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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados: inclusão ou exclusão social? Telma Maria Leite Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia. RIBEIRÃO PRETO – SP 2007

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados:

inclusão ou exclusão social?

Telma Maria Leite

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.

RIBEIRÃO PRETO – SP

2007

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados:

inclusão ou exclusão social?

Telma Maria Leite

Prof. Dr. Sérgio Kodato

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.

RIBEIRÃO PRETO – SP

2007

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FICHA CATALOGRÁFICA

Leite, Telma Maria Representações Sociais sobre Instituição Asilar por Idosos Abrigados: inclusão ou exclusão social? Ribeirão Preto, 2007.

228p. : il. ; 30cm

Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / USP – Dep. de Psicologia e Educação. Orientador: Kodato, Sérgio 1. Representações Sociais. 2. Instituição Asilar. 3. Idosos. 4. Inclusão ou Exclusão Social.

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FOLHA DE APROVAÇÃO

Telma Maria Leite Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados: inclusão ou exclusão social?

Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP, como parte das exigências para a obtenção do título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.

Aprovado em:

Banca Examinadora

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________

Prof. Dr. _______________________________________________________________

Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________

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Dedico este trabalho à avó

Teresa e ao avô Leite; aos

meus tios Bito, Chica e Tito;

aos meus primos Sócrates e

Zezeca

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AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Dr. Sérgio Kodato, pela oportunidade e paciência na longa travessia do Rio Grande;

Aos meus pais, Miron e Júlia, e aos meus irmãos, Terê e Nino, a quem sou eternamente grata;

Ao Adriano, pela presença, auxílio, incentivo e confiança;

A todos das famílias Tatico e Leite, pela alegria que me proporcionam;

Aos “meus amigos de fé, meus irmãos camaradas”; em especial, à Alícia, Cérise, Chico,

Cristina, Deise, Marcilene Flores, Eléa Geléia, Quatti e Simone Poch, pelo carinho e

companheirismo;

À Cida, S. Nilton, Rosalvo e Zilá, com quem puder compartilhar os meus primeiros passos na

área social. Além disso, à comunidade de todo o Setor Norte, especialmente aos “moleques

sangue bom” Diogo, Marquinhos, Nandinho e Reginho;

Às famílias Camisa Verde e Carreiro, pela saudação conjunta aos céus: [...] Pegue a bandeira

de paz, deixe a bandeira de guerra [...];

Ao Antônio Alexandre, Bueno, Cris, Rogério Shareid e Thaís Senne, por abrirem as portas do

interior paulista;

À Sônia, pela atenção e cuidado;

Ao André, Bruno, Fernanda, Karen e Karina, pelo acolhimento e confiança;

Ao Alexandre, Aline, Daniel, Eleusa, Elizabeth, Thaísa e Zaira, por compartilharem

experiências e por contribuírem na construção de conhecimentos ao longo da pesquisa. À

Magda, pelo auxílio, sobretudo, na etapa final do trabalho;

A todos com quem convivi nesta cidade e no decorrer da Pós-graduação; em especial, à

Andréa Attiê, Érika Kawakami, Joana, Josi, Thomas e Wata;

Aos atuais companheiros da Casa 13 (Antônio, Cleidson Rodrigues, Rogério Corujão, Dennys

Eduardo da FEA, Glauber, Leandro Jibóia, Lourdes, Lucas, Mirkolino, Naira, Paula, Priscila,

Selma, Yolanda e Zezera) e aos ex-moradores (Andréa, Carlo, Chicão, Cristina, Mariana,

Rodrigo Dalacqua, Rodrigo Orlandini e Valter), pela diversão, luta conjunta e tolerância

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cotidiana: “Ô,ô,ô,ô, my brothers, a lua não me traiu!”. Além disso, agradeço aos parceiros da

Casa 12 e Casa G pela convivência agradável.

Agradeço, especialmente, às companheiras do “puxadinho”, Claudita e Luciana, pelas prosas

fiadas e cuidados especiais;

Aos participantes do mutirão da Qualificação e da Dissertação, pelo auxílio e constante

disponibilidade;

Ao Prof. Dr. Marco Antônio de C. Figueiredo e à Prof. Dra. Carmen Lúcia Cardoso, pelas

ricas contribuições no Exame de Qualificação;

Ao Eduardo Benedicto, Enrico e Cris, por acolherem os esfarrapados d'alma;

Aos funcionários deste Campus, pela atenção e bom atendimento; em especial àqueles que

trabalham no Setor do Serviço Social, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no Sisusp,

Bandejão e Biblioteca. E salve a sala 2!;

Ao Alex, Carlos, Daniel, Fred, Henrique, João Paulo, Juliana e Rodolfo, pela paciência e

prontidão no atendimento aos ignorantes da tecnologia avançada;

Aos integrantes da “Família do Samba” e agregados – com quem aprendi que “o samba

agoniza, mas não morre” –, pelas animadas tardes de sábado. Agradeço, sobretudo, ao ilustre

casal, Neusa e Sandro, pelo cuidado e gentileza;

À trupe do Chorinho, pelas divertidas manhãs de domingo; especialmente ao Chiquinho, Sr.

Batista, Sr. José Inácio, e José Carlos, que mostram, cada qual a seu modo, como se “dança” a

vida;

Aos funcionários dos abrigos, por terem permitido a realização da coleta de dados da

pesquisa. Aos idosos, pela disponibilidade em compartilhar as suas histórias de vida;

Ao Angenor, Pedro Luís e discípulos, pelas inspirações.

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“A tua saudade corta

Como aço de navaia

O coração fica aflito

Bate uma, a outra faia

Os óio se enche d`água

Que até a vista se atrapaia”.

Cuitelinho - Domínio popular Tema recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó

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RESUMO

LEITE, T. M. Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados: inclusão ou exclusão social? 2007. 228 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007. Os idosos constituem o segmento populacional que mais cresce no Brasil. Há hoje cerca de quinze milhões de pessoas na terceira idade. Estatísticas mostram que em vinte anos o número pode ser de trinta e dois milhões. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a população de idosos no país, entre 1950 e 2025, aumentará dezesseis vezes. O presente trabalho tem como objetivo compreender, a partir da perspectiva da Psicologia Social, as representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados, centrando-se na seguinte questão: quais são as representações que idosos institucionalizados têm a respeito de sua condição de vida? O eixo da pesquisa é a análise dos discursos deles sobre suas vidas anterior e posterior à institucionalização, investigando se apontam os mecanismos sociais que os excluem por ali viver. Caso percebam-se incluídos, como assumem discursivamente a sua efetiva representação de inclusão na sociedade. Realizaram-se entrevistas com dezesseis moradores de duas instituições públicas de uma cidade do interior de Minas Gerais. O procedimento envolveu a realização de entrevistas semi-estruturadas. O referencial teórico-metodológico da pesquisa é a Teoria das Representações Sociais, na formulação de Moscovici, por esta permitir a observação dos indivíduos enquanto grupos, sem perder a referência do campo social em que se inserem. Houve investigação qualitativa dos dados por meio de temas e categorias na perspectiva da análise de conteúdo da Bardin (1977). Os dados foram analisados em três fases: pré-análise; exploração do material; interpretação dos dados. Tal procedimento envolve leituras flutuantes do material discursivo; definição de dimensões temáticas; discriminação de unidades de significado; estabelecimento de categorias temáticas. Os resultados indicam que a ida para o abrigo é uma conseqüência de um processo anterior, verificado na trajetória de vida destes entrevistados. Vários elementos comuns socialmente os caracterizam: baixo grau de escolaridade; execução de trabalhos economicamente desvalorizados; perdas familiares significativas. A internação é representada por eles como conseqüência de uma série de perdas sociais ocorrida ao longo de anos. O surgimento de doenças e a solidão decorrente de tais perdas são assumidas como justificativas para a ausência de autonomia e independência que acarretou a institucionalização. A ida para o abrigo, contudo, também é vista sob a perspectiva de uma ancoragem e de uma mudança de significação social, como uma forma de inclusão na sociedade, visto que discursivamente afirmem que sua função é de provê-los e deles cuidar no que traçam como etapa final de suas vidas. Sendo assim, concluiu-se, por um lado, que a representação por idosos figura a instituição como excludente, sobretudo em relação a suas vidas pregressas; por outro, contudo, a representação social da instituição modela-se como inclusiva, haja vista afirme-se discursivamente como um vínculo social a partir de uma adesão coletiva. Palavras-chave: Representações sociais. Instituição asilar. Idosos. Inclusão ou exclusão social.

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ABSTRACT LEITE, T. M. Social representations of asylums among sheltered elders: social inclusion or exclusion? 2007. 228 f. Thesis (Master’s) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007. Elders constitute the age-band that presents the highest growing rate in Brazil, adding up to fifteen million nowadays, and, according to statistics, being able to reach thirty-two million within twenty years. The World Health Organization (WHO) projects that, between 1950 and 2025, the elder population will raise sixteen times. This study aims to comprehend, through the Social Psychology perspective, the social representations of the asylum institution among sheltered elders, underlining this issue: what are the representations that institutionalized elders elaborate about their conditions of life? The focus of this research is the analysis of their discourses about their lives before and after the institutionalization; investigating if they point the social devices that exclude them for living in this institution, and, in case of perceiving this exclusion, how they present their representations of inclusion in society, in their discourses. The data collect included the application of semi-structured interviews among sixteen sheltered elders from two public institutions of a city in the country side of Minas Gerais State. The theoretical and methodological reference that offers basis for this study is the Social Representations theory, formulated by Moscovici, for allowing the observation of the subjects as groups, without missing the reference to the social context which they belong to. It was also performed a qualitative analysis of the data, establishing themes and categories, through the perspective of the content analysis formulated by Bardin. The data were analyzed in three phases – pre-analysis, exploration of the material, data interpretation –, involving random reading of the discursive material, definition of thematic dimensions, discrimination of the meaning unities, establishment of thematic categories. The results indicate that being sent to the asylum is a consequence of a previous process, that was noticed in the life story of the subjects. They present several elements in common: few years in school, working in low-income jobs, having severe family losses. Arriving at the institution is represented as a consequence of a social losses chain they’ve had through the years. The appearance of diseases and the loneliness caused by such losses are pointed as reasons for the lack of autonomy and independence that drove them into the institutionalization. Going to the asylum is also represented through the perspective of an anchoring, and of a social meaning shift, as a form of inclusion in society, considering that its function includes offering care and support to the subjects, specially in this phase of life, according to them. Therefore, it is possible to conclude that, on one hand, the representations present the institution as excluding, specially considering the elders’ life stories before the institutionalization; although, on the other hand, the social representations can describe the institution as inclusive, once it also points, in the discourse, a social belonging to a group. Key-words: Social Representations. Asylum institution. Elders. Inclusion or social exclusion.

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LISTA DE SIGLAS

CEAI Centro Educacional de Assistência Integrada

FFCLRP Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto

IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

INPS Instituto Nacional de Previdência Social

LBA Legião Brasileira de Assistência

LOAS Lei Orgânica de Assistência Social

OMS Organização Mundial da Saúde

ONU Organização das Nações Unidas

SESC Serviço Social do Comércio

UAI Unidade de Atendimento Integrado

UnATI Universidade Aberta à Terceira Idade

WHO World Health Organization

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 1 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 5 1.1 A Psicologia Social e a Teoria das Representações Sociais.............................................. 5 1.2 O critério etário para estabelecer a velhice no capitalismo: ciência ou representação histórica?.................................................................................................................................. 7 1.3 A crítica ao critério etário: a velhice como um produto histórico-social ........................ 10 1.4 O critério etário como determinante de comportamentos e papéis sociais...................... 13 1.5 A velhice, afinal, como construção histórica e social...................................................... 14 1.6 O idoso na sociedade contemporânea.............................................................................. 15 1.7 Institucionalização do idoso ............................................................................................ 18 1.8 Qualidade de vida na terceira idade................................................................................. 20 1.9 Solidão: mal-estar da velhice?......................................................................................... 21 1.10 Religiosidade e sua carga simbólica.............................................................................. 22 1.11 Reativação: antídoto contra a solidão? .......................................................................... 22 1.12 Do crescimento da população idosa .............................................................................. 24 1.13 Política Nacional para o Idoso: a Previdência Social e o Estatuto do Idoso ................. 31 1.14 Programas de atendimento aos idosos ........................................................................... 35 1.15 A violência e dominação na sociedade: os idosos são retratos delas?........................... 37 2 OBJETIVOS ..................................................................................................................... 41 2.1 Objetivo geral .................................................................................................................. 41 2.2 Objetivos específicos....................................................................................................... 41 3 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................. 43 4 METODOLOGIA............................................................................................................. 45 4.1 Teoria das Representações Sociais .................................................................................. 45 4.2 Pesquisa qualitativa ......................................................................................................... 50 4.3 Observação participante e diário de campo..................................................................... 52 4.4 Entrevistas semi-estruturadas .......................................................................................... 54 4.5 Coleta de dados................................................................................................................ 55 4.5.1 Procedimentos .............................................................................................................. 55 4.5.2 Aspectos éticos ............................................................................................................. 57 4.5.3 Participantes ................................................................................................................. 58 4.6 Contexto de realização do estudo .................................................................................... 62 4.6.1 Caracterização da cidade em relação à temática analisada........................................... 62 4.6.2 Sobre as instituições ..................................................................................................... 62 4.6.2.1 Primeira instituição.................................................................................................... 62 4.6.2.2 Segunda instituição.................................................................................................... 67 4.6.2.3 Aspectos comuns entre as instituições....................................................................... 72 4.7. Análise de conteúdo ....................................................................................................... 73 5 RESULTADOS ................................................................................................................. 79 a) Origem............................................................................................................................... 80 Categoria 01: Estrutura Familiar ........................................................................................... 80 Subcategoria 1.1: Composição familiar................................................................................. 81 Subcategoria 1.2: Dinâmica familiar ..................................................................................... 83

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Subcategoria 1.3: Figuras de identificação............................................................................ 86 Categoria 02: Processos de inclusão ou de exclusão social................................................... 88 Subcategoria 2.1: Formação escolar...................................................................................... 88 Subcategoria 2.2: Atividades profissionais ........................................................................... 90 Subcategoria 2.3: Causas da internação ................................................................................ 92 Categoria 03: Vulnerabilidade............................................................................................... 95 Subcategoria 3.1: Doença como limitação da vida................................................................ 95 Subcategoria 3.2: Solidão ...................................................................................................... 97 b) Institucionalização............................................................................................................. 99 Categoria 04: Cotidiano......................................................................................................... 99 Subcategoria 4.1: Convivência no abrigo............................................................................ 100 Subcategoria 4.2: Reativação .............................................................................................. 102 Subcategoria 4.3: Visitas e socialização externa ................................................................. 103 Categoria 05: Percepção do abrigo...................................................................................... 105 Categoria 06: Sentimentos e perdas .................................................................................... 108 Subcategoria 6.1: Auto-percepção....................................................................................... 108 Subcategoria 6.2: Distanciamento familiar ......................................................................... 110 Categoria 07: Espiritualidade e crença ................................................................................ 112 Categoria 08: Expectativas .................................................................................................. 114 Subcategoria 8.1: Expectativa em relação à família............................................................ 114 Subcategoria 8.2: Expectativa de vida................................................................................. 116 Subcategoria 8.3: Expectativa de autonomia e independência............................................ 119 6 DISCUSSÃO ................................................................................................................... 121 Internação ............................................................................................................................ 121 As instituições e suas representações .................................................................................. 124 Restrições e autonomia........................................................................................................ 130 Convivendo na instituição ................................................................................................... 133 A família longínqua............................................................................................................. 136 Intramuros: a espera pelos familiares .................................................................................. 138 Convivendo com o lado de lá .............................................................................................. 142 Representações da própria imagem ..................................................................................... 143 Reativando o tempo............................................................................................................. 147 O território do divino........................................................................................................... 150 Próximas projeções.............................................................................................................. 153 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 159

REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 167

APÊNDICE A .................................................................................................................... 181

APÊNDICE B..................................................................................................................... 182

APÊNDICE C .................................................................................................................... 183

APÊNDICE D .................................................................................................................... 200

ANEXO A ........................................................................................................................... 228

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APRESENTAÇÃO

O presente trabalho trata da temática do envelhecimento da população na perspectiva

da Psicologia Social. Eu própria, para particularizar e dar um exemplo específico, defrontei-

me com os idosos e algumas de suas dificuldades de inserção na sociedade, quando trabalhei

como psicóloga social na prefeitura da cidade de Uberlândia (M.G) entre os anos de 2003 e

2005. Para mim, deste modo, tratar tal questão é relevante para melhor compreendê-la, e

poder, inclusive, contribuir para o subsídio de programas sociais de assistência ao idoso.

Meu interesse por questões relativas aos idosos aumentou quando cursei, como aluna

especial no curso de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão

Preto (FFCLRP) no primeiro semestre de 2002, a disciplina “Violência Institucional: análise e

intervenção”, pois nas discussões lá ocorridas pude perceber que a violência em sua forma

manifesta e simbólica pode se associar em determinadas instituições. Isso me levou a

investigar se esse fenômeno também poderia ocorrer no caso dos idosos institucionalizados.

Como trabalho final dessa disciplina, iniciei o que ora se apresenta como dissertação

de Mestrado: entrevistas com idosos residentes em instituições de abrigo, localizadas na

cidade de Uberlândia, para, a partir da análise destas, compreender as representações sociais

sobre instituição construídas por idosos abrigados.

Tendo, pois, restringido o foco da investigação ao plano teórico da Psicologia Social,

especificamente na perspectiva metodológica da Teoria das Representações Sociais, realizei a

análise das entrevistas dos idosos abrigados a fim de apreender as significações e sentidos que

eles atribuem à instituição asilar com o intuito de verificar a inserção ou não deles, enquanto

grupo social, na sociedade, visto que haja, depois que eles passam a residir em abrigos,

ruptura com o modo pelo qual anteriormente se inseriam no meio social.

O plano dessa pesquisa é, pois, demarcar no nível social as especificidades do

psiquismo individual1 sem, contudo, deixar de levá-lo em conta: as representações sociais dos

idosos, partindo das condições específicas daqueles que vivem em abrigos, avalia a fala dos

mesmos, tanto em suas constelações intelectuais individuais, como sociais, estabelecendo o

modo pelo qual eles consideram sua inserção ou não na sociedade. As análises das entrevistas 1 Jodelet (2001, p. 26) aponta até mesmo para o risco de reducionismo de apreender as representações sociais como intra-individuais: “de fato, numa exploração em permanente tensão entre os pólos psicológico e social, os diferentes trabalhos desenvolvidos em laboratório e em campo tiveram freqüentemente seu foco, por preocupação heurística, sobre aspectos bem circunscritos dos fenômenos representativos. Não sem correr, às vezes, o risco de levá-los a acontecimentos intra-individuais ou de diluí-los em processos ideológicos ou culturais”.

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dos idosos têm assim como objetivo demarcar a presença do plano social como operante

desde a fala do indivíduo e também como este àquele, reciprocamente, estabelece ou

modifica. De fato, quando se considera a influência do meio social nas produções das

representações sociais de velhice, pode-se dizer:

[...] La representación social del viejo ya no sólo define lo que es la vejez, sino que también establece qué y cómo debe ser, qué es ser viejo y cómo se debe serlo. Pero más importante aún es que no sólo los otros grupos etáreos, los no viejos, comparten esa representación, sino que siendo el envejecimiento una condición universal, el propio sujeto que envejece la hace suya, la internaliza y por tanto, se convierte en el elemento por el cual se autodefine (FERNÁNDEZ; REYES, 1996).

É, pois, tendo por interesse compreender as representações por idosos

institucionalizados que o presente trabalho enfrenta tal problema. Certas etapas serão seguidas

na introdução para melhor esclarecer a questão. Antes de mais nada, é preciso delimitar o

horizonte da Psicologia Social e como a Teoria das Representações Sociais nela se insere,

visto seja a metodologia aqui utilizada2. O passo seguinte será formular um quadro mais

amplo sobre o idoso. Neste momento, caberá verificar qual é um possível conhecimento

científico3 de base biológica que se produz sobre o idoso, e como este se mescla a condições

históricas que influenciam o processo constitutivo das suas representações sociais. Aqui, para

além da diversidade de representações ao longo da História, caberá, sobretudo, deter-se em

como elas também contemporaneamente se formam a partir dos diferentes grupos de interesse

e das políticas sociais estabelecidas para o idoso4; apontar-se-á aqui também, em relação a tais

representações sociais contemporâneas sobre idosos, o papel atribuído à instituição total,

particularmente, no caso, aos abrigos a ele destinados na sociedade brasileira atual.

Passar-se-á, então, especificamente à representação positiva do idoso quando se deixa

2 Aqui se trata de apenas apontar os traços mais gerais da Psicologia Social e da Teoria das Representações Sociais. Mais à frente a questão teórica sobre esta última será retomada. 3 Moscovici (1978) aponta para a diferença entre, por um lado, a ciência e seu referente e, por outro, o conhecimento que dela se tem e se partilha socialmente. Foi este último o que mais lhe interessou no estudo da psicanálise. Além disso, criticou, por exemplo, Durkheim por este confundir a religião com a ciência. Esta, como é abstrata e autônoma nela mesma, não dá margem ao simbólico. A questão aqui tratada, contudo, é mais complexa, pois a velhice, embora tenha evidentes traços biológicos, enquanto representação social já é simbolizada a partir das diversidades social e histórica que seu estudo implica. 4 A representação social, como afirma Jodelet (2001), é uma partilha do mundo que nomeia e define diferentes aspectos da realidade. Sendo assim, ela é um fenômeno complexo, pois distingue-se da ciência, sendo uma aparência de saber sobre a realidade que implica uma interpretação, uma tomada de decisões e posicionamento sobre o mundo, mesmo que defensivamente. Por isso mesmo, varia a partir da diversidade dos grupos sociais e de suas posições ideológicas, sendo mais ou menos científica de acordo com experiências privadas e afetivas que também nela se mesclam. Os meios de comunicação, por exemplo, são qualificadores, produzindo discursos diversos de acordo com os interesses e grupos com os quais se relacionam. Sendo assim, as representações sociais sempre se fazem a partir do interesse de um grupo, sendo, pois, uma reconstrução do objeto e, por isso, implicando um afastamento daquilo a que se referem.

