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i UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO DISSERTAÇÃO DE MESTRADO EDUCAÇÃO MUSICAL E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA: ENTRE ENCONTROS E POSSIBILIDADES ANA CRISTINA ROSSETTO ROCHA Orientadora: Professora Doutora Ana Angélica Medeiros Albano Dissertação de Mestrado apresentada à Comissão de Pós- graduação da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação, na área de concentração de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte. Campinas 2011

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

FACULDADE DE EDUCAÇÃO

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

EDUCAÇÃO MUSICAL E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA:

ENTRE ENCONTROS E POSSIBILIDADES

ANA CRISTINA ROSSETTO ROCHA

Orientadora: Professora Doutora Ana Angélica Medeiros Albano

Dissertação de Mestrado apresentada à Comissão de Pós-

graduação da Faculdade de Educação da Universidade

Estadual de Campinas, como parte dos requisitos para

obtenção do título de Mestre em Educação, na área de

concentração de Educação, Conhecimento, Linguagem

e Arte.

Campinas

2011

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© by Ana Cristina Rossetto Rocha, 2011.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da Faculdade de Educação/UNICAMP

Bibliotecário: Rosemary Passos – CRB-8ª/5751

Título em inglês: Musical education and aesthetics experience: between meetings and possibilities Keywords: Artistic initiation; Musical education; Experience, Aesthetics and education Área de concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte Titulação: Mestre em Educação Banca examinadora: Profª. Drª. Ana Angélica Medeiros Albano (Orientadora) Prof. Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Ramos Profª. Drª. Márcia Lagua de Oliveira Profª. Drª. Eliana Ayoub Data da defesa: 25/02/2011 Programa de pós-graduação: Educação e-mail: [email protected]

Rocha, Ana Cristina Rossetto. R582e Educação musical e experiência estética: entre encontros e possibilidades / Ana Cristina Rossetto Rocha. – Campinas, SP: [s.n.], 2011. Orientadora: Ana Angélica Medeiros Albano. Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação.

1. Iniciação artística. 2. Educação musical. 3. Experiência. 4. Educação estética. I. Albano, Ana Angélica Medeiros. II. Universidade Estadual de Campinas. Faculdade de Educação. III. Título.

11-017/BFE

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Resumo

Este trabalho foi provocado pelo meu interesse nas relações entre a educação musical e

a experiência estética no campo da iniciação artística, o qual tem me acompanhado em

meu percurso como professora e como musicista. A pesquisa analisa o processo vivido

por uma turma de alunos da faixa etária de oito anos durante um período do ano de

2009, orientada por mim em parceria com o professor de teatro Carlos Sgreccia, na

Escola Municipal de Iniciação Artística – EMIA; instituição que pertence ao

Departamento de Expansão Cultural da Secretaria de Cultura da Prefeitura de São Paulo

e tem como proposta a iniciação de seus alunos às linguagens artísticas de maneira

integrada.

A análise foi baseada no imbricamento da minha vivência como professora com a

observação cuidadosa dos registros realizados durante o período focalizado: registros do

caderno de campo, fotográfico e de vídeo. Ampliadas e instigadas pelas interlocuções

teóricas – que se deram principalmente com autores do campo da filosofia,

especialmente Gilles Deleuze e Félix Guattari – esta observação e análise produziram

um modo de pensar as potencialidades e possibilidades da educação musical como

educação estética.

Esse texto é acompanhado por um vídeo.

Palavras-chaves: educação musical; educação estética; experiência estética; integração

de linguagens artísticas.

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Abstract

This work was provoked by my interest in the relationship between music education and

aesthetic experience on the field of artistic initiation, wich has accompanied me on my

journey as a teacher and as a musician. The research analyses the process experienced

by an eight years old group of children, during a period of 2009, oriented by me in

partnership with the drama teacher Carlos Sgreccia, in the Escola Municipal de Iniciação

Artística (Municipal School of Art Initiation) – EMIA; institution that belongs to the

Culture Expansion Department of the Culture Secretariat of the Municipality of São Paulo

and proposes the initiation of their students to the artistic languages in an integrated

manner.

The analysis was based on the imbrication of my experience as a teacher with a careful

observation of the records made during the period focus on: records from the field

notebook, photographs and videos. Expanded and instigated by the theoretical

interlocutions - that occurred mostly with authors of the philosophy, especially Gilles

Deleuze e Félix Guattari – this observation and analysis produced a way of thinking of

the potencialities and possibilities of the music education as aesthetic education.

This work includes a video.

Keywords: musical education; aesthetic education; aesthetic experience; artistic

languages integration.

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Para minha mãe, Adélia, que também foi professora.

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Agradecimentos À família Rossetto, pela riqueza dos primeiros ambientes e das primeiras experiências. À minha mãe e à Edith, minha tia, pelo apoio e entusiasmo com que acompanharam a minha opção pela música. Ao Jorge, meu pai, pela ressonância de sua alegria e pelo olhar no carrossel. À minha irmã Ana Lúcia pelo prenúncio e anúncio de tantas descobertas. Ao Enéas pela parceria em tudo e por tudo. À minha orientadora, Ana Angélica Medeiros Albano, pelo olhar com que tem me percebido por tantos tempos e dimensões; e por ter me provocado ao pensamento e ao risco. Ao meu colega Carlos Sgreccia, pela agudeza de sua percepção estética, que tanto inspiraram essa narrativa; e pelo entusiasmo com que conviveu com esta pesquisa.

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E agradecimentos

Às companheiras de jornada Aline Shiohara, Ester Broner, Lilian Vilela, Luciana de

Carvalho, Marina Moreto, Rosvita Kolb e Simone Cintra pelo carinho, entusiasmo e

cumplicidade.

Ana Lúcia Rocha e Raquel Gouvêa pelas interferências precisas.

Aos professores e colegas do Laborarte, pela atmosfera de acolhimento e pela riqueza

das nossas interlocuções.

Ao professor Marcos Venceslau, pela proximidade com este processo; e por nossa

vivência como parceiros permear este trabalho.

Aos meus colegas de todos os tempos de EMIA que comigo compartilham ou

compartilharam a paixão pela iniciação artística das crianças.

Márcia Andrade, diretora da Escola Municipal de Iniciação Artística, pela confiança com

que recebeu esta pesquisa.

Todos os amigos que ouviram minhas dúvidas e incertezas durante este processo.

Todos os meus alunos do presente, do passado e do porvir.

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Sumário

Introdução 21

Afinal do que se trata? 23

Carta de navegação 27

Entre perguntas, tempos e lugares 31

Que educação musical é essa? 33

Na toca 37

Chiaroscuro 39

O que é a música? 45

Entre a academia e a sala de aula 51

Pequena digressão, ou do jogo de palavras: pistas da estética 61

A Grande Brincadeira 63

A Grande Brincadeira 65

Encontros de um percurso 71

09 de fevereiro: primeiro dia de aula 73

02 de março: estátuas e cadeiras 74

09 de março: conchas 79

16 de março: das escrituras na areia 85

23 a 30 de março: Brandenburgo 93

06 de abril: em dois quadrados 97

18 de maio: tocar 101

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Uma aula 107

Do acontecimento 112

Abertura – Aquecimento 113

Janelas 116

Intuição, inspiração, desejo: proposta 120

Atenção: ação-observação! 125

Cena 1 – Na cabana 126

Cena 2 – Duo: a bailarina e a tocadora de cítara 128

Cena 3 – As irmãs 130

Cena 4 – Pescaria 133

Banquinhos, um clássico! Ou, entre o rigor e a liberdade 137

Presença 137

Interferir, dirigir, interagir 140

Um par 148

De outras parcerias 157

Da composição do professor-artista 161

Entre acontecimento e pensamento: de volta para o futuro 167

Referências Bibliográficas 177

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Em todos os inícios de ano a visão da sala de aula vazia me visita como um plano a ser

povoado. Quase escuto... um burburinho a rodeando, entrevejo... silhuetas não

definidas chegando...

Todas as vezes sem saber - verdadeiramente - o que vai acontecer, de várias maneiras

a experiência me localiza, embora entre suas camadas haja não só movimento como

também instabilidade. Pelas superposições e fendas surgem sempre novos problemas.

Mas também se projetam lampejos de memórias, experiências e encontros, sinalizando

que de qualquer maneira muitas coisas interessantes hão de acontecer.

Entre o que sei e o que nunca sei, inicio o percurso com uma nova turma.

Da mesma maneira, me introduzo e introduzo este trabalho.

Iniciado a partir do desejo, necessidade pulsante de um pensamento-experiência de

criar corpo para poder encarnar, circular, conjugando consonâncias, deparando-se com

dissonâncias que se podem agregar ou não, sempre mutante.

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Introdução

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Afinal do que se trata?

Depois de tantos anos como professora, em alguns momentos voltava a me

perguntar... Pergunta que se introduzia sub-repticiamente e teimava em me

confrontar... E em torno dessa indagação - qual é afinal a natureza ou o sentido mais

radical do meu trabalho, o que é essencial nele, do que é constituído - gravitavam

outras tantas que vinham me ocupando há muito tempo.

Se ouvidos incautos podem interpretar um questionamento dessa natureza como

uma manifestação pouco criteriosa de inconsistência de princípios, objetivos e

metodologia, a outros mais analíticos poderá soar como pretensão de cunho filosófico,

descabida para uma musicista professora de música... De minha parte digo que não se

tratava de uma prática inconsciente que não tivesse procurado a reflexão e a

interlocução, nem de uma pergunta apenas retórica lançada ao universo a se encantar

com seu próprio eco.

Tratava-se mais de uma inquietação que a despeito das várias instâncias de

trocas de experiências e discussões, leituras e esforços do meu pensamento

incorporados à minha prática como professora, foi se tornando mais aguda ao invés de

se aquietar com a maturidade. Mais aguda e exigente. Como se perguntas e questões

que viessem me rondando ensaiassem ou almejassem criar um desenho mais definido –

como a ponta de uma lança? - para perfurar essa espécie de zona nebulosa.

Também me desaquietavam os enunciados que eu pronunciava referentes às

questões do meu campo de atuação, especialmente da iniciação artística, da educação

musical e da educação estética, e a como procurava abordá-las em meu trabalho. Não

que as palavras não produzissem nexo, ou fossem apenas encadeamentos burocráticos

de palavras adequadas; mas permaneciam longe do que eu experimentava, vivenciava,

observava... Longe dos momentos de deleite como dos impasses, dos encontros como

dos conflitos, pareciam soar um tanto desconectadas, sem ressonância; aquém da

experiência.

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E esta experiência, apesar de vivida e incorporada, parecia escorregar pelo

tempo, pelo caminho... Será que eu poderia reter alguma coisa? Dobrar, emoldurar

algumas cenas, sobre elas refletir, compartilhá-las com pessoas diversas, em diversos

territórios? Seria também necessário aguçar o pensar, ampliar a gama de interlocuções,

escutar e apreender outras maneiras de dizer, ensaiar uma nova fala.

Foi esse movimento que me levou a procurar a pós-graduação. E em movimento

continuo: pelo processo incitado, a mim e às minhas indagações percebo em constante

transformação. Colocadas em campo, entre conversações, exercícios de pensamento,

insights e desassossegos, tais indagações talvez não se resolvam em conclusões

definitivas, mas tem adquirido uma outra e sempre nova qualidade.

E ao mesmo tempo em que as percebo ampliadas, sinto-me incentivada por esse

mesmo processo a buscar a coragem simples de abordá-las a partir dos meus pontos de

observação, a partir dos lugares em que estive e dos encontros que tive. Incentivada

também a intensificar a relação com a minha própria experiência; a poli-la pelo exercício

do olhar e do pensamento, em busca de suas cores mais vivas. A nela mergulhar.

Voltando à minha indagação primeira – afinal do que se trata? – inspirada pela

filosofia e impulsionada pelas palavras de Deleuze e Guattari, me arrisco a pronunciar

que para resolvermos um problema, ao contrário da resolução de um enigma – decifra-

me ou devoro-te - talvez tenhamos que nos deixar engolir por ele...

Talvez só possamos colocar a questão O que é a filosofia? tardiamente, quando chega a velhice, e a hora de falar concretamente. De fato, a bibliografia é muito magra. Esta é uma questão que enfrentamos numa agitação discreta, à meia-noite, quando nada mais resta a perguntar. Antigamente nós a formulávamos, não deixávamos de formulá-la, mas de maneira muito indireta ou oblíqua, demasiadamente artificial, abstrata demais; expúnhamos a questão, mas dominando-a pela rama, sem deixar-nos engolir por ela. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 9)

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Dos encontros de tantas e variadas instâncias e tempos - com as crianças, pais e

colegas de trabalho, com os colegas de estudo e professores, com os parceiros de palco

- ensaio a composição de uma escrita. Do entrecruzamento de inúmeras vozes que

escutei, incorporei, transformei, recriei, espelhando outros, me projetando aos outros, e

me transformando sempre em outros tantos de mim.

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Carta de navegação

A narrativa deste trabalho se constrói sustentada, ao mesmo tempo em que

animada, pela minha própria experiência como professora e musicista; e pelas parcerias

e interlocuções de múltiplas instâncias que a têm afetado.

Ela abordará um modo de fazer e pensar a educação musical e a iniciação

artística. Um modo, uma via, que vem se construindo em meu percurso como

professora, percurso imbricado com o da escola em que praticamente me iniciei, na qual

me desenvolvi e atuo até hoje: a Escola Municipal de Iniciação Artística - EMIA1.

É importante pontuar que este não é um trabalho sobre a EMIA2, mas sobre

como a vivência e a ação artístico-pedagógica de uma professora desta escola, vivência

e ação sempre a se entremear com a reflexão, vêm tecendo uma possibilidade de

pensamento.

A orientação maior, ou o sentido mais amplo que tem me guiado em meu

trabalho: preparar o terreno, cultivar as possibilidades dos encontros com a experiência

estética. Como território, a sala de aula. Uma classe em uma escola, território dentro de

território, ambiente dentro de ambiente.

Tivesse eu percorrido outros caminhos, traçado meu mapa por outros lugares,

esse fazer e pensar a educação musical e a iniciação artística seriam diferentes. Fosse

outro o personagem narrador, eles também não seriam os mesmos; pois mesmo que se

tratasse de um outro professor dessa mesma escola, poderiam haver aproximações e

também pequenas variações, assim como diferenças significativas.

De muitas e muitas histórias se faz a história de uma escola: histórias dentro da

história. Algumas talvez sejam consideradas mais importantes do que outras, e alguns

personagens podem parecer ter sido esquecidos ou colocados à sombra. Mas me parece

certo que de um jeito ou de outro todos marcam sua passagem, deixam rastros, sinais:

1 Escola Municipal de Iniciação Artística - Departamento de Expansão Cultural - Secretaria Municipal de Cultura – Prefeitura de São Paulo. 2 Para conhecer a história da EMIA, ver Arte e Construção do Conhecimento na EMIA, de Márcia Lagua de Oliveira. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

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pois de todas, das pequenas e das grandes histórias se compõem a história de uma

escola como a EMIA. Assim, meu percurso de algum modo nela se inscreve, ao mesmo

tempo em que por ela vem sendo permeado.

Como se trata de uma construção, da construção do meu modo de ser e pensar

como professora, nada foi criado do nada, mas também nada me foi dado de presente.

Essa possibilidade de pensamento foi construída por um processo afetado pela escola

como ambiente e pelas muitas parcerias e encontros significativos que tal ambiente

me proporcionou. Os eixos que de certo modo sustentam esse modo de pensar e atuar,

não os inventei, mas também não os adotei, como se já pré-existentes fossem.

Foram moldados, forjados, a partir de temas que têm permeado o ambiente e

pontuado as discussões pedagógicas na EMIA, com maior ou menor frequência, maior

ou menor intensidade, no decorrer do tempo. Temas que sempre me tocaram e me

pareceram potentes para a produção de conteúdos importantes.

Logo a seguir serão eles apresentados, mas por ora digo que esses assuntos não

os tenho visitado apenas no ambiente desta escola específica, pois têm me

acompanhado em outras instâncias e experiências da vida profissional. Na verdade,

levando-os comigo aonde fosse, acabei por deles me apossar - e como quem se apossa

de algo sempre o recria e transforma, assim fiz e tenho feito. Tomando-os para mim,

venho trabalhando sobre esses temas e assuntos, burilando-os, compondo-os, tecendo

uma trama entre eles e as linhas do meu percurso: linhas de vida, de formação, dos

percursos artísticos, dos exercícios de reflexão, das afinidades e paixões estéticas...

Na sala de aula com as crianças esse tramado ganha corpo, substância. É pela

experiência - vivida, compartilhada e observada - que se potencializa, capaz de produzir

conteúdos, sentidos e significados. Disponho-me nesse trabalho a narrar a partir dessa

experiência. E das observações e pensamentos entretecidos por sua provocação.

Experiência de caminhos percorridos, vividos, encarnados, e, portanto da ordem do real,

e não do ideal. E que não foram previamente definidos e estabelecidos, embora eu,

professora-artista, nunca tenha deixado de planejar, de preparar as aulas, de me

preparar para as aulas, de ter intenções, expectativas e... sim, desejos!

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Mas tenho observado que os cursos demandam a todo momento ser corrigidos,

exigindo decisões imediatas – pois há os ventos, as marés e os humores dos tripulantes;

e, seja por acaso ou por velada intenção, ou pelas mudanças de velocidade, provocadas

tanto pelas calmarias como pelas tempestades, acontecem os desvios. E é por eles que

muitas vezes podemos vislumbrar tesouros e novas terras a serem descobertas.

Para navegar por um mar de possibilidades, se deleitar com a viagem e usufruir

as descobertas que ela pode proporcionar, é preciso ter olhos e ouvidos apurados.

Saber ler tanto as estrelas quanto quaisquer instrumentos de que se puder dispor, para

não perder o sentido de direção; mas poder observar os detalhes, as mudanças de

paisagem, seus sons e silêncios, dando tempo e lugar às explorações, transformações e

devires.

Viagem no mesmo lugar, esse é o nome de todas as intensidades, mesmo que elas se desenvolvam também em extensão. (...) o que distingue as viagens não é a qualidade objetiva dos lugares, nem a quantidade mensurável do movimento (...) mas o modo de espacialização, a maneira de estar no espaço, de ser no espaço. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 189-190)

Traçar, retraçar e revalidar a todo instante entre os viajantes um plano conjunto,

composto e variável, que não se limita a um trajeto de um ponto a outro. Nesse

sentido, os acontecimentos de percurso a serem compartilhados neste trabalho, são

recortes de movimentos, “pontos marcantes ou singulares que pertencem ao

movimento” (DELEUZE apud ALFONZO, 2004: 9).3 Pontos de um percurso, e não

miragens ou idealizações.

Penso que essa forma de navegação, guiada por um plano aberto, e que se

alimenta dos ventos do acontecimento, configura-se como uma pedagogia que nesse

trabalho nomeio como pedagogia do encontro. A qual, incorporada ao meu modo de ser

professora, compõe-se a outros dois eixos que sustentam ao mesmo tempo em que

impulsionam a minha metodologia de trabalho: o do professor-artista, que, habitante

3 Gilles DELEUZE, Cinema 1 – A Imagem-movimento. S. Paulo: Brasiliense. Moeda, v.3. O artigo apontado, de Regina Márcia Simão Santos e Neila Ruiz Alfonzo foi um interlocutor importante na elaboração desta Carta de Navegação.

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tanto do palco como da sala de aula, cultiva e promove a diluição de fronteiras entre um

e outro; e o da disponibilidade e interesse pela integração, ou contágio entre as

linguagens artísticas.

Entre os eixos que se entrecruzam, se provocam, se potencializam, produz-se

movimento:

Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire velocidade no meio. (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 37)

A configuração do professor-artista, a pedagogia do encontro e a integração de

linguagens não acontecem separadas umas das outras. Acontecem no fluxo da

experiência, entre linguagens, entre lugares, pelas brechas e desvios, pelo inesperado,

entre o artístico e o pedagógico – navegando no campo da experiência estética.

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Entre perguntas, tempos e lugares

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Que educação musical é essa?

Ou, a música e o teatro também, Ou Isto e Aquilo.

Ou, entre a música e o teatro e a dança, e...

Que educação musical é essa que flexibiliza suas fronteiras ao deixar-se

atravessar pela experiência? Que se submete aos encontros e acontecimentos?

Que educação musical é essa que se constrói na parceria com outras linguagens

artísticas? Trata-se de integração, cumplicidade ou contágio entre linguagens?

Essa peculiaridade, ou, esse modo de se processar, a potencializa como educação

estética? Como isso acontece?

Entre infinitos possíveis e múltiplas direções podem acontecer os encontros em

um processo de trabalho de natureza artística. Para mim, são eles que acabam por

indicar um caminho. Dar curso a aqueles que provocam alegria e intensificam as

percepções é uma orientação; e nos desencontros e dificuldades procurar as brechas

que permitem o movimento.

As observações e análises que aqui serão feitas terão como foco principal o

trabalho por mim realizado em dupla com o professor de teatro Carlos Sgreccia,

orientando um grupo de alunos da faixa etária de oito anos no ano letivo de 2009, na

Escola Municipal de Iniciação Artística; uma escola em que música, dança, artes

plásticas e teatro são trabalhados de maneira integrada. O foco escolhido poderá se

ampliar na medida em que as questões abordadas provocarem esses desvios, trazendo

para a discussão, de modo pontual, outras experiências.

