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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
Ronalde Monezzi Filho
“A IMPROVISAÇÃO NA GAFIEIRA: UMA SÍNTESE BRASILEIRA NO
SAXOFONE DE PAULO MOURA”.
CAMPINAS
2018
Ronalde Monezzi Filho
“A IMPROVISAÇÃO NA GAFIEIRA: UMA SÍNTESE BRASILEIRA NO
SAXOFONE DE PAULO MOURA”.
Dissertação apresentada ao Instituto de Artes da
Universidade Estadual de Campinas como parte
dos requisitos exigidos para a obtenção do título
de Mestre em Música, na área de Música:
Teoria, Criação e Prática.
Orientador Prof. Dr. Manuel Silveira Falleiros
Este exemplar corresponde à versão final de
Dissertação defendida pelo aluno Ronalde
Monezzi Filho e orientado pelo Prof. Dr.
Manuel Silveira Falleiros.
Campinas
2018
BANCA EXAMINADORA DA DEFESA DE MESTRADO
RONALDE MONEZZI FILHO
ORIENTADOR: PROF. DR. MANUEL SILVEIRA FALLEIROS
MEMBROS:
1. PROF. DR. MANUEL SILVEIRA FALLEIROS
2. PROF. DR. GILSON UEHARA GIMENES ANTUNES
3. PROF. DR. BRUNO ROSAS MANGUEIRA
Programa de Pós-Graduação em Música do Instituto de Artes da Universidade Estadual de
Campinas.
A Ata da defesa com as respectivas assinaturas dos membros da banca examinadora encontra-
se no SIGA/Sistema de Fluxo de Dissertação/Tese e na Secretaria do Programa da Unidade.
DATA DA DEFESA: 31.08.2018
Dedicado à memória de Paulo Moura
AGRADECIMENTOS
A Manuel Falleiros pela orientação zelosa, intensa e reflexiva.
Aos professores Doutores José Alexandre Carvalho e Hermilson Nascimento pelas
importantes observações no Exame de Qualificação.
A Halina Grynberg e Cliff Korman pelas entrevistas valiosas.
A Daniela Spielmann pela atenção e cordialidade.
A Juliana Palermo pela revisão minuciosa.
Ao meu pai, Ronalde Monezzi (in memoriam), por toda sua dedicação.
A minha mãe, Ivany Cerrini Monezzi, pelo carinho e cuidado.
A minha irmã, Carolina Monezzi, pela garra e perseverança.
A minha companheira, Jamila Cruzado, pelo amor, paciência e apoio incondicional.
A todos que contribuíram de alguma forma ao longo deste trabalho.
A CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior que
financiou este trabalho através de bolsa de estudos concedida entre fevereiro de
2017 e agosto de 2018.
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo analisar o desenvolvimento da improvisação de
Paulo Moura na música brasileira. No intuito de compreendermos o seu processo criativo
através da análise dos solos transcritos, buscamos subsídios a partir da contextualização
biográfica de Moura, traçando um panorama referente a sua formação musical, suas
experiências profissionais, assim como a caracterização dos estilos musicais que o
influenciaram ao longo da sua carreira. Através das transcrições e análises de cinco fonogramas
selecionados a partir de sua cronologia discográfica, apresentamos os aspectos musicais
relevantes à prática da improvisação de Moura em cada uma das cinco transcrições, sendo que
na última tratamos dos elementos confluentes que definem a originalidade da concepção
musical de Moura como músico solista improvisador na gafieira.
Palavras-chave: Improvisação. Música Brasileira. Processo Criativo. Saxofone. Gafieira.
ABSTRACT
This research aimed to analyze the development of Paulo Moura 's improvisation
in Brazilian music. In order to understand his creative process through the analysis of the
transcribed solos, we sought aid in a biographical contextualization of Moura, drawing a
panorama concerning his musical formation, his professional experiences, as well as the
characterization of the musical styles that influenced him throughout his career. Through the
transcriptions and analyzes of five phonograms selected from his record chronology, we present
the musical aspects relevant to the improvisation practice of this musician in each of the five
transcriptions, the last one dealing with the confluent elements that define the originality of the
musical conception of Moura as improvising solo musician in the gafieira.
Keywords: Improvisation. Brazilian Music. Creative Process. Saxophone. Gafieira.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Paulo Moura Infância ................................................................................................................. 16
Figura 2 - Paulo Moura toca clarinete ......................................................................................................... 18
Figura 3 - Família Moura............................................................................................................................. 21
Figura 4 - Paulo Moura toca sax-alto .......................................................................................................... 29
Figura 5 - Paulo Moura rádio Nacional ...................................................................................................... 34
Figura 6 - Paulo Moura com o grupo Bossa Rio.......................................................................................... 38
Figura 7 - Paulo Moura Montreux 1992 ...................................................................................................... 47
Figura 8 - trecho comparativo “Samba de Orfeu” (compassos 1, 2 e 3) ..................................................... 71
Figura 9 - trecho comparativo “Samba de Orfeu” (compassos 4, 5, 6 e 7) ................................................. 72
Figura 10 - trecho comparativo “Samba de Orfeu “ (compassos 8, 9, 10, 11 e 12) .................................... 73
Figura 11 - trecho comparativo “Samba de Orfeu” (compassos 13,14 e 15) .............................................. 74
Figura 12 - exemplo 101 e 102 - COKER, 1991, p. 19 ................................................................................. 75
Figura 13 - exemplo 34 - COKER, 1991, p. 8 .............................................................................................. 76
Figura 14 - ilustração - COKER, 1991, p. 61 ............................................................................................... 76
Figura 15 - exemplos 211 e 212 - COKER, 1991, p. 53 ............................................................................... 77
Figura 16 - exemplo 31 - COKER, 1991, p. 9 .............................................................................................. 77
Figura 17 - trecho “Yardbird suite” (compassos 1, 2, 3, 4, 5 e 6) ............................................................... 78
Figura 18 - trecho “Yardbird suite” (compassos 7, 8, 9 e 10) ..................................................................... 78
Figura 19 - trecho “Yardbird suite” (compassos 10, 11, 12, 13 e 14) ......................................................... 79
Figura 20 - trecho “Yardbird suite” (compassos 15, 16 e 17) ..................................................................... 79
Figura 21 - trecho “Yardbird suite” (compassos 23, 24 e 25) ..................................................................... 80
Figura 22 - trecho “Yardbird suite” (compassos 29, 30, 31, 32e 33) .......................................................... 80
Figura 23 - trecho “Yardbird suite” (compassos 34, 35, 36, 37 e 38) ......................................................... 81
Figura 24 - trecho “Yardbird suite” (compassos 38, 39, 40 e 41) ............................................................... 81
Figura 25 - trecho “Yardbird suite” (compassos 42, 43, 44, 45, 46 e 47) ................................................... 82
Figura 26 - trecho “Yardbird suite” (compassos 48, 49 e 50) ..................................................................... 82
Figura 27 - trecho “Yardbird suite” (compassos 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56) ............................................. 82
Figura 28 - trecho “Yardbird suite” (compassos 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62 e 63) ....................................... 83
Figura 29 - Síncopa característica ............................................................................................................... 85
Figura 30 - Padrões rítmicos do choro ........................................................................................................ 85
Figura 31 - trecho da composição “Segura ele” (Pixinguinha e Benedito Lacerda) .................................. 85
Figura 32 - trecho da composição “Cheguei” (Pixinguinha e Benedito Lacerda) ...................................... 86
Figura 33 - trecho “Se algum dia” (compassos 1, 2, 3, 4 e 5) ..................................................................... 86
Figura 34 - trecho inicial da parte A da composição “Gargalhada” (Pixinguinha) ................................... 87
Figura 35 - trecho inicial da parte B da composição “Gargalhada” (Pixinguinha) ................................... 87
Figura 36 - trecho “Se algum dia” (compassos 6, 7, 8 e 9) ......................................................................... 87
Figura 37 - exemplos de articulações do choro (Sève (2009, p. 15) ............................................................ 87
Figura 38 - trecho “Se algum dia” (compassos 10, 11 e 12) ....................................................................... 88
Figura 39 - trecho da composição “Cheguei” (Pixinguinha e Benedito Lacerda) ...................................... 88
Figura 40 - trecho da composição “Choro de gafieira” (Pixinguinha) ....................................................... 88
Figura 41 - trecho da composição “Concerto de bateria” (Pixinguinha) ................................................... 88
Figura 42 - trecho “Se algum dia” (compassos 12, 13, 14, 15 e 16) ........................................................... 89
Figura 43 - trecho “Se algum dia” (compassos 17, 18, 19, 20 e 21) ........................................................... 90
Figura 44 - trecho “Se algum dia” (compassos 22, 23 e 24) ....................................................................... 91
Figura 45 - trecho “Se algum dia” (compassos 25, 26, 27, 28, 29, 30 e 31) ............................................... 91
Figura 46 - trecho da composição “Brasileirinho” (Waldyr Azevedo) ........................................................ 91
Figura 47 - trecho “Se algum dia” (compassos 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 E 39) ......................................... 92
Figura 48 - trecho “Se algum dia” (compassos 40, 41, 42, 43 e 44) ........................................................... 92
Figura 49 - trecho da composição “Na Glória” (Ary dos Santos e Raul de Barros) ................................... 93
Figura 50 - trecho da composição “Brasileirinho” (Waldyr Azevedo) ........................................................ 93
Figura 51 - trecho “Se algum dia” (compassos 45, 46, 47, 48 e 49) ........................................................... 93
Figura 52 - trecho “Dois sem vergonha” (compassos 4, 5, 6 e 7) ............................................................... 96
Figura 53 - trecho comparativo “Se algum dia” (compassos 4 e 5) ............................................................ 97
Figura 54 - trecho “Se algum dia” (compassos 8, 9 e 10) ........................................................................... 97
Figura 55 - trecho “Se algum dia” (compassos 11, 12, 13, 14, 15 e 16) ..................................................... 98
Figura 56 - Divisões rítmicas do tamborim .................................................................................................. 98
Figura 57 - trecho “Se algum dia” (compassos 17, 18 e 19) ....................................................................... 99
Figura 58 - trecho “Se algum dia” (compassos 28 e 33) ............................................................................. 99
Figura 59 - trecho “Alma brasileira” (compassos 1, 2, 3, 4 e 5) ............................................................... 101
Figura 60 - trecho “Alma brasileira” (compassos 6 e 7) ........................................................................... 101
Figura 61 - trecho “Alma brasileira” (compassos 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14) ............................................. 102
Figura 62 - trecho “Alma brasileira” (compassos 15, 16, 17,18,19, 20, 21 e 22) ..................................... 103
Figura 63 - trecho “Alma brasileira” (compassos 27, 28, 29 e 30) ........................................................... 103
Figura 64 - trecho “Alma brasileira” (compassos 31, 32, 33, 34, 35 e 36) ............................................... 103
Figura 65 - trecho “Alma brasileira” (compassos 42, 43, 44 e 45) ........................................................... 104
Figura 66 - trecho da composição “O gato e o canário” (Pixinguinha) ................................................... 104
Figura 67 - trecho “Alma brasileira” (compassos 46, 47, 48 e 49) ........................................................... 105
Figura 68 - trecho “Alma brasileira” (compassos 50, 51, 52, 53, 54 e 55) ............................................... 105
Figura 69 - trecho “Alma brasileira” (compassos 56, 57, 58, 59, 60, 61 e 62) ......................................... 106
Figura 70 - trecho “Alma brasileira” (compassos 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75 e 76) 107
Figura 71 - trecho “Alma brasileira” (compassos 77, 78, 79, 80 e 81) ..................................................... 107
Figura 72 - trecho da composição “Ainda me recordo” (Pixinguinha e Benedito Lacerda) .................... 107
Figura 73 - trecho da composição “Bicho carpinteiro” (A. Reale) ........................................................... 107
Figura 74 - trecho “Alma brasileira” (compassos 82, 83, 84 e 85) ........................................................... 108
Figura 75 - trecho da composição “Bem te vi atrevido” (Lina Pesce) ...................................................... 108
Figura 76 - exemplo de padrão rítmico (SÉVE, 2009, p. 144) ................................................................... 108
Figura 77 - trecho “Alma brasileira” (compassos 95, 96, 97, 98, 99, 100 e 101) ..................................... 109
Figura 78 - trecho “Alma brasileira” (compassos 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116 e 117) ........... 109
Figura 79 - trecho “Alma brasileira” (compassos 118, 119 e 120) ........................................................... 110
Figura 80 - trecho da composição “Laura” (David Raksin e Johnny Mercer) .......................................... 110
Figura 81 - trecho “Alma brasileira” (compassos 121, 122, 123, 124, 125 e 126) ................................... 111
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Informações técnicas sobre os fonogramas selecionados ........................................................... 69
Tabela 2 - Discografia completa da carreira solo de Paulo Moura .......................................................... 132
Sumário
Capítulo 1: Biografia ................................................................................................................ 13
1.1 Infância musical ......................................................................................................... 13
1.2 Um “estilo de vida” carioca ....................................................................................... 17
1.3 Barão de Mesquita ..................................................................................................... 19
1.4 Início da carreira musical ........................................................................................... 22
1.5 Rádios e orquestras .................................................................................................... 30
1.6 Beco das garrafas ....................................................................................................... 35
1.7 Carreira Solista .......................................................................................................... 39
Capítulo 2: Estilos Confluentes ................................................................................................ 48
2.1 Jazz .................................................................................................................................. 48
2.2 Bossa Nova ..................................................................................................................... 52
2.3 Samba-Jazz ..................................................................................................................... 55
2.4 Choro .............................................................................................................................. 58
2.5 Gafieira ........................................................................................................................... 62
Capítulo 3 – Metodologia de análise e parâmetros de seleção ................................................. 66
3.1 Metodologia de análise ................................................................................................... 66
3.2 Parâmetros de seleção dos fonogramas .......................................................................... 68
Capítulo 4: Análises e discussão .............................................................................................. 70
4.1 – Transcrição e análise do solo em “Samba de Orfeu” ................................................... 70
4.2 – Transcrição e análise do solo em “Yardbird suite” ...................................................... 75
4.3 – Transcrição e análise do solo em “Se Algum Dia” ...................................................... 84
4.4 – Transcrição e análise do solo em “Dois Sem Vergonha” ............................................ 95
4.5 – Transcrição e análise do solo em “Alma brasileira” .................................................. 100
Referências ............................................................................................................................. 116
Anexo I – Transcrições ....................................................................................................... 121
Anexo II – Tabela ............................................................................................................... 132
Anexo III – Entrevistas ....................................................................................................... 146
Halina Grynberg ................................................................................................................. 146
Cliff Korman ....................................................................................................................... 155
13
Capítulo 1: Biografia
1.1 Infância musical
Paulo Gonçalves de Moura nasceu em São José do Rio Preto, em 15 de junho de
1932, filho de Pedro Gonçalves de Moura e de Cesarina Cândida de Moura. Era o caçula de dez
irmãos, seis homens e quatro mulheres. Porém o seu nascimento só pôde ser registrado por seu
pai em 17 de fevereiro de 1933, devido à Revolução Constitucionalista de 1932, iniciada em
São Paulo contra o governo federal de Getúlio Vargas.
Seu pai, Pedro Moura, era carpinteiro de profissão, mas tocava saxofone e clarineta
nos bailes da cidade e liderava uma orquestra que se apresentava nos bailes populares da
comunidade negra no clube Marcílio Dias (GRYNBERG, 2011, p. 19).
Segundo Paulo Moura, seu pai ensinou música aos filhos não apenas por uma
questão cultural ou de possibilidade de obtenção de renda, mas também como uma estratégia
para preservá-los da Segunda Grande Guerra, pois, caso seus filhos fossem convocados ao
serviço militar, poderiam servir na banda de música do exército ao invés de serem mandados
para a infantaria (SPIELMANN, 2008, p. 7). Assim como Paulo, parte de seus irmãos tornaram-
se instrumentistas: Waldemar tocaria trombone; José (Zeca) e Alberico (Lico), trompete; Pedro
Jr. (Pedrinho), saxofone; Francisco (Chico), bateria, e Filomena, piano.
De acordo com Moura (apud GRYNBERG, 2011, p. 11), seu pai acreditava que
seria importante que os filhos tivessem contato com um ambiente musical de qualidade e
experiências mais diversas a fim de obterem melhores oportunidades como músicos
profissionais. Sendo assim, orientou seus filhos para que fossem a grandes centros, como São
Paulo ou Rio de Janeiro, logo que completassem 18 anos. Waldemar e Zeca foram os primeiros
a iniciar este modelo idealizado que o pai planejou para os filhos:
“(...), mas ele [pai] achava que em São José do Rio Preto as pessoas da música eram
muito desleixadas, não cuidavam tanto da música, eram músicos fracos. Desde
pequeno, eu sempre o ouvi falar para os vizinhos: “Ah, deixa os meus filhos crescerem
que eu vou mostrar a vocês o que é músico!” (...) (GRYNBERG, 2011, p. 12).
No Brasil, a relação entre a emergência dos centros urbanos e da música como uma
profissão se revela ao longo da história como uma oportunidade de renda e prestígio social para
muitos músicos. Falleiros (2006, p. 11) ressalta que a partir do processo abolicionista instaurado
14
no Brasil no final século XIX, aqueles que já atuavam como músicos nos grupos musicais das
fazendas de açúcar e café, começaram a se transferir para os grandes centros urbanos.
Consequentemente, observou-se uma ampliação do número de bandas militares, conjuntos civis
e de igrejas; juntamente com um incremento desta atuação em manifestações populares, festas
particulares, bailes, blocos carnavalescos, festas folclóricas, entre outros.
A infância de Moura foi marcada pelo cotidiano e profundo envolvimento de seu
pai com a música: os bailes populares, a convivência com músicos que frequentavam a casa, as
aulas de música1, o som da clarineta, tocada sutilmente por seu pai, que vinha da sala e embalava
as noites da família, as vivências musicais trazidas por seus irmãos mais velhos que já
trabalhavam como músicos no cenário musical da pequena cidade e depois se mudaram para os
grandes centros.
“Comecei a ouvir música em casa. Meu pai tocava, meus irmãos tocavam, e achei que
seria a mesma coisa comigo, porque aos nove anos eu já tocava. Bem que eu quis
começar antes, mas papai me segurou um pouquinho e foi só a partir dessa idade que
comecei a estudar com ele”. (GRYNBERG, 2011, p. 11).
Aos 9 anos de idade, Moura ganhou de seu pai uma clarineta e iniciou com ele seus
estudos musicais. Moura demonstrava um profundo comprometimento com os estudos do
instrumento, e, como relata, existia uma disciplina diária na sua rotina de aprendizado musical.
Após cumprir suas obrigações referentes à escola, Moura sempre praticava seu instrumento
pelo menos meia hora diária, almejando melhorar suas habilidades para estar apto a tocar na
banda de música da cidade (GRYNBERG, 2011, p. 13).
Essa conduta de prática de estudo realizada por Moura ainda na infância, que busca
manter uma relação entre disciplina e objetivo, parece estar correlacionada com a afirmação de
Swanwick sobre a capacidade de se obter a competência musical através de uma cuidadosa
sequência de estudos programados, e não exatamente por meio de experiências musicais
confusas (2003, p. 67).
Em 1944, Paulo Moura, aos 12 anos de idade, ingressa no grupo musical de seu pai,
tocando a clarineta. Esse grupo se apresentava em bailes populares com a seguinte formação
instrumental: quatro sopros, sendo Moura na clarineta e seu pai no saxofone alto, mais trombone
1 Zaccarias (Aristides Zaccarias) nasceu em 5/1/1911 na cidade de Jaboticabal SP. Regente, clarinetista e
compositor. Teve como professor o mestre de banda Pedro Moura, pai do saxofonista Paulo Moura.
15
e trompete; banjo e bateria, completando o grupo. Moura recorda que a partitura que ele
executava nesse grupo era, na realidade, uma partitura original para saxofone tenor e não para
clarinete, e dessa forma o que ele tocava soava uma oitava acima do previsto na partitura. Para
Moura, tocar nesse grupo, mesmo sendo de uma formação instrumental modesta e com
adaptações nas partituras, foi de grande importância para sua experiência como músico
profissional.
Segundo Falleiros (2006, p. 14), os grupos de música são muito representativos no
cenário da música brasileira e de importância histórica na formação do músico instrumentista,
em especial de instrumento de sopro. Os agrupamentos musicais desempenhavam um
importante papel no aprendizado de um instrumento musical, devido ao fato de que o ensino
formal de música, exercido por órgãos especializados, muitas vezes não era possível para todos.
Desde pouca idade Moura já apresentava domínio de seu instrumento, o que lhe
permitia estar junto a músicos experientes em atividades profissionais. Apesar de sua
competência musical, muitas vezes a sua idade não colaborava para a credibilidade de sua
atividade profissional. Em um episódio no qual Moura se apresentava, tocando clarinete, junto
ao grupo musical de seu pai no clube Marcílio Dias, na cidade São José do Rio Preto, houve
por parte do contratante uma desconfiança das capacidades musicais de Moura, e dessa forma
o valor do pagamento para o grupo não poderia ser o mesmo, pelo fato de haver uma criança
em sua formação instrumental:
“(...) Ele [pai] demorou demais na administração do clube, onde foi receber o dinheiro.
Quando voltou, veio com dois diretores do clube e sentaram-se em uma mesa; ... E
ele me pediu “Toca uma música aí!” Não entendi, mas toquei assim mesmo...toquei
um choro que ele havia me ensinado... levantaram-se os três e foram de novo para
dentro. Quando meu pai voltou, disse: “Queriam que eu fizesse um desconto porque
tinha trazido um menino para tocar. Não sabiam que você tocava feito gente grande”.
(GRYNBERG, 2011, p. 19).
A experiência da prática musical em um ambiente profissional desde muito jovem
possibilitou a Moura um desenvolvimento das habilidades instrumentais com uma exigência
mais próxima do contexto profissional, também favorecida pelo contato com músicos mais
experientes. Segundo Williammon (2004, p. 69), a interação da prática musical com músicos
experientes, ou seja, um ambiente com um alto nível performático, pode influenciar no
desempenho individual de cada músico, provocando um suposto sentimento de concorrência,
uma fonte de motivação para atingir níveis mais elevados de performance musical. Portanto,
16
esse contato colaborou, em parte, para a construção de uma autonomia na aquisição do
conhecimento musical do saxofone para Moura através da vivência de exemplos práticos.
Nesse ambiente cercado pelo profissionalismo, Moura pôde encarar de uma forma
muito pragmática e direcionada a resultados o aprendizado em seu instrumento. Não tinha
outras atividades que consumissem o seu tempo diário, assim como não havia tantas distrações
possíveis, o que fez com que, somado ao desejo de integrar o grupo musical de seu pai e à
influência dos irmãos mais velhos, Moura se dedicasse com determinação ao aprendizado do
seu instrumento, obtendo resultados em pouco tempo.
A família Moura mudou-se para o Rio de Janeiro, em 1945, como forma de manter
a família unida e os filhos próximos. Assim o núcleo familiar de São José do Rio Preto e os
filhos que residiam em São Paulo se encontraram com os filhos Zeca e Waldemar, que já
estavam estabelecidos na capital carioca.
FIGURA 1 - PAULO MOURA INFÂNCIA
Paulo Moura com três anos de idade esperando o trem, junto com sua família na estação de São José do Rio Preto,
para visitar os irmãos mais velhos que moravam na cidade de São Paulo. Acervo pessoal - Instituto Paulo Moura.
Disponível em: <www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
17
1.2 Um “estilo de vida” carioca
A imagem que Paulo tinha da cidade do Rio de Janeiro foi sendo construída durante
toda a sua infância através dos relatos dos irmãos mais velhos referentes aos programas de
shows e cassinos onde trabalhavam, assim como pelas fotos e cartões postais da cidade enviados
à família em Rio Preto e as poucas visitas ao Rio narradas por seus pais.
Moura imaginava que a capital fluminense, na época capital federal, exibiria os
padrões de grandes centros urbanos, como ele imaginava ser nas cidades norte-americanas,
segundo o que se podia ter como referência através dos filmes da época: uma vida noturna
intensa, muita cultura e um estilo de vida cosmopolita. Moura afirmava ter criado um ideal
fantasioso sobre a cidade, também por influência de seus irmãos e dos seus pais (GRYNBERG,
2011, p. 28). Porém, boa parte dessa imagem se comprovou quando Moura finalmente mudou-
se com a família para o Rio de Janeiro. Por causa dessa idealização da capital carioca, Moura
desenvolveu um forte desejo por viver naquela cidade. Ele acreditava que a cidade do Rio de
Janeiro era mais que uma cidade grande, era “um estilo de vida” que poderia comportar a sua
carreira musical.
Todo este “estilo de vida” idealizado por Moura sobre a cidade e o cidadão carioca
urbano foi aos poucos se confirmando em alguns aspectos e se revelando diferente em outros,
através do contato cada vez mais intenso com o dia a dia da cidade. O sotaque carioca, o gesto
corporal, as vestimentas, a vida do subúrbio, a intensidade da vida noturna, a dinâmica da cidade
grande e a diversidade da população foram algumas das imagens desse cenário com que Moura
esperava tomar contato. A proximidade com a diversidade presente nos grandes centros
urbanos, assim como esperava seu pai, proporcionou a Moura ampliar suas expectativas quanto
a sua carreira de instrumentista, abrindo a possibilidade de, ao incorporar esse “estilo de vida”
carioca, construir sua identidade musical.
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FIGURA 2 - PAULO MOURA TOCA CLARINETE
(Paulo Moura toca clarineta ao lado de seu pai e irmãos no quintal da residência na rua Barão de Mesquita, Tijuca,
Rio de Janeiro em meados dos anos 40. Acervo pessoal - Instituto Paulo Moura. Disponível em:
<www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
19
1.3 Barão de Mesquita
A residência situada na rua Barão de Mesquita, para onde sua família havia se
mudado, foi descrita por Moura como uma casa mais modesta do que a residência deixada em
São José do Rio Preto. Houve uma necessidade de adaptação ao novo espaço e às condições
com os custos de vida na cidade (GRYNBERG, 2011, p. 23). No entanto, algumas tradições
familiares mantiveram-se: a casa continuou sendo frequentada por muitos músicos,
instrumentistas e maestros amigos dos irmãos mais velhos de Paulo.
“(...) minha família sempre foi assim, sempre teve a tradição de receber pessoas para
almoçar ou para jantar (...) iam muitos músicos importantes do Rio de Janeiro,
instrumentistas principalmente, e alguns maestros também (...) eu sempre ali,
coladinho, sempre prestando atenção na conversa deles.” (GRYNBERG,2011, p. 32).
Segundo Patricia Campbell (1991), o ambiente familiar tem um papel importante
no aprendizado musical. Sua pesquisa nos mostra que, nas casas em que os pais têm mais
ligação com a música, seja cantando, tocando ou ouvindo, as crianças desenvolvem mais
rapidamente e de maneira mais sofisticada suas habilidades musicais. Ambientes que
proporcionam oportunidades de música são benéficos senão determinantes para o
desenvolvimento2.
Como explicitado anteriormente, existia uma grande preocupação com o jovem
Moura, por parte de seus pais, quanto ao ambiente profissional que o esperava em seu trabalho
como músico. Além disso, em razão da perda de mais um filho, Pedro Jr. (Pedrinho), que havia
falecido posteriormente ao irmão Chico, a preocupação aumentou pelo fato de que a
personalidade boêmia atribuída a Pedrinho, para os pais, tinha relação direta com o fato de ele
ser músico. Por esses motivos, seus pais reforçaram a ideia de que Moura tivesse uma profissão
paralela à de músico.
A solução para essa angústia familiar foi o ingresso de Moura como ajudante na
alfaiataria da família. Por volta de 1946, sua família estabeleceu uma alfaiataria na frente da
casa na Rua Barão de Mesquita, contando com a experiência de alfaiate do seu irmão Alberico
(Lico) e aproveitando um local com grande fluxo de pessoas.
2 CAMPBELL, Patricia Shehan. Lessons from the word: a cross-cultural guide to music teaching and
learning. New York: Macmillan, 1991.
20
Apesar disso, Moura relata (SPIELMANN, 2008, p. 9) que, assim que se mudaram
para o Rio de Janeiro, ele, aos 12 anos de idade, já teria condições técnicas para tocar em
algumas das orquestras de subúrbio. Contudo, seus pais o proibiram devido à sua pouca idade
e por receio de que seguisse uma vida boêmia, como confirma:
“(...) O saxofone mesmo eu comecei a tocar em Rio Preto com meu pai. Logo nos
últimos meses que a gente tava morando em São José do Rio Preto, um dos meus
irmãos que morava no Rio de Janeiro mandou um saxofone pra mim lá, em São José
do Rio Preto, e aí eu comecei a tocar. Mas durou pouco, porque viemos pro Rio, eu
tava com 12 anos e eu poderia até começar a tocar em algumas orquestras de subúrbio,
mas meu pai proibiu porque ficou com medo que eu pudesse pegar um caminho
diferente, e entrar na boemia (...) (SPIELMANN, 2008, p. 8).
Após três anos da sua chegada à capital carioca, o inquietante desejo de continuar
os estudos musicais de Moura persistia. Aos 17 anos abandonou a escola, com o consentimento
dos pais, pois aspirava a uma vaga na escola nacional de música, para se aprimorar na clarineta.
Iniciou os estudos em teoria musical, solfejo e clarineta, com esse intuito.
Se por um lado a escolha do clarinete se voltava para o estudo formal que Moura
almejava desenvolver na escola nacional de música, por outro o estudo do saxofone se mostrou
bastante informal:
(...) “eu não estudei (sax) com professor nenhum, pois não havia nenhum na época,
então o que eu fazia era passar pro saxofone o que eu sabia de clarinete. E também
nas viagens todas que eu fazia, eu perguntava pros saxofonistas, como é que se fazia.
(...) saxofonistas como Moacir Silva, como o maestro Zaccarias me deram algumas
sugestões de como tocar o saxofone”. (SPIELMANN, 2008, p. 9).
21
FIGURA 3 - FAMÍLIA MOURA
(Paulo Moura e família em frente à residência onde moraram na rua Barão de Mesquita, Tijuca, cidade do Rio de
Janeiro em meados da década de 40. Acervo pessoal - Instituto Paulo Moura. Disponível em:
<www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
22
1.4 Início da carreira musical
Aos 18 anos, Moura ingressou na escola nacional de música para estudar clarinete.
Paralelamente a esse estudo formal, atuava como saxofonista nos bailes do subúrbio. Ele afirma
que começou a tocar o saxofone por demanda profissional (SPILEMANN, 2008, p. 8). O
saxofone, pelas suas qualidades acústicas e popularidade, era um instrumento requisitado nos
bailes e gafieiras3 em vários lugares da capital carioca.
Acompanhado de seu irmão Lico, Moura começou a frequentar o ponto dos
músicos4, situado na praça Tiradentes, em frente ao teatro João Caetano. De acordo com Moura,
esse era um ambiente frequentado por músicos no intuito de receber e trocar trabalhos. Segundo
Moura, ali se encontravam músicos “de nível amador”, “segundo time” (GRYNBERG, 2011,
p. 33).
Moura havia estabelecido uma rotina condizente com sua ânsia de atuação musical.
Quando não havia os bailes no subúrbio, ele sempre se dirigia ao ponto dos músicos e esperava
ser convidado para tocar em algum baile (GRYNBERG, 2011, p. 34).
“Aquele encontro na praça Tiradentes era um vício. Eu ia todos os dias, ia encontrar
as pessoas e conversar, bater papo. Não era difícil. Não havia problema de trânsito,
então às cinco horas da tarde eu já estava no ponto, pegava o bonde e ia para lá. O
bonde dava oito ou nove horas, eu estava de volta.”
O ponto dos músicos representou, dessa forma, a passagem para a vida profissional
de Paulo Moura fora da tradição musical familiar. Existia uma informalidade marcante no
recrutamento dos músicos para os bailes que é descrita por Moura:
“(...) Era um sistema em que muitas vezes um músico não conhecia o outro, não se
ensaiava, mas chegávamos lá e estava tudo escrito, então todo mundo tocava aquilo e
o baile acontecia. A maioria deles era músicos de cabarés e gafieiras. Os que tocavam
em cabarés eram melhorzinhos...” (GRYNBERG, 2011, p. 33).
3 “gafieira” refere-se a salões de baile popular com música ao vivo. O nome é derivado das “gafes” (sob o ponto
de vista das elites) que cometiam os bailarinos, em seu modo peculiar de dançar. 4Nas décadas passadas o “ponto dos músicos” era um local frequentado pelos músicos populares, que servia para
o encontro e possíveis indicações de trabalho. O ponto localizava-se na praça Tiradentes, em frente ao teatro João
Caetano, Rio de Janeiro, RJ.
23
Havia uma rotina em relação ao horário em que os músicos ficavam disponíveis
para os arregimentadores. De acordo com Moura (GRYNBERG, 2011, p. 34), os músicos
ficavam à disposição entre cinco da tarde e oito horas da noite, e na maioria das vezes eram
chamados com antecedência para os bailes. Caso aparecesse um outro diretor que pagasse um
valor maior, era comum mandar um substituto para o outro baile de valor menor. Essa sempre
foi uma prática comum entre os músicos, que perdura até os dias atuais: uma colaboração
coletiva entre os instrumentistas para atender ao mercado. Moura atuou nos bailes nos clubes
da Tijuca e nas gafieiras do Andaraí, centro da cidade, praça da Bandeira, Belfort Roxo e
Pavuna. Esse foi o início da sua carreira profissional no Rio de Janeiro, independente do seio
familiar.
Em 1951, Moura teve o seu primeiro trabalho musical com carteira assinada,
quando foi contratado pela rádio Globo como primeiro saxofonista solista da orquestra de
Oswaldo Borba5. Após alguns meses, a orquestra foi transferida para a TV Tupi, mas já com
um número reduzido de músicos. Moura fora chamado para servir ao exército na cavalaria de
guarda de São Cristóvão, em que atuou como músico da banda. A estratégia de seu pai citada
anteriormente, de ensinar música a seus filhos para evitar a infantaria do exército na época da
revolução de 1932, fez-se válida nesse momento.
Nesse mesmo ano, participou de gravações com o maestro Zaccarias e sua
orquestra. Como primeiro saxofonista, acompanhou vários cantores da época, como Nelson
Gonçalves, Dircinha Batista e Carlos Galhardo. Atuou nas grandes formações lideradas pelo
Maestro Cipó6, Dick Farney7 e K-Ximbinho8, em um período de forte influência do jazz no
Brasil, apresentando-se no teatro Municipal e no Copacabana Palace.
Nesse tipo de trabalho, era importante que o músico possuísse uma boa habilidade
de leitura musical para executar os arranjos escritos para uma grande formação instrumental,
com precisão e velocidade. Moura afirma ter aprimorado a sua leitura musical quando havia
tocado nas orquestras de bailes e gafieiras:
5 Oswaldo Borba (Osvaldo Neves Borba) nasceu em São Paulo, SP, no dia 18/7/1914. Foi regente, arranjador e
pianista. 6 Maestro Cipó (Orlando Costa) nasceu em 1922 na cidade de Itapira, SP, e faleceu em 3/11/1992 no Rio de Janeiro
RJ. Foi saxofonista, maestro, orquestrador e compositor. 7 Dick Farney (Farnésio Dutra e Silva) nasceu em 14/11/1921 no Rio de Janeiro, RJ, e faleceu em 4/8/1987 em
São Paulo, SP. Foi cantor, pianista e compositor. 8 K-Ximbinho (Sebastião de Barros) nasceu em 20/1/1917 na cidade de Taipu, RN, e faleceu em 26/6/1980 no Rio
de Janeiro, RJ. Foi saxofonista, clarinetista, compositor, arranjador e regente.
24
“Eu tocava nessas orquestras, em bailes, sábado e domingo. Assim, você chegava,
sentava na cadeira, o primeiro ou terceiro saxofone alto, e lia o que tinha ali, na
verdade um repertório que, com o tempo, era parecido, então você chegava lendo. fox,
mambo, arranjos de samba, um músico ou outro tocava choro, mas não era muito
comum, não. Às vezes tocavam choro na hora que a orquestra ia fazer um lanche.
Alguns músicos que queriam fazer solos ficavam ali. Numa destas toquei choro com
o Pixinguinha, foi no baile, foi a única vez que nós tocamos juntos. Porque nesta
orquestra o diretor era amigo do Pixinguinha 9 e então o convidou pra tocar.”
(SPIELMANN, 2008, p. 10).
A aproximação de Moura com essas figuras icônicas da música brasileira, como
Pixinguinha, atesta sua preocupação em desenvolver a sua prática como solista, visto que o
encontro relatado entre os dois instrumentistas se dá em um momento especial da dinâmica da
apresentação musical, no qual existe um espaço reservado para que os solistas possam exibir
suas qualidades; algo muito comum no gênero do choro - o virtuosismo melódico - que
Pixinguinha dominava muito bem.