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de falar na velhice e se passa a representá-la como terceira idade. Aqui serão destacados

tópicos que se referem a uma melhor qualidade de vida para o idoso. Isso, como se verá,

acarreta discutir questões relativas à qualidade e estilo de vida como categorias que, extraídas

de suas falas, remetem a aspectos fundamentais para uma longevidade saudável.

Destacar-se-ão, a seguir, centrando-se em índices populacionais, questões como o

aumento do número de idosos e da expectativa destes; com a mesma perspectiva, a

composição familiar na sociedade contemporânea e o papel do idoso nela. Mais à frente,

retomando tal dimensão do idoso em relação às novas demandas sociais acarretadas pelo

aumento populacional e à mudança de seu papel na família, caberá analisar as políticas

públicas empreendidas no Brasil: o Estatuto do Idoso será então analisado enquanto especifica

os papéis sociais do idoso bem como seus direitos. Além disso, certos programas não-

governamentais, como os do Serviço Social do Comércio (SESC) e o da Universidade Aberta

à Terceira Idade (UnATI), receberão destaque.

Por fim, visto isso aponte para o problema que me levou a este estudo, caberá

discorrer sobre a violência contra o idoso, tanto no aspecto físico e direto como no moral e

simbólico. Mesmo que além do horizonte da investigação aqui empreendida, tal foco servirá

para realçar uma questão sobre a qual objetiva-se nesta pesquisa tentar esclarecer: a possível

inclusão social dos idosos que vivem em abrigos.

Cumpridas as etapas desta introdução, centrar-se-á, nos capítulos seguintes, a pesquisa

principal a ser aqui focada nas seguintes questões: quais as representações sociais sobre

instituição produzidas por idosos abrigados? Que operadores e estratégias eles próprios

produzem como resposta aos aspectos biológicos do envelhecimento? Como eles representam

a instituição em que vivem e que práticas sociais desenvolvem a partir do questionamento

existencial na instituição? O fato de viverem em abrigos é por eles percebido como exclusão

da sociedade ou eles nela ainda se sentem incluídos? Em quais imagens sociais as

representações sobre o abrigo estão ancoradas? Elas objetivam-se a partir de que parâmetros

de comparação com suas vidas antes de viver em abrigos?

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1 INTRODUÇÃO

1.1 A Psicologia Social e a Teoria das Representações Sociais

Cabe, portanto, antes de mais nada, demarcar o horizonte em que este trabalho se

realiza: a Psicologia Social como campo de conhecimento. Esta, com efeito, afirma que o

psiquismo do indivíduo não pode se abstrair da interseção entre sua história pessoal e as

condições históricas da sociedade. Desse modo, o indivíduo é, ao mesmo tempo, produto

histórico-social e construtor da sociedade, visto ser capaz de transformá-la. Esta concepção

foca, portanto, a relação entre indivíduo e meio, e propõe a construção de um espaço de

encontro em que eles mutuamente se implicam (DOISE, 2002).

Assim, conforme salienta Bosi (1994) ao tratar da memória entre os idosos, o trabalho

do psicólogo social move-se num plano que mescla o individual e o social. Para esta autora,

com efeito, deve-se considerar a memória como um fenômeno decorrente da influência do

meio social sobre o indivíduo, adquirindo caráter individual, familiar, grupal e social. Ela não

pode, portanto, ser representada isoladamente nos indivíduos fechados em si mesmos, mas

nas suas relações com diversas instituições, como a família, o trabalho e outros grupos com

os quais convivem.

Por isso, para Bosi (1994), a lembrança é fruto do outro e da situação presente e não

significa reviver o passado tal como ocorreu, mas refazer, reconstituir, repensar com imagens

e idéias de hoje, a experiência dele. O processo de reconstrução do passado, através da vida

atual, é decorrente das relações sociais, como, por exemplo, as familiares e profissionais

vividas pelo indivíduo.

Assim como esta autora aborda a questão, tratar-se-á aqui de apreender – ressaltando-

se, contudo, as especificidades próprias aqui implicadas pelo uso de outra metodologia – o

tema abordado pelo modo que é próprio à Psicologia Social, pois a descrição que o indivíduo

idoso dá de sua vida só se compreende na rede das relações sociais e na produção de sentidos

para a sua existência.

Embora neste plano mais amplo de uma pesquisa em Psicologia Social, será aqui

especificamente empregada, contudo, a Teoria das Representações Sociais como referencial

metodológico, visto que esta entenda o social a partir do sujeito, entendido como um grupo,

que o representa, sendo este também só compreensível a partir daquele. Esta teoria, portanto,

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não se preocupa com os indivíduos enquanto tais, mas na sua inserção social a partir do lugar

que ocupam. Há, pois, uma partilha das representações pelo grupo, que é, ao mesmo tempo,

um dado preexistente à comunicação porque determinada por valores que são estabelecidos a

partir da condição social, mas que implicam também uma aderência, porque “partilhar uma

idéia ou uma linguagem é também afirmar um vínculo social e uma identidade” (JODELET,

2001, p. 34). A adesão coletiva reforça assim o vínculo social ao estabelecer representações

próprias de um grupo; com efeito, a própria capacidade de extensão da representação mostra,

intelectualmente, a particularidade de cada grupo.

Além disso, a Teoria das Representações Sociais analisa a sociedade em suas

transformações constantes, assim possibilitando focar a vida do idoso tanto na perspectiva de

como esta se configura para quem o expressa, enquanto sujeito, como também conceituá-lo

no plano social enquanto passível de mudança: essas constelações intelectuais, uma vez

fixadas sem se apontar as transformações, fazem-nos esquecer que são obras nossas e,

portanto, têm começo e poderão ter um fim. Assim, para esta teoria, a existência no exterior

ostenta a marca de uma passagem pelo interior do psiquismo individual e social

(MOSCOVICI, 1978).

Desse modo, estudar as representações sociais, segundo Oliveira e Werba (1999 apud

SILVA; LUNA, 2004, p. 5), é conhecer:

[...] o modo como um grupo humano constrói um conjunto de saberes que expressam a identidade de um grupo social, as representações que ele forma sobre uma diversidade de objetos, tanto próximos como remotos, e principalmente o conjunto dos códigos culturais que definem, em cada momento histórico, as regras de uma comunidade.

É também importante frisar no tocante à representação social, como afirma Jodelet

(2001), que ela é uma teoria com um referente objetivo, pois trata as representações como

formas de saber. Desse modo, é um estudo do próprio fenômeno cognitivo a partir de

conteúdos representativos diversos: a linguagem, discursos, documentos e práticas sociais.

Estuda assim, em primeiro lugar, o aspecto social e funcional do fenômeno cognitivo; em

segundo, as condições de sua gênese; por fim, seu funcionamento e eficácia. Lida, pois, com

algo concreto e observável, mesmo que este seja reconstruído pelo pesquisador.

Tal método, destacando-lhes as práticas discursivas, permite traçar, na análise dos

idosos residentes nos abrigos, tanto as condições materiais dos extratos sociais a que

pertenciam, quanto, em termos de psiquismo, a compreensão que eles próprios têm das

condições sociais em que atualmente vivem. Demonstra-se também a eficácia deste em

destacar, por meio dos processos de ancoragem e objetivação, a formação das representações

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que asseguram aos idosos abrigados sua incorporação ao social. Aqui, é importante notar que,

mesmo quando há novidade, esta é enquadrada em esquemas antigos e já conhecidos. Tais

representações permitem a instrumentalização de um saber, tendo um valor funcional para a

interpretação e gestão do ambiente. Há, pois, uma possível naturalização das noções pela qual

estas passam, pela objetivação, a ter valor de realidades concretas, utilizáveis na ação sobre o

mundo e os outros. Esta estrutura imagética da representação é fundamentada como guia de

leitura e referência para compreender, por generalização funcional, a realidade em que vivem

(JODELET, 2001).

Antes, porém, de tratar a questão específica deste trabalho é preciso, passo importante

também na Teoria das Representações Sociais, delimitar como o idoso é compreendido de

um possível ponto de vista científico, visto por aqui se trace um referencial a ser analisado; e,

concomitantemente, tratá-lo a partir da perspectiva histórica de cada sociedade, dado que

aqui se apresente a representação social determinante das políticas públicas relativas ao

idoso, bem como da própria determinação de como a ciência deve analisá-lo. Como se verá,

portanto, o possível referencial científico aqui não deixa de ser, permanentemente, uma

possível representação do mundo, pois, via de regra, é um recorte estruturado a partir das

condições sociais e históricas com possíveis interesses ideológicos em jogo.

Para compreender a realidade e a significação da longevidade, é, portanto,

indispensável examinar o lugar simbólico que é destinado aos idosos, que referencial ou

representação se faz deles em diferentes tempos, em diversos lugares. O interesse desse

confronto é que ele permitirá, senão dar, ao menos entrever, respostas para esta questão

essencial: o que é inelutável na condição de vida dos que vivem mais tempo? Em que medida

a sociedade é responsável por ela? (BEAUVOIR, 1990). 1.2 O critério etário para estabelecer a velhice5 no capitalismo: ciência ou representação

histórica?

Os homens, conforme descreve Vargas (1994 apud GRÜNEWALD, 1997), tomaram

consciência da alteração de seu organismo corporal e procuraram, desde a Antiguidade,

analisar e circunscrever as características do envelhecimento. Sendo assim, podem-se citar

5 Como a bibliografia utiliza o termo velhice, este será aqui empregado, visto que a carga semântica negativa nele implicada é fruto desta perspectiva introduzida pelo capitalismo.

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concepções sobre o processo de envelhecimento que remontam ao século VI a.C. na Grécia.

Também os romanos lançaram-se ao estudo das transformações humanas por causa da idade6.

Encontravam-se, pois, nessa época, entre filósofos e pensadores de toda parte do mundo, as

primeiras tentativas de circunscrever e definir o processo de envelhecimento.

O contexto, no entanto, em que o processo do envelhecimento passa a ganhar

visibilidade e a ser objeto de discursos e práticas específicas para o idoso coincide com um

período de grande atividade intelectual e de profundas transformações sociais decorrentes da

expansão do capitalismo. Segundo Lima (1999):

[...] a Europa vive as conseqüências da expansão do Capitalismo [século XIX] e, nesse momento, os principais esforços intelectuais vão se voltar para a análise dos problemas daí decorridos, a partir de uma perspectiva secular. Ou seja, localizando na sociedade, sem referências transcendentais, as causas e respostas dos principais problemas vividos na época - entre eles as condições de pobreza e marginalidade envolvendo parte da população que, com o avanço da idade, enfrentava dificuldades para garantir uma subsistência mínima. Desde então, parte significativa do discurso sobre a velhice esteve relacionado às transformações na sociedade, e a velhice passou a ter uma presença crescente entre as preocupações sociais.

Neste sentido, no momento em que a sociedade passa a ter como norma e valor central

a produção e o trabalho, a velhice sofre uma espécie de marginalização desta norma, sendo,

portanto, fortemente associada, conforme tal perspectiva, à doença e à decadência física,

decorrente das limitações impostas pela idade e pela saúde, pois, nesse período, o indivíduo

encontra-se naturalmente mais sujeito às perdas de ordem biológica, física, afetiva, social e

econômica. O envelhecimento passou, com o advento do capitalismo, a ser considerado

basicamente como um processo constituído de perdas em que se restringem as possibilidades

de ganhos, pois o homem idoso se afasta do eixo central desta sociedade, o trabalho

(DEBERT, 1999b).

De acordo com esse paradigma de valorização do trabalho e da força produtiva,

conforme aponta Birman (1999), a caracterização do indivíduo passou a ser centrada no

critério etário, tendo acarretado uma transformação social na qual a idade determinou atitudes

e projetos políticos da sociedade para com seus membros. As diferentes etapas etárias da

história do indivíduo passaram, portanto, a adquirir valores e significados diversos,

fundamentadas nos discursos biológico e psicológico, de acordo com suas possibilidades para

a produção e reprodução de riquezas. Os indivíduos de idade avançada, nessa perspectiva,

ocuparam um lugar marginalizado na existência humana, na medida em que a individualidade

6 O de Senectute de Cícero, por exemplo, foi escrito no século I a.C. O texto ainda era, para Simone de Beauvoir, uma das principais referências sobre o tema quando ela dele tratou em seu livro Velhice (1990).

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já teria realizado os seus potenciais e perderia então o seu valor social. Desse modo, eles, não

tendo mais a possibilidade de produção de riqueza, perderam também o seu valor simbólico.

A transformação do critério etário em algo determinante para se estabelecer a velhice

ocorreu, pois, na passagem dos séculos XVIII para o XIX, instituindo que o ciclo biológico da

existência humana pode ser classificado em faixas etárias bem definidas que delimitou

direitos e deveres. O conceito de velhice, portanto, constituiu-se, a partir de certa conjuntura

histórica e teórica, caracterizando-se a partir do ponto de vista biológico. Para Foucault (1976

apud BIRMAN, 1995, p. 32):

[...] foi nesse contexto histórico que os governos passaram a formular, de maneira sistemática, que a riqueza maior do Estado não se restringia às riquezas existentes na sua natureza, mas na qualidade da população. Portanto, quanto mais o Estado investisse nas condições biológicas de sua população e nas condições sanitárias de seu território, maior seria a sua riqueza material, pois as condições de vida de sua população seria a condição concreta de possibilidade para a produção de riqueza.

Sendo assim, mesmo hoje, a classificação internacional mais conceituada não foge a

tal critério etário estabelecido a partir destes pressupostos produzidos historicamente pelo

capitalismo. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em consonância com uma

preocupação científica para esta questão e com finalidades de políticas de saúde e

previdenciária, estabelece a população idosa como aquela a partir dos sessenta anos de idade7.

Esse limite é válido para os países em desenvolvimento, admitindo, entretanto, um outro, o de

sessenta e cinco anos, para os países desenvolvidos, já que nestes, além de melhores

condições de assistência social e de saúde pública, os idosos possuem um índice de

longevidade maior há mais tempo (CAMARANO; MEDEIROS, 1999; NERI; FREIRE,

2000).

Erbolato (2000) também busca estabelecer numa base científica o critério da faixa

etária como definidora dos grupos etários mais velhos. Sendo assim, justifica o

estabelecimento do início da velhice aos sessenta anos em países em desenvolvimento, tendo

em vista estudos realizados por cientistas europeus no século passado que descobriram, dentre

várias alterações, diminuição do tamanho e de funcionamento dos órgãos do corpo humano.

7 Tal critério etário é, conforme se observa neste trabalho, passível de discussão. Aqui, ademais, a idade não pôde ser adotada na seleção dos idosos entrevistados, visto ter se verificado, ao entrar em contato com os abrigos, que, mesmo poucas, há pessoas neles residentes com idade inferior a sessenta anos, marco que caracteriza para a OMS a entrada para a terceira idade. Assim sendo, desconsiderou-se em parte o critério etário na escolha dos entrevistados, tendo sido levado em conta nesta escolha como determinante o fato de se morar no abrigo. Mas apenas um dos entrevistados tinha menos de sessenta anos. Estas questões, de qualquer modo, foram, como se poderá verificar, consideradas nos Resultados e Discussão deste trabalho.

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1.3 A crítica ao critério etário: a velhice como um produto histórico-social

Debert (1998, 1999b) e Prado (2002), no entanto, reafirmam que não se pode descurar

de modo algum das condições materiais e históricas para se compreender esta possível

categorização etária com critérios ditos científicos e estritamente biológicos: a idade

cronológica passou a ganhar relevância na sociedade ao se sobrepor ao modo de vida

caracterizado pelo parentesco, pela posição social ou pelo lugar de origem das estruturas

familiares.

Esse fenômeno decorre das mudanças estruturais de uma economia de base agrária e

doméstica para o capitalismo centrado no mercado de trabalho e na produção industrial. É

necessário também, neste aspecto, considerar o processo pelo qual ocorre o deslocamento de

questões atinentes ao domínio familiar e privado para a esfera pública, passando o Estado a

regular o curso da vida por meio da definição de cortes etários com vistas à escolarização,

participação no mercado de trabalho e aposentadoria.

Deve-se, além disso, também apontar para o confronto de que é fruto tal

categorização. A manipulação das categorias de idade, segundo Bordieu (1983 apud

DEBERT, 1998, p. 53), “envolve uma luta política entre grupos de interesses distintos que

colocam em movimento um jogo de poderes ligado a grupos sociais distintos em diferentes

momentos do ciclo de vida”. Gusmão (2001, p. 121), nesse sentido, afirma:

[...] É nesse campo de confronto e de tensão que, no caso da sociedade moderna, a fragilidade da vida social se expõe de modo mais intenso e, com ela, coloca-se em dúvida a persistência das condições que tornam a vida possível para aquele que envelhece, acenando com o fim próximo e inexorável - a morte.

O critério etário, entretanto, não se deu apenas por um caráter negativo, o da exclusão

do idoso do processo produtivo. A sociedade capitalista, neste sentido, também demarcou,

com base em lutas sociais dos trabalhadores, um sentido positivo para ele: o do afastamento

do trabalho para um descanso remunerado na etapa final da vida. Sendo assim, tal critério

serve também ao propósito de demarcar uma idade para que os indivíduos parassem de

trabalhar e passassem a receber benefícios e assistência do governo. Observa-se, portanto, que

o dito critério científico aponta, ao tratar da determinação a fim de estabelecer uma mudança

de categoria etária, para diferentes interesses e confrontos com marcados traços sociais e

históricos (DEBERT, 1999b; ERBOLATO, 2000; FRANÇA, 1999).

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Embora benefícios extraídos de tal categorização sejam hauridos, como, por exemplo,

a aposentadoria, implicando uma melhoria da qualidade de vida dos idosos, cria-se com isso

um outro complicador, pois ela se marca por um caráter homogeneizador, haja vista a criação

“de uma identidade comum em torno do universo da velhice, uma vez que classifica as

pessoas não-produtivas segundo a idade cronológica”(PEREIRA, 2005, p. 40), reforçando

assim o sentido negativo pelo qual a sociedade capitalista a define .

É importante ressaltar, além disso, que o critério etário nem sempre demarcou a

representação da velhice. Em outras épocas, como se viu, ela foi reconhecida de modo

diverso: não a partir de um referencial biológico, mas tendo como definidor uma sabedoria

adquirida pela experiência. Isso, contudo, se modificou na sociedade capitalista, porque,

segundo Veras (2004, p. 425):

[...] a ciência impulsiona o processo do capitalismo global, como produto e sustentáculo do desenvolvimento da sociedade moderna. Se, por um lado, muitos benefícios foram alcançados por intermédio do conhecimento científico, por outro, a ciência silenciou outras formas de saber. Neste contexto, a tradição e a sabedoria dos anciãos perderam valor frente à palavra da ciência.

Cabral (1996 apud GUSMÃO, 2001, p. 121), ademais, afirma que em outras

sociedades:

[...] o saber acumulado pelo velho o habilita a um lugar de destaque. Porém, numa sociedade centrada no jovem e no que representa sua força de trabalho e produção, o velho torna-se aquele que já não pode responder aos objetivos do sistema. A contradição que lhe é inerente - e à velhice - coloca os limites do que é razoável como comportamento, atitude que se espera daquele que envelhece. O que se espera é que não impeça o processo social, ordenado de modo capitalista e racional. Espera-se que, da velhice, não se levantem os aspectos ‘reprimidos’ da vida sócio-cultural. O velho e a velhice fazem parte da vida sócio-cultural, mas nela estão sem lugar. São, pois, sujeitos reprimidos no contexto social, sem possuir ou ter uma forma óbvia de expressão.

A idade, embora estivesse de alguma forma presente como critério de demarcação de

grupos nas sociedades arcaicas, não apresenta a mesma relevância dada no mundo moderno.

Conforme salienta Debert (1998, 1999b) e Sommerhalder e Nogueira (2000), os idosos de

sociedades históricas e tradicionais, de modo geral, eram valorizados por servirem como

mantenedores e transmissores dos valores, pela sabedoria, experiência e conhecimento

adquiridos ao longo da vida. Estas últimas autoras ressaltam que, com o processo de

modernização da sociedade, tal papel se perdeu, tendo ele sido assumido por outras

instituições e categorias sociais.

Não se pode, assim sendo, considerar a classificação etária em seu caráter estritamente

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científico. Desse modo, é necessário reafirmar-lhe sua demarcação histórica com a

conseqüente mudança de estatuto social do idoso. Groisman (1999 apud PRADO, 2002),

nesse sentido, afirma que:

[...] nas sociedades pré-modernas, os idosos gozavam de prestígio e eram respeitados pelos demais em sua autoridade e sabedoria derivada da posição de patriarcas em extensas famílias onde os velhos detinham conhecimento e poder. Com o processo de modernização, a industrialização traria o afastamento dos velhos do mundo produtivo, a urbanização resultaria na redução do tamanho da família esgotando o poder patriarcal do idoso, cujo saber não seria mais adequado às necessidades dos jovens escolarizados e mais valorizados e, por fim, a marginalização e a solidão constituiriam, em conjunto, as mazelas de uma nova forma de discriminação social: o ‘etarismo’.

Os idosos, portanto, ocupam posições sociais e lugares simbólicos variados nas

diversas culturas. Sendo assim, enquanto no ocidente, como se viu, há maior tendência a

valorizar-se o jovem, visto este deter forças para a produção econômica, no oriente, a velhice,

ainda hoje mais valorizada, é compreendida como sinônimo de sabedoria e experiência,

assumindo os idosos importantes funções no seio familiar e da comunidade na qual se inserem

(DEBERT, 1998, 1999b).

