidade Estadual da Bahia (UESC), em
Ilhéus, Bahia, como uma base logística entre meus deslocamentos de Belo
Horizonte para o Sul da Bahia. Naquele momento, pelo menos em termos práticos,
não há exagero em afirmar que Porto Seguro se resumia ao aeroporto para mim. De
lá, ia de ônibus para Ilhéus, pois era muito mais caro ir de Belo Horizonte para
Ilhéus.
Somente em 2007, deu-se a minha entrada no campo e não há como
desconsiderar que a postura adotada por mim nos momentos que antecederam à
viagem em muito se pareciam com as atitudes de um turista usual, como advoga
Ross (2002) ao enfatizar que é de praxe o fato de os visitantes buscarem
89 Durante o segundo pacote turístico em que estive inserido, tive a companhia, na grande maioria do tempo, de uma jovem agente de viagem de Itabira (cidade distante 95 km de Belo Horizonte) que se deslocou para Porto Seguro justamente para conhecer melhor a cidade e os hotéis para fazer assim melhores indicações a seus clientes.
108
previamente informações sobre a destinação turística que irão visitar (p. 24). Realizei
não só inúmeras pesquisas em sites que continham informações sobre a cidade,
mas, além disso, mantive várias conversas com amigos e familiares que já estiveram
em Porto Seguro. Tudo isso para minimizar o desconhecimento do meu lócus de
estudo, que, se possuía vários serviços de uma grande cidade – ampla oferta de
leitos, aeroporto, bom serviço de transporte público etc. –, favorecendo assim a
minha adaptação, em que aquela realidade se apresentava a mim, pelo menos
naquele primeiro momento, como uma espécie de “caos organizado”, em que eu
imaginava orlas de turistas cruzando a cidade intermitentemente em dezenas de
ônibus leitos.
Além disso, estava impregnado por várias visões de Porto Seguro que pouco
serviam para produzir uma percepção mais ou menos sistematizada acerca da
cidade. Desde a imagem desta cidade como “uma bagunça; um exemplo da
insustentabilidade turística”, defendida por um docente do mestrado; ou o município
entendido como “um paraíso com um mar lindo”, paisagem apresentada por uma tia
que, aliás, foi a primeira imagem que tive da cidade, ainda durante a minha
adolescência; ou somente um “lugar lindo”, imagem defendida por minha mãe. Em
suma, várias representações. E, embora tenha dado algum crédito a todos esses
quadros acima constituídos, não obstante eles me pareciam deslocados até então.
Eis que o avião pousa em Porto Seguro no dia 06 de fevereiro de 2007. Logo
que desembarquei da aeronave, fui recebido por uma baiana vestida a caráter e que
entregava um guia com os principais atrativos turísticos de Porto Seguro e região.
Logo de início, me vi tentado a imaginar que, de fato, haveria em Porto Seguro um
movimento de aproximar a cidade de uma concepção de “Bahia arquetípica” com
suas baianas, festas, a malemolência e a descontração. Bastaram poucos dias, no
entanto, para constatar outra idéia da cidade de Porto Seguro.
Dada a dificuldade para obter um lugar para ficar em função da lotação da
cidade, rumei o mais rápido possível para a única pousada que consegui reservar
um leito para dois dias. Parti, então, para o centro da cidade, no começo da Avenida
dos Navegantes e, ao longo do breve trecho entre o aeroporto e a pousada, deparei-
me com uma cidade muito diferente da que havia idealizado.
Após os dois dias de permanência na pousada localizada no centro da cidade
(ver anexo A), me mudei para uma zona intermediária que se encontra entre a
periferia e o centro. Durante todo o restante do mês de fevereiro, por indicação de
109
um morador de Porto Seguro, fiquei em um quarto no bairro do Areião (ver anexo A),
região de passagem entre o aeroporto e o centro da cidade e a região beira-mar.
Trata-se de uma área destituída de atrativos turísticos e permeada por grande
violência, segundo os moradores.
De início, chamou-me a atenção em Porto Seguro a grande concentração de
equipamentos urbanos, tais como shoppings, galerias e lojas de grifes
nacionalmente conhecidas. Esses empreendimentos se concentram principalmente
na Avenida do Descobrimento, área de grande fluxo de porto-segurenses e turistas e
uma das principais avenidas da cidade. Dentre todos os tipos de estabelecimento,
os de restaurantes e lanchonetes pareceram-me ser os mais numerosos. Há
também uma ampla variedade de bancos, casas de câmbio e lan-houses. Isso ajuda
a construir a imagem da cidade como possuidora de uma boa infra-estrutura
turística.
3.3.2 O mês de fevereiro, o carnaval e as descobertas
Uma primeira preocupação que me ocupou durante o mês de fevereiro foi
identificar a existência de manifestações culturais outras além daquelas
“canonizadas” pelos mediadores turísticos: o carnaval, o axé music e as festas,
elementos mais acionados na propagação de uma imagem turística de Porto Seguro
próxima da “Bahia arquetípica”, que, para setores do trade turístico, se resumiria em
festas, sensualidade, agito e descanso. Algo que me ajudou nesse sentido e que
adotei posteriormente como uma boa ferramenta não só para tomar conhecimento
do que acontecia na cidade, mas para ouvir outros atores sociais, foi a compra de
três jornais da região90 – Tribuna da Costa, Topa Tudo e Jornal do Sol –, de
periodicidade semanal. E foi a aquisição de um desses periódicos que me conduziu
à primeira possibilidade de captar algo capaz de corroborar uma de nossas
hipóteses: de que há manifestações culturais em Porto Seguro que, por não serem
agenciadas pelo trade turístico, também não são consideradas “atrativos turísticos”.
Referimo-nos à existência de blocos tradicionais de carnaval que desfilam pela
cidade.
90 Embora o carnaval de Porto Seguro seja o segundo maior carnaval do Estado, raras foram as matérias veiculadas em jornais soteropolitanos abordando a festa porto-segurense, exceção feita às reportagens publicadas ao longo dos dez dias do Carnaporto, em especial no jornal A Tarde.
110
O carnaval do município é composto por três diferentes eventos: a) o carnaval
oficial da cidade, o Carnaporto; b) o carnaval indoor realizado no Axé Moi; iii) o
carnaval dos blocos tradicionais. A descrição do carnaval de Porto Seguro será feita
a partir de cada um deles, compartimentando a seção em três momentos, embora
esses guardem relações entre si.
O Carnaporto
O carnaval de Porto Seguro, nos moldes que conhecemos hoje, teve início
em 1997, momento em que a festa passou a ser nomeada de “Carnaporto”, alusão
ao surgimento de toda uma estrutura oficial relativa ao carnaval empreendia pelo
Grupo Hills, que, juntamente com a prefeitura, daria maior notoriedade à festa ao
transformar o evento no segundo maior carnaval da Bahia.
Podemos apontar que o objetivo dessa remodelação do carnaval de Porto
Seguro, sobretudo ao aumentar o período de realização da festa para dez dias, não
foi simplesmente criar mais um produto turístico, mas promover uma atração com
claro diferencial em relação ao carnaval de Salvador91. Sobretudo os comerciantes,
de forma recorrente, faziam menção ao fato de o “pessoal de Salvador descer” para
Porto Seguro, momento aguardado por muitos empreendedores com os quais
conversei e que parecem ter estreita ligação com a possibilidade de obtenção de
maiores dividendos econômicos92.
O Carnaporto ocorre ao longo de praticamente toda a extensão da Passarela
do Álcool e o percurso realizado pelos trios elétricos é de aproximadamente dois
quilômetros. Embora seja um evento aberto, a existência de blocos privados,
responsáveis pela vinda de grandes atrações da música nacional, incentiva o
surgimento de “zonas privadas” ao longo de uma área pública, demarcadas por
cordões de isolamento sustentados por “cordeiros”. Além desses “demarcadores” de
espaço e, no fundo, de posições sociais bem definidas, há a existência de
91 Uma matéria do jornal Tribuna da Costa, do dia 18 de fevereiro de 2007, ilustra a expectativa quanto ao desempenho do Carnaporto, ainda que em sua versão Indoor, no contexto turístico baiano. Segundo o jornal, “o Carnaporto 2007 Indoor já está sendo considerado a grande alternativa na Bahia para quem não vai a Salvador”. 92 As últimas estatísticas da Secretaria da Cultura e do Turismo da Bahia revelam que o carnaval de 2006 em Porto Seguro movimentou cifras da ordem de US$ 45.672.354 com um fluxo total de 245.173 de turistas, representando cerca de 25% do universo total de visitantes ingressos em todo o estado durante toda a festa. Estes dados se encontram disponíveis em: <http://www.sct.ba.gov.br/estatisticas/tabelas.asp# >. Acesso em: 10 de junho de 2006.
111
camarotes93, sendo estes últimos montados diante dos restaurantes e pizzarias,
região esta muito freqüentada por estrangeiros.
Embora alguns jornais regionais tenham noticiado que a programação oficial
do Carnaporto 2007 tivesse início no dia 17/02, sábado, e terminado no dia 23/02,
sexta-feira, ressalta-se que já no dia 15/02 começaram as festividades
carnavalescas de Porto Seguro por meio de apresentações de bandas regionais. E
mesmo com a cidade praticamente vazia no dia 24/02, sábado, ainda havia alguns
foliões dispostos a aproveitar a última apresentação do Carnaporto.
O carnaval prolongado de Porto Seguro é, na verdade, somente mais um
elemento, ainda que privilegiado pelo trade turístico, dada a sua importância, dentre
as atividades relativas ao carnaval do município. O evento, cujo início se dava
diariamente às 22 horas, vinha a reboque de uma gama de outras apresentações
destinadas aos turistas. Em 2007, além do Carnaporto, a Prefeitura de Porto Seguro
ofereceu aos visitantes, entre os dias 17 e 20 de fevereiro, shows durante toda a
tarde com trios elétricos e bandas regionais na Praia de Mundaí, zona norte da
cidade. Apresentações de bandas regionais ocorreram também em palcos montados
pela própria prefeitura nos distritos de Trancoso e Arraial D’Ajuda entre os dias 16/02
e 20/02.
Uma preocupação muito evidente, tanto por parte dos organizadores do
evento, quanto por parte dos empresários e foliões, é a questão da segurança.
Tanto é que a Polícia Militar da Bahia deslocou parte do efetivo de Ilhéus, Itabuna e
Jequié para Porto Seguro, buscando, assim, minimizar os impactos resultantes da
violência. Este aumento do efetivo foi claramente percebido durante a folia, em
especial durante a noite, quando um grande esquema de policiamento foi montado
na Passarela do Álcool e regiões adjacentes.
A seguir apresentamos, de maneira mais detalhada, a programação do
Carnaporto:
93 Enquanto a participação do povo é estimulada, surgem, concomitantemente, elementos capazes de diferenciar as pessoas. Abadás, camarotes e áreas vip são algumas instâncias do Carnaporto passíveis de serem elencadas para ilustrar essa tendência de “camarotização” do evento.
112
FIGURA 3 – Programação detalhada do Carnaporto 2007. Fonte: Dados da pesquisa de campo, 2007.
A dinâmica do Carnaporto foi praticamente uniforme durante todos os dias em
que participei da festa. Constatei a alternância de atrações de destaque nacional
com bandas reconhecidamente de menor expressão. Os principais ritmos musicais
enfocados pelas diferentes atrações foram o axé music, o pagode e o samba-
reggae, cujo principal representante, em termos musicais e também na festa, é o
grupo afro-brasileiro Olodum. Como já dito aqui, uma parte significativa das atrações
foi contratada pelos diversos blocos existentes na cidade: o bloco Balacobaco
contratou, por exemplo, a banda Patchanka e o bloco Açai Doidão trouxe Gil e a
Banda Beijo, além do grupo Parangolé.
É interessante destacar que os abadás dos blocos são vendidos
antecipadamente e, em muitos casos, no próprio dia, por vendedores credenciados
que abordam os turistas em pontos de grande movimento, como, por exemplo, a
Avenida dos Navegantes e a Avenida 2 de Julho. O preço dos mesmos varia de
acordo com a qualidade da atração e também a partir de um critério muito peculiar
DIA 17/02 – sábado
22:00 às 00:30 – Unskaray 23:00 às 01:30 – Olodum 00:00 às 02:30 – Batukerê Dia 18/02 – domingo 22:00 às 00:30 – Lordão 23:00 às 01:30 – Pimenta Nativa 00:00 às 02:30 – Kuarto de Empregada Dia 19/02 - segunda-feira
22:00 às 00:30 – Kris Miraih 23:00 às 01:30 – Patchanka 00:00 às 02:30 – Luiz Caldas Dia 20/02 – terça-feira 22:00 às 00:30 – Nata do Tchan 23:00 às 01:30 – Gilmelândia 00:00 às 02:30 – Uns Kamaradas
Dia 21/02 – quarta-feira
22:00 às 00:30 – Netinho 23:00 às 01:30 – Parangolé 00:00 às 02:30 – Motumbá Dia 22/02 – quinta-feira 22:00 às 00:30 – Motumbá 23:00 às 01:30 – Xinelada 00:00 às 02:30 – Guig Ghetto Dia 23/02 – sexta-feira 22:00 às 00:30 – Terra Samba 23:00 às 01:30 – Latitude 10 00:00 às 02:30 – Motumbá
113
da dinâmica turística de Porto Seguro: a diferenciação entre nativos e turistas94,
explicitada em matéria do Jornal do Sol95 ao relatar a existência de venda
antecipada de abadás com preço especial para os “nativos” – expressão utilizada
pelos próprios porto-segurenses – durante os primeiros dias de fevereiro.