Conforme ressalta Spielmann (2008, p. 10), Moura iniciou seu ecletismo musical
no início de sua carreira, pois estudava música erudita de concerto, tocava um repertório variado
nos bailes e gafieiras e participava de big-bands (grupo de formação mais alargada típico do
jazz norte-americano) que também executavam repertório variado com arranjos mais
elaborados. Em concursos promovidos por Paulo Santos, apresentador dos programas
“Concertos sinfônicos” e “Em tempo de jazz” da rádio MEC, Moura foi premiado como melhor
clarinetista de música erudita e melhor saxofonista de jazz, atuando nos dois gêneros.
Moura integrou a orquestra do maestro, arranjador e compositor brasileiro Ary
Barroso durante um curto período no ano de 1953, para a realização de uma turnê no Teatro
lérico da cidade do México; essa foi sua primeira viagem internacional. Devido à carga de
trabalho imposta para a realização dessa turnê, Moura teve que abandonar os seus trabalhos
anteriores. Após essa série de shows realizadas no México, Moura seguiu para Nova Iorque a
convite do trompetista Júlio Barbosa10, para integrar o seu grupo (SPIELMANN, 2008, p. 9).
Em Nova Iorque, Moura vivenciou um momento de efervescência do jazz, inclusive teve
contato pessoal com importantes inovadores do gênero como o trompetista Dizzy Gillespie11.
9 Alfredo da Rocha Vianna, conhecido como Pixinguinha, nasceu em 23/4/1897 e faleceu em 17/2/1973, na cidade
do Rio de Janeiro. Foi compositor, orquestrador, flautista e saxofonista. Pixinguinha tornou-se reconhecido na
música popular brasileira por ter contribuído para que o choro encontrasse uma forma musical mais definida. As
atividades de Pixinguinha como instrumentista, compositor e arranjador estabeleceram diretrizes para a criação de
uma concepção estética, o arranjo e a prática da improvisação característicos desse gênero (GEUS, 2009, p. 20). 10 Trompestista brasileiro. Julio Barbosa nasceu em 1926 Nova Friburgo, RJ. 11 Trompetista de jazz norte-americano. Nasceu em 1917 e faleceu em 1993 na Carolina do Sul, EUA. Gillespie,
juntamente com o saxofonista Charlie Parker, se tornaram reconhecidos como desenvolvedores de um dos estilos
25
No retorno ao Brasil, após sua viagem a Nova Iorque, Moura potencializou seu
interesse pelo jazz (bebop) e aproximou-se dos músicos ligados à bossa nova, movimento
musical que estava surgindo no final dos anos 1950.
De acordo com Santos (2006, p. vi), a bossa nova apareceu em uma época de
grandes transformações sociais, especialmente ligadas à ascensão das camadas médias urbanas
e às mudanças técnicas na indústria fonográfica. O movimento bossanovista gerou um profundo
debate em relação a sua originalidade como música representativa da cultura brasileira. Havia,
por um lado, um discurso mais conservador em relação à identidade e às raízes da música
brasileira, que afirmava que a bossa nova tomava emprestados procedimentos do jazz, oriundos
do intenso influxo da cultura norte-americana. Por outro lado, havia também a defesa de que
ela se apresentava como uma alternativa moderna e brasileira à programação
predominantemente estrangeira das rádios.
Com a expectativa de criar um grupo para experimentar novidades de arranjo e
orquestração, Moura se reuniu com o compositor e pianista João Donato12 e formaram, com
outros músicos, um grupo que se reunia regularmente aos sábados na casa da família de Moura
(GRYNBERG, 2011, p. 84). Donato se incumbia de compor as músicas enquanto Moura era
responsável pelos ensaios do naipe de sopros, mas ambos elaboravam os arranjos em conjunto
e dividiam a orquestração. Essa parceria com Donato se alongou durante muitos anos, gerando
posteriormente diversos outros projetos musicais.
“Donato se apoderou dessa tendência jazzística, mas engaja-a em uma postura
rítmica mais ligada ao samba [...]” (BITTENCOURT, 2006, p. 7). Essa tendência rítmica do
samba estava incorporada principalmente no modo de tocar o acompanhamento, realizado por
Donato ao piano, em sua mão esquerda. Segundo Bittencourt, esse padrão de acompanhamento
rítmico aliado “aos deslocamentos de acentuações da melodia em sua mão direita, revelam a
riqueza rítmica que culminou na bossa nova” (2006, p. 7). Sendo assim, Donato consegue
imprimir muito mais ênfase no ritmo influenciando a forma de interpretar as melodias, a fim de
caracterizar a célula rítmica típica do samba (BITTENCOURT, 2006, p. 7).
Um dos músicos que frequentava os ensaios deste grupo foi Alfredo José da Silva,
conhecido como Johnny Alf. Santos (2006, p. 31) considera Johnny Alf como um dos músicos
mais influentes do jazz: o bebop. Caracterizado por performances virtuosas, progressões de acordes complexos e
com rápidas mudanças de acordes, andamentos elevados e uma ênfase inédita na improvisação. 12 Pianista, acordeonista, arranjador, cantor e compositor brasileiro, nascido em Rio Branco (AC) em 17 de agosto
em 1934.
26
de sua época mais permeáveis às influências do jazz e de seus subgêneros, e afirma que o estilo
mais presente nas composições de Alf foi o bebop, já que é possível perceber na execução de
sua música a utilização da organização alternativa da sessão rítmica do jazz.
Dessa forma, esse grupo musical constituiu um importante laboratório para
aplicação e prática de técnicas atuais para a época de escrita e interpretação musical, assim
como aproximou músicos importantes e atuantes e que posteriormente se tornaram referência
na música brasileira. Dentre esses músicos, além dos já citados João Donato e Johnny Alf,
também estavam músicos que atuavam na Orquestra sinfônica juvenil da Tijuca, como
Adalberto José de Castilho e Souza, conhecido como Bebeto, flautista, clarinetista, saxofonista
e contrabaixista, que no início dos anos 60 junto com Luiz Eça e Hélcio Milito, formou o grupo
Tamba trio.
Moura afirma que, em sua concepção, era necessário que existissem mais
instrumentistas solistas na música brasileira (SPIELMANN, 2008, p. 11). Essa questão se
tornou um dilema constante que o confrontava, ainda mais, após o seu contato direto com
instrumentistas norte-americanos ligados ao bebop, estilo do jazz que colocou em destaque a
atuação do solista improvisador, e as experiências musicais que vivenciou com esses músicos
brasileiros, também atentos às novidades na música popular.
Aos 22 anos de idade, por intermédio de seu vizinho (que, além de “crooner” de
uma orquestra de baile, também trabalhava no escritório do estúdio da CBS 13 ), Moura
conseguiu uma oportunidade para gravar seu primeiro disco, de 78 rotações. Os discos de 78
rotações tinham a peculiaridade, diferentemente de modelos mais modernos, de uma restrição
quanto ao tempo de gravação que era possível obter sobre cada face do disco - em torno de
quatro minutos na média. Isso acarretava o fato de que geralmente era gravada apenas uma
única música por lado. Moura decidiu por gravar duas peças: em um dos lados, registrou “Moto
perpétuo” (opus11) de Niccolò Paganini (1782-1840), escrita originalmente para violino, peça
que deu nome ao disco, (Columbia, 1956); no outro lado, “O Voo do besouro”, interlúdio
orquestral da ópera “Conto do Czar Saltan” do compositor russo Rimsky-Korsakov (1844-
1908). Essas duas peças musicais são caracterizadas por apresentarem uma melodia contínua
sem pausas, de andamento elevado, o que representa um problema para instrumentistas de
sopro: a impossibilidade de seccionar a melodia a fim de realizar as respirações necessárias.
Para isso, Moura aprimorou seu domínio sobre a técnica de respiração circular, que consiste
13 Columbia Broadcasting System, com sede nos EUA, fundada em 1927 e com diversas filiais.
27
em simular uma respiração constante, inspirando o ar pelas narinas ao mesmo tempo em que se
realiza a expiração pela boca através do instrumento. A escolha de peças de caráter tão
obviamente virtuosísticas por Moura, somada ao fato de uma demonstração de habilidade
incomum, serviu para reforçar inequivocamente sua competência como instrumentista.
Moura comenta sobre essa sua primeira gravação (GRYNBERG, 2011, p. 66): “Ah,
eu tinha aquela aspiração de me destacar na carreira, e isso foi uma maneira que inventei de
criar um objetivo; arrumei um incentivo para estudar ainda mais depois que meti esse projeto
na cabeça...”
Podemos relacionar sua afirmação acima também com a necessidade de Moura em
criar objetivos e desafios a fim de aprimorar-se como músico solista. Falleiros (2006, p.11)
comenta que trazer desafios para si é uma forma que os músicos geralmente encontram para
aprimorar as suas habilidades.
Spielmann (2008, p. 11) afirma que a notoriedade refletida pela gravação de seu
primeiro disco permitiu a Moura organizar, em 1956, sua primeira orquestra para se apresentar
na rádio Jornal do Brasil. Essa orquestra ficou conhecida como a “Orquestra universitária de
Paulo Moura”, formada principalmente por músicos jovens amadores da época. Sua formação
instrumental era de cinco saxes, quatro trompetes, três trombones, baixo e piano; era uma
formação comum da época e refletia a influência da formação instrumental das “orquestras”
norte-americanas pós 1930, as big-bands.
Esse grupo passou a se apresentar no programa “Noturnos Alitália” da rádio jornal
do Brasil. Moura, com apenas 23 anos na época, era responsável por coordenar os ensaios,
escolher o repertório e também escrever os arranjos. Ele tinha um cuidado intenso com os
ensaios do grupo e uma preocupação com os detalhes da execução. “Dentro de um arranjo há
muitas coisas a serem observadas, alguns crescendos, detalhes de acentuação, a homogeneidade
da interpretação...E as pessoas gostam desse cuidado, desse apuro de sensibilidade”.
(GRYNBERG, 2011, p. 79).
Apesar de toda a dedicação de Moura e empenho em apresentar a melhor qualidade
musical possível com o grupo, a proposta que havia sido feita pelos diretores da rádio consistia
nas transmissões da música do grupo, porém sem remuneração pelo trabalho desempenhado.
Aos poucos, a falta de condições mais profissionais fez com que Moura encontrasse
dificuldades em manter o grupo atuante e coerente. Ainda assim, o grupo realizou a gravação
de um LP de 33 rotações chamado “Escolha e dance com Paulo Moura e sua orquestra de
28
danças” de 1956 (Sinter), com um repertório inteiramente de músicas brasileiras e de arranjos
dançantes.
A função de diretor de orquestra exercida por Moura sucedeu-se num período em
que a tendência por grupos de formações grandes estava em decadência. No lugar desses,
estavam em voga formações instrumentais menores, conhecidas como “combos” (abreviação
do inglês da palavra “combination”, que indica grupos reduzidos). Somado a esse fato, com a
chegada do “rock and roll” no Brasil (que futuramente motivaria o surgimento do movimento
“IêIêIê”, consolidando a origem da Jovem Guarda no país), esses grupos instrumentais, com
sua formação similar às “big-bands” norte-americanas, acabavam por ser considerados
“ultrapassados”.
“Esse foi um período de definição na minha vida. Por aqui (Rio de Janeiro) começou
o período das pequenas formações instrumentais, os chamados “combos”. E ainda
surgiram os pequenos grupos de rock, que, com a amplificação do som e apenas quatro
ou cinco músicos, produziam um volume sonoro mais forte que as grandes orquestras.
Então os clubes de jazz aqui do Rio também preferiam contratar grupos menores, com
baixo, bateria e piano, trompete com sax-alto, ou sax-tenor e trompete...”
(GRYNBERG, 2011, p. 98).
Sua “Orquestra universitária” acabou por se desfazer diante de tal conjuntura, o que
levou Moura a buscar outras opções musicais que pudessem representar melhor suas ambições
profissionais naquele momento.
29
FIGURA 4 - PAULO MOURA TOCA SAX-ALTO
(Paulo Moura toca sax-alto na TV Tupi na Urca, Rio de Janeiro, 1965. Instituto Paulo Moura. Disponível em:
<www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
30
1.5 Rádios e orquestras
Moura foi contratado pela rádio Nacional em 1957 e passou a atuar como primeiro
saxofonista da orquestra nos programas de maior audiência, função a qual já havia
desempenhado em 1951 quando tocou nas orquestras do maestro Zaccarias, Osvaldo Borba e
da rádio Tupi. Os irmãos mais velhos de Moura, José, Alberico (trompete) e Waldemar
(trombone), já atuavam na orquestra da rádio Nacional quando Moura foi contratado.
Para Moura (GRYNBERG, 2011, p. 87), a atuação nas orquestras das rádios foi de
grande importância para a sua formação musical. Ele destaca o convívio musical com o maestro,
arranjador e pianista Radamés Gnattali14, o qual tinha grande admiração pelo trabalho musical
desenvolvido nessa época. Gnattali era uma referência estética como arranjador e músico para
Moura: seu impacto em sua carreira foi marcante, como veremos mais adiante.
No período em que atuou na rádio Nacional, Moura teve a oportunidade ímpar de
tocar junto a músicos de destaque no cenário da época, como Luís Americano15, o maestro
Guerra Peixe16 e Moacir Santos17. Com Moacir Santos passou a ter orientações e a dividir a
elaboração de arranjos, devido à alta demanda que a rádio exigia. Moura também pôde, a partir
do contato com o maestro Cipó, aprimorar sua escrita para arranjos.
Segundo aponta Cazes, apesar da maior fama da rádio Nacional, além de ter seus
irmãos atuando nessa rádio, Moura assume que tinha preferência pela rádio Tupi por poder estar
em contato com os maestros Zaccarias, Severino Araújo e Cipó. A música realizada na rádio
Tupi era considerada com maior grau de experimentação nos arranjos (CAZES, 1998, p. 122).
Já na rádio Nacional, eram evitados procedimentos como acordes muito “estridentes” e a
utilização de tensões harmônicas, como acordes de nona e décima primeira, incomuns no
repertório brasileiro da época.
No entanto, a partir da segunda metade da década de 1950, com o desenvolvimento
da televisão, as emissoras de rádio se viram obrigadas a diminuir os seus programas e dispensar
14 Radamés Gnattali nasceu em 27/1/1906 na cidade de Porto Alegre, RS, e faleceu em 3/2/1988 no Rio de Janeiro,
RJ. Foi compositor, arranjador, regente e pianista. 15 Luiz Americano (Luiz Americano Rego) nasceu em 27/2/1900 na cidade de Aracaju, SE, e faleceu em
29/3/1960 no Rio de Janeiro, RJ. Foi clarinetista, saxofonista e compositor. 16 Guerra Peixe (César Guerra-Peixe) nasceu em Petrópolis, RJ, em 18/03/1914 e faleceu em 23/11/1983 no Rio
de Janeiro, RJ. Foi violinista, pianista, orquestrador, professor e compositor. 17 Moacir Santos nasceu em 26/7/1926 na cidade de Vila Bela, PE, e faleceu em Pasadena (Califórnia, EUA), no
dia 6 de agosto de 2006. Foi arranjador, compositor, regente e multi-instrumentista, destacando-se nos saxes tenor
e barítono.
31
os músicos18. Segundo Cabral (1996, p. 17), no início da década de 1960, poucas rádios
mantinham orquestras e haviam dispensado grande parte de seu pessoal. Nessa época surge uma
nova linha de programação que se dedica a transmitir músicas e informações ao gosto de classes
de maior poder aquisitivo, enquanto a grande maioria das rádios delegou sua programação aos
disc-jóqueis, noticiário policial e narração de futebol, de acordo com o gosto popular.
No ano de 1958, Moura recebeu um convite para liderar uma orquestra, em uma
turnê na antiga União Soviética, que iria acompanhar alguns cantores brasileiros como: Dolores
Duran, Maria Helena Raposo, Jorge Duran e Nora Ney. O repertório era formado por uma
coletânea de canções interpretadas por cada cantor, com arranjos musicais compostos pelos
músicos Gaia, Radamés Gnattali, Lyrio Panicalli e o próprio Paulo Moura. “O patrocínio desta
turnê deve ter sido do partido comunista brasileiro, ou talvez do próprio partido comunista russo
[...] (GRYNBERG, 2011, p. 103).
A vontade que Moura possuía em conhecer e viajar para outros países era tão
compulsória e prematura quanto o estudo da música. Seu desenvolvimento como músico
profissional iria proporcionar a realização desse desejo de conhecer lugares e culturas distintas.
“Desde que comecei a estudar clarineta, aos 9 anos, passei a falar em conhecer o mundo, e ela
(mãe) ficou assustada... o medo era de que eu ficasse morando no exterior...” (GRYNBERG,
2011, p. 20).
Nessa mesma época a produção musical brasileira havia adotado uma estratégia
mercadológica diferente devido à forte influência de discos e canções americanas no mercado
brasileiro. Visando a um menor custo de produção e um maior lucro, as gravadoras orientavam
os músicos brasileiros a assumirem pseudônimos americanos e a priorizarem um repertório só
com músicas internacionais. Um exemplo desse procedimento mercadológico ocorreu com o
saxofonista tenor Moacir Silva19, que havia sido colega de naipe de Moura quando ambos
atuaram na orquestra do maestro Zaccarias. Silva gravou diversos discos com clássicos de
18 “Para se ter uma ideia, a rádio Nacional proporcionava, em 1956, 700 empregos diretos. Eram 17 maestros [...]
35 violinos, nove violas, seis violoncelos, nove contrabaixos, sete flautas, quatro oboés, um corno inglês, três
clarinetes, dois clarones, 17 saxofones, 17 pistons, nove trombones, cinco baterias, cinco guitarras, quatro pianos,
uma harpa, uma tuba, um bombardino, um acordeom e 11 ritmistas, além de dois pequenos conjuntos do tipo
regional [...] e 10 solistas individuais, entre os quais alguns dos maiores instrumentistas brasileiros, como Abel
Ferreira (sax e clarinete), Jacó Bitencourt (bandolim), Luís Americano (sax e clarinete), Luperce Miranda
(bandolim), Dilermando Reis (violão) e Carolina Cardoso de Menezes (piano). 19 Moacir Silva nasceu no ano 1940 em Cataguases, MG, e faleceu em Conselheiro Lafaiete, MG, no dia
13/08/2002. Foi saxofonista e produtor musical. Apesar da haver divergências, muitos acreditam que, assim como
ele, também o saxofonista Zito Righi tenha gravado álbuns sob o pseudônimo de Bob Fleming, personagem criado
pelo produtor Nilo Sérgio. <www. http://dicionariompb.com.br/zito-righi >. Acesso em: novembro de 2016.
32
canções populares internacionais, utilizando uma formação pequena, piano, baixo e bateria, e
adotou o pseudônimo de Bob Fleming (SPIELMANN, 2008, p. 13).
Essa mudança no modelo de produção fonográfica estava de acordo com a política
instituída pelos Estados Unidos para a América Latina no pós-guerra (TOTA, 2000, p. 19).
Essa política da boa vizinhança influenciava diretamente na produção fonográfica, e vários são
os exemplos de resistência à americanização da música brasileira, como as palavras na canção
de Lamartine “Canção para inglês ver”, de 1930: num inglês aportuguesado, seguia uma
tendência dos anos 20 de críticas aos estrangeirismos, e o samba intitulado “Não tem tradução”
de 1933, composto por Noel Rosa, mostra as tensões e resistências da cultura popular num
momento em que se registrava um aumento da política de influência estrangeira. Ambos
criticaram, cada um ao seu modo, a “americanização” da sociedade brasileira.
Ao voltar da turnê realizada na União Soviética, seguindo esse mesmo modelo do
mercado musical brasileiro desse período, quando as gravadoras internacionais buscavam
referir grande parte da produção musical nacional a um pastiche dos produtos americanos,
Moura gravou o LP “Sweet sax” (RCA, 1958), com sax alto, contando com arranjos dos
maestros Cipó, Moacir Santos, entre outros, porém não aceitou adotar um pseudônimo. Essa
resistência de Moura na adoção de um pseudônimo americanizado, ante uma resistência política
de domínio cultural, parece-nos mais ligada à preocupação em criar e estabelecer uma firma de
reconhecimento necessária para sua carreira como solista da música brasileira.
“Eu não tinha tanta experiência como solista – tinha era muita vontade – mas ainda
não sabia bem como seria minha vida de solista no Brasil, nem que caminho eu deveria
tomar nesse sentido. Era uma coisa meio intuitiva, na verdade. Eu sabia que as
carreiras como arranjador e como diretor de orquestra seriam mais rentosas, mas, ao
mesmo tempo, estava empenhado na carreira como solista. Então era mais solicitado
como solista que como arranjador ou diretor de orquestra”. (GRYNBERG, 2011, p.
104).
Segundo Spielmann (2008, p. 13), em 1959 Moura iniciou sua carreira como
instrumentista erudito na Orquestra do teatro municipal do Rio de Janeiro, sendo aprovado em
primeiro lugar no concurso para primeiro clarinete. Na ocasião, Moura executou uma peça
musical que jamais havia sido preparada para esse tipo de concurso: apresentou a “Primeira
rapsódia” de Debussy20, composição original para clarinete e piano. Moura foi o primeiro
20 Claude-Achille Debussy nasceu em Saint-Germain-en-Laye no dia 22/08/1862 e faleceu em Paris no dia
25/03/1918, músico e compositor francês.
33
músico negro a alcançar tal feito. Nesse mesmo ano, lançou o disco “Tangos e boleros”
(Chantecler, 1959), com sax alto e clarinete sobre playbacks de gravações lançadas
anteriormente por cantores como Ângela Maria, entre outros.
Destacando mais profundamente a relação de Moura com o maestro Gnattali, em
1960, Moura relata (GRYNBERG, 2011, p. 90) que, quando fora contratado pela rádio
Nacional, Gnattali já havia escrito algumas composições para serem executadas por músicos
que o maestro admirava. Entre eles o saxofonista solista da orquestra Tabajara, liderada pelo
maestro Severino Araújo, Zé Bodega21. Moura destaca a música “Bate-papo”, a qual havia
despertado muito interesse dos músicos da época pela concepção mais democrática, pois os
solos eram divididos entre os instrumentos, principalmente entre o piano e o saxofone tenor,
enfatizando a tradição do choro brasileiro, solista e acompanhamento.
Sua inquietude em direcionar sua vida profissional para uma carreira como solista,
mesmo sem tanta experiência nela, fez com que Moura solicitasse ao maestro Gnattali uma
composição escrita para que ele a executasse. Segundo Moura (GRYNBERG, 2011, p. 90), para
sua surpresa, em um dos programas da rádio Nacional em que o maestro seria regente da
orquestra, Gnattali o abordou com oito músicas escritas e, durante a leitura dessas partituras,
um dos diretores da gravadora Continental que estava presente demonstrou o interesse em
gravar essas composições inéditas do maestro Gnattali escritas para Moura. Esse episódio
resultou na gravação do LP “Paulo Moura interpreta Radamés Gnattali” (Continental/ Warner,
1960). Nesse episódio, Moura afirma seu compromisso com o desenvolvimento de uma
linguagem brasileira e solística.
21 José de Araújo Oliveira, mais conhecido como Zé Bodega, saxofonista e instrumentista, era irmão do maestro
Severino Araújo. Nasceu em 1923 em Recife, PE, e faleceu no dia 23/09/2003 na cidade do Rio de Janeiro.
34
FIGURA 5 - PAULO MOURA RÁDIO NACIONAL
(Paulo Moura (o primeiro da esquerda para a direita) toca sax-alto no programa Imagem, década de 60. Acervo
pessoal - Instituto Paulo Moura. Disponível em: <www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
35
1.6 Beco das garrafas
Aos 27 anos de idade, Moura intercalava sua atuação profissional entre sua função
como primeiro clarinetista na orquestra do teatro municipal e primeiro saxofonista na orquestra
da rádio Nacional, ao mesmo tempo em que frequentava informalmente o Beco das Garrafas,
reduto dos músicos do movimento musical urbano surgido em 1957, a bossa nova. Era uma
travessa sem saída da rua Duvivier, entre os edifícios de números 21 e 37, no Rio de Janeiro,
que abrigava um conjunto de casas noturnas, situado no bairro de Copacabana, nas décadas de
1950 e 1960.
Nesse local Moura conheceu o pianista e compositor Sérgio Mendes, com o qual
consolidou amizade e estabeleceu um grupo de pequena formação instrumental com aqueles
que viriam a estar entre os mais significativos e atuantes músicos brasileiros. O grupo era
formado por Sérgio Mendes (piano), Otávio Bailly (contrabaixo), Pedro Paulo (trombone),
Dom Um Romão (bateria) e Paulo Moura (sax alto).
“Ali (Beco das garrafas) me tornei muito amigo do Sérgio Mendes e Otávio Bailly
(baixista), que estavam com a ideia de formar um grupo instrumental. Aí, resolvi
entrar nessa também, e começamos a ensaiar. E me lembro do seguinte: pediram que
eu fizesse os arranjos para o grupo, já que eu tinha tanta experiência com orquestra”
(GRYNBERG, 2011, p. 106).
De acordo com Spielmann (2008, p. 14) o grupo formado por Moura e Mendes era
chamado inicialmente “Samba Rio” e passou a ser referenciado como “Bossa Rio” após a
apresentação do grupo realizada no Carnegie Hall, renomada sala de espetáculos em Nova
Iorque, em 21 de novembro de 1962. Após esse concerto, o grupo realizou mais duas
apresentações. A primeira em Greenwich village, principal reduto dos mais renomados músicos
da cidade nova-iorquina, e a última no Lisner auditorium, em Washington. Essas apresentações
marcaram uma das decisivas etapas de penetração da bossa nova nos Estados Unidos, sendo
consideradas um marco para a expansão e reconhecimento do movimento bossanovista no
cenário internacional. (CAMPOS, 2005, p. 101).
Nessa ocasião em Nova Iorque, Moura teve a oportunidade de gravar junto com o
saxofonista Cannonball Adderley22 o LP “Cannonball Adderley” e o “Bossa Rio”.
22 Saxofonista alto americano, nasceu em 25 de setembro de 1928 em Tampa, Flórida, e faleceu no dia 8 de agosto
de 1975 em Gary, Indiana. Cannonball Adderley foi uma figura central do jazz moderno, imprimindo um estilo
que influenciou gerações de saxofonistas e improvisadores. Gravou mais de 50 álbuns, tendo participado de
36
Nessa mesma época, Moura passou a ser mais requisitado como arranjador. Foi um
período de grande produção de arranjos escritos para diversos artistas como Elis Regina, Toni
Tornado, Edson Machado, entre outros. O disco “Edison Machado é samba novo” (1963)
contém quatro faixas nas quais Moura participa como arranjador, além de ter atuado como
saxofonista alto. De acordo com Barsalini (2009, p. 107), esse disco distingue-se inteiramente
do âmbito musical bossanovista. Existe uma liberdade marcante na reciprocidade interativa
entre os músicos que executam essas obras, independentemente dessas peças serem
previamente arranjadas. Esse disco é reconhecido como o ponto marcante do estilo
posteriormente conhecido por samba-jazz; portanto representativo para o momento de
desenvolvimento de sua carreira como solista e na elaboração de uma música brasileira
instrumental improvisada, que Moura estava interessado em desenvolver.
A carreira de arranjador de Moura poderia ter tido continuidade e se aprofundado
em virtude de uma proposta feita pelo diretor da Phonogram23, Sr. Pittigliani. Moura atuaria
como arranjador de gravação, função a qual teria uma demanda enorme de execução de arranjos
para variados estilos. Contudo, essa variedade justamente não lhe permitiria se especializar no
estilo de seu maior interesse. Por mais atrativa que parecesse a oferta proposta a ele, Moura não
via com bons olhos essa oportunidade, pois ela se confrontava com sua busca pela consolidação
de sua carreira como instrumentista solista.
“Embora ainda não houvesse uma possibilidade definida de viver profissionalmente
como solista, eu queria ter mais tempo para estudar, para me desenvolver
tecnicamente, me atualizar. E essa coisa dos arranjos me atrapalhava, mesmo não
havendo, naquela época, tantas oportunidades nem muito espaço para solista de
música instrumental.” (GRYNBERG, 2011, p. 108).
Em 1968 Moura gravou o LP “Hepteto” (Ouver Records). Nesse álbum Moura
vivencia uma atuação mais intensa como arranjador e solista. O disco marca a primeira
participação de Wagner Tiso como músico e arranjador de algumas faixas junto a Moura, uma
relação produtiva de larga existência. No ano de 1969, lançou o LP “Paulo Moura e quarteto”
(Equipe), dando continuidade à exploração de uma original leitura jazzística da música
brasileira, iniciada com o disco anterior. Lançou ainda mais dois LPs. “Fibra” (Equipe, 1971) é
formações instrumentais arregimentadas por Miles Davis, além de grupos que ele liderou com seu irmão, o
trompetista Nat Adderley. 23 Phonogram se instalou no Brasil, em 1960, após a aquisição da CBD, e somente no início dos anos 1970 é que
lança seus discos com o selo próprio, tornando-se Polygram, posteriormente (VICENTE, 2002, p. 53).
37
um disco no qual Moura intensifica sua procura por uma personalidade musical solística.
“Pilantrocracia” (Equipe, 1969) nasceu do movimento musical brasileiro do final dos anos
1960, representados por uma rica fusão de influências.
Moura começou a manifestar uma insatisfação com o movimento da bossa nova por
não conseguir se identificar com a camada social que a desenvolvia e realizava aquela produção
musical. Atrelado a esse sentimento, Moura demonstrava uma preocupação com a
desvalorização dos instrumentos percussivos, mais relacionados ao samba, que haviam sido
excluídos pela instrumentação estilizada do movimento bossanovista, o qual privilegiava as
progressões harmônicas e as canções em detrimento aos ritmos de origem afro-brasileira.
Para Moura, essa matriz africana era considerada um dos elementos fundamentais
e mais originais presentes na música brasileira.
Sendo eu de origem africana, nunca tive dificuldade de entender o jazz, sua
sensibilidade, sua expressividade blue. Mas, tive dificuldade em ser aceito pela bossa
nova. E por isso, sempre tive com ela uma ligação ambivalente, admiração e
afastamento. Como uma criação da zona sul do Rio, branca e estilizada, manteve em
seus grupos apenas a presença de uma bateria quase estilizada, excluindo ritmos e
artistas negros de suas formações. Os instrumentos percussivos, referência ao samba,
perderam a vez. Nada de pandeiros, tambores, ganzás... nada que lembrasse a mãe
África. Nem mesmo pela cor de seus instrumentistas de sopro, como eu”. (Por que
imaginei um encontro entre Gershwin e Jobim Programa do SESC São Paulo, junho
de 1998).
38
FIGURA 6 - PAULO MOURA COM O GRUPO BOSSA RIO
(Paulo Moura toca sax-alto (o primeiro da direita para a esquerda) durante apresentação da banda Bossa Rio Sextet
formada pelos músicos Pedro Paulo (trompete), Octávio Bailey (violoncelo), Sérgio Mendes (piano), Durval
Ferreira (violão) e Dom Um Romão (bateria) no Carnegie Hall em Nova Iorque. O Bossa Rio Sexteto gravou em
um estúdio de Nova Iorque o álbum. Acervo pessoal - Instituto Paulo Moura. Disponível em:
<www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em 06/05/2017).
39
1.7 Carreira Solista
Após um período na década de 1970 em que atuou como instrumentista e regente
da orquestra que acompanhou a cantora Maysa, Milton Nascimento (“Milagre dos peixes” de
1973, EMI/ Odeon) e Sérgio Mendes (SPIELMANN, 2008, p. 15), Moura passa a se dedicar à
carreira como solista.
Nesse mesmo período Moura mudou-se para o subúrbio da cidade do Rio de
Janeiro, indo morar na frente da escola de samba Imperatriz Leopoldinense, onde passou a tocar
tamborim na bateria da escola, em um esforço para se aproximar e compreender melhor a
rítmica brasileira.
“[...] quando eu decidi mesmo que tinha que aprender melhor a nossa música, [...]
aliás eu estou pensando nisso até hoje, tentando aprender essa rítmica…, mas pra
entender melhor eu fui morar no subúrbio..., vamos dizer, o primeiro mestre mesmo
de música brasileira, de música carioca pra mim acho que foi o Martinho da Vila. [...]
então quando eu fui morar no subúrbio eu quis refazer um aperfeiçoamento desse
conhecimento que eu tinha adquirido com o trabalho do Martinho da Vila.... Então
foi, toquei lá, fui muitas vezes na escola de samba, vivia, morava em frente. Eu dormia
ouvindo aquela batida da escola e samba a noite inteira...”24
Naquela época, Moura havia sido realocado na rádio Roquete Pinto.
Consequentemente seu salário fora rebaixado a um salário mínimo, bem inferior ao que recebia
como primeiro clarinetista da orquestra. Por conta disso mudou-se para o subúrbio e decidiu
focar em seus estudos e na sua carreira como solista, com ênfase no choro e no samba.
As pesquisas de Moura sobre os elementos mais característicos da música brasileira
o levaram a se aproximar das manifestações musicais do subúrbio do Rio de Janeiro. Além
disso, aproximou-se daquele que foi reduto do samba na década de 1970, o bloco carnavalesco
Cacique de Ramos, na sede do qual, mais tarde, coordenou uma gafieira semanal.
O disco “Confusão urbana, suburbana e rural” (RCA Victor), um dos materiais de
estudo desta pesquisa, foi lançado em 1976, produzido por Martinho da Vila, com quem Moura
já havia tocado em turnês, tanto no Brasil quanto no exterior. Esse álbum caracteriza-se por
incorporar instrumentos de percussão do samba e da música africana a instrumentos de sopro
mais típicos do ambiente do choro (SPIELMANN, 2008, p. 15). O disco, que realiza essa
24 PAULO MOURA – Alma brasileira. Direção: Eduardo Escorel. Produção: AMZ Mídia industrial S.A. Rio de
Janeiro: 2012. 1 DVD.
40
mescla instrumental, ainda contém composições de Moura, como: “Dia de comício”, “Carimbó
do Moura”, “Dois sem vergonha” (parceria com Wagner Tiso) e o “Tema do Zeca da cuíca”
(parceria com Tiso e Martinho). Esse álbum foi essencial na carreira solo de Moura, pois, além
de traduzir aquilo que ele relata como fonte de sua inquietação quanto a uma expressividade e
busca pelo aprofundamento na música brasileira, também significou o início da consolidação
de sua carreira como solista.
Apenas um ano depois, em 1977, Moura foi convidado a se apresentar no Lincoln
Center, em Nova Iorque, e posteriormente foi destaque no Festival Internacional de jazz de
Berlim. Nesse mesmo ano participou de uma compilação para o LP “O Fino da música” (RCA,
1977), ao lado de vários artistas como “Canhoto e seu regional”, “A Fina flor do samba” e Raul
de Barros.
No ano seguinte, 1978, Moura deu início a uma nova experiência que contribuiu
para o seu estabelecimento como artista: compôs a trilha sonora para o filme “A lira do delírio”,
de Walter Lima Junior, que também foi preenchida com trechos do LP “Confusão urbana,
suburbana e rural”. Moura foi presença marcante por duas temporadas do projeto “Choro na
praça”, no teatro João Caetano, junto com Waldir Azevedo, Abel Ferreira, Zé da Velha, Joel
Nascimento e Copinha, figuras relevantes do choro carioca.
No início dos anos 80, pode-se dizer que Moura já parecia ter consolidado sua
carreira como solista de música brasileira, isso devido a sua produção fonográfica e atuação, e
além de atuar como instrumentista e compositor para cinema com diversas trilhas como: “O
bom burguês”, de Oswaldo Caldeira, e “Parahyba mulher macho”, de Tizuka Yamazaki,
posteriormente “Rato rei”, de Sílvio Autuori, ao lado de Alex Meirelles e Paulo Muylaert; ele
passou a direcionar sua carreira solo com ênfase na gafieira.
Já afastado do teatro municipal, decidi dar uma canja na gafieira Estudantina, da praça
Tiradentes, e acabei ficando por oito meses. Iniciei, sem que me apercebesse disto,
uma nova vertente musical na minha carreira, que tem se recriado, permanentemente,
desde então (site).25
25 MOURA, Paulo. Instituto Paulo Moura. Disponível em: <www.institutopaulomoura.com.br>. Acesso em:
outubro de 2016.
41
Moura gravou e se apresentou ao lado do pianista Arthur Moreira Lima, resultado
do álbum “ConSertão” (Kuarup) de 1981, no qual também estavam presentes Heraldo do
Monte, no violão, e o trovador baiano Elomar Figueira Mello, no vocal.
Na década de 1980, além de produzir discos autorais e compor trilhas sonoras para
o cinema, Moura estabeleceu significativas parcerias que foram registradas e resultaram em
diversas apresentações pelo Brasil e exterior. Entre elas, destacamos a parceria com a pianista
Clara Sverner, gravando juntos uma série de discos em 1983: “Clara Sverner e Paulo Moura”
(Selo Ergo, 1983), “Vou vivendo” (EMI - Odeon, 1986), “Clara Sverner e Paulo Moura
interpretam Pixinguinha” (Sony Music, 1988) e “Cinema Odeon” (Selo Ergo, 1996), esse
último apenas em edição não comercial.