A perspectiva da categorização etária, contudo, não é, como aponta a própria OMS,

um critério rígido e absoluto no mundo moderno. Ela já passa assim a sofrer matizes e

contornos, pois em sociedades pós-modernas de países mais desenvolvidos, por exemplo, a

diferenciação por idade pode não assumir tamanha importância discriminatória, visto que:

[...] o sistema de gradação por idade é flexível graças à interveniência de técnicas de prolongamento da juventude, à disseminação de novos valores relativos à sexualidade das pessoas mais velhas, ao sistema de bem-estar social que discrimina menos os cidadãos idosos, às mudanças tecnológicas no trabalho, à possibilidade de adiamento da aposentadoria (NERI, 2001a, p. 18).

Por isso mesmo, quando se estipulam categorias etárias na diferenciação das etapas do

desenvolvimento humano, verifica-se que determinados papéis sociais podem confrontar-se

com a idade cronológica, traçando-lhe limites. A categorização etária deve ser assim

considerada apenas como uma questão referencial, visto que varie o modo de vivenciar o

envelhecimento em função das diferentes histórias de vida dos indivíduos e dos diversos

contextos sociais em que eles se inserem (PEREIRA, 2005).

Debert (1999a, p. 50) também aponta limites da categorização do idoso por critério

etário, pois esta “está impregnada de uma visão essencialista, de caráter biológico e a-

histórico da vida”. O problema do idoso configura, pois, as dobras e articulações da própria

sociedade, pois se esta, por um lado, pode determiná-la de algum modo a partir de certos

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parâmetros etários, por outro, as respostas e soluções dão a espessura do enfrentamento que

uma sociedade pode ter, de tal modo que ao invés de fissuras apresentem-se rearticulações de

uma sociedade mais satisfatoriamente constituída.

Cabe também ressaltar, como faz Beauvoir (1990), que a atitude da sociedade, no que

tange à classificação etária da velhice, é ambígua. Em geral, ela não a considera como uma

fase de idade nitidamente marcada. Sendo assim, pode-se afirmar que a crise da puberdade

permite traçar entre o adolescente e o adulto uma linha de demarcação, arbitrária apenas

dentro de limites estreitos: com dezoito anos, com vinte e um anos, os jovens são admitidos

na sociedade dos homens. Quase sempre os “ritos de passagem” envolvem esta promoção. O

momento em que começa a idade avançada, no entanto, é mal definido, e varia de acordo com

as épocas e lugares. Não se encontram, em parte alguma, estes “ritos de passagem” que

estabeleçam a velhice como um novo estatuto social em que o indivíduo adentre.

1.4 O critério etário como determinante de comportamentos e papéis sociais

Cabe ainda reforçar um aspecto já mencionado como outra dificuldade própria de se

restringir a longevidade à categorização etária. Como uma sociedade, de modo geral,

organiza-se com base em critérios cronológicos, isto é, define comportamentos de acordo com

a faixa de idade das pessoas8, as expectativas e convenções sociais e a forma de organização

de um grupo dependem de parâmetros sociais e exercem influência no modo como os

indivíduos agem e são julgados. O critério cronológico funciona, desse modo, como ponto de

referência e como elemento organizador, uma vez que se vive num mundo temporalizado.

Neste mesmo sentido, Camarano e Medeiros (1999, p. 7) afirmam que “uma das

conseqüências do uso da idade para a definição de idoso é o poder prescritivo contido nessa

definição”. A sociedade cria expectativas em relação aos papéis sociais dos idosos e exerce,

desse modo, diversas formas de coerção para que eles sejam cumpridos, desconsiderando as

características peculiares dos indivíduos (PRADO, 2002).

Isso, contudo, deveria ser matizado pelo reconhecimento de que há padrões e

regulações sociais que definem as diferenças de tais agrupamentos para além dos critérios

8 O critério etário, porém, não é o único utilizado pela sociedade para organizar o curso de vida. Há também, segundo Neri (2001a), critérios de classe social, etnia, profissão e educação que se entrelaçam para determinar a posição dos indivíduos e dos grupos na sociedade. Nesta pesquisa considerou-se, portanto, todos estes critérios na compreensão das representações dos idosos abrigados.

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estritamente etários. O envelhecimento não possui valor unívoco (DEPS, 1993). Assim sendo,

antropológica e culturalmente, a idade cronológica não pode ser vista como um dado apenas

objetivo, pois ela é significada como um princípio que norteia novos direitos e deveres:

[...] A infância, a adolescência, a vida adulta e a velhice não constituem propriedades substanciais que os indivíduos adquirem com o avanço da idade. Pelo contrário, o processo biológico, que é real e pode ser reconhecido por sinais externos do corpo, é apropriado e elaborado simbolicamente por todas as sociedades, em rituais que definem, nas fronteiras etárias, um sentido político e organizador do sistema social (MINAYO; COIMBRA JÚNIOR, 2002, p. 15).

Nessa perspectiva, os idosos tendem a apresentar os mesmos comportamentos e

características atribuídas à sua idade, sem possibilidade de pensar e agir de modo diferente do

que deles se espera. Além disso, ao associar os indivíduos de idade avançada aos aspectos

depreciativos, reforça-se, assim, a visão de inutilidade e incapacidade imposta sobre os idosos

pelo meio. Isso pode contribuir, cada vez mais, para o seu afastamento das relações com o

outro, bem como para evitar a realização de atividades, transformando o envelhecimento em

uma experiência difícil de ser enfrentada.

1.5 A velhice, afinal, como construção histórica e social

A velhice, portanto, não é apenas um dado preciso e estritamente científico. Ao

contrário, ela é significada histórica e socialmente (SILVEIRA, 2002): a longevidade, como

em todas as situações humanas, tem uma dimensão existencial e modifica a relação do

homem com o tempo, com o mundo e com sua própria história, revestindo-se de

características biopsíquicas, bem como de aspectos sociais e culturais. O homem, assim

sendo, nunca vive em estado natural. Na sua idade avançada, como em qualquer idade, seu

estatuto lhe é imposto pela sociedade à qual pertence (BEAUVOIR, 1990).

Os traços culturais e históricos que determinam os indivíduos de idades avançadas em

dada sociedade não deixam de expor esta pelo reverso. Sendo assim, o papel e valor

assumidos por estes indivíduos podem colocá-la em questão:

[...] uma vez que, através dela, desvenda-se o sentido ou o não sentido de qualquer vida anterior. Mas se a velhice, enquanto destino biológico, é uma realidade que transcende a história, não é menos verdade que este destino é vivido de maneira variável segundo o contexto social. Para julgar a nossa coletividade, é necessário confrontar as soluções que ela escolheu com as que outras adotaram, através do tempo e do espaço. Essa comparação

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permitirá determinar o que a condição do velho comporta de inelutável, em que medida e a que preço poderiam ser amenizadas suas dificuldades e qual é, portanto, a parte de responsabilidade para com o idoso que se pode atribuir ao sistema no qual vivemos (BEAUVOIR, 1990, p. 16).

É preciso, pois, ao tratar da longevidade, vê-la como articulada em traços históricos

que desenham a configuração da própria sociedade, pois as respostas e soluções oferecidas

por esta desvelam seus próprios conflitos. Segundo Lloret (1998 apud GUSMÃO, 2001, p.

119), é necessário compreender:

[...] como se articulam as imagens impostas pela memória coletiva, pelo imaginário social ou pelo costume. Também há que se avaliar como as práticas cotidianas reforçam essas imagens ou as recriam, além de desvelar o modo como certos estudos sociais ou psicossociais, certos interesses econômicos e políticos - sem esquecer as razões legislativas e gerenciais na classificação ou ordenação das populações - as conformam e determinam.

1.6 O idoso na sociedade contemporânea

A idéia de incapacidade física e as perdas dela decorrentes estiveram, como se viu,

sempre associadas à caracterização do envelhecimento com o advento do capitalismo. Dadas,

no entanto, as novas condições propiciadas pela medicina, atualmente evidencia-se o

prolongamento da vida dos idosos, acarretando mudanças nas representações sociais destes,

deixando-se assim de focar apenas a doença e a decrepitude física, mas passando-se a também

pôr em relevo suas possíveis atividades e satisfações.

Cabe, assim, ressaltar que, contemporaneamente, o critério etário produzido social e

historicamente com o advento do capitalismo tem sido matizado com fortes nuanças. A

longevidade, assim sendo, tem sido tema de pesquisas em diversas áreas acadêmicas,

sobretudo nas áreas relacionadas à qualidade de vida e saúde física e mental dos idosos.

A própria noção de terceira idade, conforme salienta Debert (1998), é assim uma

criação recente das sociedades ocidentais contemporâneas a partir destas novas abordagens

para representar positivamente a velhice9. Ela é, por isso mesmo, acompanhada de um

9 As próprias palavras carregam semanticamente a valoração que a sociedade dá ao referente, conforme se depreende da Teoria das Representações Sociais. Sendo assim, hoje em dia, chamar alguém de velho ou falar da velhice implica uma forte carga semântica negativa. Neste estudo, por isso mesmo, a partir de agora, serão utilizados preferencialmente o termo idoso e a palavra longevidade ou terceira idade em vez de velho e velhice, justamente para evitar esta representação social negativa presente em tais palavras. No entanto, como se viu, não pareceu ser preciso evitá-las quando delas se falava como construção histórica. Além disso, visto uma vasta bibliografia se refira à velhice, haverá ainda momentos em que se julgou sem sentido corrigi-la, desde que se tenham presentes as devidas ressalvas feitas aqui.

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conjunto de práticas e instituições encarregadas de atender as necessidades dessa população

que, a partir dos anos 70 do século XX, em boa parte das sociedades européias e americanas,

deveria ser afastada da marginalização e solidão que até então a caracterizavam.

Embora o processo de envelhecimento e a procura por alternativas propiciadoras de

uma longevidade satisfatória sejam, cada vez mais, postos em evidência e discutidos,

constituindo, inclusive, temas de inúmeras produções acadêmicas, percebe-se, contudo, ao

analisar as condições de saúde e bem-estar oferecidas aos idosos, nem sempre haver uma

efetiva melhora nas condições de vida dos mesmos (VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987).

Além disso, ainda prevalecem socialmente os antigos preconceitos contra eles. Estes são,

sobretudo, manifestados, conforme apontam Neri e Freire (2000, p. 8):

[...] sob a forma de afastamento, desgosto, ridicularização e negação, por respostas de ingênua benevolência e por práticas discriminatórias. Há uma grande associação, seja através da rejeição ou da exaltação acrítica da velhice, entre esse evento do ciclo vital com a morte, a doença, o afastamento e a dependência.

Nota-se, outrossim, um outro problema que a sociedade contemporânea lança aos

idosos: diferentemente deste afastamento e rejeição imposto ao idoso, decorrentes, como se

viu, de certas diretrizes próprias do capitalismo, há hoje, por parte do meio social, quase

contraditoriamente, expectativas e cobranças que exigem deles uma participação mais ativa e

efetiva na sociedade contemporânea (DEBERT, 1999b).

Cria-se, assim, tal expectativa de que os idosos sigam um padrão que não é adequado a

sua faixa etária, sem considerar-lhes as especificidades. Não se oferece, contudo, ao menos a

uma grande parte dos idosos, a possibilidade de condições para a realização de tais tarefas

assim preconizadas; nem mesmo, quando da impossibilidade de cumpri-las, a experimentação

efetiva de novos papéis no meio em que eles se inserem (NERI, 1993).

A questão é ainda mais delicada em vista das melhoras tecnológicas e das condições

de saúde pública. Decorre delas um significativo aumento mundial do número de idosos.

Segundo Veras (2004, p. 424), o “cenário que se desenha é de profundas transformações

sociais, não só pelo aumento proporcional do número de idosos nos diferentes países e

sociedades, mas igualmente em função do desenvolvimento da ciência e da tecnologia”.

O problema é maior em países mais pobres, em menores condições, portanto, de

enfrentar esta questão. Sendo assim, as características principais deste processo de

envelhecimento em países subdesenvolvidos, conforme apontam Ramos, Veras e Kalache

(1987, p. 211), decorrem:

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[...] de um lado, do fato do envelhecimento populacional estar se dando sem que tenha havido uma real melhoria das condições de vida de uma grande parcela dessas populações; de outro lado, da rapidez com que esse envelhecimento está ocorrendo. Na verdade, nos países menos desenvolvidos, o contingente de pessoas prestes a envelhecer, dadas as reduções nas taxas de mortalidade, é proporcionalmente bastante expressivo quando comparado com o contingente disponível no início do século nos países desenvolvidos. Com a baixa real da fecundidade, a tendência é haver transformações drásticas na estrutura etária desses países, em tempo relativamente curto, sem que as conquistas sociais tenham se processado devidamente para a maioria da população.

Esta nova face histórica do processo de envelhecimento populacional acarreta,

portanto, novos e graves desafios em países menos desenvolvidos. No Brasil, por exemplo, os

problemas avolumam-se em função do descaso e desatenção sociais para com a questão,

expressos, sobretudo, pela escassez de recursos financeiros destinados ao atendimento de uma

demanda crescente do segmento idoso.

Desse modo, reserva-se a alguns os benefícios do avanço tecnológico e médico,

enquanto à maior parte dos idosos resta apenas a possibilidade de uma vida limitada e sem

oportunidades:

[...] A grande maioria dos idosos compõe aquela parte da população que, confrontada com as novas perspectivas de envelhecimento abertas pela modernidade, delas pouco se apropria. Nesses casos, pode-se dizer que os idosos são vítimas de uma dupla discriminação - a da idade e a da pobreza - que aprofunda sua exclusão (GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000, p. 116-117).

Tais questões, conseqüentemente, refletem-se sobretudo na vida atual dos idosos

brasileiros institucionalizados, visto que estes se deparem com um problema duplo: além da

dificuldade de inserção social em decorrência da idade avançada, sofrem ruptura do modo de

vida anterior na sociedade pelo fato de passarem a viver em instituições de abrigo,

resignando-se a este modo de vida.

Percebe-se assim, conforme aponta Chauí (1994), que ainda hoje grande parte dos

idosos é tratada sob a ótica do regime capitalista, pois não possuem função social que outras

sociedades lhes atribuíam, uma vez que habilidades como aconselhar e lembrar são

mecanismos não valorizados, ocorrendo opressão à velhice. Esta opressão, conforme afirma a

autora, ocorre a partir de mecanismos institucionais visíveis, como os abrigos, bem como por

questões psicológicas expressas por meio da discriminação e inexistência do diálogo.

Estabelecido, pois, que a demarcação daquilo que contemporaneamente se denomina

terceira idade é uma construção histórica e social; estabelecido quais são certas representações

sociais dominantes na sociedade contemporânea, cabe agora, passo seguinte e importante para

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objetivo aqui traçado, demarcar qual papel social é hoje em dia reservado às instituições e aos

abrigos, especificando-lhes a relação para com o idoso.

1.7 Institucionalização do idoso

As manifestas mudanças biológicas decorrentes da idade acarretam, pois, quando

vistas sob o ângulo das perspectivas sociais, perdas ainda maiores por parte dos indivíduos

mais longevos. Ao se investigar, por exemplo, a percepção que indivíduos com idade entre

treze e quarenta e cinco anos têm dos mais velhos, constatou-se, nos resultados de pesquisa

obtidos por Neri (1993), que elas apresentaram uma tendência a relacioná-la com

improdutividade, dependência, solidão, conflitos familiares e desvalorização social, aspectos

estes associados à perda da autonomia e mudança de papéis sociais decorrentes da idade.

Além disso, da perspectiva do psiquismo do próprio idoso, segundo Davim et al.

(2004), a progressiva perda de recursos físicos, mentais e sociais tende a despertar

sentimentos de desamparo. O prolongamento da vida humana, portanto, parece deixar o

indivíduo impotente, indefeso e fragilizado para tomar as suas próprias decisões e enfrentar os

seus problemas cotidianos.

Os idosos, sendo assim, têm sido vistos como pessoas improdutivas, mas pouco se faz

para recuperar sua identidade e elevar a sua auto-estima. Além disso, eles nem sempre

permanecem no convívio dos seus familiares, passando a morar em abrigos, longe de parentes

e amigos.

Tal separação, além disso, não é a única marca de tal agrupamento. Há, além desta,

para os idosos que vivem em abrigo, outro agravante que socialmente lhes caracteriza mais

fortemente: a exclusão social como um outro possível estigma a ser marcado naqueles que ali

vivem. A questão, neste caso, é ainda mais complexa, visto que tais idosos passem a residir

em locais caracterizados, conforme salienta Goffman (1961), como um modelo de instituição

total.

As instituições totais caracterizam-se por “seu fechamento ou seu caráter total” para

com a sociedade. São, assim, “simbolizadas pela barreira à relação social com o mundo

externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico, como por

exemplo, portas fechadas e paredes altas” (GOFFMAN, 1961, p. 16).

A barreira imposta pelas instituições totais entre o internado e o mundo externo

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assinala uma “mutilação do eu”, haja vista a modificação do modo de vida sofrida em função

da rotina estabelecida pela instituição e sua forma padronizada de funcionamento, cujo

objetivo principal é a manutenção do controle dos seus membros:

[...] O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas instituições totais, começa com uma série de rebaixamento, degradações, humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito e a respeito dos outros que são significativos para ele (GOFFMAN, 1961, p. 24).

Os internados, ao chegarem na instituição, possuem uma “cultura aparente”, derivada

de um “mundo da família”, na qual o modo de vida e o conjunto de atividades sociais lhes

determinam a identidade. As instituições totais, por sua vez, parecem não substituir, pela sua

cultura específica, o que fora construído pelo internado até a sua admissão na instituição.

Nesse sentido, “se ocorre mudança cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas

oportunidades de comportamento e ao fracasso para acompanhar mudanças sociais recentes

no mundo externo” (GOFFMAN, 1961, p. 23).

Este autor também aponta algumas características que são próprias das instituições

totais: todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e por meio de uma única

autoridade; a atividade diária do institucionalizado é realizada na companhia de um grupo de

pessoas e estas são tratadas do mesmo modo; além disso, elas são obrigadas a fazer as

mesmas atividades em conjunto; as atividades diárias são estabelecidas em horários pré-

determinados.

Tais atividades obrigatórias são supostamente planejadas para atender sobretudo aos

objetivos da instituição. Resta saber como nela se sente quem foi afastado de uma cultura

anterior diversa e, muita vez, é obrigado a viver nesta outra. A representação social dela por

idosos que nela vivem pode aclarar tal questão. Mais do que isso, pode-se, a partir deste ponto

específico, de alguma maneira indicar, a partir da avaliação dos próprios idosos, melhorias na

instituição para otimizar a qualidade de vida dos que ali estão abrigados, bem como de uma

nova inserção mais satisfatória na sociedade mesmo com a permanência deles na instituição.

Tais objetivos, com efeito, são uma das maiores preocupações da sociedade atual com relação

ao idoso, características próprias daquilo que ora se denomina como terceira idade.

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1.8 Qualidade de vida na terceira idade

Segundo Neri (1993), avaliar a qualidade de vida na terceira idade implica na adoção

de critérios de ordem: biológica, como a longevidade e a saúde do corpo; psicológica, como a

saúde mental; sócio-cultural, como o grau de satisfação com a vida, atividades realizadas e

produtividade; familiar, como a continuidade dos papéis exercidos na família; de convivência

social, como as relações informais e de amizade. Assim sendo, o contexto social, as políticas

públicas orientadas aos idosos, os eventos de vida atuais e passados e as características

pessoais podem lhes constituir tanto uma ameaça como, ao contrário, prover um

envelhecimento satisfatório.

Estudos recentes sobre o envelhecimento demonstram que a longevidade não tem sido

tratada apenas como uma ausência temporária de doença e tão pouco como um período

caracterizado basicamente por ansiedade, preocupação e solidão. A tendência contemporânea

sobre o envelhecimento consiste assim numa revisão dos estereótipos a ele associados. Desse

modo, a “idéia de um processo de perdas tem sido substituída pela consideração de que os

estágios mais avançados da vida são momentos propícios para novas conquistas, guiadas pela

busca do prazer e da satisfação social” (DEBERT, 1999b, p. 14).

Há, desde a década de 40, interesse na investigação dos fatores que influenciam na

qualidade de vida. Os estudos iniciais, segundo Neri (1993), apontaram a satisfação e a

expectativa futura de vida como aspectos essenciais para o bem-estar dos idosos. Além disso,

as novas concepções, desenvolvidas a partir dos anos 70, consideram que uma qualidade de

vida satisfatória, no que se passou a qualificar como terceira idade, é resultante de todo o

percurso de vida do indivíduo (NERI; FREIRE, 2000). Tais estudos vão, pois, na contramão

dos que consideram a longevidade apenas na perspectiva de uma homogeinização, sobretudo,

como se viu, em decorrência de um agrupamento etário.

O conceito de qualidade de vida, sendo assim, está relacionado à auto-estima e ao

bem-estar pessoal e abrange uma série de aspectos como: a capacidade funcional; o nível

sócio-econômico; o estado emocional; a interação social; a atividade intelectual; o auto-

cuidado; o suporte familiar; o próprio estado de saúde; os valores culturais, éticos e a

religiosidade; o estilo de vida; a satisfação com o emprego ou com atividades diárias; o

ambiente em que se vive (VECCHIA et al., 2005).

Além disso, alguns estudos, conforme aponta Vitta (2000), mostram que há relação

entre as mudanças físicas e fisiológicas do envelhecimento com as de natureza psicossocial.