Desse modo, a investigação se dará em torno de um processo de educação

musical que acontece em um contexto onde a música não tem a primazia - tanto na

instância da sala de aula como da escola. Um contexto em que o ensino da música se

remete a um processo de natureza mais ampla: o processo de iniciação artística.

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Procurarei abordar experiências e acontecimentos que dêem visibilidade a esse

processo, que influenciou nossos percursos todos.

Pois somos muitos: cada um dos professores, e mais um outro de nós – a dupla,

que no curso do trabalho parece criar personalidade e estilo próprios; o grupo das

crianças; cada uma delas conosco, e mais as parcerias e dinâmicas das relações que

experimentam entre si; cada uma das áreas artísticas – trazendo seus conteúdos,

proposições e materiais – e, importantíssimo, o que acontece entre elas.

Percebi encontros que aconteceram por vias inusitadas, e também através de

reatualizações, variações de propostas e atividades do repertório que trazemos em

nossa bagagem de professores.

Observei experiências que aconteceram dentro do território que reconhecemos

como sendo o de uma linguagem específica – da música, do teatro, das artes plásticas...

- ou entre territórios: campo habitado pela indeterminação, animado por um jogo que

não reconhece fronteiras, nem linguagens específicas.

Fui tocada por detalhes, e mesmo detalhes de detalhes – quase invisíveis a olho

nu; e também por acontecimentos surpreendentes.

De um modo ou de outro, presenciei muitas vezes a emergência do Novo -

sempre possível na convivência com as crianças. De outro modo, como poderia, depois

de tantos anos de trabalho como professora, ainda me impressionar e me alegrar de tal

modo com as nossas experiências e realizações conjuntas?

E todos esses encontros, experiências e acontecimentos, se remeteram a um

plano, abrigaram-se em um mesmo campo abrangente – o da experiência estética.

A criança no poema de Cecília Meirelles manifesta-se inconformada:

Ou se tem chuva e não se tem sol ou se tem sol e não se tem chuva!

E, (será mesmo verdade)?

Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares.

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Mas parece quase se resignar, quando diz, contrariada e já um pouco cansada:

Ou isto ou aquilo: ou isto ou aquilo... e vivo escolhendo o dia inteiro! (...) Mas não consegui entender ainda qual é melhor: se é isto ou aquilo.

Na brincadeira de uma criança tudo é possível e muitas coisas se dão ao mesmo

tempo - sem que preciso seja escolher irremediavelmente. Isso também acontecerá na

sua experiência com a arte, se assim lhe for proporcionado. Se puder transitar com

liberdade pelo plano da estética - plano que não reconhece fronteiras, como a criança já

sabe - mergulhar no processo criativo, presente por todas as percepções e todos os

sentidos... Nisto e naquilo!

Assim, desejo e tenho a intenção de que meus alunos possam vivenciar

encontros e experiências com a música e entre a música e o teatro, e a música e o

teatro e a dança, e as artes plásticas e... – entre campos, linguagens, tempos,

dimensões. Construindo repertórios, fazendo conexões, engendrando criações.

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Sonhos e símbolos e imagens atravessam o dia, uma desordem de mundos imaginários conflui sem cessar no mundo; nossa própria infância

é indecifrável como Persepólis ou Uxmal. Jorge Luis Borges

Na toca Embaixo da mesa, ou sob tendas de lençóis, brincar de casinha, de cowboy, ou

de castelo. Ser mocinho, ser bandido ou índio apache. Entre ver e ouvir da TV: Ivanhoé,

Lassie, o Teatro da Juventude e o Sítio do Picapau Amarelo, mas isso é uma outra

história que fica para uma outra vez. Maravilhar-me com as ilustrações das “Fábulas de

La Fontaine” e de “O Mundo da Criança” - mais velha, poder ler os livros. Acordar de manhã, deparar-me com personagens de luz e sombra nas paredes

do quarto e proteger-me sob as cobertas. Na escada de entrada do prédio, brincar de

telefone sem fio (e sentir o calor úmido da palavra sussurrada na orelha). Na calçada

andar de patinete; e na praça, brilha a água da fonte em minhas mãos em concha,

perseguindo girinos. Nas férias, viver a jabuticabeira no quintal da minha tia e na praia

os chapéus de sol e as goiabeiras; no mar, depois de vencer o medo perante sua

imensidão, ser pirata ou sereia.

Jogar, movimentando peças ou feijões em tabuleiros, ou riscando amarelinhas e

caracóis. Exposição para venda de desenhos e pinturas. Brincar de teatro: ser marido,

ser mulher, médica, secretária... – ser professora compunha uma brincadeira própria:

brincar de escolinha, com lousa e giz.

E brincar de balé: de tutu, pas-de-deux com minha irmã, a família no sofá depois

do almoço de domingo, Tchaikovsky ampliando o espaço, a sala de visitas transformada

em florestas, lagos, encantamentos.

Com minha mãe: histórias, canções e assobios.

Sem sair detrás da grande penteadeira - toca, caverna ou laboratório? - onde me

punha a escrever minhas próprias histórias: “- Mamãe, como é que se escreve velho?...”

Perguntei a ela, que absorta costurava.

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Chiaroscuro

Como a mim se descortina a partir do poema de Borges, minha infância,

indecifrável sendo, não se explica, e, não de todo me explica. Mas ela vive atravessando

o meu caminho. Fragmentos de imagens e sensações surgem em cores nítidas, brilhos e

sombras, sons, sabores e aromas e também vertigens: de rodopios e balanços, do

prazer de correr ao ar livre e fazer vento, de me perder pelas tramas de uma história de

um livro ou de um filme...

O que hoje mais me espanta? A intensidade. A intensidade com que vivia essas

experiências, de maneira absoluta, cada uma em si mesma – assim, ouvir histórias ou

mais tarde ler os livros, era tão emocionante quanto brincar de cabra cega ou desafiar

alturas nos balanços. Como apostar corrida, ou jogar queimada era tão estimulante

quanto se fantasiar e inventar um balé.

Também me espanto pela intensidade com a qual se recriam. Blocos de infância

visitam minha solidão, ou fazem aparições na troca de recordações com parceiros de

jornada, fazendo-me alegre e também nostálgica.

Mas também invadem a toda hora o cotidiano da sala de aula, a observação dos

meus alunos e até a minha reflexão artístico-pedagógica. Ativam a percepção do

presente, e vislumbro frestas pelas quais talvez se possam abrir janelas para as

experiências – memórias e repertórios em movimento, fluxo de reatualizações, devir

criança, infância em devir, e, não o esforço de voltar a ser criança, voltar à infância.

Embora de modo não infalível, sujeito à interferência de chuvas e trovoadas, acaba esse

processo por me proporcionar um sentido de orientação que influencia fortemente

desde as escolhas cotidianas, até a minha concepção de atuação como professora.

Todos vivemos um processo permanente de atualização do nosso passado ao nos

depararmos com o presente; desde as ações mais comuns e ordinárias do nosso

cotidiano. Mas, entre as ações automáticas e as ressignificações, as quais podem se

desdobrar em possibilidades, há toda diferença: “(...) o realmente importante é não ser

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a memória apenas um depositário passivo de fatos, mas também um processo ativo de

criação de significações” (PORTELLI, 1997: 33).

E são as relações em devir que estabelecemos com nossas memórias que podem

potencializá-las em forças de criação. Memórias provocadas pela percepção do presente,

e que nele se atualizam, sustentadas pela atenção.

Por um lado, com efeito, a percepção completa só se define e se distingue por sua coalescência com uma imagem-lembrança que lançamos ao encontro dela. A atenção tem esse preço, e sem atenção não há senão uma justaposição passiva de sensações acompanhadas de uma reação automática. Mas, por outro lado, como iremos mostrar mais adiante, a própria imagem-lembrança, reduzida ao estado de lembrança pura, permaneceria ineficaz. Virtual, esta lembrança só pode tornar-se atual através da percepção que a atrai. Impotente, ela retira sua vida e sua força da sensação presente na qual se materializa. (BERGSON, 1990: 148)

Brincar com uma poça d’água pode vir a ser a coisa mais importante do mundo

para as crianças em um determinado momento – e o percebo não só por fidelidade a

um princípio pedagógico, ou por alguma recordação remota, mas porque sou

atravessada por um bloco de sensações que atualizam em mim, em meu corpo, essa

urgência em fazê-lo. O prazer de mexer na água, eu o sinto - mesmo que só observe as

crianças. E no brilho da água que minha aluna Júlia leva na folha com todo cuidado para

alimentar a piscina, que com os colegas construía, rebrilham tantas águas, até mesmo

as que corriam em minhas mãos em concha, perseguindo girinos.

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Também as minhas memórias como professora estão sempre a me provocar. Um

desenho antigo que guardei, uma fotografia, uma partitura, um relatório ou

planejamento de muitos anos atrás, como também o encontro com um ex-aluno, ou

com os pais de ex-alunos, desencadeiam recordações-afetos-sensações...

Como muitas cenas e episódios que apenas observei – não filmei, não fotografei

– mas me tocaram, também me fazem visitas surpreendentes. Se lhes dispenso maior

atenção e acolhimento passam a me acompanhar; como uma canção conhecida que se

cantarola, à moda de um ritornello - que entre as partes contrastantes de uma obra

musical aos ouvintes reconforta pela sensação do reencontro com o conhecido e pode

lhes fazer vontade de novas melodias e novidades.

Um fragmento que me acompanha é muito antigo e se refere ao início da minha

atuação como professora de musicalização. Eu já era professora da EMIA, mas apenas

professora de flauta doce; uma atividade que eu iniciara muito jovem, e na qual me

sentia bastante segura, por encará-la como um desdobramento natural do meu grande

envolvimento com o estudo desse instrumento e com a prática da música antiga.

A diretora da escola na época, Ana Angélica Albano4, a Nana, propôs que eu

assumisse uma classe de nove e dez anos, como professora de musicalização, em dupla

com a professora Iara Jamra5. Para mim essa proposta trazia um desafio e anunciava

uma grande mudança.

A cena que me acompanha é a de uma aula em que percebi - sim! - que eu

poderia ser uma professora de musicalização: havíamos colhido materiais no parque,

materiais que pudessem ser usados para fazer uma música. Depois de muito

pesquisarmos e compararmos as sonoridades dos galhos, pedras e folhas, combinamos

de experimentar uma música na hora, ou seja, de improvisarmos. Para meu

maravilhamento, a música soou, começando pela areia que uma menina fez escorrer

por uma folha comprida... Foi um espanto, como se o tempo quase parasse; aquela

areia que escorria, soando... e todas as outras crianças em máxima atenção e escuta

4 A Profa. Dra. Ana Angélica Albano foi diretora da EMIA de junho de 1983 a fevereiro de 1989. 5 A atriz Iara Jamra foi professora da EMIA de 1980 a 1985.

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esperando aquele som terminar para iniciar atentamente as suas interferências... Sim,

fizemos música.

E embora eu não tivesse nomeado essa experiência como experiência estética,

percebi que algo especial havia acontecido, e que essa era uma via que eu poderia

seguir. Muitas e variadas músicas e surpresas eu tive em meu percurso, mas nunca

mais desse modo soou a areia em uma folha.

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O que é a música?

Ou, ainda da propriedade da indagação

Ou, entre o palco e a sala de aula

- O que é a música? Eu ainda não sei o que é a música. Ainda me pergunto; mas

não é sempre que ela soa. Pergunta apaixonadamente Lydia Hortélio6 em sua fala no

Fladem Brasil e USP 2009. 7

Sobrevoando a Hungria e Serrinha, na Bahia, traz a música modal e tonal,

relacionando-as ao meio rural e ao urbano; conta das arquiteturas melódicas indígena,

africana e ibérica, tão importantes na constituição da cultura musical brasileira. Dá os

exemplos cantando. O conhecimento da linguagem e a pesquisa de seus modos e

possibilidades fazem com que a pergunta que ficou no ar ressoe cheia de harmônicos.

Fala da música na língua e da língua na música, e conta e canta, canta... músicas da

música: a música soa, e momentaneamente acaba por engolir a pergunta.

Entre muitas histórias escolhi contar esse episódio por se conectar e colorir

pontos do pensamento que ensaio desenhar; e por se referir ao campo da educação

musical – campo do entrecruzamento da música com a educação. Ou, do encontro entre

elas.

Como em um jogo de espelhos, deu-se um encadeamento de encontros. Entre

Lydia e a plateia, entre ela e a pergunta que pronunciou - O que é a música ? - entre a

plateia e a pergunta, e, pelo canto de Lydia e pelo nosso próprio cantar na ciranda à

qual mais tarde fomos convidados, entre todos nós e a música.

Enquanto envolvidos na experiência, não necessitamos nos perguntar o que é a

música. Nós a vivenciamos em seu acontecimento. Porém em outro momento, podemos

nos sentir tentados a revisitar a experiência e procurar entender o que nos envolveu e

6 Lydia Hortélio, etnóloga e musicóloga, uma das principais referências da pesquisa da música e da cultura da infância no Brasil. 7 Encontro do dia 26/09/2009, Fladem Brasil e USP 2009, realizado pelo Fladem Brasil – Experimental. Fladem – Foro Latino Americano de Educacion Musical.

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impressionou; e entre nossas observações talvez arrisquemos algumas hipóteses sobre

a natureza ou mesmo a essência da música. Entre experiências, observações e

hipóteses a se entrelaçar, construímos referências, ideias, histórias dos nossos

encontros com ela.

Música que em tão variáveis faces pode se apresentar - tantas, inumeráveis

músicas têm a música.

Quantas vezes, estando na plateia, vivendo a música em seu acontecimento, ao

vivo e a cores, correu em minha mente o pensamento: isso sim, é que é música!

Quando presenciei o flautista Barthold Kuijken tocando La Notte, concerto de Vivaldi;

ou o Grupo Kodo de tambores japoneses; ou a orquestra Spock Frevo do Recife... entre

inúmeras experiências.

Também nunca me esqueci de um pequeno episódio: em 1975, em uma das

edições de que participei do Curso Internacional de Música de Curitiba, entrei por

curiosidade em uma sala onde acontecia um master class com o oboísta alemão Ingo

Goritzki. Ele falava sobre aspectos técnicos do instrumento, e deu então um exemplo:

tocou uma nota muito longa, que começando pianíssimo foi crescendo, crescendo... até

um fortíssimo; e muito paulatinamente decresceu até enfim terminar. Disse ele então:

“Para mim, isto é a música”. Fiquei muito impressionada, ao perceber que pela maestria

e pela intensidade e energia com que fora tocada, conteve por instantes uma nota toda

a música.

Nós, músicos, podemos não saber o que é a música, mas estamos sempre à

espreita de que ela aconteça; e nos alegramos em nosso encontro com ela. Que ela

soe, talvez seja mais importante do que saber o que ela é. Ou talvez uma coisa leve à

outra.

Parece-me que se procurarmos pela música como Ideia, como essência, jamais a

encontraremos. Ela se configura no ato de se fazer e de se escutar música; acontece no

tempo histórico e em um contexto sócio-cultural; e certamente tanto a criação quanto a

nossa apreciação e envolvimento são fortemente influenciados pelo repertório que cada

um vivenciou e por modelos e paradigmas que incorporamos.

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Entretanto, a plasticidade da nossa escuta pode ser exercitada; e a ambiguidade

que habita por natureza o campo da experiência artística, permite que nos desloquemos

do conhecido e possamos desfrutar também do estranho e do desconhecido.

Mas, embora possa ser preparado e desejado, o encontro com a música não

pode ser marcado. Quantas vezes, como musicista, vivi a expectativa – sempre e

sempre - dos minutos que antecedem a entrada no palco para uma apresentação: o

coração mais acelerado, alguma solidão e desamparo... Poderia usar as mesmas

palavras com que descrevi, na apresentação deste trabalho, as minhas inquietações

como professora: todas as vezes sem saber - verdadeiramente - o que vai acontecer, de

várias maneiras a experiência me localiza, embora entre suas camadas haja não só

movimento como também instabilidade... Afinal, como poderíamos nos manter

inabaláveis perante o desconhecido?

Ao entrar em cena sempre algum estranhamento. Adentramos em um espaço de

possibilidades, de virtuais encontros – trata-se, mais uma vez, do espaço entre. Em

campo: os músicos, seus instrumentos ou vozes, o público, o ambiente (a acústica ou a

amplificação, a iluminação, até a temperatura), e a música em si, o texto musical.

Todos envolvidos em um jogo de forças de mútua afetação, pelo qual vai se

constituindo uma atmosfera; que a todos contagia, embora as percepções e sensações

se processem diferentemente para cada pessoa, já que interpretadas subjetivamente.

Dependendo da qualidade dos encontros produzidos neste jogo de relações, o

fluxo da experiência, pelo qual a música soa e ressoa, pode vir como um presente,

(bendito seja!) logo de início; ou ganhar corpo pouco a pouco... Ou, de repente, de

supetão se apresentar! Porém, em dias árduos, inóspitos, pode não conceder a honra e

o prazer insubstituível e inenarrável de sua visita.

Tendo percebido e vivido tantas situações no palco como na plateia, percebo que

esse caráter voluntarioso da experiência ultrapassa tanto as especificidades de estilo

como a questão da precisão do texto musical - a ultrapassa, e não a menospreza. Ela, a

experiência, não escolhe necessariamente uma apresentação de música de tradição

oral, ou de uma sinfonia de Beethoven, ou um show de rock and roll ; e não poupa nem

mesmo artistas com bastante experiência de palco, que podem eventualmente realizar

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uma performance menos inspirada, apesar de todas as notas estarem absolutamente

certas. E, que em outra ocasião, podem nos arrepiar, nos transportar, nos tirar do

chão... Parece então que instrumentistas fundem-se a seus instrumentos, formando um

só corpo; ou cantores tornam-se voz. Pois experenciamos os encontros em nossos

corpos - fusão e vazamento de corpos e entre corpos, de músicos e de ouvintes.

Será tão diferente na sala de aula? Será que esses territórios – o palco e a sala

de aula - não se assemelham, não se tocam pelas bordas, quando atravessados pela

música como experiência?

Em ambos não podemos planejar os encontros, controlar a experiência ou

agendar os acontecimentos musicais. Mas como músicos, e principalmente se formos

professores, podemos nos disponibilizar a sermos seus potenciais agenciadores. E

podemos nos desenvolver nesse sentido.

Pois o professor é o mestre dos encontros – mais do que aquele que ensina. 8

Talvez, no campo da arte na educação, especialmente em se tratando das artes cênicas

e da música, possamos dizer uma espécie de mestre de cerimônias. Que apresenta os

personagens e introduz ou levanta os temas, incita a conversa - mais do que enuncia

seu próprio discurso - intermedia os conflitos e cuida para que a atmosfera seja segura,

acolhedora e estimulante.

É necessário que proporcionemos aos nossos alunos a oportunidade dos

encontros e que os acompanhemos no movimento da experiência que pode vir a

acontecer. A criança pode se encantar, por exemplo, pela descoberta de uma

sonoridade interessante na exploração de um material - acolher essa descoberta,

colocá-la como se sob um foco, uma lente, ampliando-a, incentivar sua manipulação,

variações e articulações é o trabalho de um professor. E de um professor-músico.

Assim, afirmo que somos artistas na sala de aula - se escutamos e atuamos como

músicos. Impressionamos nossos alunos através dos nossos talentos e habilidades, que

podem se constituir em referências sonoras importantes e estimulantes. Ouvem-se

comentários sobre como o professor toca bem, ou tem uma voz bonita, ou toca tantos 8 Expressão usada pelo Prof. Hélio Rebello; Mesa-Redonda Inconsciente, Aprendizado, Educação: contribuições de Deleuze e Guattari. 26 de junho de 2008, FE Unicamp.

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instrumentos. Mas eles nos observam o tempo todo, e mesmo quando não estamos

tocando ou cantando, a qualidade e a intensidade da nossa relação com a linguagem os

impressiona mais fortemente ainda. A nossa influência é contínua; e assim, de maneira

implícita, estamos sempre nos apresentando a eles.

Do mapa dos meus próprios encontros, um episódio como que insiste em se

apresentar: quando muito jovem e sem nenhuma experiência, pedi conselhos a um

professor e amigo, José Carlos de Azevedo Leme, o Zoca, pois me sentia um tanto

perdida nas aulas que dava para a minha primeira aluna de flauta. Ele então me disse

algo assim: “Não importa o que ela toque, pode ser a coisa mais simples do mundo,

mas tem que ser musical, em algum momento a música tem que acontecer!”.

Desde então, ando às voltas com essa qualidade, esse adjetivo: musical – que

entendo na acepção daquilo que é permeado por música, receptivo a ela. Procuro estar

atenta e facilitar, promover as possibilidades de se darem seus acontecimentos, mesmo

que pequenos e efêmeros possam parecer. Deflagrados pelo encontro. Embalados na

experiência. Atravessados por certo sentido musical – ideia que experimento ao me

aproximar da ideia de sentido, através de Bergson, e da filosofia:

O filósofo não pega em idéias preexistentes para as fundir numa síntese superior ou para as combinar com uma idéia nova. O mesmo seria acreditar que, para falar, vamos procurar palavras que de seguida cosemos umas às outras por meio de um pensamento. A verdade é que acima da palavra e acima da frase há algo de muito mais simples do que uma frase e mesmo do que uma palavra: o sentido, que é menos uma coisa pensada do que um movimento do pensamento, menos um movimento do que uma direção. (BERGSON apud FADIGAS, 2003: 73)

Nesta pesquisa busco indícios desse sentido musical nas pequenas proposições,

experimentações e gestos que se deram na experiência a ser narrada, em um contexto

de parceria e cumplicidade com outras linguagens artísticas.