Lançado em 1984, o álbum intitulado “Mistura e manda” pela gravadora Kuarup
recebeu Prêmio Sharp na categoria Melhor disco instrumental, com participação especial do
violonista Rafael Rabello. Nesse álbum Moura apresenta algumas experimentações decorrentes
da formação de suas concepções musicais advindas do acúmulo de experiência que havia
adquirido até então. Essas experiências perpassam a prática de diversos estilos musicais
incluindo o jazz (bebop), o choro, samba (samba de roda, samba batucada, samba-jazz), bossa
nova, gafieira e repertório eclético executado nos bailes.
Moura tem a intenção, nesse álbum, de apresentar algumas alternativas ao formato
de arranjo jazzístico que inclui improvisação, e que segundo ele já não lhe interessava com
relação à possibilidade de inovação, de acordo com as características pretendidas para a sua
performance musical que pretendia incluir elementos da música brasileira. Uma dessas soluções
foi a de transferir a improvisação para o início da música, fazendo uma espécie de prelúdio,
diferentemente da prática mais comum que consiste em improvisar após a apresentação
completa do tema. Além disso, Moura busca introduzir a ideia de contraponto jazzístico típico
dos estilos mais tradicionais do jazz como o new orleans26.
“(No CD) ‘Mistura e manda’, (tem) aquela introdução do ‘Chorinho pra você’, do
Severino, que eu resolvi fazer uma introdução extensa, com improvisações,
aproveitando, vamos dizer, uma característica do jazz, que é a improvisação. Mas não
pode ser jazz aquilo, porque a sequência harmônica e aquela repetição, aquele
“ostinato” ali, aquilo é uma sequência de acordes de música brasileira mesmo. (...)
não existia praticamente muita possibilidade pra fazer aquele esquema jazzístico de
26 “[...] o estilo new orleans, caracterizado por três linhas melódicas que se contraponteiam, executadas por uma
“corneta” (pistão), um trombone e uma clarineta. O instrumento líder nesse conjunto, já pelo seu maior brilho, é o
pistão. Baseado em suas improvisações, o trombone orienta o seu contraponto. A clarineta ornamenta o toque de
ambos com uma ágil condução melódica”. (BERENDT, 1975, p. 23).
42
tema e improvisação, porque também já acho isso um pouquinho cansativo, e já era
naquela época. Então por isso eu resolvi fazer ali onde o músico pudesse improvisar,
mas que não fosse dentro de uma fórmula já antiga, que era tema e improvisação. O
caso ali era um prelúdio. Então, esta foi a (minha) intenção. E também acho que usei
aquilo porque eu já conhecia, já vinha fazendo jazz há muito tempo. Então (utilizei)
muita coisa do recurso de forma, recursos de harmonia, contracanto, contraponto que
o jazz desenvolveu” (SPIELMANN, 2008, p. 18).
Além disso, nesse álbum está presente a típica “cozinha” do choro conhecido como
regional. De acordo com Cazes, a origem do nome regional está relacionada a grupos como
Turunas pernambucanos, Voz do sertão e mesmo Os oito batutas, que associavam a
instrumentação a um caráter de música regional, contendo violões, cavaquinho, percussão e
algum solista. (CAZES, 1998, p. 83). A instrumentação apresentada nesse álbum inclui
instrumentos da formação característica do regional: cavaquinho (Carlinhos Antunes e Jonas
Pereira da Silva), pandeiro (Jorginho do Pandeiro - Jorge José da Silva), violão (Maurício
Carrilho), reco-reco (Jovi Joviniano), tantã (Neoci), violão 7 cordas (Raphael Rabello),
trombone (Zé da Velha - José Alberto Rodrigues Matos) e clarinete (Paulo Moura).
Moura contou com outro importante parceiro a partir de 1985: o músico Raphael
Rabello, com o qual liderou um grupo composto por Zé da Velha (trombone) e Jaques
Morelenbaum (violoncelo) em turnê pela França no ano de 1985, mesmo ano que lançou o CD
“Brasil instrumental” em conjunto com Raphael Rabello e Zé da Velha. Além desse álbum,
Moura e Rabello gravaram posteriormente o disco “Dois irmãos - Paulo Moura & Raphael
Rabello” (Caju Music, 1992), conquistando o prêmio Sharp de melhor instrumentista popular
naquele ano.
Moura gravou o CD “Gafieira etc. & tal” pela Kuarup em 1986 e reuniu o grupo
com o qual tocava nas gafieiras do Parque Lage. Foi figura marcante no Free jazz festival,
lançando esse CD, e viajou para Paris e Nova Iorque, o que permitiu um maior reconhecimento
internacional da música de gafieira, que veio a se tornar uma marca de seu estilo como artista
brasileiro.
No ano dedicado à comemoração dos 100 anos de abolição da escravidão no Brasil,
1988, Moura foi convidado, pela Secretaria da Presidência da República, a reger a “Orquestra
sinfônica de Brasília”, na sala Villa-Lobos na capital brasileira, onde estavam presentes
autoridades nacionais e internacionais. Moura apresentou uma música composta especialmente
para a ocasião, “Arredores da Lapa”.
43
Moura apresentou-se no “Olympia” de Paris com o grupo formado por Djalma
Corrêa (percussão), Jorge Degas (baixo elétrico) e Zezé Motta (cantora), com o quem havia
gravado o CD “Quarteto negro” (Kuarup, 1988). Moura participou do show de lançamento, no
Canecão, do DVD “Marisa Monte”. O CD “Paulo Moura e Ociladocê interpretam Caymmi”
(Caju Music, 1991) foi gravado em 1991 e relançado por outra gravadora posteriormente.
Em 1992 o músico foi destaque no “Montreux jazz festival”, apresentando o CD
“Rio nocturnes” (Messiador, 1992) que havia sido gravado naquele mesmo ano na Alemanha,
contando novamente com a participação de Jorge Degas (baixo) e do percussionista alemão
Andréas Weiser. No ano seguinte lançou o CD “Instrumental no CCBB - Paulo Moura e
Nivaldo Ornellas” (Tom Brasil, 1993).
Na década de 1990, Moura começou a se afastar do saxofone alto e a dar preferência
à clarineta como demonstra sua discografia. Moura elenca pelo menos dois motivos para essa
atitude. O primeiro seria que ele afirmava ter construído sua relação com o saxofone
acompanhando o estilo de importantes saxofonistas do jazz como referência ao longo de sua
carreira, como Charlie Parker e Paul Desmond (SPIELMANN, 2008, p. 26). Por volta dos anos
1980, Moura considerava o estilo de se tocar saxofone, tendo como referência o saxofonista
David Sanborn 27 , como algo mais agressivo em relação ao tratamento da sonoridade do
instrumento e à forma de se tocar, e decidiu não acompanhar tal tendência.
“[...] por volta dos anos 80, era um estilo em que se tocava com força. Tinha que ter
um preparo físico para tocar daquele jeito, eu não queria mais acompanhar este estilo.
Estraga a minha saúde. Então, junto com isso, eu viajava, e carregava aquele peso,
carregava saxofone, clarineta, comecei a pensar em uma maneira de tocar só um
instrumento. Isto foi até o final dos anos 90. Em 96 eu ainda tocava saxofone, parei
por aí em 97, na verdade fui parando aos poucos. Na época do disco em duo com o
Raphael, eu ainda tocava sax, mas aí vi que eu poderia tocar um instrumento só.
(SPIELMANN, 2008, p. 26).
Quanto ao segundo motivo, Moura justificava o abandono do sax alto devido à
existência de um grande número de saxofonistas solistas nessa época, e complementa sua
afirmação relatando que no início de sua carreira não havia tantos saxofonistas solistas.
27 David Sanborn, saxofonista norte-americano nascido em 30 de julho de 1945 na cidade de Tampa (FL), gravou
mais de 20 álbuns autorais, além de ter acompanhado outros artistas como: Albert King, David Bowie, James
Brown, James Taylor, Stevie Wonder. SANBORN, David. Disponível em: <www.davidsanborn.com/>. Acesso
em: outubro de 2016.
44
Em 1996 gravou o CD “Paulo Moura e Wagner Tiso” (Tom Brasil), outra
importante parceira na trajetória da carreira de Moura. Esse CD era uma compilação de
interpretações ao vivo de ambos, apresentadas no decorrer das excursões da série “Brasil
instrumental CCBB” para celebrar a sua importância na música brasileira e consequentemente
a sua carreira artística.
No ano de 1998, Moura gravou e lançou o CD “Paulo Moura visita Gershwin e
Jobim” (Pau Brasil), com um repertório composto pela fusão desses dois compositores, dando
início a vários concertos no SESC Vila Mariana (São Paulo), na sala Cecília Meirelles (Rio de
Janeiro) e nos festivais de jazz de Maceió e Tel Aviv (Israel). Nesse CD Moura estabelece uma
nova e marcante parceria com o pianista americano Cliff Korman28, que resultará em novos
trabalhos nos anos seguintes como o CD: “Mood ingênuo - Pixinguinha Meets Duke Ellington”
(Jazzheads, 1999), que reúne um repertório com composições de Pixinguinha e Duke Ellington.
Esse CD foi gravado no festival “Cantar da costa”, em Gênova (Itália). Destaca-se também; o
CD “Gafieira dance Brasil / The Paulo Moura & Cliff Korman ensemble” (Rob Digital, 2006).
Moura relata sua parceria com Korman:
“[...] eu fui aos EUA duas vezes e numa delas eu ia fazer uma apresentação lá, e ele
foi o pianista convidado e então renovamos a nossa amizade dali. E depois ele veio
pro Brasil e começamos a tocar juntos de brincadeira, até que surgiu uma oportunidade
de gravar um disco. (SPIELMANN, 2008, p. 21).
Em 1998 gravou ao vivo o CD “Pixinguinha: Paulo Moura e os batutas” (Rob
Digital) no teatro Carlos Gomes do Rio de Janeiro, recebeu o prêmio de melhor disco e melhor
grupo na categoria instrumental e, com esse mesmo trabalho, foi premiado com o primeiro
Grammy latino para música de raiz em 2000.
Em 2005, Moura participou do documentário produzido por Marco Foster e dirigido
por Mika Kaurismäki intitulado “Brasileirinho”, que aborda a história e vitalidade do choro
carioca de várias vertentes, como o cantado, o tradicional, o de gafieira (para a dança),
demonstrando um panorama amplo do choro contemporâneo. Esse documentário teve enorme
repercussão no festival de filmes de Berlim e em Marseille, na França. No ano seguinte Moura
reviveu uma parceria que havia sido relevante na sua formação musical durante a sua juventude,
e gravou o CD “Dois panos para manga” (Biscoito Fino) com o pianista João Donato.
28 Clifford Korman nasceu em 14/03/1957 na cidade de Nova Iorque. É pesquisador, professor, pianista, arranjador
e compositor. Foi professor da Universidade Federal de Minas Gerais, UFMG. Atualmente é professor da UNIRIO.
45
Moura recebeu o prêmio Rival Petrobras na categoria instrumental pelo álbum k-
Ximblues (Rob Digital, 2001), também indicado ao prêmio Tim de música brasileira. Ele
venceu o prêmio Tim de música brasileira na categoria melhor solista, sua segunda indicação
em 2003. Nesse mesmo ano, o selo rádio MEC/ Rob Digital lançou o CD "Estação Leopoldina"
(Rob Digital, 2002), uma incursão de Paulo Moura pelo celeiro de sambas instrumentais dos
subúrbios servidos pela rede ferroviária da Leopoldina, que foi indicado ao Grammy de 2004.
Paulo Moura recebeu o Prêmio Tim de melhor solista popular por sua interpretação no CD "El
negro del blanco” (Biscoito Fino, 2004), em parceria com o violonista Yamandú Costa.
Novamente foi indicado ao Grammy latino 2008, na categoria de melhor CD instrumental, pela
produção do álbum “Para cá e pra lá!” (Biscoito Fino, 2008).
Buscaremos entender, face ao exposto, a importância, a profundidade e a influência
desse elemento da música de Paulo Moura – a improvisação no ambiente da gafieira – o qual,
a nosso ver, pode ser representativo para uma síntese de sua busca por uma linguagem criativa
e brasileira, apresentando uma alternativa na constituição de uma improvisação brasileira para
uma geração de saxofonistas e músicos no país, que, assim como Moura, perpassaram pelas
influências da improvisação jazzística.
O panorama biográfico de Moura nos permite observar acontecimentos que podem
se relacionar à construção e às particularidades de seu processo criativo como solista
improvisador. Observamos que, no período que tange à infância de Moura, a plena convivência
com seu pai e irmãos mais velhos representa o início de uma profunda conexão com a música
a partir da experiência daqueles que o rodeavam. Em sua adolescência a crescente fascinação
pela cidade do Rio de Janeiro, enfatizada pelos comentários de seus irmãos mais velhos que já
atuavam no cenário musical, cria em Moura uma imagem desejosa para seu campo profissional.
Na tentativa de manter a união familiar, os pais de Moura se mudam para o Rio de
Janeiro a fim de se juntarem aos irmãos que lá já trabalhavam. Independentemente da mudança
de vida da família e da necessidade de adaptação em um outro ambiente social, algumas práticas
se mantiveram, como por exemplo a visita constante de músicos profissionais para a realização
de encontros e ensaios, provendo um rico ambiente musical para Moura. Por uma exigência do
mercado musical, Moura começou a se aprofundar informalmente nos estudos do saxofone, em
paralelo ao seu estudo formal da clarineta na escola nacional de música. Nesse período Moura
começou a frequentar o ponto dos músicos, local de intercâmbio de trabalhos em bandas de
bailes do subúrbio. Essa experiência significou o início de uma vida profissional fora do
ambiente familiar.
46
Moura teve a oportunidade de atuar nas orquestras estabelecidas pelas duas maiores
rádios atuantes no país: a rádio Nacional e a rádio Tupi. Nesse ambiente de trabalho de muito
profissionalismo e sofisticação musical, pôde ter contato com arranjadores experientes e
atuantes da época como: Severino Araújo, maestro Cipó, maestro Zaccarias e Radamés
Gnattali, inclusive esse último lhe dedicou um conjunto de composições posteriormente
gravadas por Moura no álbum intitulado “Paulo Moura interpreta Radamés Gnattali
(Continental/ Warner, 1959).
Por volta dos anos 1960, Moura assumiu a cadeira de primeiro clarinetista na
orquestra do teatro municipal do Rio de Janeiro e simultaneamente manteve seu posto como
primeiro saxofonista na orquestra da rádio Nacional. Nesse período, Moura frequentava o Beco
das Garrafas, local de encontro de músicos e berço do movimento bossanovista. Lá conheceu
Sérgio Mendes, com o qual estabeleceu parcerias profissionais. O grupo “Samba Rio” formado
por Mendes e Moura, que por motivo da apresentação realizada no Carnegie Hall, em Nova
Iorque, passou a se chamar “Bossa Rio”, está presente nesse importante momento para a
consolidação da bossa nova no cenário internacional. Essa ocasião rendeu a Moura a
oportunidade de gravar junto ao saxofonista norte-americano Cannonball Adderley.
Concomitantemente, Moura passou a ser mais requisitado como arranjador, função
com a qual teve a oportunidade de se estabelecer profissionalmente. Contudo essa atividade
parecia contrariar a sua expectativa de se aprofundar nos estudos dos elementos rítmicos
característicos da música brasileira, ainda mais após a sua experiência internacional ao lado de
importantes nomes do jazz que influenciaram o seu pensamento em relação à carreira de músico
solista improvisador.
Moura percebe que o movimento da bossa nova não poderia atender suas
expectativas como solista de música brasileira, já que não valorizava nem o solista instrumental,
nem características rítmicas trazidas pelos instrumentos percussivos. Diante dessa perspectiva,
Moura buscou se dedicar com mais intensidade à consolidação de sua carreira como solista, e
para isso abandonou sua função de clarinetista na orquestra sinfônica, pois também já havia
sido realocado para uma função inferior, e mudou-se para o subúrbio, aproveitando a presença
das escolas de samba para se aprofundar no estudo dos ritmos brasileiros.
Sua carreira como solista de música brasileira recebeu contribuições particulares
para o desenvolvimento de uma originalidade a partir do contato com diversos artistas
brasileiros e estrangeiros, como por exemplo: Martinho da Vila, Wagner Tiso, Clara Sverner,
Raphael Rabello e Cliff Korman. Como reconhecimento de sua importância na música
47
brasileira, Moura recebeu pelos seus álbuns prêmios como o de melhor solista (prêmio Tim de
música brasileira) em 2001 e 2003, além da indicação ao Grammy latino no ano de 2004 e 2008,
entre outros.
Moura lançou 40 álbuns como músico solista, em sua maioria de música
instrumental. Sua biografia demonstra a intensa atividade como um dedicado estudioso da
cultura brasileira, além de ter realizado uma vasta produção que registra sua busca por uma
expressão genuína na música brasileira. Sua contribuição para a improvisação brasileira é
notória e aponta caminhos para o desenvolvimento desta forma musical, em especial sobre a
improvisação na gafieira instrumental, tema ainda incipiente.
“A contribuição mais especial de Moura não está no choro, nem no samba ou no jazz,
mas sim no samba-choro e na gafieira, através de uma rítmica voltada para a dança,
onde Moura incorpora elementos do choro, do samba e do jazz em sua performance,
misturando-os, cada qual de uma maneira, criando um modo inconfundível de tocar”.
(SPIELMANN, 2008, p. 156)
FIGURA 7 - PAULO MOURA MONTREUX 1992
(Paulo Moura no palco tocando sax-alto. Festival de Montreux, 1992. Disponível em:
<www.youtube.com/watch?v=HdEG2oO32xg>. Acesso em 07/08/2018).
48
Capítulo 2: Estilos Confluentes
2.1 Jazz
O jazz é uma manifestação artística musical norte-americana que surgiu no início
do século XX na cidade de Nova Orleans. Outras cidades americanas tiveram manifestações
similares nesse mesmo período, porém a música de Nova Orleans se diferenciou por uma série
de fatores socioculturais e econômicos. Segundo Berendt (1975), essa cidade possuía uma
localização comercial estratégica: seu porto, banhado pelo delta do rio Mississippi, era
considerado na época um centro econômico importante, onde havia uma demanda grande de
trabalho para escravos libertos, bem como para os músicos, por conta da zona de entretenimento
adulto.
Estima-se que esse encontro de culturas musicais teve como resultado dois aspectos
característicos: primeiro, a criação de tipos relativamente novos de música pelos “negros
americanos”, como o ragtime e o blues; e, segundo, o estabelecimento de características vocais
típicas: variação da afinação, a caracterização de um som áspero, variação trimbrística e o
ragging, absorvidos do canto africano através da imitação dos “minstrels” (teatro negro de
variedades), “fieldshollers” (trabalhadores do campo), “worksongs” (canções de trabalho), cries
ofstreetvendors” (gritos dos vendedores de rua) e blues. (HOBSBAWM, 2009, p. 56).
Para Berendt (1975, p. 150), os princípios musicais da cultura ocidental estão
presentes na harmonia, na construção melódica e instrumental, já os elementos africanos são
evidenciados no tratamento rítmico, fraseado e sonoridade, além de particularidades referentes
à harmonia-blues29.
A improvisação é talvez o elemento mais característico desse gênero musical, sendo
que ela permanece presente e recebendo transformações segundo as incorporações que
caracterizam os diversos estilos de jazz ao longo da história. Acredita-se que a improvisação
possa ter tomado força por causa do encontro dessas duas culturas distintas, a africana e
europeia. O ato de improvisar em uma música se dá na cultura africana principalmente através
de modificações do som de uma nota sustentada, por meio de variações rítmicas, alterações de
altura e timbre, e não exatamente pela elaboração de melodias complexas. A música europeia
também possui uma tradição de improvisação, presente nas cadências, temas com variações,
29 Blue note: é a aproximação de uma altura dada, de aproximadamente um quarto de tom, e é de origem africana.
Na música africana, os intervalos são diferentes. A “blue note” também pode ser resultado da tendência, de
qualquer forma africana, de se alterar a altura do som. (HOBSBAWM, 2009, p. 127).
49
ornamentações, heterofonia, a prática de “preludiar” e improvisar sobre um tema dado. Essas
duas culturas de improvisação foram influentes no desenvolvimento da prática da improvisação
no Jazz, principalmente aquela realizada pelo músico solista (GRIDLEY, 1975, p. 45).
Conhecido como o primeiro estilo da música do jazz - muito influenciado por
elementos particulares do ragtime - o new orleans surgiu na virada do século passado. A cidade
de Nova Orleans vivia o auge de sua efervescência cultural, devido a sua localização
economicamente estratégica, somada a intensa miscigenação. Esse estilo se caracterizava pelo
contraponto melódico executado por uma “corneta” (pistão), um trombone e uma clarineta.
Nessas três linhas melódicas, o pistão se comportava como líder, devido ao seu brilho sonoro.
O trombone desenvolvia seu contraponto baseado nas improvisações estabelecidas pela linha
principal (pistão) e a clarineta exercia um papel de ornamentação em função dessa relação
contrapontística estabelecida entre os outros dois instrumentos (BERENDT, 1975, p. 24).
Segundo os historiadores, a prática do jazz não era exclusividade dos negros em
Nova Orleans: havia também conjuntos de brancos que desenvolviam esse estilo. O jazz
“branco” às vezes era considerado menos expressivo, com uma sonoridade não muito original,
porém tecnicamente mais refinado, com melodias menos rebuscadas e harmonias mais
evidentes. O jazz praticado por brancos era conhecido como dixieland e alcançou enorme
prestígio de mercado fora de Nova Orleans. Com o passar do tempo, essas orquestras
começaram a se fundir, dissolvendo a barreira entre os dois tipos de música, o dixieland dos
brancos e o new orleans dos negros.
No início dos anos 1920, três fenômenos musicais foram importantes: o auge dos
músicos do new orleans na cidade de Chicago, o blues clássico e o estilo chicago. Durante a
primeira guerra mundial, a região portuária boêmia de Nova Orleans foi fechada por decreto
oficial, pois havia se tornado um porto de guerra e era considerada uma ameaça à integridade
moral de suas tropas pelo ministro da marinha. Em consequência desse ocorrido, muitos
músicos ficaram desempregados e foram obrigados a procurar trabalho em outras cidades, então
muitos deles se mudaram para a cidade de Chicago.
O auge do estilo new orleans se deu fora da sua cidade de origem, devido à
realização de suas primeiras gravações e sua integração a um grande centro urbano
industrializado como Chicago. Havia uma tendência dos músicos dessa cidade em buscar imitar
o estilo de Nova Orleans, porém com algumas diferenças, que seriam para consolidar um estilo
que ficou conhecido como chicago. O contraponto melódico intenso foi atenuado, existia uma
50
fluidez melódica mais tranquila que, quando sobreposta, soava mais simples.
Consequentemente, a individualidade, atrelada ao solo instrumental, começou a se destacar e a
desempenhar um papel importante na história jazzística. A partir daí, o saxofone passou a ser
um instrumento de destaque solístico na história do jazz. (BERENDT, 1975, p. 28). Esse
instrumento se consolidou como um dos principais protagonistas na história do jazz até os dias
atuais pelas suas qualidades acústicas e popularidade, influenciando diversos músicos. Moura
afirma que começou a tocar o saxofone por demanda profissional, pois era um instrumento de
destaque nos bailes e gafieiras em vários lugares da capital carioca.
No final dos anos 1920, houve uma nova mudança no cenário jazzístico da época:
uma grande quantidade de músicos oriundos dos estilos new orleans e chicago se transferiram
para Nova Iorque, onde surgiria o estilo de maior sucesso comercial dentre os estilos do jazz, o
swing. Esse estilo se caracterizava por ter a marcação regular dos quatro tempos, com
acentuação no segundo e quarto tempo; possuir grandes formações instrumentais (big bands)
com um alto nível técnico dos músicos e valorização da performance individual. Por essa razão,
os anos 30 foram considerados o período dos grandes solistas no jazz como: Benny Goodman
(clarinete), Benny Carter (sax alto), Coleman Hankins, Chu Berry (sax tenor) e muitos outros
músicos (BERENDT, 1975, p. 29).
O estilo musical desenvolvido pelas big bands nos Estados Unidos foi influente no
início da carreira musical de Moura, já que seu primeiro contato com o jazz foi através de sua
atuação nas grandes formações “orquestrais” estabelecidas na cidade do Rio de Janeiro, como
a orquestra do maestro Zaccarias, maestro Cipó, entre outros. Em um período de intensa
influência jazzística no Brasil, Moura, em seus depoimentos, destaca a importância
fundamental de possuir um alto nível técnico musical, principalmente no que se referia a leitura
musical, para executar com precisão e velocidade os arranjos escritos para essas grandes
formações instrumentais. Moura afirma ter aprimorado a sua leitura musical quando tocou nas
orquestras de bailes e gafieiras.
Na década de 1920, a gafieira, por possuir um caráter hibrido, sofreu forte influência
jazzística, agregando características oriundas das orquestras do swing, tanto na sua formação
como na condução e execução de seu repertório. A orquestra era composta por seção rítmica,
naipe de sopros e vozes solistas. Os arranjos eram todos escritos, executavam-se sem
interrupção diversos estilos de música popular que eram agrupadas por andamentos,
51
predominando um ecletismo de estilos tocados, com o objetivo de manter o interesse do púbico
dançante (FRANÇA, 2015, p. 136).
No período subsequente da história do jazz, 1940, deparamo-nos com o surgimento
de outro estilo jazzístico cujo auge Moura vivenciou ainda mais de perto. O bebop foi um
movimento estilístico que rompeu com os elementos musicais e sociais do swing, pois a
comercialização do swing se tornou tão intensa e abrangente que se passou a questionar a
continuidade da evolução do jazz e seu caráter transgressor e inovador com uma mudança na
consciência mundial após a segunda guerra, associado à crise econômica que se estabeleceu
nesse período. O contraste entre o caráter alegre, e até mesmo ingênuo dos estilos anteriores,
com a realidade do pós-guerra, é reforçado pelo bebop.
O ouvinte da época caracterizava o bebop como uma música flexível e agitada
melodicamente (as frases pareciam apenas fragmentos musicais), a ponto de reagir com uma
certa resistência na aceitação desse novo estilo.
Na década de 1950, Moura realizou uma série de apresentações junto à orquestra
do maestro Ary Barroso na cidade do México, sua primeira viagem internacional. Após essa
turnê, Moura apresentou-se em Nova Iorque, onde teve contato pessoal com importantes
inovadores do gênero bebop, como o trompetista Dizzy Gillespie. Essa vivência com
performances virtuosas enfatizando a improvisação e ressaltando o papel fundamental do solista
intensificou o interesse de Moura pelo jazz (bepop) e o instigou a se aproximar dos músicos
ligados à bossa nova.
52
2.2 Bossa Nova
Os anos 1950 no Brasil foram marcados pelo surgimento de uma nova concepção
musical brasileira, a bossa nova. Esse novo estilo, ao mesmo tempo em que era considerado
uma revolução conceitual dentro do cenário musical brasileiro, também era questionado em
relação a sua originalidade e influências, gerando discussões polêmicas na mídia da época
(CAMPOS, 2005, p. 18).
Entre as décadas de 1950 e 1970, o Brasil sofreu profundas transformações sociais
caracterizadas principalmente pela acelerada urbanização, a consolidação do sistema capitalista
moderno e a ascensão da classe média, associada à produção musical dessa camada emergente
da sociedade. Os questionamentos em relação às transformações musicais do movimento
bossanovista dividiram opiniões e críticas em relação a sua legitimidade como música brasileira
(SANTOS, 2006, p. xiii).
No ano de 1949, o bebop começou a ter uma maior projeção no cenário
internacional. Nesse período, começaram a surgir na música popular brasileira composições
que incorporavam determinadas características atribuídas ao estilo, tanto na sua estrutura
quanto na sua interpretação. Um exemplo dessa influência é o surgimento do estilo conhecido
como samba-jazz, o qual abordaremos em detalhes mais adiante. De acordo com Sagawa,
(2015, p. 21), o jazz exercia forte influência na concepção de outros gêneros, acreditava-se que
esse estilo era capaz de renovar outras músicas, devido ao caráter de sofisticação e modernidade
conferido ao estilo norte-americano. Posteriormente à época do bebop, surge o cool jazz, que
apresenta um novo tratamento em relação à interpretação solística e suas nuances. Esse estilo
era caracterizado por ser mais elaborado e anticontrastante na sua interpretação. O canto usava
a voz de maneira falada, sem gritos e sussurros, nada de paroxismo (CAMPOS, 2005, p. 18).
Dick Farney30, Lucio Alves31, o Conjunto vocal “Os cariocas” e Johnny Alf são
considerados os precursores do movimento da bossa nova. Em comum, esses músicos
apresentam como novidade em relação à interpretação elementos característicos do jazz. A
importância de Farney está na interpretação melódica de suas composições. Farney não se
preocupou em adquirir novos procedimentos em relação à música brasileira, e sim em
apresentar um tratamento melódico “bebopiano” a sua música (CAMPOS, 2005, p. 19). Por sua
30 Farnésio Dutra e Silva, conhecido pelo nome artístico Dick Farney, foi um cantor, pianista e compositor
brasileiro. Nascido em14/11/1921 no Rio de Janeiro (RJ) e falecido em 04/08/1987 em São Paulo (SP). 31 Lúcio Ciribelli Alves foi cantor e compositor brasileiro. Nascido em 28/01/1927 na cidade de Cataguases (MG)
e falecido em 03/08/1993 no Rio de Janeiro (RJ).
53
vez, Alf incorporava outros procedimentos com tendências mais atualizadas do jazz em suas
composições e interpretações. Seus sambas-canções estavam mais próximos do jazz, do bebop,
do cool jazz, do que definidamente radicado na música popular brasileira. Alguns
procedimentos empregados por Alf foram se modificando, ao longo dos anos, em outros mais
integrados à essência da música brasileira (CAMPOS, 2005, p. 20).
Moura manteve contato pessoal com Alf nesse período que antecedeu a
consolidação do estilo. Alf, considerado um dos músicos mais permeáveis às influências do
jazz, frequentava os ensaios do grupo formado por Moura, João Donato e outros músicos, a fim
de experimentar novidades em relação à elaboração de arranjos e orquestração, reunindo-se
regularmente na casa de Moura. Donato era responsável por compor as músicas enquanto
Moura assumia a coordenação dos ensaios do naipe de sopros, mas ambos dividiam a
orquestração do conjunto.
Esse grupo atuou durante um período de intensa pesquisa musical em relação à
utilização de procedimentos inovadores de escrita e interpretação musical para a época. O grupo
reuniu diversos músicos que seguiram atuantes no cenário musical e muitos deles
posteriormente se tornaram referências na música brasileira. Além de João Donato e Johnny
Alf, também estava presente no grupo Adalberto José de Castilho e Souza, conhecido como
Bebeto, flautista, clarinetista, saxofonista e contrabaixista, que no início dos anos 60 junto com
Luiz Eça e Hélcio Milito formou o grupo Tamba trio.
De acordo com Moura (SPIELMANN, 2008, p. 14), grande parte dos
instrumentistas brasileiros passaram a agregar elementos típicos da bossa nova no seu estilo de
tocar, devido à forte influência jazzística que o movimento havia incorporado, principalmente
em relação aos procedimentos harmônicos adotados. Acreditamos que Moura via na bossa nova
uma oportunidade de alavancar uma carreira solística através de novas gravações associada à
ampliação do público apreciador desse novo estilo da música brasileira. Segundo Campos
(2005, p. 100), a produção bossanovista teve penetração no mercado norte-americano,
consequentemente exportar um estilo brasileiro para um mercado musical autossuficiente fez
com que a bossa nova fosse reexportada para diversos países europeus.
Na bossa nova não havia a hegemonia de um determinado parâmetro musical sobre
os demais, procurava-se integrar harmonia, melodia, ritmo, contraponto e interpretação na
execução do repertório. Existia uma ausência de contrastes referente ao intérprete-cantor, o
modo de cantar esse repertório anulava todos os efeitos contrastantes como: a utilização de
54
agudos gritantes, variação abrupta de dinâmica da voz, fermatas, entre outros. Estruturalmente
a bossa nova fazia uso de acordes sensivelmente mais alterados do que os aplicados na música
popular brasileira. Algumas progressões harmônicas tornaram-se singulares nesse estilo; a
conciliação entre os modos maiores e menores, tendo o mesmo centro tonal, era bastante
frequente no estilo, as tensões harmônicas-tonais se intensificam menos do que no jazz
(CAMPOS, 2005, p. 29).
Situado no bairro de Copacabana, o Beco das Garrafas foi o principal ponto de
encontro para os músicos da bossa nova. Aos 27 anos de idade, Moura frequentava o local, na
mesma época em que atuava como clarinetista na orquestra do teatro municipal e como
saxofonista na orquestra da rádio Nacional. Moura imaginava que o movimento da bossa nova
pudesse suprir seu desejo de estabelecer uma carreira como solista na música brasileira, ao
mesmo tempo em que poderia possibilitar atingir um maior público.
Conforme dissemos no capítulo anterior, nesse período Moura atuou junto a
músicos que se tornariam expressivos no cenário brasileiro. O grupo o qual foi convidado para
integrar era formado por Sérgio Mendes (piano), Otávio Bailly (contrabaixo), Pedro Paulo
(trombone), Dom Um Romão (bateria) e Paulo Moura (sax alto). O grupo era chamado “Samba
Rio”,e posteriormente passou a ser intitulado como “Bossa Rio”, após a apresentação do grupo
realizada no Carnegie Hall, em Nova Iorque.
55
2.3 Samba-Jazz
Após o auge do movimento bossanovista, Moura passou a demonstrar uma
insatisfação em relação a sua identificação com o movimento, já que não se considerava
pertencente à mesma camada social a qual desenvolvia e realizava aquele estilo de música. Para
Moura, a bossa nova privilegiava as progressões harmônicas e as canções em detrimento dos
ritmos de origem afro-brasileira: sua instrumentação estilizada desvalorizava os instrumentos
percussivos, mais relacionados ao samba. Moura considerava essa matriz africana um dos
elementos fundamentais e mais originais presentes na música brasileira.
Nessa mesma época, Moura passou a ser mais requisitado como arranjador. Foi um
período de grande produção de arranjos escritos para diversos artistas, e o disco “Edison
Machado é samba novo” (1963) foi tão relevante para a história da música popular quanto para
a carreira de Moura. Esse disco diferenciava-se por completo do movimento da bossa nova,
devido à presença de uma acentuada liberdade em relação à interação entre os músicos.
Essa obra é reconhecida como o ponto inicial de um novo estilo que viria a ser
denominado de samba-jazz: uma música brasileira instrumental improvisada que se tornaria
significante para a carreira como solista de Moura.
Essa harmonia mais elaborada possibilitou o desenvolvimento e a amplitude
melódica por outras tonalidades distantes do original, um uso maior de modulações, acordes
alterados, exigindo, consequentemente, uma audição harmônica mais apurada, assim como a
criação de novas posições instrumentais (CAMPOS, 2005, p. 76).
No início dos anos 60 do século passado, a expressividade musical de um músico
instrumentista estava limitada, ao menos no meio profissional, pelos padrões de execução das
bandas de baile. Nesse período de transição, entre a prática da bossa nova e o surgimento do
samba-jazz, a música instrumental brasileira passou a ter um destaque maior no cenário musical
na cidade do Rio de Janeiro. Alguns músicos dessa época passaram a explorar uma nova
maneira de tocar esse tipo de música instrumental, principalmente o samba, incorporando a
improvisação no desenvolver do gênero.
De acordo com o músico JT Meirelles32 , essa nova abordagem se diferenciava
quanto à bossa nova, principalmente em relação à expressividade individual do músico, a qual
passou a ter uma evidência maior, devido à ausência de um cantor. Meirelles afirma que, no Rio
32 João Theodoro Meirelles foi um saxofonista, arranjador e compositor brasileiro. Nascido 10/10/1940 e falecido
em 04/06/2008 na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
56
de Janeiro, nos anos 1950, essa prática já existia com músicos mais velhos, que tocavam samba
com improvisação (eram conhecidos como a turma da gafieira, como Sivuca, Edison Machado
e Zé Bodega). Por referência à presença mais acentuada da improvisação, a mídia da época
passou a se referir ao estilo como samba-jazz (BARSALINI, 2009, p. 80).
O Beco das Garrafas, além de ter sido um local representativo do movimento da
bossa nova, também foi um espaço de experimentação e consolidação dessa nova concepção
musical desenvolvida por um número expressivo de músicos, o samba-jazz, viabilizando novas
oportunidades de trabalho, principalmente em relação à função de músico solista, tendo como
consequência um maior reconhecimento e remuneração (GOMES, 2010, p. 64).