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As dificuldades para realizar atividades cotidianas, decorrentes das limitações físicas,

interferem na relação social e na autonomia, resultando em alterações emocionais. Desse

modo, encontra-se, com freqüência, entre idosos, sobretudo os doentes, uma diminuição na

satisfação com a vida, na auto-estima e na autonomia, além de quadros de depressão, de

ansiedade e solidão.

1.9 Solidão: mal-estar da velhice?

Cabe, pois, por um lado, ressaltar o isolamento como um dos fatores determinantes na

sociedade contemporânea para a perda de satisfação com a vida para o idoso, pois a solidão é

representada socialmente como um dos aspectos marcantes dos indivíduos em idades

avançadas, traçando em grande parte os contornos do seu psiquismo; por outro, contudo, é

preciso apresentar o modo de combatê-la, facultando ao idoso as atividades que criem ou

recriem elos sociais. Tal dilema é, pois, a razão dos dois próximos tópicos deste estudo. Mais

à frente, ver-se-á, inclusive, que a solidão é uma das subcategorias temáticas extraídas dos

discursos dos entrevistados.

A solidão, de acordo com Capitanini (2000), é um dos aspectos mais ressaltados como

fator de mal-estar na velhice. Nos últimos trinta anos tem-se atentado, em função das

condições da vida moderna e dos novos arranjos familiares, para tal questão como grave

problemática da terceira idade, pois as mudanças freqüentes no estilo de vida contribuem para

o isolamento dos idosos.

Há inúmeros fatores que podem acarretar na solidão do idoso. Segundo Davim et al.

(2004, p. 519):

[...] a situação familiar do idoso no Brasil reflete o efeito cumulativo em eventos sócio-econômicos, demográficos e de saúde ao longo dos anos, demonstrando que o tamanho da prole, as separações, o celibato, a mortalidade, a viuvez, os recasamentos e as migrações, vão originando, no decorrer das décadas, tipos de arranjos familiares e domésticos, no qual o morar sozinho, com parentes ou em asilos, pode ser o resultado desses desenlaces.

Existem, no entanto, aspectos relevantes do psiquismo dos idosos que parecem

sustentá-los contra as vicissitudes da solidão. O psiquismo acentua, resgata ou incorpora

novos horizontes para fortalecer-se. Sendo assim, alguns indivíduos, com o avançar da idade,

acentuam as preocupações com questões de foro íntimo, sobretudo aquelas relacionadas com

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sentimentos e comportamentos religiosos. Percebe-se, portanto, que há modificação no

interesse e na personalidade, em função da idade, conduzindo os indivíduos para uma

interiorização:

[...] Esse aumento da auto-reflexão e introspecção, que tende a se iniciar na meia-idade e acentuar-se com o passar dos anos, traz consigo reflexões de natureza retrospectiva, avaliação da vida, busca de um significado ou propósito para a vida, considerações sobre o futuro e a finitude da existência, o que abre a porta para as questões religiosas (GOLDSTEIN, 1993, p. 93).

1.10 Religiosidade e sua carga simbólica

Os resultados de uma pesquisa realizada por Goldstein e Neri (1993), que objetivou

investigar, dentre outros fatores, a opinião dos adultos sobre um eventual aumento da sua

religiosidade com o passar dos anos, mostraram que 70% dos participantes afirmam ter

percebido que a sua religiosidade aumentou com a idade. Destes, 78,6% vêem esse aumento

como reflexo de seu crescimento pessoal; 14,5% atribuem-no a algum acontecimento

marcante em suas vidas; 6,8% mencionam mudanças de um grupo religioso para outro. O

aumento da religiosidade como reflexo do crescimento pessoal, conforme o que é declarado

pela maioria, estaria vinculado à adesão a uma relação mais pessoal com a divindade como

forma de lidar com o estresse. De acordo com essa mesma pesquisa, para 87,3%, as

representações das relações com Deus ajudam a lidar com a solidão; 68,2% apegam-se à fé

como o elemento mais importante na vida; 95,3% apóiam-se na crença em Deus em ocasiões

difíceis, buscando apoio ou força.

Os fenômenos da solidão e da religiosidade no universo de marcas discursivas desta

pesquisa se apresentam nas representações por idosos abrigados como diálogos com o divino

e o transcendente. Entende-se, com isso, que eles talvez melhor possam articular socialmente

as constituições do psiquismo, por meio da ancoragem e objetivação, enquadrando as novas

relações sociais, com as quais se deparam por meio de práticas religiosas e crença na

divindade, a esquemas antigos.

1.11 Reativação10: antídoto contra a solidão?

10 Reativação, conforme sugestão do Prof. Dr. Marco Antônio de C. Figueiredo no Exame de Qualificação, significa retomada do espaço vital para reintegração no convívio social e incorporação de realizações pessoais no

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O idoso nem sempre, contudo, pende para a solidão. Ao contrário, freqüentemente ele

procura se manter ligado às principais fontes de significado das funções sociais, ou seja, a

reativação, o trabalho e a manutenção dos papéis sociais são nele fatores valorados e

importantes. Sendo assim, como são socialmente postos, estes favorecem a obtenção de

satisfação pessoal e propiciam significados e sentidos à existência, repercutindo

favoravelmente no desenvolvimento da saúde física e mental. No entanto, nem sempre isso

ocorre, pois dadas as condições materiais e as representações socialmente dominantes do

processo de envelhecimento no regime de produção capitalista, os idosos são, via de regra,

afastados dos seus postos de trabalho e de seus anteriores papéis sociais (CAPITANINI,

2000).

De acordo com os dados apresentados numa pesquisa sobre a relação entre o trabalho

feminino e saúde na terceira idade, verifica-se que há diferenças significativas do estado de

saúde entre as idosas que permanecem no mercado de trabalho e as que estão inativas.

Percebe-se, assim, que as idosas ativas, na maioria dos casos, avaliam a sua própria saúde

como satisfatória e relatam menor freqüência de doenças crônicas. A permanência destas

mulheres na vida produtiva representa, portanto, “diferenças sócio-demográficas nas

condições de saúde, mobilidade e autonomia e no uso de serviços de saúde. O trabalho, assim

como a condição de saúde das idosas, é conseqüência de eventos ocorridos ao longo da vida”

(BARRETO; GIATTI, 2002, p. 838).

A percepção negativa da terceira idade reflete nas reduzidas oportunidades no

mercado de trabalho oferecidas aos idosos e nos inexistentes ou escassos investimentos para a

sua reciclagem e atualização, visto que o estigma associado à idade limita as suas

possibilidades de opção e de decisão por uma atividade. Desse modo, tendo em vista padrões

atuais de produtividade, “o investimento no idoso ou para o idoso é subestimado, uma vez que

não se acredita na possibilidade de retorno. O seu bem-estar é secundado em uma política que

privilegia o mais jovem, sem levar em conta o princípio democrático de igualdade social”

(DEPS, 1993, p. 73).

A questão é ainda mais grave para os idosos abrigados em instituições. Na análise

específica de integração social da velhice sob a perspectiva de idosos institucionalizados, em

pesquisa realizada por Neri (1993), verificou-se que a reduzida participação dos mesmos em

atividades operacionais deve ser compreendida dentro de uma análise ampla do contexto

institucional no qual eles estão inseridos. Constata-se, em grande parte dos abrigos, o

despreparo ou mesmo a falta de recursos e pessoal capacitado, fazendo que eles adquiram a cotidiano vivido na terceira idade.

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característica de “depositários” de idosos.

Davim et al. (2004, p. 520), deste modo, caracteriza as instituições asilares como:

[...] locais com espaço e áreas físicas semelhantes a grandes alojamentos, em que raras são as que mantêm pessoal especializado para assistência social e à saúde ou que possuam uma proposta de trabalho voltada para manter o idoso independente e autônomo. Eles vivem, na maioria das vezes, como se estivessem em reformatórios ou internatos, com regras de entradas e saídas, poucas possibilidades de vida social, afetiva e sexual ativa. Na realidade, muitas vezes o que se encontra são depósitos de pessoas, que, fundamentados na idéia de amor ao próximo e amparo aos desabrigados, consideram que os abrigos, juntamente com os cuidados a eles prestados, são suficientes às pessoas que estejam em seus últimos dias de vida.

A mudança na concepção dos indivíduos com idade próxima ou superior a sessenta

anos deveria, assim, refletir-se também no melhor planejamento do espaço físico, com

conseqüente adequação deste às práticas de determinadas atividades, pois várias dificuldades

específicas do idoso obstaculizam sua realização.

Neste sentido, Cardoso (2005, p. 41) afirma que:

[...] à medida que aumenta a população dependente, seja pelo ingresso de novos residentes, ou fragilização dos antigos, uma instituição para idosos corre o risco de tornar-se um hospital de terceira linha ou, pior, uma antecâmera da morte. Mantê-la como unidade de vida ou como qualquer lugar onde a vida é valorizada e a dignidade dos idosos é reconhecida até o leito da morte é um desafio permanente para as instituições.

Na análise das entrevistas, a partir da fala dos idosos abrigados, a reativação apresenta

por ancoragem a recomposição do que anteriormente figuravam pelo trabalho, podendo assim

dizer que ela se lhes figura como um modo de inclusão social a partir dos novos esquemas

presentes na vida deles no abrigo.

1.12 Do crescimento da população idosa

Não se pode também, ao se indagar sobre o papel dos idosos na sociedade e em suas

transformações, ignorar o aumento mundial da população idosa nas últimas décadas.

Dados fornecidos por Silva e Neri (1993) a respeito do aumento progressivo da

população idosa no Brasil apontam que, até 1950, era de 4% a taxa de pessoas que

apresentavam 60 anos de idade. A partir daquele ano tal porcentagem elevou-se, apresentando

uma taxa de 5,15% em 1970, 6,1% em 1980 e 7,2% no início dos anos 90. Em 2005, por sua

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vez, verificou-se que há 15% de idosos na população brasileira, enquanto eles são 17% da

população nos países desenvolvidos.

Pereira, Curioni e Veras (2003) afirmam, segundo dados do Instituto Brasileiro de

Geografia e Estatística – IBGE (2002), que em 1950 eram cerca de 204 milhões de idosos no

mundo. Já em 1998, quase cinco décadas depois, esse contingente alcançava 579 milhões de

pessoas, um crescimento de quase 8 milhões de pessoas idosas por ano. As projeções indicam

que, em 2050, a população idosa será de 1.900 milhões de pessoas, montante equivalente à

população infantil de 0 a 14 anos de idade.

De acordo com Ramos et al. (1987 apud REZENDE, 2001, p. 1), o Brasil, em 1950,

ocupava a 16a posição entre os países que apresentavam o maior número de idosos do mundo,

contando com cerca de 2.000.000 de pessoas com a idade de 60 anos ou mais, dado

equivalente a 4,8% do total da população. Dados projetam que em 75 anos tal número

percentual poderá quase triplicar.

Os dados apontados pelo IBGE no ano de 1978, segundo Silva e Neri (1993), mostram

que a expectativa de vida da população brasileira, em 1950, era de 50 anos, visto que apenas

35% das pessoas atingiam a idade de 60 anos.

Berquó (1999), porém, ressalta que a população, entre 1940 e 1960, experimentou um

aumento em seu ritmo de crescimento anual que se elevou de 2,34% ao ano, na década de

1940, para 3,05% no decênio seguinte. Essa transição ocorreu devido ao declínio da

mortalidade e uma constância, nesse período, na taxa de natalidade que foi igual a 6,2 filhos

por mulher. A expectativa de vida, por sua vez, elevou-se de 41,5 anos em 1940 para 51,6

anos em 1960.

Houve, assim, predomínio no Brasil, até 1970, de jovens menores de 15 anos em

relação a adultos de 15 a 64 anos, e de idosos de 65 anos ou mais. Após esse período e, por

decorrência da queda da taxa de natalidade, grupo de jovens passou a representar, a partir de

1980, proporcionalmente bem menos no cômputo geral da população, abrindo, com isso,

espaço para aumentar o peso relativo dos agrupamentos etários até então minoritários

(BERQUÓ, 1999).

O aumento atual da população de idosos no Brasil cresce significativamente, sendo um

dos países em que tal fenômeno ocorre com maior índice percentual de crescimento.

Pesquisadores interessados no estudo de idosos brasileiros reconhecem a contribuição dos

avanços médicos no aumento da expectativa de vida da população. Houve, então, ao se

comparar a situação de vida da população atual com a de trinta ou quarenta anos atrás, uma

“melhoria nutricional, elevação dos níveis de higiene pessoal, melhores condições sanitárias

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em geral e, particularmente, condições ambientais no trabalho e nas residências muito mais

adequadas que anteriormente” (VERAS, 1988, p. 384).

No Brasil, conforme descreve este mesmo autor, a interação desses fatores, na

explicação do aumento percentual da população idosa, provocou redução das taxas de

mortalidade, sobretudo nos primeiros anos de vida, e diminuição significativa do índice de

natalidade, principalmente nos centros urbanos.

Os motivos desta diminuição decorreram, portanto, do intenso processo de

urbanização da população brasileira e da necessidade de limitação do aumento da família,

associados a um modo de vida diverso devido a uma crise econômica. Este contexto assim se

caracterizou pela progressiva incorporação da mulher à força de trabalho; pelas mudanças de

padrões sócio-culturais decorrentes da própria migração; da veiculação, pelos meios de

comunicação, de um padrão de vida caracterizado, sobretudo, por um número reduzido de

integrantes das famílias; pela crescente propagação dos meios contraceptivos (RAMOS;

VERAS; KALACHE, 1987; VERAS, 1988).

Chaimowicz (1997, p. 188), nesse sentido, afirma que:

[...] nos países industrializados a queda das taxas de mortalidade e fecundidade, iniciadas no século passado, acompanhou a ampliação da cobertura dos sistemas de proteção social e melhorias das condições de habitação, alimentação, trabalho e do saneamento básico. No Brasil, por outro lado, o declínio da mortalidade que deu início à transição demográfica foi determinado mais pela ação médico-sanitária do Estado que por transformações estruturais que pudessem se traduzir em melhoria da qualidade de vida da população: nas primeiras décadas do século XX, através de políticas urbanas de saúde pública como a vacinação, higiene pública e outras campanhas sanitárias; a partir da década de 40, pela ampliação e desenvolvimento tecnológico da atenção médica na rede pública.

Outro aspecto, agora específico, a se considerar no aumento da população idosa, é o

predomínio nele da população feminina, com as conseqüências disso para as políticas sociais,

em especial, as de saúde pública. Assim, o aumento significativo da expectativa de vida da

população mundial, de acordo com Ramos, Veras e Kalache (1987), não ocorre de modo

uniforme em ambos os sexos. A população brasileira, entre 1920 e 1982, experimentou um

aumento de quase trinta anos de vida, sendo este aumento mais significativo para a mulher.

Berquó (1999), nesse sentido, afirma que o número absoluto de idosas brasileiras de

sessenta e cinco anos de idade ou mais tem sido superior ao número de homens idosos desta

mesma idade. Tal fenômeno acentuou-se nos últimos anos. As mulheres, desde 1950, têm

uma maior expectativa de vida do que os idosos do sexo masculino.

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Veras, Ramos e Kalache (1987, p. 229) descrevem que “ao lado de diferenças

biológicas, como, por exemplo, o fator de proteção conferido por hormônios femininos em

relação à isquemia coronariana”, está o fato de que as mulheres se expõem menos do que os

homens aos fatores de risco para a saúde.

Pode-se mencionar, dentre outros fatores, a diferença de exposição da mulher às

causas de risco de trabalho, tendo em vista o predomínio do homem na execução de tarefas e

funções de maior periculosidade. Desse modo, a taxa de mortalidade da população masculina,

devido a causas externas, é maior do que a das mulheres, visto que entre os homens ocorram

mais: acidentes, em geral, e automobilísticos, em particular; homicídios; quedas acidentais no

trabalho; e até mesmo suicídios.

Percebe-se, além disso, que há, entre homens e mulheres, diferenças de atitudes em

relação às doenças e incapacidades. As mulheres, de modo geral, são mais atentas e

cuidadosas com a saúde; demonstram melhor conhecimento das doenças; utilizam-se com

maior freqüência dos serviços de saúde, favorecendo um melhor prognóstico das doenças

crônicas. Além disso, houve diminuição da mortalidade materna por causa da melhoria de

assistência médica obstetrícia. O consumo excessivo do tabaco e do álcool, por sua vez,

ocasiona uma maior taxa de mortalidade masculina. O uso destas substâncias são uma das

principais causas de morte nos indivíduos de faixa etária acima de quarenta e cinco anos de

idade (VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987).

Tais autores afirmam, no entanto, que estes fatores de risco predominantes no sexo

masculino, responsáveis por reduzir o seu período de vida, podem atualmente estender-se às

mulheres, sobretudo pelo fato de elas lutarem e conquistarem direitos e oportunidades iguais

aos dos homens, ampliando o seu espaço no mundo contemporâneo. Desse modo, pode-se

observar nas mulheres a incorporação de valores e hábitos que, até pouco, eram restritos aos

homens. Esta mudança nos padrões de conduta pode ser verificada, por exemplo, pelo

consumo de cigarro por adolescentes do sexo feminino e pela crescente inserção da mulher no

mercado de trabalho.

O crescimento percentual da população idosa feminina não deixa, porém, de acarretar

certos problemas; com efeito, Debert (1999b) e Neri (2001b) mostram que a maior

longevidade das mulheres idosas significa maior risco, uma vez que elas são física e

socialmente mais frágeis do que os homens. Tal fato é visto como problema médico e social.

Além disso, é objeto de discurso ambíguo das instituições sociais e do Estado, haja vista que

este, ao mesmo tempo que as protege, consideram-nas responsáveis pelos problemas –

sobretudo os de ordem econômica – enfrentados pelos sistemas públicos de saúde e de

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previdência social.

Nesse sentido, Goldani (1999) afirma, em relação ao prolongamento da vida das

idosas brasileiras, que elas enfrentam uma série de desvantagens acumuladas ao longo de uma

vida de discriminação e de desigualdades estruturais marcada por trabalho não remunerado;

recebimento de benefícios mínimos de aposentadoria; e, em grande parte, pela não aquisição

de planos de atendimento à saúde.

A autora acima mencionada afirma, tendo por base trabalhadoras idosas, que estas

recebem salários equivalentes à metade ou pouco mais dos salários recebidos pelos homens.

Assim sendo, dentre os idosos, elas acabam se tornando os mais dependentes e

financeiramente carentes. Além disso, visto seja superior a expectativa de vida das mulheres

em relação à dos homens, deve-se destacar que muitos dos problemas enfrentados pelas

idosas femininas estão relacionados ao fato de elas permanecerem sozinhas e dependentes.

Assim sendo, são necessárias reestruturações no âmbito social, institucional, político,

econômico e da saúde, pois os idosos, cada vez mais, em maior número, apresentam

características peculiares e necessidades próprias. Essa transição demográfica requer,

portanto, a criação de novos espaços e, conseqüentemente, exige a reformulação de conceitos

e posturas.

O aumento mundial do número de idosos transformou-se, deste modo, em questão

pública. O envelhecimento passou a ser um problema enfrentado mundialmente, sobretudo

pelos países menos desenvolvidos, nos quais as questões relativas à saúde e ao atendimento à

população mostram-se, na maior parte das vezes, precárias (VERAS, 2000).

Nesse sentido, nos últimos anos tem havido, nestes países, aumento significativo das

iniciativas voltadas para as pessoas que se encontram na terceira idade, bem como para a

ampliação das discussões referentes a seus direitos, sobretudo em relação à qualidade de vida

e aposentadoria:

[...] Mesmo em um país como o Brasil, tradicionalmente identificado como um ‘país jovem’, que dá pouca atenção aos seus idosos, a velhice vem se tornando, de forma particular, uma questão de ordem pública, não mais restrita à esfera privada e da família (LIMA, 1999).

No contexto social atual, porém, ocorrem poucas ações efetivas para realizar as

transformações sociais necessárias devido ao envelhecimento populacional, visto que este seja

o início de um processo em desenvolvimento. Veras (2003, p. 706), desse modo, afirma que,

“ao propor uma mudança do patamar de discussão da transição demográfica, deve-se buscar

algo análogo na área da saúde, em relação à (re)organização dos modelos assistenciais”:

[...] Apesar das fortes pressões criadas pelas mudanças demográficas, o

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incremento das demandas por políticas sociais orientadas a idosos não deve ser tratado apenas como resultado de uma determinada composição etária. Mudanças no papel dos idosos na sociedade devem ser vistas como um dos determinantes dessas demandas. Essa perspectiva é importante do ponto de vista da formulação de políticas de assistência, sejam elas públicas ou privadas, pois mostra que a melhoria das condições de vida dos idosos não depende apenas de mudanças no regime demográfico (CAMARANO et al., 1999, p. 63).

No caso do Brasil, ao mesmo tempo em que o prolongamento da vida é um ganho

coletivo, este também se torna uma ameaça social, pois os custos decorrentes do

envelhecimento populacional mostram-se elevados. Segundo os autores acima mencionados,

este novo cenário gera preocupação, uma vez que acarrete novas demandas com relação às

políticas públicas, colocando, desse modo, desafios para o Estado, a sociedade e a família:

[...] Os custos da aposentadoria e da cobertura médico assistencial da velhice são apresentados como indicadores da inviabilidade de um sistema que, em um futuro próximo, não poderá arcar com os gastos de atendimento, mesmo quando a qualidade dos serviços é precária (DEBERT, 1999b, p. 22-23).

O controle da mortalidade e a diminuição da taxa de natalidade, além disso, acarretam

mudanças sociais porque modificam a estrutura familiar. Há assim alterações na composição e

dinâmica familiar (VERAS, 1994). Segundo Goldstein e Siqueira (2000), os avanços

tecnológicos e as mudanças sócio-econômicas da modernidade possibilitam, no seio das

famílias, o convívio de três ou quatro gerações, cada qual composta por poucos membros.