Apesar de a média diária de foliões na Passarela do Álcool ser de aproximadamente
60 mil pessoas, muitos comerciantes consideraram que o carnaval de 2007 estava
mais vazio do que em anos anteriores, possivelmente em função da grande
descentralização das opções para o Carnaval. Além de estruturas montadas em
Trancoso e Arraial D’Ajuda, enormes eventos foram realizados em espaços
privados, o quê, por si só, tende a absorver boa parte do fluxo de foliões presentes
na cidade. Dentre essas iniciativas particulares, a mais relevante – bem como a mais
recente – foi a do Carnaporto 2007 Indoor.
Carnaporto 2007 Indoor
Inicialmente, é preciso informar que para a descrição que realizo do
Carnaporto indoor tem-se matérias e reportagens apresentadas pelos diferentes
jornais que circulam em Porto Seguro como fonte, além de relatos de moradores e
comerciantes locais, uma vez que não estive presente no evento.
Um fato inovador dentro da estrutura montada pela cidade de Porto Seguro
para o carnaval de 2007 é a versão indoor do Carnaporto. Esse evento privativo
ocorreu entre os dias 21/02 e 23/02 em uma área localizada na Orla Norte de Porto
Seguro, o Axé Moi Arena. Essa área de aproximadamente 30.000 metros quadrados
pertence ao Grupo Hills96, conglomerado também responsável pela organização do
Carnaporto 2007.
O evento, que contou com a participação de aproximadamente 15.000
pessoas, com média diária de 5.000 foliões, apresentando importantes bandas da
94 Algo que chama a atenção em Porto Seguro é a grande quantidade de serviços e produtos vendidos a preços diferenciados. Dois exemplos que ilustram essa prática. A balsa que faz a travessia do Rio Bunharém e que liga o centro de Porto Seguro à Arraial D’Ajuda, cobrava à época R$ 1,30 dos nativos ao passo que os visitantes desembolsariam R$ 2,50 para realizar a mesma travessia. Outro exemplo se deu durante minha visita a Trancoso quando um vendedor ambulante só aceitou me conceder um desconto sobre o abacaxi que vendia ao ter certeza que eu não era um “gringo”. 95 Jornal do Sol. Açaí doidão sai com Gil e Banda Beijo e Parangolé. Porto Seguro, 25/02/07. 96 O Grupo Hills – que engloba a cabana de praia Axé Moi, a locadora de automóveis Hertz, uma empresa de turismo receptivo, uma agência de viagens, além de uma fazenda de avestruz – seria o segundo maior gerador de empregos da cidade (NUNES, 2007).
114
Bahia, deve ser percebido a partir da tendência de criação de espaços diferenciados
para receber os diferentes nichos de mercado que se destinam para Porto Seguro.
Um dos fatores que colaboram para isso é a identificação do carnaval realizado na
Passarela do Álcool com a violência, assunto que, aliás, foi recorrente em todas as
edições de fevereiro dos jornais locais.
A criação do Carnaporto Indoor pode ser concebida a partir da tendência de
privatização da festa carnavalesca tendo a segurança como motivação, entre outros
fatores. Também os espaços públicos tendem a ser privatizados, como a orla
marítima, que é seccionada para a realização de eventos turísticos e recebimento de
pontos de infra-estrutura para servir aos turistas, a exemplo das imensas barracas
de praia que, como veremos a seguir, estendem de tal modo suas mesas e cadeiras
para próximo do mar que chegam a dificultar a passagem de transeuntes.
Quando se leva em consideração que o preço dos abadás para os três dias
do Carnaporto Indoor varia entre R$ 330,00 a R$ 500,00, pode-se depreender que
há uma separação entre os foliões, pois aqueles com maior poder aquisitivo
estariam concentrados aí. Essa tendência quanto à efetivação de um espaço
alternativo, associada à busca de um público adicional, é claramente observada nas
considerações de Anderson Guilherme, secretário de Turismo de Porto Seguro:
“Nossa idéia é construir um espaço que dê conforto e segurança aos foliões para
atender a um público que normalmente não iria para a Passarela do Álcool”
(TORALLES, 2007, p. 13).
Os blocos tradicionais
Se as duas versões do Carnaporto apresentaram larga divulgação em sites
na internet, em especial das operadoras e agências de turismo que comercializam o
destino Porto Seguro, o mesmo não pode ser dito dos blocos tradicionais. Tanto é
que só vim a tomar conhecimento dos mesmos após as indicações de moradores da
cidade, além de algumas matérias presentes nos jornais.
Há, na verdade, um circuito muito bem organizado para os desfiles desses
blocos. Existe ainda uma espécie de solidariedade entre participantes e
colaboradores de todos os blocos. Os músicos97, por exemplo, tocam em todos os
97 A banda responsável por animar a maior parte dos blocos de Porto Seguro, a “Originais de Porto”, é fruto da Sociedade Filarmônica 2 de Julho, uma agremiação de relativa consideração na cidade.
115
blocos, segundo informações de um dos componentes da charanga, enquanto os
donos de bar e mercearias ajudariam durante o desfile de alguns deles com a
distribuição de bebidas para os participantes. Enfim, existe uma mobilização por
parte da própria comunidade envolvida.
Os blocos, que contam com apoio da prefeitura, podem receber ainda parte
da verba necessária de patrocinadores para sair às ruas. O bloco “Filhos de Kojac”,
fundado em 1976, por exemplo, recebeu o patrocínio de uma grande cervejaria e da
CVC, embora, em nenhum momento, tenha percebido qualquer movimentação da
operadora paulista visando favorecer a apreciação dos desfiles pelos turistas. Já o
“Ninguém Segura Essas Babás” teve a colaboração de diferentes empresários
locais, ao passo que a venda de abadás, juntamente com a ajuda de empresários,
garantiu que o “Fantástico” desfilasse, conforme informações de uma sobrinha da
fundadora do bloco.
Pude acompanhar integralmente o percurso de alguns blocos parcialmente o
de outros. É preciso deixar claro que acompanhar os percursos dos blocos não
significou desfilar neles. Aliás, em alguns blocos vigora um critério de gênero para
admissão de participantes no desfile. Blocos como os “Filhos de Kojac” e “As
Barguncetes” só permitem o desfile de homens, ao passo que o “Ninguém Segura
Essas Babás” e o “Fantástico” só contam com mulheres. São comuns brincadeiras
com o sexo oposto nesses blocos que se agrupam por gênero durante o desfile, em
especial ao “zombar” aqueles e aquelas que não estariam dentro do cordão.
Embora os lugares de saída dos blocos variem, há critérios para a escolha:
além de certa familiaridade com o local, há a necessidade de ser um ponto
estratégico para o trajeto do bloco. A opção pelo local tende a ser um lugar próximo
das residências dos participantes – Tupinambá –, ou em um bar que os foliões
normalmente freqüentem – Filhos de Kojac. Em resumo, o ponto de encontro e
partida dos blocos nunca é um local desconhecido. Esses lugares são distantes das
áreas freqüentadas por turistas, embora os desfiles ocorram em regiões de grande
apelo aos visitantes, sobretudo a Passarela do Álcool.
O desfile dessas entidades tradicionais também é demarcado. Para desfilar
dentro do cordão, há a necessidade de compra da fantasia, que, diga-se de
passagem, não é vendida somente para os nativos, embora o interesse por parte
dos turistas não seja muito grande, pois, segundo uma participante de um dos
blocos mais antigos de Porto Seguro, “os turistas não querem saber de nada
116
cultural, não”. A atual coordenadora desse bloco considerou ainda que os turistas só
querem saber do carnaval de trio e que “comprariam” seus abadás via internet.
O tempo dos desfiles, que começavam no início da noite, variava entre duas e
três horas de duração, sendo comum realizar paradas que serviam não somente
para descanso e compra de bebidas, mas também, para encontro de outros blocos
que desfilam no mesmo horário, porém seguindo trajetos diferentes. As paradas dos
grupos são úteis ainda para cumprimentar as pessoas que, das janelas e portas de
suas casas, apreciavam o desfile. Além disso, as atividades daqueles blocos não
poderiam ir até tão tarde, pois, logo em seguida, no final da noite, tinha-se início a
programação oficial do Carnaporto.
O número de pessoas presentes nesses blocos varia bastante, mas nunca
chega a milhares, o que é bem diferente dos blocos de trio. Segundo um dos
jornais98, Os “Filhos de Kojac” contaram com cerca de 150 participantes enquanto o
bloco “Ninguém Segura Essas Babás” contou com a participação de 80 mulheres,
mesmo número de integrantes dos “Tupinambá”. O grupo que mais conseguiu
agregar participantes foi o bloco “As Barguncetes”, com aproximadamente 200
homens.
Retomando a questão dos turistas, havia dois tipos de postura perante os
blocos. Uma parte dos turistas praticamente ficava alheia, em especial durante a
passagem dos grupos pela Passarela do Álcool, o que acontecia por volta das
dezenove horas, momento em que aquela área ainda estava pouco movimentada.
Outra parcela de visitantes, embora se sentisse bastante atraída por aquele
acontecimento, pouco se disponibilizava a acompanhar o trajeto a ser percorrido. Foi
comum ver turistas fotografando os desfiles, mas somente enquanto os foliões se
posicionassem perto dos lugares onde esses anteriormente estavam, ou pelo qual
passavam. Poucos eram os visitantes que seguiam os blocos ao longo dos desfiles.
Um fato ocorrido durante o desfile do bloco “Os Tupinambá” é paradigmático
sobre a relação dos blocos com a estrutura carnavalesca considerada “oficial” pelo
trade turístico. No momento em que o grupo decidiu passar pelo meio da Passarela
do Álcool, houve grande tensão, pois alguns vendedores ambulantes tentaram
impedir a entrada dos participantes, o que gerou um clima de apreensão entre os
componentes do bloco. Reproduzo aqui parte do discurso do responsável pelo bloco
98 JORNAL TOPA TUDO. Diversidade de opções foi marca do carnaval 2007, Porto Seguro, 25 fev. 2007, p. 11.
117
durante sua parada na Passarela do Álcool: “É a nossa cultura! [...] Nós passamos
por aqui sim! Não temos lugar para trabalhar aqui! Eles não nos deixam passar não?
Mas nós passamos assim mesmo! Nós somos o povo de Porto Seguro!”. Este
episódio, que reuniu um aglomerado de turistas, parece ter sido o único momento,
ao longo dos diversos desfiles que acompanhei, capaz de mobilizar a atenção de
uma soma significativa de visitantes. Depois de se tornarem, por fugazes instantes, o
centro das atenções dos turistas e ocuparem aquele espaço, tudo na Passarela do
Álcool voltaria ao normal após a saída do bloco.
O acompanhamento dos blocos tradicionais permitiu-me observar questões
que retornariam em momentos posteriores, como a reclamação de nativos quanto ao
turismo, a existência de manifestações culturais não agenciadas pelo trade turístico,
a movimentação dos turistas em apenas algumas áreas da cidade, dentre outras.
3.3.3 Os trajetos dos turistas no carnaval de Porto Seguro
Apesar de rapidamente adaptar-me a Porto Seguro, dominando mais ou
menos bem as informações referentes ao tecido urbano da cidade, além de estar a
par dos principais eventos que aconteceriam no município, a minha não filiação a um
grupo de turistas em fevereiro não me permitiu ter uma noção mais abrangente da
rotina dos visitantes, muito menos apreender que leituras da cultura o trade turístico
apresentava aos mesmos, a não ser em um evento esporádico como o Carnaval.
Esta dificuldade em me aproximar de grupos específicos de turistas fez com
que eu adotasse uma estratégia pouco usual de interação na segunda semana de
fevereiro. Durante o dia, passei a ficar por muitas horas na Cidade Alta não só me
misturando aos vários grupos de turistas que para lá iam, mas conversando com
muitos excursionistas e observando suas práticas. À noite, ia para a Passarela do
Álcool. Desse modo, ao longo do mês de fevereiro, concentrei meus esforços nesses
dois espaços que descrevo agora de maneira mais pormenorizada, buscando
introduzir elementos coletados já em meu retorno posterior ao campo por meio de
pacotes turísticos, quando pude ratificar muitas das impressões que tive nesse
primeiro período de campo.
Passarela do Álcool
118
A Passarela do Álcool (ver anexo A) é uma região contígua à Avenida do
Descobrimento e que concentra grande número de lojas de artesanato, moda e
souvernirs, além de abrigar grande quantidade de restaurantes e pizzarias, de
artesãos e vendedores que expõem os seus produtos no chão ou em mesas
improvisadas. Essa faixa territorial paralela à Rua do Cais tem aproximadamente 2
km e possui como limite sul a Rua São Pedro e ao Norte a Avenida 22 de Abril,
talvez a principal avenida da área comercial de Porto Seguro por concentrar grande
número de bancos e lojas. Segundo diversas informações obtidas em sites
especializados sobre a cidade e em conversas com guias turísticos, o nome desse
“corredor comercial” é uma alusão à presença das muitas barracas que
comercializam bebidas, em especial o “capeta”, drinque constituído de uma mistura
de frutas, leite condensado e vodka, e que é muito propagado pelos guias como uma
“atração turística que só Porto Seguro tem”.
A Passarela do Álcool se destaca pela grande quantidade de barracas
dispostas em fila, dando a idéia de uma grande feira a céu aberto. Ali é possível se
comprar artesanato regional, CDs e DVDs, alimentos e bijuterias, dentre muitos
outros produtos.