Por ora, termino esse trecho com a brevíssima e contundente citação do

compositor e teórico Juan Carlos Paz (PAZ, 1976:51):

A música não existe; é preciso criá-la.

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Entre a academia e a sala de aula

Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o

que não se sabe: isso se chama pesquisar. Roland Barthes

Intensificar a minha reflexão sobre as relações entre a educação musical e a

educação estética era um desejo antigo. O interesse por essas relações tem

acompanhado o meu percurso como professora e também como musicista; alimentado

por vários aspectos do meu percurso de formação e de atuação profissional, mas sem

dúvida muito fortemente pelas parcerias com profissionais de outras linguagens das

quais tenho usufruído por tantos anos na EMIA. No meu próprio trabalho sempre

procurei colocar em jogo estas relações; orientada por muitas ordens de saberes e

experiências, que se organizavam e se colocavam em ação movidos por um conjunto de

forças e intuições. De maneira nem sempre previsível, operando numa zona de certo

mistério.

Fui ampliando essa percepção, apreendendo a ideia desse mistério como zona de

indeterminação, ou indiscernibilidade – características do plano da arte e da experiência

estética - e que deve, portanto, permear o campo da sua iniciação. Não se tratava,

assim, de normatizar, colocar a intuição e os caminhos pelos quais operava sob ordens

estritas. Tampouco se tratava de mistificá-la - mas de compreender melhor esses

caminhos, e iluminá-los; o que não desfaria o mistério, mas, pelo contrário, talvez o

potencializasse.

Mas não seria necessário somente que a resposta acolhesse a questão, seria necessário também que determinasse uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão. Seria preciso formulá-la "entre amigos", como uma confidência ou uma confiança, ou então face ao inimigo como um desafio, e ao mesmo tempo atingir esta hora, entre o cão e o lobo, em que se desconfia mesmo do amigo. É a hora em que se diz: "era isso, mas eu não sei se eu disse bem, nem se fui assaz convincente". E se percebe que importa pouco ter dito bem ou ter sido convincente, já que de qualquer maneira é nossa questão agora. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 10)

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Seria necessário um movimento radical. De compromisso concreto. Parecia-me

que a academia e a pós-graduação poderiam proporcionar um desafio fundamental.

Ensaiei essa possibilidade frequentando como ouvinte a disciplina Psicologia, Arte

e Educação9 do programa de pós-graduação da Unicamp. Muito envolvida pelas aulas,

através das leituras e discussões fui percebendo que poderia construir uma possibilidade

de pensamento referente ao meu campo de atuação, ao particularizar, corporificar as

questões, dando um fundo às figuras, corpo e voz aos personagens.

Encarnou-se então a necessidade de registrar, materializar a experiência – e

comecei a fotografar as minhas aulas. Posso dizer que aí, de certa forma, a pesquisa

começou. Quando fui experimentando o mergulho no registro e na experiência do meu

próprio trabalho. Um mergulhado no outro.

Já oficialmente como aluna do programa acima citado, continuei a fotografar

regularmente e a observar os registros de várias facetas do meu trabalho: os grupos de

musicalização, as aulas de instrumento, as apresentações com os alunos, as aulas de

conjunto. Revisitei registros (fotográficos, de áudio e de vídeo) de outros trabalhos, de

outros tempos e lugares. Procurava o foco! O recorte pelo qual investigaria as relações

entre a educação musical e a estética.

Enquanto procurava, foi uma revelação perceber que quando compartilhava

essas imagens-experiência, escolhendo sequências que propunham gestos de

pensamento, estabelecia-se um fluxo de comunicação que se dava além das opiniões.

Que as ultrapassava, pela multiplicidade de conexões e atualizações que permitiam aos

interlocutores, como me haviam permitido em sua elaboração.

A instauração dessa qualidade de interlocução mais viva e interessante, pude

observar em várias instâncias, desde seminários na pós-graduação, até reuniões com os

pais na escola.

Revisitando essa descoberta, me parece que o registro das imagens e sua

articulação permitiram que a comunicação pudesse ser potencializada, e que

experimentasse uma outra dimensão – a narrativa.

9 Disciplina Psicologia, Arte e Educação – Faculdade de Educação da Unicamp, Programa de pós-graduação. Docente Profa. Dra. Ana Angélica Albano - ano de 2007.

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Captar as imagens e sobre elas debruçar-me, vê-las e revê-las inúmeras vezes,

percebendo a cada visita diferentes nuances, fez com que em mim se multiplicasse em

possibilidades de leitura e se estendesse no tempo a experiência vivida. E efetuar

escolhas, elaborar sequências e articulações e observar que ao compartilhá-las outras

leituras, sentidos e sensações eram provocados, despertou-me o sentido de narrar; o

que me abriu o apetite todo – pelas imagens e suas possíveis composições, mas

também pelas palavras dessas histórias a serem contadas.

Uma experiência quase cotidiana nos impõe a exigência dessa distância e desse ângulo de observação. É a experiência de que a arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas que sabem narrar devidamente. Quando se pede num grupo que alguém narre alguma coisa, o embaraço se generaliza. É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar experiências. (BENJAMIN, 1994:197)

Também o trabalho com as crianças foi afetado. As perguntas provocaram a

pesquisa. E quanto mais provocada ela era, mais afrontadamente provocava o trabalho,

que tomou outra pulsação, outra intensidade. Com a observação se afiando. E por essa

via, do registro e da observação turbinada, gradativamente foi se fazendo, quase se

impondo um recorte em torno do trabalho citado anteriormente, em dupla com o

professor Carlos Sgreccia. Este trabalho capturava o meu olhar e pensamento e em

torno dele eu fazia relações e transposições para outras situações e modos de atuação.

Finalmente! O foco! O recorte! Sendo estes estabelecidos, muitos dados e

especificidades entraram em jogo; chegará o momento de apresentar seu cenário e

seus personagens. Por ora me demoro ainda um pouco mais no mapa das minhas

indagações e do meu pensamento.

Foi através da disciplina Teoria das Artes, 10 que se deu o meu encontro com a

filosofia de Gilles Deleuze, a qual já me despertava interesse há algum tempo -

encontro, e não necessariamente a compreensão, pois... foi um susto! Deparar-me com

pensamentos-clarões, pensamentos-cometas, quase música! Que provocaram um

10 Disciplina Teoria das Artes – Instituto de Artes da Unicamp. Docente Prof. Dr. Renato Ferracini - primeiro semestre de 2008.

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turbilhonamento em meu pensamento, até mesmo no meu modo de me relacionar com

ele e também de acessá-lo: o pensamento como algo que se constrói e se conquista,

mas que também pode nos fazer voar. Pois... “O pensamento parece uma coisa à toa,

mas como é que a gente voa, quando começa a pensar...”, já dizia Lupicinio Rodrigues

nos versos da canção Felicidade, que tantas vezes toquei; e cujos versos venho

cantarolando como um mote.11

Esse interesse me conduziu à disciplina Filosofia da Educação12, através da qual

pude me ambientar e me situar melhor em relação à filosofia deleuziana - e me senti

convidada a nela procurar uma interlocutora.

Deleuze afirma que a filosofia não se destina apenas aos filósofos; ao escrever

sobre sua experiência no Centro Experimental de Vincennes13, ele nos diz:

Em Vincennes, a situação é diferente. Um professor, digamos, de filosofia, fala de um público que inclui, com diferentes níveis de conhecimento, matemáticos, músicos (de formação clássica ou da pop music), psicólogos, historiadores , etc. Ora, em vez de “colocar entre parênteses” essas outras disciplinas para chegar mais facilmente àquela que pretendemos lhes ensinar, os ouvintes, ao contrário, esperam da Filosofia , por exemplo, alguma coisa que lhes servirá pessoalmente ou que tenha alguma intersecção com suas atividades. (...) É, pois, por conta própria que os ouvintes vêm buscar alguma coisa num curso. O ensino da filosofia orienta-se, assim, diretamente, pela questão de saber em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou a músicos, etc. – mesmo, e sobretudo, quando ela não fala de música ou de matemática(...) (DELEUZE apud GALLO, 2008: 15).

E como nos aponta Gallo, sua importância para cada um de nós se dá na medida

em que nos instiga ou não:

Se não cabe ao conceito ser verdadeiro, ele também não está para ser compreendido. Não nos importa se compreendemos ou não um determinado conceito; importa que ele seja ou não operativo para nosso pensamento; importa que nos faça pensar, em lugar de paralisar o pensamento. Importa que tenhamos

11 Versos que me foram relembrados pela fala do Prof. Dr. Luis Orlandi na Conferência “Deleuze; caos e pensamento.”, I Seminário Conexões: Deleuze e Imagem e Pensamento e... Faculdade de Educação da Unicamp, 14/ 05/2009. 12 Disciplina Filosofia da Educação - Faculdade de Educação da Unicamp. Docente Prof. Dr. Sílvio Gallo – primeiro semestre de 2009. 13 Universidade de Paris VIII – Vincennes, onde Deleuze lecionou de 1969 a 1987. (Gallo, 2008: 14).

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afinidade com um certo conceito, afinidade que se produz pelo fato de ele agenciar em nós mesmos certas possibilidades. (GALLO, 2008: 48)

O filósofo português José Gil se refere aos “espaços paradoxais de Escher ou

Penrose”, possibilidades de espaço criados pelo corpo do bailarino ao tornar-se um

corpo interior-exterior; diversas vezes na disciplina Teoria das Artes o professor Renato

Ferracini recorreu à imagem das mãos que se desenham, como dizia, em Espaço de

Escher, ao relacionar ideias e conceitos do pensamento deleuziano.

Essa litografia de autoria de Maurits Cornelis Escher (1898-1972), intitulada

Drawing Hands (1948), apesar de bastante difundida e multiplicada, é um trabalho

gráfico que conserva em si a força e a vitalidade próprios de uma obra de arte e que

conseguimos acessar mesmo numa reprodução; e por ela, por essa imagem, iluminou-

se a minha questão: como uma mão que desenha a outra, como campos que se

desenham e se comunicam em fluxo permanente, assim devem se relacionar a

educação musical e a educação estética!

Mas o que provocaria esse fluxo? E ao mesmo tempo o sustentaria como um

fundo, um plano?

Entre as observações e comentários cotidianos que como professora costumo

ouvir e trocar com colegas, apontando os momentos em que a aula pegou, engatou,

deu liga; em que os alunos entraram, envolveram-se; em que certo aluno surpreendeu;

e que são também aqueles em que vislumbramos olhos brilhantes, surpresos, curiosos...

e as leituras, reflexões e interlocuções que têm ampliado meus saberes, foi se

compondo uma resposta pela caracterização, ampliação, da ideia de experiência.

Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra experiência. A palavra experiência vem do latim experiri, provar (experimentar). A experiência é em primeiro lugar um encontro ou uma relação com algo que se experimenta, que se prova. (LARROSA, 2002: 25)

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A partir do sentido apontado por Larrosa, vou configurando a experiência como o

fundo que permite e sustenta o fluxo que coloca a educação musical e a educação

estética em Espaço de Escher.

Experiência provocada pelo encontro e que nele se produz. Entre as pessoas (os

professores e os alunos), entre as pessoas e os materiais (um som, uma canção, como

também o papel, a tinta, o corpo, o gesto, a palavra...), entre as pessoas, os materiais e

o ambiente (a sala, a escola, a atmosfera e o clima daquele dia específico)... Quando há

encontro, se produzem faíscas que podem deflagrar a experiência.

O professor, como mestre dos encontros, deve facilitá-los e colocar-se em estado

de atenção. Ao fazer e conduzir suas proposições de conteúdo e de atividades, dispor-se

a observar -­‐  onde  se  dá  a  faísca?  -­‐  à espreita das possibilidades pelas quais pode se dar a

experiência; a qual muitas vezes acontece no inesperado, no desvio.

Nós, professores, podemos desejá-la, cortejá-la, preparar o ambiente para

recebê-la; mas, não importa há quanto tempo lidemos com ela, nunca deixará de nos

surpreender. Indomável e imprevisível exige que nos submetamos a ela, pois como diz

Larrosa: “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o

que se passa, não o que acontece, ou o que toca” (LARROSA, 2002: 21).

Aqui trato de uma possibilidade de educação musical. Que me passa, que me

toca; que se propõe a conversar, a se contrapor ou a se compor com outras. E que se

refere ao campo da iniciação artística, no qual a experiência e o encontro são o sopro

de ânimo e vida. Pois como aponta Kohan através das palavras de Foucault, “Uma

experiência é algo do qual a própria pessoa sai transformada” (KOHAN, 2003: 13).

E a iniciação artística, como a concebo, é território da educação pela

transformação; e da apreensão do sentido e da possibilidade de transformação. Como

sempre possível.

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educaçãomusical educaçãoestética

educaçãomusicalest éticamusicalação

estéticação musical

açãoestéticaeduca musicaleducaestética

aestéticamusical é...

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Pequena digressão, ou, do jogo de palavras: pistas da

estética

...açãomusicalestéticaeducação.. A brincadeira com as palavras aconteceu

quando preparava a apresentação de um seminário14 e procurava por um início.

Havia recentemente comprado a antologia de poemas de Décio Pignatari:

POESIA POIS É POESIA

Deixei-me seduzir pelas possibilidades de jogo que a poesia concreta pode nos

sugerir, estimulando-nos pela invenção visual e gráfica e pela sonoridade das palavras.

E aqui nesta escrita voltei a me permitir a brincadeira.

Joguei: mexendo e remexendo, estendendo, arranjando e rearranjando as

palavras, combinando e deslocando sentidos. Brinquei: compondo, decompondo,

recompondo, buscando algum equilíbrio e também contraste...

Não será este um jogo que todos nós jogamos desde... Quando? Operando numa

lógica não racional, orientada pelos sentidos e pelas sensações?

Um jogo que pode se manifestar em múltiplas instâncias: desde as interferências

e inscrições com que procuramos marcar nossos territórios, construir nossos cenários,

escolher os figurinos, constituir uma caligrafia, um jeito, um modo, algum estilo.

Experiências de modos de estar e de se relacionar com os objetos, com o espaço, com

os outros; cotidianas proposições de arranjos, combinações de linhas, cores, texturas,

aromas e sabores...

Nas experiências artísticas, e nos esforços de seu aprimoramento...

Até a concepção e composição de forças e intensidades de uma obra de arte...

Não são todas essas ações e operações permeadas pela experiência estética?

14 Disciplina Arte, Psicologia e Conhecimento - Faculdade de Educação da Unicamp, Programa de pós-graduação. Docente Profa. Dra. Ana Angélica Albano - primeiro semestre de 2008.

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A Grande Brincadeira

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A Grande Brincadeira

Há muito tempo o professor Carlos Sgreccia e eu ensaiávamos a possibilidade de

configurar em sala de aula uma parceria que já tantas vezes se dera no palco, em

variadas formas de exercício artístico. Imaginávamos uma oficina de teatro e música

para alunos mais velhos ou pais, um projeto que talvez tivesse como conclusão uma

apresentação. Modos de atuação que se apresentavam como mais próximos da vivência

e das interlocuções artísticas que vimos compartilhando em nosso longo percurso como

colegas.

Por muito tempo a EMIA dispôs de um espaço destinado às apresentações de

seus professores-artistas. Referenciar esta experiência nesse trabalho me parece ter

relevância por ela ter sido de grande influência no meu percurso como professora e

como artista; por ter me proporcionado muitas descobertas, incrementando

principalmente a minha vivência artística entre linguagens; e por ter potencializado as

minhas relações com os colegas para além do âmbito da sala de aula e das reuniões de

professores.

Carlos Sgreccia - o Cacá - e eu, tivemos muitas e variadas oportunidades de

compartilhar o palco. Participamos, com outros colegas, da criação de vários

espetáculos mesclando música, poesia e teatro, alguns muito sérios, outros apontando

para a alegria e aventura da infância.

Sem dúvida me parece que muito do que viríamos a desenvolver como parceiros

em sala de aula já havíamos vivenciado em nossas parcerias artísticas: a experiência da

criação entre linguagens, entre o rigor e a liberdade, entre a brincadeira e a seriedade.

A necessidade concretizou a oportunidade para a parceria em sala de aula, se

apresentando de uma maneira diferente da que idealizáramos: uma classe da faixa

etária de sete anos, para a qual eu necessitava uma dupla para o ano letivo de 2008.

Essa parceria prosseguiu no ano de 2009, com uma classe de oito anos - o que permitiu

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que muitas crianças continuassem conosco: esse é o grupo que vai ser especialmente

focalizado no presente trabalho. E prosseguiu no ano de 2010, com um novo grupo.

Para que o leitor possa melhor transitar pela descrição e análise das experiências,

me parece necessário localizá-lo brevemente em relação a como se constitui a estrutura

da EMIA15. Essa estrutura é organizada em torno do que é denominado pela escola

como curso regular16: trata-se do curso de iniciação artística, que é obrigatório a todas

as crianças matriculadas e abrange a faixa etária dos cinco aos doze anos; este curso

acontece em aulas semanais, sendo que a duração das aulas varia conforme a faixa

etária dos alunos. Para as classes de sete e oito anos, como a aqui focalizada, ela é de

três horas17, sendo os alunos orientados por uma dupla de professores com formação

em linguagens diferentes18; as combinações de linguagem que constituem a dupla

podem ser quaisquer, e não são informadas aos pais no ato da matrícula.

Sempre vivenciei o advento de uma nova parceria, assim como o de um novo

grupo de alunos, como um acontecimento impregnado de expectativas. Assim também

percebia esse que se aproximava, trazendo tais sensações potencializadas pelo

momento em que me encontrava: iniciando minha participação oficial no programa de

pós – graduação da Unicamp e minha investidura em pesquisadora, embora ainda não

houvesse estabelecido o foco final da pesquisa, já considerava esse trabalho um dos

objetos de estudo importantes para a minha investigação. Senti então algum receio de

que tais expectativas se transformassem em preocupações diante de tão séria e

importante empreitada.

15 Para mais informações, ver o site da EMIA: www.emia.com.br. 16 Além do curso regular a escola oferece a seus alunos como cursos optativos: instrumento musical, dança, teatro e artes plásticas. Atividades abertas também à comunidade são as oficinas, a orquestra e os corais. 17 Para crianças de cinco e seis anos a duração da aula é de duas horas; quatro horas para nove e dez anos e três horas para onze e doze anos. Atualmente, na faixa etária de cinco a dez anos as classes são específicas para cada uma das idades; somente os alunos de onze e doze anos mesclam-se nos mesmos grupos. 18 As duplas de professores das classes de cinco e seis anos se constituem do mesmo modo; aos nove e dez anos, as classes são orientadas por quatro professores, o chamado quarteto, cada um respondendo por uma linguagem específica; aos onze e doze anos, há apenas um professor, especialista na linguagem de opção do aluno.

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Ao reler um trecho do nosso planejamento, revisito a sensação de como os

primeiros movimentos das nossas ideias e desejos puderam esvaziar as ansiedades

daquele momento. Para que o frescor e a possibilidade de ressignificações que um novo

ciclo propicia, pudessem ser fortalecidos e ampliados e não constrangidos pelo meu

comprometimento com a pesquisa.

E para que eu pudesse perceber no parceiro um interlocutor; um par que se

propusesse a desenhar comigo e com as crianças uma coreografia de abertura,

cumplicidade e confiança:

   

Planejamento 1ºsem. 2008 Turma 7 anos – 2ªf tarde

Profs. Ana Cristina Rossetto e Carlos Sgreccia A Grande Brincadeira

A nossa intenção é proporcionar às crianças a vivência do processo de

Iniciação Artística através da Grande Brincadeira. Que permite que cada criança

possa embrenhar-se em explorações, testar hipóteses e desenvolver

possibilidades, individualmente e estabelecendo parcerias. Que abre caminho e

cria a vontade pelo conhecimento e pela técnica.

(...) para que aconteça o que nós dois, professores artistas da EMIA há

tanto tempo, e pela primeira vez trabalhando juntos em sala de aula, acreditamos

seja o motor de todo o possível aprendizado em arte: que o aluno seja tocado

pela aventura da experiência artística.

Músicateatromovimentolinhascores,

nosso desejo é puxar esse cordão...

A Grande Brincadeira não era uma proposta temática, mas a expressão de uma

visão, inspiração, como o título de um espetáculo; e que nos fornecia uma plataforma

de partida comum: o desejo de viver o lúdico em grande estilo, em uma brincadeira

livre e prazerosa, ao mesmo tempo em que rigorosa, comprometida e por isso posta em

letras maiúsculas. A nossa meta mais ampla: possibilitar construções de conhecimento

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no campo dos saberes sensíveis e das nossas linguagens, orientados pela leitura

contínua e cuidadosa do grupo e de seu envolvimento.