Essa experiência sem precedentes acarreta sérias questões a respeito das relações sociais e da

solidariedade entre as gerações. Agrava-se a questão pelo predomínio de mulheres na terceira

idade. Tal fato acarreta um maior número de idosas que, afastadas da família, passam a viver

em instituições.

Zimerman (2000, p. 50), nesse sentido, afirma que:

[...] à medida que vamos envelhecendo, vemos a família se alterando e, em especial, a posição de cada membro dentro dela. Os papéis vão se modificando e a relação de dependência torna-se diferente. O velho, que já teve filhos sob seu cuidado e dependência, agora é quem necessita de assistência e torna-se mais dependente. Muitas vezes as famílias têm dificuldades para entender essas mudanças de papéis e lidar com elas. Ajudá-las nessa questão é fundamental, uma vez que a interação familiar é vital para o bem-estar do velho e ele próprio faz parte desse sistema.

Desde a década de 80, nos países desenvolvidos, houve, em razão disso, mudanças nas

configurações familiares, surgindo assim novas políticas sociais referentes à saúde e ao

trabalho a fim de acomodar as demandas sociais decorrentes deste número expressivo de

idosos:

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[...] Em vários países da Europa e nos Estados Unidos, há mais de duas décadas, ocorrem investimentos sociais para a construção e a manutenção de redes de suporte ao idoso, quer atendendo-o diretamente, quer prestando apoio aos familiares, voluntários e profissionais encarregados de ampará-los (SILVA; NERI, 1993, p. 217).

Nos EUA e Canadá, 80% e 94%, respectivamente, das pessoas que cuidam dos idosos

são filhos, parentes e amigos. Segundo Kane e Kane (1990 apud SILVA; NERI, 1993, p.

217), “um terço desses cuidadores são únicos, em geral cônjuges idosas, filhas de meia-idade

e viúvas”. Ao citar relatos de idosos brasileiros, Ramos (1987 apud SILVA; NERI, 1993, p.

217) podia em 1987 afirmar que “2% não contam com qualquer ajuda familiar em caso de

doença ou incapacidade, 40% contam com o cônjuge, 35% com a filha, 11% com o filho e

10% com a família”.

Tais números, contudo, não podem expressar os problemas atuais brasileiros, pois,

conforme afirmam Veras, Ramos e Kalache (1987, p. 288), se “uma importante modalidade

de suporte social é obtida através dos sistemas informais de apoio que consistem nos parentes,

vizinhos ou amigos”, há uma evidente mudança de perspectiva, já que essa estrutura social foi

por muito tempo o referencial maior de apoio na comunidade, mas atualmente tende a

diminuir do mesmo modo e pelos mesmos motivos que estão acarretando o desaparecimento

da família numerosa.

Tal fato implica em dificuldades de adaptação e assimilação do idoso à sociedade

brasileira sem que haja uma resposta adequada do Estado à questão (VERAS, 1988, 2004;

VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987; ZIMERMAN, 2000). O problema é ainda maior nos

grandes centros populacionais: as relações com a família, para idosos de nível sócio-

econômico baixo que apresentam comprometimentos físicos e cognitivos, configuram-se

como mais problemáticas no que se refere à convivência com os filhos. Tal aspecto se agrava

com a carência de instituições de apoio ao idoso. Além disso, quando há, o asilamento

geralmente é representado como negativo, com significados de abandono ou refúgio, tanto por

idosos como por familiares de todos os níveis sócio-econômicos (SILVA; NERI, 1993).

O aumento da participação social dos idosos e o surgimento de novas representações

sobre o processo de envelhecimento não podem, conforme aponta Lima (1999):

[...] ser explicados unicamente pelo envelhecimento da população, pois são reflexo de mudanças que implicam redefinições das formas de periodização da vida, das categorias etárias que recortam a organização da sociedade e a revisão das formas tradicionais de gerir a experiência de envelhecimento. Um processo de ‘politização’, com características próprias das sociedades contemporâneas, está alçando a velhice à dimensão pública, tornando mais evidentes os mecanismos e os agentes de sua construção social, bem como explicitando o papel desempenhado por cada um deles: o Estado, através de

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políticas sociais, o saber científico institucionalizado e as pessoas idosas.

Segundo Goldstein (2000), a diminuição do tamanho da prole, o divórcio, as

migrações internas, o aumento do trabalho da mulher fora de casa e as mudanças dos valores

sociais e familiares estão fortemente associados a dificuldades sociais e familiares no

fornecimento de apoio econômico, físico e psicológico a idosos dependentes e fragilizados.

Essas dificuldades são potencializadas pela escassez de serviços especializados de saúde em

hospitais, ambulatórios e centros-dia, bem como pela ausência de oferta organizada de

serviços de atendimento domiciliar a idosos.

A falta, contudo, de condições sociais, institucionais e familiares para o cuidado de

idosos dependentes e fragilizados aumenta a probabilidade de ocorrência de maus-tratos,

abandono e institucionalização. O país não propicia uma rede suficiente de instituições que

ofereçam serviços adequados aos idosos e a maioria delas tem natureza filantrópica11

(GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000).

1.13 Política Nacional para o Idoso: a Previdência Social e o Estatuto do Idoso

O aumento percentual e em números absolutos dos idosos da população brasileira

acarreta problemas que, como se viu, o Estado e a sociedade têm tido dificuldades em

enfrentar de modo satisfatório. Por isso mesmo, nos últimos anos, implementaram-se leis e

desenvolveram-se programas destinados aos idosos, buscando modos para dar-lhes proteção,

bem como para tratá-los dignamente.

No entanto, como é o caso de muitas leis no Brasil, a implementação é ainda precária,

pois o Estado se omite quanto aos programas de proteção e avaliação das medidas

implantadas, o que se nota em relação às instituições de assistência aos idosos.

Nessa perspectiva, a Previdência Social, a partir da década de 70 do século passado,

instituiu a aposentadoria para idosos e garantiu, com isso, a vida dos mesmos na sociedade

brasileira, assegurando os seus direitos como cidadãos plenos. Além disso, na década de 90,

conforme apontam Camarano et al. (1999), o governo passou a estabelecer legislações e 11 Segundo Rezende (2001), os asilos, enquanto instituições de assistência social ao idoso, desde o início da sua existência na Europa, tinham caráter caritativo. Eles restringiam seu atendimento aos grupos mais pobres da sociedade, consolidando sua realidade histórica nas idéias de caridade e filantropia. Nota-se, portanto, que essa concepção vigora nos dias de hoje, sobretudo nos países subdesenvolvidos, nos quais as condições sociais e econômicas da população são precárias, restando a alguns idosos a internação.

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programas sociais destinados especificamente para a população idosa.

A Constituição de 1.988 foi importante motor para tais iniciativas, sobretudo a partir

do capítulo de que dispõe a respeito da Seguridade Social que trata de assuntos sociais

relevantes para os segmentos etários mais velhos. Por meio dela firmaram-se, assim sendo,

direitos dos idosos; garantiu-se também a participação deles na comunidade; determinou-se,

para a família, a sociedade e o Estado, a responsabilidade e dever pelos seus cuidados e

amparo.

Foi aprovada, em 7 de dezembro de 1993, a Lei n° 8.742, denominada Lei Orgânica de

Assistência Social (LOAS). Tal lei prevê, em seu Artigo 1°, que a assistência social é “direito

do cidadão e dever do Estado”. Ela, assim sendo, consiste em uma “Política de Seguridade

Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto

integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às

necessidades básicas”, e, conforme previsto pelo parágrafo I do Artigo 2°, na proteção à

família, maternidade, infância, adolescência e aos idosos (BRASIL, Leis e Decretos, 1993).

Além disso, no tocante aos segmentos populacionais mais velhos, o Artigo 2° desta lei

dispõe sobre medidas que garantam, por meio de comprovação, a concessão do valor

correspondente a um salário mínimo de benefício mensal aos idosos que não possuam meios

para prover a própria subsistência ou de serem providos por sua família.

Em função da instabilidade no atendimento e crise dos modelos institucionais de

assistência aos idosos, a Política Nacional do Idoso, instituída pela Lei de n° 8.842, de 4 de

janeiro de 1.994, regulamentada pelo Decreto de n° 1.948, de 3 de julho de 1996,

implementou ações no sentido de obter maior conscientização política acerca do

envelhecimento e suas nuanças, e assegurou os direitos sociais dos idosos, tendo em vista a

sua autonomia e participação efetiva na sociedade (BRASIL, Leis e Decretos, 1994).

O artigo 3º dessa mesma lei prevê que “a família, a sociedade e o estado têm o dever

de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na

comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida”. Além disso, no Artigo

4° consta que se deve “priorizar o atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em

detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que não possuam condições que

garantam sua própria sobrevivência”.

Esta Lei, assim sendo, parte do pressuposto de que, embora haja um escalonamento no

compromisso de cada segmento para com o idoso, o envelhecimento é de responsabilidade da

sociedade em geral. Há, primeiramente, uma responsabilidade da família, pois nela ocorrem

os vínculos estruturantes que asseguram ao idoso seu papel social; na ausência dela, a

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sociedade deve assumir a responsabilidade por ele, sendo obrigada a acolhê-lo em instituições

destinadas a tal fim. As diretrizes da Política Nacional do Idoso, portanto, “buscam viabilizar

sua integração às demais gerações; descentralizar, tornando-o agente participativo na

formulação, implementação e avaliação de políticas, planos e projetos a eles direcionados”

(CAMARANO et al., 1999, p. 65).

Cabe, portanto, como competência dos órgãos públicos, estimular a criação de locais

de atendimento aos idosos, tendo em vista a estratégia de atendimento não-asilar, como

centros de convivência, “cujo objetivo é a integração com as famílias, com outros idosos e

outras gerações”; centro de cuidados diurnos, “objetivando o atendimento ao idoso

dependente”; casas-lares para “os idosos que não podem contar com a família para sua

manutenção”; atendimento domiciliar, “cujo objetivo é prestar serviços ao idoso sem retirá-lo

de sua família ou comunidade”; atendimento asilar, “prestado em casos excepcionais aos

idosos dependentes, sem família ou incapazes de prover sua subsistência por outros meios”;

oficinas abrigadas de trabalho, “cujo objetivo é utilizar ou desenvolver a capacidade produtiva

dos idosos” (CAMARANO et al., 1999, p. 66). Tais medidas parecem destacar a importância

da permanência do idoso no núcleo familiar. Na ausência deste, destaca-se a tentativa de

mantê-lo com os papéis sociais a que já está habituado, evitando-se afastá-lo de suas

atividades e da sua comunidade.

Em 2003, instituiu-se o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741, de 1° de outubro de 2003),

com o intuito de acrescentar novos dispositivos à Política Nacional do Idoso. Tal Estatuto

exige uma revisão de prioridades das linhas de ação das políticas públicas, tendo em vista a

regulação dos direitos assegurados às pessoas com mais de sessenta anos. Sendo assim,

prioriza o “atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento

asilar, exceto dos que não a possuem ou careçam de condições de manutenção da própria

existência” (Inciso V, Parágrafo Único, Art. 3º do Título I – Disposições Preliminares)

(BRASIL, Leis e decretos, 2003a, p. 15). Desse modo, esta lei (Parágrafo 1, Art. 37, do

Capítulo IX – Da Habitação) prevê que a “assistência integral na modalidade de entidade de

longa permanência será prestada quando verificada inexistência de grupo familiar, casa-lar,

abandono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família” (BRASIL, Leis e

decretos, 2003a, p. 22).

Isso representa, portanto, um marco na conscientização política e social do país, tendo

em vista a regulamentação dos direitos fundamentais dos idosos no sentido de assegurar-lhes

proteção legal enquanto plenos sujeitos de direito que demandam especial proteção. Essa lei,

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desse modo, reconhece as necessidades específicas dos idosos e delega obrigações à família,

ao Estado e à sociedade para com os mesmos.

Tal Estatuto constitui, sendo assim, um marco jurídico importante na proteção dos

idosos e, portanto, na proposta de assistência integral para a manutenção da saúde física e

moral dos mesmos. Nota-se, por outro lado, que há dificuldades para a sua efetiva

implementação, sobretudo no que se refere aos direitos assegurados na prioridade de

atendimento em serviços de saúde e na concessão dos benefícios relacionados a este aspecto,

em virtude da falta de recursos e de estrutura precária na área em questão.

Assim sendo, as medidas contidas no Estatuto do Idoso tornar-se-ão impraticáveis

caso não sejam adotados pelo governo novos procedimentos de ação e, sobretudo, destinados

recursos financeiros compatíveis para a efetivação das mesmas:

[...] O desejo comum na sociedade brasileira é que o novo Estatuto passe a representar mais que uma conquista, tornando-se um instrumento de transformação da atual realidade dos idosos no país. A expectativa de todos é que deixe de existir descompasso entre o que diz a norma no papel e a realidade cotidiana. De qualquer forma, o fato de colocar o tema em debate e de representar um instrumento legal de luta em favor da sua efetiva implementação já torna o Estatuto do Idoso bem-vindo (ESTATUTO do Idoso, 2004, p. 4).

Constata-se, assim sendo, que é marcante a disparidade existente entre a legislação

vigente e a realidade dos idosos no Brasil. É necessário, para que se reverta tal situação, que

as leis sejam efetivamente implementadas, com permanente fiscalização dos diferentes

segmentos sociais do seu cumprimento, dado o fato de que somente a mobilização

permanente da sociedade seja capaz de configurar novos olhares sobre o processo de

envelhecimento da população brasileira e suas nuanças, podendo assim exigir, dos órgãos

governamentais competentes, que as leis sejam de fato cumpridas.

A legislação brasileira referente aos idosos não é assim eficientemente aplicada, visto

que há não só contradições nos próprios textos legais, bem como o desconhecimento de seu

conteúdo por parte expressiva da população brasileira. É preciso, pois, uma mudança no plano

de política pública para que isso não ocorra:

[...] A dificuldade de funcionamento efetivo da legislação está muito ligada à tradição centralizadora e segmentadora das políticas públicas no Brasil, que provoca a superposição desarticulada de programas e projetos voltados para um mesmo público. A área de amparo à terceira idade é um dos exemplos que mais chama atenção para a necessidade de uma ‘intersetorialidade’ na ação pública, pois os idosos muitas vezes são ‘vítimas’ de projetos implantados sem qualquer articulação pelos órgãos de educação, de assistência social e de saúde (VOGT, 2002).

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1.14 Programas de atendimento aos idosos

Segundo Goldstein (1999), o crescimento percentual do número de idosos e a atenção

sobre o processo de envelhecimento implicam um aumento do interesse da sociedade pela

solução dos problemas individuais e coletivos surgidos nas áreas da educação, saúde e direitos

sociais relacionados aos idosos. Assim sendo, além da criação de leis destinadas aos idosos,

há também programas específicos que visam à melhoria da qualidade de vida na longevidade.

No Brasil, especificamente, a ausência de iniciativas de atendimento aos idosos e a

carência de pesquisa e estudos científicos, sobretudo em comparação com outros países,

impulsionaram, a partir dos anos 60, algumas entidades na implementação dos primeiros

trabalhos destinados a este segmento. Dentre elas, podem-se destacar a Legião Brasileira de

Assistência (LBA) e o Serviço Social do Comércio (SESC) (LIMA, 1999).

Segundo este autor, o trabalho destas entidades, baseado na percepção de que as

atividades de lazer pudessem contribuir para reverter a condição marginal dos idosos, consiste

em suprir a ausência de papéis sociais a fim de amenizar-lhes a solidão. Tal modelo de

intervenção, assim sendo, visa a contribuir para a superação da imagem do idoso como

doente, excluído e marginalizado pela sociedade, tendo em vista a melhoria da sua qualidade

de vida.

Surgiram então diversas iniciativas nos principais centros urbanos do país, organizadas

por órgãos públicos e privados, que visaram ao lazer e ao convívio social dos idosos. Dentre

estas iniciativas, vale destacar a criação, no ano de 1993, da Universidade Aberta à Terceira

Idade (UnATI).

Esta universidade foi criada, portanto, com o intuito de possibilitar aos idosos,

fundamentada em pressupostos teóricos e técnicos, a reinserção deles no meio social. Sendo

assim, busca estimular a participação dos idosos nas atividades sociais e culturais e propiciar

informações que permitam reflexões sobre o processo do envelhecimento. Isto faz com que as

experiências singulares possam ser compartilhadas num “contexto marcado pelo surgimento

de um discurso científico sobre a velhice e o envelhecimento e por mudanças na forma como

os indivíduos, ao envelhecer, negociam com imagens estereotipadas da velhice” (LIMA,

1999).

A UnATI possui um programa de educação permanente: visa à integração social do

idoso; possibilita o desenvolvimento de suas potencialidades, resgatando sua cidadania e

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participação na produção de novos valores; promove a sua capacitação para compreensão do

processo de envelhecimento, atuando na redefinição das imagens dos segmentos etários

avançados, e, além disso, favorece as relações entre as gerações, tendo em vista o resgate da

sua memória e a transmissão de seus conhecimentos aos mais jovens, como meio de

preservação de suas identidades culturais. O papel desta universidade é assim a integração

entre famílias, idosos e comunidade a fim de identificar ações transformadoras e, sobretudo,

firmar compromissos que abram novas perspectivas ao processo de envelhecimento

(GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000).

Ainda que haja diversas iniciativas, como as da LBA, SESC e UnATI, a quase

inexistência de uma rede de suporte formal por parte do Estado, bem como de uma política de

saúde pública e de assistência social efetiva, que auxilie e instrumentalize as famílias para o

cuidado de seus idosos, ainda são os principais fatores que contribuem para a

institucionalização e, por vezes, para a segregação dos idosos.

Cabe ressaltar, contudo, algumas iniciativas que, ainda recentes, podem, se

efetivamente levadas a termo, contribuir para que a institucionalização do idoso não ocorra.

Sendo assim, vale a pena destacar que:

[...] em algumas cidades, inicia-se a formação de associações de familiares apoiados por técnicos, visando proporcionar apoio sócio-emocional aos familiares cuidadores. Nossa tradição de prestação de serviços voluntários em qualquer área atinge também a dos cuidados com a velhice, cujo amparo normalmente é responsabilidade da família (GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000, p. 120-121).

1.15 A violência e dominação na sociedade: os idosos são retratos delas?

Como a sociedade é formada por elementos de força desigual, a expressão da justiça

encontra-se nos graus diferenciados de poder existentes dentro dela (STAUB, 1.975).

Ressaltam-se nas relações de gênero as várias possibilidades de dominação e exploração. O

gênero, a sociedade, a família e os vínculos nelas estabelecidos contêm hierarquias nas quais

as figuras expressivas mostram-se como dominadoras e exploradoras (SAFFIOTI, 1992).

A longevidade também não escapa destas teias: como socialmente posta, é muitas

vezes estigmatizada e encontra-se associada à depreciação e perdas. Há nela, pois, as marcas

da injustiça, visto que esteja à margem do plano em que opera o poder. Sendo assim, no

imaginário social de valoração do jovem e das satisfações do trabalho, o idoso,

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independentemente do possível abandono, parece propício a sofrer pela exclusão.

Motta (1991 apud NERI, 2001b, p.173) afirma que:

[...] normas e sanções são poderosos mecanismos sociais, fundamentais ao processo de atribuição dos seres humanos a categorias homogêneas. Idade, raça e etnia, classe social e gênero são categorias relacionais que configuram diferenças, oposições, alianças e hierarquias, e que justificam as relações de dominação e poder existentes no seio da sociedade.

No caso dos idosos, tais fatos se agravam por causa da estigmatização dos grupos

etários avançados. Como o sofrimento e a injustiça podem permear as relações de poder, os

idosos, em geral alijados destas relações, sofrem diversos modos de violência, nos planos

físico, simbólico ou moral: padecem, no plano físico, as agruras biológicas da idade; mas

além dos maus-tratos e agressões de que podem ser vítimas, há também a violência simbólica

expressa na negligência e no abandono.

Além disso, o preconceito moral, com o estigma explícito da segregação, é ainda

maior. Resta, assim, verificar se há contra os idosos abrigados o preconceito que gere, para

além da dominação social, algum tipo de violência, sobretudo se, não tão evidente, esta seja

posta no plano simbólico.

A literatura sobre o processo de envelhecimento e suas nuanças não deixa de salientar

a violência contra o idoso (CUNHA, 2001; MINAYO, 2003). Sendo assim, como o século

XX presenciou uma série de transformações no processo do envelhecimento, a violência

simbólica contra o idoso deve ser entendida a partir de tais transformações (CUNHA, 2001).

De acordo com este autor, ampliou-se o enfoque de estudo ocorrendo a transferência

da vertente “vítima” para a análise causal dos fenômenos psicossociais, nos quais o

conhecimento da dinâmica vitimal e do processo de vitimização individual ou coletiva

possam ser melhor entendidos. Os idosos, neste aspecto, são vitimizados pelas implicações

que os preconceitos lhes impõem e atingidos individualmente em âmbito familiar e/ou

coletivamente pelo próprio sistema social, sofrendo vitimização direta ou indireta pela

comunidade ou família.

O Estatuto do Idoso no Brasil não deixa de ressaltar que qualquer violência contra os

idosos pode ser cometida. A lei lhes garante a cidadania plena. Nesse sentido, estão

preservados os seus direitos, o que implica, explicitamente, que eles não podem sofrer

violência alguma, simbólica ou manifesta. Estão previstos, portanto, os deveres da família, da

instituição, do Estado e dos demais cidadãos em relação aos idosos, não podendo eles ser

vítimas de qualquer pessoa ou grupo social. Nesse sentido, o Artigo 4° dessa lei prevê que

“nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência,

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crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na

forma da lei”. Além disso, o Parágrafo 1° deste Artigo estabelece que “é dever de todos

prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso” (BRASIL, Leis e Decretos, 1993a, p.