A concepção musical adotada nesse período questiona a posição de entretenimento
atribuída à música até então, e expressa uma mudança de paradigma musical que eleva a música
à potência de arte e não apenas de diversão. A valorização de uma proposta musical que se
liberte da condição de “música para dançar” se revela no comentário de Edison Machado em
relação ao músico Hélcio Milito, o qual aconselha Machado a abandonar o conceito de
entretenimento musical vinculado à dança, e o instiga a assumir um caráter expressivo de sua
concepção artístico musical através de seu processo criativo. “Nessa época, o Hélcio (Milito)
me deu uma dica: - Edison, sai dessa, rapaz! Tocar pra dançar? Você tem que fazer um som para
você, mais para seu ouvido.” (BARSALINI, 2009, p. 82). Acreditamos que essa valorização
referente à autonomia do músico solista associada ao espaço, adquirido pelo samba-jazz, no
mercado internacional em função dessa postura, tenha intensificado o desejo de Moura de
estabelecer uma carreira de solista, aprofundando seus estudos com relação aos ritmos
brasileiros.
De acordo com Sagawa (2015, p. 23), o samba-jazz assimila uma concepção
harmônica jazzística com o objetivo de ampliar as possibilidades da prática da improvisação,
procedimento desempenhado pelo músico solista. Esse comportamento jazzístico de
improvisação torna-se a principal característica dentro do repertório instrumental do samba-
jazz, sendo a performance do músico solista o ponto central dessa manifestação musical
predominantemente instrumental, que exalta o domínio técnico e a exploração dos limites dos
instrumentos pelo músico solista improvisador.
Nessa mesma época, Moura fez parte do septeto do baterista Edison Machado, com
o qual gravou o álbum “Edison Machado é samba novo” (1963), atuando como instrumentista
solista e arranjador. De acordo com Barsalini (2009, p. 107), esse disco apresenta uma intensa
57
liberdade em relação à interação recíproca entre os músicos que atuam nessa obra, mesmo sendo
arranjadas previamente. Para Berendt (1975, p. 120), o arranjo não significa um procedimento
que limita o processo criativo do músico solista referente à construção de seu improviso: ao
contrário, é uma ferramenta que permite uma maior liberdade e estimula o improvisador na sua
performance. “Na relação arranjo/ improvisação existe uma verdadeira tensão que, quando bem
compreendida, é muito frutífera”. Dessa maneira, consideramos essa atuação de Moura como
um momento determinante no desenvolvimento de sua carreira como músico solista, e na
elaboração de uma música brasileira instrumental improvisada, que Moura estava empenhado
em desenvolver.
58
2.4 Choro
A origem do choro está atrelada a uma conjuntura de fatores sócio culturais e
econômicos originados pela Brasil, principalmente a cidade do Rio de Janeiro, devido a vinda
da Família Real para a capital carioca por volta de 1808. Tais mudanças trouxeram para a capital
carioca, não somente melhorias urbanas, mas também investimentos em infraestrutura de
serviços públicos como: correios, rede ferroviária e zona portuária, criando uma nova demanda
de trabalho, ocupada em sua maioria, pela classe média da época (CAZES, 1997, p. 19).
Pellegrini afirma que o público que produzia e consumia música em meados do
século XIX era constituído de funcionários públicos, músicos das bandas militares e outras
profissões liberais, como os barbeiros. Esses músicos atuavam em encontros informais,
reinterpretando, de maneira particular, ou seja, como certa liberdade rítmica, os temas europeus
conhecidos do repertório da época (2005, p. 23).
Acerca do significado do termo “choro”, podemos encontrar diversas definições
que variam de acordo com as fontes referentes a esse tema. Uma das hipóteses que reforça nossa
pesquisa está relacionada à interpretação rítmica melódica característica desta manifestação
musical urbana. Para Cazes (1997, p. 17) a forma de tocar a melodia tinha um teor melancólico,
choroso de frasear, que teria originado o termo chorão, atribuído ao músico de choro. Pinto
ressalta que o termo se refere à maneira de se expressar através dos instrumentos e não,
propriamente, ao fato de ser considerado um gênero musical. Vasconcelos define a palavra
choro como uma provável abreviação do termo “Choromeleiros”, que caracterizava uma
corporação de músicos da época colonial brasileira (apud VALENTE, 2009, p. 39).
Falleiros (2006, p. 55) destaca o jeito “abrasileirado” de se tocar o repertório
europeu da época, enfatizando as acentuações rítmicas características das manifestações
musicais de influência africana que se estabeleceram de maneira única no Brasil, como o lundu
e o samba, e relaciona com a parte melódica, afirmando que, pelo fato de a melodia interagir
com o acompanhamento, possa ter sofrido a aplicação dessas acentuações em seu ritmo.
Falleiros evidencia que há um deslocamento cadenciado das figuras rítmicas em função da
atração exercida pelas acentuações, na medida em que ocorre uma ênfase nas mesmas.
De acordo com Spielmann (2008, p. 28) o choro se estabeleceu como uma
manifestação musical urbana por volta de 1870 em função das influências musicais oriundas
das danças europeias, em especial a polca; da instrumentação da época, violões e cavaquinhos,
muito comuns em Portugal; e da influência negra em relação à questão rítmica musical.
59
Vasconcelos (1984, p. 41) divide cronologicamente a história do choro em 6
gerações. O período entre 1870 e 1889 compreende a primeira geração, e músicos como:
Henrique Alves de Mesquita33, Viriato Figueira34, Antônio Callado35 e, em seguida, Chiquinha
Gonzaga 36 e Ernesto Nazareth 37 foram os responsáveis pelas primeiras composições e os
primeiros grupos de choro nesse primeiro momento. A proclamação da República em 1889
estabeleceu o início da segunda geração, que se estendeu até 1919, com destaque para Anacleto
de Medeiros38, as bandas civis e militares. A terceira geração, de 1919 a 1930, foi marcada pela
presença de Pixinguinha39 como o nome mais relevante de todas as gerações do choro. Com o
progresso tecnológico, com o advento das vitrolas e das rádios, a quarta geração se consolidou
entre 1919 e 1930. Nesse período os músicos do choro formaram regionais com o intuito de
acompanhar cantores, e dois grupos se destacaram: os regionais de Benedito Lacerda40 e Dante
Santoro41. Essa função de acompanhamento foi marcada pela prática da improvisação, pois não
era comum a presença de arranjos escritos na prática musical desses regionais.
A quinta geração, que abrange os anos de 1945 a 1950, apresenta características
que consideramos relevantes ao nosso objeto de pesquisa. Entre essas, destacamos: a concepção
dos arranjos de choro para big band gravados por Severino Araújo42 com a orquestra Tabajara;
o retorno de Pixinguinha para o mercado fonográfico, assumindo o sax tenor como seu
instrumento principal e desenvolvendo seus contrapontos em seu dueto com Benedito Lacerda
33 Henrique Alves de Mesquita nasceu em 15/3/1830 e faleceu em 12/7/1906, no Rio de Janeiro RJ. Foi compositor,
regente, organista, trompetista e professor. 34 Viriato Figueira nasceu em 1851 na cidade de Macaé RJ e faleceu em 24/3/1883 no Rio de Janeiro RJ. Foi
saxofonista, flautista e compositor. 35 Joaquim Antônio da Silva Callado nasceu em 11/7/1848 e faleceu em 20/3/1880, no Rio de Janeiro RJ. Foi
flautista e compositor. 36 Francisca Hedwiges de Lima Neves Gonzaga nasceu em 17/10/1847 e faleceu em 28/02/1935, no Rio de Janeiro
RJ. Foi compositora e pianista. 37 Ernesto Nazareth nasceu em 20/03/1863 e faleceu em 01/02/1934, no Rio de Janeiro RJ. Foi pianista e
compositor. 38 Anacleto Augusto de Medeiros nasceu em 13/07/1866 na cidade de Paquetá PI e faleceu em 14/08/1907 no Rio
de Janeiro RJ. Foi maestro e compositor. 39 Idem p. 11. 40 Benedito Lacerda nasceu em 14/3/1903 na cidade de Macaé RJ e faleceu em 16/2/1958 no Rio de Janeiro RJ.
Foi flautista, regente e compositor. 41 Dante Italino Santoro nasceu em 1904, na cidade de Porto Alegre, RS e faleceu no Rio de Janeiro, RJ em 1969.
Foi flautista e compositor. 42 Severino Araújo de Oliveira nasceu em 23/04/1917 em Limoeiro, PE e faleceu em 3/08/2012 na cidade do Rio
de Janeiro, RJ. Foi um músico, compositor, maestro e clarinetista.
60
e a presença de instrumentistas de sopro relevantes para a prática do clarinete e do saxofone
como: Zé Bodega43, Luiz Americano44 e Sandoval Dias45.
Segundo Spielmann (2008, p. 32) é nesse momento que Moura estabelece o início
da sua carreira como músico profissional, tendo como referência experientes saxofonistas
solistas improvisadores na música instrumental popular brasileira. A sexta geração do choro,
da qual Moura fez parte, se estabeleceu a partir de 1975. Em 1976, Moura lançou o álbum LP
“Confusão Urbana, Suburbana e Rural”, material de pesquisa de nosso trabalho, no qual
acreditamos que possa nos revelar as particularidades de Moura em relação a sua concepção
estilística como saxofonista improvisador.
De acordo com Moura, o início da sua carreira como músico solista foi marcado
pelo disco citado acima, no qual salienta, como característica fundamental de sua concepção, a
experiência adquirida anteriormente em relação a sua atuação como músico frente a gêneros
com o jazz, a bossa nova, e formações instrumentais como as big bands e grupos menores como
no samba-jazz. Outro detalhe relevante que Moura menciona é a presença dos instrumentos
percussivos (como tamborim, cuíca, pandeiro, entre outros) inseridos na idealização estilística
musical assumida por ele, bem como a existência da improvisação. A concepção musical
almejada por Moura, seria a de reunir músicos de jazz brasileiros para atuarem junto a uma
instrumentação caracteristicamente brasileira de forte carácter rítmico, no intuito de realizar
uma aproximação do público à música instrumental (apud SPIELMANN, 2008, p. 60).
Valente (2009, p. 42) ressalta, a respeito da improvisação desenvolvida dentro do
choro, que existem opiniões controversas em relação a prática da improvisação no fazer musical
deste gênero. Cazes (1997, p. 44) afirma que nas primeiras gravações mecânicas de choro é
quase inexistente a presença da improvisação, porém a mesma se torna mais presente nos
choros, em relação à variação melódica e rítmica, quando interpretados por Pixinguinha.
Moura teve a oportunidade de atuar ao lado de Pixinguinha em um dos bailes de
gafieira, na época em que frequentava o ponto dos músicos. Nesse episódio, do início de sua
carreira profissional, Moura relata que essa experiência se deu em um momento de atuação
solística através do choro. (apud SPIELMANN, 2008, p. 56).
43 Idem p. 19. 44 Idem p. 18. 45Sandoval Dias nasceu em 4/5/1906 Salvador, BA e faleceu no Rio de Janeiro, RJ em 1993. Foi saxofonista
trompetista, clarinetista e arranjador.
61
Para Korman (apud SPIELMANN, 2008, p. 40) as improvisações realizadas no
choro estão relacionadas às ornamentações, contrapontos, acompanhamentos e variações,
melódicas e rítmicas, em torno da composição. Sá (apud SPIELMANN, 2008, p. 40) caracteriza
a improvisação no choro como uma integração entre a prática do improviso e a variação
melódica, através da aplicação espontânea de ornamentos, como: apojaturas, mordentes,
grupetos, trinados, notas de passagem, bordaduras, portamentos, glissandos, dentre outros.
Acreditamos que a expressão rítmica de Moura seja uma característica fundamental
na formação de sua originalidade. Como já mencionamos anteriormente, Moura fez parte da
bateria da escola de samba Imperatriz Lepoldinense, na qual tocava tamborim, com o intuito de
abarcar em si mesmo, a experiência da rítmica brasileira. Sève (apud SPIELMANN, 2008, p.
39) reforça a importância da rítmica na fundamentação do samba choro descrevendo este estilo
como uma subespecificação do choro vinculada a um conceito rítmico representado pelas
antecipações e síncopas melódicas inerentes ao samba, ao mesmo tempo em que é mantido uma
estrutura melódica do choro associada a música instrumental. “O que define um samba-choro
é a divisão rítmica de como você acentua ritmicamente a frase. As semicolcheias são acentuadas
com a mesma divisão do tamborim.” (apud SPIELMANN, 2008, p. 39).
Dessa forma, as acentuações que caracterizam a síncopa na música brasileira
parecem ser para estes autores um elemento significativo na definição de uma interpretação
original. Para Spielmann (2008, p. 256) as particularidades estilísticas intrínsecas ao choro, ao
samba e ao jazz estão presentes na interpretação e improvisação de Moura, aspectos esses que
caracterizam seu estilo, no qual acreditamos ter encontrado uma expressão mais significativa
na gafieira, assunto que trataremos a seguir.
62
2.5 Gafieira
A gafieira, de acordo com França, remete aos bailes populares que ocorriam por
volta da metade do século XIX, predominantemente frequentados pelas classes sociais mais
baixas daquela época (2015, p. 135). O aumento de contingente urbano na cidade do Rio de
Janeiro teve uma parcela significativa no surgimento dos primeiros espaços de dança popular,
local que representava um divertimento urbano que se tornou típico da capital carioca (VEIGA,
2011, p. xviii). Spielmann (2008, p. 54) descreve a gafieira como um ambiente caracterizado
pela atuação de músicos e dançarinos, com o objetivo de fazer o público dançar. Os bailes de
gafieira configuravam encontros de música e dança, e dessa forma a palavra gafieira denota, ao
mesmo tempo, um estilo musical, como o samba de gafieira ou choro de gafieira, que possuem
aspectos musicais próprios em relação ao andamento e particularidades rítmicas.
Segundo Lima (apud SPIELMANN, 2008, p. 54), o termo gafieira é originário da
palavra gafe, utilizada pelas classes mais privilegiadas como uma forma de deboche ao modo
de dança particular das classes mais baixas que arrendavam salões de dança de proprietários da
elite carioca para realizar bailes destinados a essa camada da sociedade que era impedida de
frequentar salões de alta classe. José (2005, p. 82) afirma que a gafieira tinha o sentido de baile
popular, era frequentada por um público de baixo poder econômico que não seguia as regras de
etiqueta da alta sociedade. Segundo um recolhimento documental realizado por Spielmann
(2017, p. 43-44), apesar de nem todas as narrativas sobre os bailes de gafieira serem pejorativas,
essas “[...] denunciam uma época de difícil inserção social deste grupo [...]” (SPIELMANN,
2017, p. 43).
A partir dos anos 1920, com sucesso alcançado pelo swing, os grupos de gafieira
passaram a agregar particularidades oriundas desse estilo jazzístico. As orquestras de gafieira
acabaram por assumir uma formação mais próxima das orquestras de jazz da década de 1920,
diferenciando-se pelo acréscimo de instrumentos percussivos inseridos na sessão rítmica
(piano, bateria, baixo, guitarra e percussões), e mantendo uma similaridade em relação aos
sopros (metais e madeiras) e vozes solistas, priorizando os arranjos escritos em partituras, no
intuito de fazer o público dançar. Esses bailes populares possuíam uma dinâmica performática
definida, caracterizada pela predominância de um repertório eclético, no qual as músicas eram
tocadas sem interrupção e compiladas por andamento, com o objetivo de manter a dança
constante e o interesse do público, durante toda a noite. (FRANÇA, 2015, p. 136).
63
Conforme destacamos no capítulo anterior, nos anos 50, Moura (apud
SPIELMANN, 2008, p. 54) afirma que nesses bailes eram tocados diversos ritmos musicais,
como: samba, bolero, swing, mambo, fox, entre outros. França (2015, p.137) destaca a prática
dos músicos nos bailes de gafieira, que exigiam a leitura à primeira vista e a improvisação,
como fator diferencial na aquisição de habilidades musicais. De acordo com o contrabaixista
Edson Lobo:
A experiência do baile, também, eu acho que deu muita 'cancha' pra esses músicos da
geração dos anos 50, que pegaram esse movimento, da bossa nova e do samba-jazz.
Então eles tinham muito essa 'cancha'. Quando eles ouviram o jazz, né, essa música
boa, eles já tinham mostrado. Alguns continuaram até um pouco, talvez, de uma
maneira um pouco 'quadrada', com uma certa 'cancha', mas não se aprimoraram muito.
[...] (apud FRANÇA, 2015, p. 137).
A fala de Lobo revela algo que é característico e comum a comunidade de músicos
brasileiros: a prática do baile se configura como uma “escola”: tanto no sentido do aprendizado,
aquisição de habilidades e experiência; quanto o de identificação em um grupo. França (2015,
p. 19) afirma que os músicos que atuavam neste período possuíam um intenso vínculo com os
bailes de gafieira, e consequentemente com a rítmica do samba e a espontaneidade do jazz.
Acreditamos que Moura tenha dado maior atenção aos ritmos brasileiros como
forma de direcionar melhor suar carreira como solista, na elaboração de uma identidade
brasileira, no início dos anos de 1970. Como apresentamos anteriormente, mesmo tendo a
oportunidade de se estabelecer como arranjador, esta posição não o agradava devido ao fato
que o desempenho deste trabalho o afastaria de sua exploração com a rítmica brasileira no
sentido de desenhar uma identidade para sua carreira solista. Concomitantemente, Moura havia
se desligado da orquestra sinfônica do teatro municipal (do Rio de Janeiro), estabelecido
residência no subúrbio carioca, onde passou a tocar tamborim na escola de samba do bairro e a
liderar os bailes de gafieira semanalmente no Cacique de Ramos e posteriormente na Gafieira
Estudantina.
“Eu organizei o baile uma vez por semana, para dança, lá no Cacique de Ramos às
quintas feiras. Era o grupo que tocava comigo lá na praça Tiradentes. Eu tocava lá na
gafieira aos domingos porque lá não acontecia nada, estava sempre fechada a gafieira,
o dono lá me ofereceu este dia, lá na Estudantina (apud SIPIELMANN, 2008, p. 60).
De acordo com o contexto apresentado acima, e após um período de experiência
profissional intensa no jazz, na bossa nova, samba-jazz e música de concerto, verificamos uma
64
retomada de Moura à gafieira em meados dos anos 70. O fato significativo e contundente desta
aproximação é o lançamento do álbum “Confusão urbana, suburbana e rural” (RCA Victor,
1976) produzido por Martinho da Vila, com quem Moura havia tocado em turnê pelo Brasil e
exterior.
“...[...] Quando eu decidi mesmo que tinha que aprender melhor a nossa música
(música popular brasileira), ...alias eu estou pensando nisso até hoje, tentando
aprender essa rítmica…mas pra entender melhor eu fui morar no subúrbio...a primeira,
vamos dizer o primeiro mestre mesmo de música brasileira, de música carioca pra
mim acho que foi o Martinho da Vila, porque nos anos setenta, por volta de setenta e
seis ele me convidou pra tocar no conjunto dele, viajamos muito pela Europa, tocamos
aqui (Rio de Janeiro) em vários concertos [...] Então foi, toquei lá, fui muitas vezes
na escola de samba, vivia, morava em frente. Eu dormia ouvindo aquela batida da
escola e samba a noite inteira...” (Mattos, 2013, 00:56:53).
Segundo Spielmann (2008, p. 60), este álbum representa o início do
estabelecimento de um estilo de improvisação na música instrumental brasileira, na qual Moura
mistura uma concepção de música brasileira com o jazz.
“O marco da minha carreira para a gafieira foi no ‘Confusão urbana, suburbana e
rural’. Quando surgiu a oportunidade de gravar este disco eu já tinha uma experiência,
mas eu queria fazer uma coisa um pouco diferente. A diferença era a percussão,
porque na verdade tinha, não sei se fizeram isto antes, mas juntar músicos de jazz
brasileiros com percussão como cuíca, pandeiro (o pandeiro na bossa nova não
entrava), tamborim, cavaquinho. Colocar estes instrumentos, isto foi uma coisa que
se podia dizer pela repercussão que teve em músicos, vamos dizer mais radicais,
aquilo muita gente não gostava. É, principalmente quem era da bossa nova não
gostava, acharam que aquilo era uma concessão que eu estava fazendo pra vender
mais discos. Na verdade, eu pretendia chegar mais perto do público, porque naquela
época eu achava que músico não só não tocava em rádios os seus discos, os nossos
discos, mas também não tinha aceitação do público. Porque os músicos estavam
sempre tocando música americanizada, mais jazzística” (MOURA apud
SPIELMANN, 2008, p. 60).
Acreditamos que a concepção estilística que caracteriza este álbum reflete a
experiência musical de Moura ao longo da sua formação como músico, pois é possível observar
a presença de elementos característicos dos estilos musicais os quais Moura havia tomado
contato ao longo de sua carreira, como: a improvisação, o arranjo, a composição, e os
instrumentos da percussão brasileira relacionados ao samba. Este momento é marcado por uma
concentração em explorar e trazer a expressão da gafieira como marco de originalidade e
65
identidade musical, expressa no seus discos posteriores como “Mistura e manda” (Kuarup,
1984), “Gafieira etc & tal” (Kuarup, 1986), “Gafieira dance Brasil-The Paulo Moura & Cliff
Korman ensemble” (Almons & Roses music, 2001); e sua atuação em duas das mais
tradicionais gafieiras do Rio de Janeiro, o baile de gafieira no Cacique de Ramos e a gafieira
Estudantina.
Para Salles (2011, p. 67) o percurso criador do artista se estabelece através de
relações de tensão, na qual circunstâncias antagônicas de origens diversas, exercem
dialeticamente umas sobre as outras, sustentando o processo em ação através da confluência
das ações do propósito e do imprevisto. As experiências musicais que Moura vivenciou na
década de 1970, podem ter sido significativas para o surgimento de um 'caminho tensivo'
preponderante para o estabelecimento de sua opção estética. Apesar do termo “gafieira” não
poder ser exatamente considerado estritamente um gênero musical em si (ainda que possa-se
observar no meio musical seu uso neste sentido, como figura de linguagem), Moura encontrou
na música desta expressão cultural – o baile de gafieira – um caminho para aglutinar os
elementos que considerava significativos da música brasileira (a percussão ostensiva, a rítmica
predominante, etc), o espaço de protagonismo para o instrumentista (que responderia ao seu
objetivo de despontar como solista) e a improvisação (como veículo para a expressividade e
interação). Este seria o sentido mais próximo do termo em relação à síntese de elementos que
constituem o seu projeto de músico solista brasileiro.
66
Capítulo 3 – Metodologia de análise e parâmetros de seleção
3.1 Metodologia de análise
A improvisação musical envolve diversos aspectos relacionados aos processos
criativos. Acreditamos que os aspectos melódicos, harmônicos e interpretativos são
substanciais para reforçarmos a compreensão de uma originalidade musical desenvolvida por
Moura. Em relação às inúmeras particularidades que envolvem uma análise musical, Cook
(1987) ressalta a importância de nos apropriarmos de distintas técnicas analíticas, ao invés de
estudarmos questões fundamentais a respeito da improvisação, de forma individualizada, sem
que haja uma confluência de múltiplas abordagens metodológicas, isto é, os métodos de análise
devem ser complementares e não excludentes.
Partindo desse pressuposto, consideramos a postura analítica assumida por Valente
(2009) significante para o desenvolvimento de uma ferramenta de análise pertinente ao nosso
objeto de pesquisa. Valente procede de uma metodologia embasada na teoria apresentada pela
obra de Russell (2001), na qual, o autor considera duas alternativas primordiais no
desenvolvimento da improvisação denominada idiomática. De acordo com Russell (2001),
podemos abordar a análise da improvisação de um modo vertical, focando na construção da
improvisação através da escala relativa a cada acorde que determina a estrutura harmônica do
tema improvisado, e outro horizontal, na qual a improvisação se estrutura baseada em uma
escala que abranja mais de um acorde. Valente (2009) leva em consideração este aspecto em
relação à música brasileira, tomando como parâmetro os ritmos e harmonias que afetam a
construção melódica do improvisador solista.
Sendo que o objeto de nossa análise reside na construção melódica, tomaremos
como base para nossa análise a ideia de frase musical apresentada por Tiné (2013), o qual não
faz uso do conceito mais sedimentado de frase musical, mais comumente utilizado em análises
estruturais, Tiné relaciona o elemento de medida do contorno melódico justamente com a
capacidade respiratória do músico solista. Shoenberg (1991) reforça esta concepção quando
afirma que o termo frase deva ser entendido como uma unidade próxima ao que se pode cantar
em um só fôlego. Por sua vez, Tiné busca adequar a noção de frase às características da
improvisação solista no âmbito da música popular. Para ele, a frase seria toda a porção que se
encontra entre as respirações do solista improvisador. É dessa maneira que o pesquisador pode
determinar o segmento de frase baseado na respiração do intérprete, tornando a análise mais
exata em relação ao processo criativo do músico solista no ato da improvisação.
67
Consideramos essas noções adequadas às nossas análises, dadas as similaridades
que contemplam os aspectos relacionados à música popular e ao solista de instrumento de sopro,
escopo de nosso trabalho, porém nos atentarmos aos números de compassos para nos referirmos
aos trechos melódicos ao longo de nossa análise.
Dessa forma, nossa pretensão será a de estabelecer duas camadas para a observação
da construção melódica, a primeira estruturada na relação das notas com a harmonia no intuito
de averiguar a influência de um procedimento típico da escola de improvisação jazzística, na
qual a melodia se referencia regularmente à harmonia; e uma segunda camada, na qual
consideraremos a relação tênue entre a questão rítmica e acentuação, tendo como referência os
instrumentos percussivos do samba, em especial, o tamborim. Tomaremos com referência o
trabalho de Bolão (2003), o qual apresenta os típicos padrões rítmicos do samba carioca
relacionados a cada instrumento de percussão que compõe uma escola de samba na cidade do
Rio de Janeiro; Barros (2015) e Zeh (2006).
Nossa hipótese, neste sentido, é de encontrar uma relação entre a rítmica típica da
música brasileira e as acentuações no fraseado de Paulo Moura, a fim de demonstrar o papel
deste recurso interpretativo na constituição de seu estilo. Sendo assim, buscaremos referenciais
nos trabalhos de que apresentam a teoria da flexibilidade rítmico melódica (SALEK, 1999) e o
conceito de métrica derramada de Ulhôa (2005), a fim de observar a emergência de padrões e
esquemas rítmicos tipicamente brasileiros em suas improvisações. Falleiros (2006, p. 63)
salienta a necessidade de entendermos que existe uma distinção entre ritmo e acentuação, pois
um mesmo ritmo pode ser caraterizado idiomaticamente através de diversas maneiras
estilísticas de acentuação.
Em relação a análise dos elementos característicos do jazz utilizaremos o trabalho
de Coker (1991) para tratarmos dos procedimentos jazzísticos como enclosure, padrão 1235 e
os arpejos para a caracterização melodia da harmonia.
Portanto, acreditamos que através de uma detalhada análise rítmica, possamos nos
deparar com a forma pela qual Moura, com uso de seu conhecimento adquirido sobre
construção de fraseado, realiza acentuações que possam ser características dos estilos de música
brasileira.
68
3.2 Parâmetros de seleção dos fonogramas
Tomaremos como primeiro critério de seleção dos fonogramas aqueles em que
possamos observar a existência de solos improvisados realizados ao saxofone, visto que Moura
é um músico multi-instrumentista, mas nosso trabalho se foca em sua performance criativa ao
saxofone. O primeiro momento desta seleção foi a escuta detalhada de sua discografia oficial
que consta na página de internet dedicada à divulgação da vida e obra de Moura46. Em sua
discografia encontramos uma diversidade de estilos musicais, desde standards de jazz, até
concertos eruditos. Como exemplo, com a pianista Clara Sverner o músico estabeleceu parceria
que resultou em três álbuns de repertório orientado para a música de concerto47.
Moura gravou 40 álbuns, em sua maioria de música brasileira, sendo que toca
saxofone em 184 faixas das 423 gravações48 (sax alto 154 e sax soprano 30). Ainda segundo
nosso levantamento, a partir da segunda metade da sua produção discográfica notamos uma
tendência cada vez maior em gravações com a clarineta sendo que do ano 1956 até 1992 temos
172 gravações com saxofones (sax alto 145 e sax soprano 27) e 39 com clarineta; e a partir de
1992 são 168 gravações com clarineta e 39 com o saxofone (sax alto 36 e sax soprano 3).
Verificamos que em 32 faixas Moura não atua como instrumentista, mas como arranjador.
A fim de contemplar o critério adotado, selecionamos cinco fonogramas
considerados relevantes, não só pela presença de solo improvisado ao saxofone, mas também
pelo período em que foram registrados, que cobre do ano de 1969 ao ano de 2006. Além disso,
consideramos a instrumentação e a diversidade de gênero como aspectos relevantes e
representativos da constituição de sua forma de improvisar, em especial na gafieira.
Os fonogramas selecionados, com suas respectivas referências, minutagem em que
se encontram os solos, a instrumentação e nossa consideração de representatividade de gênero
musical popular, encontram-se explícitos na tabela abaixo. As informações da tabela abaixo
foram obtidas com base nos encartes de cada álbum selecionado, bem como, a partir da página
de internet oficial do Instituto Paulo Moura.
46 Instituto Paulo Moura – Acervo digitalizado que compreende registros da carreira de Paulo Moura. Essa página
de internet que representa o “Instituto Paulo Moura” fornece diversos materiais competentemente organizados da
vida e obra de Paulo Moura. Nele encontramos: toda sua discografia, diversas gravações, entrevistas, vídeos,
recorte jornalísticos e partituras. A página é mantida por sua ex-esposa Halina Grynberg, que acompanhou sua
carreira por mais de 30 anos. Disponível em <http://www.institutopaulomoura.com.br/home/index.html> Acesso
em: 14 mar. 2017. 47 Clara Sverner e Paulo Moura” - (Selo Ergo, 1983), “Clara Sverner e Paulo Moura interpretam Pixinguinha” -
(Sony Music, 1988) e “Cinema Odeon-Clara Sverner e Paulo Moura” - (Selo Ergo, 1996). 48 Ver tabela – Anexo II, p.72.
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Fonogramas Selecionados
Música: Samba de Orfeu
Compositor: Luís Bonfá e Antônio Maria
Álbum: Paulo Moura hepteto
Gravadora: Ouver Records
Ano: 1968
Minutagem do solo: 1´10´´até 1´35´´ / 2´53´´ até 3´13´´
Instrumentação: bateria, contrabaixo, piano, sax alto e trombone
Genêro: bossa nova
Música: Yardbird suite
Compositor: Charlie Parker
Álbum: Paulo Moura e quarteto
Gravadora: Equipe
Ano: 1969
Minutagem do solo: 1’08’’até 2’13’’
Instrumentação: bateria, contrabaixo, piano e sax alto
Genêro: bebop
Música: Se Algum Dia
Compositor: Martinho da Vila
Álbum: Confusão urbana, suburbana e rural
Gravadora: RCA Victor
Ano: 1976
Minutagem do solo: 1’49’’até 2’50’’
Instrumentação: flauta, violinos, violão de 7 cordas, trombone, Bateria, piano,
cuíca, cavaquinho, surdo, pandeiro e sax alto
Genêro: samba-canção
Música: Dois sem vergonha
Compositor: Paulo Moura e Wagner Tiso
Álbum: Confusão Urbana, suburbana e rural
Gravadora: RCA Victor
Ano: 1976
Minutagem do solo: 1’08’’até 1’40’’ / 2’12’’ até 2’37’’
Instrumentação: tamborim, cavaquinho, contrabaixo, cuíca, apito, violão, piano,
agogô, bateria, surdo, trombone e sax alto
Genêro: samba
Música: Alma brasileira
Compositor: Zeca Freitas
Álbum: Gafieira jazz – Paulo Moura & Cliff Korman
Gravadora: Rob Digital
Ano: 2006
Minutagem do solo: 1’43’’até 3’48’’
Instrumentação: piano, bateria, baixo, cavaquinho e saxofone alto
Genêro: “gafieira”
TABELA 1 - INFORMAÇÕES TÉCNICAS SOBRE OS FONOGRAMAS SELECIONADOS
70
Capítulo 4: Análises e discussão
4.1 – Transcrição e análise do solo em “Samba de Orfeu”
A canção bossanovista “Samba de Orfeu” foi composta pelo violonista Luiz Bonfá
em parceria com o compositor pernambucano Antônio Maria em 1959 para fazer parte da trilha
sonora do filme “Orfeu no carnaval” de Marcel Camus e gravado, no mesmo ano, no álbum “O
violão de Luiz Bonfá – Solo in Rio” (Cook/Smithsonian folkways recordings/MCD).
Moura gravou esta canção em 1968, no álbum “Paulo Moura hepteto” (Ouver
Records), acompanhado pelos músicos, conforme informações contidas no encarte deste álbum:
Cesário Constâncio Gomes (trombone), Darcy Cruz (trompete), Luiz Alves (contrabaixo),
Oberdan Magalhães (saxofone tenor), Pascoal Meirelles (bateria) e Wagner Tiso (piano e
arranjos).
De acordo com Tragtenberg (apud FALLEIROS, 2006, p. 107) há um modelo de
contraponto que se dá particularmente na memória do ouvinte, ou seja, na rememoração de uma
música pelo reconhecimento a partir da manutenção de fragmentos melódicos em meio à
elementos distintos da melodia original. Um exemplo, é o solo criado por Moura na última
exposição da parte A do tema a ser analisado. A partir de Tragtenberg, Falleiros (2006, p. 107)
denomina este conceito como “contraponto mnemônico”, no qual de maneira intencional pelo
improvisador, gera, no ouvinte, uma sensação de surpresa, pois existe uma pré-disposição na
escuta da melodia original como referência em face as variações melódicas improvisadas.
Dessa forma, faremos uma análise comparativa a fim de observar a hipótese do recurso de
contraponto mnemônico na música popular brasileira, como sugerido por Falleiros (2006).
O contorno melódico do tema original é mantido durante a última exposição da
parte A da forma AABA49 porém com modificações rítmicas em relação à melodia do tema
através da criação de variações50.
49 O sinal de repetição no início e no fim dos primeiros oito compassos significa que a primeira seção (A) é repetida,
isso significa que os primeiros 16 compassos são chamados de AA. Embora o primeiro e o segundo sejam
diferentes, as seções são semelhantes para ter os mesmos nomes de letras. A próxima seção de oito compassos é
melodicamente e harmonicamente totalmente diferente das duas primeiras seções de oito compassos, então ela é
chamada B. Os últimos oito compassos é chamada de A. (LEVINE, 1995, p. 384). 50 Variação significa mudança: mas mudar cada elemento produz algo estranho, incoerente e ilógico, destruindo a
forma básica do motivo. Conseqüentemente, a variação exigirá a mudança de alguns fatores menos importantes e
a conservação de outros mais importantes. A preservação dos elementos rítmicos produz, efetivamente, coerência
(ainda assim, a monotonia não pode ser evitada sem ligeiras mudanças). No mais, a determinação dos elementos
mais importantes depende do objetivo composicional: através de mudanças substanciais é possível produzir uma
variedade de formas-motivo adaptáveis a cada função formal. (SCHOENBERG, 1991, p. 36).
71
No trecho abaixo temos a repetição de um mesmo fragmento melódico no compasso
1 e início do compasso 2 (Mi – Fá# – Sol#) de forma que, por estarem dispostas em harmonias
distintas, o fragmento, apesar de idêntico nas alturas, gera “colorações” distintas.
Concomitantemente, a nota Sol#, enfatizada pela repetição, conduz a uma memória da melodia
principal, pois se caracteriza por ser uma nota significante do tema, como vemos no pentagrama
comparativo, além da preservação do contorno melódico geral.
No compasso 2, observamos que comparativamente, a melodia sofre uma variação,
tanto na amplitude intervalar quanto na rítmica, mesmo assim, conserva a nota Sol#
referenciando ao tema original.
Verificamos comparativamente no compasso 3 o acréscimo de notas, ainda que o
contorno descendente se mantenha e tenha como finalização a nota Sol# (cabe lembrar que
geralmente na interpretação das músicas chamadas populares, o staccato, geralmente é, não
apenas curto, mas acentuado). Para Schoenberg (1991, p. 30) as notas adicionadas, que não
fazem parte dos acordes, auxiliam na fluidez e interesse da melodia.
FIGURA 8 - TRECHO COMPARATIVO “SAMBA DE ORFEU” (COMPASSOS 1, 2 E 3)
No início deste sistema, no compasso 4, verificamos uma repetição das notas Lá –
Dó# – Mi – Sol, significativas da melodia original, com o acréscimo da 5ª de E7sus4(9)(13) a
nota Si, ao mesmo tempo que reforçam a harmonia. Ritmicamente, a pausa empregada no
primeiro tempo da melodia original sofre um deslocamento no contorno melódico improvisado,
situando se no contratempo do 2º tempo do compasso 4, o que gera uma surpresa ao ouvinte,
pois esta pausa de colcheia corresponde a nota Sol# do tema original.
Melodicamente, no compasso 5, ocorre uma anacruse ascendente baseada em notas
estruturantes do acorde de C#m7 (Sol# – Lá – Si) em direção a nota a Si, a qual representa o
sétimo grau; em seguida, há uma aproximação cromática descendente que finaliza na nota Mi,
72
7ª do acorde de F#m7(9), nota significante da melodia original, de tal maneira que verificamos
uma repetição da célula do tema original, situada no 2º tempo do compasso 6, na melodia
improvisada. (Mi – Dó# – Mi).