Para mim, a necessidade de colocar todas as fichas em um modo de jogo no qual

o pensamento artístico-pedagógico se coloca a serviço das características e

potencialidades dos alunos e do grupo. E para a dupla, entre nós e em nosso campo -

constituído também por um repertório e vocabulário próprios que vão se construindo -

essa ideia foi tomando corpo, se tornando mais complexa, como que criando uma

espécie de vocação conceitual, por não se esgotar em uma explicação ou se tratar de

uma definição.

Uma composição de ideias que nos impulsiona, como que colocando forças em

movimento. Uma maneira de passear entre bordas, contornos; entre a brincadeira e a

Grande Brincadeira, entre as linguagens artísticas abordadas, entre o individual e o

coletivo, o planejado e o que emerge, o dirigido e o não dirigido...

Tem ela atravessado outros campos e modos de atuação de cada um de nós e

influído em outros desafios e encontros, na própria escola e fora dela. Na EMIA, os

professores de grupo têm várias turmas sob sua responsabilidade. No meu caso, por ser

também professora de instrumento – flauta doce – e ter a minha carga horária dividida

entre essas aulas, que são individuais ou em duplas ou trios de alunos, e as de

musicalização, costumo ter apenas duas turmas; mas que me permitem observar como

o modo de atuação de uma dupla pode influenciar a outra, e como se pode

contrabandear procedimentos, informações e descobertas de uma para outra - os quais,

em seu novo contexto, provocarão inevitavelmente diferentes encontros e experiências.

Também as ideias e reflexões trocadas entre um par de professores afetarão as

outras parcerias. Durante o ano de 2010, enquanto preparava e escrevia esse trabalho,

estava envolvida em dois novos processos: uma nova turma com o professor Cacá, e,

da mesma faixa etária, uma outra com o professor de artes plásticas Marcos Venceslau.

Embora esses outros percursos não sejam analisados nesse trabalho, os acontecimentos

que os atravessaram provocaram e influenciaram as minhas reflexões.

Conviver na dupla com professores de outras áreas artísticas, vivendo um

processo de mútua afetação e contágio, pode proporcionar ao professor ampliar e

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refinar a sua percepção das outras linguagens, torná-lo mais atento a seus signos; pode

também propiciar que a sua própria atuação transite entre as áreas. Não pretendo

afirmar que será este um super professor de arte que atuará de forma equivalente em

todas as linguagens. Atuará ele em seu próprio campo, mas sensível e disponível às

fissuras entre suas fronteiras, às oportunidades de encontro, sem temer que se

afrouxem os limites de seus domínios.

Também podem provocar esse contágio e convivência, que no decorrer do tempo

o professor incorpore repertórios, estratégias e procedimentos próprios de outras áreas,

sem que tenha a pretensão de conduzi-los com a mesma profundidade que um

professor especialista o faria; mas que podem ser muito benvindos às circunstâncias e

necessidades vividas por um grupo.

A atuação da dupla de professores voltará a ser focalizada nesta dissertação, mas

me parece oportuno adiantar uma ideia que há tempos me acompanha: que ao se

configurar em toda a sua propriedade, compõe-se ela própria, a dupla, em um

personagem. Como procurarei mais tarde analisar, a configuração desse personagem

pode vir a se dar ou não; não será dada de antemão, mas sim conquistada através de

uma parceria que se constrói e reconstrói a todo momento e só se sustenta pela

confiança e pela generosidade. Não se trata apenas de somar individualidades, ou de

agregá-las: trata-se de compô-las. Criamos um outro e continuamos, cada um, a ser

nós mesmos.

Enfim, lá vamos nós! Atrás dessas pistas! Pegadas, rastros, inscrições. Rever,

revisitar, de novo e mais uma vez ainda. Registros do olhar, perceber, sentir. Captura.

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Encontros de um percurso

Como um diário, escrito de fato e reescrito, e que se apresenta para contar dos

tempos do processo. Engendramentos. Encontros. Não serão esses momentos objeto de

uma análise aprofundada; para tal fim, escolhi uma cena a ser narrada no próximo

capítulo - haverá então tempo e oportunidade de se demorar sobre ela o olhar e o

pensamento. Com a intenção de introduzir o leitor a um ambiente e a seus

personagens, o convido a alguns encontros do percurso desse grupo.

Ao revisitá-los, percebo uma tessitura cuidadosa, da qual eu mesma nem sempre

me apercebi. Curioso como as costuras e bordados vão se tramando, tecendo e

entretecendo. Pelos encontros, descobertas, conquistas, pelos laços dos afetos. Pela

própria experiência.

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9 de fevereiro de 2009: primeiro dia de aula

O Primeiro: de inaugural, de João Cabral e da primeira estrela.

Belo porque tem do novo a surpresa e a alegria. Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia.

Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia. Ou como o caderno novo quando a gente o principia.

João Cabral de Melo Neto

Início que é também continuidade da dupla Ana Cristina e Cacá, e reencontro

com várias crianças que já estiveram conosco no ano anterior. Uma questão: terá tido

“A Grande Brincadeira” um fôlego único, restrito ao trabalho do ano passado, ou terá

potência suficiente para se reinventar? Penso que sim, que terá; mas nesses momentos

sempre há dúvida e incerteza, pois nada está posto e tudo está por fazer.

Como serão os nossos novos alunos? Qual será o clima, as características mais

fortes que esse grupo irá compor? Como verão a nós, professores? Como verão a mim?

(Nada prepara para o primeiro olhar, para a primeira sensação de um encontro...).

Fizemos a aula de ponta cabeça: depois das apresentações propusemos um

exercício, deixando a conversa de primeira aula do ano para depois. Um grande

quadrado demarcado no chão com fita crepe; exploração de movimentos e de

sonoridades corporais e vocais: as crianças percorriam o seu perímetro, e ao passar por

cada base, como denominamos cada ângulo, tinham que transformar sons e modos de

movimentação.

Depois escolhemos algumas sonoridades e trabalhamos como naipes de um

coral, observando a dinâmica, simultaneidade e solos, etc..

Finalmente, muita conversa: bichos de estimação, férias, cinema, vídeo game,

afinal é o Primeiro Dia!!!! Chamamos os pais para nos apresentarmos e para os

combinados e avisos: lanche, roupa adequada, atenção à pontualidade e faltas... etc..

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2 de março de 2009: estátuas e cadeiras

Aula bem animada e movimentada.

Frase rítmica de quatro tempos - três de subdivisão em semicolcheias e uma

semínima – pelas palmas dos professores executadas; as crianças tinham esse tempo

para armar uma posição; deveriam usar as cadeiras: como apoio, ou nelas subindo...

Enfim, como quisessem. Mudança de marcação: apenas um golpe percutido em um

tambor era o comando para que modificassem a postura em que estavam, mas agora

sempre sentadas.

Grande dança das cadeiras: primeiro livre, depois seguindo alguém como mestre.

Exploração do espaço e dos planos – alto, médio, baixo. Trilha sonora do grupo “Uakti”.

Em seguida, alternando música e silêncio, brincamos de... estátuas! Pedimos que

nomeassem a última do dia: “Hércules” foi o nome que Daniel deu à sua. (Quem diria

que nesse dia encontraria o herói da minha infância em carne e osso!).

Para terminar, todos colocaram suas cadeiras em círculo: cada criança à sua vez

ia ao centro e posicionava sua cadeira e a si mesmo, permanecendo em congelamento

até que todos lá estivessem. Depois, tudo ao contrário: cada um saía e levava sua

cadeira de volta ao círculo. Foi um grand finale. Depois do recreio, desenhamos e

fizemos colagens das estátuas.

Observação: não colocaram as cadeiras nem invertidas, nem superpostas; não formaram volumes

nem junções, as cadeiras ficaram espalhadas.

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Mayara fez uma colagem da sua estátua: A Bailarina Russa. Daniel desenhou Hércules.

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Algumas aulas depois eu levei um livro de mitologia para ler a história do herói...

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9 de março de 2009: conchas

Duas aulas antes, eu havia trazido uma pequena caixa de madeira com

conchinhas: antes da despedida daquele dia, a caixa fechada percorreu a roda,

passando de mão em mão, ouvido em ouvido. Foi grande o clima de suspense, porque

o combinado era ninguém dizer nada. No final, aí sim, os palpites: “são pulseiras!

guizos! pedrinhas!...”; “Conchas!”- disse então Guilherme, muito firme, e todos

concordaram. Passei então a caixa aberta, e de olhos fechados, cada um escolheu uma

de lembrança. Eu contei, e era verdade, que catara aquelas conchas na praia, nas

férias, pensando nos meus alunos daquele ano e nas nossas aulas. Cada um colocou a

sua no ouvido, e mesmo nas pequenas puderam escutar o barulho do mar.

Optei por não continuar logo na semana seguinte: foi um dia em que estavam

agitados, e muito movimento e ações variadas acabaram por se apresentar e nos

envolver. Esperei mais uma semana por uma atmosfera mais propícia a essa

intervenção.

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Conchinhas, tules, velas, instrumentos, algumas roupas e uma melodia: cantamos, assobiamos, sussurramos, rodamos e brincamos em volta dos nossos materiais,

embalados pelos versos da sereia: Eu morava na areia, sereia Me mudei para o sertão, sereia Aprendi a namorar, sereia Com um aperto de mão oh, sereia! oh, sereia!

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Cada um à sua vez realizou sua interferência: arranjos que iam se transformando...

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Mas vem o desejo de se deter no material e no tempo, e também de alguma permanência: “Queria que ficasse do jeito que eu fiz...”

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Movimentar-se, tocar, interferir, foi o próximo movimento: performance. Mayara vibracionou, Ana Luiza tocou as conchinhas do vestido.

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Terminamos em um grande tutti, todo mundo brincando.

Daniel declarou: quando a gente vai assim passando pela sala e pelas coisas, fazendo

uns caminhos e inventando, parece que a gente vai linhando.

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16 de março: das escrituras na areia

Palavras colhidas no final da aula: diversão, areia, cor, natureza, gatinho, brincar, árvore, passeio, casa, graveto, folha, desenho, escrever, e... espixação artística – como disse,

finalizando a colheita, Daniel.

Se não tem pincel e tinta, nem instrumentos ou uma canção, nem uma proposta

de teatro, a experiência estética não acontece? E nem tampouco o propósito explícito

de um exercício de escuta ou exploração de sons?

Mas a poesia, que pode surgir a qualquer momento, não respeita fronteiras. Ao

capturar sua presença e significar a ação que a provocou, pode o professor ampliá-la e

potencializá-la em experiência e conhecimento do grupo.

Embora estivesse atenta, só ao observar as fotografias percebi o encadeamento

das operações em que estava envolvida Gabryela: o contato com a areia, o motivo, o

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esboço, a escolha do recorte, o redimensionamento e a ampliação. Ações e intenções de

um desenho na areia.

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Da vontade de acolher a vontade de parque, de sair, de correr, de ir lá fora... Do

propósito de instigar a observação e estender a sala ao parque... e da circunstância de

um lindo dia de sol, surgiu o projeto Guia no Parque. Ele se estendeu por algumas aulas

durante o ano e cada um teve a sua vez de ser o guia, conduzindo o grupo para ver

alguma coisa que considerasse especialmente interessante - e foi assim que Guilherme

nos levou ao parquinho.

Ao chegarmos lhe pergunto: “Mas o que você quer mostrar no parquinho?” e a

resposta vem quase imediatamente: “A areia! Podemos fazer escrituras na areia...”. E

logo começa a desenhar. Nunca pude ter certeza se Guilherme lá nos levou com esse

objetivo de antemão definido; desconfio que talvez quisesse simplesmente ir ao

parquinho brincar; mas, se foi essa uma saída de emergência, foi imediatamente

assumida e passou a ser um propósito; pois Guilherme provocou um episódio em que

emergiram muitas coisas interessantes.

Esteves porém não desenhava. No início, havia ficado por perto, perscrutando a

areia, observando os colegas; mas foi instalar-se lá bem no alto do trepa-trepa, olhando

de longe. Eu o fotografo, e então... eu mesma me surpreendo:

- Olha, Esteves, você está desenhando com a sombra!

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Efêmero e em transformação - talvez seja por isso o desenho na areia tão atraente às crianças. Mas também percebi no grupo a satisfação de deixar marcas, mesmo que transitórias, da nossa passagem: a casa, o sol, um desejo, o nome e o retrato... Desenhos, inscrições, espixações ou escrita? Escrituras na areia!

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“Museu é o mundo” foi o título da exposição de Hélio Oiticica realizada em 2010

em São Paulo19; “A oficina é o lugar onde você está”, diz Anne Marie (HOLM, 2007: 11).

E a sala de aula pode ser todos os lugares, como estão também as sonoridades em toda

parte... Se nos disponibilizamos a escutá-las.

Educar os olhos, como os ouvidos, “(...) não é somente fazê-los ver certas coisas,

valorar certos temas e cores e formas, mas é, sobretudo, construir um pensamento

sobre o que é ver; (...)”. (OLIVEIRA, 2009: 19).

E quando menos a professora espera, pode acontecer a pesquisa e exploração

sonora. Alguém escondido percute de vários modos a árvore e Andreza e Daniel

escutam atentamente.

19 Exposição realizada no Itaú Cultural – 21/03 a 16/05/2010.

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23 e 30 de março: Brandenburgo

Dança que tratou do Céu e do Inferno, ou do Bem e do Mal.

Prisioneiras, fadas e seres terríveis.

Motivo, inspiração, circunstância: o concerto que eu faria no dia 5 de abril,

tocando uma das flautas solistas no IV Concerto Brandenburgo.20 Estando imbuída da

música, tomada por ela, veio a vontade de compartilhá-la de algum modo com as

crianças; desse modo, levei para a nossa aula uma gravação.

Após o aquecimento e o relaxamento, coloco a música e dançam livremente todo

o primeiro movimento. Pedem as fantasias, as escolhem e colocam em grande

excitação.

Meninas e meninos ocupam lados opostos da sala: elas, por personagens de

delicadas fadas, bailarinas, princesas e prisioneiras; eles, por seres misteriosos,

imperadores e guerreiros em luta.

Com uma tira de pano traço dois territórios, explicitando e potencializando a

divisão da sala, o que provoca que o conflito se intensifique: os meninos tentando

raptar as meninas e estas se empenhando em libertar umas às outras.

Jogam e dançam, sobrepondo sentidos e direções, numa velocidade quase sem

dobras... E o tempo voa, e a aula acaba. “De novo! Vamos de novo!”. Eles se vão

somente depois de eu prometer que atenderia aos pedidos que haviam sido

manifestados em uníssono: “E semana que vem?”, “Semana que vem podemos fazer

mais uma vez e mostrar para o Cacá?...” (Pois nesse dia Cacá não pudera comparecer à

aula).

Concordei, pensando: quem sabe aos poucos construímos um roteiro:

personagens, acontecimentos encadeados... e talvez eu possa também trabalhar alguns

conteúdos musicais... 20 Orquestra Sinfônica Municipal, regida por Tiago Pinheiro. Solistas: Bernardo Toledo Piza e Ana Cristina Rossetto (flautas doces) e Maria Fernanda Krug (violino).

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Na semana seguinte, chegam já ansiosos em colocar as fantasias e pedindo que

refaçamos a divisão da sala. Tudo já preparado, Cacá e eu contamos para as crianças

sobre o concerto; ele diz que eu preciso treinar para ele e que elas podem me ajudar.

Depois de conversarmos sobre os instrumentos da peça, sobre orquestras e

maestros, entro no palco com a flauta e sou muito aplaudida: brinco de tocar junto com

a gravação. Andreza pede para reger – a flautista e a orquestra do CD, à qual algumas

crianças se juntam tocando instrumentos imaginários.

Logo todos vão entrando em movimento; sáio de cena e me ponho a observar

como eles retomam os personagens da aula passada com muita intensidade. Aos

poucos percebo que propor uma organização seria uma tarefa árdua tanto para nós,

professores, como para eles. Faço algumas interferências, procurando realçar coisas que

acontecem e que acho interessantes. Eles até escutam... Mas logo me dou conta que

minha interferência é desnecessária; não necessitam dela - estão totalmente ocupados

e imersos no jogo. Agora nosso papel é estar lá. Ajudar, apoiar e cuidar... “Olha a

janela! A parede! Cuidado com o colega!”...

(Um fragmento de memória risca o presente - a sensação de liberdade,

deslocamento e transformação; do tempo, do espaço, do meu corpo, das

potencialidades do meu corpo; escorregam pelas franjas do tapete da sala de visitas da

minha infância cenas infantis, flashes de balés com minha irmã ensaiando desvarios.)

Na nossa conversa de final de semestre, Andreza lembrou-se dessa aula, dizendo

que tinha gostado muito “da peça que a gente fez, que tinha as meninas de um lado e

os meninos do outro”; Guilherme concordou, embora tivesse achado “um pouco

bagunçado”, porque ele não tinha entendido quando começava e quando terminava.

Sara disse que se passava no céu e no inferno; Daniel reagiu, dizendo que não, que era

um teatro sobre o bem e o mal.

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6 de abril de 2009: em dois quadrados

Em dois quadrados muitas coisas podem acontecer; pelo menos foi isso que se

deu em nossa classe nesse dia. Desenhados no chão com fita crepe foram ocupados,

povoados, sonorizados. Intenção: propiciar a experiência de integração espaço cênico –

corpo – som; diluir as fronteiras entre a música, a dança e o teatro, entre tocar, atuar e

dançar.

Do meu caderno de anotações: Guilherme arrasou no tambor de alfaia, Gabriel

criou um ritmo e uma sonoridade interessante no prato, Andreza desabrochando,

Mayara desenformando a bailarina. Alta freqüência!

Havíamos elegido um início – uma primeira exploração, livre, brincante, em que a

regra única era a movimentação contrastante em cada quadrado. Depois disso houve

momentos em que o exercício pareceu por si se conduzir e outros em que os

professores efetuaram escolhas. Aconteceram performances individuais – até Cacá e eu

tivemos a nossa vez - e em grupo; ações em cada quadrado e interações entre eles.

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Essa foi uma aula em que a nossa atuação se deu na seleção dos materiais, na

condução das dinâmicas e em algumas sugestões e interferências pontuais; e na

observação de cada um dos alunos e de como interagiam.

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Terminamos em uma Grande Brincadeira dentro e fora dos quadrados, uma brincadeira

de todos os lugares. A câmera capta um pano em movimento, projeção de um gesto de

Raíssa, o pequeno transformado em grande, amplo, inadvertidamente se lançando para

Fora.

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18 de maio de 2009: tocar

Estamos todos nessa roda: as crianças, Cacá, Doda, ou Rosa Macedo, que

aparece na foto - estagiária do curso de Licenciatura em Música da Unesp, Doda

acompanhou nossa classe no primeiro semestre de 2009 - e eu. Prontos para a ação.

Entretanto, até chegarmos aí, muitas operações se deram: uma verdadeira logística!

Ir à sala de instrumentos, efetuar as escolhas e levar tudo para a classe já requer

tempo e organização: quem entra para escolher, quem espera no saguão, sendo que há

os indecisos, os insatisfeitos, as disputas... E também há os instrumentos que não estão

em boas condições, o que faz com que possa ser bastante trabalhoso reunir um

instrumental satisfatório para toda a classe. Tudo isso requer dos professores empenho

e paciência. Mas que logo começam a ser recompensados, já pelo orgulho com que as

crianças os exibem pelo caminho de volta e pelas demonstrações de força e

competência ao carregá-los.

Na classe, também é importante atentar para o cuidado estético com o espaço;

não é porque a intenção é focalizar o ato de tocar, que esse cuidado deixa de ser

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importante. Nós, músicos, muitas vezes não damos muita importância a esse aspecto,

nos preocupando apenas com a organização do espaço no sentido de que permita que

possamos nos ver e nos escutar.

Muitas vezes eu pré-seleciono os instrumentos; o que, além de ser bem mais

prático, pode ser interessante, por me permitir escolher aqueles que tenham as

características mais apropriadas à proposta que pretendo abordar.

Mas acho essencial reservar alguns encontros durante o ano para que eles

possam escolher de maneira mais ampla; encontros em que as ideias musicais das

crianças já possam germinar a partir das suas escolhas.

Inúmeras dinâmicas e estratégias são possíveis, e algumas acabam por se fazer

necessárias; em nosso caso, a sala em que se deu essa pesquisa é sem dúvida bonita e

espaçosa, mas a reverberação é excessiva - o que torna inviável que todos toquem

juntos sem que nada seja combinado...

Mas as estratégias não se esgotam como tal - podem elas nos conduzir a

conteúdos importantes. Por exemplo, algo tão simples como tocar e parar perante um

comando, além de poder se tornar um jogo interessante, se bem temperado pelo modo

de alternar pausas e sons, permite que todos toquem; e que simultaneamente se

trabalhe o ritmo não medido, o som e o silêncio, expansão e contenção, prontidão,

motricidade...

E que o professor introduza a conversa - que é sempre muito animada - sobre os

instrumentos, seus nomes, as famílias às quais pertencem, as diferenças e

similaridades; como também que faça observações e interferências sobre a postura

corporal, o gesto, o modo de segurar o instrumento ou as baquetas. Mas me parece

importantíssimo colocar os aspectos técnicos sem desfazer de outros modos de tocar,

acolhendo-os e qualificando-os como parte da pesquisa e da invenção.

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Guilherme inverteu uma das baquetas, experimentando “o som sem a borracha”.

Mayara com uma baqueta toca na caixa do instrumento, com a outra por baixo das teclas.