Há uma divisão funcional entre os barraqueiros da Passarela do Álcool. A
área é seccionada em zonas: umas para venda de alimentos; outras para bebidas e
há áreas específicas para bijuterias, acessórios e artesanato, apesar dessa divisão
nem sempre vigorar. Além da função de “corredor comercial”, a Passarela do Álcool
se notabilizou também por guardar outro papel. Ela é tida também como um local
onde os turistas, a partir do consumo de bebidas alcoólicas, se preparariam para as
diversas festas da noite. Isto está presente nos discursos de sites e guias, como no
exemplo a seguir:
À noite, “tudo começa” na Passarela do Álcool onde são armadas dezenas de barracas que vendem os mais variados coquetéis de frutas com destaque para o famoso “capeta”, e outros drinques de bebidas feitas à base de suco de frutas nativas. A decoração destas barracas prima pelos arranjos de frutas que chamam a atenção dos turistas do mundo inteiro. (Disponível em: <http://www.portoseguroguia.com.br/portoseguro.htm>. Acesso em: 14 de dez. 2007)
Em especial na sexta-feira, dia em que ocorre a festa semanal na Ilha dos
Aquários, situada na foz do rio Bunharém, próxima à Passarela, não é raro encontrar
grupos de jovens que passam boa parte da noite consumindo bebidas alcoólicas até
119
o momento de tomar a embarcação que os conduza para a festa. Aí acontece uma
espécie de prévia da night.
Há de se pesar que para os turistas que não têm condições físicas e/ou
monetárias99 de ir às festas noturnas, que acontecem todos os dias em regime de
rodízio entre as boates, bares e cabanas de praia, a única opção de entretenimento
noturno acaba por ser a Passarela. Sair para jantar, ouvir música ao vivo, ou
simplesmente “dar uma olhada nas coisas” mobiliza muitos viajantes que se sentem
bem em anunciar, ao conversar com os amigos posteriormente, que “conseguiram ir
até o final” da Passarela.
A questão do consumo é interessante para ilustrar a representatividade da
Passarela do Álcool, pois esse espaço poderia ser tido como uma síntese da
dimensão consumista do turismo em Porto Seguro. Tanto é que, embora a
Passarela possa abrigar diferentes funções – ponto de encontro, meio de vida para
os comerciantes, aquisição de recordações por parte dos turistas – um elemento que
parece unificar muito dos desejos presentes nas diversas pessoas que para lá se
deslocam é o consumo.
A Passarela do Álcool parece exercer uma função capital na satisfação dos
turistas em relação à cidade. Se há um ponto turístico de Porto Seguro sobre o qual
jamais ouvi qualquer tipo de ressalva, este lugar é a Passarela, até porque, tal como
constatei, a maior parte dos turistas vão praticamente todos os dias até aquele lugar
em que há grande satisfação em estar lá.
Algo que particularmente chamou-me a atenção, durante minha segunda ida
a campo, foi o fato de os grupos aos quais me filiei fazerem questão de ir
diariamente até a Passarela para a aquisição de lembranças, especialmente para
amigos e familiares.
Percebe-se que a Passarela do Álcool dramatiza as disparidades
socioeconômicas ao confrontar, em um mesmo lugar, turistas charter e hippies;
empresários e artesãos; mochileiros e garçons, e que, embora juntos, lá estão por
diferentes motivos: para uns, um meio de sobrevivência; para outros, o desejo de
compra de produtos que, na volta, reforçarão o status decorrente da viagem
(SANTANA, 1997, p. 102).
99 O preço das festas varia entre 25 e 35 reais, não sendo raro encontrar eventos cujo preço chega à casa dos R$ 80,00. Esses eventos, em geral, são constituídos por shows de artistas e bandas de renome nacional.
120
Outro ponto que merece destaque é a grande quantidade de produtos
expostos por comerciantes na Passarela do Álcool e que fazem, direta ou
indiretamente, menção a Salvador. Durante o carnaval, foi interessante encontrar à
venda de colares similares aos usados pelos membros do afoxé Filhos de Gandhi e
camisetas do Olodum. Mas, dentre tantas referências a Salvador, a mais recorrente
foi a venda de DVDs contendo músicas de axé com dançarinos realizando
coreografias com paisagens soteropolitanas ao fundo: o Farol de Itapuã, o Farol da
Barra e praias da capital, ícones apresentados durante todo o tempo de exibição dos
vídeos, os quais estão presentes em várias barracas.
Pode-se depreender daí que parte da visão do que seja a Bahia em Porto
Seguro tem a capital baiana como ícone privilegiado, algo que vai ao encontro do
que é defendido por Paraíso (2001), ao constatar, como vimos no primeiro capítulo,
o caráter metonímico que Salvador teria em relação aos baianos do interior do
Estado.
Ainda neste capítulo, retomaremos a questão do consumo, que, como
veremos adiante, tem um papel central na rotina dos turistas. Isto será evidenciado
no momento em que analisarmos os pacotes turísticos. Antes disso, importa
apresentar experiências vivenciadas com os turistas em outro espaço turístico: a
Cidade Alta.
Cidade Alta100
Durante a primeira fase da pesquisa de campo, outro espaço que recebeu
minha atenção foi a Cidade Alta (ver anexo A), também designada por guias e
moradores como Cidade Histórica. Essa área, que se encontra no topo de uma
falésia às margens da BR-367 – estrada que liga Porto Seguro a Santa Cruz de
Cabrália – abriga a maior parte das construções coloniais da cidade. É lá que se
encontram a Capela de São Benedito, as ruínas do Colégio Jesuítico, a Casa da
Câmara e Cadeia, a Igreja da Misericórdia, local que abriga o Museu de Arte Sacra e
a Matriz Nossa Senhora da Pena, sendo essas três últimas edificações datadas do
100
O Museu da Casa Colonial é mantido mediante um convênio entre a Prefeitura de Porto Seguro e a Universidade Estadual de Santa Cruz. Ele fica localizado no fim do caminho percorrido pelos turistas que visitam a Cidade Alta. Enquanto estive em campo naquela área, foi sempre raro ver algum turista adentrar no recinto, sobretudo por reclamarem da taxa de visitação, cujo custo, na época, era de dois reais.
121
século XVIII. Além disso, encontra-se nessa área o Museu da Casa Colonial e o
Marco do Descobrimento, estrutura de pedra cravada no chão identificando a posse
da Coroa de Portugal sobre aquelas terras.
A visita à Cidade Alta faz parte dos programas de todas as agências e
operadoras turísticas que comercializam o destino Porto Seguro, pelo city-tour, já
incluído no valor pago em todos os pacotes turísticos. Ainda que as belezas naturais
sejam apontadas como as mais atrativas pelos turistas (SOLHA, 1999, p. 85), a ida
ao sítio histórico de Porto Seguro conta com a adesão de muitos deles. Além de ser
o único passeio incluso no preço do pacote turístico, essa visita normalmente se dá
no primeiro ou no segundo dia após a chegada dos turistas, período em que a maior
parcela dos visitantes ainda se sente insegura para sair da “programação oficial” do
roteiro.
Embora eu tenha até mesmo tentado realizar entrevistas com os turistas101,
logo passei a me contentar com tudo aquilo que a Cidade Alta oferecia, da forma
como se apresentava diante de mim. E, aos poucos, percebi que ali havia muito a se
explorar, como, por exemplo, os grupos de cultura afro-brasileira, em especial os
capoeiristas, sempre presentes. Minha estada na Cidade Alta também me permitiria
observar a relação que os turistas travavam tanto com o patrimônio histórico quanto
com os guias.
A cultura afro-brasileira na Cidade Alta: as apresentações de capoeira
Praticamente todos os grupos de visitantes que chegam à Cidade Alta são
conduzidos pelos seus respectivos guias a assistir apresentações de capoeira.
Como a maioria das visitas ocorre aos domingos e segundas-feiras, dificilmente se
encontra ali, naquele espaço, algum grupo de capoeira no restante da semana, a
não ser, é claro, na alta estação. Às vezes, alguns guias optam por não conduzir
grupos de turistas às apresentações. Isso ocorre porque ou não há capoeiristas
disponíveis para os shows, ou o guia constata que o grupo presente na Cidade Alta
101 Cheguei a realizar aproximadamente 20 entrevistas estruturadas com três perguntas, a saber: 1) “De onde você é? 2) O que mais o/a motivou conhecer Porto Seguro? 3) Que aspecto de Porto Seguro mais lhe chama a atenção?”. Mas, ao reconhecer que os turistas tinham, muitas vezes, acabado de chegar à cidade e apresentavam pouca disposição em responder às minhas indagações, logo desisti da empreitada.
122
é pequeno, tornando-se um prejuízo a mobilização dos artistas para uma baixa
quantidade de visitantes.
As apresentações de capoeira são feitas em dois espaços já designados para
isso – uma cabana com bancos construídos pelo IPHAN na entrada da Cidade Alta e
uma galeria privada que também conta com uma pequena arquibancada. Os grupos
que atualmente se apresentam aos turistas da Cidade Histórica são o grupo Omo-
Oiá e o grupo Arte Brasil.
O Grupo Omo-Oiá teve início há cerca de doze anos, e é composto
atualmente por nove pessoas. Segundo informações de um de seus membros, as
condições para o surgimento do grupo foram propiciadas pelo Senhor Ronaldo – ex-
gerente regional da CVC. Para os integrantes, que destacam a falta de incentivo à
capoeira na cidade, a CVC é a única companhia que colabora para a manutenção
do grupo, em especial pelo fato de os guias conduzirem os turistas ao espaço
destinado ao Omo-Oiá.
O grupo Arte Brasil originou-se de uma dissidência interna do Omo-Oiá.
Segundo informações de “Mestre Equilíbrio”, fazem parte do grupo cerca de quinze
pessoas que, assim como os integrantes do grupo coordenado por Atenildo, não
conseguem sobreviver apenas das apresentações. Segundo os responsáveis pelos
grupos, não há qualquer tipo de apoio da Prefeitura de Porto Seguro.
As apresentações dos grupos são muito semelhantes. São constituídas de
rodas de capoeira, acrobacias, danças dos orixás, dança com fogo e puxadas de
rede sempre com o som da percussão ao fundo. Em ambos os casos, o grupo retira
turistas – quase sempre resistentes – da platéia buscando estabelecer uma relação
mais próxima com os mesmos. Os shows têm duração de aproximadamente quinze
minutos. Após o término, um dos participantes do grupo passa uma cumbuca de
turista a turista, ao passo que o responsável pelo bloco, ou outra pessoa por ele
designada, realiza um apelo buscando sensibilizar a platéia para contribuir
financeiramente com as atividades do grupo. Como a colaboração normalmente não
é muito grande, como afirmam os próprios capoeiristas, os grupos aceitam convites
para realizarem apresentações em festas, hotéis e pousadas da cidade. Além disso,
os membros procuram aumentar suas rendas com a venda de CDs, calças e
instrumentos ligados à capoeira.
Embora haja um claro componente econômico para a apresentação dos
grupos, os mesmos ressaltam que fazem isso pela cultura ou para manter a tradição
123
e porque gostam. Essa questão é particularmente interessante, pois, com raras
exceções, pode-se ver alguma manifestação afro em Porto Seguro102.
A relação dos turistas com o patrimônio histórico-cultural de Porto Seguro
A duração de cada visita à Cidade Histórica é de aproximadamente duas
horas. A seqüência do trajeto percorrido na Cidade Alta é praticamente a mesma
durante todas as visitas: inicia-se com um show de capoeira; passa-se pela Capela
de São Benedito; segue-se para uma das barracas das baianas que vendem acarajé
e cocadas; chega-se ao marco de posse de Porto Seguro e à Casa da Câmara e
Cadeia e Igreja de Nossa Senhora da Pena e, por último, visita-se as bancas dos
vendedores de cocadas, sucos, doces e acarajés. O único elemento que pode
mudar na seqüência acima exposta é a ordem da apresentação da capoeira, pois,
se o guia preferir a apresentação do Omo-Oiá, ele terá de esperar até o final do
percurso para apresentar o show aos turistas, pois os capoeiristas desse grupo se
apresentam em uma galeria que se encontra ao término da rota. A visita ao sítio
histórico não contempla nem explicações sobre o farol da cidade instalado no início
do século XX, nem permite a entrada no Museu de Porto Seguro, dois outros
importantes atrativos turísticos daquela área.
O tempo de permanência na Cidade Alta é alvo de muitas controvérsias por
parte dos turistas. Uma das guias argumentou que os turistas que visitam o sítio
histórico prefeririam ir para a praia: “você viu ontem, né? O pessoal doido para ir
para a praia”. São fartos os exemplos para demonstrar que, de maneira
generalizada, os visitantes ordenam os diferentes atrativos turísticos da cidade por
sua preferência: a Cidade Alta estaria em uma posição secundária, bem atrás em
relação ao mar.
Segundo a mesma guia, a principal motivação dos turistas que se deslocam
para Porto Seguro seria mesmo “a praia, o agito, a curtição”. Ela deu como exemplo
um fato ocorrido na Cidade Alta durante a Semana da Criança, em outubro. De um
total de cinqüenta e seis pessoas, só quatro teriam ido realizar o city-tour na Cidade
102 Em matéria publicada no jornal Tribuna da Costa, de 04 de fevereiro de 2007, Mâe Vanda, responsável por um terreiro de umbanda em Porto Seguro, ao comentar as tímidas oferendas em homenagem à Iemanjá, assevera que: “em Salvador as pessoas não se preocupam em assumir, ao contrário de nossa região, onde o preconceito se evidencia, as pessoas de outras religiões denigrem nossa crença e os simpatizantes ficam inibidos até na comemoração de nossa Rainha”.
124
Histórica, sendo esses componentes os mais velhos do grupo, isto é, os professores.
Embora eu tenha tido oportunidade de estabelecer contato com turistas que
acharam o tempo de permanência na Cidade Alta muito pequeno, a grande maioria
deles demonstrou ter menos prazer em visitar o sítio histórico do que ir para as
praias.
Cientes de que a maioria dos turistas não está disposta a passar um longo
período na Cidade Alta, muitos guias minimizam o tempo de passeio nesse espaço.