16).

Assim, antes de se deter em qualquer vitimização no plano das instituições, é preciso

ressaltar que no Brasil há também nos planos familiar e social uma série de violências contra

o idoso. Nessa perspectiva, Minayo (2003, p. 784-785) afirma:

[...] No caso brasileiro, as violências contra os idosos se expressam em tradicionais formas de discriminação, como o atributo que comumente lhes é impingido como ‘descartáveis’ e ‘peso social’. Por parte do Estado, esse grande regulador do curso da vida, o idoso hoje é responsabilizado pelo custo insustentável da Previdência Social e, ao mesmo tempo, sofre uma enorme omissão quanto a políticas e programas de proteção específicos. [...] No âmbito das instituições de assistência social e saúde, são freqüentes as denúncias de maus tratos e negligências. Mas nada se iguala aos abusos e negligências no interior dos próprios lares, onde choque de gerações, problemas de espaço físico, dificuldades financeiras costumam se somar a um imaginário social que considera a velhice como ‘decadência’.

Tendo como base dados fornecidos pela literatura nacional e internacional, Minayo

(2003, p 788) afirma que a violência contra idosos constitui um problema universal:

[...] Estudos de várias culturas e de cunho comparativo entre países têm demonstrado que pessoas de todos os status sócio-econômicos, etnias e religiões são vulneráveis aos maus-tratos, que ocorrem de várias formas: física, sexual, emocional e financeira. Freqüentemente, uma pessoa de idade sofre, ao mesmo tempo, vários tipos de maus-tratos.

No Brasil, embora a violência ocorrida no âmbito familiar possa estar presente, visto

que determinadas famílias abandonem seus familiares, assinala-se a violência institucional,

cuja maior expressão são os asilos de idosos, sobretudo os conveniados com o Estado

(Menezes 1999 apud MINAYO, 2003, p. 788), nos quais “são comuns processos de maus-

tratos, de despersonalização, de destituição de poder e vontade, de falta ou inadequação de

alimentos e, também, omissão de cuidados médicos específicos e personalizados” (Machado

et al., 2001 apud MINAYO, 2003, p. 788). Além disso, deve-se considerar o papel omissivo

do Estado no desenvolvimento de programas destinados à proteção da população idosa e na

avaliação das instituições de abrigo que prestam assistência aos idosos.

Minayo (2003, p.788) demonstra, tendo como referência estudos internacionais, que:

[...] noventa por cento dos casos de maus-tratos e negligência contra as pessoas acima de sessenta anos ocorrem nos lares. Essas pesquisas revelam que cerca de dois terços dos agressores são filhos e cônjuges dos idosos vitimizados. Tais dados, além de mostrar o ambiente familiar como conflituoso, abusivo e perigoso, ressaltam também o fato de a questão do idoso continuar a ser, na maioria das sociedades, responsabilidades das

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famílias.

Para o Brasil, algumas pesquisas como a de Menezes (1999 apud MINAYO, 2003,

p.789) demonstram também a alta prevalência de violência familiar. Mas o estado atual dos

trabalhos existentes não permite explicitar a proporção em que esse fenômeno incide sobre o

conjunto das violências e acidentes em idosos.

É preciso, por outro lado, indagar, acerca da violência contra os idosos, o papel social

das instituições que deles cuidam e avaliar se elas são soluções para quem delas necessita ou

se, por outro lado, podem vitimizar quem nelas habita. Cabe, porém, mapear os contornos da

possível violência: trata-se, para além da física e moral, de tentar circunscrever até que ponto

a sociedade e suas instituições, em relação aos idosos, inserem-nos na vida social ou dela os

exclui. Seria, no caso de uma possível exclusão, isso também uma violência contra o idoso?

Este passo, porém, está além dos limites desse trabalho. Aqui caberá tentar responder sobre a

possibilidade de, a partir das representações sociais por idosos abrigados, encontrar possíveis

respostas a uma melhora de vida que possa afastar a violência institucional contra a terceira

idade e planejar uma inserção social mais efetiva do idoso na sociedade.

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2 OBJETIVOS

2.1 Objetivo geral

Essa pesquisa tem como objetivo compreender as representações sociais sobre

instituição asilar formuladas por idosos abrigados para verificar os processos de inclusão ou

exclusão presentes na vida institucionalizada.

2.2 Objetivos específicos

• Verificar, através das representações de inclusão ou exclusão social por idosos

abrigados, se estes se percebem incluídos ou não na sociedade ao longo de sua

trajetória de vida;

• Investigar se a institucionalização significa ou não para os idosos um processo de

ruptura e exclusão da sociedade;

• Subsidiar, por meio desta pesquisa, o planejamento de estratégias institucionais

voltadas para amenizar os possíveis efeitos danosos da vida abrigada, tendo em vista

melhor inserção dos idosos em instituições.

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3 JUSTIFICATIVA

Há atualmente um expressivo número percentual de idosos. Tal fato aparece como um

fenômeno mundial. O crescimento deste segmento populacional nem sempre, contudo, é

acompanhado por políticas sociais nas quais os idosos tenham voz ativa. Parte significativa

deles vive institucionalizada. É preciso, pois, dar-lhes também a palavra.

Segundo Saad (1991 apud SILVA; NERI, 1993), a expectativa de vida da população

mundial, que hoje é de 66 anos, passará a ser de 73 anos em 2025. Porém, de acordo com

dados fornecidos pelo IBGE (BRASIL, Leis e Decretos, 2003b), para o ano de 2005, estimou-

se em 72 anos a esperança de vida, contra 70,5 anos em 2000 e 71,3 em 2003.

Além disso, tais dados mostram que o Brasil ocupa, com base em 192 países, a 86ª

posição na listagem da expectativa de vida da Organização das Nações Unidas (ONU). De

1980 a 2003, a expectativa de vida do brasileiro cresceu 8,8 anos, o equivalente a 7,9 anos

para os homens e mais 9,5 anos para as mulheres.

No Brasil, segundo Junqueira (1998), estima-se que a população com mais de sessenta

anos esteja próxima de 10 milhões de habitantes. Em 2025, dados indicam que o país ocupará

a 6a posição entre os países com maiores números absolutos de idosos. Tais projeções

apontam que haverá 31,8 milhões de pessoas idosas, o equivalente a 12,1% da população

brasileira.

O Brasil encontra-se, pois, entre os países de maior número de idosos do mundo.

Entretanto, tal aumento não vem sendo acompanhado de uma melhora significativa na

qualidade de vida dos mesmos, pois tudo se faz como se o Estado brasileiro se centrasse

sobretudo nas áreas de atividade e produção, caracterizando-se como um país jovem, cuja

ordem e progresso, concentrando-se em destacar quem nele pode produzir, parecem implicar

que avançar para o futuro significa não ter políticas sociais mais eficazes que assegurem as

camadas populacionais mais afetadas por suas desigualdades econômicas.

É preciso, pois, antes de mais nada, atentar para isto: a velhice é resultado do embate

de valores produzidos por forças e poder. A dimensão sócio-política cria representações sobre

idosos. No Brasil, sobretudo, já que as modificações materiais e econômicas do país

rapidamente reorganizam o percentual populacional no equilíbrio de seus grupos etários. Os

dados quantitativos acerca dos idosos não podem, pois, se dissociar dos aspectos qualitativos

destes dados na perspectiva de um pesquisador da área social num país com evidentes

diferenças econômicas da população. Sendo assim, é preciso que um trabalho acadêmico

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possa contribuir para uma melhor compreensão da vida de um segmento de uma parte

específica da população brasileira, os idosos abrigados.

Assim sendo, pretende-se contribuir com uma análise das condições destes idosos,

tentando com isso proporcionar subsídios para a melhoria das instituições que se propõem a

cuidar deles. Como a questão tem sido pouco explorada, justifica-se uma pesquisa que possa

auxiliar na melhoria da vida de tais idosos; das próprias instituições; da relação do idoso e da

instituição com a sociedade, objetivando uma melhor inserção daqueles nesta.

Além de visar novos conhecimentos a respeito do tema, é preciso contribuir para a

discussão com todos aqueles que demonstram interesse pelo assunto, especialmente os

profissionais ligados à área desta pesquisa. Mas não só: também é preciso levar o debate à

comunidade em que se formulam os padrões culturais e, principalmente, aos próprios idosos,

já que, sobretudo por uma efetiva participação deles, haveria a possibilidade de melhor

avaliação destes padrões.

Além do mais, acredita-se na importância de produzir uma pesquisa a respeito de um

tema relevante para o momento atual, em que ao menos se afirma a busca de uma redefinição

de valores. É fundamental, neste sentido, contribuir com um estudo que não trate o idoso

pelos padrões que uma sociedade voltada ao consumo fornece: não se quer aqui afastar o

estigma pela violência do silêncio; ou − o que talvez seja pior − pelo rejuvenescimento do

velho, tornando-o apenas um adolescente mais idoso, numa suposta terceira idade como

prolongamento da juventude.

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4 METODOLOGIA 4.1 Teoria das Representações Sociais

Este trabalho metodologicamente tem como referência a Teoria das Representações

Sociais. Segundo Spink (1.993), um primeiro delineamento formal do conceito desta teoria

surgiu na pesquisa de Moscovici, a propósito do fenômeno da socialização da Psicanálise e do

processo de sua transformação a fim de servir a outros usos e funções sociais.

Embora já se utilizasse do conceito representação, Moscovici (1978) renovou e

confirmou a especificidade da Psicologia Social na articulação entre o individual e o social,

refutando teorias que se baseiam em explicações unicamente sociais. Em oposição ao modelo

individualista, Moscovici (2001) visou, tendo como referência inicial as representações

coletivas de Durkheim, a uma nova explicação para os fenômenos sociais, por meio da qual se

podia, retirando elementos da Psicologia e das Ciências Sociais, melhor situar a Psicologia

Social.

Moscovici (1978), em sua obra clássica sobre representação social da psicanálise,

apontou para a importância de Durkheim como um dos primeiros a formular a noção de

representação como coletiva, produto, pois, do pensamento social, visto que ultrapasse a

dimensão estrita do aspecto individual. Sendo assim, Durkheim é para ele fundamental na

diferenciação das representações coletivas das individuais.

Moscovici (2001) aponta para o fato de que as representações coletivas, no sentido

proposto por Durkheim, perduram às gerações pela forte coerção do social e memória

coletiva. A marca significante das representações coletivas seria, pois, para ele a estabilidade,

diferenciando-se das representações individuais, cuja característica básica é a percepção e a

imagem permanentemente mutáveis. Aquele critica o conceito de representações coletivas de

Durkheim, pois este as caracteriza por terem estabilidade e permanência e se distinguem das

representações individuais efêmeras e variáveis. Entretanto, há um problema: não se distingue

a ciência da religião.

Lévi-Bruhl marca um importante passo em relação a Durkheim, pois corretamente

destaca a diversidade das mentalidades coletivas. Sendo assim, no estudo das sociedades ditas

primitivas, o seu estudo mostra como há muito mais fortemente a presença do sobrenatural e

de vínculos místicos do que as formas civilizadas baseadas no pensamento lógico. Para este

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autor, a mente primitiva opera diversamente da científica, pois não se conduz pelo princípio

da não-contradição. Há, assim, a forte presença do aspecto afetivo nessas representações: a

sombra como alma é, para tais formações sociais consideradas primitivas, efetivamente uma

percepção. Ocorre aqui então algo a destacar: o fato de que a diversidade a partir dos meios

sociais é mais radical que uma mera escala de domínios, como a ciência e a religião.

Ambos, contudo, mesmo em seus limites, são, segundo Moscovici (2001), importantes

por realçar aspectos sociais como fundamentais à representação. Sendo assim, Durkheim

estabelece a importância do simbólico na vida social, mostrando como a sociedade se torna

consciente de si mesma por meio dos esquemas coletivos de enunciação. Lévi-Bruhl, por sua

vez, mostra como a sociedade se representa em seus símbolos tendo a base psíquica como

produtora deste processo. Estes dois pensadores contribuíram para consolidar a importância

da construção simbólica das representações sociais.

Segundo Moscovici (2001), Piaget, ao investigar o mundo da criança e o processo de

simbolização, pôde verificar como o universo interior confunde-se com o exterior. Este último

autor, portanto, aponta para a novidade de ressaltar a especificidade das representações em

termos psíquicos. Ele assim se afasta de Durkheim, pois para este a coletividade é entendida

como permanente, tornando as representações coercitivas e homogêneas. Piaget, contudo, ao

explorar o universo simbólico infantil, releva a interiorização das regras, ressaltando a

importância da cooperação na representação moral. Este é um ponto fundamental para

Moscovici, pois não é a coerção, como em Durkheim, o que determina exclusivamente os

modelos de pensamento, devendo-se ressaltar a importância da cooperação grupal.

Para Moscovici (2001), além disso, em Piaget há um avanço em relação a Lévi-Bruhl,

pois não se estabelece mais a separação de mentalidades apenas a partir da diferença entre a

sociedade primitiva e a civilizada. Ao contrário, aponta-se para tal separação no interior da

nossa cultura. Uma, quente e mística, é sociocêntrica, e foca na relação entre os homens; a

outra, fria, sensível à contradição, descentrada, está posta pela relação do sujeito com o

objeto. Uma, portanto, deve ser analisada enquanto representação social; a outra, como

ciência.

Moscovici (2001) também destaca Freud. Este, ao estudar a histeria, percebeu a força

das representações de coisas e palavras na constituição inconsciente de episódios somáticos,

doenças cujas causas estão ligadas ao psiquismo. No entanto, ressalta-se que o domínio das

representações psíquicas não se apresenta destacado do social. No caso das teorias sexuais da

criança, Freud aponta para o fato de que estas são verdadeiras para elas. Isso indica que o

psiquismo constitui-se pelas trocas sociais, dos valores que aí se engendram. Além disso, ele

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ressalta que o inconsciente é resultado do processo coletivo que se transforma em

representação individual.

Moscovici (2001) afirma que nestes dois autores as representações comuns não são

apenas pertinentes para demarcar evoluções coletivas, mas são também cruciais para

compreender a história pessoal, pois é menor a distância entre elementos coletivos e

individuais:

[...] Piaget e Freud são propensos à idéia de que tal aproximação corresponde mais à natureza das coisas. O primeiro esclareceu a composição psíquica das representações. O segundo no-las mostrou sob um outro ângulo, saídas de um processo de transformação dos saberes, e explicitou a maneira como são interiorizadas (MOSCOVICI, 2001, p. 59).

A Teoria das Representações Sociais procura enfatizar que o social não pode se

destacar do psiquismo individual, nem este daquele. As representações sociais, sendo assim,

articulam elementos cognitivos, sociais e afetivos à linguagem. As relações sociais que afetam

tanto as representações quanto a própria realidade social precisam ser entendidas a partir do

contexto que as engendra e de sua funcionalidade nas relações sociais, mas sem desprezar a

reelaboração delas pelo indivíduo.

Moscovici (1978) estabelece que a representação, em geral, pode ser passiva – como

uma imagem no cérebro – ou ativa. Neste caso, diz ele, ela modela o que é dado do exterior.

Sendo assim, mesmo quando reproduz, ela o remodela. Além disso, a representação não é

nunca unívoca, pois há uma liberdade de jogo para a atividade mental que se esforça em

apreendê-la a partir de tal dado. Partindo deste, ela depois vem a ser um fluxo de associações,

da qual a linguagem é maior prova, pois esta remodela o dado externo que assim passa, pois,

ao campo da metáfora, do simbólico. Há sempre, portanto, uma possibilidade de remodelação

desta partilha implicada pela representação, pois ela não só lança um sistema de valores,

noções e práticas para o indivíduo se orientar no meio social e material a fim de dominar tais

valores, como também propõe aos membros da comunidade um meio para trocá-los, e

códigos para nomear e classificá-los. Nunca, entretanto, ela perde tal caráter simbólico.

A representação social, portanto, sendo “um corpus organizado de conhecimentos e

uma das atividades psíquicas pelas quais os homens tornam a realidade física e social

inteligível” (MOSCOVICI, 1978, p. 27-28), é tanto individual quanto social, já que ela, ao se

inserir num grupo ou numa relação cotidiana de trocas, faz com que tais atividades liberem no

homem seu poder de imaginação. Sendo assim, tanto o social modela o indivíduo como este,

àquele, pois as representações são tanto construídas pelo sujeito quanto adquiridas por este do

meio social: “[...] era necessário deslocar a ênfase sobre a comunicação que permite aos

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sentimentos e aos indivíduos convergirem; de modo que algo individual pode tornar-se social

ou vice-versa” (MOSCOVICI, 2001, p. 62).

Esse referencial, não trata, pois, a relação entre os indivíduos e a sociedade como algo

fixo, ou um mero objeto relacional, pois considera que os indivíduos se relacionam entre si

por meio de determinadas situações sociais em que se inserem nos grupos ou instituições.

Moscovici, portanto, vislumbrou, na possibilidade da junção do psicológico com o

social, uma redefinição dos conceitos e métodos da Psicologia Social, até então estritamente

centrados no indivíduo. Enquanto o modelo norte-americano propunha uma Psicologia Social

no qual o meio pouco atuava sobre os processos psicológicos individuais, a nova proposta

preconizava as relações humanas como primordiais. Assim sendo, consideravam-se tanto os

comportamentos individuais quanto os fatos sociais em seu aspecto concreto e singular.

Esse constructo teórico, nessa perspectiva, pretende conferir um caráter inovador na

Psicologia Social, visto centrar-se na relação entre o sujeito e o objeto. O sujeito, por

intermédio de sua atividade e relação com o objeto, constrói tanto este como a si próprio,

tendo em vista que eles não sejam absolutamente heterogêneos em seu campo de ação: “o

estímulo e a resposta se formam em conjunto. Quer dizer, a resposta não é uma reação ao

estímulo, mas, até certo ponto, está na sua origem. O estímulo é determinado pela resposta”

(MOSCOVICI, 1978, p. 48).

Nesse sentido, Sá (1993, p. 20) afirma que “não importa apenas a influência

unidirecional dos contextos sociais sobre os comportamentos, estados e processos individuais,

mas também a participação destes na construção das próprias realidades sociais”. Assim

sendo, os conhecimentos produzidos ao longo do tempo por diferentes domínios do saber,

como a religião, a ciência, os conhecimentos e as tradições do senso comum, fazem-se

presentes na vivência do indivíduo, por meio dos processos de reprodução social representada

por instituições, modelos, normas e convenções (SPINK, 1.994). As representações resultam,

portanto, de construções sociais, ao mesmo tempo em que emprestam sentido às suas práticas.

As representações configuram-se como guias de leitura e referência para compreender,

por generalização funcional, a realidade, por meio de formulações dos indivíduos acerca de

determinado fenômeno, tendo como base os conhecimentos inerentes a uma sociedade

(JODELET, 2001). Assim, elas constituem as realidades sociais, sendo os indivíduos, por

meio de suas interações sociais, produtores de suas próprias representações.

As representações sociais, sendo assim, caracterizam-se como fenômenos sociais e são

concebidas como teorias que os indivíduos formulam acerca da natureza dos eventos, objetos

e situações em seu mundo social, remetendo ao conhecimento do sentido comum e do

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pensamento natural por oposição ao pensamento científico. Segundo Jodelet (1984 apud

ANDRADE, 2003, p. 208), elas são “constituídas a partir de nossas experiências e também de

informações, conhecimentos e modelos de pensamentos que recebemos e transmitimos

através da tradição, da educação e da comunicação social”.

Para melhor compreensão do fenômeno das representações sociais, Moscovici (1978)

propôs um modelo teórico que as caracteriza como estrutura de natureza conceptual e

figurativa. Estas estruturas propiciam a compreensão de como as representações atualizam-se

no indivíduo:

[...] A psicologia clássica, que deu muita atenção aos fenômenos da representação, forneceu-nos úteis indicações de partida. Concebeu-os como processos de mediação entre conceito e percepção. A par dessas duas instâncias psíquicas, uma de ordem puramente intelectual e a outra predominantemente sensorial, as representações constituem uma terceira instância, esta de propriedades mistas (MOSCOVICI, 1978, p. 56).

Desse modo, a representação, segundo o autor supra citado, não é uma instância

intermediária, visto ela se constituir como um processo que torna o conceito e a percepção de

certo modo intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente

Nesse sentido, enquanto a presença do objeto é dispensável para a atividade

conceptual, a sua ausência é uma impossibilidade para a atividade perceptiva. Assim, a

representação seguiria, segundo Sá (1993, p. 33):

[...] por um lado, a linha de pensamento conceptual, capaz de se aplicar a um objeto não presente, de concebê-lo, portanto, dar-lhe um sentido, simbolizá-lo. E, por outro lado, à maneira da atividade perceptiva, trataria de recuperar esse objeto, dar-lhe uma concretude icônica, figurá-lo, torná-lo ‘tangível’: [...] a representação de um objeto é uma representação diferente do objeto.

Moscovici (1978, p. 58), a esse respeito, afirma que “representar uma coisa, um

estado, não consiste simplesmente em desdobrá-lo, repeti-lo ou reproduzi-lo; é reconstituí-lo,

retocá-lo, modificar-lhe o texto”.

A estrutura das representações possui, portanto, duas faces indissociáveis, ou seja,

uma figurativa, e a outra, simbólica. Para Moscovici (1978, p. 65), isso “faz compreender a

toda figura um sentido e a todo o sentido uma figura”. Assim sendo, fornecer um contexto

inteligível ao objeto, ou seja, interpretá-lo, e dar materialidade a um objeto abstrato,

corresponde à face simbólica e figurativa das representações sociais. A cada um dessas faces

corresponde um processo que, articulado, caracteriza a estrutura das representações sociais: a

ancoragem e a objetivação.