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Logo vão se apresentando os parâmetros do som21, pelas comparações e

classificações entre os instrumentos, nas quais as crianças demonstram grande

interesse; e os próprios eventos sonoros produzidos também passam a suscitar

comentários e observações. A partir daí, o jogo pode se diferenciar, se tornar mais

complexo, pois se desdobram as possibilidades, muitas vezes pelas sugestões dos

próprios alunos. E com as ansiedades diluídas, já é possível que cada um possa tocar

sozinho e ser ouvido pelo grupo.

Nessa aula focalizamos a intensidade: a dinâmica dos crescendos e

decrescendos, dos pianíssimo aos fortíssimos, e vice-versa; graduações sutis que por si

colocam questões: ouvir-se, ouvir o outro, ouvir o grupo; tomar iniciativas e também

adaptar-se - tudo isso é necessário para se tocar em grupo.

Eles mesmos se avaliam. São comuns comentários como “não teve o meio forte

direito”; “ficou fraco muito rápido”; ou a reclamação de que algum colega “está tocando

muito forte e não escuta os outros...”.

Nessa faixa etária me parece essencial dar tempo e lugar às camadas de

experiência que os conteúdos podem propiciar, sem a preocupação de que estejamos

repetindo-os. Quando falei em pulsação, mesmo já sendo esse um conceito adquirido,

sugeriram que cada um poderia sentir o próprio pulso. Muito atentos o fizeram, inclusive

ajudando uns aos outros a achar o pulso e a batida do coração, com muita delicadeza.

Pele, toque, vida e morte atravessaram as nossas pesquisas musicais: “Eu não

estou sentindo, será que eu morri?”; “O dele está bem mais rápido do que o meu...”; “O

meu está fraquinho...”

“Oba! Senti!!!”.

21 Duração, altura, timbre e intensidade.

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Compartilhar o próprio pulsar transmitindo-o para o grupo pelo instrumento foi o

próximo ato; cada um também sugeria de que modo seria tocada a sua pulsação: bem

forte, alternando forte e fraco, dentro e fora do instrumento, entrando um de cada

vez... Cada criança uma música pulsou.

Depois do recreio, formamos duplas. Cada uma preparou e apresentou uma

pequena invenção.

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Uma aula

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Os processos são os devires, e estes não se julgam pelo resultado que os findaria, mas pela qualidade dos seus cursos e pela potência de sua continuação

Gilles Deleuze

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Uma aula Uma aula, um pequeno-grande acontecimento,

uma hora, uma ocasião, circunstâncias, paisagens e personagens, condições e incógnitas da questão.

Deleuze e Guattari

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Do acontecimento 25 de maio de 2009

Sala anexo, casa 2, EMIA

Das observações de um dia de aula – quase uma fantasia.

(pois quando se observa com esmerada atenção o mundo real e presente em seu

acontecimento, assim ele se redimensiona, ou se desdobra: em quase fantasia...)

Turma de oito anos, 2ªfeira/ tarde professores Ana Cristina e Cacá

Personagens

Ana Cristina, professora de música e narradora

Cacá, professor de teatro

Doda, estagiária

Ana Luiza, Andreza, Daniel, Gabriel, Gabryela, Guilherme, Igor, Raíssa e Sara, alunos

presentes

Augusto, Esteves e Mayara, alunos ausentes

apresentando

Thor, convidado

professora Berenice, testemunha

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Abertura

Aquecimento

Banquinhos de madeira colocados no centro da sala, em círculo

Todos os personagens em volta

Como um modo de nos colocarmos todos, professores e alunos, naquele tempo e

lugar, como um aquecimento, Cacá propõe que cada criança, à sua vez, disponha os

banquinhos como quiser.

Daniel muito compenetrado inicia. Sara e Igor experimentam os banquinhos para

um lado, para o outro, mais juntos, separados... Calma e silenciosamente, sob a

observação do grupo, cada aluno faz a sua interferência e começam a surgir pequenas

performances, como quando Ana Luiza inventa uma cama e a ocupa prazerosamente.

As crianças manipulam e remanejam o material em estado de grande atenção. As

ações se sucedem - até que Gabriel coloca um banquinho sobre os outros, causando

certo impacto sobre os colegas.

- “Eu não sabia que podia.” Diz Sara, reagindo rapidamente.

- “Eu também não!” Completam em coro os outros alunos.

- “Ninguém disse que não podia...”, comento eu...

E me dou conta de que afinal fora mais interessante ter resistido à tentação que

me rondara anteriormente de explicitar essa possibilidade. Pois se o tivesse feito,

Gabriel não poderia ter vivido sua pequena descoberta desbravadora.

Observo e fotografo: vão se construindo escadas, casas, quartos, lugares

habitados por personagens singulares: Gabryela sobe, desce, passeia e brinca.

Guilherme em uma moto a toda velocidade. Daniel se aconchega: um quarto, uma

cama, um travesseiro...

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Janelas

Andreza se lança ao desafio de sobrepor cuidadosamente todos os banquinhos.

Deixa para Raíssa seu experimento, que o vai transformando numa espécie de pirâmide

na qual sobressaem os vazios, pelos quais podemos vê-la. E por eles Raíssa

timidamente entreolha para fora. E entre esse olhar que procura as brechas, e os

nossos que a observam, surgem janelas. E pelas janelas uma canção... Pois alguém

cantarola em boca chiusa: hum, hum, hum... Uma melodia que soa conhecida, mas que

parece vir de longe, tão baixinho a escuto...

- “Alguém está cantando alguma coisa bonita”, digo eu; - “Sou eu...”, responde

Doda, um pouquinho encabulada.

Mas ela então passa a cantar mais forte, agora com os versos, e me junto a ela,

embora tropeçando na letra... Começo a filmar.

Toda gente homenageia Januária na janela Até o mar faz maré cheia Prá chegar mais perto dela

Com a entrada da música, transforma-se a atmosfera e a atitude de todos, como

se uma cena se configurasse, embora Raíssa continue na construção de sua pirâmide.

Eu e Doda continuamos cantando. Quando Raíssa enfim termina e sai, alguém aplaude.

Peço que prestem atenção à letra da música. Retomamos a canção, e Cacá

conduz as crianças, sussurrando indicações, dirigindo uma exploração da composição;

as crianças vão experimentando os vazios, explorando o que se vê pelas frestas, pelas

molduras que desenham as janelas... Ele então coloca uma regra: – “Sem colocar a

mão... Só olhando”.

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No limite da transgressão, Guilherme e Ana Luiza aproximam as mãos das

superfícies dos banquinhos, muito perto, mas sem encostar; e dramatizam o gesto,

como que sentindo vibrações. Thor as põe e tira muito rápido pelos vãos. Percebo que a

regra colocada por Cacá não os inibiu; pelo contrário, tornou a exploração mais

interessante, sendo tomada como um desafio intrínseco a um modo de jogo – e não

como uma imposição de comportamento, estranha a ele.

Abaixando-se e levantando-se, Sara brinca, ou faz uma encenação - para a

câmera? Para a professora atrás da câmera? Ou, mais propriamente, para o

personagem corporificado pela professora com a câmera...

Thor, todo satisfeito, com os braços para trás, se entrega ao jogo de ver e de ser

visto...

Cacá chama por Igor:- “De onde eu posso ver o Igor? Igor...”

E eu e Doda, de novo em boca chiusa cantarolando, finalizamos a canção em um

grande rallentando...

O sol desce na areia E suspira por aquela Que formosa se penteia Não escuta quem apela

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Intuição, inspiração, desejo: proposta

A finalização da canção não soa a mim como conclusão. E sim como uma grande

fermata, após a qual uma respiração conduz ao próximo movimento. Materializar um

espaço de liberdade e criação me parece ser uma direção a seguir. Como se

necessidade fosse, e antes que a ressonância se desfaça, sugiro a Cacá e Doda

continuarmos, deixando o recreio para mais tarde – com o que eles concordam

prontamente.

Então proponho às crianças “inventar e construir um lugar, qualquer lugar –

como uma casa, uma floresta, uma loja - onde vocês estão, onde acontece alguma

coisa e que tem um som”. Digo que vamos usar outras coisas além dos banquinhos e

trabalhar em grupos.

Cacá organiza as crianças, enquanto eu e Doda saímos a coletar os materiais.

Voltamos com panos, cavaletes, fantasias, adereços e instrumentos variados, e

encontramos os agrupamentos já formados e seus integrantes em conversações

internas. Cacá comenta que os alunos haviam se organizado muito rapidamente,

formando duplas e um quarteto, sem que ele achasse necessário interferir. Fato que

reforça a percepção que tenho tido de que é realmente interessante que as crianças se

organizem de maneira flexível, tanto no número quanto em relação à escolha dos

participantes - quando a dinâmica do grupo e da própria atividade assim o permitem -

sendo importante acolher inclusive o desejo de alguém que prefira eventualmente

trabalhar sozinho...

Nossa interferência também se mostra desnecessária na distribuição dos

materiais, momento de possível sofreguidão e eventuais disputas: pela posse do maior

instrumento, ou da fantasia mais brilhante e colorida... Nada disso acontece. Deixamos

todas as coisas no centro da sala, à disposição de todos, e o que transparece é que eles

pegam o que precisam, de acordo com as ideias de cada grupo.

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A atmosfera é de grande diligência (não, não é uma confusão, muito menos uma

bagunça!): há grande movimentação, mas parece que todos sabem o que estão

fazendo. Cada grupo ou dupla escolhe um lugar na sala, a partir do qual territórios vão

sendo rapidamente formados e ocupados por objetos e habitantes. Estão todos

envolvidos em combinações e armações, experimentando as roupas e os instrumentos,

e os panos tanto são vestidos ou usados na cabeça, como compõem volumes ou são

estendidos com cuidado e capricho. Sem dúvida, está totalmente conflagrada A Grande

Brincadeira.

Sigo o impulso de sair em busca de uma testemunha. Convido a professora

Berenice de Almeida, coordenadora da área de música na época, dizendo a ela que algo

interessante está em curso em nossa classe. Mesmo me sentindo muito bem

acompanhada e vivendo o encontro com todos os parceiros em campo, vem este

impulso de estender e compartilhar a experiência com alguém de fora... mas não tão de

fora: alguém que, como a professora Berenice, pudesse ser um interlocutor.

Talvez um interlocutor possa nos referenciar: será o acontecimento em iminente

instauração potente a ponto de afetar testemunhas? Seja como for, o que me parece

certo é que esse impulso me aponta como nós professores necessitamos de

interlocutores.

Ao voltarmos para a sala, observo que agora o quarteto e as duplas de crianças

estão às voltas com os detalhes, ajustes e negociações. Gabryela faz sugestões a

Raíssa, tentando convencê-la a tocar um determinado instrumento, e depois trocar para

um outro... Mas Raíssa, abraçando e tamborilando a cítara com os dedos, delicada mas

firmemente se coloca: -“Eu gostei mais desse”. Gabryela aceita, e comenta em seguida

comigo que está em dúvida de que panos usar em sua performance. Sugiro que ela

varie, que pode usar um, deixá-lo e escolher um outro, e que isso pode fazer parte da

cena... Ela continua então em sua minuciosa pesquisa-arrumação de panos e véus nos

cavaletes e ensaia para a câmera seu personagem em uma janela. Cacá vem e a coroa

com um tule cor de rosa.

Thor, descobrindo o melhor jeito de tocar a queixada, se surpreende: – “Um

jacaré! Jacaré! Jacaré...”, exclama ele por três vezes; mas nem Cacá, nem Guilherme,

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aos quais ele se dirige, o escutam. Cacá está envolvido com outros alunos e Guilherme

ocupado em dispor as clavas sobre o pano azul; a terceira exclamação, Thor já a faz em

decrescendo, mais conformado do que decepcionado, guardando-a para si mesmo.

(Sendo que eu mesma só escutei Thor ao assistir à filmagem...).

Nem parece que Thor é um convidado, primo de Guilherme. Quando chegaram à

sala para a aula, já não havia nenhum adulto com eles, o que tornava infrutífero,

naquele momento, qualquer questionamento sobre sua permanência conosco. No

aquecimento Thor foi um espectador, mas a partir das janelas abertas pela Canção de

Januária foi fazendo aproximações, interações... E aí está ele, explorador curioso,

acompanhando o movimento do grupo e fazendo suas próprias descobertas.

Isso tudo parece ser para ele muito natural, pois comenta comigo que já

conhecia quase todo mundo, incluindo eu e Cacá: no final do ano anterior, ele assistira

a uma apresentação da nossa classe da qual vários alunos do grupo atual já

participavam; participara do lanche coletivo e depois brincara bastante.

Sara e Ana Luiza exploram o metalofone e armam os panos, combinando um

teatro. Na cabana já construída e nela abrigados, Andreza, Gabriel, Daniel e Igor, em

plena pesquisa, trocam impressões sobre os instrumentos: – “Isso fica bom”, diz Gabriel

a Andreza, em tom de aprovação.

Igor, com um par de clavas nas mãos cumprimenta a câmera que o observa: -

“Olaá!” E dirigindo-se a aos amigos, anuncia uma descoberta:

- A nossa janela!

Andreza e Gabriel olham pela janela por alguns instantes; Gabriel ri, Andreza

sorri, e voltam a atenção para o tocar dos instrumentos.

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Atenção: ação-observação!

Tempo da exposição de cada grupo. Os demais assistem de seus próprios territórios...

casas-tocas-cenários-instalações...

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Cena 1 - Na cabana

Uma colorida cabana sonora. Andreza, Gabriel, Daniel e Igor estão dentro, estão

fora, pois lá de dentro espiam pelas frestas, enquanto produzem os sons que vazando

desse objeto invadem o ambiente. A cabana os protege ao mesmo tempo em que os

projeta. (Impossível não me lembrar das cabanas e tendas da infância que tão bem me

vestiam...).

Sem parar de tocar, trocam de instrumentos e fazem comentários e sugestões

uns para os outros. Continuam no movimento da exploração. Fora da cabana, fora do

foco da cena, Gabryela dança. De novo observo e me pergunto: o que acontece dentro,

o que acontece fora? Ou, quando termina um episódio e começa outro? Dança a

bailarina entre territórios, ao som dos habitantes da cabana.

A improvisação sonora se desenrola e vai se modificando através de pequenas

variações de timbre, densidade e intensidade. Aos poucos cessam as conversas e

comentários entre eles. Sob a cabana tudo se colore pela luz que atravessa os panos:

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rostos, corpos, instrumentos, baquetas, tudo se integra - a cabana é um corpo. E esse

corpo ganha voz, quando como que não cabendo mais dentro dele, surge o canto de

Igor. Os amigos se juntam a ele, em puro contentamento. Impossível não me lembrar

de Hélio Oiticica, e das palavras de Hélio Oiticica: “Não existe idéia separada do objeto,

nunca existiu, o que existe é a invenção” (CARDOSO, 1985: 48).22

Aproveitando um decrescendo sonoro, uma diluição da intensidade advinda da

pulsante cabana, Cacá encerra e anuncia o próximo trabalho, apontando: -“Aqui! Raíssa

e Gabryela!”. Esta imediatamente se põe em cena, agachando-se no chão. Cacá pede

silêncio, e as duas meninas iniciam seu duo de som e movimento, ou, de música e

dança.

22 Ivan CARDOSO, A arte penetrável de Hélio Oiticica. Folha de S.Paulo, São Paulo, 16 nov. 1985. p. 48. Referência Itaú Cultural on line; acessado em abril de 2010.

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Cena 2 – Duo: a bailarina e a tocadora de cítara

Gabryela se levanta, já em posse de um outro olhar, um outro andar – que não

identificamos qual seja, mas o percebemos de imediato como não cotidiano, misterioso,

estrangeiro... Sustentada pela música da cítara de Raíssa, Gabryela é uma bailarina

dramática, que por panos e véus compõe e recompõe seu cenário, inventa e varia seu

personagem.

Ela escorrega no tule no chão estendido e quase cai - a exclamação de susto

vem, mas soa mais como um acento, e não como um corte; a música, que não perde a

continuidade e fluência, mantem a atmosfera e a bailarina na experiência, em giros e

rodopios.

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O duo cria uma atmosfera algo exótica e de grande delicadeza. Então Gabryela

brinca: coberta com um véu, com sua coroa de tule cor-de-rosa na mão, cutuca a

parceira e os colegas na plateia, em um passeio pela sala. Raíssa não descuida da

melodia nem por um instante.

Gabryela volta, corre e gira com o véu nas mãos. E então se deita, com o véu se

cobre, se enrosca, e nele se encasula... Raíssa dedilha um arpejo. Gabryela se estica,

levanta-se e com os aplausos se retira.

Cacá agradece os aplausos e conduz a atenção de todos para o grupo seguinte. A

câmera busca Raíssa, que ao fundo sorri timidamente.

Raíssa e a cítara, ou harpinha. Um duo no duo, ou foram nessa aula Raíssa e o

instrumento um só?

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Cena 3 – As irmãs

Sara e Ana Luiza também fizeram uma cabaninha, ou, mais parece, uma casinha.

Lá de dentro, Ana toca o metalofone, alternando as melodias às suas falas; numa delas,

pede à irmã que vá lhe comprar um brigadeiro. (Thor várias vezes curioso se aproxima

e espia lá dentro).

Sara volta à cena e as duas começam a brigar. Sara-personagem praticamente

desmancha a casinha com um sorriso maroto. Inicia-se uma peripécia de perseguições e

tentativas de assassinato do personagem de Ana. Sara a arrasta pelo chão, ordenando

veementemente que ela morra: - “É prá morrer, é prá morrer!...” Mas desconfiada do

sucesso de seus intentos, pergunta baixinho: morreu? E Ana Luiza teimosamente não

morrendo, responde: - “Não...” (Em dado momento, passam muito perto de Guilherme

e Thor, desarranjando os panos dispostos para a cena deles – os quais eles logo

arrumam zelosamente).

Ana Luiza se finge de morta, e Sara, preocupada com a polícia, oculta o corpo

sob um pano. Ana ressurge viva e Sara lhe pergunta por que ela não morre, já que o

brigadeiro estava envenenado. Ana responde que quem o comeu foi o cachorrinho, e

não ela.

Começa mais uma perseguição. Mas antes de uma nova tentativa de assassinato,

Cacá interfere: - “ Ok, Ok, muito bem!!!”, finalizando a cena.

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Cena 4 – Pescaria

Um quadro animado pela pescaria de Guilherme e Thor. Uma paisagem que se

descortina, pintada por panos coloridos, pontuada por caxixis, paus de chuva que

também são varas de pescar, clavas-peixinhos... Instrumentos ou objetos, sonorização

ou música? Brincadeira ou teatro?

É com seriedade que iniciam a cena, batendo os paus de chuva no chão, em um

motivo ou gesto rítmico, em intensidade crescente; considerando-se que são estes

instrumentos de origem indígena, usados nos rituais xamânicos, estarão evocando que

espíritos?! Ou estarão, à maneira das batidas de Molière23, convocando a audiência para

o espetáculo, ao mesmo tempo em que espantando a inveja?

23 Molière (1622- 1673) instituiu o costume das batidas de um bastão no palco para chamar a atenção da plateia para o início do espetáculo. Até hoje preservado nos três sinais dos teatros modernos, é também considerado um ritual de boa sorte.

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O fato é que assim nos introduzem a um outro mundo; e nesse mundo em cena

criado, são as varas em punho, ou paus de chuva, que combinados aos outros

instrumentos trazem os sons da pescaria, e também pescam os peixinhos que depois

são colocados por Guilherme num recipiente para serem cozidos.

Thor, o convidado, acompanha com alegria o parceiro Guilherme. Mas muito

baixinho lhe pergunta: “- Você nem sabe o que vai fazer, sabe?”. Guilherme não

responde: mas percutindo o triângulo anuncia a hora da refeição, e com ele Thor se

senta e come com gosto.

Cacá anuncia a hora do recreio. As crianças saem rápidas com as lancheiras, e

nós adultos permanecemos na sala, trocando olhares e expressões mais do que

propriamente conversando.

Por fim Doda comenta que lhe chamara a atenção o grande envolvimento das

crianças desde o princípio, no trabalho com os banquinhos - uma proposta

aparentemente simples.

Berenice, a testemunha, animada ressalta que essa seria uma aula a ser bem

guardada na memória, e que havia sido uma sorte eu ter trazido a máquina fotográfica

e a câmera de filmar. Lembro-me das tantas vezes em que nós duas conversamos sobre

a importância do registro, e fico feliz em tê-la chamado. Saio da classe matutando uma

resposta que não chega a tempo de ser pronunciada: não, não se tratara de sorte;

agora ando às voltas com esse personagem - a professora-pesquisadora - que não me

deixa mais sair de casa para trabalhar sem estar de posse de máquina e câmera. Como

um músico com seu instrumento.

Quando voltamos do recreio, resta pouco tempo de aula, e, coincidência ou não,

as crianças parecem também não estar com vontade de conversar ou de fazer

comentários. Preferem as poucas, mas bem saboreadas palavras de um jogo: eles

pedem para brincar de Telefone sem fio.

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Banquinhos, um clássico!