Mas a estratégia de um dos guias para a visita ao sítio histórico foi, no mínimo,
curiosa: “visitamos meia-hora apenas o centro histórico; só para tirar uma foto.
Depois vocês podem usufruir do melhor que temos de praia”. Apesar de o tempo de
duração da visita ter sido bem maior, isto é, cerca de duas horas, a fala do guia
mostra em que posição, dentro de uma escala valorativa dos turistas, a Cidade
Histórica estaria situada.
Ao longo de sucessivas conversas com os funcionários do atual Museu
Histórico de Porto Seguro, abrigado atualmente no prédio da antiga Casa de
Câmara e Cadeia, a questão da falta de interesse dos turistas em visitar a Cidade
Alta e, sobretudo, aquele museu ficou evidente. Uma funcionária lançou uma
questão capaz de nos levar à reflexão sobre essa marginalização do museu: “como
você quer turismo da cultura num lugar que você respira história, mas expira axé?”
As observações das funcionárias do museu vêm ao encontro de uma gama
de indícios que ratificam que o componente histórico-cultural de Porto Seguro tenha
uma importância secundária, não só para a maior parte dos turistas, mas para
grande parte do próprio trade turístico.
Neste sentido, Solha (1999), ao analisar matérias em revistas e suplementos
de turismo, constata que o espaço nesses meios de comunicação é
predominantemente ocupado por atrativos naturais (p. 105). Além disso, as próprias
imagens e fôlderes das operadoras e agências dão maior ênfase às belezas naturais
da cidade.
Outro indício que ratifica essas observações é referente ao fato de sequer os
guias e boa parte dos folhetos referentes à Cidade Alta mencionarem a existência do
Museu de Arte Sacra e, principalmente, do Museu da Casa Colonial. Este último,
embora fique em um ponto privilegiado – local onde todos os turistas se reúnem ao
término da primeira fase do tour –, raramente recebe a atenção de um visitante. E,
mais raro ainda é algum turista adentrar o recinto.
125
Funcionários dos museus atribuem a ausência de turistas nesses espaços ao
pouco tempo que os guias reservam para visitar a cidade histórica e à dificuldade
dos turistas em realizar atividades distantes dos guias, aspecto que vai ao encontro
da tese defendida por Cruz (2000) ao asseverar que “poucos turistas ousam escapar
da rigidez dos programas e horários estabelecidos pelos pacotes turísticos” (p. 23).
Lancemos agora um pouco mais de luz sobre as práticas desses mediadores
turísticos, indivíduos com amplo destaque no que se refere à apresentação de
leituras culturais muito restritas acerca da cidade e, conseqüentemente, da Bahia.
Sobre os guias de Porto Seguro
Em poucos momentos da estada, em Porto Seguro, foi possível ver membros
de um pacote de viagem103 desacompanhados de seus guias. Neste sentido, a
Cidade Alta torna-se um lugar privilegiado para análise da relação entre guias e
turistas, pois conta com alto índice de adesão desses últimos, ainda que a
contragosto de alguns.
A primeira constatação referente ao papel desses mediadores turísticos é a
existência de um tratamento uniformizante aos turistas. É com alguma dificuldade
que os guias conseguem guardar os nomes dos hóspedes. Conseqüentemente, o
tratamento dado aos turistas ocorre por meio de códigos, como, por exemplo, o
quarto ou mesmo o hotel em que se encontra o visitante. Assim, durante os passeios
era comum ouvir-se “hóspede do quarto 23!” ou “hóspede do quarto 50!” e ainda
ouvir os guias aos berros gritando: “Hotel Terra Brasil!”; “Hotel Gaivota!”, dentre
outros. Reconhece-se que ações como essas são resultado da grande quantidade
de turistas pelos quais os guias são responsáveis semanalmente, às vezes por
grupos de diferentes hotéis em diferentes passeios. Além disso, o período de
contato é curto, o que não favorece uma relação mais próxima entre guia e turistas.
No que se refere aos guias especificamente, Nery (1998) atesta que há uma
crescente importância assumida não só pelos agentes de viagem, mas também pelo
guia de turismo enquanto mediador legitimado do ato de viajar (p. 211). Isto é
perceptível na medida em que se observa a importância que o guia assume ao longo
103 A visualização de turistas componentes de pacotes de viagem é possível, pois muitos visitantes se fazem valer de pulseiras identificadoras, além de bolsas que recebem de “brinde” das agências e operadoras de viagem.
126
dos pacotes turísticos, transcendendo assim o simples papel de informante. Durante
a viagem, a figura do guia pode ser vista ocupando diferentes posições. Seu papel
vai desde a atuação como pessoa responsável por todo o grupo que está viajando
até acordar os hóspedes no hotel para os passeios opcionais realizados
normalmente na parte da manhã.
Nas sucessivas vezes em que estive na Cidade Histórica, sempre notei que
os guias buscavam direcionar o olhar dos turistas: apontavam os detalhes nas
fachadas das construções coloniais e nas igrejas, não permitindo que o visitante
exercitasse autonomia em seu olhar.
Ao assumirem as práticas de demarcar o tempo das visitas e direcionar o
olhar, os guias de turismo parecem representar de forma metonímica todo o aparato
de controle e rigidez vigente nos programas das companhias de turismo.
Trabalhando sob grande pressão de horários e de responsabilidades, os guias
acabam por favorecer, talvez sem terem consciência, a impessoalidade vigente nos
pacotes turísticos, além de restringirem a relação que o turista tem com o patrimônio.
Como exemplo, um guia impediu que uma turista rezasse no interior de uma igreja,
pois não se teria tempo para isso. A turista, resignada, se levantou, fez o sinal da
cruz e continuou a caminhada atrás do grupo.
O guia, em sua posição quase inquestionável, é aquele que diz aonde se
pode ir, aonde não se deve visitar; aponta o que deve ser visto e o que não deve;
aonde se pode comer e quais lugares evitar; e, sobretudo, o tempo em que se pode
ficar em cada um desses locais. Uma das guias chegou a afirmar que:
É complicado, né? Tem passageiro que fica [...] condicionado à gente. Eu já vi passageiro que não comeu porque eu disse que não comeria. Tens uns [turistas] que ficam observando se a gente vai comer ou não. [...] Local onde guia indica é complicado porque muita gente volta para casa falando que foi a guia que trouxe e que indicou. [...] E, na verdade, o guia tem que ter o maior cuidado.
Depreende-se daí que o guia, a partir do início da viagem, passa a ser
legitimado, mediante seu “vasto” conhecimento acerca do destino, como a pessoa
capaz de apresentar tudo aquilo que Porto Seguro ofertaria. Essa posição não é
fomentada somente pelos turistas, mas os próprios guias contribuem para a
manutenção de suas posições hegemônicas perante os turistas.
Além de não favorecer uma relação direta entre comunidade e turistas, o guia,
justamente porque encarna os princípios da rigidez dos programas e a necessidade
127
de se visitar muitos lugares em um tempo mínimo, não contribui também para que os
turistas se apropriem das informações referentes ao sítio histórico contidas nos
painéis afixados ao longo de toda a extensão do percurso. A relação dos turistas é
eminentemente visual e são poucos aqueles que se dispõem a ler as informações
contidas nas placas presentes ao longo da Cidade Alta. Essa forma de apreender
dados acerca das edificações e da história do local só deixa de lado a dimensão
visual nos momentos em que se ouve algo do guia, passando assim a coletar novos
parâmetros (do guia) para melhor “desfrutar” da paisagem, ou quando se
experimenta alguma amostra de comida ou bebida “típica”104, momento em que,
necessariamente, há uma interação entre turistas e vendedores.
Um olhar sobre os guias é revelador para ilustrar ainda que imagens sobre
Porto Seguro. Estas são privilegiadas pelo trade turístico local, pois o guia parece
ser, como já dissemos, uma figura-síntese de todo aparato edificado em favor dos
visitantes, além de possuir uma importância que transcende a mera função de
informante. O guia é, neste caso, uma metonímia do trade turístico de Porto Seguro.
É recorrente no discurso dos guias de Porto Seguro a idéia de que é preciso
realizar dadas experiências para alcançar a legitimidade de “se estar na Bahia”,
como comer acarajé, experimentar o doce de cacau etc. A esse discurso quase
onipresente dos guias, associam-se os dizeres de vários vendedores, em especial
na Passarela do Álcool, que reafirmam que, para “estar na Bahia”, o turista deve
consumir o “capeta”, comprar um DVD de axé music etc.
Os guias têm um papel de destaque não somente na reprodução de leituras
culturais, mas também na potencialização de supostas necessidades dos turistas.
Tal prática ficou clara ainda durante nossa visita à Cidade Histórica quando um guia
afirmou que “vir a Porto Seguro e não ir a Trancoso é o como ir a Roma e não ver o
Papa”. Essa busca de legitimação da visita pela vivência de dadas experiências, ou
mesmo quanto ao consumo de produtos específicos, se assemelha à concepção de
MacCannell (1976) ao considerar que os tours guiados modernos seriam uma
espécie de “agendas cerimoniais extensivas envolvendo amplos laços de ritos
obrigatórios”. E o autor exemplifica: “se você vai para Europa, você deve ir a Paris; 104 No que tange à alimentação, os turistas se vêem diante de duas opções: experimentar o tipicamente baiano, normalmente ofertado em áreas mais turísticas ou se fazerem valer de uma grande quantidade de restaurantes que servem pratos padrões, normalmente constituídos de uma opção de carne, arroz, feijão, farofa, salada e batata fritas. Obviamente existem outras opções alimentares, como por exemplo, pizzarias e lanchonetes. Quanto as bebidas, os turistas, onde quer que estejam, alternam o consumo entre água, cerveja e sucos naturais.
128
se você vai a Paris, você deve ver Notre Dame, a Torre Eifel, o Louvre; se você vai
ao Louvre, você deve ver a Vênus de Milo e, é claro, a Monalisa” (p. 43).
A despeito dos diferentes produtos que os turistas teriam de experimentar,
algo que une todos esses discursos e práticas é a necessidade de consumir.
Independente das “zonas turísticas” em que esteja o viajante, a maneira utilizada
pelos guias e vendedores para cativar a sua atenção é quase sempre vinculando
esses produtos “típicos” a uma dada imagem da Bahia, concepção imagética que se
calca principalmente na culinária (venda de doces, acarajés e bebidas) e na
festividade (venda de convites e abadás, comercialização de CDs e DVDs).
Além da dimensão gastronômica (culinária) e lúdica (festa), um terceiro fator
salta às vistas ao se centrar foco nos discursos e práticas dos guias: a questão da
“preguiça” baiana. Esse elemento é acionado por guias para reforçar a necessidade
dos turistas “relaxarem” e “aproveitarem”, afinal de contas, “estariam na Bahia”.
Assim, não haveria a necessidade do “stress”. Esse elemento também foi, ao longo
dos passeios, utilizado pelos guias e motoristas como uma espécie de justificativa a
qualquer atraso ou imprevisto na organização dos passeios. “Estamos na Bahia” era
a frase que ouvíamos para apaziguar um possível descontentamento dos turistas
face aos imprevistos. Além disso, piadas sobre baianos, tidos naturalmente como
“preguiçosos”, são comuns nas falas desses mediadores turísticos.
Assim, o guia turístico, bem como o agente de viagem, parece ocupar dois
pontos distintos, porém interdependentes de uma mesma dinâmica: a de conformar
dadas imagens de Porto Seguro e da Bahia calcadas em seleções.
Posto isto, embora tenha conseguido relativa quantidade de elementos
oriundos da observação, decorrentes de entrevistas e de material jornalístico em
fevereiro, ainda considerava os mesmos incipientes para ilustrar a relação existente
entre o turismo e as “leituras culturais”, acionadas pelo trade turístico porto-
segurense. Assim, decidi realizar dois pacotes de viagens, úteis para lançar luz
sobre alguns fatos enriquecedores ocorridos durante a realização dos mesmos com
o intuito de melhor compreendermos parte da dinâmica turística de Porto Seguro.
3.4 Os pacotes turísticos
Em vez de descrever cada um dos dois pacotes turísticos realizados, um feito
via aérea no final da alta estação e o outro realizado de ônibus no mês do “Saco
129
Cheio” –, optamos aqui por realçar os pontos mais interessantes de ambas as
viagens, porém, tomando o primeiro pacote realizado como norteador, pois
consideramos que ele guarda certas peculiaridades – maior tempo de permanência
na cidade, pessoal e infra-estrutura de apoio da própria empresa etc – em relação à
viagem realizada pela outra empresa. Buscar-se-á apresentar a experiência em
diálogo com elementos observados não só ao longo do segundo pacote turístico,
mas também com fatos registrados durante o carnaval.
As datas de saída dos pacotes turísticos para Porto Seguro dão-se,
normalmente, nos finais de semana, tanto no sábado, quanto no domingo. No caso
do meu pacote turístico, o embarque se efetivou no Aeroporto Internacional de
Confins em um domingo, no dia 29 de julho de 2007. Em relação ao pacote turístico
rodoviário, o embarque foi feito no Terminal Turístico Juscelino Kubitschek, também
em um domingo, no dia 14 de outubro.
É de praxe no mercado turístico a adoção de um pacote de férias com a
duração de sete dias, tido como período padrão, o que também foi adotado pela
primeira empresa na comercialização de seus pacotes turísticos para Porto Seguro.
Todavia, há casos em que algumas firmas, sobretudo de turismo rodoviário,
reduzem esse tempo com fins logísticos. Essa prática foi utilizada pela segunda
empresa que, assim como as demais de turismo rodoviário de Belo Horizonte, não
permite que o tempo de permanência em Porto Seguro ultrapasse os 6 dias105.
Embarque, dia 29/07
Antes mesmo de embarcar, indagava-me como um teórico do turismo se
comportaria quando em contato com os turistas, sobretudo aqueles tão
estigmatizados na faculdade por alguns professores.