Pode-se, por um lado, definir a ancoragem como processo de atribuição de sentido. Ela

constitui o modo de classificação e denominação de objetos sociais, pois permite “incorporar

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o que é estranho, através de uma rede de significações em torno do objeto, de maneira a

relacioná-lo a valores e práticas sociais” (SÁ, 1993, p. 38). Além disso, tal processo tem como

função, segundo este autor, a mediação entre o indivíduo e o seu meio e entre os membros de

um mesmo grupo, possibilitando assim a identidade do grupo e o sentimento de

pertencimento do indivíduo.

Desse modo, a ancoragem consiste, de acordo com Jodelet (1984 apud SÁ, 1993, p.

37) na “integração cognitiva do objeto representado – sejam idéias, acontecimentos, pessoas,

relações, etc – a um sistema de pensamento social preexistente e nas transformações

implicadas”.

A objetivação, por outro, “torna concreto, quase tangível o que é abstrato,

transformando o conceito em uma imagem”. Jodelet (1984 apud SÁ, 1993, p. 39) afirma que

ela é uma “operação imaginante e estruturante pela qual se dá uma forma – ou figura –

específica ao conhecimento acerca do objeto, tornando concreto, quase tangível, o conceito

abstrato, materializando a palavra”.12

As representações sociais, sendo assim, são produtos sociais, tendo de referir-se às

condições de sua produção, pois as situações sociais naturais e complexas as produzem.

Torna-se, pois, necessário compreender como o pensamento individual se fundamenta no

social, sendo por este produzido. Moscovici (1978) assim considerou a interação dialética

como a propulsora da formulação da Teoria das Representações Sociais, dado que o social

existe na condição de haver um sujeito e este se configura naquele.

4.2 Pesquisa qualitativa

A pesquisa qualitativa, nos últimos 30 anos, ganhou espaço, sobretudo na área das

Ciências Sociais. Pode-se apontar, dentre os principais motivos do aumento de sua utilização,

a insuficiência e inadequação dos métodos quantitativos para responder a alguns temas de

grande importância e de contornos não mensuráveis estatisticamente.

12 Segundo Jodelet (1986, p. 486), “más complejo y fundamental de lo que há podido parecer, el processo de anclaje, situado em uma relación dialéctica com la objetivización, articula las três funciones básicas de la representación: función cognitiva de integración de la novedad, función de interpretación de la realidad y función de orientación de las conductas y las relaciones sociales”.

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Assim sendo, parte-se do pressuposto de que o mundo social não é um dado objetivo e

invariável, visto que ele seja construído ativamente pelos indivíduos em seu cotidiano. Desse

modo, a pesquisa qualitativa tem como característica principal:

[...] fornecer dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos (GASKEL, 2002, p. 65).

Esta pesquisa, de acordo com Bogdan e Biklen (1994a) e Lüdke e André (1986a),

possui algumas características, tais como: o ambiente a ser investigado é fonte direta de dados

e o pesquisador é o instrumento principal; envolve a obtenção de dados descritivos, ou seja,

os dados são recolhidos em forma de palavras ou imagens e não em números; tem-se maior

interesse pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos, isto é, ao

investigar determinado problema, interessa-se por verificar o modo como ele se manifesta na

interação cotidiana; os dados são analisados de forma indutiva, por meio de abstração, e não

por meio de hipóteses pré-determinadas; o significado tem grande importância, visto que o

interesse está no modo como os indivíduos atribuem sentido para as suas vidas.

As pesquisas qualitativas, de acordo com Nogueira- Martins e Bógus (2004/2005), têm

assim por objeto o entendimento de um contexto, a observação de vários fenômenos em um

pequeno grupo e a explicação dos comportamentos de seus agentes e objetos. Delas, portanto,

faz parte a obtenção de dados descritivos mediante contato direto e interativo do pesquisador

com o contexto e o objeto de estudo, sendo aquele que faz a pesquisa também considerado um

intérprete envolvido na realidade sobre a qual se debruça.

Desse modo, o interesse do pesquisador está na busca do significado dos fatos, eventos

e vivências, pois ele exerce um papel organizador nos indivíduos: o que os fenômenos

representam, dá molde à vida das pessoas. Num outro nível, “os significados que eles

ganham, passam também a ser partilhados culturalmente e assim organizam o grupo social em

torno destas representações e simbolismos” (TURATO, 2005, p. 510).

Este autor afirma que o pesquisador procura, nesse sentido, entender os fenômenos,

segundo a perspectiva dos participantes da situação estudada, podendo, a partir daí, formular

suas interpretações acerca dos mesmos. Busca-se, pois, compreender, por intermédio da

metodologia qualitativa, o processo pelo qual as pessoas constroem significados e os

descrevem.

Segundo Maanen (1979a apud NEVES, 1996, p. 1):

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[...] a expressão pesquisa qualitativa assume diferentes significados no campo das ciências sociais. Compreende um conjunto de diferentes técnicas interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o sentido dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre indicador e indicado, entre teoria e dados, entre contexto e ação.

O significado, desse modo, tem função estruturante, visto que as pessoas tendem a

organizar as suas vidas em função do significado que atribuem para as situações. O

pesquisador, na abordagem qualitativa, objetiva, portanto, conhecer as suas vivências e as

representações que elas constroem das suas experiências de vida.

Minayo (1992, p. 10) aponta as metodologias qualitativas como:

[...] aquelas capazes de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas. O estudo qualitativo pretende, pois, apreender a totalidade coletada visando, em última instância, atingir o conhecimento de um fenômeno histórico que é significativo em sua singularidade.

Pode-se afirmar, sob essa ótica, que pesquisas qualitativas valorizam a realidade

estudada, considerando-a como um fenômeno cultural, histórico e dinâmico, experienciado e

descrito por um pesquisador a partir do contato com o seu objeto de estudo.

Assim, de acordo com Spink e Menegon (1997), numa pesquisa qualitativa outros

processos são privilegiados, pois enfatizam-se aspectos específicos do campo de investigação.

Nesse sentido, valoriza-se a descrição detalhada do contexto da pesquisa, do caminho

percorrido pelo pesquisador e de como este procedeu em sua interpretação, permitindo uma

visão detalhada do fenômeno estudado.

A pesquisa qualitativa, desse modo, passa a ser vista como um recurso no qual

ocorrem processos de produção de sentido mediados pelas relações estabelecidas entre

pesquisador e participantes.

4.3 Observação participante e diário de campo

Destaca-se aqui, dentre os vários métodos da pesquisa qualitativa, a observação

participante e o diário de campo. Estes são utilizados com o intuito de ampliar-se o horizonte

de análise em relação a condições, processo de funcionamento e organização de um dado

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contexto. A utilização do diário de campo e da observação participante permite assim

estabelecer relações informais que são significativas no tratamento qualitativo dos dados.

A observação participante possibilita ao pesquisador coletar dados por meio da

participação na vida cotidiana de um grupo por um período determinado. Ela permite que se

atente ao processo de apropriação de conhecimento dos vários segmentos de um contexto,

podendo o pesquisador analisar o cotidiano, bem como a dinâmica e o funcionamento do

local.

O pesquisador, quando realiza observação participante, está aberto, conforme aponta

Gaskel (2002, p. 72), “a uma maior amplitude e profundidade de informação, é capaz de

triangular diferentes impressões e observações, e consegue conferir discrepâncias emergentes

no decurso do trabalho de campo”.

Cruz Neto (2002) afirma que a observação participante, realizada através de um

contato direto do observador com o fenômeno a ser observado, tem por finalidade obter

informações sobre a realidade e o contexto do objeto a ser investigado. A importância desta

técnica está na possibilidade de captar vários detalhes, situações ou fenômenos diretamente

ligados à realidade.

Paralelamente à observação participante, destaca-se o uso do diário de campo. Este se

constitui como um instrumento ao qual se pode recorrer, a qualquer momento da pesquisa, em

busca de percepções, questionamentos e informações adicionais do pesquisador não obtidas

pela utilização de outras técnicas.

No diário de campo, devem-se constar todas as informações que não sejam o registro

das entrevistas formais. Estas informações devem referir-se, conforme aponta Minayo (1992,

p. 100), às “observações sobre conversas informais, comportamentos, instituições, gestos,

expressões que digam respeito ao tema da pesquisa. Fala, comportamentos, hábitos, usos,

costumes, celebrações e instituições compõem o quadro das representações sociais”.

Assim sendo, o pesquisador, por meio das notas de campo, faz “descrição das pessoas,

objectos, lugares, acontecimentos, atividades e conversas” (BOGDAN; BIKLEN, 1994b, p.

150). Tais notas, desse modo, são os registros das percepções do pesquisador, isto é, referem-

se ao que ele ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da coleta dos dados, bem como ao que

ele reflete sobre os dados do estudo qualitativo.

O conteúdo das observações, desse modo, deve envolver dois tipos de materiais: o

primeiro é meramente descritivo. A preocupação, nesta situação, é “a de captar uma imagem

por palavras do local, pessoas, acções e conversas observadas” (BOGDAN; BIKLEN, 1994b,

p. 152). Esta parte descritiva refere-se, portanto, ao registro objetivo, por parte do

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pesquisador, dos detalhes ocorridos no campo de investigação. O segundo é reflexivo e se

atém ao ponto de vista do observador, isto é, às suas idéias, preocupações e observações

pessoais feitas ao longo da coleta dos dados (BOGDAN; BIKLEN,1994b; LÜDKE; ANDRÉ,

1986b).

4.4 Entrevistas semi-estruturadas

A entrevista representa um dos instrumentos básicos da coleta de dados. A sua

vantagem sobre outras técnicas é que permite “a captação imediata e corrente da informação

desejada, praticamente com qualquer tipo de entrevistado e sobre os mais variados tópicos”

(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 34). Ela possibilita, assim, a ocorrência de “correções,

esclarecimentos e adaptações que a tornam eficaz na obtenção das informações desejadas”

(NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004, p. 49).

Neste estudo foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas, visto que possibilitem, a

partir de um roteiro previamente estruturado, aprofundar, por meio do contato com os

entrevistados, os temas de interesse para a pesquisa. Esta entrevista é, de acordo com Triviños

(1987, p. 146):

[...] aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias e hipóteses, que interessam à pesquisa e que, em seguida, oferecem amplo campo de interrogativas, junto de novas hipóteses que vão surgindo à medida que recebem as respostas do informante.

Desse modo, o entrevistado, seguindo de modo espontâneo a linha de seu pensamento

e de suas experiências, dentro do foco principal dado pelo pesquisador, passa a participar na

elaboração do conteúdo da pesquisa (NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004).

Tal técnica caracteriza-se pela formulação prévia de algumas perguntas, tendo o

entrevistador uma participação ativa na entrevista. Apesar de seguir um roteiro, cabe a ele

realizar perguntas adicionais a fim de esclarecer questões que permitam melhor compreensão

da situação de interesse da pesquisa e do contexto em que esta se insere.

A entrevista semi-estruturada, conforme aponta Triviños (1987) e Assis et al. (1998),

valoriza a presença do pesquisador e oferece todas as perspectivas possíveis para que o

entrevistado alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação.

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4.5 Coleta de dados

4.5.1 Procedimentos

A pesquisa foi realizada em dois abrigos de idosos da cidade mineira de Uberlândia

em meados de julho a agosto de 2005, num período aproximado de 30 dias. O procedimento

inicial foi o de contatar as coordenadoras das instituições para apresentar o objetivo da

pesquisa e solicitar permissão para realizá-la naqueles locais.

Dada a permissão, acompanhou-se, no período de duas semanas – sendo destas, uma

dedicada a cada abrigo – o funcionamento e a rotina dos mesmos, a fim de verificar as suas

dinâmicas cotidianas e melhor entender como os participantes elaboram e equacionam o seu

modo atual de vida. Atentou-se, sobretudo, à maneira como os funcionários e os idosos

interagiam; como aqueles e estes se relacionavam entre si; à relação estabelecida entre a

coordenadora, os funcionários e os próprios asilados; e, por fim, à rotina de trabalho dos

funcionários e de vida dos idosos ali residentes.

Participou-se, neste período, tanto das refeições dos idosos quanto dos intervalos das

atividades e outros afazeres determinados pelo abrigo. Isto sempre ocorreu em contato direto

com os idosos e com alguns funcionários.

Num segundo momento – no primeiro abrigo, no decorrer de duas semanas, no

segundo, ao longo de vinte dias – entrou-se em contato com os idosos que se encontravam

deitados em suas camas; sentados na porta dos quartos ou na sala de televisão; e também com

aqueles que permaneciam, nos intervalos das refeições e de outras atividades, sentados nos

bancos do pátio da instituição ou em suas cadeiras de roda. Os idosos ali permaneciam,

geralmente, a fim de passar o tempo. Nesse momento, tão logo estabelecido o contato,

informou-se ao idoso o papel do pesquisador naquelas instituições, o objetivo da pesquisa, e

indagou-se do interesse ou não de ele participar desse estudo.

Foi-lhes assim explicado, no transcorrer da conversa, que o pesquisador ali se

encontrava para realizar uma pesquisa acerca de idosos que moravam em abrigos, e, assim

sendo, indagou sobre seu interesse em contribuir com tal estudo.

Realizou-se, portanto, observação participante como técnica complementar na

obtenção de informações sobre o contexto institucional e a sua forma de organização e

funcionamento. Além disso, utilizou-se do diário de campo, tanto no registro das observações,

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quanto na anotação das reflexões que emergiram a partir do contato do pesquisador com o

contexto em questão. As anotações neste diário foram realizadas imediatamente após a saída

do pesquisador dos abrigos. O presente estudo, assim sendo, enquadra-se na abordagem

qualitativa, ou seja, visa a focalizar e a investigar um problema nas atividades e interações

diárias de um determinado meio.

Estabeleceu-se como critério de exclusão, o idoso que, por decorrência de quadro

demencial severo, não apresentasse condições mínimas para responder as questões abordadas

na entrevista. Os participantes, que ao serem abordados aceitassem conceder entrevistas,

foram novamente informados do objetivo da pesquisa, bem como do sigilo e da necessidade

da assinatura do Termo de esclarecimento aos sujeitos da pesquisa13.

Além disso, foram-lhes explicados os motivos pelos quais haviam sido escolhidas as

instituições e a opção de tê-los como entrevistados, bem como os passos subseqüentes do

estudo. Cabe ressaltar, além disso, que se escolheram tais abrigos por eles oferecerem

permissão e livre acesso do pesquisador às suas dependências.

Foram, no total, entrevistados dezesseis idosos. O critério estabelecido para a

determinação deste número de entrevistados foi a saturação dos dados, ou seja, repetições de

informações que configuram uma problemática, sem o surgimento de novos dados

significativos. A saturação, assim sendo, constitui como um indicativo da suficiência de

informações concedidas pelos entrevistados. (BOGDAN; BIKLEN, 1994a).

As entrevistas foram realizadas individualmente, em local escolhido pelos próprios

participantes, tendo ocorrido em diversos locais: nos quartos dos idosos; na porta dos seus

quartos, sentados em cadeiras; no sofá localizado na sala; na recepção do abrigo; nas mesas

em que se fornecem as refeições; e nos pátios dos abrigos. Elas duraram, em média, cinqüenta

minutos, e, com o consentimento deles, foram gravadas com o intuito de obter-se a maior

fidelidade possível das respostas para análise posterior.

O pesquisador entrou em contato com alguns entrevistados, após a realização das

entrevistas, a fim de solicitar informações complementares para o estudo, visto que elas não

tinham sido mencionadas ao longo das entrevistas. Além disso, em algumas situações, elas

não haviam ficado claras, e, em outras, faltavam dados suficientes para o entendimento de

determinadas questões.

Utilizaram-se, como materiais, um gravador, fitas cassetes, papel, caneta e cópias dos

Termos de esclarecimento aos sujeitos e da pesquisa. Os participantes, nas entrevistas,

puderam discorrer sobre as suas histórias de vida, possibilitando a compreensão das 13 Ver Apêndice A.

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representações sociais sobre as instituições nas quais eles se encontram.

Anotaram-se, em diário de campo e como complementação às entrevistas, os assuntos

comentados pelos entrevistados após ter sido desligado o gravador; as observações realizadas

sobre a instituição e sua dinâmica de funcionamento; e as informações complementares aos

conteúdos concedidos nas entrevistas a fim de registrar dados relevantes que emergissem

nesta situação informal.

Realizaram-se entrevistas semi-estruturadas. Algumas questões14 foram previamente

formuladas e adequadas ao fim proposto, possibilitando a obtenção de informações e dados

necessários à construção da pesquisa; outras, no entanto, emergiram no decorrer das

entrevistas como complemento dos relatos dos entrevistados.

As questões propostas estavam associadas ao objetivo da pesquisa, ou seja, à aquisição

de informações que possibilitassem compreender os significados e sentidos atribuídos à

instituição asilar por idosos abrigados. As questões principais se referiram aos motivos pelos

quais os idosos encontram-se na instituição e o que isso representa para eles. Tais indagações

foram entremeadas com dados pessoais dos sujeitos, como naturalidade, data de nascimento,

grau de escolaridade, estado civil, profissão e recebimento ou não de algum benefício

previdenciário.

Para verificar as representações sociais sobre instituição asilar por estes idosos,

formularam-se questões determinadas que se centraram na história de vida e na situação atual

do entrevistado. O fato de viver em abrigos institucionais pode fornecer contornos ao seu

discurso e ao sentido existencial. As entrevistas objetivaram investigar as seguintes questões:

os idosos nos abrigos se sentem ou não marginalizados da sociedade? Há neles representações

sociais de inclusão na sociedade ou de exclusão dela? Quais são as representações sobre

instituição que circulam no grupo estudado?

4.5.2 Aspectos éticos15

O presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de

Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), pelo Processo de número

194/05 – 2005.1.748.59.1, e aprovado em 20 de julho de 2005.

14 Ver, no Apêndice B, o roteiro completo das entrevistas. 15 Ver Anexo A.

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4.5.3 Participantes

Contou-se, para a realização desta pesquisa, com a participação de dezesseis

entrevistados em dois abrigos para idosos da cidade de Uberlândia. Destes, cinco idosos, um

do sexo masculino e os demais do sexo feminino, estão abrigados na primeira instituição que

o pesquisador contatou. Os demais participantes da pesquisa, ou seja, onze entrevistados,

encontram-se abrigados na segunda instituição contatada. Deles, dois são do sexo masculino e

nove, do sexo feminino.

Constam, nos quadros a seguir, dados sócio-demográficos que permitem caracterizar

os dezesseis participantes acima mencionados.

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Quadro 1 – Caracterização dos participantes da primeira instituição16

Participantes17 Naturalidade Idade Escolaridade Estado civil Profissão Recebimento

de benefício Estado de saúde Data de

ingresso no abrigo

1. Suyá Patrocínio - M.G 82 anos

Primário incompleto (2ª série)

Solteira Doméstica AposentadoriaDoença de Chagas, diabetes e problema de varizes.

08-12-1995

2. Miro Alto Garças - M.T 74 anos Alfabetizado Separado

Trabalhou como corretor, em olaria e cerâmica; guarda (fazer anotação de placa de carro) e comércio

AposentadoriaDerrame cerebral (o lado direito do corpo é quase paralisado)

31-01-1996

3. Celeste Zona rural de Igarapava -

S.P 79 anos Alfabetizada Solteira Doméstica Aposentadoria – 02-03-2001

4. Aracê Sacramento - M.G 64 anos

Primário incompleto (3ª série)

Viúva Do lar – Cistociscóide (ovo de solitária) 04-10-1997

5. Lana Zona rural de Uberlândia -

M.G 68 anos

Primeiro ano primário (3ª

série) Viúva Doméstica e

pajem de criança AposentadoriaDerrame isquêmico, labirintite, hipertensão; Mal de Alzheimer

12-12-2004

16 Os dados aqui apresentados se referem ipsis litteris aos prontuários dos idosos abrigados fornecidos pelas duas instituições. Em ambas, tais dados são preenchidos pelo coordenador do abrigo com as informações que o responsável pela internação do idoso lhe fornece. Na ausência de responsável, o próprio idoso os repassa. Além disso, há uma avaliação médica prévia à internação cujas informações do diagnóstico constam nos prontuários. A consulta dos prontuários para esta pesquisa foi realizada em agosto de 2005. 17 Foram dados nesta seção e nos tópicos subseqüentes, nomes fictícios aos entrevistados, às pessoas que foram por eles mencionadas e às instituições, tendo em vista a preservação do anonimato deles.

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Quadro 2 – Caracterização dos participantes da segunda instituição

Participantes Naturalidade Idade Escolaridade Estado civil Profissão Recebimento

de benefício Estado de saúde Data de ingresso no abrigo

6. Ava Zona rural de Veríssimo - M.G 89 anos 3° ano

primário Viúva Doméstica Pensão do marido

Insuficiência cardíaca e hipertensão 28-09-2003

7. Tiana Zona rural de

Monte Alegre - M.G

83 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria Hérnia (dependente de bengala ou de andador) 08-10-1999

8. Zica

Bom Jardim - M.G (mas foi registrada em Uberlândia -

M.G)

80 anos Analfabeta Viúva Doméstica e pajem de criança Aposentadoria

Derrame cerebral (depen-dente de cadeira de rodas), insuficiência cardíaca e hi-pertensão

02-02-1999

9. Doca Zona rural de São Gotardo - M.G 71 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria Hipertensão 16-02-2000

10. Ina Zona rural de Tupaciguara -

M.G 73 anos Primário

incompleto Separada Costureira Aposentadoria Esquizofrenia 08-08-2002

11. Ceci Paracatu - M.G 79 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria – 07-04-2004

12. Iole Zona rural de Uberlândia - M.G 81 anos 3° ano

primário Separada Trabalhou em alfaiataria Aposentadoria – 31-05-2001

13. Lude Zona rural de Uberlândia - M.G 79 anos Analfabeta Solteira Zeladeira de

hotel e pensão Aposentadoria Chagas intestinal, depressão crônica, derrame cerebral 15-12-2001

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14. Irajá Uberaba - M.G 99 anos 1° ano primário Solteira

Pajem de criança e auxílio aos enfermeiros em hospitais

AposentadoriaInsuficiência cardíaca,

artroplastia bilat coxofemural

25-09-2002

15. Peri Araguari - M.G 60 anos 4° ano primário Solteiro

Auxiliava o pai no comércio: em armazém e bar

Aposentadoria Hidrocefalia (meningite) - válvula na cabeça 21-02-2003

16. Aog

Miraporanga (Distrito de Uberlândia -

M.G)

58 anos Primário incompleto Solteiro

Lavoura e auxi-liar de serviços em construtora civil

– Déficit cognitivo 05-01-2002

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4.6 Contexto de realização do estudo

4.6.1 Caracterização da cidade em relação à temática analisada

Segundo o senso populacional de 2000, Uberlândia, cidade situada na região do

Triângulo Mineiro, no Estado de Minas Gerais, conta com um total de 570.042 habitantes. A

população idosa está estimada em 8% da população total, o que corresponde a

aproximadamente 43.000 pessoas. Destes, segundo dados fornecidos em 2004 pelo IBGE,

25.172 tinham entre 60 a 69 anos, 12.758 possuíam entre 70 a 79 anos e 4.786 pessoas

apresentavam idade acima de 80 anos (PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA,

2005).