Ou, entre o rigor e a liberdade

Presença

Retomo o comentário, já aqui anteriormente registrado, de Rosa Macedo, a

Doda, que acompanhava nossas aulas como estagiária, de que lhe chamara a atenção o

envolvimento das crianças desde o princípio do trabalho naquele dia, por meio de uma

proposta simples como o trabalho com os banquinhos. O que fez com que essa

proposta aparentemente simples se tornasse interessante e desencadeasse um processo

de trabalho tão instigante para todos os participantes?

Realmente esse envolvimento podia ser percebido na atitude de cada criança,

tanto quando faziam suas interferências, como também quando observavam os colegas

em ação. Podia-se perceber também que uma atmosfera diferenciada logo se instaurara

em sala de aula: uma atmosfera de tempo e espaço distendidos, em que os nossos

alunos puderam imergir em um estado de experimentação atenta, ao mesmo tempo em

que relaxada. E na qual cada pequena interferência ou gesto foram vividos como

descobertas. Como se pela primeira vez.

Inúmeras são as questões referentes ao envolvimento das crianças e à

pertinência das atividades. E muitos caminhos e respostas podem elas suscitar. De

qualquer modo, penso que não são todos determináveis e controláveis, por sua própria

natureza, os componentes que fazem com que uma proposta se potencialize em

experiência. E não se pode ter a ilusão de extrair de um episódio bem sucedido

elementos e coordenadas suficientes para reproduzi-lo, já que lidamos com múltiplas

variáveis não controláveis. Mas, embora não possamos controlar a disposição e o humor

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dos personagens, nem tampouco as incógnitas da questão, podemos cultivar as

condições para que se dêem os encontros e os acontecimentos.24

É a iniciação artística um processo de trabalho e construção, sendo as conquistas

desse percurso incorporadas tanto pelo grupo como por cada indivíduo. E há aspectos

aos quais nós, professores, podemos e devemos muito especialmente atentar, no

sentido de preparar, de facilitar as condições para a instauração de uma atmosfera

dessa natureza.

Acredito que tudo comece pela qualidade da presença do professor. Estar o mais

disponível possível me parece ser a primeira orientação. A partir daí, no desenrolar da

aula, em uma espécie de estado de observação e escuta - estado esse que de certo

modo se assemelha ao do artista no ato de criação - por olhos e ouvidos bem abertos

pode ele perceber e qualificar os detalhes que podem dar lugar às diferenças e voo às

singularidades. E, embora todos os integrantes do grupo exerçam forte e decisiva

influência na demarcação e sustentação de um território propício à experiência, é o

professor o mestre dos encontros. E é pela qualidade de sua presença que ele pode

exercer com propriedade esse papel, configurando e colocando em ação esse

personagem.

Parece-me que tal qualidade de presença não pode ser exercida por um professor

que se coloque como um observador distanciado da experiência. Deve ele observá-la e

vivê-la, pois a ele se destinam também o encontro e o acontecimento, através dos quais

se renova e se reinventa, em transformação constante, em devir: devir-professor,

professor-artista em devir, vive ele o acontecimento como artista ao mesmo tempo em

que como professor, junto com os alunos – de maneira con-junta – mas investido em

seu personagem, do qual não pode declinar; pois é a configuração desse personagem

que permite ao aluno viver plenamente o seu - embora esses papéis não sejam

imutáveis, e a dinâmica da nossa relação com os alunos possa nos fazer surpresas

quanto à sua plasticidade.

Pensando em um professor a conduzir uma proposta em uma aula, esta não é

uma postura a ser assumida a partir de uma decisão de caráter pedagógico ou artístico, 24 Expressões em itálico extraídas de DELEUZE e GUATARRI (1997: 10).

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embora provoque muitos desdobramentos em ambos os campos. Ela é decorrência do

seu envolvimento com a proposta em curso: tocado pelos seus signos e sentidos, pelas

possibilidades que nela vislumbra como experiência estética, artística, como experiência

da sua área e linguagem. Também é decorrência do seu envolvimento com cada uma

das crianças e com o grupo: pela alegria de viver uma experiência dessa natureza com

eles, naquele tempo e lugar; e pela sua percepção do quanto essa vivência poderá

agregar ao percurso, em como potencializará o processo dessas crianças e desse grupo.

Uma proposta não existe independentemente da maneira de se introduzi-la e

conduzi-la. Focalizando a aula aqui narrada, quando o meu colega Cacá inicia o

aquecimento, propondo que cada criança faça sua interferência com os banquinhos, ele

o faz de maneira compenetrada e muito séria: como se aquilo fosse a coisa mais

importante do mundo naquele momento. Ele não age dessa maneira levado pela

intenção de convencer as crianças, ou de revestir uma proposta simples de uma falsa

importância. Ele o faz de verdade, por conhecer e sentir na pele a potência do jogo,

tocado pelas suas virtualidades. Delimita um espaço, o material, e com a mesma

seriedade declara que cada um fará sua interferência do jeito que quiser.

Essa garantia de liberdade é um convite a que todos participem como

protagonistas. É também a expressão do compromisso de que nós, a dupla de

professores, acolheremos e qualificaremos tanto as pequenas como as grandes

interferências. Acredito que é esse rigor aliado à liberdade, ao respeito pelo modo de

ser de cada um, que permite que as crianças participem nesse estado de atenção

relaxada, ao mesmo tempo em que percebem que nesse jogo não vale fazer qualquer

coisa, de qualquer jeito, sem se comprometerem.

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Interferir, dirigir, interagir

Muitas vezes pode o professor ficar em dúvida em fazer ou não uma

interferência. Estar no estado a que acima me referi, de observação e escuta,

percebendo o grupo e as crianças, seu ritmo e sua condição de disponibilidade às

propostas, o auxiliará a fazer uma escolha pertinente à situação. Não é questão de

acertar ou errar, mas de procurar agir em maior ou menor sintonia com ela. Uma aula

tem vários momentos; movimentos de andamentos diferentes e que pedem que o

professor, ou, no nosso caso, que os professores, desempenhem seu papel de acordo

com eles.

Nessa aula aqui focalizada, em “Abertura – Aquecimento”, já me referi à minha

não interferência na sobreposição dos banquinhos. E realmente me parece que se a

tivesse realizado, teria roubado a Gabriel essa oportunidade, e em parte esvaziado a

proposta perante todo o grupo. Além do mais, a atmosfera de envolvimento e atenção

que permeava o trabalho indicava que as coisas, de um modo ou de outro, iriam

acontecer. Afinal, era uma abertura, um aquecimento: momento de cada um se

perceber, conectar-se e manifestar-se a seu jeito e maneira; a seu tempo. Assim, essa

não-interferência custou-me apenas segurar um pouquinho a minha ansiedade. Um tipo

de ansiedade, de inquietação, que era só minha e não interessava nada aos alunos.

Por outro lado, um pouco mais tarde, no trecho denominado “Janelas”, Cacá faz

uma interferência bem clara, ao colocar uma regra de não poder se colocar as mãos nos

banquinhos; essa interferência provoca um desafio: e a sedução da transgressão coloca

as crianças ainda mais dentro da experiência, e não dela as afasta. Porém esse já era

um momento de outra natureza. O aquecimento se potencializara e se desdobrara, e

Cacá agira então de acordo: como um diretor de cena, dirigindo seus atores na

exploração de uma situação e de seus sentidos e significados latentes. Cena,

desdobramento, que acontecera por meio dos encontros e descobertas compartilhados

pelo grupo – as improvisações com os banquinhos, as brechas, as janelas, a canção... E

não por ele arbitrariamente inventada e apresentada às crianças.

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Assim, há a possibilidade de interferir ou não, de dirigir ou não: escolhas de

natureza diferente e que em uma pedagogia do encontro dizem respeito às

circunstâncias, às suas necessidades e potencialidades. Tudo depende do processo em

curso; é preciso que nos afinemos com ele; e então ele próprio pode nos orientar, ou

mesmo imperiosamente nos apontar as necessidades.

Não me parece que seja preciso escolher uma conduta permanente para evitar

mal entendidos ou o risco das crianças ficarem confusas... A alternância entre

experiências mais e menos dirigidas – evidentemente de maneira não aleatória, mas

sintonizada com o curso do processo - é muito importante e uma necessidade para as

crianças; e a pertinência de uma e outra pode ser intuída por um professor conectado.

Foi isso que me levou à proposta de “inventar e construir um lugar, qualquer

lugar...”, já relatada em “Intuição, inspiração, desejo: proposta”. Depois da silenciosa e

atenta “Abertura-Aquecimento” e da exploração poeticamente dirigida por Cacá em

“Janelas”, intuí que era uma necessidade acontecer um momento de máxima liberdade

possível, em que se dariam as construções e conversações entre eles.

Se algum desavisado visitante adentrasse pela nossa sala de aula em meio a

essas preparações, talvez achasse tudo uma confusão; ou nos perguntasse: “É tudo

sempre assim tão livre?”. Procurei pelos episódios anteriormente apresentados, permitir

ao leitor que tivesse uma ideia de outras aulas e acontecimentos do nosso percurso, das

construções do nosso processo. Mas de qualquer modo gostaria de registrar uma

resposta: não poderia acontecer com essa qualidade de liberdade se fosse sempre

assim! Além do que não se trataria mais de liberdade, e sim de repetição.

Um trabalho dessa natureza em andamento não significa para os professores

uma ocasião de estarem menos presentes. As crianças gostam e precisam se sentir

livres, mas acompanhadas. E sempre há muitas demandas; neste caso, pequenas

participações foram requisitadas tanto à dupla, quanto à nossa estagiária, Doda, para

prestar uma ou outra ajuda, dar um ou outro palpite. Às vezes fazer funcionar um zíper

que não fecha pode ser fundamental; ou uma sugestão tão simples como a que fiz a

Gabryela, de que poderia usar vários véus, incorporando isso à cena, pode tomar um

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vulto surpreendente: pois jamais poderia imaginar em que grau de requinte ela a

concretizaria.

Nesses momentos de montagem, com o processo criativo a todo vapor, nossos

palpites e sugestões se misturam aos das crianças; já tendo seu protagonismo

assegurado, eles se sentem à vontade em segui-los ou não, e nós, professores, à

vontade de nos manifestarmos. São momentos muito mais de interação do que de

interferência; momentos de flexibilidade dos papéis, em que nos relacionamos com eles

como parceiros de experiência.

Acredito que é mesmo impossível para um professor não interferir, nem dirigir,

nem interagir... Sua postura, seu olhar, mesmo sem que nada ele diga, já exercem, por

si e em si, uma interferência. Desse modo, talvez não haja trabalho assim tão livre; mas

certamente há trabalhos ou tempos do trabalho, mais ou menos dirigidos, com maior ou

menor grau de interferência ou de interação. No mais, sempre há a frase que me

parece poderia ser quase um lema para o professor-artista, não fosse destino dos lemas

se desgastarem irremediavelmente: liberdade e nunca o abandono!

Muitas vezes escutei comentários, e eu mesma já com isso me preocupei, de que

o uso da máquina fotográfica ou da filmadora poderia causar uma interferência negativa

sobre o trabalho, no sentido de provocar inibição ou artificialidade.

Embora por vezes haja situações em que se torna difícil e inconveniente manejá-

las, estes são instrumentos que incorporei à minha prática em sala de aula. Nessa “Uma

aula”, o meu olhar se deu frequentemente pelas suas lentes, e a minha figura foi por

esses apetrechos composta, agregando-se ao caderno de anotações, à flauta e a algum

instrumento de percussão – materiais que considero básicos e de primeira

necessidade... Entretanto, desde que comecei a fotografar e filmar regularmente,

minhas observações não confirmaram essa preocupação. Realmente pode haver

interferência, mas de uma ordem que não me parece negativa.

Os alunos incorporam a presença desses equipamentos com muita facilidade, e

não me parece que seu envolvimento no trabalho é por seu uso prejudicado. Talvez por

que nos dias de hoje esses apetrechos permeiem o cotidiano dos alunos de maneira

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corriqueira e abrangente. Assim, a excitação e o excesso de poses logo se esgotam e as

crianças passam a fazer o que tem de fazer - o fato de eu estar filmando ou

fotografando parece inclusive não diluir minha presença, pois se sentem à vontade em

fazer suas demandas pontuais, como me pedir ou perguntar alguma coisa ou mesmo

fazer um comentário.

Mas há muitos momentos em que interagem com a câmera, ou com o olhar por

trás de suas lentes. Uma interação que em certas ocasiões parece estimular

experiências - algumas dessas interações podem ser observadas no vídeo que

acompanha esse trabalho.

Em “Janelas”, há um pequeno detalhe que pode ser lido de várias maneiras.

Quando Sara brinca de levantar e abaixar, fazendo caretas e sinais para a câmera, ela

está fora da ação central - a exploração conduzida nesse momento por Cacá - em uma

experiência paralela. Pode-se ler esse pequeno detalhe como uma prova de que ela não

está prestando atenção no que deveria e que está se distraindo com a filmagem; ou

pode-se pensar com mais cuidado, que uma experiência não tem apenas um foco e não

acontece em apenas um plano. Sara está fora do primeiro plano, mas dentro da

proposta; e sua brincadeira é uma atuação que se dá no clima, dentro da experiência.

Há também as poses que as crianças fazem, de brincadeira, mas que além de

brincadeiras são também gestos de ensaio de personagens; como Gabryela em

“Intuição, inspiração, desejo: proposta”, que posa no cavalete-janela; e a dança dessa

mesma menina, que acontece durante a apresentação da cena “Na cabana”. Neste

caso, em um momento em que deixo de focalizar a cena da cabana, faço um passeio

com a câmera pela sala e capturo o olhar de Gabryela; ela sorri e imediatamente

começa a girar e a dançar. Não acredito que tenha sido essa dança uma exibição, muito

menos uma distração, pois bastou o roçar desse olhar para que ela a deflagrasse em

plena fluência. A minha percepção é de que Gabryela já estava à beira desse fluxo:

“Estar no movimento; o que nos revela essa ideia? Parece-nos que estar no movimento

é estar na imanência da dança, em um fluxo sem começo e sem fim, que se estende e

dura sem limitar-se. (...) Uma dança que brota na hora, instantânea, imediata; que

depende das interações do momento (...)” (Gouvêa, 2009).

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Nesses momentos de interação, é como se outro personagem permeasse o da

professora, e é entre ele e as crianças que ela acontece. E foi por meio desse

personagem, como uma espécie de camuflagem, que pude chegar muito perto e

enxergar e registrar situações, sem inibi-las - o que talvez fosse interditado à

professora.

Foi a ele que Igor se dirigiu, exclamando “Olaá! A nossa janela!”, satisfeito de

descobrir na cabana uma janela; foi o olhar desse personagem que pela lente da

filmadora penetrou no interior da cabana, flagrando o que acontecia lá dentro. E foi

também a filmadora que gravou a palavra de espanto de Thor, “Um jacaré!” - ao

descobrir como funcionava a queixada - que de outro modo teria se perdido para

sempre.

Tanto as interações de que participei no ato, quanto as observações dos

registros, interferiram fortemente no meu olhar de professora e de artista, ampliaram o

escopo da minha visão da experiência e enriqueceram o modo de perceber cada

criança. Detalhes de detalhes, mas que ao olhar cuidadoso fazem toda a diferença.

Com outra classe, não tão entrosada, talvez fosse necessário que as

interferências fossem maiores; por exemplo, que assessorássemos as relações entre as

crianças durante a preparação das cenas: em casos assim, em geral as crianças vêm

pedir ajuda diretamente, dizendo, por exemplo, que um colega “quer fazer tudo do jeito

dele”, ou que um outro “não quer fazer nada, só fica brincando...” E é bom lembrar que

uma mesma classe pode variar a sua dinâmica; às vezes, a falta de apenas um aluno, já

muda toda a configuração das relações do grupo nesse dia. Nessa aula haviam faltado

três crianças: não sei precisar quais ou de que tipo seriam as diferenças que

provocariam, mas que provocariam, provocariam...

A integração entre as crianças e a autonomia de um grupo é uma conquista,

fruto da vivência e do trabalho de todos os seus integrantes. No caso de uma turma em

uma escola como a EMIA, essa conquista também se beneficia das outras experiências

que os alunos já tiveram anteriormente. Alguns podem ter começado aos cinco, outros

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aos seis, ou aos sete anos – idades em que as crianças podem iniciar-se no curso

regular da escola. Em nossa classe, especificamente, uma parte dela havia tido sua

primeira experiência com a nossa dupla no ano anterior, numa turma de sete anos,

sendo que com exceção de apenas uma menina, todos os outros eram então novos na

escola. Esse núcleo que permaneceu conosco me parece ter contagiado o novo grupo,

no sentido de facilitar e incrementar a construção dos vínculos e repertórios.

O trabalho se mostra na tranquilidade com que escolheram os materiais, em

função da ideia com a qual estavam lidando - diferentemente de disputá-los pela

ansiedade da posse. Essa tranquilidade vem da familiaridade adquirida pelos tantos

exercícios e improvisações que realizamos e nos quais já os tinham manipulado: agem

como pessoas que já incorporaram um modo de entrar e sair do jogo, sabendo que

haverão outras oportunidades e outras experiências.

Em algumas turmas, apenas essa organização pode deflagrar conflitos,

requerendo tempo e uma coordenação cuidadosa por parte dos professores. A nossa

mesma dupla, no ano seguinte, em 2010, teve uma experiência extremamente

diferente, com alunos da mesma faixa etária. Nessa classe, a posse de um tambor era

ainda alvo de uma disputa acirrada depois de meses de trabalho. Essa é uma história

que infelizmente ficará para uma outra vez... Pois ainda tão fresca e recente, em mim

ainda apenas ressoa, não tendo encontrado tempo ou espaço propício para ser

analisada.

Mas aqui a tomo apenas como um exemplo pontual: a dinâmica dessa nossa

classe era complexa e instável e muitas vezes o nosso percurso atravessado – ou

mesmo atropelado... - por brigas e disputas de difícil encaminhamento. Foi um trabalho

que exigiu de nós muito empenho e reflexão, em especial em relação às intervenções,

que eram necessárias a todo momento, até mesmo durante o recreio. Humildemente

confesso que não foram as intervenções sempre as mais adequadas. Mas errando e

acertando fomos aprendendo, descobrindo os atalhos e alternativas.

E foi apenas no final do ano, após uma longa e insistente batalha, que veio enfim

alguma bonança: que pôde a experiência encontrar uma atmosfera que se sustentasse

tempo suficiente para sua plena instauração. Pois desde o início do ano, esse grupo

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mostrara-se muito criativo e breves momentos de alta inspiração haviam muitas vezes

riscado e iluminado o nosso horizonte; porém se desvaneciam rapidamente, às vezes

seguidos por situações tão contrastantes, que ficávamos em dúvida se os alunos de

alguma forma deles se haviam apercebido. Mas eram esses cometas que nos

animavam, e acredito que foram eles - percebidos, sim, pelas crianças – que

agregando-se à construção das relações e, muito importante nesse caso, de seus

limites, permitiram que o trabalho tomasse corpo.

Assim é feito o processo de aprendizagem e iniciação artística não só dos

acontecimentos que nos saltam aos olhos e à alma, mas também dos fragmentos e

pequenas realizações e aquisições; que vão se entrelaçando, conectando-se em rede,

embora de maneira nem sempre visível. Há que se confiar no tempo, na sedimentação

dos vínculos e da vivência e na potência de vida e conhecimento que pode emanar do

entrecruzamento dos campos da arte e da educação. Nas últimas aulas dessa turma,

criamos coletivamente um roteiro cênico-musical, ensaiamos e encerramos o ano com

uma apresentação: nessas últimas aulas as crianças, pela atenção, sutileza e precisão

da sua participação, nos devolveram todas as energias despendidas e muito mais.

Cada grupo trará seus desafios e exigirá da atuação dos professores nuances e

intensidades diferentes; e deixará rastros, sabores e emoções peculiares. Não se pode

negar que há configurações que exigem mais ou menos do professor; mas as

conquistas de um grupo trabalhoso terão um sabor especial; e mesmo um excelente

potencial, se não for cultivado, não se realizará.

Voltando à nossa classe de “Uma aula”, realmente tratava-se de um grupo de

muitas qualidades, mas também aconteceram conflitos, acidentes de percurso e mesmo

perdas... Pois o que pode uma professora fazer, além de muito lamentar, quando a mãe

de uma aluna como Gabryela declara, com muito pesar, que ela não poderá mais

frequentar a escola no segundo semestre?

Cada aluno compõe ou contrapõe a sua vivência na escola a outras experiências

e a outras instâncias da vida, conjugando - ou não - forças nem sempre paralelas.

Dessa composição, eu como professora posso participar, mas sem nenhuma

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prerrogativa de controle ou garantia. Quantas vezes já me surpreenderam mudanças de

percurso! Alunos muito envolvidos que desistem por questões familiares, por não haver

quem os leve às aulas, por problemas de aproveitamento na escola regular, problemas

econômicos... Por outro lado, podem haver casos em que apesar do apoio e empenho

familiar o próprio aluno muda o seu foco de interesse... Em todos esses momentos não

há espaço para a interferência de um professor.

Também não é desprovido de problemas o nosso ambiente-escola. Em relação

mesmo aos materiais, as dificuldades são muitas e há carência e falta de manutenção.

Muitas vezes sou pega de surpresa, quando tendo na ponta da língua uma atividade

que viria a calhar em determinado momento, o aparelho de som não funciona, ou não

há baquetas suficientes para todas as crianças, ou...