Embora ainda no aeroporto estivesse imerso em reflexões dessa natureza,
notei naquele domingo que, pelo menos no balcão da companhia aérea, havia não
só um grande ambiente de descontração por parte dos passageiros – afinal de
contas, todos são agrupados em conjunto para terem suas malas despachadas por
funcionários exclusivamente remanejados para esse fim –, mas também enorme 105 Desta forma, embora tenhamos deixado Belo Horizonte em um domingo à noite e tenhamos chegado a Porto Seguro na segunda à tarde, tudo foi organizado para que nosso retorno a capital mineira se fizesse no sábado, dia 20 de outubro, chegando ao destino no domingo pela manhã. Isto porque o ônibus que leva os passageiros para a Bahia no domingo à noite é o mesmo veículo que chega de Porto Seguro na manhã de domingo.
130
clima de descoberta, pois, percebia-se ali que muitos turistas estavam viajando pela
primeira vez de avião.
Em termos gerais, minha breve experiência com o grupo de turistas é rica no
sentido de ilustrar, antes que provar, que as funções de dados espaços, sejam eles
turísticos ou não, não podem ser dados de antemão106. Para muitas dessas pessoas
com as quais convivi, em especial no momento do embarque em Confins, o
aeroporto parecia ser menos um espaço funcional, de grande mobilidade e repleto
de novas tecnologias de comunicação e transporte e mais um lugar de grande valor
simbólico, permeado pelo sentimento da descoberta e capaz de abrigar um caráter
único, afinal de contas, ali é que se materializa oficialmente o início da jornada.
Assim, após embarcar em Confins por volta das duas horas da tarde,
cheguei ao Aeroporto Internacional de Porto Seguro em um domingo chuvoso e
tumultuado, em que o fluxo de passageiros era intenso.
Após a distribuição dos passageiros em ônibus agrupados por hotéis, fui
encaminhado para um veículo que não era nem tão novo, mas também nem tão
antigo. Posteriormente, viria a descobrir que os ônibus mais novos da frota da
empresa de turismo em Porto Seguro são utilizados, até o final do período de sete
dias, pelos turistas hospedados nos melhores hotéis da cidade com os quais a
operadora possui parceria, ao passo que os carros mais antigos são alocados para
os clientes hospedados em hotéis de categoria inferior. De maneira óbvia, os turistas
abrigados em hotéis de faixa intermediária são conduzidos em veículos de mesmo
tipo.
O início da viagem parece ter uma importância vital para a empresa. Não só
porque é o primeiro contato dos visitantes com a cidade e, conseqüentemente, com
os serviços da operadora, mas o desconhecimento dos turistas perante aquela nova
realidade é usado por parte da empresa com vistas a obter maiores dividendos.
106 Para muitos autores, o conceito de não-lugar, cunhado por Marc Augé (2003), é atribuído a uma gama de atrativos turísticos e de pontos da infra-estrutura necessária para o turista empreender a sua viagem. Não-lugar seriam “espaços que pertencem a todos os lugares e a lugar nenhum, ao mesmo tempo” (REBOUÇAS, 2005, p. 6); esses espaços seriam destituídos de características culturais da região em que estão inseridos. Além disso, um não-lugar poderia ser tido por um ambiente “sem história, sem identidade; neste sentido é o espaço do vazio” (CARLOS, 2000, p. 28). Deste modo, destinos como Disney, Epcot Center e Universal Studios seriam também entendidos como emblemas do simulacro, “que é uma das expressões do não lugar” (p. 29), ao passo que os aeroportos seriam considerados, pela suas próprias características de fruição, funcionalidade e mobilidade como lugares “sem identidade”. Ressalto que o presente estudo adota uma linha teórica que relativiza essas premissas, ao se ter em mente que, a partir de comportamentos e atitudes de vários turistas, pode-se depreender que, para eles, o aeroporto carrega sim certa “identidade”. Entretanto, os termos dessa “identidade” é que carecem ser mais bem delineados.
131
Deste modo, durante o transfer entre aeroporto e hotel, o guia, quase que de
imediato, deu início à venda de passeios opcionais para o restante da semana, já
que o único passeio incluso no preço do pacote é o city-tour e os transfers diários
dos turistas para a cabana de praia Tôa-Tôa, de propriedade da própria empresa.
Contudo, os passeios extras são oferecidos com muito cuidado para que o turista
não se depare, no começo de sua viagem, com algo que se tornaria recorrente
durante toda semana: um grande dispêndio de dinheiro, em especial dos passeios
oferecidos pela empresa. Assim, quando o guia, ao ser indagado no ônibus sobre os
valores dos passeios, responde “não quero falar, não é bom falar de preço porque
não é muito ético”, ele, na verdade, prefere omitir a informação que, quase sempre,
causa impacto aos visitantes.
Após a acomodação num hotel localizado no centro da cidade e a promessa
do guia de retornar no dia seguinte para confirmar a compra dos passeios adicionais,
decidi descansar o restante do dia, pois, como já sabia anteriormente, os dias menos
movimentados na cidade são o sábado e o domingo, momento em que os turistas
estavam retornando para as suas cidades, ou tinham acabado de chegar de outros
Estados.
Segunda-feira, dia 30/07
O primeiro dia do pacote iniciou-se com um café da manhã pouco agitado,
pois a maior parte dos turistas se agrega por grupos afins, isto é, familiares e
amigos. Em geral, o nível de socialização entre os turistas foi baixo nos primeiros
dias, embora essa interação tendia a aumentar com o passar da semana, a partir do
contato entre os excursionistas ao longo dos passeios.
Após o café da manhã, o guia já se encontrava no saguão do hotel atendendo
aos turistas individualmente. Percebi que estes, ao questionarem os preços dos
passeios opcionais, recebiam a resposta com certa surpresa. O motivo: os passeios
diários oferecidos custavam em média cinqüenta reais, o que superava as
expectativas de boa parte dos visitantes, já que muitos estavam viajando em família,
o que aumentava consideravelmente as despesas com a viagem.
O guia, nascido em Porto Seguro e que retornou para a cidade há cerca de
seis anos após viver em vários estados do Brasil por oito anos, faz grande pressão
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para que os turistas adquiram rapidamente os passeios adicionais. Segundo ele,
haveria poucas vagas, pois a procura é muito grande.
Posteriormente, após conversar com turistas e funcionários de agências de
viagem locais, soube que a pressão, na verdade, se dá porque, como o turista ainda
não conhece o município e, conseqüentemente as demais agências locais que
vendem passeios similares, a empresa deseja que ele adquira os passeios
adicionais logo no início da viagem, mecanismo favorável para a fidelização do
cliente. Esta prática realizada pela operadora paulista funciona como uma estratégia
para aumentar seus ganhos, pois os passeios por ela ofertados são, em média, 50%
mais caros que os mesmos passeios oferecidos pelas agências de turismo de Porto
Seguro, bem como das empresas de turismo rodoviário. Assim, como muitos turistas
temiam não encontrar mais vagas para conhecer os outros atrativos da cidade, boa
parte do grupo adquiriu pelo menos um passeio naquele momento.
Tomadas as providências acerca da compra dos passeios opcionais,
aproximadamente 26 pessoas se dispuseram a ir para o city-tour naquele dia. Após
uma hora e meia no centro histórico, o grupo se dirigiu para a barraca de praia Tôa-
Tôa, para qual, durante todos os dias posteriores, parte do grupo foi levado, ao
passo que outros integrantes se deslocaram para outras áreas da cidade, já que
adquiriram os passeios opcionais.
As cabanas e as praias
A chegada em Tôa-Tôa, cabana de praia localizada na Praia de Taperapuan
para a qual fomos levados após o city-tour, deu-se logo no início da tarde, e é
reveladora para mostrar a importância, sob diversos ângulos, que essas estruturas
possuem para a dinâmica turística de Porto Seguro.
As cabanas de praia de Porto Seguro estão presentes ao longo de quase toda
a Orla Norte e estão localizadas na rodovia entre a via de acesso e o mar. Há uma
quantidade relativamente grande de barracas, bem como expressiva diferenciação
dentre elas, das estruturas mais simples às mais sofisticadas, cujo serviço inclui
vasto cardápio de nível internacional. Mas muitas cabanas estão desativadas ou
encontram-se muito vazias.
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A despeito dessas considerações, centramos nossa atenção aqui em três
delas: a barraca Tôa-Tôa, de propriedade da operadora de turismo paulista; Axé
Moi, de propriedade do Grupo Hills, e Barramares.
Essas mega-estruturas, designadas pelos guias e funcionários desses
empreendimentos como “complexos de lazer”, não têm apenas a função de servirem
como ponto de apoio aos turistas que desejam desfrutar do mar. Antes disso, elas
mesmas podem ser consideradas como atrativos turísticos. Isso pode ser percebido
pela ampla notoriedade com as quais estas cabanas são apresentadas aos turistas
pelos agentes de viagem. Desta forma, muitos turistas se deslocam para esses
ambientes para participar das atividades e registrar tudo o que ali acontece.
A estrutura dessas três grandes cabanas de praia é muito similar. Todas
possuem um grande palco, que serve também para os shows noturnos, e diversos
ambientes. E o término das apresentações no palco se dá no mesmo momento em
que os ônibus da empresa – que chegam a partir das dez horas trazendo turistas de
diversos hotéis – começam a retornar para o centro da cidade. A animação do palco
começa com a chegada dos ônibus e termina por volta das quatro horas da tarde.
No caso das cabanas Barramares e Axé Moi (ver anexo B), o horário de início
e término das atividades é bem similar a Tôa-Tôa (ver anexo B) porque as demais
empresas de turismo adotam os mesmos horários de chegada e de saída de ônibus
e levam os turistas para os mesmos pontos, garantindo assim, senão a lotação, pelo
menos o preenchimento de quase todos os lugares das cabanas de praia escolhidas
naquele dia.
A escolha das cabanas por parte dos operadores turísticos rodoviários não é
aleatória. Os critérios para a ida dos turistas para os três principais “complexos de
lazer” da Orla Norte de Porto Seguro levam em consideração não apenas os
serviços oferecidos – muito parecidos, por sinal, – mas também a agenda noturna da
cidade. Isto é, se houver, por exemplo, uma festa na Cabana Barramares na quarta-
feira, muito provavelmente os turistas serão levados no mesmo dia pela manhã
àquele espaço, com exceção da empresa que tem sua própria cabana. Isso não se
dá somente pelo fato de agregar mais pessoas em um mesmo local, evitando assim
a sensação de turistas estarem em um lugar com pouco movimento, mas é também
útil para que os visitantes possam conhecer previamente o espaço que irá abrigar a
festa do dia e que, conseqüentemente, se sintam estimulados a comparecer nesses
eventos à noite.
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Em uma semana normal, as idas para as barracas e as festas noturnas
ocorrem da seguinte maneira: na segunda-feira, os turistas são conduzidos ao Axé
Moi, pois, em todas as segundas-feiras, caberia àquela cabana a realização de um
luau ou festa, que, se não é a única realizada naquele dia na cidade, é, contudo,
uma das poucas. Na terça-feira, dia em que ocorrem diversas festas ou mesmo
shows em outros espaços do centro de Porto Seguro, os turistas oriundos dos
pacotes rodoviários são conduzidos à praia de Coroa Vermelha. Na quarta-feira, dia
do luau de Barramares, os turistas são conduzidos a este espaço, ao passo que na
quinta-feira todos retornam a Axé Moi. Na sexta-feira, embora seja um dia “livre”,
segundo uma das guias, as operadoras de transporte rodoviário sugerem a ida a
Barramares, pois, além da festa do dia dar-se em outro ambiente que não uma
cabana, ou seja, na Ilha dos Aquários, os turistas, em geral, têm certa resistência a
retornarem a Tôa-Tôa e a Axé Moi, pois são espaços freqüentados principalmente
por adolescentes.
O serviço de palco nas cabanas é feito por animadores e dançarinos,
envolvidos principalmente pelo som do axé e do pagode. Além disso, são realizados
sorteios de brindes e brincadeiras com os turistas.
Mas, a atração de Axé Moi e Tôa-Tôa que mais parece atrair a curiosidade
dos turistas são dois travestis contratados por essas empresas para animar os
visitantes. Com diversas brincadeiras e piadas de duplo sentido, em que pese o
reforço dado à imagem “do negão” – ambos os travestis são negros –, essas
apresentações e brincadeiras assumem parte da imagem turística privilegiada que
Porto Seguro possui. Para Mesquita Filho (2006), há no turismo da cidade um
“discurso de preferência sexual pelo negro” (p. 115). Costa (2005) considera haver
em Porto Seguro uma imagem que catalisa o “erotismo” (p. 79).
A associação entre a necessidade de certas experiências para “realmente ter
vindo à Bahia” e a imagem da cidade vinculada ao erotismo e à sensualidade fazem
com que a cor da pele negra, sobretudo nessas cabanas, sempre seja vinculada à
dimensão sexual. Ao ter-se em conta ainda a grande quantidade de turistas que
freqüentam esses espaços, além da forma paradisíaca pela qual a cidade é exposta
em parte da mídia turística, não é de causar espanto a seguinte declaração de uma
estudante paulista: “Vir a Porto Seguro e não fazer sexo com um negro nativo é
como ir a Roma e não ver o Papa” (MESQUITA FILHO, 2006, p. 116).
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Este momento, em que se dá ampla primazia ao negro, foi uma das poucas
oportunidades, além das apresentações de capoeira, em que consegui visualizar, de
modo explícito, algo próximo da concepção de “morenidade” de Grunewald (2001, p.