Acreditamos que o uso do cromatismo crie uma sensação dúbia em relação ao
reconhecimento da melodia do tema, causando uma tensão em relação a cadência harmônica
deste trecho, pois ao mesmo tempo em que é desconstruída, através da aplicação de variações,
a sonoridade criada no desenvolvimento melódico remete à melodia original, devido a
manutenção dos “pontos” de apoio da melodia.
No compasso 7 são mantidas as notas que finalizam a melodia do tema (Mi e Si) e
uma bordadura formada pelas notas Si – Dó# – Si, última nota do compasso 7 da melodia, como
um artifício de variação melódica gerando surpresa para o ouvinte.
FIGURA 9 - TRECHO COMPARATIVO “SAMBA DE ORFEU” (COMPASSOS 4, 5, 6 E 7)
No compasso 8, comparativamente observamos as mesmas alturas melódicas e
contorno ascendente. Existe uma inclusão de uma nota (La#), enarmônica de Sib (7ª menor de
C7(9)), que inicia a melodia e uma “contração” da rítmica neste trecho. O compasso 9 se
apresenta praticamente idêntico no comparativo a não ser pela anacruse (Fá#) para o compasso
seguinte.
No compasso 10, temos uma transposição com variação do desenho melódico para
uma quinta justa acima para as notas principais (Fá# no tema e Dó# no solo, em seguida Ré no
tema e Lá no solo) na preparação para atingir a nota Si do compasso 11, contudo ocorre por
intervalo de quinta e diatônico (Fá# - Lá → Si).
A resolução da 7ª menor do acorde de Bm7(9)(11) encontrado no compasso 9 para
a terça de G7 no final do compasso 11 (melodia original, pentagrama inferior) é valorizada na
versão de Moura, com a condução da melodia nos compassos finais (compasso 11 e 12), pois a
nota Si, ao mesmo tempo que resolve a 7ª do acorde anterior, representa a 3ª do acorde
73
dominante de G7(13). Este trecho, a partir do compasso 11, inicia com a nota Si e segue em
direção a mesma nota oitava abaixo, porém, percorre um caminho melódico elaborado a partir
de uma bordadura, representada pelas notas Si – Dó – Si no primeiro tempo do compasso;
movimento em grau conjunto, seja descendente (Lá – Fá – Mi) ou ascendente (Lá – Si – Dó),
ainda no compasso 11 e aproximações cromáticas configuradas pelas notas Dó – Si – Sib – Lá
no primeiro tempo do compasso 12.
FIGURA 10 - TRECHO COMPARATIVO “SAMBA DE ORFEU “ (COMPASSOS 8, 9, 10, 11 E 12)
O trecho abaixo é caracterizado pelas aproximações em direção as notas
representativas, tanto da melodia do tema quanto da harmonia. Em comparação, verificamos no
compasso 13 a presença de um arpejo formada pela 3ª, 5ª e 7ª do acorde de Bm7(9) (Ré – Fá#
– Lá) seguido de uma aproximação cromática ascendente Fá# – Fá## – Sol#, em direção a nota
da melodia, a nota Sol#, acompanhada de um movimento descendente cromático Fá# – Fá –
Mi, no sentido da nota Ré. Observamos que essa aproximação cromática desenvolvida em torno
da nota Sol# e Ré, traz uma memória da melodia do tema, ao mesmo tempo em que a cadência
harmônica é reforçada, pois a nota Sol# caracteriza se por ser a 3ª maior e a nota Ré a 7ª menor
do acorde dominante de E7sus4(9)(13). Nos compassos 14 e 15 o contorno melódico é
desenvolvido com base em aproximações diatônicas inferior superior (enclosure ) empregado
no 1º tempo do compasso 14 (inferior superior Dó# – Lá – Si), assim como no 15 (superior
inferior Si – Dó# – La) e bordadura no 2º tempo do compasso 15 caracterizada pelas notas Lá
– Si – Lá.
74
FIGURA 11 - TRECHO COMPARATIVO “SAMBA DE ORFEU” (COMPASSOS 13,14 E 15)
Segundo Givan51 (2003, p. 472) a paráfrase é um tipo de improvisação elaborada a
partir de uma melodia preexistente, o solo criado pelo improvisador é proveniente de um tema
prévio, ou seja, a melodia original torna se uma referência para o processo criativo do solista.
Enquanto o contraponto mnemônico mantém certos aspectos da melodia original realizando um
paralelo ao longo do tempo com indícios mnemônicos que preservam o tema original na escuta
interna do ouvinte, a paráfrase faz o uso de fragmentos dispersos e realiza uma derivação
fundamentada neles.
De forma abreviada, observamos no trecho analisado52 a utilização de recursos de
variação melódica que estão de acordo com a hipótese de contraponto mnemônico, no qual o
improvisador busca manter contornos que permitam o reconhecimento da melodia do tema,
mas ao mesmo tempo tangem o limite de uma nova melodia.
51 the paraphrase improvisation resembles a pre existent melody because the performer use this melody as a guide
- the solo is conceptually derivaded from the melody (GIVAN, 2003, p. 473). 52 Apesar de Moura realizar outro trecho com solo improvisado que conduz para a finalização da música após o
solo de piano, acreditamos que o exposto acima já seja suficiente para confirmar nossa hipótese do uso do
contraponto mnemônico, e os recursos que ele utiliza para efetivar este tipo de solo improvisado sendo que a
sequência não traria efetivamente nenhum acréscimo significativo. Contudo para posteriores análises, a transcrição
completa pode ser encontrada na seção de anexos deste trabalho.
75
4.2 – Transcrição e análise do solo em “Yardbird suite”
Este tema de jazz característico do bebop foi composto por Charlie Parker53 e
tornou-se uma composição representativa do estilo. Em 1946 Parker gravou "Yardbird suite",
originalmente intitulado "What price love?".
A versão de Moura, se encontra no álbum “Paulo Moura e quarteto” (Equipe, 1969),
na qual foi mantida parte dos músicos do disco anterior “Paulo Moura hepteto”, citado
anteriormente. Atuaram ao lado de Moura os músicos Cesário Luiz Alves (contrabaixo),
Pascoal Meirelles (bateria) e Wagner Tiso (piano e arranjos).
Nossa hipótese é de que Moura utilize recursos melódicos difundidos pela escola
de improvisação jazzística, como a valorização de notas características dos acordes, mais
precisamente a 3ª e 7ª no acorde dominante e, fundamental e 3ª no acorde de tônica, e sua
ocorrência em momentos decisivos para representar a mudança de acordes no decorrer da
harmonia. Além disso o uso de padrões e repetições rítmicas, aproximações e enclosures devem
ser observados como elementos que trazem coerência melódica e são recorrentes nas
improvisações jazzísticas, conforme atesta o autor Jerry Coker.
De acordo com Coker (1991, p. 19)54 no jazz, a resolução da 7-3, ou seja, a sétima
e terça do acorde, na maioria das vezes está relacionado a uma progressão harmônica II-7 para
V-7, as vezes V7 para I. No entanto a principal preocupação desta resolução destes dois acordes,
está relacionada diretamente no que diz respeito às implicações melódicas e não harmônicas,
conforme revelam os exemplos abaixo desenvolvidos por Charlie Parker.
FIGURA 12 - EXEMPLO 101 E 102 - COKER, 1991, P. 19
53 Ver p. 11. 54 In jazz, the setting for the 7-3 resolution is most often a harmonic progression of II-7 to V-7, thought the setting
is sometimes V7 to I. (...) we are now simply concerned with the smooth connection (voice-leading) of two chords,
especially with respect to melodic, rather than harmonic, implications (1991, p. 19).
76
Outros elementos que devemos nos atentar é o uso de padrões jazzísticos
geralmente utilizados na elaboração do solo, como no exemplo na figura abaixo. Segundo
Coker (1991, p. 8) os padrões jazzísticos são formados por células melódicas, normalmente de
4 a 8 notas, elaboradas de acordo com a relação da nota e sua função com o acorde em questão
de cada tonalidade ou escala.
FIGURA 13 - EXEMPLO 34 - COKER, 1991, P. 8
A ilustração abaixo demonstra uma técnica que caracteriza a linguagem jazzística.
De acordo com Coker (1991, p. 61) os enclosures é uma técnica linear ou melódica, no qual
uma nota alvo é abordada por aproximações diatônica ou cromáticas, podendo ser superior-
inferior ou inferior-superior. Na sequência seguem exemplos de enclosures aplicados por
Parker no desenvolvimento de seu solo nos temas “Confirmation” e “Yardbird suite”.
FIGURA 14 - ILUSTRAÇÃO - COKER, 1991, P. 61
77
FIGURA 15 - EXEMPLOS 211 E 212 - COKER, 1991, P. 53
Outra característica relevante na linguagem jazzística é o uso de padrões melódicos
estruturados a partir de notas significativas de cada acorde inserido na harmonia de um tema de
jazz, conforme demonstramos na figura abaixo.
FIGURA 16 - EXEMPLO 31 - COKER, 1991, P. 9
Segundo Teixeira (2015, p. 207) a estrutura (1235) apresentada acima é
denominada pelos músicos como Coltrane Liks ou Coltrane Patterns, devido ao uso frequente
deste padrão pelo saxofonista John Coltrane, destaque para o solo em Giant Steps, no álbum
que recebe o mesmo nome. Este padrão é caracterizado como um artifício técnico para sustentar
um andamento muito rápido com progressões harmônicas complexas.
Abaixo seguimos com a análise dos trechos que consideramos relevantes sobre o
solo de Paulo Moura.
O trecho abaixo inicia com um contorno melódico no 2º tempo do compasso 1
definido pelo uso do padrão 1235 (Fá – Sol – Lá – Dó) que finaliza na nota Fá, fundamental do
acorde de Fm7, a mesma nota a qual assumirá a função de 5ª do acorde dominante de Bb7 no
2º tempo do compasso 2. No terceiro compasso a melodia apresenta um movimento
descendente formado por notas curtas entrecortadas de silêncio, privilegiando a rítmica, que se
estende até metade do compasso 4. No 2º tempo do compasso 4 nota se um enclosure,
78
aproximação inferior-superior, para a nota Si (Dó – Lá – Si), terça maior de G7, a qual reforça
a finalização deste contorno melódico no compasso 5.
FIGURA 17 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 1, 2, 3, 4, 5 E 6)
Melodicamente, a figura abaixo é elaborada com base nas aproximações
(enclosure) alternando se com a aplicação de bordaduras em torno das notas significantes dos
acordes de cada compasso. A partir do 2º tempo do compasso 8 notamos uma aproximação
diatônica (enclosure) inferior-superior (Dó – Lá – Sib), bem como no 1º tempo do compasso 9,
porém superior e inferior (Ré – Fá – Mi), e uma aproximação final superior-inferior (enclosure)
caracterizada pelas notas Sol – Sib – Lá. As bordaduras aparecem no início do compasso 7 (Dó
– Si – Dó) e no 1º tempo do compasso 9 (Mi – Dó – Mi).
FIGURA 18 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 7, 8, 9 E 10)
Entre os compassos 10 e 14 o contorno melódico é elaborado em torno da nota Lá,
enquanto a cadência harmônica caminha, fazendo com que a mesma nota assuma diferentes
funções, 5ª (Dm7), 11ª (Em7(b5)), fundamental (A7) até atingir a 9ª do acorde de C#7(9)(13)/B,
utilizando um efeito de portamento para a nota Ré. No compasso 14 observamos o uso de uma
bordadura composta pelas notas Sol – Fá – Sol, enfatizando a 5ª do acorde de Cm7 (Sol).
79
FIGURA 19 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 10, 11, 12, 13 E 14)
No compasso 15 notamos a ocorrência de duas aproximações (enclosures), uma
inferior-superior do 1º tempo do compasso para o 2º tempo (Mi – Dó# – Ré), e outra, superior-
inferior (Sol – Sib – Lá) já no 2º tempo. Verificamos uma aproximação diatônica superior-
inferior (enclosure) Fá – Ré – Mib, na passagem do compasso 16 para o 17; assim como entre
o 1º e 2º tempo do compasso 17, contudo, de forma inferior-superior (Sol – Sib – Lá),
finalizando na terça do acorde de F7 (Lá), nota significante deste acorde, que juntamente com
a sétima realiza o trítono, responsável pela sua tensão harmônica característica.
FIGURA 20 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 15, 16 E 17)
O trecho abaixo inicia no compasso 23 com uma variação melódica referenciada no
fragmento melódico elaborado no compasso anterior e dos motivos rítmicos que se repetem. É
significativo ressaltarmos a intenção em valorizar as notas sensíveis que caracterizam a
harmonia, 3ª e 7ª. A aplicação da bordadura (Mib – Fá – Mib) caracteriza o 1º tempo do
compasso 2, bem como no contratempo do 1º tempo do compasso 25 (Dó – Si – Dó). Uma
aproximação diatônica superior-inferior (enclosure) ocorre no 2º tempo do compasso 23
formada pelas notas Sol – Sib – Lá.
80
FIGURA 21 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 23, 24 E 25)
Na figura abaixo verificamos um movimento melódico ascendente fundamentado
em uma resolução característica do jazz55, já citado anteriormente. Neste modelo de resolução
típica, a melódia enfatiza as notas característica do acorde C7(9)(13), através de uma repetição
alternada das notas estruturantes deste acorde, gerando duas bordarura consecutivas (Dó – Si –
Dó e Ré – Dó – Ré), e reforça a resolução da 7ª de C7(9)(13) (Sib) para a 3ª de F7 (Lá) no 1º
tempo do compasso 31. No 2º tempo do compasso 31 observamos uma aproximação diatônica
superior-inferior (enclosure) formado pelas notas Ré – Fá – Mib (7ª menor do acorde de F7),
que resolve na 3ª (Ré) de Bb7(9)(13) vigente no 1º tempo do compasso 32.
No compasso 33 há uma reminiscência do padrão jazzístico 1235 no 1º tempo, pois
sob o acorde de C7(9)(13), este padrão é transposto uma terça acima, enquanto no 2º tempo
ocorre uma bordadura formada pelas notas Fá# – Sol – Fá#.
FIGURA 22 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 29, 30, 31, 32E 33)
No 1º tempo do compasso 34 observamos o uso de um arpejo descendente de
Fm7(9) (Fá – Mib – Láb - Sol), seguido de uma aproximação diatônica inferior-superior
(enclosure) Dó – Lá – Sib, situada no 2º tempo. No compasso 36 a valorização da 3ª e 7ª é
55 Ver p. 54.
81
mantida através da sustentação da nota Fá até o compasso 37, caracterizando a 3ª de Dm7(9)(11)
e 7ª do acorde de G7(9)(13).
FIGURA 23 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 34, 35, 36, 37 E 38)
No 1º tempo do compasso 40 observamos uma aproximação inferior-superior
(enclosure) que é precedida, incialmente, por uma antecipação da nota Sol no compasso 38
configurando a 5ª de C7(9) e a 7ª de F7(9)(13) e por uma variação do padrão 1235 no compasso
39 formado pelas notas Láb – Sol – Fá – Ré. No compasso 41 ocorre uma aproximação diatônica
superior-inferior (enclosure) representada pelas notas Sol – Sib – Lá, a qual é suspensa na
mudança de acorde para o seguinte compasso, assumindo uma outra função harmônica –
fundamental em A7(b9)(#11) e quinta em Dm7(9), no compasso seguinte.
FIGURA 24 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 38, 39, 40 E 41)
Observamos um arpejo descendente de Dm7(9) no compasso 42 formado pelas
notas significantes deste mesmo acorde, (Lá (5ª) – Fá (3ª) – Ré (T) – Dó (7ª). No compasso 43
o contorno melódico mantém a estrutura de um arpejo ascendente formado pelas notas Si – Ré
– Fá – Láb em direção a nota Sol, a qual sofre um retardo56 nos compassos 44 e 45, assumindo,
assim, a função de 11ª, fundamental e 5ª, enquanto a harmonia mantém o seu encadeamento
neste trecho.
56 Se uma voz em seu movimento gradual e na sucessão de um acorde a outro, se mantem e se prolonga sobre o
segundo acorde, produz-se o chamado retardo (KORSAKOV, 1947, P. 100).
82
FIGURA 25 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 42, 43, 44, 45, 46 E 47)
No trecho abaixo observamos uma bordadura no primeiro tempo do compasso 48
(Dó – Si – Dó), assim como uma aproximação diatônica inferior-superior (enclosure)
configurada pelas notas Dó – Si – Ré na passagem do compasso 48 para o 49 e no 2º tempo do
compasso 49, porém superior-inferior (Láb – Sib – Sol).
FIGURA 26 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 48, 49 E 50)
O contorno melódico iniciado no compasso 50 apresenta uma aproximação
diatônica inferior-superior (enclosure) formado pelas notas Mib – Dó# – Ré no 1º tempo deste
compasso. No compasso 51 observamos uma bordadura no 2º tempo caracterizada pelas notas
Sol – Fá – Sol, assim como nos compassos 53 (Dó – Mib – Dó) e no compasso 54 (Sol – Láb –
Sol). No fragmento melódico do compasso 52 verificamos uma bordadura (Ré – Mib – Ré) no
1º tempo, seguida uma aproximação diatônica superior-inferior (enclosure) representadas pelas
notas Sol – Sib – Láb no 2º tempo.
FIGURA 27 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 50, 51, 52, 53, 54, 55 E 56)
83
Verificamos a presença do padrão 1235 (Sib – Dó – Ré – Fá) na passagem do
compasso 56 para o 57 seguido de uma aproximação diatônica inferior-superior (enclosure)
formado pelas notas Fá – Ré – Mib no 1º tempo do compasso 57. O contorno melódico
estabelecido no compasso 58 é elaborado em função da nota Láb, que caracteriza a 3ª de
Fm7(9)(11) no 1º tempo do compasso e a 7ª de Bb7(9)(13) no 2º tempo deste compasso. No
fragmento melódico do compasso 59 ocorre uma aproximação diatônica (enclosure) constituída
pelas notas Fá – Mib – Fá – Ré, caracterizando a fundamental do acorde de Dm7(9)(11) ao
mesmo tempo que inicia um arpejo ascendente em direção a fundamental 8ª acima (Ré – Fá –
Láb – Ré) que finaliza, com uma aproximação cromática em relação a nota Sol, fundamental
do acorde final de G7(9)(13).
FIGURA 28 - TRECHO “YARDBIRD SUITE” (COMPASSOS 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62 E 63)
Ao longo desta análise, observamos o uso principalmente dos seguintes artifícios
de construção melódica já muito difundidos pela escola jazzística: o enclosure, o padrão 1235
e os arpejos para caracterização melódica da harmonia. Também se observa o cuidado em
encontrar notas que representem melhor a diferença entre os acordes no decorrer da cadência
harmônica.
84
4.3 – Transcrição e análise do solo em “Se Algum Dia”
Este samba canção foi composto pelo cantor Martinho da Vila, gravado e lançado,
no álbum intitulado “Maravilha de cenário” de 1975, pela gravadora RCA Victor. Moura
gravou este samba canção no álbum “Confusão urbana, suburbana e rural”, de 1976 pela
gravadora RCA Victor, a mesma gravadora de Martinho da Vila na época.
Nesta gravação, os músicos que atuaram ao lado de Moura foram: Doutor
(percussão), Elizeu Felix (percussão), Geraldo Bongô (percussão), Gilberto D'Ávila
(percussão), José Alves da Silva e sua turma (cordas), Luna (percussão), Nilton Delfino Marçal
(percussão), Rafael (percussão), Toninho Horta (violão), Zeca da Cuíca (cuíca), Márcio
Montarroyos (trompete), Maurílio da Silva Santos (trompete), Mauro Senise (saxofone),
Nivaldo Ornelas (saxofone), Raul de Souza (trombone) e Wagner Tiso (órgão e arranjos).
Conforme relatamos em capítulos anteriores, Moura atribuiu a Martinho um papel
de referência no seu aprendizado em relação a rítmica brasileira. Além de ter participado de
turnês, tanto no Brasil, quanto no exterior nos anos 70, Martinho da Vila atuou como produtor
do álbum “Confusão urbana, suburbana e rural”.
Com base nas evidências biográficas angariadas no capítulo 1, observamos neste
período da carreira de Moura um aprofundamento pormenorizado referente ao estudo e a prática
da rítmica brasileira, no aperfeiçoamento do seu processo criativo como músico solista.
Falleiros (2006, p. 58) afirma que a improvisação melódica é capaz de assumir um
caráter complexo, porém é comum manter características vinculadas a melodia original, como
figuras rítmicas e contornos melódicos. Para Valente (2014, p. 45) a improvisação elaborada
no choro fundamenta se em aspectos que considera intrínsecos ao contorno melódico à este
gênero musical, como o uso da anacruse no início das frases, as finalizações dos períodos
oriundos da polca; o uso de escalas, bem como notas repetidas, no desenvolvimento melódico;
o recurso do cromatismo e intervalos maiores ou iguais a uma quinta, tanto ascendente quanto
descendente; o uso da ornamentação e materiais idiomáticos. Aspectos, estes, que consideramos
relevantes para a análise do tema em questão e serão esmiuçados no decorrer de nossa análise,
nos trechos que acreditamos ser relevantes.
No que tange a questão rítmica referente a música brasileira, Carvalho (2011, p.
116) aponta semelhanças tanto na forma quanto na origem africana, porém nos atentaremos nas
transformações de figuras rítmicas geradas num contexto ternário adaptados a um contexto
85
binário, representada pelo síncopa característica 57 . Esta célula rítmica está amplamente
inserida nos ritmos provenientes da polca no Brasil, tanto no desenvolvimento melódico quanto
no acompanhamento, como por exemplo no maxixe.
FIGURA 29 - SÍNCOPA CARACTERÍSTICA
Salek (1999) aponta que na linguagem idiomática do choro é comum substituir
quatro semicolcheias por quiálteras, configurando uma prática característica do conceito de
flexibilidade rítmico-melódica, que procura diluir a síncope, para depois reforçá-la através de
retardos, substituição de valores e deslocamento da acentuação.
Valente (2014, p. 55) aponta os principais padrões rítmicos empregados nas
melodias do choro, conforme figura abaixo:
FIGURA 30 - PADRÕES RÍTMICOS DO CHORO
No entanto, Valente (2014, p. 60) afirma que não é usual nos depararmos com a
célula rítmica formada por duas semicolcheias no tempo forte e uma colcheia no contratempo
conforme ( ). Observamos que ao longo de nossa análise a presença desta célula rítmica
é recorrente na elaboração melódica de Moura. Podemos verificar esta figura rítmica em temas
de Pixinguinha e Jacob do Bandolim de acordo com os exemplos abaixo:
FIGURA 31 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “SEGURA ELE” (PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA)
57 A presença desta figura rítmica na música brasileira do século XIX e início do XX é tão marcante que levou
Mário de Andrade a cunhar a expressão "síncope característica" para referir-se a ela, termo discutível, mas
consagrado pelo uso. (SANDRONI, 2002, p. 102).
86
FIGURA 32 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “CHEGUEI” (PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA)
Segundo Spielmann (2008, p. 103) a articulação baseada na ligadura de duas em
duas semicolcheias em sequência, tornou se um padrão básico para o ensinamento do choro. A
autora ressalta que não há regras, visto que cada momento performático pode ter uma
articulação específica, porém é importante que se mantenha uma unidade coerente em relação
a articulação aplicada a cada tema deste gênero.
O desenvolvimento melódico do compasso 1, iniciado no contratempo do 1º tempo
deste compasso, é estruturado a partir da escala de Lá menor com um movimento ascendente
formado por um agrupamento de semicolcheias (Lá – Dó – Ré – Mi – Sol), caracterizando um
padrão 1235 de Dó maior (relativo de Lá menor) em direção a nota Si, localizada no 1º tempo
do compasso 2. De acordo com Valente (2014, p. 186) o contorno melódico estruturado através
de uma escala propicia uma ampla tessitura, enfatizando a expressividade para um instrumento
melódico.
Spielmann (2008, p. 129) afirma que as antecipações e quiálteras, que na maioria
das vezes são de três colcheias no lugar de duas ou então, de seis semicolcheias no lugar de
quatro, representam elementos característicos do samba e do choro, gerando uma intenção de
retardo na melodia; como fica evidenciado no compasso 2 (antecipação da nota Si) e compasso
3 (quiálteras de Sol## – Lá# e Mi – Sol) reforçado pelos exemplos de temas do choro abaixo.
As notas aplicadas no contorno melódico do compasso 3 sofrem uma variação
rítmica no compasso 4, pois a quiáltera é desconstruída em um único grupo de 4 colcheias,
mantendo a mesma tessitura do compasso anterior em torno da 5ª, 7ª e fundamental (Mi – Sol
– Lá#) com um desenho melódico que prepara uma aproximação para a nota Si, fundamental
do acorde de Bm7 vigente no último compasso 5, seguida de um salto descendente
ornamentado através do uso de um glissando em direção a 3ª (Ré), endossando o acorde de
Bm7.
FIGURA 33 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 1, 2, 3, 4 E 5)
87
FIGURA 34 - TRECHO INICIAL DA PARTE A DA COMPOSIÇÃO “GARGALHADA” (PIXINGUINHA)
FIGURA 35 - TRECHO INICIAL DA PARTE B DA COMPOSIÇÃO “GARGALHADA” (PIXINGUINHA)
Assim como no desenho melódico anterior, o começo deste trecho é caracterizado
pelo uso da anacruse, ou seja, a melodia não inicia no tempo forte, pois temos uma pausa de
semicolcheia no início do 1º tempo do compasso 6, no qual a estrutura rítmica é formada por
um grupo de semicolcheias no 1º tempo e um agrupamento de duas semicolcheias no tempo
forte do 2º tempo com uma colcheia no contratempo. Do compasso 7 até o 1º tempo do
compasso 8 observamos um contorno melódico descendente de semicolcheias, formado por
intervalos de terças, no qual as notas são articuladas de duas em duas.
FIGURA 36 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 6, 7, 8 E 9)
De acordo com Sève (2009, p. 15) existem diversas opções de articulações
características do choro, conforme podemos verificar na figura abaixo:
FIGURA 37 - EXEMPLOS DE ARTICULAÇÕES DO CHORO (SÈVE (2009, P. 15)
88
O uso da articulação de duas em duas semicolcheias em sequência58 configura-se
como um elemento significante deste gênero como citamos anteriormente, além do padrão
intervalar de terças aplicado neste trecho. Segundo Teal (apud SPIELMANN, 2008, p. 82), o
aperfeiçoamento da habilidade em relação a articulação é fundamental para a elaboração de
uma performance musical.
Os compassos 10 e 11 são caracterizados pelo uso de células rítmicas acéfalas, ou
seja, começam com pausa no tempo forte. Este procedimento, na elaboração do contorno
melódico é um elemento rítmico característico do maxixe que foi incorporado ao choro.
FIGURA 38 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 10, 11 E 12)
De acordo com Carvalho (2006, p. 129), este agrupamento de três semicolcheias
com uma pausa de semicolcheia no início configura um padrão rítmico típico do maxixe, como
“resposta” ao acompanhamento do baixo. Podemos averiguar as semelhanças com os exemplos
abaixo de melodias de autoria de Pixinguinha:
FIGURA 39 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “CHEGUEI” (PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA)
FIGURA 40 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “CHORO DE GAFIEIRA” (PIXINGUINHA)
FIGURA 41 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “CONCERTO DE BATERIA” (PIXINGUINHA)
58 Ver p. 61.
89
Acreditamos que esta particularidade contribua com a originalidade criativa de
Moura em relação ao tratamento rítmico empregado na elaboração de seu improviso, pois o uso
recorrente desta transformação do agrupamento de quatro semicolcheias resulta numa
acentuação melódica na segunda semicolcheia de cada tempo, gerando um deslocamento da
pulsação rítmica binária, característica do choro.
A partir do 2º tempo do compasso 12 o contorno melódico é construído, em sua
maior parte, com base na figura de semicolcheia, mantendo um movimento ascendente em grau
conjunto em direção a nota Dó, sétima do acorde dominante de D7. O 1º tempo do compasso
13 configura um intervalo descendente de 3ª, formada pelas notas Dó – Lá – Dó seguido de um
desenho melódico descendente em direção a nota Dó, 8ª abaixo, localizada no 2º tempo do
compasso 14. Observamos que neste trecho, que engloba os compassos 12, 13 e a primeira
metade do compasso 14, é predominante o uso da articulação característica do choro, ou seja,
grupos de semicolcheias em sequência ligadas de duas em duas notas, independente do caminho
da melodia.
No 2º tempo do compasso 14, o desenvolvimento melódico elaborado até o
compasso 16 contrasta com o fragmento anterior, mesmo mantendo a semicolcheia na sua
estrutura, pois temos uma célula rítmica acéfala no 2º tempo do compasso 14, a qual gera um
rompimento no fluxo rítmico determinado pelo uso constante das semicolcheias nos compassos
anteriores, bem como o uso da tercina e variações em relação a articulação, características do
choro.
FIGURA 42 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 12, 13, 14, 15 E 16)
O trecho abaixo inicia se com uma anacruse, mantendo um contorno melódico
ascendente baseado em semicolcheias ligadas de duas em duas entre os compassos 17 a 19.
Ritmicamente o compasso 19 e 20 é composto, em sua maioria pela presença da tercina.
90
FIGURA 43 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 17, 18, 19, 20 E 21)
De acordo com Valente (2014, p. 186) o caráter síncopado é omitido quando utiliza
se está célula rítmica tercinada, a qual propicia uma espontaneidade ao contorno da melodia.
Podemos associar esta fluidez melódica ao conceito de métrica derramada apresentado por
Ulhôa (1999).
“Nas interpretações que “derramam” a métrica, a noção de compasso como acontece
na concepção temporal europeia é mantida, mas este compasso é flexibilizado, tanto
nos seus limites, quanto na sua estrutura interna que é modificada em termos de
hierarquia das pulsações”. (ULHOA, 1999, p. 2).
O tratamento melódico e rítmico aplicado por Moura no desenvolvimento de sua
improvisação, como músico solista improvisador, apresenta peculiaridades que definem a
prática interpretativa de sua performance. Para Ulhoa (1999, P. 1), a respeito do conceito de
métrica derrama, citado anteriormente, a melodia e a letra, de uma canção popular, interferem
diretamente uma sobre a outra, particularmente no que se refere a qualidade narrativa ou lírica
que direcionam a distintos tipos de melodia.
Verificamos uma anacruse no contratempo do compasso 21, a qual inicia o contorno
melódico estabelecido em função da figura de semicolcheia, ligadas de duas em duas no
compasso 22. No 1º tempo do compasso 23 a presença da tercina permite uma flexibilidade
rítmica em relação ao constante movimento determinado pelo agrupamento de quatro
semicolcheias desde então. No início do compasso 24 a célula rítmica, formada por um
agrupamento de duas semicolcheias no 1º tempo e uma colcheia, finaliza este trecho.
91
FIGURA 44 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 22, 23 E 24)
O desenho melódico do trecho seguinte inicia com uma célula rítmica acéfala no 2º
tempo do compasso 25 e outra célula rítmica no tempo forte no 1º tempo do compasso 26. Na
sequência temos uma anacruse no 2º tempo do compasso 26 que desenvolve um movimento
melódico ascendente contínuo, estabelecido pelo uso da semicolcheia e da articulação definida
pela ligadura de duas em duas notas ao longo do compasso 27 e 28.
Nos compassos 29 e 30 a articulação empregada assume um sentido descendente
em direção ao compasso 31, no qual a finalização é caracterizada por uma superposição rítmica,
resultado de agrupamento ternário sobre o pulso binário, obtido através do contorno melódico
e da alteração da acentuação.
FIGURA 45 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 25, 26, 27, 28, 29, 30 E 31)
De acordo com Falleiros (2006, p. 112), este modelo de deslocamento, nomeado de
hemíola59, é recorrente em diversos temas de choro, como “Brasileirinho” de Waldir Azevedo,
como podemos verificar na figura abaixo:
FIGURA 46 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “BRASILEIRINHO” (WALDYR AZEVEDO)
59 Figura de proporção rítmica [3:2]. Artifício que simula três compassos binários em dois ternários, comum em
danças barrocas como a sarabanda e a courante. (DOURADO, 2004, p. 160).
92
Este procedimento demonstra a habilidade do solista em estabelecer novos pulsos
sem perder a relação com o pulso original (FALLEIROS, 2006, P. 113).
No compasso 32 observamos uma subdivisão rítmica no contorno melódico
ascendente definido por dois grupos de sextinas. No primeiro grupo a articulação caracteriza se
por ser de duas em duas notas, já no segundo grupo, a ligadura atua em toda a sua extensão em
direção a nota Lá no compasso 33, no qual ocorre uma bordadura. A variação rítmica elaborada
entre os compassos 34 e 35, caracterizada se pelo uso da tercina ao invés da síncopa, o que nos
remete ao conceito da métrica derramada, citado anteriormente. No compasso 37 observamos
a presença do compasso acéfalo, seguido de um agrupamento recorrente, formado por duas
semicolcheias e uma colcheia, situado no 2º tempo do compasso 37, bem como na finalização
desta melodia no 2º tempo do compasso 39.
FIGURA 47 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38 E 39)
A estrutura rítmica definida no desenvolvimento da melodia adotada na elaboração do
contorno melódico iniciado no compasso 40, assemelha se a temas do choro como por exemplo,
o trecho abaixo do tema “Na Glória” e “Brasileirinho”:
FIGURA 48 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 40, 41, 42, 43 E 44)
O sentido de marcação do tempo realizado pelas semínimas Dó e Ré,
respectivamente no 2º tempo do compasso 40, 1º tempo do compasso 41 e a nota Sol# (colcheia)
93
no tempo forte do 2º tempo do compasso 42, em associação com as antecipações das notas Si,
no contratempo do 2º tempo do compasso 41, e a nota Lá, no contratempo do 2º tempo do
compasso 42, assim como o uso das pausas, reforçam a semelhança com os temas citados.
FIGURA 49 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “NA GLÓRIA” (ARY DOS SANTOS E RAUL DE BARROS)
FIGURA 50 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “BRASILEIRINHO” (WALDYR AZEVEDO)
De acordo com Sève (2009, p. 13), o qual ressalta que as acentuações aplicadas no
desenvolvimento melódico no choro, bem como as variações rítmicas, devem manter como
base a estrutura rítmica dos instrumentos que assumem a função de acompanhamento da
melodia. Os exemplos extraídos dos temas de choro representam uma finalização
convencionada, ou seja, tanto os instrumentos melódicos quantos os harmônicos e percussivos,
realizam a mesma estrutura rítmica, definindo o término do trecho musical.
Observamos que o desenho melódico estabelecido entre os compassos 45 e 48
prepara a volta para o tema original a partir do uso do cromatismo associado a tercina situados
no 2º tempo do compasso 45 (Sib – Lá – Sol# – Sol) e no 1º tempo do compasso 46 com um
intervalo de segunda menor (Lá – Lab – Sol – Fá#). Acreditamos que, o uso simultâneo desses
dois aspectos, característico do choro, reforcem o conceito de métrica derramada discutido
anteriormente.
FIGURA 51 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 45, 46, 47, 48 E 49)
94
Moura estabelece em seu desenvolvimento melódico uma fusão elaborada dos
elementos peculiares ao choro, através da aplicação da articulação de duas em duas notas,
associada a figura da semicolcheia, a qual propicia uma fluidez continua do movimento
melódico; o uso de compassos acéfalos e da anacruse estabelecidos no início da maior parte dos
fragmentos melódicos, bem como a finalização em tempos fracos do compasso; a diluição da
síncopa, caracterizada pelo uso da tercina, ressaltando o conceito de métrica derramada; a
particularidade melódica no uso das ornamentações como apojaturas e glissandos, e o
deslocamento rítmico gerado pelo uso das pausas de semicolcheias.
Acreditamos que o caráter interpretativo de Moura está relacionado, em especial,
ao contorno melódico empregado no desenvolvimento de sua improvisação, associado a
habilidade do uso das acentuações caracterizadas pela aplicação da ligadura, staccato e marcato,
assim como a exploração da sonoridade, timbre e entonação do seu instrumento, o que
influencia na definição de uma originalidade interpretativa.
95
4.4 – Transcrição e análise do solo em “Dois Sem Vergonha”
“Dois sem vergonha” é uma composição de Moura em parceria com o pianista e
arranjador Wagner Tiso. Este samba faz parte do álbum “Confusão urbana, suburbana e rural
de 1976, gravado RCA Victor, do qual, Wagner Tiso atua como arranjador, além de ter
Martinho da Vila como produtor.
De acordo com as informações de encarte, neste álbum Moura é acompanhado pelos
seguintes músicos: Doutor (percussão), Elizeu Felix (percussão), Geraldo Bongô (percussão),
Gilberto D'Ávila (percussão), Luna (percussão), Nilton Delfino Marçal (percussão), Rafael
(percussão), Rosinha de Valença (violão), Valdir Silva (violão 7 Cordas), Zeca da Cuíca
(cuíca), Alexandre Papão (bateria) e Paulinho Batera (bateria).