Dificuldades de ordem institucional também existem; não é o campo deste

trabalho analisar essas relações, mas entendo que me cabe apontar que as experiências

aqui narradas não se deram em uma escola ideal, de atmosfera idílica. Não é do mesmo

modo minha intenção comparar o dia a dia desta escola aqui focalizada com trincheiras

muito mais perigosas, como as de alguns projetos de cunho social, em que o trabalho

convive com uma quase impossibilidade. Ou com o pouco espaço e condições que são

oferecidos pela grande maioria das escolas regulares às aulas de arte, pouco

acolhedores à experiência da iniciação artística. Sei dessas situações, por tê-las vivido

na pele; e por observá-las ainda, atuando em outros papéis que não o de professora.

Quando falo das dificuldades da EMIA, a minha intenção é a de que o leitor possa

tomar contato com a consistência e concretude do território em que aconteceu esta

pesquisa. Pois está a sala de aula inserida em um contexto maior, não sendo suas

fronteiras impermeáveis; não é ela um abrigo protegido de qualquer interferência. Em

nosso dia a dia há muitas e variadas interferências que estimulam e ampliam o nosso

trabalho. Mas também há muitas dificuldades, entraves, desgastes; interferências que

podem despotencializar e empobrecer a ação do professor.

Não, não será nunca uma sala de aula um forte inabalável; mas pode ser um

ambiente, um teto, um abrigo; reconstruído e reafirmado a toda vez como um bom

lugar para ser habitado.

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Transitar entre o rigor e a liberdade, sem seguir procedimentos pré-

determinados, no plano do real e não do ideal, percebendo os alunos e as circunstâncias

e fazendo escolhas, construindo e reconstruindo a experiência, é uma atitude radical; e

muito diferente de entregar-se às circunstâncias de maneira passiva e displicente.

E reforço o que já foi escrito no início desse capítulo: tudo começa pela qualidade

da presença do professor. E pela sua disponibilidade. Pois estar a postos, para apoiar e

acompanhar as crianças em suas criações pode e deve ser a coisa mais importante do

mundo. É essencial que percebam que estamos lá, com elas, para o que der e vier.

Um par

Já tendo se introduzido anteriormente, pede novamente sobre si um foco, uma

figura importante; cuja atuação foi decisiva para que os eventos se dessem... da

maneira como se deram! Chamo então a atenção do leitor para o fato de que além dos

personagens já apresentados – uma professora de música, um de teatro, a estagiária e

os alunos, estava em ação na cena dessa “Uma aula” a dupla de professores,

configurada ela própria como um personagem.

Realmente há que se dizer que esse elenco parece se complexizar: pois já não

bastasse haver esse tal de professor-artista, dos quais se apresentam dois exemplares,

ainda há a dupla! Sem contar que há também a que aqui se arvora em pesquisadora-

narradora. Afinal: quantos são os personagens? Entretanto, em cena tudo é possível! E

todos os personagens, obedecendo a essa outra lógica e sentido, a lógica e o sentido da

cena desta sala, nessa aula, pareciam saber muito bem o que fazer e o que dizer.

Sobre a dupla, retomo a ideia já apontada em “A Grande Brincadeira”, de que é

aos poucos, alimentada pelo tempo, pela convivência e pelo próprio processo de

trabalho, que ela vai se forjando, criando forma, vida e ritmo próprios... E até uma certa

autonomia em relação a cada um dos indivíduos, exigindo para si mesma o status de

personagem. Não há como ignorá-lo, embora não seja visível: sua influência é sutil e

poderosa; sua configuração depende da confiança, generosidade e flexibilidade entre

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seus integrantes; e é essencial que estes compartilhem da mesma natureza de

compromisso com os alunos e com o trabalho.

Tem uma propriedade inerente a toda composição: não resulta da simples soma

de suas partes; e uma delas sozinha não representa metade do todo. Mas na mais feliz

das configurações, em momentos de atuação plena, potencializará as melhores

qualidades e peculiaridades de cada um dos indivíduos. Talvez ocorra em seu processo

algum tipo de química, ou alquimia - mas afinal, todo personagem que se preza é

assim, complexo e rico em nuances: sempre se comporá de camadas, sobreposições e

se mostrará capaz de inúmeros desdobramentos.

A pedagogia do encontro já é assim provocada pelo encontro dos dois

professores: entre a bagagem, o repertório, as prioridades em relação aos conteúdos e

objetivos, o ritmo e a dinâmica, as intenções e desejos de cada um...

Tudo o que foi dito sobre a qualidade da presença do professor e sua

disponibilidade em relação à experiência e às crianças, deve se estender ao modo como

ele se relaciona com o seu parceiro e a como o acompanha em suas ações. Se

tomarmos como exemplo o andamento de uma proposta, como um cúmplice, mesmo

nos momentos em que possa ter o colega um papel preponderante, é preciso estar

sintonizado - nada pode esvaziar mais a condução de uma proposta e afastá-la de se

potencializar em experiência, do que um parceiro displicente ou distraído.

A todo o momento pode haver a necessidade de uma ação de apoio - no cuidado

com uma criança, ou alguma questão referente aos materiais. Além disso, a participação

tanto efetiva, realizando a proposta junto com as crianças, quanto por meio de uma

observação ativa, alimentam a proposta em curso e nos abrem muitas perspectivas em

relação ao trabalho de integração entre as linguagens.

É a experiência que proporcionará aos professores as oportunidades de interação

e parceria. Não há como se apegar ao que individualmente se planejou de modo estrito:

há que se compor com o colega. Desse modo, trabalhar efetivamente em dupla, será

uma missão impossível para um professor que siga um método único e linear, a ser

executado por um planejamento irrevogável.

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Isso não quer dizer que não se faça nenhum planejamento. Na “Carta de

navegação” me referi à necessidade de que para navegar por um mar de possibilidades,

é preciso traçar, retraçar e revalidar a todo instante entre os viajantes um plano

conjunto, composto e variável, que não se limita ao trajeto de um percurso de um

ponto a outro. Assim, a dupla deve compor um plano de navegação amplo e aberto;

plano que remeta aos princípios, ideias e intenções mais caras a cada um. E poderá a

partir daí traçar e retraçar, segundo o seu jeito e feição, suas ações e suas rotas. Pode-

se trabalhar ou não com projetos temáticos, pode-se planejar mais ou planejar menos,

pensar aula a aula, ou pensar períodos mais longos... O importante é haver

comunicação constante entre os parceiros: trocar impressões, sugestões, preocupações,

compartilhar os registros... Tudo são conversas: do grande plano até as combinações

corriqueiras e necessárias do dia a dia.

Cacá e eu, por exemplo, gostamos de desenhar intenções e movimentos amplos.

Não fazemos planejamentos detalhados, mas conversamos muito para comentar as

aulas e combinar propostas. Em nossas conversas não separamos o nosso pensamento

sobre arte e criação da nossa vivência como professores; conversamos realmente como

artistas e professores.

Conto essa nossa peculiaridade apenas para ressaltar a importância da troca

entre os parceiros, já que não pretendo de modo algum colocar essa nossa dinâmica

como um paradigma; trata-se de um componente do nosso estilo. De fato percebo por

muitos ângulos que nossa dupla adquiriu o que talvez se possa denominar de um certo

estilo.

Por exemplo, na leitura de nossos planejamentos, relatórios e avaliações das

crianças; uma produção que é inegavelmente dos dois, pois nenhum de nós

concatenaria as ideias daquele modo, nem faria a mesma leitura do processo e de cada

criança senão pela parceria com o outro. O mesmo acontece na construção e condução

do processo com os alunos.

Esse terceiro personagem, a dupla, não provoca, entretanto, o desaparecimento

dos indivíduos como tal; pois depende de que cada um de seus componentes se

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arrisque, se coloque em campo, criando oportunidades para que se dêem as alianças e

encontros pelos quais tal personagem se configura.

Esse plano conjunto e aberto a ser construído pelos parceiros é que torna

possível aos professores cultivar em sala de aula um campo-ambiente seguro e propício

à experiência estética das crianças. Orientadas por ele, nossas ações com as crianças

serão potencializadas por um sentido comum, independente tanto da área de

conhecimento como da personalidade e peculiaridades de cada um dos professores. E é

essa cumplicidade em relação a ele, é a percepção de compartilhar ideias e princípios

amplos, que me parece propiciar o fundamento para a relação de confiança mútua em

que se baseia a dupla.

Isso não implica em que precisemos estar sempre de acordo; e pelo que tenho

observado, as crianças não se assustam tão facilmente com as discordâncias e

diferenças - desde que elas se remetam à realidade presente e ao trabalho que estamos

construindo; ou seja, ao contexto que conhecem e no qual se sentem inseridas. Assim,

de nada adianta aparentar que estamos junto do colega, quando na verdade estamos

alheios, apartados de sua ação, ou guardando uma crítica silenciosa. Não há atmosfera

ou experiência que se sustente dessa maneira... Não serão as pequenas diferenças de

opinião e alguns acidentes de percurso que comprometerão o trabalho que está sendo

construído. Os vínculos que se tecem num processo dessa natureza, entre os parceiros

e os alunos, são poderosos e podem resistir aos desvios e até mesmo a certas

decepções; e suportar inclusive algum fracasso.

Houve uma aula no mês de outubro, em que um conflito entre a nossa dupla

atravessou a classe. No curso de uma proposta que não estava fluindo muito bem, não

conseguimos compor nossas diferenças e expectativas. E fosse por que fosse, pois as

circunstâncias e incógnitas das questões não são sempre favoráveis, esse conflito vazou

para o grupo. A aula prosseguiu, e mais tarde fomos para o recreio; quando fui chamá-

los para retomarmos – e confesso que estava bastante contrafeita, esforçando-me para

não parecer aborrecida - um dos nossos alunos se aproximou e disse que entendia o

que tinha acontecido e que estava tudo bem; que seus pais também brigavam, apesar

de se amarem muito... Outro se juntou à conversa e num tom maduro e paternal disse

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que eu não precisava ficar preocupada; que ele já tinha ido conversar com Cacá, e que

estava tudo resolvido. Nós professores simplesmente nos rendemos: voltamos para a

segunda parte da aula totalmente recuperados, por termos sido tão bem cuidados por

nossos alunos.

Não, não são todas as aulas iluminadas, e nem cumprem todas uma curva

perfeita e redonda; nem sempre a experiência nos visita, nos enchendo de alegria e

pacificando nossas inquietações. Às vezes, nós professores, mesmo os mais experientes,

erramos a mão; pois nem sempre estamos em condições de estar tão disponíveis e

antenados como gostaríamos. Nesses momentos de incerteza a afirmação da parceria é

fundamental; pois o que paralisa a interação em uma dupla não são as dificuldades,

mas a falta de confiança.

Como parceiros, envolvidos em uma pedagogia tocada pelo encontro, podemos

ter a flexibilidade de ajudar um ao outro, na correção de um curso equivocado, ou

fazendo uma variação em cima de uma proposta que não deu muito certo. Se os

parceiros se mantêm em sintonia e em movimento, a atmosfera se recompõe, pois é

pródiga e generosa em sua capacidade de regenerar-se.

Tenho assim observado que entre a dupla podem haver diferenças que acabam

por se mostrar muito menos importantes do que à primeira vista aparentam ser. Por

exemplo, em várias ocasiões me causou estranhamento o encaminhamento que um

parceiro tomou a iniciativa de dar a um exercício em que estávamos ambos envolvidos,

por fazê-lo de modo bastante diferente daquele que eu imaginava. Entretanto, coisas

muito interessantes acabavam também por acontecer; e fui aprendendo que são muitos

e variáveis os caminhos dos encontros e da experiência. Assim, trabalhar em dupla para

valer, provoca e exige de seus integrantes o desapego de suas pequenas certezas e de

suas pequenas vontades.

Será a sala de aula o lugar do possível, e não o do idealizado - do que nunca se

concretiza satisfatoriamente - no qual os alunos, confrontados com um modelo, estão

sempre aquém do desejado: “Eles’’ – (os alunos) – “não se esforçam”, “não se

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comprometem”, “não tem nenhum talento...” etc., etc... repete em ladainha o

onipotente e cansado professor, que fará (talvez...) melhor juízo de poucos eleitos.

Nesse lugar do real, compomos com as diferenças e somos convocados a

vivenciar como se fazem os processos: de muitas, variadas maneiras, sem depender de

uma única via, pelas trilhas, atalhos ou desvios - de maneira rizomática:25

Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o decalque.(...) Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no real.(...) O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. (...) Um mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre “ao mesmo”. Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma presumida “competência”. (DELEUZE e GUATTARI, 1995: 22)

Voltando ao exercício com os banquinhos, não importa quantas vezes Cacá e eu

já tenhamos, também em outras turmas, trabalhado com eles ou com suas primas: as

cadeiras de plástico. Nem importa que isso também seja decorrência de uma certa

carência de materiais. A cada performance são reinventados, pois “Qualquer coisa,

qualquer coisa, qualquer coisa pode servir de motivo para a criação artística. Este é um

quase um mantra repetido incansavelmente...” diz-nos Ana Angélica Albano sobre o

modo da artista Anna Marie Holm conduzir suas aulas com as crianças (ALBANO apud

HOLM, 2005: 8).

Do mesmo modo, um simples exercício pode apontar múltiplas possibilidades e

conduzir a aula por direções insuspeitadas. No dia da aula aqui focalizada, Cacá me

telefonara de manhã me dizendo de suas intenções para aquela tarde. Ele tinha em

mente uma proposta por meio da qual estaríamos propiciando a vivência das quatro

linguagens – a música, o teatro, a dança e a plástica – de maneira integrada. Pensamos

juntos algumas estratégias... que não se concretizaram em absoluto. Muito curioso foi

25 O Rizoma, conceito de autoria de Deleuze e Guattari, atuou fortemente nas ideias desenvolvidas nesta dissertação. Ver “Introdução: Rizoma”, in DELEUZE e GUATTARI. Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia. v. 1. Rio de Janeiro: ed34, p. 11-37; “Deslocamentos. Deleuze e a Educação”, in GALLO, Sílvio. Deleuze e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

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que a aula cumpriu rigorosamente a nossa intenção, mas por um caminho

completamente diferente.

Essa aula quase que tomou vida própria – pois como foram os banquinhos se

empilhar e criar frestas e janelas e atrair uma canção? E como foram as clavas – que

são como os banquinhos, sempre acessíveis a serem reinventadas pela sua extrema

simplicidade – que eu trouxera planejando uma improvisação musical, ao invés de

serem tocadas, virar peixes-palito na pescaria?

Mas foi o que aconteceu quando os banquinhos desdobraram o aquecimento em

acontecimento! Velas infladas há que se aproveitar os ventos! E os ventos nos lançaram

na experiência mais que de integração, de indiscernibilidade entre linguagens.

Assim, o processo criativo sempre encontra com o que e do que inventar. Em

nosso caso, sempre poderemos contar com os banquinhos. Pois até agora, sempre que

a eles voltamos, com singeleza se oferecem às nossas novas variações. Valorosamente

os banquinhos se apresentam, e, em ação, criamos todos juntos uma nova, novíssima

versão de “Banquinhos, um clássico!”.

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De outras parcerias

Penso que as cenas das crianças nessa “Uma aula” não teriam a mesma

qualidade de expressão e de interação entre os parceiros, se nós, professores,

interferíssemos na organização dos grupos. São também parcerias e que também não

se tecem em um só dia.

Haverá situações em que o professor considere necessário agir de outra maneira,

e assim deverá fazê-lo. Mas em geral me parece que as crianças distinguem e transitam

bem entre as situações em que podem eleger suas afinidades, os momentos em que

devem interagir com qualquer um dos colegas – quando numa atividade em que isso faz

parte do jogo - e os tempos coletivos. Proporcionar a eles a vivência dessas diferentes

instâncias de interação e colaboração pode ser uma direção interessante para o

professor; dinâmicas que proporcionem que o grupo todo acabe por se conectar, sem

que seja preciso forçar parcerias.

Voltando à cena de “Uma aula”, tomo Raíssa e Gabryela como exemplo. Muitas

vezes se escolheram e trabalharam juntas; e se alguma vez me preocupei em que

Gabryela, tão exuberante, pudesse se impor à Raíssa, ter observado tanto a armação da

cena quanto a criação das duas me assegurou de que se tratava mesmo de uma boa e

profícua parceria para ambas. Na preparação, se dá uma verdadeira negociação, em

que Raíssa banca sua decisão de tocar a cítara, e somente a cítara. Na apresentação,

brilha a bailarina – mesmo porque será sempre uma tarefa quase inalcançável para um

músico competir em brilhantismo com tal personagem...

Mas a música não está a serviço, se atendo a apenas descrever ou acompanhar

os movimentos dessa bailarina; ela acontece, ao mesmo tempo em que conectada com

a dança, como um acontecimento em si. Uma sustenta e influencia a outra: música e

dança, Raíssa e Gabryela; mas cada uma em seu movimento próprio. Por não ser uma

linguagem um carro chefe a liderar as outras, por não haver preponderância nem

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submissão de uma sobre outra, pôde nessa pequena criação resplandecer a sua

integração.

E nossa musicista consegue, pelo modo como toca a cítara, ou harpinha – e que

mais me lembra é mesmo um saltério26 - transmutar esse arremedo de instrumento e

sua desafinação em instrumento e afinação exóticos, provocando uma aura de

estranheza e mistério. Também se trata da parceria de Raíssa com esse instrumento –

que em outras aulas voltariam a se procurar, até o final do ano. Aqui também não há

motivo para nenhuma preocupação: não é um caso de obsessão ou teimosia; pois em

outubro, quando pesquisamos o interesse e intenção dos alunos no estudo de um

instrumento específico, Raíssa muito decidida e animada escolheu a flauta doce.

A uma outra parceria gostaria de me referir: a de Sara e Ana Luiza, que atuam na

cena “As irmãs”. Essas duas meninas, que foram colegas por dois anos, também muitas

vezes se procuraram, quase sempre para fazer um teatro. Por personagens dramáticos

e histórias mirabolantes, viviam intensamente o jogo dramático, em que muitas coisas

aconteciam; um jogo sem início nem fim, sempre a se fazer e a se transformar. Quando

os colegas posteriormente comentavam que não tinham entendido nada, elas

prontamente se punham a explicar e a contar histórias extremamente minuciosas,

narrativas pela quais os companheiros logo se desinteressavam - o que também parecia

não as incomodar em absoluto.

Nesse texto, me dispus a dar visibilidade à história da cena “As irmãs”. Vi e revi a

filmagem, consultei minhas anotações, e até mesmo indaguei das autoras. Talvez não

fosse necessário; talvez o jogo se cumpra pela própria vivência, que é a sua vocação, e

não caiba tentar decifrá-lo. Mas o fato é que, movida pela curiosidade, tentada a

penetrar nesse pequeno universo, acabei por me surpreender e a me interessar

realmente pela história e tive prazer em desvendá-la. Não poderia imaginar em quantos

26 Saltério, psaltério, citar ou dulcimer - instrumento de cordas dedilhadas muito antigo e frequentemente utilizado na música tradicional da Ásia e Europa. Na Europa foi também empregado no contexto da música erudita e de salão durante o século XVIII. Trazido pelos portugueses, seu uso foi muito difundido no Brasil durante o período colonial. (Fonte: Uma tablatura para saltério do séc. XIX; BUDASZ, Rogério. Revista Eletrônica de Musicologia, Departamento de Artes da UFPr. Vol. 1.1/Setembro de 1996).

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afetos e em que poderosos jogos de forças estavam envolvidas as minhas alunas!

Certamente esse exercício enriqueceu a minha compreensão desse jogo dramático e do

quanto estava distante de um corre-corre descompromissado, de uma confusão sem

nenhum sentido.

E me apontou também como em um mesmo grupo as crianças se diferenciam e

buscam viver o que lhes é necessário. Sara e Ana Luiza estavam interessadas em uma

experiência de natureza autorreferente, que não tende a se lançar e se projetar para

fora; e que produz um jogo que para ser compreendido pelo outro necessita ser

decifrado. Entretanto, elas participavam com grande interesse e disponibilidade de todas

as demais atividades - de caráter e natureza bem diversos - contribuindo muito com o

grupo e interagindo com todos os colegas de maneira muito criativa, estabelecendo

outras parcerias, afeitas a outros encaminhamentos. Mas, havendo uma oportunidade,

escapava essa dupla para o fluxo do jogo.

E fiquei então a me perguntar: o que seria da necessidade de tal vivência, se não

lhes fosse permitida? Não pretendo dramatizar essa questão, ou colocar a nossa sala de

aula como espaço único de experimentação; provavelmente encontrariam outros modos

de experimentá-la, como uma criança que não frequente uma escola de arte.

Mas, do que será feita a vida de uma sala de aula em uma escola de arte, senão

das forças que atravessam a vida e o imaginário de seus alunos? Processos não

lineares, não controláveis, em permanente transformação – devires: deles se faz a

iniciação artística.