48), um dos fundamentos da baianidade hegemônica em sua tese. Contudo, a
ênfase dada por Mesquita Filho (2006) à cor da pele negra não parece ser mais
intensa do que a presença da cultura indígena na dinâmica turística da região. E
este “espaço” no turismo de Porto Seguro pode ser visto a partir de diferentes
exemplos. O primeiro deles é que uma visita à aldeia de Coroa Vermelha, morada
dos Pataxó, é um passeio oferecido pelas empresas de turismo.
A aldeia de Coroa Vermelha, segundo Grunewald (2001), teve sua
“construção social” realizada em 1972. Desde aquela data, uma marca da aldeia é a
sua atividade comercial visando atingir os turistas que se deslocam para a região (p.
69). Ainda que localizada no município de Santa Cruz de Cabrália, a maior parte dos
turistas que visita a aldeia é oriunda de Porto Seguro até porque não há a venda de
pacotes para o município de Cabrália. Desta forma, só adquirindo o destino “Porto
Seguro” é que o visitante charter oriundo de outras regiões teria condições de ter
contato com os Pataxó.
Além disso, os próprios Pataxó mantêm uma agência de turismo no centro de
Porto Seguro. Essa agência tem como principal produto a venda de passeios para a
reserva da Jaqueira, área localizada no município de Santa Cruz de Cabrália.
Importa ressaltar que as visitas realizadas pelas firmas de turismo rodoviário
na aldeia de Coroa Vermelha dão-se de maneira um tanto quanto aleatórias, pois
não há a inclusão de um guia nestes passeios. Os turistas estariam assim “livres”
para “ir conhecer a aldeia de Coroa Vermelha”, como assinalou uma guia.
Terça-feira, dia 31/07
Na terça-feira, optei por adquirir um dos passeios vendidos pela operadora
paulista, pois julguei ser apropriado para buscar ter maior contato com o grupo de
turistas.O destino escolhido era Trancoso. No dia anterior, a grande intensidade de
atrações em Tôa-Tôa, associada à dispersão dos membros do pacote turístico e ao
desconhecimento mútuo entre os próprios integrantes do grupo, não permitiram que
eu alcançasse êxito em me aproximar deles.
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Deixamos o hotel por volta das oito horas. Havia cerca de trinta pessoas no
veículo, apesar de termos visto, já em Trancoso, outros três veículos da empresa, o
que eleva consideravelmente a quantidade de pessoas que para lá se deslocaram.
Durante todo o trajeto para Trancoso, a guia responsável pelo passeio
esforçou-se muito em entreter os turistas. Suas piadas e brincadeiras, associadas
aos vídeos e músicas, em muito se assemelham à viagem realizada entre Belo
Horizonte e Porto Seguro pela empresa de turismo rodoviária e aos inúmeros
transfers entre hotéis e praia que realizei, sempre acompanhados de músicas,
vídeos e falas dos guias. Durante uma hora, tempo gasto na viagem para Trancoso,
os turistas não puderam ter um momento mais prolongado consigo mesmos, ou
mesmo de contemplação da paisagem sem a intermediação e o direcionamento da
guia. Enfim, quase não houve silêncio. No caso do transporte interestadual, foram
cerca de dezoito horas praticamente ininterruptas entre vídeos (dois filmes e um
vídeo institucional de Porto Seguro), músicas, dinâmicas, piadas e informações
sobre o destino.
Após a visita ao centro histórico de Trancoso, onde pude perceber também o
desinteresse da maioria dos turistas pelos painéis explicativos, fomos encaminhados
novamente para os ônibus com o intuito de percorrer cerca de um quilômetro até a
cabana da praia. A sugestão é que ficássemos na primeira cabana, algo que a
maioria dos turistas fez, visto que aquela grande barraca de praia estava lotada.
Neste passeio, encontrei-me com duas turistas mineiras moradoras de Belo
Horizonte. A primeira vai a Porto Seguro todos os anos, e, nesse, levou a mãe, que
pela primeira vez viajava para a Bahia.
Durante as três horas que ficamos na praia em Trancoso, a turista que
freqüentava a cidade há anos contou-se as suas experiências com o pacote. Ela
reforçou o caráter consumista que a empresa dava às atividades, pois, como viria a
saber posteriormente, a barraca de Trancoso indicada pela guia da operadora, era
de posse da própria empresa.
A questão do consumo e, conseqüentemente, dos gastos é tão central para a
maioria dos turistas que muitos não só reclamam dos altos preços praticados em
Porto Seguro, mas conseguem articular diversas estratégias para minimizar seus
gastos. Uma estratégia muito utilizada é a busca por outras estruturas de serviço –
cabanas de praia, restaurantes etc. – que não seriam aquelas para as quais as
operadoras e agências de turismo nos direcionavam. A turista mineira, ao explicar a
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escolha de outra cabana, se auto-proclamou uma “turista rebelde”, pois contou que
foi aprendendo, ao longo do tempo, e junto com os amigos, a não ficar mais tão
“presa” dentro do pacote.
A segunda estratégia utilizada pelos turistas para minimizar seus gastos é a
compra de produtos em supermercados para consumir ao longo dos passeios. As
pessoas que realizam esse tipo de prática, identificados usualmente como
“farofeiros”, também podem ser vistas ao longo dos pacotes da empresa de turismo
aéreo.
Quarta-feira, dia 01/08
A quarta-feira, do ponto de vista dos turistas, reservava muitas expectativas.
Além de aguardarem com grande ansiedade a saída do Sol, muitos deles
preparavam-se para ir aos diversos passeios oferecidos pela empresa. Desta
maneira, o grupo se dividiu da seguinte forma: boa parte do grupo, como de praxe,
deslocou-se para as cabanas na praia; um segundo grupo foi para Santa Cruz de
Cabrália e uma terceira leva decidiu ir para o Parque Marinho do Recife de Fora,
para onde também fui.
Embarcamos no cais de Porto Seguro, às oito e meia da manhã. Após uma
hora e meia de navegação, chegamos, juntamente com cerca de cem outros turistas,
ao parque municipal localizado em alto mar.
Na ida para o parque marinho, foi que pude dimensionar o quanto a questão
do Sol, percebido sob a insígnia do “bronzeado”, é importante para os turistas. Esse
assunto é sempre recorrente durante as conversas esporádicas entre os viajantes.
Comentários sobre o clima, ao lado da questão dos gastos, parecem ser as duas
maiores preocupações dos visitantes. Certa feita, enquanto aguardava uma van para
realizar um passeio, dois turistas conversavam sobre a possibilidade de uma nova
visita à Cidade Alta. Um dos interlocutores sintetizou bem os sentimentos de muitos
turistas, em especial das mulheres dos dois pacotes que realizei, quanto ao clima:
“Eu não vim aqui para ver esses ‘trem’ não. Vim para pegar Sol. Aqui é praia”.
Uma terceira preocupação que aciona boa parte da atenção dos turistas foi
referente à fotografia. São inúmeros os exemplos capazes de ilustrar o quanto a
materialização da experiência é importante para os viajantes. Em muitos casos, as
ações dos turistas se pautam antes em função das fotos do que de um próprio
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desejo em vivenciar a experiência registrada. Quanto ao peso que as fotografias têm
para os turistas, ocorreu, durante o trajeto para Recife de Fora, um fato curioso. Um
membro de uma família que alugou equipamentos para mergulho disse para outra
pessoa: “Eu fingi que usei, hein?! Não conta para ninguém que eu não usei não.
Mas bate a foto para dizer que eu usei”.
Além de ser a materialização da experiência, a fotografia também é um
símbolo de status. O retorno para casa e a reunião dos amigos e familiares em torno
das poses parece ser algo que incentiva posturas assim no âmbito do turismo.
Fotografias como uma oportunidade de trocas de capital financeiro por capital
simbólico, tal como entende Nery (1998, p. 201).
Mesmo em situações desconfortáveis, como pude perceber durante a
permanência em Recife de Fora, a necessidade de retornar para casa com o registro
é capaz de fazer com quem os turistas suportem alguns revezes. Em dado momento
da visita, uma jovem que gostaria de retornar para casa com uma lembrança de um
ouriço coletado no parque marinho, ao perceber que o animal se movimentava em
suas mãos, exclamou aos brados para o fotógrafo: “Tira, moço! Tira a foto logo que
ele está andando na minha mão!”.
Após o passeio, fomos para Tôa-Tôa, onde, após o término do almoço –
incluso no valor pago pelo passeio –, permanecemos até o horário de partida dos
ônibus e, à noite, apesar de muitos turistas terem ido para a Passarela do Álcool,
preferi não acompanhá-los.
Quinta-feira, dia 02/08
Bem cedo, comecei a ver grande movimentação de vans na frente do hotel.
Notei que muitos turistas do pacote adentravam naqueles veículos, alguns deles
sem qualquer tipo de identificação.
As vans dessas empresas começam a apanhar os hóspedes nos diversos
hotéis da cidade a partir de uma ordem pré-estabelecida: primeiro os hotéis da Orla
Norte e depois os hotéis do Centro. Segundo o guia da empresa de turismo, essas
vans eram a ação dos “piratas”, designação pela qual os funcionários da operadora
paulista rotulam os funcionários das agências de turismo local. E ele dá
prosseguimento a sua explicação acerca da causa para não se contratar esses
agentes locais:
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Aqui em Porto Seguro todo mundo bebe, chapa todas. Então é difícil encontrar um bom profissional. Pedreiros, dentistas... É difícil. E esses piratas aí, não desmerecendo o trabalho deles não porque muito são sérios, às vezes fazem o trabalho [faz o gesto de que estariam embriagados]... E teve recentemente o caso de duas pessoas mortas quando iam pra Trancoso em uma dessas vans.
Pude confirmar, posteriormente, que há uma grande competição entre a
agência paulista e as agências de turismo locais. Se os funcionários da maior
operadora turística do país contestam o profissionalismo desses agentes, como
pude constatar em outras conversas com colaboradores da firma, os donos de
agências têm uma relação permeada de ressalvas e também de dependência com a
empresa.
Aliás, essa relação de “amor e ódio” que as pessoas de Porto Seguro têm
com a operadora de São Paulo pode ser caracterizada quase como um leitmotiv. Se
o grupo Omo-Oiá exalta o papel da CVC em suas atividades, a empresa é
contestada pelos integrantes do Arte Brasil; se os guias da firma são acusados pelos
funcionários do Museu do Descobrimento de não favorecerem a visitação dos
turistas, esses mesmos guias são tidos com apreço pelos donos de barracas de
doces e baianas de acarajé da Cidade Histórica; e se as empresas de turismo de
Porto Seguro rechaçam as acusações que recebem da operadora paulista com
piadas sobre a operadora, para um dos donos da Brisa Turismo, ela é a sua “maior
sócia”.
À noite, juntamente com as turistas mineiras que encontrei em Trancoso,
fomos para a festa da confraternização promovida pela empresa em Tôa-Tôa. Na
entrada, ainda muito afetadas pelos altos preços dos alimentos e bebidas ao qual
foram submetidas em Trancoso, uma das turistas já demonstrava certa irritação ao
assegurar que “logo na entrada já tem coisas para gastar mais dinheiro”.
Durante as duas horas e meia que permaneci naquele local com as turistas
mineiras, ouvi várias queixas de ambas relativas aos altos preços praticados em
Porto Seguro, em especial nos ambientes vinculados à operadora paulista.
Conforme fomos alertados ainda no saguão do hotel, nosso retorno estava
marcado para as onze e meia da noite. Ao sair da cabana de praia, onde ainda
aconteciam shows com animadores de palco, notamos, com alguma surpresa, que
muitos ônibus estavam chegando com turistas. Ao indagarmos a um funcionário da
empresa, o mesmo nos disse que há um rodízio de turistas naquele espaço, não só
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pelo limite de capacidade em Tôa-Tôa, mas também pelo perfil dos turistas
abrigados nos diferentes hotéis da cidade: muitos dos visitantes que chegaram a
partir das nove horas eram compostos por pessoas mais velhas e casais, ao passo
que os grupos que chegaram mais tarde eram, em sua maioria, compostos por
adolescentes.
Sexta-feira, dia 03/08
No antepenúltimo dia do pacote turístico, decidi conhecer como são
realizados os passeios das empresas “piratas”. Minha curiosidade foi suscitada em
face da grande quantidade de críticas endereçadas a esses profissionais pelo guia
da operadora paulista.
Assim, ainda na quinta-feira à tarde, fui até uma agência de turismo reservar
uma vaga para o passeio do dia seguinte. Só havia vagas disponíveis para o
passeio na Praia do Espelho, região que se situa ao sul de Porto Seguro. Paguei
trinta reais e combinei com a atendente em aguardar na portaria do hotel, a partir
das oito horas da manhã do dia seguinte.
Após o café da manhã, fui para o saguão do hotel e por lá permaneci pouco
tempo, pois o veículo da agência rapidamente chegou. Depois de coletar os demais
turistas, o veículo deixou o centro de Porto Seguro com outros nove visitantes.
A visita, que dura cerca de sete horas, foi rica para confirmar algumas
questões do “cotidiano” dos visitantes. Duas turistas de Curitiba, ao longo de nossas
conversas, retomaram duas das principais questões que preocupam um turista em
Porto Seguro: a questão dos altos preços (consumo) e a ausência do Sol (clima).
Juliana, estudante de economia, e Patrícia, geógrafa, ao serem indagadas por
mim sobre o que tinham achado da cidade, afirmaram que “a cidade [é] muito cara” e
que, além disso, deram “azar no tempo”. O descontentamento das curitibanas era
intensificado ainda pelo sentimento que ambas nutriam de se sentirem exploradas
pelas pessoas de Porto Seguro porque eram muito brancas. Para Juliana: “coitada
[da Patrícia], né? Loira e branca desse jeito”. Além disso, nas palavras da mesma
turista: “já pensam logo que [trata-se] de uma turista com muito dinheiro no bolso...