Nossa hipótese é que Moura assume o elemento rítmico como ponto central da sua
construção melódico no desenvolvimento desta improvisação, pois diferente dos temas
anteriores, a harmonia no trecho improvisado é caracterizada pela presença de um único acorde.
A contextualização deste período da carreira de Moura citada anteriormente no
capítulo 1, reforça nosso pressuposto referente a análise deste tema, pois neste período Moura
vivenciou um contato direto com a escola de samba Imperatriz Leopoldinense, onde tocava
tamborim, ao mesmo tempo em que estabeleceu uma parceria produtiva ao lado de Martinho
da Vila, o qual Moura atribui uma parcela relevante em relação ao seu aprofundamento nos
estudos rítmicos da música brasileira.
Barros (2015, P. 70) afirma que o tamborim é provavelmente o instrumento da
seção rítmica com maior liberdade na execução. Usualmente, o ritmista pensa em formas
distintas de tocar quando insere o tamborim dentro de uma música, seja mantendo a levada, seja
com suas variantes dentro de um contexto melódico, seja improvisando. Segundo Zeh (2006,
p. 169), nos anos 70, o tamborim não deveria se juntar ao som compacto do restante da bateria.
Esta foi uma concepção sonora estabelecida pela escola Imperatriz Leopoldinense, na qual
Moura, além de tocar tamborim, arranjava as “convenções60” referente ao instrumento. Este
procedimento propiciou um papel de destaque ao tamborim, como comenta o ritmista Hélio
Kiefer:
60 Fórmulas rítmicas de um ou vários compassos, criadas para acompanhar o samba de enredo. O arranjo dos
tamborins é composto por várias dessas fórmulas rítmicas além do carreteiro. (ZEH, 2006, P. 170).
96
“O molho da bateria seria produzido pelos instrumentos caixa, repinique e chocalho,
e o tamborim serviria para adicionar um tipo de melodia, se destacando desse molho
e não se misturando com o som dos outros instrumentos. O tamborim executando
convenções, se destaca da bateria, dando assim, uma sonoridade específica à bateria.
Em vez do “carreteiro61”, tocavam uma linha rítmica entre a síncope e a quiáltera. E
ainda na primeira estrofe, executavam várias convenções, acompanhando a letra e o
ritmo do samba. Segundo vários sambistas, a Imperatriz foi a primeira a criar esse tipo
de arranjo, posteriormente imitada por outras baterias” (apud ZEH, 2006, P.171).
De acordo com a conjuntura apresentada, é relevante para a nossa análise,
salientarmos a função “melódica” assumida pelo tamborim na escola de samba Imperatriz
Leopoldinense, na qual o tamborim passa executar uma linha rítmica no limiar entre a síncopa
e quiáltera, bem como a variedade de instrumentos percussivos como o agogô, cuíca, pandeiro,
entre outros, inseridos na instrumentação do álbum em questão. De posse destas informações,
iniciaremos a análise dos trechos que consideramos relevantes do solo improvisado.
A divisão rítmica aplicada nos compassos 4 e 5, bem com as acentuações nas figuras
da semicolcheia representadas pelas notas Sol assemelham se a célula rítmica desempenhada
pelo agogô, conforme podemos verificar em seguida. De acordo com Bolão (2003, p. 40) a
célula rítmica executada pelo agogô nas escolas de samba do Rio de Janeiro é representada pela
figura abaixo:
FIGURA 52 - TRECHO “DOIS SEM VERGONHA” (COMPASSOS 4, 5, 6 E 7)
Verificamos comparativamente, que a estrutura rítmica empregada no compasso 4
e 5 possui, uma similaridade com as acentuações aplicadas na célula rítmica desempenhada
pelo agogô nas escolas de samba conforme ressaltamos na figura acima.
61 Levada típica em que são tocadas quatro semicolcheias por tempo, executada com uma técnica específica do
Instrumento, a qual não consideramos fundamental para a nossa análise, visto que esta técnica não era aplicada na
bateria da Escola Imperatriz Leopoldinense.
97
FIGURA 53 - TRECHO COMPARATIVO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 4 E 5)
O contorno melódico desenvolvido entre os compassos 8 e 10 assume um caráter
percussivo através da aplicação do staccato62 e do marcato63, principalmente no compasso 8, o
qual inicia a melodia através de uma célula acéfala no 1º tempo, seguido de um agrupamento
de 4 semicolcheias no 2º tempo, articuladas de maneira destacada.
FIGURA 54 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 8, 9 E 10)
O desenho rítmico estruturado no trecho acima caracteriza se, inicialmente, por
apresentar uma acentuação na última semicolcheia, localizada no 1º e 2º tempo do compasso
11, bem como no 1º tempo do compasso 12, configurando, ao mesmo tempo um movimento
melódico decrescente em grau conjunto (Si – Lá – Sol), se isolarmos somente as acentuações.
O uso do sforzando e staccato, reforçam a figura da síncopa do samba inserida no 2º tempo do
compasso 12, 13 (variação com pausas de semicolcheias) e no 2º tempo do compasso 15.
62 Staccato (“destacado”, em italiano) – representado por um ponto sobre a nota, faz com que a duração desta seja
reduzida aproximadamente à metade. (ALMADA, 2014, p. 30). 63 Marcato ou Sforzando, significa um aumento súbito de dinâmica apenas para as notas marcadas. (ALMADA,
2014, p. 28).
98
FIGURA 55 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 11, 12, 13, 14, 15 E 16)
As acentuações, empregadas neste trecho, particularmente nos compassos 11, 12 e
13, nos remete à acentuação rítmica típica do tamborim na escola de samba, conforme
demonstra Bolão (2003, p. 65) na figura abaixo, com destaque para o exemplo 1:
FIGURA 56 - DIVISÕES RÍTMICAS DO TAMBORIM
Moura faz uso das articulações no seu desenvolvimento melódico, tornando esta
ferramenta uma característica inerente ao seu processo criativo. De acordo com Liebman (apud
SPIELMANN, 2008, p. 85) a articulação é o principal componente do fraseado, responsável
pelo fluxo rítmico das frases; os outros são a dinâmica e as nuances expressivas; e comenta que,
para desenvolver um estilo próprio de tocar, é preciso prestar atenção no ataque, na suspensão
e no fim das notas.
A construção rítmica elaborada entre os compassos 17, 18 e 19 mantém a síncopa
como base de sua elaboração. O uso do staccato reforça o caráter percussivo inserido no
movimento melódica, este aspecto fica evidente no compasso 17, no qual o contorno melódico
99
se restringe ao uso de poucas notas que se repetem, bem como a presença da ligadura de
expressão tanto na figura da síncopa quanto nos grupos de semicolcheias que caracterizam os
compassos 18 e 19.
FIGURA 57 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 17, 18 E 19)
O desenho rítmico estabelecido neste trecho acima confere um caráter percussivo à
melodia, pois não há uma extensão intervalar significativa. Notamos o uso contínuo das
diferentes abordagens de articulação, seja o staccato, marcato, ou até mesmo a simultaneidade
destes dois sinais associado a figura da síncopa do samba e suas variações através das pausas,
seja de semicolcheia ou colcheia.
FIGURA 58 - TRECHO “SE ALGUM DIA” (COMPASSOS 28 E 33)
A partir de nossa análise sobre solo improvisado de Moura em “Dois sem vergonha”
pudemos demonstrar como Moura emprega elementos rítmicos que remetem à música
brasileira. Para obter tal efeito, Moura faz uso de recursos específicos como a emulação da
rítmica que é característica de instrumentos de percussão da escola de samba, como o agogô
(compassos 1-5) e o tamborim (compassos 11-13). Observamos também o uso extensivo da
síncopa característica ( ) (compassos 12, 15, 17, 18, 28, 29, 30 e 31), além da acentuação
que reforça o caráter rítmico em diversos pontos do improviso (compassos 28-33).
100
4.5 – Transcrição e análise do solo em “Alma brasileira”
“Alma brasileira”, autoria de Zeca Freitas, de acordo com o cruzamento das
informações obtidas através do songbook de Zeca Freitas, publicado em 2016, e dos dados
angariados em relação a discografia de Moura, pudemos averiguar que esta música foi composta
em meados dos anos 80.
“Essa música caiu do céu. Íamos tocar no Festival Instrumental, e o Paulo Moura era
o convidado especial desta edição. Dei pra ele a parte de Alma Brasileira e disse pra
ele: - Dá uma olhada e se gostar apareça na nossa apresentação no TCA pra dar uma
canja”. No meio do nosso show vejo a cabeça dele na cortina lateral da coxia: - Tô
aqui! Chamei-o, e ele fez um solo magnífico de Alma brasileira. Meses depois a
gravadora Odeon me ligou pedindo autorização para Paulo Moura gravar a música. A
partir daí a Alma brasileira foi se espalhando por Salvador, pelo Brasil e até mesmo
fora do Brasil.” (FREITAS, 2016, p. 20)
Moura gravou uma primeira versão desta música no álbum “Gafieira etc & tal
(Kuarup) de 1986 e posteriormente, em 2001 registrou uma segunda versão no CD “Gafieira
dance Brasil / The Paulo Moura & Cliff Korman ensemble” (Almonds & Rose Music), ao lado
dos músicos David Finck (contrabaixo), Mestre Zé Paulo (cavaquinho), Paulinho Braga
(bateria) e Cliff Korman (piano), este último com quem Moura estabeleceu uma fecunda
parceria musical iniciada nos anos 90.
A versão de “Alma brasileira”, analisada abaixo faz parte do álbum “Gafieira jazz-
Paulo Moura & Cliff Korman (Rob Digital) lançado em 2006. Este disco é uma compilação de
dois discos anteriores de Paulo Moura e Cliff Korman, lançados no exterior: "Mood ingênuo"
(Jazzheads - 1999) e "Gafieira dance Brasil" (Almonds & Roses Music - 2001) já citado
anteriormente, ambos produzidos por Natalia Indrimi e Halina Grynberg.
De acordo com Spielmann (2008, p. 148) Este álbum no qual consta o fonograma
a ser analisado, é o mais virtuosístico de todos e o mais enfático em relação a originalidade de
Moura, pois mostra uma maior energia na sonoridade do sax, contendo elementos
interpretativos mesclados do samba, do jazz, do choro e da gafieira, pela maneira despojada e
rítmica de Moura tocar.
Dessa forma, faremos a análise, de trechos que consideramos relevantes, a fim de
ressaltar o tratamento interpretativo de Moura em relação aos recursos, observados nas análises
anteriores como: o contraponto mnemônico, aspectos do choro, do jazz, e o caráter percussivo
101
definido pelo uso das diversas articulações, aplicados no desenvolvimento melódico no solo
improvisado de Moura frente a gafieira.
O desenho melódico do trecho abaixo inicia se no tempo forte do 2º tempo do
compasso 1, caracterizado por um movimento em grau conjunto, o que enfatiza a divisão binária
da melodia. A partir do compasso 2, o desenho rítmico definido no compasso anterior, sofre um
deslocamento, a princípio, em virtude das pausas de semicolcheia no 2º tempo do compasso 2
e 3 (célula rítmica acéfala), e culmina com a hemíola entre os compassos 4 e 5. O uso da
hemíola64 proporciona uma percepção ambivalente ao ouvinte, devido a acentuação que ocorre
a cada 3 notas, reforçando a sensação rítmica ternária diante de um compasso binário.
FIGURA 59 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 1, 2, 3, 4 E 5)
Observamos um contorno melódico ascendente, definido entre os compassos 6 e 7, apresenta
uma dupla aproximação (enclosure) formada pelas notas Dó# – Mi – Dó# – Ré no compasso 6,
assim como na passagem do 1º para o 2º tempo do compasso 7, caracterizado pelas notas Dó#
– Mi – Ré, característica inerente ao jazz (bebop).
FIGURA 60 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 6 E 7)
64 Ver p. 90.
102
O desenvolvimento melódico elaborado entre os compassos 8 e 14 mantém uma
fluidez na melodia devido ao uso do conjunto quase ininterrupto de semicolcheias, que se
dispõe consecutivamente, permeando praticamente todo o trecho, porém a articulação aplicada
nesta melodia realiza um deslocamento rítmico em alguns inícios e términos de cada ligadura
inserida neste trecho, aspectos que podemos associar ao choro. Outros elementos, porém,
proveniente do jazz, que consideramos relevantes neste trecho, são a presença do enclosure,
aproximação inferior-superior (Dó – Lá – Si) no 2º tempo do compasso 8, e superior-inferior
(Ré# – Fá# – Mi) na transição do compasso 9 ao 10, assim como na passagem do compasso 11
para o 12, caracterizado pelas notas Mi – Sol – Fá#.
FIGURA 61 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 8, 9, 10, 11, 12, 13 E 14)
Observamos que o contorno melódico desenvolvido no compasso 15 e 16 tem a
intenção de definir a pulsação binária através das ornamentações rítmicas que ocorrem no
tempo forte de cada tempo, reforçadas pelo uso da acentuação (marcato). A partir do compasso
17, a sensação de marcação do tempo advinda dos compassos anteriores, inicia um desenho
rítmico formado por agrupamentos de 4 semicolcheias com intervalo de terça, (Mi – Dó#)
caracterizando um motivo rítmico. Esta célula rítmica está inserida no 1º tempo do compasso
17 e a partir daí, sofre variações rítmicas criadas pelo uso da pausa de semicolcheia no 1º tempo
e no 2º tempo do compasso 17 com as notas Dó – Mi, assim como do uso da síncopa no 1º
tempo do compasso 18 (Dó# – Ré). No 1º tempo do compasso 19, este padrão rítmico é formado
pelas notas Lá – Fá# e repetido no 2º tempo com um pequeno deslocamento devido a pausa de
semicolcheia localizada no 2º tempo do compasso 19. Este movimento intervalar, formado
pelas notas Sol# – Mi#, aparece novamente no 2º tempo do compasso 20 e no 1º tempo do
compasso 21, deslocado ritmicamente, por uma pausa de colcheia no 1º tempo do compasso.
103
FIGURA 62 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 15, 16, 17,18,19, 20, 21 E 22)
Observamos que a figura rítmica apresentada nos compassos 27 e 28 está
relacionada com o padrão rítmico característico do samba ( ), reforçados pelas acentuações
nas últimas das notas Fá# (compasso 27), pelas notas Mi e Ré (compasso 28), e pelo uso do
staccato nas notas Dó# na figura da síncopa.
FIGURA 63 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 27, 28, 29 E 30)
A Elaboração melódica estabelecida no desenvolvimento acima evidencia o aspecto
rítmico aplicado entre os compassos 31 e 33, pois verificamos que a repetição da nota Ré
(fundamental) integrada à figura da tercina, confere uma flexibilidade rítmica em relação ao
compasso binário. Este aspecto é rompido no compasso 33 com o uso da síncopa. O trecho final
desta melodia, entre o compasso 35 e 36, observamos o uso do cromatismo, representado pelas
notas Ré – Dó# – Dó, e em seguida Lá – Lá# – Si, elementos característicos do choro.
FIGURA 64 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 31, 32, 33, 34, 35 E 36)
104
O caráter percussivo empregado na construção da melodia acima, tem como base a
figura da tercina e a repetição da nota Sol#, entre os compassos 42 e 44, assumindo diferentes
funções em relação a cadência harmônica, o que atribui ao saxofone uma função rítmica,
reforçada pelo uso alternado do staccato e do marcato, com a apojatura acentuada e ligada a
uma colcheia da tercina.
FIGURA 65 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 42, 43, 44 E 45)
Observamos que a rítmica e o desenho melódico empregado nos primeiros 2
compassos da melodia abaixo, se assemelha ao mesmo contorno que é muito comum em
melodias de choro. Como exemplo tomaremos a melodia da composição “O gato e o canário”
de Pixinguinha, na qual notamos um motivo, no 1º tempo do primeiro compasso do exemplo
abaixo, formado ritmicamente por um agrupamento de duas semicolcheias e uma colcheia.
FIGURA 66 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “O GATO E O CANÁRIO” (PIXINGUINHA)
Melodicamente, temos uma bordadura inferior, ou seja, uma nota inicial seguida de
um intervalo diatônico descendente e o retorno à mesma nota inicial. O motivo se repete
transposto em terças inicialmente – e uma quarta ao final – correspondendo, em cada início de
padrão, à exatamente as notas principais do arpejo que formam o acorde em questão, Bm7(9)
(Fá – Ré – Sib – Fá – excluída a 7ª). Moura utiliza exatamente o mesmo contorno melódico
iniciando o compasso 49 com a 7ª do acorde, realizando o padrão rítmico de duas semicolcheias
e uma colcheia e uma bordadura inferior. Apesar do deslocamento de uma semicolcheia, (o
trecho do solo se inicia com uma pausa), do solo de Moura em comparação à melodia de
Pixinguinha, as ligaduras agrupam o padrão e o contorno geral nos permite, portanto,
demonstrar tal similaridade.
105
FIGURA 67 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 46, 47, 48 E 49)
O contorno melódico ascendente elaborado entre os compassos 50 e 55, denota o
clímax do improviso em função da região aguda explorada nesta frase, inclusive observamos o
auge da tessitura em função de uma nota super aguda (Lá), ou seja, fora da extensão limitada
pela digitação do saxofone, bem como os aspectos timbrísticos do saxofone nesta região. De
acordo com Spielmann (2008, p. 135) o efeito originado pelo estrangulamento do som nas notas
agudas, além de enfatizar o auge na construção da improvisação, também valoriza a expressão
musical no momento da performance, elemento característico dos músicos que tocam nas
gafieiras.
FIGURA 68 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 50, 51, 52, 53, 54 E 55)
Observamos uma bordadura no início do contorno melódico descendente no 2º
tempo do compasso 56, formada pelas notas Dó# – Ré – Dó#, no compasso 57 destacamos o
uso da figura da síncopa tanto no 1º, quanto no 2º tempo deste compasso, culminando com uma
dupla aproximação superior inferior (Mi – Fá# – Ré – Mi) no 1º tempo do compasso 58, a qual
passa a representar um motivo rítmico, pois temos uma variação desta célula no compasso 59,
configurado pelas notas Fá# – Sol – Mi – Fá#, porém com um deslocamento rítmico em função
da pausa de semicolcheia no 1º tempo deste compasso, reforçado pela aplicação da acentuação
na nota Fá#, as quais se repetem no 1º tempo do compasso 60 acrescida de notas no contratempo
do 2º tempo deste mesmo compasso no sentindo crescente em direção a nota Si no 1º tempo
106
com compasso 61, no qual observamos que a finalização da melodia concentra se na repetição
de duas notas (Si – Dó) com a presença de uma apojatura e um portamento entre elas.
Devemos ressaltar neste trecho o uso de pontos alternados na utilização da ligadura,
ou seja, a maioria das ligaduras iniciam e terminam em tempos fracos, sendo enfatizadas pelo
uso das acentuações ou pela aplicação das pausas nos tempos fortes que a antecedem.
Acreditamos que a forma como Moura faz uso desses elementos, ao longo do seu solo,
evidencia sua originalidade interpretativa com improvisador na música brasileira.
FIGURA 69 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 56, 57, 58, 59, 60, 61 E 62)
A melodia que abrange os compassos 63 à 76 caracteriza se por ter uma estabilidade
no início do seu movimento melódico devido a sustentação da nota Ré, a qual assume a função
de 11ª no compasso 63 (A7(b9)(#11) e fundamental no compasso 64 (Dmaj7(9), sétima
(Eb7(9)(13)) no compasso 65 e fundamental (Dmaj7(9)) novamente no compasso 66 e início
do 67. No contratempo do 2º tempo do compasso 67 temos um salto de 4ª justa descendente
através de um glissando, no qual a nota Lá passa a ser sustentada nos compassos 68 e 1º tempo
do compasso 69, desempenhando a função de fundamental, porém de um acorde diminuto (Dº).
Na sequência ocorre um glissando no intervalo de uma 5ª justa em direção a nota Ré, porém 8ª
abaixo no 2º tempo do compasso 69 e 1º tempo do compasso 70. Observamos que a sustentação
dessas notas ao longo de uma cadência harmônica extensa permite uma “coloração” na
sonoridade de uma única nota.
A partir do compasso 71 verificamos uma retomada da nota Ré com um salto de 4ª
justa (Lá – Ré) em direção a notas na região aguda e super aguda entre os compassos 72 e 73,
explorando a sonoridade timbrística do instrumento nesta região, criando um clímax no solo.
No compasso 75 observamos uma aproximação inferior-superior (enclosure) desenvolvida
ritmicamente sobre a figura da síncopa, salientada pelo uso da acentuação, a qual finaliza este
trecho melódico.
107
FIGURA 70 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 75 E 76)
No início do compasso 77 o contorno melódico é definido por um agrupamento de
4 semicolcheias descendentes em grau conjunto no 1º tempo, seguida de uma síncopa
ascendente no 2º tempo deste compasso, com as notas Si e Dó destacadas pelo uso do staccato.
No compasso 78 observamos um desenho rítmico fundamentado em uma célula acéfala
caracterizada por uma pausa de semicolcheia seguida de uma colcheia e semicolcheia ao longo
dos compassos 78 e 79.
FIGURA 71 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 77, 78, 79, 80 E 81)
Este elemento rítmico é encontrado em estruturas melódicas de temas do choro
como no exemplo a seguir:
FIGURA 72 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “AINDA ME RECORDO” (PIXINGUINHA E BENEDITO LACERDA)
FIGURA 73 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “BICHO CARPINTEIRO” (A. REALE)
108
Observamos que a estrutura rítmica aplicada na melodia acima, entre os compassos
82 e 85, assemelha se à estrutura melódica adotada por temas do choro. Este padrão melódico
é representativo do choro, encontrado em temas como “Bem Te Vi Atrevido”, ao mesmo tempo
em que explora as aproximações cromáticas inerente ao estilo, conforme os exemplos que
seguem abaixo:
FIGURA 74 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 82, 83, 84 E 85)
FIGURA 75 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “BEM TE VI ATREVIDO” (LINA PESCE)
FIGURA 76 - EXEMPLO DE PADRÃO RÍTMICO (SÉVE, 2009, P. 144)
De acordo com Sève (2009, p. 144) este padrão ritmo é utilizado em sequências
harmônicas V-I, II-V, V-V e diminutos de passagem.
A estrutura melódica, entre os compassos 95 e 101, é desenvolvido a partir da célula
rítmica, formada por duas semicolcheias, elaborada nos 3 primeiros compassos juntamente com
o uso das pausas e acentos que enfatizam o contratempo do 2º tempo do compasso 94, assim
como o tempo forte no 2º tempo do compasso 95 e 96, seguida de uma pausa de colcheia.
Melodicamente, esta célula rítmica está definida com um intervalo de 3ª abaixo entre as duas
semicolcheias (Si – Sol), as quais, ao longo dos compassos 95 e 96, é transposta um intervalo
de 2ª acima Si – Sol, Dó# – Lá e Ré – Si. A partir do compasso 97 o contorno melódico é
fundamentado na figura da síncopa, formada pelas notas Mi – Ré – Mi (1º tempo) e pausa de
semicolcheia – Mi# – Ré (2º tempo) sendo que uma pausa de semicolcheia ocupa o início do 2º
tempo. A síncopa é enfatizada através da acentuação (staccato – marcato), assim como, pela
109
aplicação das pausas no tempo forte e a ligadura estabelecida, sempre entre duas notas,
independentemente da figura rítmica.
FIGURA 77 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 95, 96, 97, 98, 99, 100 E 101)
Observamos no trecho acima que a melodia assume um caráter percussivo, pois se
mantem, praticamente estável, com pouca movimentação entre as notas Lá – Sol – Sol#, pois
não explora a tessitura do instrumento, entre os compassos 109 e 112, além do uso do staccato
que reforça este aspecto rítmico. O desenho melódico, a partir do compasso 113 passa a explorar
a sonoridade do instrumento em função do uso de apojaturas, aproximações cromáticas e pitch
bend65, alterando o timbre e afinação do instrumento.
FIGURA 78 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116 E 117)
Outra característica que se tornou muito comum entre os músicos do bebop foi a
citação de melodias conhecidas no decorrer da improvisação. Além de demonstrar habilidade e
conhecimento, para Baker (2005, p. 30) a citação tem mais impacto quando inserida em um
contexto inesperado. Como podemos notar no trecho abaixo, entre os compassos 118 a 121 do
solo de Moura, o contorno melódico é o mesmo do jazz standard “Laura”66. Isto demonstra, não
65 Este é um recurso expressivo deslizante que geralmente aparece em intervalos melódicos pequenos.
Normalmente é realizado iniciando-se a nota pretendida um pouco acima ou abaixo da sua afinação real, e
deslizando-se da freqüência inicial até a desejada (FABRIS apud SPIELMANN, 2008, p. 138). 66 Jazz standard composto em 1944 por David Raksin (música) e Johnny Mercer (letra).
110
apenas o conhecimento técnico de Moura, mas uma integração com os códigos próprios deste
métier.
FIGURA 79 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 118, 119 E 120)
FIGURA 80 - TRECHO DA COMPOSIÇÃO “LAURA” (DAVID RAKSIN E JOHNNY MERCER)
O trecho abaixo é estruturado a partir da figura da síncopa do samba no 2º tempo
do compasso 121, 122, 123 e 125, e no 1º e 2º tempo do compasso 124, porém, melodicamente
apresenta uma aproximação inferior-superior (enclosure) na passagem do compasso 121 para
o 122 (Lá – Fá# – Sol), assim como na passagem do compasso 123 para o 124 (Mi – Dó – Ré)
e valoriza as notas significantes da cadência harmónica ao longo de todo o trecho melódico.
No compasso 121 temos fundamental, sétima e quinta de B7(13); no compasso 122,
terça, nona, fundamental e sétima de Em7(9)(11); no compasso 123, fundamental de C#m7(b5)
e sétima e quinta de F#7(13); no compasso 124, nona, terça, quinta, sétima e nona oitava acima;
no compasso 125, décima primeira, fundamental, sétima e sexta; e por fim, no compasso 126,
fundamental e décima primeira.
111
Mais uma vez, salientamos o uso das ligaduras de duas em duas notas em conjunto
a aplicação das acentuações, seja staccato ou marcato no intuito de ressaltar a estrutura rítmica
desta melodia.
FIGURA 81 - TRECHO “ALMA BRASILEIRA” (COMPASSOS 121, 122, 123, 124, 125 E 126)
Ao longo da análise deste improviso notamos uma mescla de elementos derivados
das influências musicais de Moura que consideramos relevantes na construção de sua
originalidade como músico solista improvisador. Acreditamos que os aspectos do choro e do
samba, representados na figura da síncopa, as variadas formas de articulação na música
brasileira, seja como função melódica ou percussiva (agogô e tamborim) e os ornamentos
inseridos na melodia; em conjunto com características jazzísticas, como padrões melódicos,
enclosure e peculiaridades timbrísticas e sonoras específicas do saxofone, contribuíram para o
estabelecimento da concepção interpretativa de Moura frente a sua atuação nos bailes de
gafieira. No entanto, devemos ressaltar independentemente dos elementos que qualificam cada
estilo inerente a sua formação, a originalidade de Moura configura se através da forma como
funde todos esses elementos no desenvolvimento do seu processo criativo.
112
Conclusão
Este trabalho buscou identificar os elementos que definem a originalidade de Moura
a partir da análise do seu processo criativo na improvisação na música brasileira e
contextualização biográfica, ressaltando os momentos em que acreditamos que foram
determinantes no direcionamento de sua carreira, assim como compreendermos como se deu a
sua formação profissional frente aos diversos estilos que embasaram a sua prática e
conhecimento musical.
Diante da limitação bibliográfica encontrada referente a Moura, buscamos materiais
que dessem fundamento ao nosso trabalho, como a teoria da métrica derramada, desenvolvida
por Ulhôa (1999), a flexibilidade rítmica de Salek (1999) e o conceito de contraponto
mnemônico elaborado por Falleiros (2006), além de técnicas de construção melódicas típicas
do jazz como padrões e enclosures (COKER, 1991).
O panorama biográfico de Moura nos permitiu observar acontecimentos que endossam
nosso trabalho em relação à construção e às particularidades de seu processo criativo.
Primeiramente nos debruçamos em entender sua relação com a música desde a sua infância, ou
seja, a convivência com seus familiares, o que representou o início de sua conexão com a música
a partir da experiência de seu pai e irmãos mais velhos, até o desenvolvimento de seus estudos,
tanto de maneira formal, no clarinete, na escola nacional de música; quanto informalmente se
deu o aprendizado do saxofone nos bailes do subúrbio angariados no ponto dos músicos, o que
representou o início da sua vida profissional fora do ambiente familiar.
Posteriormente abordamos suas primeiras experiências profissionais, Moura atuou nas
orquestras das duas maiores rádios no país: a rádio Nacional e a rádio Tupi, onde teve contato
com arranjadores experientes e da época como: Severino Araújo, maestro Cipó, maestro
Zaccarias e principalmente com Radamés Gnattali, com quem gravou um álbum repleto de
composições dedicadas à Moura.
Nos início dos anos 60, Moura assumiu a cadeira de primeiro clarinetista na orquestra
do teatro municipal do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que passou a frequentar o beco das
garrafas, berço do movimento bossanovista, onde conheceu Sérgio Mendes, com o qual
estabeleceu parcerias profissionais, apresentando se em Nova Iorque, no Carnegie Hall,
contudo a bossa nova não satisfazia suas aspirações com a música brasileira e como solista.
Neste período gravou com o saxofonista norte-americano Cannonball Adderley.
No final da década de 60, Moura poderia ter estabelecido sua carreira como arranjador
de gravação, pois havia recebido uma proposta tentadora, função a qual teria uma grande
113
demanda de trabalho para diversos estilos musicais. No entanto, esta diversidade contrariava
seu desejo de se aprofundar nos estudos do ritmo brasileiro, ao mesmo tempo que ansiava em
consolidar sua carreira como instrumentista solista.
Durante sua trajetória profissional recebeu contribuições particulares de diversos
artistas brasileiros e estrangeiros, principalmente no início dos anos 70, com o compositor e
cantor Martinho da Vila, a quem Moura atribui uma significativa parcela do seu aprendizado
sobre a rítmica brasileira, ao mesmo tempo que começou a atuar na escola de samba Imperatriz
Leopoldinense, tocando e escrevendo arranjos para a ala dos tamborins.
Como reconhecimento de sua importância na música brasileira, Moura recebeu diversos
prêmios, inclusive sendo indicado ao grammy latino no ano de 2004 e 2008, entre outros.
A fim de entender a dinâmica da construção de sua originalidade como solista, buscamos
contextualizar os estilos que consideramos influentes na formação de Moura, embasados em
episódios relevantes, levantados na parte em que discorremos sobre sua biografia e formação
musical, ao mesmo tempo que identificamos os aspectos musicais peculiares à cada estilo, seja
do jazz (bebop), samba, choro e gafieira, no intuito de relacionarmos com características
inerentes ao processo criativo de Moura, nas análises dos fonogramas selecionados.
As análises foram realizadas a partir de transcrições de solos de Moura referentes aos
fonogramas: “Samba de Orfeu” (1968), “Yardbird suite” (1969), “Se algum dia” (1976), “Dois
sem vergonha” (1976) e “Alma brasileira” (2006), selecionados a partir de uma cronologia
definida por episódios relevantes em função da sua carreira profissional. Com base em nossas
transcrições, buscamos identificar elementos que caracterizam o seu estilo. Acreditamos que a
sua originalidade é definida pela maneira confluente de Moura em explorar os elementos,
característico dos estilos referidos, sinteticamente: ou seja, sua forma de elaborar seu solo
improvisado abarca criativamente os modelos e técnicas de construção melódica com fluência
e coerência. Os fonogramas selecionados foram escolhidos em função da cronologia
discográfica de Moura, associada as experiências profissionais em relação aos estilos
predominantes da época.
De maneira mais específica, na análise da improvisação desenvolvida na música
“Samba de Orfeu”, verificamos que Moura desenvolve o seu solo a partir da melodia
preexistente do tema, ou seja, o seu improviso mantém notas significantes do tema, a ponto de
a melodia principal ser reconhecida.
A análise da improvisação na música “Yardbird suíte” mostrou que Moura realiza
procedimentos inerentes ao jazz, principalmente em relação ao bebop, como os padrões
melódico difundidos por Charlie Parker e John Coltrane, e principalmente a técnica de
114
aproximações cromáticas e diatônica, nomeada de enclosure e os jazz patterns, com base no
trabalho de Coker (1991).
Na análise desenvolvida sobre a improvisação de Moura na música “Se algum dia”
identificamos elementos recorrentes do choro, destacando o uso da anacruse, células rítmicas
acéfalas, movimento melódico em grau conjunto e arpejado, o uso da articulação de duas em
duas notas e contornos melódicos que se assemelham a temas conhecidos dentro deste estilo,
com base nos trabalhos de Spielmann (2008) e Valente (2014). De acordo com as informações
obtidas para a elaboração do capítulo 1, devemos salientar que o choro foi o primeiro estilo
musical que Moura teve contato, devido a experiência de seu pai e irmãos, e posteriormente,
nos bailes do subúrbio, já na cidade do Rio de Janeiro, onde atuou ao lado de Pixinguinha.
A análise da improvisação na música “Dois sem vergonha” revelou o tratamento rítmico
de Moura em seu processo criativo, principalmente em relação ao caráter percussivo empregado
em grande parte da melodia improvisada, bem como o uso combinado das articulações, sejam
o staccato, marcato e as ligaduras de expressão, a fim de enfatizar o aspecto rítmico da melodia.
Os trabalhos de Barros (2015) e Bolão (2003) deram sustentação na análise deste tema. Neste
período Moura gravou com Martinho da Vila e tamborim na bateria da escola de samba
Imperatriz Leopoldinense.
Consideramos a análise final, da música “Alma brasileira” uma síntese da linguagem da
gafieira, que por sua vez apresenta a confluência dos elementos marcantes da prática criativa
de Moura. A música em questão foi gravada nos anos 90, neste período a importância de Moura
já havia sido reconhecida em virtude da sua originalidade impar na performance de seu
saxofone na música brasileira, ou seja, a sua maneira de improvisar, representado pelo
tratamento melódico amalgamado entre as particularidades do choro e do samba, na figura da
síncopa e nas diversas maneiras de articulação na música brasileira, assim como a aplicação de
ornamentos; simultaneamente à elementos do jazz, padrões melódicos, enclosures, além da
exploração do timbre do saxofone.
Os aspectos musicais da gafieira estão relacionadas ao desenho rítmico associado a
aplicação das articulações e a sonoridade característica, a qual valoriza a expressão
performática do músico, advinda do uso de ornamentos, glissando, pitch bend, vibrato,
portamento e notas agudas, que indicam o auge da expressividade musical, além de Moura
atribuir aos bailarinos da gafieira um papel determinante em relação a estrutura rítmica, a qual
é desenvolvida em função do “balanço” dos bailarinos no momento da dança, incentivando
ideias em termos de ritmo.
115
Na análise de “Alma brasileira” fica evidente a exploração timbrística do saxofone, ao
mesmo tempo em que são utilizados elementos musicais do choro, do samba e do jazz, porém
devemos ressaltar a maneira como Moura aborda o desenho rítmico mesclado aos variados tipos
de articulação e figuras rítmicas, permeando um limiar entre a tercina e síncopa.
Assim como o termo gafieira não assinala fundamentalmente um estilo musical, mas
dentro da reunião de um repertório diverso, cultiva formas de interação e interpretação, a
improvisação de Paulo Moura reúne os aspectos de uma prática musical que responde às
pretensões dos fazeres desta manifestação cultural. O espírito da espontaneidade trazido pela
improvisação, a qual Moura aproveita do uso de técnicas de desenvolvimento melódico
advindas principalmente do jazz; a rítmica do samba como identidade brasileira, empatia
rítmica que fomenta a interação entre o músico solista e a seção rítmica trazendo a emergência
da métrica derramada – uma agógica típica – além da emulação representativa das células
rítmicas variantes do tamborim; e por fim, variações melódicas que desafiam a remetência à
memória (contraponto mnemônico) que com ênfase na flexibilidade rítmica – uma marca
interpretativa característica – na conformação de um gestual próprio decorrente da prática do
choro.
Como pretendíamos com este trabalho, identificamos os elementos musicais que
caracterizam a improvisação de Paulo Moura, a partir das transcrições realizadas dos
fonogramas, bem como a contextualização da sua trajetória, relacionando a sua formação
musical e experiências profissionais.
Com isso, tendo em vista a crescente preocupação em estabelecer parâmetros a respeito
da improvisação brasileira, e em particular aplicada ao saxofone brasileiro, acreditamos ter
contribuído nesta direção, apontando caminhos não apenas para o aprofundamento da
improvisação na música brasileira, como também para futuras pesquisas na área.
116
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carioca. Debates – Caderno do programa de pós-graduação em música. Rio de Janeiro. UniRio.
n°8, p. 39-69. 2008.