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Da composição do professor-artista

Estar o professor dentro da experiência não compromete a abrangência de sua

percepção - pelo contrário, a experiência o deixa mais acordado. Embora em um estado

de suspensão em relação à realidade cotidiana, com nitidez percebe o grupo e a cada

criança. Nesse sentido, estar envolvido, viver o deslocamento do plano que o senso

comum designa como real, proporcionado pela experiência estética, não acarreta para o

professor alienar-se de seu papel. Mas, pelo contrário, vivê-lo em sua potencialidade,

disponível a viver a experiência, a “Colocar-se fora de si e fora do mundo (...)” (LEVY,

2003: 32), junto das crianças. Procurando incrementar e sustentar uma atmosfera

propícia a que elas possam “(...) inaugurar uma experiência em que as coisas não são

ainda” (Ibid., 32), em que por gestos e proposições sonoras, corporais ou plásticas,

descolados da reprodução mecânica de modelos e representações, experimentem o

movimento da criação.

E o olhar do professor adquire ainda uma outra qualidade, que é apenas

aparentemente paradoxal: a neutralidade – no sentido de que ao perceber a cada

criança, tocado por esse frescor do ineditismo, esse olhar se dá liberto de preconceitos

e expectativas preconcebidas: um olhar que se dispõe e convida ao encontro. E é por

essa neutralidade prenhe de cumplicidade que o professor pode proporcionar à criança

uma real oportunidade de se reinventar.

Isso não significa uma carga ou um esforço extra; mas sim, abandonar a carga e

fazer menos esforço. O que valerá tanto para o professor como para o aluno, já que

todos ficam desincumbidos desse peso: por exemplo, fica livre aquele aluno

especialmente criativo de sempre ter de arrasar; tomando um outro exemplo, fica livre o

professor de ter de lidar, de modo mais ou menos resignado, ou abnegado, com as

dificuldades daquele aluno tão difícil, ou com tantos problemas, e que sempre contribui

tão pouco.

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Evidentemente, não é que o professor atento se esqueça do percurso do aluno,

ou que se aliene das dificuldades e conquistas de cada um. Apenas se trata de observá-

lo à luz do presente, e não à sombra do passado...27

Desse modo, ao se envolver e se comprometer com uma pedagogia do encontro,

que se alimenta dessa qualidade de experiência, o professor-artista potencializa

simultaneamente seus dois campos de atuação: o pedagógico e o artístico. Como na

imagem à qual já recorremos nessa dissertação, em Espaço de Escher , em movimento

e fluxo, um campo se põe a desenhar o outro.

É encarnando esse personagem, o do professor-artista, que poderá o artista

estender a experiência da criação à sala de aula – não a da sua criação própria, a ser

viabilizada através das crianças, mas a da criação das crianças; a qual vive e na qual

participa, provocada por aquele encontro, entre aqueles personagens e naquelas

circunstâncias. Envolvido e permeado por sua área de conhecimento e linguagem, é ele

que atentará aos seus sinais e possibilidades de desenvolvimento. É a sua investidura

como artista que pode provocar com que esse desenvolvimento possa se dar deslocado

do senso comum. Mas é o professor que como mestre dos encontros, poderá mediar

as relações, introduzir e conduzir as propostas e os conteúdos e estimular as conexões -

pontuando as suas interferências de acordo com o percurso de cada criança e do grupo.

Porém, mais uma vez ressalto que não se trata de se desenvolver uma dupla

personalidade, em que uma hora se é artista, para logo depois deixá-lo de lado e

assumir o professor. Permeado por ambos, transita o professor-artista no cruzamento

dos planos da arte e da educação; e não só pode como deve se movimentar entre

dimensões.

São muitas e variadas as demandas de um professor: algumas são concretas e

pontuais, como uma queixa, um pedido... Outras nos acompanham durante todo o

período letivo, como a observação das particularidades de cada criança e a avaliação

contínua de como está se dando o seu desenvolvimento. Há também a construção do 27 Passagem inspirada pela leitura de Krishnamurti: “O experenciador jamais consegue entender o todo. O experenciador é o acumulado, e não há entendimento à sombra do passado” (KRISHNAMURTI, 2007: 56).

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grupo como tal, o cultivo dos vínculos, a intermediação dos conflitos, a mediação das

relações dos alunos com a escola (os eventos, a orientação em relação a outras

atividades), as nossas relações com os pais... Além de todas as questões próprias das

linguagens abordadas. Não considero, porém, que sejam essas demandas

independentes umas das outras: tudo importa, tudo são cuidados a se entrelaçar, a

tecer uma rede de sustentação da experiência e da aprendizagem; o que não impede

que possam acontecer situações de conflito, como quando uma atmosfera

cuidadosamente cultivada pelos professores e pelo grupo se rompe, por alguém se

machucar, ou por acontecer uma briga quando menos se espera.

Evidentemente não é minha intenção desenhar um modelo de professor-artista.

Lidando e convivendo com essa questão há muito tempo, por trabalhar na EMIA, onde

esta é uma questão de fundo, frequentemente abordada, e também por ter tido a

oportunidade de observar como ela é encarada em outros ambientes de trabalho, já

escutei muitas opiniões e tentativas de definição sobre o que ele é ou deveria ser.

Uma ideia que sempre me pareceu interessante e abrangente é a de que se trata

de um professor que mantém uma relação de envolvimento e criação com a própria

linguagem que ensina.

Mas as perguntas continuam, em torno do que definiria essa qualidade de

relação: seria o fato desse professor se apresentar em público? Ou, no caso dos artistas

plásticos, participar de exposições? Seria aquele que tem uma carreira? Ou, será que

vale ter se apresentado, ou ter tido uma carreira?

Embora sejam essas questões pertinentes, já que estimulam discussões

instigantes, elas tendem a se esgotar. Pois podem haver opiniões e opiniões, que

podem ser as mais diversas – mas será infrutífero tentar elaborar alguma prescrição

segundo a qual se possa avaliar se um professor pode ser qualificado nessa categoria

ou não.

O mesmo raciocínio se poderia aplicar em relação às questões pedagógicas, o

que é em geral menos discutido: o quão versado pedagogicamente necessitaria ele ser?

Pois embora a ideia que aponta a importância do envolvimento e da relação criativa

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com as linguagens artísticas seja realmente interessante, ela dá conta de apenas uma

face do problema.

Não há receita, nem alguma proporção pré-estabelecida - do quanto de artista e

do quanto de educador há que se utilizar nessa composição... Mas com certeza ambos

tem de estar presentes. E me parece se tratar mesmo de uma composição: da

composição de um personagem. Na qual toda a história de vida e formação, todas as

afinidades e mesmo paixões estéticas, toda a vivência artística e pedagógica serão

influentes, estarão presentes, compondo uma espécie de estilo do professor. Assim

como a sua própria concepção de arte; e as suas concepções sobre educação e infância.

Muito importante é atentar que não é, nem deve ser de modo algum, uma

questão de imprimir esse estilo à produção dos alunos. Mas de perceber, por outro lado,

que o trabalho do grupo não acontece apartado dele, pois é impossível para o professor

dele se ausentar completamente: o estilo o acompanha, embora de maneira

desapegada, flexível; como se esse estilo fosse colocado em suspensão, disponível à

transformação. De outro modo, além da tendência à rigidez e ao engessamento, ficaria

muito difícil acolher e se relacionar com o repertório dos alunos e com as suas

invenções, como também com o professor parceiro. No caso da dupla, poderá se

produzir uma espécie de composição entre os estilos de cada um – composição que terá

a marca, o gesto de cada professor, desdobrado em um outro.

Desse modo, as composições dos personagens professores-artistas serão as mais

variadas. O que é imprescindível, ou o que lhes confere tal qualidade é que atuem no

entrecruzamento dos campos da arte e da educação, sensíveis a ambos os campos,

tocados por ambos, pelos seus gestos, seus signos, sua prática, e pelas possibilidades

de conexão e reflexão suscitadas por esse entrecruzamento.

Um exercício contribuiu para a intensificação dessa ideia: uma analogia que

ensaiei, entre o professor-artista e o filósofo da educação - este último tomado no

sentido apresentado por Gallo (GALLO, 2008: 54-59). Sobre esse personagem ele diz:

“O filósofo da educação deve ter intimidade com os problemas educacionais, sentir-se

tocado por eles, senti-los na pele; isso não significa que ele deva necessariamente ser

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íntimo da doxografia educacional – o conjunto de opiniões sobre educação – (...)”

(Ibid., 57).

Essa analogia certamente não pretende comparar a natureza da iniciação

artística, ou a arte-educação com a filosofia da educação, nem os seus personagens; o

que me interessou foi o entrecruzamento de planos diferentes com a educação. Gallo

também nos aponta que “Uma filosofia da educação, nesta perspectiva, seria resultado

de uma dupla instauração, de um duplo corte: o rasgo no caos operado pela filosofia e

o rasgo no caos operado pela educação. Ela seria resultante de um cruzamento de

planos: (...)” (Ibid., 57).

Ao experimentar um deslocamento da filosofia para a arte, encontro uma ideia

potente e inspiradora em relação ao campo de seu ensino.

Se nos reportarmos ao contexto geral do ensino da arte, encontraremos termos

diversos a denominar o profissional que a ele se dedica: há o professor de arte (de

música, de teatro...), o arte-educador, o professor-artista (ou artista-professor), o

artista-orientador, e ainda o oficineiro. Mais variados ainda são os territórios de atuação

destes profissionais: pois há as escolas regulares , os projetos de cunho social, as

escolas de arte... Não é o objetivo deste trabalho empreender uma discussão tão

abrangente. Mas embora essa pesquisa se reporte a um ambiente bastante peculiar e

de certo modo privilegiado – uma escola de arte, em que se trabalha sempre em

parceria com um professor de outra linguagem, com grande liberdade em relação à

condução das propostas e conteúdos – me parece que o professor-artista, de acordo

com a abordagem aqui discutida, pode influir e atuar em todos esses diferentes

personagens e territórios.

Muitos e diferentes serão os desafios e as dificuldades e haverá ambientes em

que parecerão quase instransponíveis. Muitas serão também as variações na

composição desse personagem. Mas ao encarná-lo, mesmo por lampejos, por breves

momentos, poderá o professor possibilitar aos alunos e a si mesmo a referência dessa

qualidade de experiência que se faz como artística e pedagógica por sua própria

natureza; e saberão os alunos, saberá o professor, que outros encontros e

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acontecimentos poderão vir a ocorrer. E que há de se estar atento a qualquer

oportunidade.

Cada professor cria, compõe e recompõe o seu modo de ser e atuar como

professor-artista. Exercê-lo não significa necessariamente se apresentar como artista -

ou apresentar a sua obra - para os alunos, embora isso possa ser muito rico e

estimulante para as crianças, como também para o professor. Não é um valor em si,

nada garante; mas será um ingrediente saboroso, que pode abrir o apetite dos alunos,

como parte de todo um processo.

Do mesmo modo, a vivência e produção artística própria por si e em si nada

atestam. Mas certamente se farão influentes, colorindo, refinando e potencializando a

observação e atuação do professor-artista encarnado como tal. De que tipo, grau e

frequência? Impossível recomendar ou determinar. E poderá ainda ser mais ou menos

próxima da sua prática como professor, estar ou não diretamente mesclada ao seu fazer

e pensar pedagógico.

Mas que tal personagem necessita defrontar-se com desafios, me parece uma

certeza: para que neles se possa lançar, perder-se e reencontrar-se muitas vezes.

Renovando e recriando sua relação e sua paixão pela área - ou, pelas áreas artísticas -

que elegeu como seu campo-casa-território. A serem por ele ocupados e reocupados.

Cultivados.

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Entre acontecimento e pensamento De volta para o futuro

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Entre acontecimento e pensamento

De volta para o futuro

Como artistas no palco, nós professores não podemos parar para pensar.

Necessitamos fazer escolhas e tomar decisões de modo muito rápido, conjugando

nossos saberes à percepção que temos da situação e das forças em movimento.

Mas revisitando as percepções e sensações vividas podemos refletir, recolhendo e

ampliando as observações. E nos reportando tanto aos dias em que tudo deu certo, e a

aula se deu no fluxo da experiência, como também a aqueles em que nada pareceu se

encaixar, nos perguntamos: por que ou como isso aconteceu?

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Não são essas respostas simples. A essa aula aqui narrada voltei inúmeras vezes,

por meio da troca de ideias com os parceiros de experiência, da minha memória e dos

registros realizados. Talvez fosse suficiente ter vivido a experiência. Talvez eu logo

pudesse ter levantado com relativa facilidade algumas hipóteses satisfatórias – porém,

não só comprometida como mesmo contaminada pela personagem pesquisadora, não

restou à professora-artista outra alternativa, além de debruçar-se sobre os registros e

envolver-se nos esforços de composição das ideias. Estimulada por toda a vivência

proporcionada pelo processo da pós-graduação, principalmente pelas interlocuções -

com os autores, professores e colegas.

Os registros fotográficos e de vídeo, entrelaçados com as anotações do caderno

de campo, possibilitaram-me compor sequências e mesmo proposições de narrativas

visuais e audiovisuais. Ao compartilhá-las, recria-se no presente essa aula e amplia-se o

âmbito da interlocução.

Surpreendo-me sempre com os sentidos que são produzidos pelo interlocutor -

pois mesmo quando até bastante afinados com as minhas expectativas, já os percebo

transformados pelo olhar do outro: “Parto da ideia que tanto imagens como palavras

não encerram verdades únicas. É nossa mirada, circunstancialmente constituída de

contextualidade, intenções e experiências diversas, que lhes atribui sentidos e as

atualiza. E então, parece já não haver mais passado nas imagens fotográficas.”

(GIANELLA, 2009: 21).

Esse processo tem me alimentado e proporcionado novas descobertas. O que não

significa, porém, que tenha um caráter necessariamente apaziguador. Pelo contrário:

por meio dele essa aula, que já me afetara em seu próprio acontecimento, a cada vez

revisitada tanto pelo material editado como em novas prospecções do material bruto se

reatualiza e volta a me afetar - como que, de certa forma, acontecendo de novo.

“Como é possível que eu ainda não tivesse percebido isso?”, é o que muitas

vezes me pergunto – ao capturar um olhar, um gesto ou uma frase que venham a me

provocar a perspectiva de uma nova análise. Sofrem assim as reflexões que tenho

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empreendido um deslocamento e novos ângulos e perspectivas de pensamento são

vislumbrados, impedindo que se resolvam tais reflexões em conclusões definitivas.

Tudo isso me anima, pelas riquezas anunciadas, ao mesmo tempo em que me

desassossega. Entre as miríades de detalhes percebidos e de esboços de ideias em

movimento, como tecer um pensamento?

Entre o acontecimento e o pensamento não há continuidade – mas suspensão,

pois vivencia-se um espaço entre: entre tempos, lugares, dimensões... Chamou-me a

atenção o fato de que logo ao término dessa aula, nós, os participantes, não fizéssemos

comentários muito articulados, como se resistíssemos à concatenação de ideias de

maneira lógica. Mais uma vez, me reporto à minha experiência como artista e aproximo

esse acontecimento em sala de aula daquele vivido no palco: quando após uma

apresentação significativa, não sabe bem o artista o que fazer... Pois não é hora de

analisar a performance ou de planejar caminhos futuros. Há o ritual dos cumprimentos;

a ressonância do episódio; a celebração entre os companheiros; os flashes dos

momentos vividos que a própria memória internamente dispara. Isso tudo talvez baste

para que ele possa atravessar esse intervalo e retomar o ritmo e densidade do tempo

cotidiano. Até que ideias envolvendo novos projetos venham a assaltá-lo.

Quando o acontecimento atravessa a minha prática como professora, as coisas se

dão do mesmo modo, e também são as sensações que primeiro me ocupam. Deleite e

estranhamento se misturam, expressados por gestos e palavras pronunciadas com

ênfase, entre os colegas e também com os pais, no caso das apresentações das

crianças. Também reparo como os participantes ou espectadores adultos gostam ou

necessitam compartilhar e também assegurar suas percepções: “Você viu isto?”, “Você

percebeu aquilo?...”

Mas pouco a pouco, a curiosidade e a nostalgia criam o desejo de revisitar o

vivido através dos registros. Ansiedades satisfeitas, o olhar que se acalma e se alarga

pode perceber detalhes de detalhes, cenas que se desdobram em cenas, sentidos

insuspeitados: “Compreendi e aceitei que podiam fazer a diferença para encontrar o

que talvez eu nem pensasse buscar, pois como observou Arbus, fotógrafa americana:

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‘... uma foto é um segredo sobre um segredo. Quanto mais diz, menos você sabe’’’

(SONTAG apud GIANNELLA, 2009: 23).28

Esse estado de observação, proporcionado pelo mergulho nas fotografias e

filmagens, não conduz o observador de volta à mesma experiência. Pois o

acontecimento se diferencia, outras faces apresenta, em camadas se desfolha:

desdobrado a cada vez, provoca suspensão como se primordial fosse. Em

deslocamento, vivencia o observador um espaço de indeterminação, onde germinam as

virtualidades de pensamento. Espaço que passa a habitar e que o habita. Atravessado

por uma força que ao mesmo tempo em que o suga para dentro do que observa o lança

em direção ao desconhecido, vive a experiência do Fora.

Embora aqui envolvida com a escrita de uma dissertação, e não com uma criação

artística, como por exemplo, uma obra literária, talvez não seja um gesto indevido

aproximar essas experiências: pois apesar da natureza distinta, me parece que tanto

alguns prazeres como algumas dores as atravessam.

O Fora constitui, assim, uma espécie de experiência original, um começo de tudo. Colocar-se fora de si e fora do mundo é antes de mais inaugurar uma experiência em que as coisas não são ainda. Tudo se passa na literatura como se nada tivesse acontecido, como se tudo estivesse por acontecer. “O livro por vir”, diz o título de um dos mais célebres livros de Blanchot. A palavra literária carrega em si um porvir, um “ainda não”, marca de sua impossibilidade. A tarefa do escritor é a de buscar o momento que precede as palavras, a origem da obra, o vazio inicial de onde tudo começa. (...). (LEVY, 2003: 32)

“Nessa região de origem, reina não o silêncio, mas o rumor: o rumor anterior às

palavras, à obra, ao livro” (Ibid., 33). E, se bem se escuta, em tal rumor pouco a pouco

se percebem murmúrios, prenúncios de ideias, que em ensejos de vingarem, tentam

criar corpo e voz. Na escrita deste trabalho tenho experimentado tempos assim, em que

esses prenúncios de ideias procuram chamar minha atenção; e ao se fortalecerem, ora

me animam e anunciam consonâncias, ora se embaralham, perdendo seus contornos -

momentos em que, evocando uma passagem de Deleuze e Guattari, me sinto tentada a 28 Susan SONTAG, Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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pedir, ou mesmo a humildemente implorar, um mínimo de ordem ao meu próprio

pensar...

Pedimos somente um pouco de ordem para nos proteger do caos. Nada é mais doloroso, mais angustiante do que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem, que desaparecem apenas esboçadas, já corroídas pelo esquecimento ou precipitadas em outras, que também não dominamos.(...) Recebemos chicotadas que latem como artérias. Perdemos sem cessar nossas idéias. É por isso que queremos tanto agarrarmo-nos a opiniões prontas. (DELEUZE e GUATTARI, 1997: 259).

Entre o refúgio e a acomodação das opiniões prontas, e o risco das ideias não

adquirirem suficiente consistência e serem tragadas pelo caos, empreende quem se

apossa da escrita o esforço de composição de um pensamento.

Talvez eu não devesse me deter a narrar as aventuras do meu pensar.

Entretanto, o processo que envolve uma composição desta natureza não é estranho à

matéria desta dissertação; e mais uma vez ensaio uma aproximação, relacionando-o ao

processo de criação artística. Ambos se constituem em experiência, no sentido

apontado por Larrosa, abordado no capítulo “Entre a academia e a sala de aula” desta

dissertação, e como tal obedecem a seu caráter voluntarioso e avesso ao controle.

Ambos são permeados pela experiência do Fora, “uma espécie de experiência original,

um começo de tudo” (LEVY, 2003: 32).

E de novo incendiada por Hélio Oiticica, percebo que tanto quanto não existe

ideia separada do objeto, não existe pensamento apartado da experiência. Sendo ele

próprio - o pensamento - experiência, processo ao qual de certa forma me submeto; e

não um modo de operação que pode ser aplicado a qualquer objeto de análise.

Experiência pela qual esta aula se desdobra em outros encontros, experiências,

pequenos-grandes acontecimentos além-fronteiras.

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Procurei enfatizar nesse trabalho a concepção do campo da iniciação artística

como de um território especialmente fértil e propício à educação tocada pelo sentido da

transformação; não me furto a ressaltar nesse final, o quanto isso vale não só para o

aluno, como também para o professor: o quanto viver e pensar uma pedagogia do

encontro em seu contexto podem propiciar a nós, professores, estarmos sempre em

transformação, cotidianamente à beira de uma descoberta, havendo-nos com o

desconhecido.

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Quando envolvidos na escrita, nos encontramos entre a solidão e o encontro com

as palavras.

Volto a Borges, em honra ao tempo que passamos entre elas. E as partituras, os

instrumentos, os pensamentos, os livros...

Quando eu tinha trinta anos, pensava que não havia vivido. Nessa época eu não supunha ainda que era impossível não viver.

Aos trinta anos cometi o erro de pensar que a leitura e a meditação pertenciam menos à vida que outras ocupações do homem. Agora, creio

que a meditação, o estudo, o ensino, os sonhos são tão reais e tão irreais como a vida desses homens que têm uma vida ativa. Tudo é real.

Tudo está vivo.

Jorge Luís Borges

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Referências Bibliográficas

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