Pôxa, nós trabalhamos! Não é fácil nosso dinheiro não!”.
Mais uma vez, assim como viria a acontecer posteriormente no outro pacote
turístico, me recusei a ir à festa na Ilha dos Aquários. Desta forma, passei o restante
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da noite caminhando pela Passarela do Álcool e disposto a dormir “cedo” para o
último passeio da semana a ser realizado no dia seguinte.
Sábado, dia 04/08
No penúltimo dia da viagem, durante o café, um grupo composto de cinco
turistas decidiu ir à Praia de Coroa Vermelha, afinal de contas, as perspectivas eram
boas para um dia com tempo aberto.
Após nos valermos de um ônibus de linha regular, nos acomodamos em uma
das praias de Coroa Vermelha, local já localizado dentro dos limites de Santa Cruz
de Cabrália.
Apesar de Porto Seguro contemplar várias praias conhecidas – Mundaí e
Taperapuan –, parece unânime que a melhor praia para se ir, segundo os vários
turistas com quem tive contato, é a de Coroa Vermelha. Tanto é que nos dois
pacotes turísticos que realizei, os grupos de visitantes com quem tinha mais contato
sempre decidiram retornar no “dia livre” à Coroa Vermelha. Em termos gerais, os
motivos alegados pelos turistas em favor de Coroa Vermelha podem ser resumidos
da seguinte forma: i) preços mais baixos; ii) praia esteticamente mais bonita; iii)
presença da aldeia indígena.
Como já mencionado, a questão dos indígenas é algo relativamente bem
acionado pela mídia turística, sobretudo nos guias de turismo da região, como um
dos diferenciais da cidade. Essa visibilidade quanto aos atrativos turísticos de cunho
indígena pode ser vista como superior àquela percebida por Grunewald (2001, p. 48)
há alguns anos, fato possivelmente decorrente da ampla notoriedade alcançada
pelos Pataxó após as festividades dos “500 anos do Brasil”, além da busca
empreendida pelo trade turístico da região por novos atrativos turísticos.
Importa destacar que as experiências que tive com turistas quando em
contato com indígenas sempre foi muito peculiar, pois a maior parte dos primeiros
detêm uma visão quando não romanceada, pelo menos estereotipada sobre os
ameríndios. Um grupo de turistas, por exemplo, se fantasiou de “índios” e começou a
dançar e a cantar como “supostos índios fariam”. Essa prática também foi
constatada durante o desfile do bloco “Os Tupinambá” quando um grupo de turistas
se apropriou do tambor de um membro – devidamente fantasiado – e começou a
dançar e gritar na Praça dos Pataxós, imaginando que dançavam como os índios
142
mesmo. O integrante do bloco, atônito com a cena, pois o desfile já havia terminado,
praticamente não se moveu, sobretudo ao ser alvo de uma bateria de fotos
realizadas pelos turistas.
No início da noite, quando chegamos ao hotel, fui para a Passarela do Álcool.
Depois, demos início a uma das últimas etapas existentes em um pacote de viagem:
a troca de endereços, telefones e e-mails. Esse mesmo “ritual” precedeu as
despedidas de todas as pessoas com quem tive contato em Porto Seguro ao longo
do período de campo.
Domingo, dia 05/08. O retorno para casa
O horário de nosso check-out era meio-dia. A partir das onze horas, um
número cada vez maior de turistas posicionavam-se no saguão do hotel aguardando
o ônibus da operadora de turismo que, no horário marcado, deu início ao embarque
rumo ao Aeroporto Internacional de Porto Seguro.
Ao iniciar os procedimentos para a minha saída, constatei que os mesmos
procedimentos padronizados para a chegada de um novo grupo já haviam sido
iniciados. E, embora tenha sido uma experiência única, para cada um de nós –
turistas –, o mesmo não parece se dar para os intermediários turísticos, pois que,
sobre o aviso de nossa programação semanal fixado na recepção, já se tem a
fixação de novos avisos referentes aos novos grupos que estão chegando, e que
sequer chegaremos a ver...
A chegada ao aeroporto de Porto Seguro foi tumultuada, pois o tamanho do
mesmo já não comporta o fluxo de turistas que por lá transitam aos finais de
semana.
E, da mesma forma onde tudo começou, os turistas chegam e se misturam a
outra multidão de viajantes anônimos...
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação buscou investigar a maneira pela qual o trade turístico da
Bahia, em especial o setor de turismo de Porto Seguro, segundo destino turístico do
estado, se faz valer dos diferentes elementos constituintes da cidade com o intuito
de apresentar uma imagem turística privilegiada do município formada
principalmente pelos aspectos naturais e pela dimensão festiva.
A análise foi empreendida tendo como eixos a questão da baianidade, do
turismo e dos turistas, tomando a perspectiva dos visitantes como um prisma,
mediante o qual se buscou apreender quais aspectos são evidenciados para os
mesmos nos pacotes de viagem destinados a Porto Seguro.
Ao longo do primeiro capítulo, buscou-se apresentar o percurso efetivado pela
noção de baianidade, apresentado pelo trade turístico da Bahia como uma
representação sintética e positiva do que é percebido como a “cultura baiana”.
Assim, evocou-se a gênese dessa idéia de uma “cultura baiana típica”, as mudanças
e incorporações sofridas por essa “singularidade identitária” e apresentou-se ainda
diversos enfoques contidos em diferentes estudos que versam sobre o tema.
No primeiro momento, optou-se por reconstituir os suportes estético-artísticos,
que, ao serem agenciados posteriormente, viriam a se tornar os ícones da
baianidade, em especial obras literárias, músicas e manifestações iconográficas. Em
um segundo momento, demonstrou-se que, a partir da década de 1960, tem-se
início um amplo projeto capitaneado pelo Governo Federal e por políticos baianos de
“revalorizar” a “cultura baiana”. Este procedimento retornou às matrizes estéticas
anteriormente construídas para demonstrar a existência de uma “especificidade
cultural” da Bahia. Foram apresentadas ainda como essas iniciativas eram parte
constituinte de um projeto mais amplo em voga desde o processo de independência
do Brasil: a construção da brasilidade, ou seja, de uma “identidade nacional”. A
construção de uma “cultura baiana” deu-se a partir do enquadramento da cultura
afro-brasileira, pois as manifestações culturais provenientes da diáspora africana
foram, gradativamente, transformado-se em algo “misturado”.
Também foi apresentado como o turismo, na segunda metade do século XX,
não só favoreceu o discurso de “valorização da cultura baiana”, como se beneficiou
amplamente dela, pois, a partir de então, o trade turístico da Bahia passou a acionar
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essa “identidade cultural baiana” como o principal diferencial de mercado para o
exercício do turismo no estado.
Evidenciou-se ao longo do trabalho que a existência de objetivos político-
ideológicos e econômicos de parte da elite baiana foram decisivos para a ênfase em
discursos e representações acerca da baianidade, embora se tenha constatado, no
início do primeiro capítulo, que a cultura passa, na contemporaneidade, a ser usada
como um recurso econômico e que toda imagem turística resulta de um
seccionamento, agenciamento e potencialização de dadas manifestações culturais.
Entretanto, formatar uma imagem turística da Bahia não foi o único objetivo dessas
práticas. Aqui, elas fazem parte de um projeto que buscava, por meio da edificação e
manutenção de imagens de uma “Bahia arquetípica”, alcançar uma identificação
coletiva do povo, com vistas a apaziguar uma realidade social complexa e
contraditória e, ao mesmo tempo, garantir que os setores políticos responsáveis por
esta ação permanecessem no poder.
Naquilo que diz respeito à cidade de Porto Seguro, importa destacar que a
mesma se viu fora de todo esse debate e ações acerca da baianidade até muito
recentemente. Tal como foi visto, houve em Porto Seguro, ao longo de praticamente
toda a sua história, uma constante situação de marasmo econômico e isolamento,
chegando, em muitas ocasiões, a uma situação de intensa pobreza. A cidade só
passaria a receber maior notoriedade, gozando assim de certa posição de destaque
na economia baiana, após os anos de 1970. Nesse momento, o turismo passou a
ser tido como a saída para a delicada situação econômica vivenciada pela cidade.
O segundo capítulo demonstrou que o turismo, ao longo das décadas de 1980
e 90, se consolidou como a principal atividade econômica de Porto Seguro.
Entretanto, o grande fluxo de visitantes e a crescente entrada de divisas no
município não só não reverteram o quadro de pobreza existente até então, mas
colaboraram para a manutenção de uma grave desigualdade socioeconômica
vigente na cidade.
O setor público, embora tenha dotado a cidade de ampla infra-estrutura de
apoio à prática do turismo de massa, em especial por meio de programas federais
como o Prodetur-NE, não conseguiu, na mesma proporção, atender às demandas da
população. Em vez disso, o trade turístico vinculado a Porto Seguro continua a
sustentar expectativas de um aumento do fluxo de turistas para a cidade, apesar de
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quase 40 mil porto-segurenses viverem em condições precárias em uma área
marginal da cidade, o Baianão.
Também pôde ser constatado que, atualmente, boa parte das iniciativas
governamentais referentes a Porto Seguro, mormente as medidas oriundas da
esfera estadual, primam por privilegiar metas e estatísticas referentes ao aumento
de turistas e ao crescimento do fluxo de divisas e não há preocupações quanto à
melhoria das condições de vida da população local.
O último capítulo deste trabalho apresentou uma descrição etnográfica de um
pacote de viagem a Porto Seguro. O principal objetivo desse empreendimento foi, a
partir do contato com os turistas, apreender quais manifestações culturais, discursos
e representações são privilegiados por parte do setor turístico de Porto Seguro e a
forma como os turistas percebem tais investimentos.
Antes, foi realizada uma breve análise sobre as tipologias de turista
existentes em alguns estudos da área. Foi dada ainda especial atenção aos
trabalhos direcionados a refletir sobre o turismo de massa e o turista. Toda essa
reflexão procurou suspender pré-juízos e estereótipos relacionados ao “turista de
massa”, sobretudo ao questionar as características usualmente atribuídas ao turista
charter: seres passivos, manipulados e inconscientes. Além disso, o debate sobre o
turismo de massa fez-se necessário para balizar o leitor sobre os conceitos e
aspectos constituintes desse tipo de turismo, normalmente identificado com a prática
existente em Porto Seguro.
Em outro momento, demonstrou-se como os vários mediadores de viagem,
com especial destaque para os agentes de viagem e os guias, são responsáveis por
favorecer a cristalização de certas características de Porto Seguro. Até porque,
como se defendeu ao longo do capítulo, as imagens, discursos e representações
apresentadas por esses mediadores em relação à cidade parecem ser uma síntese
dos elementos privilegiados pelo trade turístico porto-segurense para a construção
da imagem turística do município. Os itens evidenciados por esses mediadores
seriam os aspectos naturais e as festas, nas quais, implicitamente, está inserida a
questão da sensualidade, seja por parte das atrações convidadas para os eventos, e
que catalisam essa questão, seja por parte das expectativas de muitos turistas que
têm na suposta permissividade tida como “natural” em Porto Seguro uma das
atrações para a escolha desse destino turístico.
146
Descobriu-se ainda, durante a realização da etnografia, que não só existem
manifestações culturais não agenciadas pelo setor de turismo, bem como muitas
atrações turísticas de cunho histórico-cultural são relegadas a uma posição
secundária tanto por parte do setor de turismo, quanto por parte dos próprios
visitantes.
Após a realização dessa recuperação dos principais pontos debatidos em
cada capítulo, apresentando ao leitor o percurso geral realizado ao longo desta
reflexão, passamos agora para o momento de evidenciar as principais contribuições
desta análise. Ainda que retomemos alguns pontos anteriormente apresentados
nesta seção, ressalta-se que este movimento é necessário para, assim, vincular
pressupostos teóricos com o trabalho de campo, bem como salientar as conclusões
alcançadas durante esta pesquisa.
A primeira contribuição que este trabalho procura ressaltar é referente ao fato
de descartar concepções teóricas e práticas vigentes que endossam a existência de
uma “cultura típica baiana”. Muito menos ainda, teses que contemplam a idéia de
que há uma “singularidade da Cidade da Bahia” (RUBIM apud MOURA, 2001, p. 9).
A presente pesquisa demonstrou ser incompatível a adoção da categoria
baianidade para sintetizar a cultura soteropolitana, além de ser menos indicada
ainda para servir como ícone da cultura no Estado, até porque esta não poderia em
nenhuma circunstância ser utilizada no singular, mas sempre no plural.
No caso de Salvador, demonstramos que a vinculação da baianidade à
imagem turística da cidade fez parte de um processo político-ideológico levado a
cabo por setores políticos ligados ao ex-senador Antônio Carlos Magalhães. Além
disso, foi uma ação endossada pelo trade turístico da Bahia que visava transformar
essa imagem-síntese da cultura baiana no principal diferencial turístico da cidade, ou
seja, houve claras motivações econômicas.
Esse processo de usufruto da baianidade, como já adiantamos, esquadrinha
aquilo que seja o “baiano” contribuindo para a criação e retroalimentação de clichês.
Esse entendimento de cultura que favorece a formação de estereótipos estaria
imerso em um paradigma caro ao debate epistemológico sobre o tema, o qual é
proveniente da idéia de cultura como o conjunto de hábitos, costumes, tradições,
crenças e comportamentos dos indivíduos. Ou seja, é tudo aquilo que torna o “outro”
diferente e que também faz com que os homens se sintam como semelhantes
quando imersos em seu próprio universo cultural. Esse enfoque sobre a cultura
147
prima pela reificação e pela demarcação de diferenças, perspectiva essa que vai de
encontro ao debate conceitual do que seja cultura, realizado na introdução deste
trabalho.