SPIELMANN, Daniela. Os Bailes de gafieira - Repertórios em movimento. XXVII Congresso
da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Campinas, SP, 2017.
SPIELMANN, Daniela. Reflexões sobre a construção dos discursos e dos sentidos sobre
“gafieiras” no Rio de Janeiro. Anais do IV SIMPOM 2016 – Simpósio Brasileiro de Pós-
Graduandos em Música. Rio de Janeiro, RJ, nº4, 2016.
SPIELMANN, Daniela. Tarde de chuva: A Contribuição interpretativa de Paulo Moura para o
saxofone no samba choro e na gafieira, a partir da década de 70”. Rio de Janeiro, RJ: [S.N.],
Dissertação de Mestrado, UniRio, 2008.
SWANWICK, Keith. Ensinando música musicalmente. Tradução: Alda Oliveira e Liane
Hentschke. Editora Moderna, 2003.
120
TEIXEIRA Filho, Jair. Nada será como antes: a música de Victor Assis Brasil no álbum
Pedrinho. Campinas, SP: [s.n.], Dissertação de Mestrado, IA, UNICAMP, 2014.
TINÉ, Paulo J. “So what” de Miles Davis: uma proposta para análise de improvisação
idiomática. Música Popular em Revista. Campinas, ano 2, v. 1, p. 61-73, jul.-dez. 2013.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: de índios, negros e mestiços. Petrópolis: Vozes,
1972.
TOTA, Antonio Pedro. O Imperialismo sedutor: A americanização do Brasil na época da
segunda guerra. Editora Companhia das Letras, 2000.
ULHÔA, Martha. “Amor até o fim” com Elis Regina: em busca de uma metodologia para a
análise da perfomance musical. UNIRIO. v. 7, n. 1, 2005.
VALENTE, Paula Veneziano. Horizontalidade e verticalidade dois modelos de improvisação
no choro brasileiro. São Paulo, SP [s.n]. Dissertação de Mestrado, ECA, USP, 2009.
VALENTE, Paula Veneziano. Transformações do choro no século XXI: estruturas,
performances e improvisação. São Paulo, SP, Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo,
2014.
VASCONCELOS, Jorge Luís Ribeiro de. Passos da fé e da folia: etnografia musical de uma
congada mineira. Campinas, SP [s.n.], Dissertação de Mestrado, IA, UNICAMP, 2003.
VEIGA, Felipe Berocan. “O Ambiente exige respeito”: etnografia urbana e memória social da
Gafieira Estudantina. Niterói, RJ, [s.n.]. Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense,
2011.
VICENTE, Eduardo. Música e disco no Brasil: A trajetória da indústria nas décadas de 80 e 90.
São Paulo, SP [s.n.], Tese de Doutorado, ECA, USP, 2002.
WILLIAMON, Aaron. Musical Excellence: Strategies and techniques to ehance performance.
Royal College of Music, London, 2004.
ZEH, Marianne. O criador na tradição oral: A linguagem do tamborim na escola de samba. XVI
Congresso da associação nacional de pesquisa e pós-graduação em música (ANPPOM),
Brasília, DF, 2006.
121
Anexos
Anexo I – Transcrições
122
123
124
125
126
127
128
129
130
131
132
Anexo II – Tabela
TABELA 2 - DISCOGRAFIA COMPLETA DA CARREIRA SOLO DE PAULO MOURA
Discografia carreira solo - Paulo Moura
1 - Moto perpetuo - (Columbia, 1956) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Moto perpétuo 1 X
O vôo do besouro 2 X
2 - Sweet sax Paulo Moura - (RCA Victor, 1958) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Рeoрle will saу we’re in love 1 X
Mу devotion 2 X
Sрeak low 3 X
East of the sun 4 X
Witсhсraft 5 X
Вewitсhed 6 X
Nel blu diрinto di blu (Volare) 7 X
Сoсktails for two 8 X
Temрtation 9 X
If I loved you 10 X
All for you 11 X
I’ve got you under mу skin 12 X
3 - Escolha e dance com Paulo Moura - (Sinter Discos, 1958) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Se alguém disse 1 X
Dengoso 2 X
Baião atrevido 3 X
Minha saudade 4 X
Dorinha meu amor 6 X
Passarinho da noite 7 X
Faceira 8 X
Saxologia 9 X
Conceição 10 X
Silk stop 11 X
Ouça 12 X
4 - Paulo Moura interpreta Radamés Gnattali - (Continental, 1959) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Monotonia 1 X
Devaneio 2 X
133
Nostalgia 3 X
Carioca 4 X
Sempre sonhar 5 X
Valsa Triste 6 X
Penumbra 7 X
Romance 8 X
5 - Paulo Moura hepteto - (Ouver Records, 1968) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
General da banda 1 X
Samba de Orfeu 2 X
Travessia 3 X
Bonita 4 X
No brilho da faca 5 X
Homem do meu mundo 6 X
Wave 7 X
Das tardes mas sós 8 X
Bitucada 9 X
A sede do peixe 10 X
Três pontas 11 X
Outubro 12 X
6 - Paulo Moura e quarteto - (Equipe, 1969) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Lamento do morro 1 X
Eu e a brisa 2 X
Meu lar 3 X
Aos pés da cruz 4 X
Yardbird suíte 5 X
Sá Marina 6 X
Retrato de Bene Carter 7 X
Razão 8 X
Feitio de oração 9 X
Terra 10 X
7 - Pilantrocopia - (Equipe, 1969) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
La cumparsita 1 X
El relicário 2 X
Mandrake 3 X
134
Terezinha de Jesus 4 X
La mentir 5 X
Tudo azul 6 X
Chiribiridin 7 X
Barril de chopp 8 X
Correnteza 9 X
O ébrio 10 X
Meia volta 11 X
Rosa morena 12 X
8 - Fibra - (Equipe, 1971) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Fibra 1 X
Ana Lia´s blue 2 X
Filgueiras 3 X
Samba de Orfeu 4 X
Tema dos deuses 5 X
Vera Cruz 6 X
Aquarela do Brasil 7 X
Cravo e canela 8 X
General da banda 9 X
Bitucadas nº2 10 X
9 - Confusão urbana, suburbana e rural - (RCA Victor, 1976) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Espinha de bacalhau 1 X
Notícia 2 X
Bicho papão -Tema da cuíca 3 X
Carimbó do Moura 4 X
Se algum dia 5 X
Peguei a reta 6 X
Amor proibido 7 X
Dois sem vergonha 8 X
Eu quero é sossego 9 X
Dia de comício 10 X
Pedra da lua 11 X
10 - Choro na praça (Warner Chappell) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
135
Proezas de Solon 1
Sonoroso 2
Sai da frente 3 X
André de sapato novo 4 X
Ecos 5
Apanhei-te cavaquinho 6
Murmurando 7
Naquele tempo 8 X
O amolador 9
Segura ele 10
Cavaquinho seresteiro 11 X
Vê se gostas 12
Eu quero sossego 13 X
Choro do Ratinho 14 X
Leninha 15 X
Urubu malandro 16 X
11 - ConSertão - (Kuarup, 1981) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Estrela maga dos ciganos - Noite de santo reis 1 X
Na estrada das areias de ouro 2 X
Campo branco 3 X
Incelença pra terra que o sol matou 4 X
Valsa da dor 5 X
Leninha 6 X
Espinha de bacalhau 7 X
Pedacinhos do céu 8 X
Corban 9 X
12 - Clara Sverner e Paulo Moura - (Selo Ergo, 1983) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Fantasia em si bemol 1 X
Desafio VIII op. 31 nº 8 2 X
Valsa triste 3 X
É assim que eu gosto 4 X
Concertino da câmera 5 X
Saudades do parque balneário hotel 6 X
136
13 - Encontro - (Kuarup, 1984) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Suíte nordestina 1
Viola quebrada 2
The entertainer 3
Ragtime 4
Genea 5 X
O trenzinho do caipira 6
Bachianas brasileiras nº 5 7 X
Eu e a brisa 8 X
Fantasia 9 X
Modinha 10
Je te veux 11
Berceuse 12 X
Le petit negre 13 X
Manhã de carnaval 14 X
14 - Mistura e manda - (Kuarup, 1984) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Chorinho pra você 1 X
Chorinho pra ele 2 X
Mistura e manda 3 X
Nunca 4 X
Tempos felizes 5 X
Caminhando 6 X
Ternura 7 X
15 - Vou vivendo - (EMI - Odeon, 1986) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Vou vivendo 1 X
Lamento 2 X
Ingênuo 3 X
Atraente 4 X
Amapá 5 X
Io t'amo 6 X
Monotonia 7 X
Samba-canção 8 X
Devaneio 9 X
137
Fantasia 10 X
16 - Gafieira etc & tal - (Kuarup, 1986) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Diálogo (para a paz mundial) 1 X
Ao velho Pedro 2 X
Rio Negro 3 X
Alma brasileira 4 X
Nada além 5 X
Fibra-Magia do samba (Bate pandeiro) – Jogada - MRA 6 X
17 - Clara Sverner e Paulo Moura interpretam Pixinguinha - (Sony
Music, 1988) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Carinhoso 1 X
Segura ele 2 X
Chorei 3 X
Rosa 4 X
Os oito batutas 5 X
Proezas de Solon 6 X
1x0 7 X
Soluços 8 X
Glória 9 X
Ainda me recordo 10 X
Naquele tempo 11 X
18 - Quarteto negro - (Kuarup, 1988) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Folôzinha 1 X
Sobre as ondas 2 X
Merengue 3 X
Festas da Xica 4 X
Semba 5 X
Zumbi (A felicidade guerreira) 6 X
Brucutú 7
Geísa 8 X
A Quelé menina 9 X
Taisho-Koto 10 X
19 - Paulo Moura e Ocidalê interpretam Dorival Caymmi - (Caju
Music, 1991) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Noite de temporal 1 X
138
Só louco 2 X
Doralice 3 X
Marina 4 X
Acalanto 5 X
Dora 6 X
O mar 7 X
Oração de mãe menininha 8 X X
Sargaço mar - Promessa de pescador - Promessa de pescador 9
História dos pescadores I 10 X
História dos pescadores II 11 X
20 - Paulo Moura Rio nocturnes - (Messidor, 1992) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Guadeloupe 1 X
Capricórnio 2 X
Rio nocturne 3 X
Baleias 4 X
Jumento elegante 5 X
Barbara's vatapá 6 X
Sereia do Leblon 7 X
Mulatas etc e tal 8 X
Tumbalee 9 X
Concierto brasitalian 10 X
Tarde de chuva 11 X
Casamento em Xaxei 12 X
21 - Dois Irmãos - Paulo Moura e Raphael Rabello - (Caju Music,
1992) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Ronda-sampa 1 X
Chorando baixinho 2 X
Domingo no orfeão Portugal 3 X
Violão vadio 4 X
Morena boca de ouro 5 X
Tempos felizes 6 X
1 X 0 7 X
Tarde de chuva 8 X
Luiza 9 X
Um chorinho em aldeia 10 X
139
22 - Wagner Tiso e Paulo Moura - (Tom Brasil, 1996) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Banda da capital 1
Vento bravo 2
Olinda Guanabara 3
Cravo e canela 4
Anos dourados 5 X
Capricórnio 6 X
Mulatas etc e tal 7 X
Folia nordestina 8 X
Cadenguê 9 X
23 - Cinema Odeon - Clara Sverner e Paulo Moura - (Selo Ergo,
1996) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Abre alas 1 X
O gaúcho 2 X
Pelo telefone 3 X
Batuque na cozinha 4 X
Se você jurar 5 X
Terna saudade 6
Odeon 7 X
Jura 8 X
Marreco quer água 9
Flor amorosa 10 X
Feitio de oração - Três apitos - Conversa de botequim 11 X
Carinhoso 12 X
24 – Pixinguinha - Paulo Moura e os batutas - (Rob Digital, 1998) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Ainda me recordo 1 X
Segura ele 2 X
Proezas de Solon 3 X
Cochichando 4 X
Ingênuo 5 X
Lamento 6
Carinhoso 7
Mistura e manda 8 X
Batuque na cozinha 9 X
Os oito batutas 10 X
140
Pelo telefone 11 X
Rosa 12 X
Naquele tempo 13 X
Vou vivendo 14 X
1 X 0 15 X
Urubu malandro 16 X
25 - Paulo Moura visita Gershwin & Jobim-Rhapsody in bossa - (Pau
Brasil, 1998) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Rhapsody in blue - Samba do avião - Só danço samba - I got rhythm 1 X
Surfboard 2 X
Água de beber 3 X
Falando de amor 4 X
Prelúdio II 5 X
Lady be good 6 X
I've got plenty O'Nuttin 7 X
The man I love 8 X
Embraceable you 9 X
Summertime 10 X
Este seu olhar - Eu sei que vou te amar - Eu não existo sem você - Se
todos fossem iguais a você 11 X
26 - Mood ingênuo - Paulo Moura & Cliff Korman - (JazzHeads,
1999) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Tico Tico no fubá 1 X
Saxofone, porque choras 2 X
Luiza 3 X
Paulo speaks 4
Satin doll – Lamentos – Ingênuo - In a mellow tone-Sophisticated
lady – Rosa – Carinhoso 5 X
Paulo speaks 6
Saudade do Paulo 7 X
Moonglow & girl talk 8 X
Tarde de chuva 9 X
Cliff speaks 10
Leninha & Espinha de bacalhau 11 X
1 X 0 12 X
27 - Gafieira dance Brasil-The Paulo Moura & Cliff Korman
ensemble - (Almons & Rose Music, 2001) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Ao velho Pedro 1 X
141
Noites cariocas 2 X
Segura ele 3 X
Mulatas etc e tal 4
Pedacinhos do céu 5
Carimbó do Moura 6 X
Baião delicado 7 X
Manhã de carnaval 8 X
Alma brasileira 9 X
The man I love 10 X
Bicho do pé 11
28 - K-Ximblues - (Rob Digital, 2001) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Sempre 1 X
K-Xintema 2 X
Auto plágio 3 X
Catita 4 X
Sonoroso 5 X
Sonhando 6 X
Ternura 7 X
Just walking 8
K-Ximbodega - Eu quero é sossego 9 X
Velhos companheiros 10 X
29 - Estação Leopoldina - (Rob Digital, 2002) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Estação Leopoldina 1 X
Fibra 2 X
Simplicidade 3 X
Nosso romance 4 X
Deve ser amor 5 X
Bananeira 6 X
Rala coxa 7 X
Oritimbó 8 X
Pro Paulo 9 X
Maré cheia 10 X
Linda 11 X
Remexendo 12 X
142
Ai que saudade da Amélia - Trem das onzes - Prêmio de consolação -
Leva meu samba – Imagem 13 X
Receita de samba 14 X
30 - El negro del blanco - (Biscoito Fino, 2004) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
El negro del blanco 1 X
Um chorinho em aldeia - Na glória 2 X
Duerme negrito 3 X
La paloma 4 X
Valsa venezuelana 5 X
Simplicidade 6 X
Sons de carrilhões 7 X
Decaríssimo 8 X
Samba triste - Lapinha samba da bênção - Pra que chorar 9 X
De camino a la vereda 10 X
Gracias a la vida 11 X
Taquito militar 12 X
31 - Gafieira jazz - Paulo Moura & Cliff Korman (Rob Digital, 2006) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Saxofone, porque choras 1 X
Sozinha 2 X
Noites cariocas 3 X
Pedacinhos do céu 4 X
Manhã de carnaval 5 X
Tarde de chuva 6 X
1 X 0 7 X
Mulatas etc e tal 8 X
Alma brasileira 9 X
32 - Dois panos para manga - João Donato e Paulo Moura - (Biscoito
Fino, 2006) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
A saudade mata a gente 1 X
On a slow boat to China 2 X
Swanee 3 X
Copacabana 4 X
Tenderly 5 X
That old black magic 6 X
Minha saudade 7 X
143
Pixinguinha no apoador 8 X
Sopapo 9 X
33 - O som de Dorival Caymmi-Paulo Moura e Ociladocê - (Biscoito
Fino, 2007) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Noite de temporal 1 X
Só louco 2 X
Doralice 3 X
Marina 4 X
Acalanto 5 X
Dora 6 X
O mar 7 X
Oração de mãe menininha 8 X X
Sargaço mar - Promessa de pescador - Promessa de pescador 9
História dos pescadores I 10 X
História dos pescadores II 11 X
34 - Samba de latada - Josildo Sá e Paulo Moura - (Rob Digital,
2007) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Quixabinha 1 X
Forró de mané Vito 2 X
Eu gosto de você 3 X
Pra virar lobisomem 4 X
Pro Paulo 5 X
Nega buliçosa 6 X
Fulosinha 7 X
Fraguei 8 X
Carimbó do Moura 9 X
Beijú 10 X
Cumpade Zé de bina 11 X
Baile no sertão 12 X
Na água do bebedouro 13 X
35 - Pra cá e pra lá - Paulo Moura trilha Jobim e Gershwin - (Biscoito
Fino, 2008) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Rhapsody in blue 1 X
Surfboard 2 X
Água de beber 3 X
Falando de amor 4 X
Prelúdio II 5 X
144
Lady be good 6 X
I've got plenty O'Nuttin 7 X
The man I love 8 X
Embraceable You 9 X
36 - Afrobossanova - Paulo Moura e Armandinho - (Biscoito Fino,
2009) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Chovendo na roseira 1 X
Águas de março 2 X
Meditação 3 X
Insensatez 4 X
Falando de amor 5 X
Radamés y Pelé 6 X
Luiza 7 X
Samba do avião 8 X
Surfboard 9 X
O morro não tem vez 10 X
Chega de saudade 11 X
37 - Paulo Moura apresenta bossa batuta - Bossa instrumental - (Vila
Rica, 2010) faixa
sax
alto
sax
soprano clarinete
Minha saudade 1 X
O barquinho 2 X
Samba de verão 3 X
Influência do jazz 4 X
Sambop 5 X
Neurótico 6 X
Minha 7 X
Manhã de carnaval 8 X
Na Barão de Mesquita 9 X
Medley 10 X
38 - Alento - (Biscoito Fino, 2011) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Abertura 3d 1 X
Road movie 2 X
Mulatas etc e tal 3 X
Mantra do Rio 4 X
O portador do segredo 5 X
145
Oju obá 6 X
Dia de festa 7 X
Troca de olhares 8 X
De volta à Alexandria 9 X
39 - Ao vivo - Samba de latada - (Som Livre, 2011) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Fibra 1 X
Quixabinha 2 X
Cumpade Zé de bina 3 X
Forró de mané Vito 4 X
Fulosinha 5 X
Nega buliçosa 6 X
Mulatas etc e tal 7 X
Na água do bebedouro 8 X
Forró de poeirão 9 X
Pot-pourri (Forró bole bole e Cadeira de balanço) 10 X
O trem pega 11 X
Dom Francisco, Dom Tomé 12 X
Menina da noite 13 X
Baile no sertão 14 X
40 - Fruto maduro - (Biscoito Fino, 2012) faixa sax
alto
sax
soprano clarinete
Mulatas etc e tal 1 X
Caravan 2 X
Coquetel 3 X
Chorinho para Mignone 4 X
Macunaima 5 X
Andina 6 X
Trem do Moura 7 X
Obstinado 8 X
Mantenha o groove 9 X
Chroma 2 10 X
146
Anexo III – Entrevistas
Halina Grynberg67
Ronalde: Como vocês se conheceram e em que período da vida profissional de Moura se deu
esse encontro?
Halina: Eu conheci o Paulo em 81. Ele estava com a escolha (referente a carreira)
encaminhada. Conheci o Paulo em São Paulo, ele fazia o show “ConSertão” (Kuarup, 1981). A
carreira construída, não sei se poderíamos dizer isso, naquela ocasião. O que haviam eram
escolhas feitas, mas a carreira que o tornou apto a tocar o que quisesse, construir os projetos
musicais, desenvolver discos que quisesse, produções próprias, etc e tal, realmente tem uma
coincidência com a nossa união. Porque isso acarretou uma condição muito emocional, quanto
real, grande. Em primeiro lugar ele (...) quando ele mudou pra minha casa, ele tinha aqui, nós
construímos um, chamávamos de estúdio, que era um espaço próprio dele. Nós vivemos todos
os nossos anos juntos em uma casa em São Conrado, bairro considerado nobre na cidade. Havia
um andar entre a garagem e a sala de estar muito grande, uns 28 metros quadrados. Lá ele
construiu o seu ambiente pessoal de estudo. Aí é que se desenha de fato um projeto que ele
podia assumir. Ele não tinha mais que bancar uma mulher, porque eu tenho o meu próprio
trabalho (...) podia escolher os trabalhos; e nós tínhamos um tipo de interlocução interessante,
porque (...) como a gente viajou muito e nós dois apreciamos muito arte, as nossas conversas,
sempre foi (...), o foco de estudo da minha vida sempre foi a filosofia da estética (...) e nós
tínhamos muitas conversas e debates e observações em torno disso. Ele encontrou uma parceria,
digamos assim, como vou te dizer (...), de base. Ele tinha a possibilidade de se dedicar muitas
horas por dia, quatro horas por dia ao estudo, um silêncio, o equipamento todo que ele precisava,
o piano, tudo isso modificou muito.
Ronalde: Isso tudo ocorreu por volta dos anos 80, meados dos anos 80?
Halina: Meados dos anos 80.
Ronalde: Em relação a todo esse envolvimento com a questão da estética, como se deu a
importância que a gafieira tomou na vida profissional dele?
67 Halina Grynberg é psicanalista e escritora. Nascida na cidade Świebodzice, Polônia. Conheceu Paulo Moura em
1981, foi companheira de Moura por 26 anos (1984-2010), atuando como produtora musical da carreira solo do
músico.
147
Halina: Olha só, Ronalde. A gafieira é original, é primária, é primitiva, ela é base de tudo antes
de tudo. Não se chega na gafieira, ele partiu da gafieira. (...) como é que ele partiu da gafieira?
(...) O pai dele tinha uma banda na cidade de São José do Rio Preto, esse episódio está no livro
também. Ele começou a tocar lá (São José do Rio Preto) por volta dos 12 anos, então aí você
vê onde está a gafieira. Porque havia bailes num clube chamado Marcílio Dias, clube da
comunidade negra, muito racista na cidade de São José do Rio Preto. Todos os irmãos dele
também passaram por essa aprendizagem, porque o pai do Paulo, seu Pedro Moura, ele
pesquisava partituras de bandas americanas (...) dos anos 40 e 50 que são aquelas bandas,
orquestras para dançar. O repertório inicial do Paulo foi esse. Então começa na gafieira, começa
observando o movimento dos corpos e (...) mais tarde se coloca na pergunta, qual som afeta
qual parte do corpo?
Ronalde: Ele tinha uma ligação forte com essa questão?
Halina: Fortíssima, porque ele não gostava de plateias (...) passivas, (...) que ficassem
aplaudindo ou extasiadas diante da viagem interior do músico que tocavam para outros músicos.
Ele realmente tinha um profundo desagrado por isso. Pra ele a música era um ritual coletivo
que tinha que sensibilizar a alma e o corpo da pessoa.
Ronalde: Qual a relação dele com o saxofone? Pois ao analisar a discografia dele, eu observei
que o Paulo vai gradativamente assumindo mais o clarinete como instrumento principal e
deixando de lado o saxofone, sendo que o aprendizado do saxofone foi mais informal do que o
clarinete?
Halina: O clarinete é o instrumento primeiro também, uma escolha dele, que ele aprende com
o pai. O saxofone entra, quando, chegando ao Rio de Janeiro, em 45, se não me engano, ele
começa a buscar novos mestres de baile, (...) então ele começa a fazer parte de bailes, (...) de
bailes e bandas ao redor de onde ele morava, e aí, o instrumento demandado era o saxofone. Na
ocasião, ele também (...) sempre viajou muito e tinha que tocar o saxofone, mas (...) a clarineta
é o instrumento de reflexão, o instrumento de partida também. Essa retomada (clarinete) se você
vai ver, ela acontece na década 90, não é?
Ronalde: Isso, por aí. Já tem início nos anos 80, ele cita o David Sunborn. Ele fala que ele tinha
como referência os saxofonistas de jazz, ao longo dos anos, na atuação dele como saxofonista
(...) ele até fala no seu livro da questão da sonoridade muito agressiva dos anos 80 do sax alto.
148
Halina: Sim, mas não foi por isso que ele deixou não, tá? Ele deixou o saxofone, porque ele
achou que foi um instrumento, onde havia já (...), aconteceu de maneira engraçada. A gente
estava em Nova Iorque e fomos ver um show no Lincoln Center, com aqueles maiores nomes
(do jazz), naquela altura nos anos (...) início dos anos 90. Família Marsalis toda, Steven (...),
não, como é o nome dele? (...). Esse era um saxofonista que impressionava profundamente o
Paulo. Até quando eu o ouvi tocar, eu falei. “Gente, Paulo, mas esse cara aprendeu com você
ou você que aprendeu com ele? Steven (...) vou procurar aqui (...).
Ronalde: Não seria Stanley Turrentine?
Halina: Stanley turrentine, esse mesmo.
Ronalde: Esse saxofonista impressionou muito ele?
Halina: Foi um dos saxofonistas que impressionou muito ele (...), outro é o (...) Cannonball
Adderley, e claro, o Charlie Parker, o Paul Desmond, e claro, o John Coltrane (...). A gente
estava vendo esse show (Stanley Turrentine) e (...), mas engraçado, nesse show, não sei se ele
tocou, ou ele tocou alto especificamente, mas era um som terrivelmente parecido. (Paulo
Moura). (...) aí quando a gente saiu do teatro, ele (Paulo Moura) pegou uma árvore, balançou
um galho e disse: “Tá vendo aqui, quantos saxofonistas tão bons ou melhores que caíram dessa
árvore, e eu nem americano sou?”. A partir daí ele se voltou para a clarineta de novo, porque
ele achou que a possibilidade de desenvolver o som dele, embora ele já tivesse isso no saxofone,
lógico, (...) seria maior, essa assinatura, estética. Ele gostava de K-Ximbinho, Luíz Americano
(...), e foi.
Ronalde: Interessante isso que você me falou da questão da estética, filosofia da estética, que
tem uma parte no seu livro sobre este assunto. Como era isso para o Paulo Moura no pensamento
e até mesmo nas conversas que vocês tinham, em relação a música brasileira?
Halina: Para ele não existia música brasileira ou americana, música brasileira ou americana era
uma questão de sotaque, era uma questão de raiz, mas ele pesquisava música. Ele podia ouvir,
ouvir no mesmo dia (...), não tem o manual de estética do Stravinsky?
Ronalde: Sim, as 6 lições.
Halina: Então, tipo, esse era o livro de cabeceira dele. Ele lia e relia, ele lia e relia as partituras
do Beethoven. Ele sempre estudou música erudita. Ele não estudava música popular, música
149
popular ele ouvia. Mas estudo, era de música erudita. Todos os (...), Weber (Carl Maria von),
Shostakovich (Dmitri), (...).
Ronalde: Essa disciplina que ele tinha, era uma disciplina diária, se não me engano, pela parte
da manhã?
Halina: Era parte da manhã, geralmente, ele acordava (...) sete, sete e meia, oito horas, tomava
um bom café da manhã e enquanto fazia digestão ele estudava partituras ou os títulos
comentados sobre estética. Como é o nome daquele cara que fez a teoria dos tijolinhos? (...)
Hindemith (Paul), Hindemith era uma fonte de referência dele, uma fonte de reflexão.
Schoenberg, ele leu muitas biografias do Schoenberg, Pierre Boulez, (...), muitos russos,
muitos.
Ronalde: Em relação a concepção estética do Paulo Moura, o que você poderia comentar sobre
o álbum “Confusão Urbana, suburbana e rural”?
Halina: O “Confusão Urbana, suburbana e rural” é pro Paulo, realmente o disco da vida dele.
Porque foi ali (...), que ele teve a perspectiva de que ele poderia se manter como músico
instrumental, o que não aconteceu. Tá!? Porque? Naquela ocasião ele vinha de (...), ele tinha
uma imensa amizade, talvez o grande amigo da vida tenha sido o Martinho da Vila. Eles
andaram viajando muito, tinha uma banda que tocava (...) Martinho né (...), mundo afora e
quando ele chegou no Brasil ele fez a produção junto a RCA, desse disco que viria a ser o
Confusão, né! (...). Ali você tem o “statement” de fato, da mistura dos instrumentos, das várias
camadas que existem na música popular, sonoras, das várias camadas sonoras, das várias (...)
referências francesas e americanas, (...) ali ele fez o que achou que poderia fazer adiante. Só
que como naquela época a RCA Victor fez o disco pra agradar o Martinho e não pra fazer do
Paulo uma estrela. Isso foi uma coisa terrivelmente frustrante (...), as gafieiras começam ali, o
lado de ganhar a vida com a gafieira surge por uma necessidade absurda de se manter em cena,
não havia necessidade absurda de ganhar dinheiro, né! E de (...) conviver com músicos que ele
treinava. O baile de gafieira era o grande ensaio musical do Paulo. Era onde ele preparava os
músicos e o repertório.
Ronalde: Tem uma faze da vida dele que ele começa a ter uma relação mais forte com a escola
de samba Imperatriz Leopoldinense, inclusive tocando tamborim.
Halina: Olha só, uma coisa assim (...) como ele morou, ainda antes de conhece-lo, em Ramos
(...) a escola de samba ficava em frente à casa dele e uma escola de samba quando começa a
150
ensaiar toca horas e horas seguidas. Nessas horas e horas seguidas ou ele aprendia aquela
sonoridade, se desenvolvia nela ou não poderia trabalhar em casa por causa do barulho. Então,
ele tinha essa visão (...) um pouco infantil e prática. Se eu não posso tocar isso porque não tenho
concentração, eu vou atravessar a rua e vou tocar alguma coisa com a bateria. E aproveitou e
mergulhou no universo do samba de enredo, profundo. Ele já tinha uma conexão (...), muito
grande com o Cartola e com o Nelson Cavaquinho; o Cartola uma imensa conexão; e com o
grupo Fundo de Quintal. Agora ele começa a tocar (...) tamborim porquê (...) jogaram no colo
dele, entendeu, ele ficou lá, começou a participar, ele era super bem-vindo, ele gostou do som
do tamborim, porque ele dizia que era o violino da orquestra.
Ronalde: Isso é muito interessante, porque meu trabalho está se pautando na questão rítmica
(...)
Halina: Isso eu posso te dizer várias coisas, tenho muita coisa, convivência com o Paulo a esse
respeito.
Ronalde: Devido a uma análise prévia que eu fiz, é muito interessante a questão da construção
dos improvisos dele, tem uma relação muito forte com o lado jazzístico (...)
Halina: Olha só, é o seguinte, pro Paulo (...), o que interessa pro Paulo no jazz é a percussão, o
que interessa pro Paulo no jazz é como a música, é (...), porque a percussão pro Paulo não era
acompanhamento, era uma outra forma de expressão melódica feita por outros, é (...), e
harmônica né! feito com outros instrumentos. Então ele pesquisava a percussão, a linguagem
afro, porque, como o racismo foi uma coisa muito dolorosa pro Paulo, extremamente, ele tinha
uma experiência que o indignava imensamente, ele encontrou na percussão a compreensão de
que ali era, ali estava uma origem que era renegada socialmente, que para ele tinha um valor de
música. Então ele começou a estudar profundamente a música africana (...), jazz entra aí. O que
o jazz tinha, que o fascinava eram os grandes interpretes.
Ronalde: O que eu observo como relevante é a questão da interpretação dele associada as
acentuações rítmicas. A minha hipótese que eu estou elaborando é o quanto existe de original
na rítmica em associação com as acentuações, porque existe a questão do suingue, de uma
malandragem no sentido de interpretar, e pra mim está relacionado com as acentuações rítmicas
na leitura dele. O que você pode comentar sobre essa questão.
Halina: É exatamente isso, quando ele tocava (...), não vou citar nomes, mas quando ele tocava
com pianistas de jazz, brasileiros, ele frequentemente entrava numa situação (...). como vou
151
dizer assim (...), desafiadora. Porque ele queria que eles acentuassem (...), africanamente,
sambisticamente, vamos dizer assim (...), e eles não faziam isso. Eles faziam jazz, aí ele falava
com aquele sorriso: “jazzzzzzz!!!” Entendeu? jazzzzz, aí ele se divertia, pra ele o grande prazer
de tocar (...). era com o Donato. Porque tem aquele (...), toda aquela construção encima de (...),
o piano percussivo, né! (...) então quando ele fazia improviso, os improvisos do Paulo não eram
livres, os improvisos do Paulo eram construídos, estudados. Até por isso ele não gostava muito
de participar de Jam Sessions. No início quando ele era muito jovem, ele participava para
aprender (...) quando ele ganhou a compreensão que ele queria da música ele começou (...),
quando ele fazia Jam Sessions era muito engraçado (...) Tem um show muito importante pra
você ver que chama “quatro por quatro” que era o Leo Gandelman, o Paulo na clarineta, o
Senise (Mauro) e aquele mineiro do saxofone (...), o Nivaldo (Ornellas). Você pode ver como
ele sai, literalmente sai, ele saia da frente dos microfones, se encostava no palco, no piano que
tinha no palco e aguardava, quando ele podia interromper aquela viagem ele vinha com aquele
jeitão dele, começava a tocar a clarineta baixinho até chegar e ocupar o lugar que estava
destinado aos microfones e acabar com aquilo, ele queria acabar com aquilo.
Ronalde: Interessante isso que você falou sobre essa relação dele com as Jam Sessions, os
improvisos dele eram muito bem estudados e pensados (...)
Halina: Como uma parte de fantasia de uma música erudita (...) ele escrevia (...), tinha o tempo
marcado e a hora marcada de entrar. Os músicos que tocavam com ele e se davam muita
liberdade jazzística, ele simplesmente se plantava de frente pro músico e de costas pro público
e começava a fuzilar com os olhos, ou então bater na barriga, fazer marcação de tempo (...) ele
queria controlar o que ele chamava de um delírio de vaidade.
Ronalde: Eu Fiz algumas transcrições de improvisações dele e dá pra perceber (...) é bem nítido
isso, essa construção da improvisação dele. O Paulo (Moura) não erra uma nota da harmonia.
Ele dá essa intenção de ser muito bem construída, as antecipações, acentuações que ele salienta.
As notas são muito bem colocadas em relação a harmonia, não escapa uma (...)
Halina: Não escapa uma porque ele treinou, ele escreveu, ele modificou em casa (...) quando
ele improvisa no show, o processo é esse, ele escrevia em casa, se ele ensaiava com o grupo,
por exemplo (...) acho que os últimos shows dele foi o “Bossa Blues” (...) ele recebia os músicos
na sala de ensaio que ele alugava, ele deixava todo mundo falar das ideias que tinham pro show,
ele ouvia, quase não tocava, voltava pra casa e modelava tudo da maneira dele, e então,
mostrando que ele tinha, digamos assim, aproveitado cada uma das vontades, das sugestões
152
musicais que eles tinham, mas a partir daí eles ficavam bem restritos, sem se darem conta, isso
aqui que eu estou te falando é um truque intimo tá!(...) é um bastidor pro Paulo.
Ronalde: Isso tem uma relação com a questão da estética, não?
Halina: E da música erudita (...), e da música erudita, da música erudita tem uma abertura, uma
introdução, um desenvolvimento em partes e uma finalização. Se você observar o repertorio do
Paulo e as nuances (...) que ele dá de ritmo e, ou de gêneros, você vai ver que tem isso que eu
estou te dizendo. A partir de uma determinada época, quando nosso diálogo ficou na vida (...)
eu comecei a participar da vida profissional dele, com mais presença, é (...) ele, eu dizia pra ele,
as pessoas gostam de ouvir estórias, então qual é a estória você quer contar aí? E a gente
construía essa estória (...). Há uma estória, há uma narrativa debaixo do repertório, e há uma
narrativa também (...) musical. A cada show, disco dele, ele estava pesquisando outras
referências, por isso, por isso que os discos são (...) Pixinguinha, K-Ximblues, entendeu? São
pessoas com quem ele queria aprender algo e queria transformar a aprendizagem dele numa
apropriação (...) como fazem os artistas de um modo em geral, eles imitam e depois apropriam.
Ronalde: Um dos músicos que fizeram parte da carreira do Paulo foi o Cliff (Korman). O que
você pode me falar dessa relação?
Halina: Essa relação foi muito particular e muito intensa (...) eles se conheceram em 1980, por
aí, onde o Paulo foi dar aula nos Estados Unidos (...) em Woodstock, ele (Cliff) era um dos
alunos, se encantou pelo Paulo (...) a ponto de mudar pro Brasil, ele mudou pro Brasil por causa
do Paulo. Então a troca com ele era sempre muito grande, a troca conceitual, a troca de
repertórios né! (...), era muito grande, com o Cliff buscando se abrasileirar o máximo, até que
o Cliff compreendeu que havia uma genealogia cultural que era diferente, e aceitou a diferença
que havia entre eles, em termos de construção musical, mas foi um queridíssimo amigo. O filho
dele, nós fomos padrinhos do filho, estamos sempre juntos, ele é um querido amigo até hoje em
dia, é uma pessoa que tem uma compreensão da parte, que ele chama de jazzista da obra do
Paulo que vale a pena ler e falar com ele.
Ronalde: Eu entrei em contato com ele e irei fazer uma entrevista com ele também.
Halina: Ele tem uma leitura muito própria dele né (...) muito bem articulada, ele é professor de
música popular, ele vem desenvolvendo várias cadeiras sobre a obra do Paulo Moura, então ele
é um “expert”.
153
Ronalde: Irei falar com ele com certeza.
Halina: Agora, a brincadeira é com o João Donato (...) eles podiam se encontrar e faziam o
seguinte jogo. Botavam uma faixa pra tocar e começavam a perguntar, quem estavam nos
instrumentos, de quem eram os arranjos, pra ver quem tinha mais essa instrução, sabe? Era um
desafio, um desafio entre amigos.
Ronalde: Eles tinham esse hábito?
Halina: É, essa era a razão pela qual eles se encontravam.
Ronalde: Eles chegaram a gravar um dueto (...)
Halina: “Dois panos pra manga”
Ronalde: Eles tinham uma relação muito forte na época da juventude dos dois.
Halina: Muito forte, tem essa estória que é muito curiosa. O Paulo, a família dele era de músicos
(...) a única pessoa que não podia ser músico era ele, que era mais novo. Não deveria ser segundo
a compreensão da mãe. Então tinha aquela estória de trabalhar na alfaiataria do irmão, né!? O
João Donato que tinha uma diferença muita emocional, muito significativa com o pai dele, não
sei se o pai dele era militar ou alguma coisa assim, ele frequentava a casa do Paulo, ia lá (...)
pra tal da alfaiataria, na verdade era um cômodo da casa que tinha o piano, e ele ficava lá
tocando. Então, 2006, quando eles gravaram aquele disco, eles estavam no Sesc Pinheiros pra
fazer um show de lançamento. Aí o Paulo sentou no piano e falou assim: “Donato vê se você
descobre de onde é essa música?”, e começou (...), começou a tocar e o João Donato
concentradíssimo disse: “Gente eu conheço essa música, de que disco você tirou?”. Aí o Paulo
falou: “Essa é a segunda parte disso, assim, assim e assim de que você tocava lá em casa”.
Cinquenta anos depois (...), o Paulo morreu em 2010, mais de 50 anos depois, quase 60 anos
depois. Então tinha essa (...), eles tinham vontade de fazer um disco, que a gente brincava, que
se chamaria “Mil Veces”, em espanhol. O João Donato contava uma estória, o João você teria
que entrevistar. O João é um professor e pode falar musicalmente do Paulo e o Martinho por
causa da percussão. Aí o (...) isso era engraçado. O João Donato tentou fazer a vida nos Estados
Unidos, ele queria trabalhar com as bandas cubanas. Então ele ia tocar, fazer o (...), seleção né!
(...) e nunca passava, nunca era aprovado. Aí um dia ele estava tomando um porre com um
percussionista, baterista cubano, se embebedava por ali, e falou, disse pro Donato: “Você tem
que fazer mil veces”. Então eles iam fazer um disco chamado “Mil veces” totalmente baseado
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na percussão. Então eu sei que ele conseguiu um emprego, essa é que é a verdade. (...) vou te
dar algumas referências do Paulo tá? (...) Cannonball Adderley, Anthony Braxton, Sidney
Bechet, muito, muito, muito o Coleman (Hawkins), Ornette (Coleman), Benny Carter, Paul
Desmond que eu já tinha te falado (...) Lee Konitz. Coleman Hawkins, Oliver Nelson, Sonny
Rollins, Archie Shepp, Stanley Turrentine, Bem Webster, Woody Herman, Lester Young,
Gerry Mulligan.
Ronalde: Essas referências traçam bem a história dele (Paulo Moura) como instrumentista e a
história do Jazz.
Halina: Exatamente
155
Cliff Korman68
Ronalde: Gostaria de saber como você conheceu o Paulo Moura e como se deu a sua relação
profissional, musical com o Paulo?
Cliff: Bom (...), a relação começou em 1981 quando eu fui estudar em um lugar que chamava,
em inglês, The Creative Music Studio, já ouviu falar?
Ronalde: Não.
Cliff: Então vou explicar o que é isso, ok (...) Creative Music Studio foi uma escola (...)
particular. Uma série de oficinas criada pelo vibrafonista e compositor Karl Berger, que vem
da Austria, Europa, Karl encontrou e atuou na cena de free improvisação, free jazz, na Europe,
a partir da década de 60 se não me engano, tenho quase certeza. Então ele trouxe uma estética
de improvisação que tinha a ver com as tendências da década de final de 50 até 60 (...) que
foram propostas pelo Ornette Colemann, saxofonista, e principalmente pelo trompetista, Don
Cherry, porque foi com Don Cherry que o Karl tocou na França na década de 60. Isso é muito
importante, eu vou juntar as coisas. Don Cherry trouxe essas tendências e propostas do Free
Jazz (...), e também ele foi um dos primeiros músicos, como eu saiba, pra realmente pesquisar
culturas não americanas, culturas do mundo, que hoje é considerada “World Music”, né, ou
outras tendências, culturas de vários lugares, mas isso já tem mais o que (...), cinquenta anos,
ou mais que isso, estava já acontecendo, e a proposta e a busca, não era acadêmica, a pesquisa
do músico mesmo foi realmente pra investigar os conceitos de música dos outros (...), outras,
das outras partes do mundo que incluía improvisação e o que era improvisação nessas outras
culturas, e repertório e instrumentos, e ritmo com certeza. Então foi (...), o início de um
momento (...), um movimento de uma pessoa pesquisando improviso livre, livre das normas,
regras e tendências da década de 40 e 50, entre aspas “Música do Mundo”, “World Music”,
outras culturas. Então Karl levou isso quando ele foi para os Estados Unidos, ele levou isso
pros Estados Unidos e começou essa escola junto com um tipo de colegiado, uma comissão, o
Ornette Colemann, só pra avisar, ele nem deu aula, era uma coisa pra dizer, quem são essas
pessoas, o Ornette, John Cage, era uma mistura de pessoas da música contemporânea europeia
e jazz contemporâneo. Uma parte dessa oferta dele, foi sessões de tipo festival de (...), curso de
verão (...), de “World Music”, que chamava “World Music Seminar”, justamente, que eu fui
pra assistir um seminário desse, um cinco semanas, em que o modelo era trazer mestres de
68 Cliff Korman nasceu em 1957 na cidade de Nova Iorque. Colaborou com Paulo Moura em diversos trabalhos,
incluindo concertos e gravações. É pesquisador, professor, pianista, arranjador e compositor. Atualmente é
professor da UNIRIO.
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vários lugares do mundo por alguns dias, semanas, duas semanas, temporadas, pra dar a oficina.
E o Paulo foi um desses mestres que o Karl conheceu (...), trouxe Paulo pra dar aulas de música
brasileira e eu o conheci lá. E eu posso dizer que desde o primeiro encontro a gente se deu bem,
mas fui eu aluno e ele mestre nesse momento. Mas era evidente, mesmo que nesse momento
(...), que nossas formações, mesmo eu neste momento com 24 anos, e ele com quarenta e alguma
coisa (...), nossas formações tinham coisa em comum, tipo o jazz, eu me formei nisso, a ideia
de harmonia, a ideia de improvisar atuando dentro de uma forma harmônica estrutural, as
referências, os modelos do bebop, do Coltrane. Então mesmo que a gente era totalmente de
outras gerações e outros lugares e tudo, essas referências em comum, eu acho que (...), facilitou
a relação musical. Inclusive pra mim (...), eu sempre fiquei atraído ou confortável dentro do
conceito brasileiro pra tocar. Então era quase (...), um primeiro encontro que alguém, do Brasil
mesmo, que não pessoas, americanos, juntavam para tocar música brasileira. Um brasileiro
mesmo com essa maneira que a gente vai falar aqui que é quase impossível de transcrever,
porque vem da maneira de tocar, (...) então é difícil, mas (...), então foi pra mim (...), como é
que fala? (...), um encontro muito feliz e pra ele, eu acho que, eu não posso falar pra ele, mas
ele se mostrou muito receptivo pra mim (...), neste momento eu já era um profissional, minha
leitura estava boa já, então quando ele passou umas músicas eu li à primeira vista e era fácil.
Então isso é nosso encontro em 1981, foi maravilhoso realmente, foi uma, não diria uma
amizade, mas uma relação amigável entre mestre e aluno (...). E nessa década de 80 eu voltei
pra Nova Iorque pra tocar e ele fez a vida dele e soube depois o que ele tinha feito na década
de 80 porque eu estudei mais, etc, mas eu fiz questão de ficar em contato com ele, porque logo
depois, poucos anos depois, eu entrei no cenário brasileiro em Nova Iorque, na coincidência
que na década de 80 chegaram muitos músicos brasileiros pra tocar em Nova Iorque por várias
questões e razões. Então começou a aparecer uma cena de trabalho, de bandas, de
experimentação e tudo isso, com música brasileira e repertório, etc, e eu me aprofundei nisso,
eu conheci várias pessoas fazendo isso e (...), então eu comecei uma estória com essa música,
mas do que simplesmente um encontro de americano com a bossa nova, mais do que isso.
Enquanto isso eu mandei cartões postais (...), Ah perái, não ainda não, eu comecei a trabalhar
com a Astrud Gilberto mais no final da década, mas quer dizer, nessa década de 80 eu fiz
questão de vez em quando mandar uma carta postal, que ainda existia nessa (...), viajando,
tocando com “X”, eu tenho um grupo, mandando repertório, mandando gravação, só pra manter
contato. E, de novo, coincidência, ele viajou várias vezes para os Estados Unidos e de repente
a gente se encontrou, ele tocando em festival e eu fui lá sem saber, tinham vários momentos
desses em que a gente manteve contato. Bom (...), no final da década de 80 eu comecei a viajar
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pro Brasil pra conhecer o país e as cidades a convites de outras pessoas, outros músicos que foi
que se tornou uma viagem anual pra mim, a cada ano eu fazia (...), e eu também, fiz questão de
falar: Paulo eu estou chegando, gostaria de te encontra, então a gente manteve esse contato. E
ele acompanhou então minha evolução (...), e na década de 90 ele começou a me chamar pra
trabalhar, isso foi uma outra relação, foi (...), o início de nosso duo, ele achou uma oportunidade
de fazer um show em Paraty, um duo, ele me chamou, sabendo que eu ia viajar, então a gente
começou a nossa relação musical como parceiro nessa década. Enquanto isso fiz mestrado, fiz
doutorado (...), então acompanhando ele, nossa relação, nossos projetos (...). Criamos nossa
relação de música brasileira juntando com música americana, a proposta de saber o que
acontece quando essas duas culturas (...). Foi um negócio de repertório, foi um negócio de
conceito de improviso. Ele me chamou pra fazer um show do Gershwin, ele me chamou pra
fazer um show de jazz com Jobim e Benny Goodman. Então estávamos criando nossa base. E
acabo achando que eu também busco, quando continuo com essa pesquisa, realmente que o
encontro tem muito a ver com conceito rítmico, como lhe dar com o suingue, como misturar e
fazer esses encontros através do ritmo, antes de tudo é a conexão, porque se não rolar uma
conexão rítmica, acaba, acontece nada. Pode estar as mesmas notas, as cifras estar a mesma
coisa, conceito de improvisação, nada rola se não tiver uma relação de entendimento,
compreensão rítmica.
Ronalde: O que o Paulo Moura tinha de influência do jazz na maneira de tocar o sax alto?
Cliff: Eu vou só falar uma coisa antes de responder.
Ronalde: Sim!
Cliff: Atualmente eu estou evitando a palavra influência, porque é uma palavra pesada que
implica, que pode implicar coisas (...), não que é uma verdade sabe, eu usava muito essa palavra,
isso implica talvez uma relação desigual e eu colocaria isso no Paulo, porque Paulo (...), eu
prefiro, hoje em dia, modelo como referência, referência a tudo. Então o que ele tem de
referência eu diria pela sonoridade, o saxofonista que (...), Halina provavelmente falou (...),
Benny Carter (...)
Ronalde: Sim, ela comentou.
Cliff: É, claro, sonoridade. Eu também achava na clarineta, que ele (...), isso pra mim era uma
percepção pessoal, minha; mas que realmente pensou muito em repertório do Duke Ellington,
que eram os clarinetistas do Duke Elligton. O som dessa big band, os clarinetistas dessa big
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band eu acho que Paulo conheceu, com certeza, e foi um modelo. Benny Goodman também,
ele mesmo falava isso, mas pra mim era evidente uma pessoa que conhecia o som da big band
de 30, 40 e buscou essa sonoridade no som dele, acho que é um elemento. Isso realmente (...),
pro leigo, pro ouvinte, não tem que ser músico pra receber uma sonoridade de como (...),
identificador de personalidade de alguém, o som, antes de tudo. Então ele, eu acho que uma
grande referência (...), Benny Carter, Benny Goodman, com certeza, e os vários saxofonistas,
clarinetista das big bands do Duke Elligton, Stan Kenton, eu acho que conhecia, ele conhecia
esses grupos (...). Também eu sei que ele buscou entender bebop, era uma busca que ele fez
com vários outros músicos aqui na década de 50, entender o que era isso, até o próprio Sinatra
Farney Club, sabe, essa associação, eles se juntaram pra entender essas coisas, música
americana, como lhe dar com isso, e depois com certeza ele conhecia Coltrane, John Coltrane,
essa ideia (...)
Ronalde: A questão foi o que você observava em relação a ele as características do jazz na
maneira de improvisar e tocar?
Cliff: Então, eu comecei com o som, eu que ele estudava, ele buscava repertório do Charlie
Parker, dizzy Gillespie, por isso Yard Bird Suite entrava, não é que só entrava, ele sabia como
(...), ele entendeu a música. Sabia como lhe dar com esse negócio. Teve modelos, ouviu Charlie
Parker tocando, estudou até onde podia (...), também eu acho que uma certa insistência dele pra
ser livre, pra improvisar, é capaz que isso vem do jazz também, que a intenção (...). A ideia de
pegar uma música e improvisar até onde quiser, sabe essa ideia, de abrir uma estrutura ou um
ciclo pra improvisar mais do que uma vez (...), que eu saiba os improvisos na música brasileira
eram mais curtinhos. Ainda hoje eu encontro músicos com essa estética de que brasileiro não
gosta muito de improviso, que eu acho errado, mas ainda existe essa ideia de que não pode ser
muito grande porque a pessoa não gosta, não é minha experiência, mas tudo bem. Eu acho que
o conceito dele abriu também por causa disso na busca de improviso como uma maneira de se
expressar e com certeza é uma coisa, um componente do jazz, que é o tema como ideia de
lançamento para se expressar depois, obviamente a partir do bebop isso abriu (...), até a
porcentagem de improviso é muito grande em relação ao tema, nesse momento. Então é isso
(...), vários gestos, ornamentações bebopianos, notas melódicas do bebop entravam, acho que é
isso.
Ronalde: Qual ou quais as características musicais brasileiras mais marcantes que você observa
na atuação do Paulo Moura como instrumentista solista?
159
Cliff: Primeira coisa eu vou começar com o som realmente, porque ele traz, um som que vem
também meio século brasileiro, carioca, carioca paulista. K-Ximbinho entra, os grupos de (...),
Luis Americano, Radámes, que ele obviamente teve a oportunidade de trabalhar junto, fizeram
um disco, que é também um dos discos marcantes dele, então sonoridade, Pixinguinha entra
com certeza (...), eu acho que essas coisas maiores, big bands, bailes, dacing, desse meio século
brasileiro, ele levou e inseriu isso no som dele. Lembrando que ele foi um músico que estudou,
não foi somente do baile, ele estudou no conservatório, ele estudou clarineta. Então ele é um
músico que tem opção, não é um músico que toca assim porque sempre foi assim (...), como
todo respeito com qualquer músico que é assim, mas o músico que estudou tem mais opções,
então era opção dele fazer isso, não era porque sempre ouviu esse cara, esse cara que ele tocou
assim, não, era uma coisa trabalhada, importante lembrar ou comentar pra mim que isso é uma
opção de um músico que sabia tocar em outras maneiras, até música erudita. Ele conhecia
técnica, nunca parava de estudar a técnica do instrumento. Realmente pra mim, eu comento, ele
foi um instrumentista puro, porque o instrumento realmente era o mais importante pra ele.
Como tirar o som que eu quero neste instrumento. Qual o seu instrumento?
Ronalde: Saxofone.
Cliff: Então você sabe, qual a palheta, qual a embocadura (...), ele era muito atencioso nessas
coisas. As técnicas de dedilhado, alternativas, ele estudava isso. Então era um opção, e a outra
coisa, além do repertório, que pra mim foi em geral novidade, a gente tocou alguma coisa do
Jobim, mas o resto num certo momento pra mim, estrangeiro, eu não conhecia uma grande
porcentagem de repertório, Pixinguinha, K-Ximbinho, vários (...), Zeca Freitas, sabe, então ele
trouxe repertório também de várias épocas, coisas do Radamés, a gente tocava esses duos do
disco do Radamés, então é uma cultura de levar repertório e ritmo com certeza. A coisa rítmica
que você comentou sobre o momento, década de 70, “Confusão”. Era uma confusão, assim,
organizada. Eu acho que ele estava tentando juntar os vários elementos e fazer uma confusão
boa no bom sentido, mas umas dessas coisas realmente foi a experiência dele com o Martinho
da Vila, com a escola de samba (...), e a única coisa que eu posso dizer, interessante que você
fala sobre o tamborim, não conhecia ele, gostaria de conhecer, eu estou hoje em dia olhando
pras células rítmicas, sim, que é que existe na escola de samba, principalmente nessa escola de
samba, a maneira do Martinho da Vila usar tudo isso, então, são as células rítmicas que a gente
pode olhar, mas mais do que que isso são as coisas do gesto, gesto físico. Como tocar essas
coisas. E eu acho que (...), e nessa (...), que tá o jeito, a malandragem carioca de ser, que a gente
tá referindo. Era o fraseado do Paulo que contava, eu já vi várias coisas que ele tocou que
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parecem improvisadas, até o próprio duo com pandeiro, como se chama essa? (...). O início
dessa música, é uma música, desculpa eu não estou lembrando o nome, ele começa um duo com
pandeiro e depois a música entra, ele tá tocando junto com esse pandeiro. Quer dizer, quando
eu ouvi a gravação, eu pensava que era improvisado, mas eu acho que não estava, ele escreveu
isso, porque tem várias gravações e é bem perto, e agente até encontrou no arquivo uma parte
desse negócio escrito, quer dizer, ele escreveu as notas. Tudo bem! Então é uma variação
preparada, mas é uma (...), a coisa mais importante é como ele tocou (...), então ele estava
tocando essas notas escritas, tudo bem, mas coloca na frente de qualquer um, você (...), o
resultado não vai ser o mesmo (...), porque ele entendeu o pandeiro. Justamente ele estava
querendo o pandeiro para entrar no balanço do pandeiro. Então esse negócio de fluidez, como
é que chama isso? Fluidez de tocar um pouco pra traz, depois pra frente, o movimento, a relação
das células, das frases, a relação com o tempo fixo; porque o tempo fixo ele não é rubato, é
tempo fixo, só que ele (...), esse tempo fixo, a maneira de tocar tem (...), é isso que é difícil
medir no papel. A gente nunca vai chegar no papel, mas hoje em dia tem recursos, tem
ferramentas desenvolvidas, não sei se você conhece o livro do Berliner?
Ronalde: Não, esse eu não conheço.
Cliff: Bom, seria bom, “Thinking in jazz” (...), é só um aviso, o livro é deste tamanho, é grande,
mas ele é (...), mas ele é um antropólogo etnomusicólogo da Universidade de Chicago. Na
década de 90 ele fez uma pesquisa sobre, pensando em jazz, o nome do livro. Justamente isso,
como que é um jazzista se forma e a primeira parte do livro é só texto, entrevista, capítulos, tipo
uma tese grande, porque ele já é professor. É um estudo. E a segunda parte do livro, que é (...),
quase que metade é transcrição e maneiras de transcrever o jazz. E nesse eu acho muita
ferramenta interessante pra música popular improvisada em geral, porque tem a ver como
indicar sonoridade, como indicar afinação que não é justa, como indicar relação de tempo (...).
Então, exato não é, porque ele usa uma serie de setas, setas mostrando a relação da linha do
tempo exato, mas pelo menos é uma maneira de dizer, ‘essa frase é um pouco pra traz, essa
frase é um pouco pra frente”. Agora, a única coisa que a gente pode fazer hoje em dia, que tem
até (...), é uma análise espectral. Tem esses programas que a gente pode até ver no computador,
justamente a percepção foi correta, é atrás, e a gente pode até medir pelo microssegundo. Então,
interessantíssimo pra o que? Pra confirmar, ao meu ver, porque eu acho que (...), a gente (...),
não vai, não é no momento, pra usar uma análise espectral pra tocar. Porque a ideia da música
improvisada nem é isso, é pra olhar pra uma partitura e fazer outra coisa, interpretar, mas a
gente pode até confirmar, pois é, eu estava certo ou não, ok, mas quando eu fiz o meu artigo
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sobre o hepteto, eu usei essa maneira (...), essa maneira de indicar tempo, que ajudou. Você tem
esse artigo?
Ronalde: Não tenho.
Cliff: Eu vou te mandar, porque ainda é em inglês, eu ainda (...) não coloquei na (...) porque
acho que ainda está no direito autoral do jornal, mas eu te mando. Então, a maneira de tocar
que tem a ver com o gesto, que tem a ver com os instrumentos; começamos com o tamborim,
eu acho que pandeiro também entra nisso (...). Não é necessariamente as notas da escola de
samba que valia pra ele, que ele já conhecia todas as notas, mas a maneira de tocar, a força de
tocar com esse suingue numa escola de samba que é enorme, eu acho que isso entrou (...), e ele
pegou isso também, acredito eu, com um cantor que cantava com ele no disco (...)
“Pilantrocracia” (...), como é que chama? (...), Wilson? (...), sabe quem é?
Ronalde: O disco eu conheço, mas o cantor não.
Cliff: Bom, tem um cantor, é um cantor negro que entrava nesse momento de samba (...), era
uma fase popular (...), não era samba de breque, samba balanço, alguma coisa, sambalanço,
talvez era sambalanço. Bom eu acho que esse cantor, e se não me engano ele menciona isso no
livro da Halina. Esse cantor influenciava, influenciava, era um modelo, a maneira de cantar, a
liberdade de frasear (...), Wilson Moreira talvez (...), é um cantor famoso, eu estou esquecendo
(...), mas é (...), foi um modelo de canto (...), mas era uma pessoa que estava cantando no início
de setenta. Isso tudo pra dizer que o senso rítmico que ele trouxe, mesmo tocando coisas
jazzísticas, eu acho que o fraseado dele, do Paulo, ele buscava uma elasticidade no fraseado que
(...), que vem do ritmo, que vem da maneira que até o próprio baterista jazzista toca, sem marcar
o tempo, a pessoa que tá mais interessada no pulso. Eu não vou dizer e nem vou usar a palavra
subdivisão, é mais uma onda de pulso pra mim.
Ronalde: Você acredita que isso tem a ver com o tratamento do Paulo Moura em relação a
questão das acentuações rítmicas?
Cliff: Acentuação? É, pra mim entra (...), acentuação faz parte do fraseado (...)
Ronalde: Nessa questão da elasticidade que você citou?
Cliff: São os marcadores, não pode ser só elástico, porque se não, não há definição, mas o
acento é um (...), entre os dois acentos que são os marcadores você tem uma liberdade de frasear.
Eu acho que ali, agora eu (...), é minha percepção (...), que eu aprendi ouvindo e tocando com
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ele e deixei entrar na minha maneira de tocar era justamente isso, em não perder o senso rítmico
era evidente que (...) um sambas, um choro, um jazz, mas pra mim o acento é um marcador,
mas o que acontece entre esses marcadores é com a interpretação do tempo.
Ronalde: Devido à dificuldade da transcrição em demonstrar o suingue inserido na maneira de
improvisar do Paulo Moura, eu estou buscando uma relação com as acentuações nas células
rítmicas no tratamento melódico dado por ele.
Cliff: Eu acho que a gente tem que aceitar, e até colocar nas pesquisas que há uma limitação
de transcrição, tem um limite, a transcrição não vai mostrar (...), mas vai mostrar falando um
pouco (...), como é que a gente está conversando agora, que isso é um indicador mais perto
possível, no papel (...), como mensurar um gesto. Gesto rítmico, gesto físico que eu estou
dizendo. Pra mim, como dizer (...), a célula é uma coisa, você pode totalmente observar uma
célula rítmica do tamborim numa frase melódica dele, mas isso é muito linear, não vai dizer
(...), vai mostrar, olha aqui, a célula da imperatriz que entrou aqui, ok, agora, mas tem mais.
Esse também é o nosso problema atual, como mostrar isso mais. Você falou com a Daniela?
Ronalde: Sim, estou em contato com ela, tenho todos os trabalhos e artigos dela.
Cliff: Então, o fato é eu o Paulo buscou o movimento do bailarino (...) pra tocar, então, de novo,
é um movimento externo que ele tá olhando ou percebendo e tentando absorver com frases dele
(...), não é, e mais uma vez, não é qualquer um que faz isso. Você tem que ser um instrumentista
com técnica pra sair dos seus limites, pra buscar uma coisa externa e dizer, eu quero, eu quero
levar isso pra mim agora, neste momento, em tempo real, uma pessoa que sabe fazer isso, com
fluidez.
Ronalde: Qual o significado da improvisação do Paulo Moura pra você?
Cliff: o Paulo pra mim é um músico que usava vários gêneros brasileiros, gafieira e subgêneros
propriamente, grande categoria, gafieira e tudo que cabe dentro, que é muita coisa você sabe,
mas com essa referência de um improvisador, quer dizer, esse repertório, eu vou fazer a minha
leitura desse repertório. Isso é uma diferença em que alguém, que como sideman, ele vai pra
Estudantina pra tocar com um grupo de gafieira pra acompanhar os bailarinos e a música bem
estruturada, pode ter três minutos de valsa, depois mais oito minutos de samba e depois um
samba canção. Isso é uma coisa estruturada do baile da gafieira que tem como prioridade o
baile. Não é necessariamente a música, a música é em serviço do baile. Isso acontece em todos
os gêneros em que o músico popular, o músico pegou, o grupo pegou o repertorio para ele, entre
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aspas, fazer a leitura. As músicas do samba com americano em geral, grande porcentagem vem
do filme, vem do teatro, e nesse contexto a música é em serviço do teatro ou do filme. Quer
dizer, não é? “Xis” minutos de música porque depois tem que ter uma outra cena, ok, mas a
música é tão boa, que vamos pegar essa música e fazer outras coisas. O posicionamento do
Paulo é isso, vou usar a gafieira desta maneira, eu vou investigar os ritmos e o “espírito” de
gafieira, se a gente pode entrar nisso, mas eu vou interpretar isso do meu jeito, vou fazer outras
harmonias, outras estruturas, vou escrever um arranjo, vou mandar alguém improvisar; tem bem
mais liberdade ele tocando gafieira desta maneira, gafieira, etc e tal, do que tocar num baile da
Estudantina. Agora, a coisa bacana do Paulo em que ele trouxe isso pro palco também, ele fez
gafieiras com essa ideia de líder, que entende, bom eu não posso tocar (...), eu não posso deixar
o bandolim improvisar seis vezes seguidas, porque realmente vai acabar o baile, então não vou
deixar isso acontecer, mas duas talvez, entendeu? Pensando no contexto (...), eu posso abrir
uma sessão só com percussão, mas com muita (...) percepção, de novo, em tempo real da sala.
Tá dando certo aqui, vai fazer mais, não tá dando certo, acabou. Então, de novo, é uma
flexibilidade com a linguagem da gafieira, os componentes, o que é uma gafieira, repertório,
baile, ritmos, vários gêneros, é uma formação, maneira de apresentar uma música, ok, e depois
disso eu vou pegar tudo isso e fazer do meu jeito (...), vou brincar um pouquinho, clarineta e
baixo. Então, eu acho que (...), o que ele traz, isso tudo pode ser improviso, mas é mais a leitura
da gafieira pra mim que é bacana. Ele usa o gênero como uma série, um conjunto de elementos
disponíveis pra improvisar, pode improvisar num ciclo? Pode. Pode improvisar no ritmo?
Também pode. Pode improvisar na formação? Também, entendeu? Então, é o conjunto de
coisas que eu acho que o Paulo, pra mim, pela minha percepção, ele pensava assim, não é só
dentro da forma (...), forma da música, mas é o geral. O que a gente tá fazendo agora com essa
música, aonde encaixa? É bem maior do que a música só. Ele pensava assim.
Ronalde: Você acredita que a gafieira representa a estética assumida pelo Paulo Moura como
músico na sua carreira?
Cliff: Sim, mas eu diria uma das.
Ronalde: De acordo com o mapeamento que eu fiz em relação a discografia do Paulo Moura,
eu observei que ocorre uma inversão entre o saxofone e a clarineta como instrumento principal,
com o qual ele passa a gravar mais músicas brasileiras. Pela sua experiência profissional com
ele, o que você poderia comentar sobre essa postura assumida por ele?
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Cliff: Que eu saiba realmente foi (...), a década de sessenta foi talvez uma década de incerteza
da identidade que ele (...), ele estava desenvolvendo, ele tá amadurecendo como músico e como
pessoa nesse momento (...), a gente começa a ver nossas opções como identificador, como (...),
eu escolhi isso, eu me dediquei nisso, me aprofundei nisso, isso quer dizer, eu deixei outras
coisas que estava fazendo de lado, realmente são nossos limites do ser humano. Que você faz
uma escolha e se quiser fazer bem, outras coisas começam a cair, não? Nada errado. Eu falo
isso no meu artigo, o hepteto e quarteto foi pra mim esse momento, esses dois discos foi
realmente os últimos discos jazzísticos, que tem bastante elemento jazzístico. Buscando isso, o
que é um quarteto, com música brasileira, mas conceito jazzístico, o que quer dizer isso em
relação a música que eu quero tocar. Pra mim era quase, olhando pro passado, eram quase
resumos da vida dele musical da década de 50 e 60, o próprio repertório mostra isso. “Yard
Bird Suite” entra porque ele tocava essas coisas na década de 50. Samba-jazz entra porque era
a vida dele na década de 60, ele entrava, era o maestro disso, arranjador, o Sérgio Mendes.
Música mineira entra porque ele começa a tocar com o Wagner Tiso a partir de 65, 67, esse
contato com mineiro já tinha acontecido. Pra mim, olhando pra lá, era realmente, o que
aconteceu depois (...), os marcadores de um final de uma fase. Agora não sei se isso foi a
intenção, mas sabendo o que aconteceu depois, que foi “Fibra”, que foi “Pilantrocracia”, uma
loucura que era reflexão da época; e depois, não muito depois “Confusão”. Eu acho que é
evidente a possibilidade de que “Confusão” não poderia ter saído na mesma época do Hepteto,
impossível. Porque ele não estava com essa informação ainda. Então pra mim até a década de
60 ele se identificou como jazzista, foi pra Nova Iorque, no início da década de 60 com o Sérgio
Mendes, contato com o Cannonball Adderley, outro modelo, outra referência. Então era um
momento que (...), ele não estava sozinho nisso, o momento histórico do Rio deixava o músico
brasileiro uma vida do improvisador solista jazzista, porque existiam ainda opções. Agora,
historicamente, ele não se mudou pra Nova Iorque, ele não saiu do país como vários fizeram,
até o próprio Sergio Mendes, e vários outros, Don Salvador, pianista; vários baixistas,
bateristas, vários brasileiros que se formaram nessa época de samba-jazz, pra usar essa palavra.
Eles entenderam (...), Claudio Roditi, se eu quiser tocar jazz eu tenho que sair daqui, é normal.
Alguns ficaram, o Paulo não, olhou, eu acho (...), acho que não estou errado nisso, mas não pra
eu dizer, não estou errado em dizer que ele aceito, ele entendeu, eu não vou pra lá eu estou aqui.
Então, quem sou eu, músico? Quem é esse Paulo Moura, músico brasileiro, querendo ser solista,
querendo ser conhecido como Paulo Moura e não só um músico com grande habilidade de
arranjador, de orquestra (...), poderia ter feito uma vida totalmente ok, não? Ele queria ser uma
pessoa com identidade solista. Eu acho que houve o momento de dizer que, então olha, temos
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que aproveitar o que a gente tem aqui, e o músico, como você bem falou, o músico que buscava
coisas jazzísticas desde a década de 50, que buscava música erudita até, na clarineta. Ele viu a
confusão. A gente aqui tem choro, a gente aqui tem gafieira, a gente aqui tem Radamés, a gente
aqui tem samba, então ele se aprofundou no samba, ele não fez isso antes, ele fez nesse
momento pra entender (...), esse momento eu tenho o maior respeito por ele, por fazer tudo que
ele fez, porque realmente de uma certa maneira ele se tirou do mercado, pode ser que o mercado
também mudou (...), não sei se você entrou nisso ainda ou vai entrar num momento, a coisa
histórica com músico instrumentista formado na música na década de 60 e 50, na época de
tropicália, de rock and roll, dos Beatles, caraca! Foi um golpe. O que eu faço com tudo que eu
já estudei por vinte anos da minha vida ou mais em alguns casos, o que eu faço com isso?
Entendeu? Nada contra. Eu gosto, tudo que aconteceu em geral eu reconheço como coisas
naturais da música popular, acontece essa estética. Nesse momento era um golpe mesmo. Isso
aconteceu nos Estados Unidos, a gente tem histórias parecidas de músicos perdidos nesse
momento. O que eu faço agora? Porque a estética, esquece a estética, o dia a dia, o ganho, o
pão, acabou! Então eu acho que o Paulo teve que enfrentar isso também.
Ronalde: Eu aponto no primeiro capítulo, onde trato da biografia do Paulo Moura, alguns pontos
referentes a essa questão. Inclusive a questão de assumir um pseudônimo, como Bob Fleming,
para realizar gravações. Ele nega isso.
Cliff: Verdade, ele não aceitou, já é um sinal. Falando sobre esse momento de 60, final. Eu acho
que foi realmente um momento de contemplação, o que eu faço agora? Buscou outras
oportunidades que aconteceram com muita sorte também, e o destino de encontrar com o
Martinho da Vila, trabalhar com ele, viajar com ele, entrar nessa vida. E mudou, justamente é
isso, agora eu tenho (...), eu acho, ele reconheceu um outro campo que identificava ele, agora a
gente tem Paulo Moura com a gafieira que até agora, você sabe disso, que meus colegas da
minha geração sentem esses discos como virada da vida. É isso que é possível? Pascoal
(Meirelles), Mauro Senise, Marcio Montarroys, quando ele estava vivo. Essas pessoas olhavam
pro Paulo como, meu deus! Sabe? Então isso é o momento que o Paulo Moura chega na verdade.
Ele se identifica como um brasileiro, um brasileiro bem informado musicalmente, com a cabeça
muito aberta de receber outras coisas. Isso a gente viu no acervo, a quantidade de estilos e
partituras, e grades, fizeram parte do estudo dele, não é só pra colocar na estante. Ele estudou,
mas eu acho que a partir de 70, ele estudou com essa ideia. O que eu faço com isso pra minha
leitura?
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Ronalde: Nesse período eu observei que ele começa a ter uma preocupação maior em direção a
questão da identidade.
Cliff: Tudo isso, temos que avaliar o momento artístico e da evolução dele. Porque a ideia,
década de 50, de encontrar estilos, de fazer aventuras, ele tinha vinte anos, normal. É muito raro
a pessoa que já estabeleceu uma identidade com vinte anos, não é natural, até fico com medo
quando vejo isso, porque pode ser uma pessoa que é um gênio ou pode ser uma pessoa que está
se limitando ao invés de se abrir. Mas com quarenta, é outro momento, quarenta é momento de
dizer: Peraí, tá comigo agora. Eu tenho uma oportunidade que ele também teve, oportunidades
financeiras, olha Paulo, você quer gravar alguma coisa, eu estou bancando seu disco. Então tá
na hora de decidir o que eu quero fazer. Se o artista nesse momento escolher, eu vou fazer o
repertório do bebop brasileiro, a comparação jamais vai parar, bebop é assim, mas Charlie
Parker tá aqui, o modelo. Não vai ganhar do modelo, eu falo isso com meus alunos, não vai
ganhar do modelo, mas vai aprender com o modelo. Ser quiser, tá correndo o risco de sempre
rolar essa comparação e poucos discos superam. Agora, usar isso como modelo, fazer a sua
coisa com esse modelo, isso é uma homenagem, diferente. Então eu acho que o Paulo pelo fato
histórico e na vida particular, isso tudo se junto naquele momento. E ele virou o instrumentista
brasileiro que realmente interpreta coisas brasileiras, gafieira, choro, duos com vários
brasileiros, música mineira, ele a partir desse momento, o som dele, é evidente que ele (...), mas
contemplando vários gêneros.