Não se quer dizer aqui que não há características que possam ser atribuídas
aos “baianos”, entendidos aqui como habitantes da Bahia, não como representação
de uma população. Antes, em primeiro lugar, se indaga: existe mesmo um “baiano”?
E quem pode dizer aquilo que um “baiano” é ou deixa de ser? E será que todos os
“baianos” apresentariam as mesmas características?
O que se pretende mostrar é que da mesma forma que a preguiça é atribuída
aos “baianos”, ela também pode ser uma característica de um habitante do Rio de
Janeiro tanto quanto de São Paulo. E que há ritmos musicais executados em Minas
Gerais, ou Pernambuco, tão animados quanto os existentes em Porto Seguro. Em
suma, não é a divisão geopolítica do Brasil, baseada em Estados, que dá as
características de cada pessoa ou de dada sociedade. Não é a fronteira de uma
região que naturaliza a cultura dos sujeitos, diferenciado-os entre si. Até porque,
além das fronteiras geopolíticas – cidades, estados e regiões – há outras “áreas”
com suas respectivas fronteiras, quais sejam: da vizinhança, dos grupos
profissionais e das demais opções de sociabilidade.
Essa veiculação da baianidade como um “modo de se viver”, onde está
implícita a homogeneidade apresentada para o turismo na Bahia, ou em qualquer
município que seja, é contraditória com os postulados vigentes na própria teoria
turística. É o que nos diz Swarbrooke (2000) ao destacar que não passa de um mito
a idéia de que existe um consenso total em uma comunidade, qualquer que seja ela,
na medida em que há muitos grupos internos e que se movimentem a partir de
interesses conflitantes entre si (p. 63).
Essa atribuição de comportamentos ou características “inerentes” a uma dada
sociedade ou cultura, algo muitas vezes feito de maneira arbitrária e baseada em
estereótipos, dificulta não só o reconhecimento de outras características do grupo,
como também dificulta, no caso do turismo, que o visitante possa expandir seu
conhecimento e compreensão acerca do “outro”. “Outro” que, como vimos no caso
de Porto Seguro, muitas vezes está dado de antemão.
Assim, quando essa categoria é estendida a outras regiões do Estado, como,
por exemplo, o Extremo-Sul da Bahia, onde está situado Porto Seguro, ela é menos
indicada ainda para servir de ícone da cultura na cidade. Isto se dá por dois motivos.
148
O primeiro motivo diz respeito à própria insuficiência semântica e simbólica da
categoria em dar conta daquilo que seja a “cultura baiana”. Até porque faz mais
sentido pensar em diversas formas de cultura existentes dentro da Bahia e que
podem conter traços em nada identificados com a sensualidade, a culinária
considerada típica, o axé music, o caráter festivo das pessoas, a malemolência ou o
sincretismo religioso, atributos designados não só, mas principalmente, pelo trade
turístico da Bahia, como capazes de resumir o que seria a “cultura baiana”. E um
habitante de Porto Seguro que não comungue com nenhuma dessas práticas não é
menos baiano por causa disso.
Em segundo lugar, considera-se, a partir do trabalho de campo em Porto
Seguro, que há formas muito diferentes do turismo se articular na Bahia. Por
exemplo: o trade turístico de Porto Seguro potencializa muito mais imagens de
atrativos naturais do que do patrimônio cultural oriundo da população afro-brasileira.
Enfatiza muito mais a dimensão festiva do que o sincretismo religioso; a
sensualidade em detrimento da malemolência. Aliás, elementos como o sincretismo
religioso, a morenidade e a própria história parecem ser muito menos atrativos aos
visitantes dos pacotes turísticos que realizei do que os shows, as praias e as
bebidas. E os turistas com os quais tive contato não pareceram se sentir “menos
imersos” na “Bahia” do que se estivessem em Salvador. Aliás, foram raras as vezes
em que os turistas fizeram comparações de Porto Seguro com a capital do Estado.
Em geral, ficaram satisfeitos por estarem na Bahia, ou melhor, em uma parte dela.
Um último problema detectado na questão da baianidade é referente ao
próprio processo que culminou nessa representação. Esta é resultado também de
arranjos e costuras envolvendo a descontextualização de manifestações próprias da
cultura afro-brasileira, como a capoeira e o candomblé, as quais foram
transmutadas, após várias ações principalmente do poder público, em patrimônio da
“cultura baiana”.
Algo que nos chama a atenção, e que de certo modo atende a um dos
objetivos da pesquisa, é a existência de manifestações culturais não agenciadas
pelo trade turístico. Os Museus da Casa Colonial e o Museu de Arte Sacra, por
exemplo, recebem um tratamento menos considerável por parte de guias, agentes
de viagem e folhetos turísticos, do que o próprio Museu do Descobrimento.
Destaque também para manifestações que podemos chamar propriamente de
149
populares, como os muitos blocos tradicionais de carnaval, o que demonstra que
parte dos porto-segurenses se articula independentemente do setor turístico.
A despeito dessas manifestações não agenciadas pelo setor turístico, é
preciso evocar também aquelas em que existe uma relação com os visitantes.
Reforçamos aqui que manifestações culturais como as apresentações de capoeira,
intimamente ligadas à dinâmica turística, não seriam por isso menos autênticas, ou
mesmo encenações para os turistas verem. Ainda que uma das motivações dos
capoeiristas seja expor “a cultura” para os viajantes, todos os componentes dos
grupos de capoeira ressaltam que gostam dessa prática, ou seja, são capoeiristas
também em outros momentos além daqueles das exibições para os turistas.
Aproveitando o ensejo, pergunta-se: e seria errado caso os capoeiristas
decidissem se apresentar só para os turistas? Seria algo “menos autêntico”?
Como já debatemos a questão da autenticidade neste trabalho, deseja-se
agora apenas reforçar quais acontecimentos dessa natureza – manifestações
culturais exibidas para visitantes – se assemelham muito mais com uma “cultura do
encontro” (SANTANA, 1997). Ou seja, um momento resultante de formas adaptadas
de uma “cultura matriz” (p. 62), algo realizado tanto por anfitriões quanto por
residentes e que demarca os termos pelos quais a interação entre ambos se dá. Em
suma, um acontecimento nem mais falso nem mais verdadeiro do que outros, mas,
antes disso, um momento diferenciado propiciado pela atividade turística.
A partir da constatação das preferências dos turistas foi possível, em termos
gerais, mapear os trajetos que os turistas de pacote turístico realizam em Porto
Seguro.
As rotas dos turistas não são caminhos únicos, muito menos demarcados
sistematicamente. Antes disso, o quê chama a atenção é a variedade de
combinações possíveis, embora os elementos da combinação – os atrativos – sejam
os mesmos. Há uma instigante lógica nos movimentos, ações e preferências dos
turistas que visitam Porto Seguro. E, conseqüentemente, há um investimento de
esforço proporcional por parte dos visitantes em face de seus desejos.
Talvez o único ponto permanente dentro das várias rotas possíveis dos
turistas de pacote de viagem, nosso alvo no presente estudo, é a visita à Cidade
Histórica, passeio incluso no city-tour, deslocamento realizado no domingo ou na
segunda-feira.
150
A partir daí, as combinações possíveis, isto é, os locais visitados em
diferentes dias podem assumir várias possibilidades, embora sempre baseadas em
aspectos operacionais das agências e operadoras de viagem, tal como vimos. Há a
busca por agrupar a maior quantidade possível de turistas nos mesmos passeios.
Mas, de maneira geral, o turista charter, que se desloca até Porto Seguro, guia-se
das maneiras descritas a seguir.
Essas rotas são baseadas em características próprias de cada turista: mais
ou menos recursos monetários; relações anteriormente estabelecidas com a cidade
ou mesmo com operadoras turísticas, pois experiências passadas implicam estar
mais ou menos aberto para relações no presente; profissão e objetivo da viagem... O
importante é que “não existe um único olhar de turista enquanto tal” (URRY, 1996, p.
16). Por mais que os turistas possam ser agrupados em categorias e tipologias, e
ainda que apresentem certos padrões de comportamento, há sempre uma dimensão
individual em cada turista. Um católico do interior de Minas Gerais não interpretará o
Museu Sacro da mesma maneira que um evangélico paulista, ainda que estejam
juntos durante a visita. Um historiador apreenderá detalhes outros da Cidade
Histórica em relação a um botânico. Antes de serem turistas, há histórias de vida,
valores e vivências muito singulares por trás de cada sujeito que,
momentaneamente, encarna este papel.
O resgate dessa dimensão individual do visitante faz-se necessário para
evitar que as perspectivas particulares desses turistas sejam abafadas por uma
visão de “longe e de fora” que considera um grupo de visitantes como uma massa
amorfa, homogênea e passível de manipulação.
É claro que, como vimos, o olhar do turista é guiado para dados símbolos e
representações. No caso da preferência dos turistas de pacotes de turismo que
visitam Porto Seguro por causa das “belezas naturais”, parece se inserir em uma
estratégia de oferta turística que retoma parte da discussão sobre a motivação para
viajar defendida por este trabalho. Motivação essa que, como salientamos, se calca
no paradigma binário de usual/ordinário x incomum/extraordinário. Desta forma, ao
preconizar que a oferta turística se embase sempre em “imagens e promessas
excitantes de ruptura com o ritmo de vida cotidiano”, Santana relembra que essas
mesmas imagens e promessas capazes de alcançar um potencial turista de uma
grande cidade são, em geral, marcadas pela idéia de “ruptura com o ritmo de vida
cotidiano” (1997, p. 63).
151
Posto isto, faz sentido considerar, a partir de então, a ampla notoriedade dada
à dimensão paradisíaca – descanso – e festiva – lúdica – da imagem turística de
Porto Seguro. O trade turístico vinculado a Porto Seguro visa, com essa estratégia,
reafirmar uma imagem do destino forte o bastante para “romper” com o cotidiano dos
turistas em potencial, em que este é marcado pela rotina e permeado pelo trabalho.
Assim, realçar o oposto é uma estratégia essencial para o processo de sedução do
turista que vai para Porto Seguro. Neste apelo, visualizamos novamente o modelo
binário de Graburn (1989), especialmente ao se ter em mente que a ênfase dada, no
caso dos turistas, à dimensão recreativa do turismo de Porto Seguro se insere antes
em uma busca de ruptura com o cotidiano/trabalho do que em uma massa
manipulada por ideologias, ou mesmo pela publicidade turística, embora essa última
se faça valer do paradigma da ruptura com o mundo usual dos sujeitos.
A potencialização de dadas imagens de Porto Seguro diz respeito ao papel
desempenhado pelos mediadores de viagem, em especial os agentes de viagem e
os guias turísticos de Porto Seguro. Ambos procuram reforçar o grande
conhecimento que possuem sobre os locais que indicam, buscando, assim, legitimar
suas posições perante os turistas. A posição hegemônica desses mediadores é tal
que podem assumir, no caso dos agentes de viagem, a função de intermediários
entre o mundo ordinário e o extraordinário, como nos lembra Nery (1998, p. 212). No
caso dos guias, eles não só centralizam para si todas as atenções dos turistas, mas
se fazem valer de certo poder que a posição lhes dá para legitimar experiências
como “autênticas”. Ou seja, referendam o discurso que “para estar na Bahia, é
necessário comprar tal bem, ou ir a tal lugar”. No fundo, atuam como legitimadores
de status.
Também chama a atenção a questão do consumo. Como vimos, a Passarela
do Álcool sintetiza uma preocupação capital para a maior parte dos turistas: a
compra de produtos. E o consumo contempla, inclusive, a dimensão humana. Os
“nativos” são vistos, em muitos casos, como algo para se usufruir, seja para “ficar”
no caso de mulheres e homens, seja para entreter os turistas, a exemplo dos
travestis que se apresentam em Tôa-Tôa e Axé Moi. Ressalta-se que ao tratarmos
de consumo e sua relação com sujeitos, pensamos muito mais que a atração dessas
pessoas paira no signo que elas carregam, do que propriamente em seus corpos,
tidos como objetos. As imagens potencializadas da cidade privilegiam a questão do
152
consumo, seja do espaço – belezas naturais –, seja da cultura, fomentando, assim, a
construção de estereótipos de parte dos visitantes em relação aos porto-segurenses.
E, por último, embora produtos, imagens e discursos que exaltassem as
“belezas da Bahia” para os turistas tenham sido encontrados em Porto Seguro, a
pesquisa demonstrou que o recurso a categorias como “baianidade” ou “identidade
baiana” não é útil para explicar as relações estabelecidas a partir do turismo na
cidade, seja com relação aos turistas, seja com relação aos moradores.
Como vimos, ao longo de todo este trabalho, é problemático esquadrinhar
Porto Seguro como mais uma arena da “cultura tipicamente baiana”, bem como sua
heterogênea participação. Há uma junção de várias culturas e diferentes imagens,
embora resumidas em poucas representações para os turistas. E, até para os
turistas, Porto Seguro pode ser o “paraíso”, “o lugar do agito”, ou mesmo ser o local
tão especial de uma “lua-de-mel”. A imagem de uma cidade baiana se confunde
assim com outros elementos subjetivos e individuais dos turistas, isto é, com seu
imaginário. Há uma imagem paradisíaca privilegiada, mas há outras que sequer
podemos vislumbrar. “Partir de férias é um acontecimento dotado de particular
significado para cada sujeito”, como nos lembra Moesch (2002, p. 15).
153
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161
ANEXO
162
Anexo A – Mapa de pontos estratégicos no centro de Porto Seguro durante o trabalho de campo.
Adaptado de: Secretaria de turismo de Porto Seguro (Setur).
163
Anexo B – Mapa de pontos estratégicos na orla de Porto Seguro durante o trabalho de campo.
Adaptado de: Secretaria de turismo de Porto Seguro (Setur).
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