Mantêm-se registrados no Conselho Municipal do Idoso e com alvará de

funcionamento seis abrigos particulares, com cerca de 180 idosos no total, e seis

filantrópicos. Destes últimos, um é caracterizado como “lar-dia”18 e assiste a 40 idosos. Os

abrigos filantrópicos assistem no total a aproximadamente 250 idosos.

4.6.2 Sobre as instituições

Neste tópico será inicialmente apresentada a especificidade de cada instituição.

Posteriormente será considerado o que há de comum entre elas.

4.6.2.1 Primeira instituição

Esta instituição19 foi fundada em 30 de agosto de 1995. Ela mantém vínculo com a 18 Os idosos que permanecem no abrigo pelo sistema “lar-dia” passam o dia naquele local e retornam para suas residências no final da tarde. 19 Todas as informações referentes à descrição e funcionamento do abrigo foram concedidas pela coordenadora da instituição.

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igreja presbiteriana, tendo sido criada por iniciativa de um grupo de pessoas a ela

relacionadas.

Tal grupo interessou-se por conhecer o atendimento asilar da cidade de São Paulo,

também vinculado à igreja presbiteriana, tendo em vista a criação de um abrigo na cidade de

Uberlândia com o objetivo de suprir a demanda, solicitada na própria comunidade evangélica,

por vagas em abrigo.

A Fundação Presbiteriana, reconhecendo a persistência da idéia de criação de um

abrigo por este grupo, concedeu-lhes terreno e alguns recursos para que fossem iniciadas as

obras de construção do abrigo. Tais obras, contudo, em função da escassez de recurso, só

terminaram depois de dez anos.

O abrigo tem capacidade para assistir a vinte e três idosos. Atualmente todas as vagas

estão preenchidas. Dentre os idosos, vinte e um são internos e dois permanecem no local

como lar-dia. Destes, um é do sexo feminino e o outro, do sexo masculino. Dos idosos

internos, há seis homens e quinze mulheres.

Os critérios estabelecidos para a admissão do idoso na instituição são: carência

financeira, não estar acometido por doença infecto-contagiosa e não ser portador de doença

mental.

As admissões dos idosos no abrigo, por sua vez, decorrem das solicitações da

Promotoria; do Conselho Municipal do Idoso; da família; do interesse do próprio idoso; de

denúncias, realizadas pelos vizinhos dos idosos ou por terceiros, decorrentes de abandono ou

maus-tratos por eles sofridos.

O contato inicial com o idoso é efetuado por meio das visitas domiciliares realizadas

pela Assistente Social da Curadoria do Idoso. Esta, num segundo momento, contata o abrigo a

fim de verificar a existência ou não de vaga. O idoso, caso haja vaga disponível, é

imediatamente admitido no abrigo. Se não houver disponibilidade, ele é encaminhado para

outros abrigos da cidade.

O abrigo possui caráter filantrópico, sem fins lucrativos, e é subvencionado pela

Prefeitura Municipal de Uberlândia. Esta se responsabiliza pelo pagamento dos salários dos

funcionários, bem como pelo fornecimento da alimentação básica consumida no local, que é,

por sua vez, complementada por doações provenientes da comunidade.

A referida instituição é coordenada por uma psicóloga. Esta se responsabiliza por

questões referentes às admissões dos idosos e burocracias em geral. Ela coordena, no total,

uma equipe formada por quatorze funcionários. Tal equipe, além desta coordenadora geral, é

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constituída por duas cozinheiras; um vigia noturno; cinco funcionários que trabalham como

auxiliares de Enfermagem, sendo um deles responsável por cobrir as férias dos demais; quatro

funcionários que exercem a função de auxiliar de serviços gerais e um que se ocupa com as

funções de auxiliar de secretaria.

Há parcerias com universidades, tanto particulares quanto pública, que cedem

estagiários dos cursos de Psicologia, Técnico em Enfermagem e de Nutrição, que atendem aos

idosos. Os estagiários deste último curso responsabilizam-se por realizar avaliação nutricional

dos mesmos.

Há uma média de quinze voluntários que prestam serviços ao local. Destes, um atua

como enfermeiro e os demais contribuem em diversas tarefas: no transporte dos idosos para a

realização de consultas médicas; no bazar, como forma de confeccionar materiais e objetos

diversos que são vendidos para arrecadar fundos para a instituição; em pequenos reparos da

estrutura física do local; na doação dos lanches e no atendimento a algum pedido solicitado

pela instituição.

O Programa Saúde da Família e o Projeto Serenidade, ambos subvencionados pela

Prefeitura Municipal, também assistem à instituição. Os idosos, por meio do Projeto

Serenidade, recebem atendimento fisioterápico e médico. O atendimento fisioterápico ocorre

quatro vezes na semana e as consultas médicas são realizadas uma vez na semana. Os

profissionais que integram o Programa Saúde da Família oferecem, por sua vez, atendimentos

mensais aos idosos.

Os idosos que apresentam condições físicas satisfatórias participam de atividades de

recreação, realizadas dentro do próprio abrigo e oferecidas por integrantes de um grupo de

dança. A participação de cada idoso é opcional, respeitando a vontade de cada um deles.

Além disso, a esses idosos é oferecida a possibilidade de participar semanalmente de

atividades propiciadas por um órgão da Prefeitura Municipal. Este órgão, criado e

desenvolvido exclusivamente para o atendimento dos idosos da cidade, promove atividades

diversas de recreação. Podem-se mencionar, dentre estas, dança e atividades manuais. Os

idosos do abrigo são transportados para este local por meio de veículo e motorista cedidos

pela própria Prefeitura Municipal.

Como a instituição foi construída ao lado da Igreja Presbiteriana, há, pelo pastor da

igreja, celebração diária de cultos. Na sua ausência, uma idosa, interna do abrigo, encarrega-

se de realizar tal tarefa dentro do próprio abrigo. No entanto, a participação dos idosos nos

cultos é facultativa, uma vez que a instituição respeite os diferentes credos, já que se admitem

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idosos de diversas religiões.

Quanto à estrutura física da instituição, há seis banheiros, localizados em diversas

partes do abrigo, e oito quartos. Destes, cinco estão na área interna da instituição e três na

externa. Na área interna, quatro quartos abrigam mulheres e cada um comporta três pessoas, e

o outro, estruturado para acolher quatro pessoas, é ocupado por homens. Na área externa, há

um quarto masculino e um feminino e ambos comportam duas pessoas.

Os idosos são distribuídos nos quartos por dois critérios: um, considera a afinidade

entre eles; o outro, estabelece que idosos diagnosticados como possuidores de suas faculdades

mentais devam coabitar com aqueles que tenham grau menor de lucidez.

O abrigo não realiza reuniões com os familiares dos idosos. Indagada da razão pela

qual isso não ocorre, a coordenadora apenas afirmou o fato de que no momento não se faz tais

reuniões.

A instituição oferece aos idosos seis refeições diárias que são distribuídas em café da

manhã, lanche, almoço, lanche da tarde, jantar e lanche noturno.

Além disso, há uma casa, composta por quatro cômodos, localizada na lateral externa

do abrigo, em que mora a entrevistada Suyá. Tal casa, por decisão do coordenador da

instituição, foi construída especialmente para esta interna, após o falecimento de sua irmã,

com quem juntamente morou no abrigo. Um dos funcionários do abrigo realiza a limpeza da

casa que, por sua vez, é toda mobiliada.

Constatou-se, a partir das observações gerais sobre a instituição, registradas no diário

de campo, e das impressões a respeito dos idosos entrevistados, que Suyá possui certo

privilégio naquele local. O fato de ela morar em uma casa localizada dentro do próprio abrigo

é, no entanto, criticada pela atual coordenadora do local que sugeriu a esta entrevistada morar

dentro da instituição, não tendo sido aceita a proposta.

Parece ser-lhe dada, pelos funcionários e colegas abrigados, uma condição de

superioridade em relação aos demais idosos. Possivelmente tal fato ocorra tendo como critério

a sua integridade física e mental, já que, além de não possuir doenças incapacitantes, ela tem

condições de cuidar de si mesma, sem ajuda de ninguém, e de auxiliar na realização de

algumas tarefas do abrigo. Isso pôde ser verificado no tratamento dos colegas e funcionários

para com ela, e também por receber uma série de atribuições, como liderar os cultos na

ausência do pastor e responsabilizar-se pelo conserto das roupas do abrigo e dos colegas.

Além disso, ela pode sair do abrigo quando deseja, bem como possui autonomia para cuidar

dos colegas quando a enfermeira se ausenta para acompanhar algum interno ao hospital.

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Quanto à participação dos entrevistados, notou-se que eles prontamente se dispuseram,

ao serem abordados pelo pesquisador, a conceder entrevistas.

Constatou-se que a entrevistada Aracê ingressou no abrigo quando tinha idade inferior

a sessenta anos, ou seja, ao marco que sinaliza em termos legais a entrada para a terceira

idade.

Notou-se, dentre todos os idosos da instituição, que apenas as entrevistadas Suyá e

Aracê mantinham-se ocupadas, respectivamente, com trabalho manual e no auxílio aos

funcionários do abrigo em tarefas relacionadas à cozinha e na limpeza do pátio da instituição.

A ociosidade, portanto, é um aspecto marcante na vida de grande parte dos entrevistados e

dos demais idosos do abrigo.

Pode-se salientar que há contato restrito entre os idosos abrigados e os funcionários,

salvo nas situações em que aqueles requerem cuidados destes. Além disso, percebeu-se que há

conflito entre alguns idosos e funcionários, sendo que a implicância entre eles é mútua e

verbalmente manifesta. Isto pôde ser verificado nos depoimentos das entrevistadas Celeste e

Lana que afirmam não ser respeitadas por alguns funcionários. Estes, por sua vez,

comentaram que não se pode confiar no que é dito por aqueles.

Lana, por outro lado, demonstrou estabelecer, em comparação com os demais

entrevistados, maior contato e aproximação com os colegas, evidenciando-se nela

preocupação e maiores cuidados para com os demais. Além disso, no período em que o

pesquisador manteve-se presente na instituição, apenas esta entrevistada recebeu visita

familiar, mais precisamente do irmão.

Verificou-se que há um número expressivo de idosos que apresentam algum tipo de

seqüela física decorrente de problemas de saúde. Este aspecto pôde ser observado em relação

aos entrevistados Miro e Lana.

Observou-se uma tentativa por parte de Celeste em agradar o pesquisador, tendo lhe

oferecido, de maneira insistente, um vaso com alecrim que havia sido por ela própria

plantado. Presume-se, a partir desta atitude, uma necessidade de ela se mostrar como uma

pessoa bondosa, e, além disso, como um meio de retribuir a atenção recebida.

Miro, por sua vez, forneceu indícios, ao longo da entrevista, de que tentava estabelecer

relação de intimidade com o pesquisador, uma vez que manteve interesse em saber o seu

estado civil, bem como demonstrou interesse por outras informações pessoais. Além disso, ele

pareceu reforçar em sua fala, a partir da informação do pesquisador sobre o sigilo da

entrevista, que o diálogo estabelecido entre ele e o pesquisador seria mantido entre eles como

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um pacto de confiança e fidelidade.

A coordenadora da instituição mostrou-se disponível, porém, por breve período de

tempo, talvez em função de seus inúmeros afazeres, para conceder informações sobre o abrigo

ao pesquisador.

4.6.2.2 Segunda instituição

O Lar da Saudade é um dos projetos sócio-educativos do Grupo da Esperança20. Esta é

uma organização da sociedade civil fundada em primeiro de janeiro de 1950 na cidade do Rio

de Janeiro. Tem como objetivo promover educação e cultura sem descurar do aspecto

espiritual e, além disso, fornece alimentação, saúde e trabalho na formação do que eles

descrevem como um cidadão ecumênico.

O Grupo da Esperança propaga que suas atividades consistem no desenvolvimento de

programas e projetos voltados à necessidade das comunidades com o objetivo de propiciar

gestação saudável, infância segura, adolescência produtiva e terceira idade participativa,

resgatando, assim, segundo ela, a dignidade, os valores morais e espirituais das populações

que vivem em risco social.

O Lar da Saudade, em Uberlândia, foi inaugurado em 28 de junho de 1961, e provê

assistência integral, em regime de internato, a idosos em situação de risco social. A instituição

possui capacidade para abrigar quarenta e duas pessoas. Atualmente todas as vagas estão

completas, sendo que há vinte e quatro mulheres e dezoito homens.

A admissão do idoso decorre dos seguintes motivos: carência sócio-econômica;

denúncias de maus-tratos a partir de informações da comunidade, dos vizinhos dos idosos e

da Curadoria do Idoso, órgão atrelado à Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura

Municipal de Uberlândia; vontade do próprio idoso; conflitos familiares; decisão de ordem

judicial.

Admite-se, portanto, o idoso que se encontra em situação de risco pessoal ou social,

possuindo ou não família. O critério de maior importância é a condição sócio-econômica do

20 As informações aqui contidas foram fornecidas pela coordenadora do abrigo, bem como extraídas de um material impresso, organizado por ela própria, baseado em documentos do Grupo da Esperança, que trata da criação e organização da instituição.

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idoso, que, em situação de extrema carência, é aceito na instituição a fim de evitar o

abandono. Para tanto, a Assistente Social da Curadoria do Idoso realiza uma avaliação a fim

de se inteirar a respeito da vida do mesmo para, em seguida, providenciar o ingresso dele no

abrigo.

Não se admitem, a princípio, idosos que apresentam doenças transmissíveis, distúrbios

ou deficiências mentais21. Faz-se, para que ocorra a admissão, exame médico prévio, baseado

em informações concedidas pelos familiares, como avaliação do estado de saúde do idoso.

A instituição é filantrópica e não possui fins lucrativos. Ela recebe subvenção da

prefeitura quanto à cobertura dos gastos referentes aos alimentos e materiais de limpeza. O

Grupo da Esperança arca com outros gastos. Há também recursos complementares aos da

própria instituição: seja por meio do auxílio de trabalho de voluntários, seja por bazares

abertos à comunidade com a participação de voluntários e dos próprios idosos na confecção

de materiais a serem vendidos.

A instituição também conta com um trabalho de telemarketing em que se solicitam,

por telefone, donativos da comunidade. Realizam-se, além disso, parcerias com empresas a

fim de receber qualquer tipo de auxílio. São igualmente aceitos donativos de familiares que

possam contribuir de algum modo.

O abrigo conta com uma equipe de funcionários, voluntários e estagiários que

atendem aos idosos e auxiliam na manutenção e funcionamento da instituição. A equipe de

funcionários é composta por uma coordenadora geral da instituição; uma fisioterapeuta; uma

assistente social; uma recepcionista; duas cozinheiras e uma auxiliar de cozinha; sete

auxiliares de enfermagem; três funcionárias que realizam serviços gerais; uma funcionária

responsável pela lavanderia e uma pela rouparia; um motorista.

Conta-se com a colaboração de trinta e quatro voluntários. Estes auxiliam nas funções

de enfermagem; na costura e reforma das roupas dos idosos; passam as roupas utilizadas no

local; preparam e servem lanches; contribuem na realização de bazar a fim de arrecadar

recursos financeiros para a instituição; oferecem aos idosos atividades como aula de

alfabetização, de artes e trabalhos manuais.

A instituição firma parceria com diversas universidades da cidade que concedem

estagiários do curso de Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, Educação Física e Nutrição.

Há também parceria com escola de natação a fim de proporcionar atividades físicas àqueles

21 Verificou-se, embora se afirme que não são aceitos idosos nestas condições, que há vários casos de internos que manifestam sinais sugestivos dos referidos quadros.

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idosos que se encontram em condições satisfatórias de saúde.

A instituição tem caráter religioso, mas não propaga um único credo. Assim, lá

ocorrem cultos ecumênicos para quem deseja participar de atividades religiosas. Respeita-se,

pois, a religião seguida por cada idoso, não constituindo esta, portanto, critério para admissão

dos idosos e dos funcionários.

Quanto ao aspecto físico da instituição, cabe ressaltar que há nela quatorze quartos.

Cada quarto é ocupado por três pessoas e em todos há banheiro. O idoso, ao ingressar no

abrigo, ocupa o quarto em que houver vaga. Num segundo momento, quando possível, o

agrupamento dos idosos nos dormitórios é feito a partir da afinidade entre eles.

Realiza-se trimestralmente, pela Assistente Social, reunião obrigatória com os

familiares dos idosos para tratar de assuntos gerais referentes ao processo de internação,

sobretudo pela necessidade e importância de eles manterem contato com o idoso ali abrigado.

Oferecem-se seis refeições diárias com acompanhamento, durante todo o tempo, dos

funcionários. Proporcionam-se, em geral, alimentação balanceada e dietas específicas, em

particular, para os idosos que necessitem de tais cuidados.

Notou-se, por meio dos contatos com os idosos, a partir das observações participantes

e das anotações realizadas no diário de campo, que a maioria dos idosos, ao serem abordados

pelo pesquisador, dispuseram-se a conceder entrevistas, exceto dois deles que alegaram não

estar dispostos para conversar.

Embora as entrevistadas Ina, Iole e Lude tenham prontamente aceito conceder

entrevistas, percebeu-se que houve, da parte delas, certo incômodo por conversar sobre suas

vidas, respondendo as indagações sem muito prolongar os assuntos em questão. Além disso,

notou-se que estas três entrevistadas, além de Ceci, permaneciam sozinhas por todo o tempo,

privando-se do contato com qualquer pessoa. Lude, especialmente, ficava deitada em sua

cama, na maior parte do tempo, e levantava-se apenas para realizar as refeições e higiene

diárias.

Observou-se que as entrevistadas Doca e Zica apresentavam certa desconfiança da

coordenadora do abrigo quanto à utilização do dinheiro, que permanece sob os cuidados

desta, referente às suas aposentadorias e pensões.

Ao mesmo tempo em que elas compreendem a necessidade do uso do dinheiro com os

gastos da própria instituição e para provê-las, parecem indignar-se com o fato de não mais

terem, em função da doença ou da idade, ou mediante a associação entre tais aspectos,

controle sobre o bem que lhes propiciava autonomia e possibilitava realizar escolhas. Além

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disso, aborrecem-se com o fato de que o dinheiro, entendido por elas como fruto de seu

trabalho e esforços pessoais, beneficie também a todos.

Percebeu-se que no abrigo residem pessoas com idade inferior a sessenta anos, embora

esta idade seja estipulada por lei como o marco para a entrada na terceira idade e, portanto,

consista como um dos critérios para ingresso do idoso na instituição. Este aspecto, dentre os

idosos participantes deste estudo, pôde ser observado em relação ao entrevistado Aog. Além

disso, percebeu-se que o entrevistado Peri ingressou no abrigo quando ainda não tinha tal

idade.

Constatou-se, ainda, que a maioria dos idosos permanecia ociosa na maior parte do

tempo, isolada no pátio do abrigo, em seus quartos ou em contato com outros idosos.

Percebeu-se, dentre todos os entrevistados, que somente Ava ocupava-se com a realização de

atividade, isto é, ela dedicava o seu tempo à realização de trabalho manual. Além dela, Ceci

diariamente regava, no período da manhã, as plantas do abrigo.

Pode-se dizer, a partir das observações realizadas sobre as relações nas instituições,

que é mínimo o contato dos idosos entre si e deles com os funcionários do abrigo. Estes se

mostraram presentes somente nos horários das refeições e nas situações que requeriam

maiores cuidados no atendimento aos idosos. Alguns destes, por sua vez, reclamaram que não

eram prontamente atendidos nas situações em que solicitavam os funcionários, como se

verificou no caso da entrevistada Irajá. Esta, portanto, reclamou que não era atendida quando

solicitava medicação nas situações em que sentia dor ou diante da necessidade de algo.

Notou-se, por outro lado, que os idosos permaneciam juntos apenas durante as

refeições realizadas no refeitório. Assim sendo, essa situação parece propiciar condições para

que sejam instaurados conflitos, visto que alguns deles não aceitem determinadas atitudes e

comportamentos que provêm dos demais.

Ocorrem, por parte de alguns idosos, implicâncias com o fato de algum colega sentar-

se no lugar que eles freqüentemente ocupam; alguns deles não aceitam certas limitações

apresentadas pelo outros na realização das refeições; outros se aborrecem por não serem

primeiramente servidos pelos funcionários. Aog, por exemplo, realiza as suas refeições no

pátio a fim de evitar conflito com alguns colegas com quem não tem afinidade, o que, aliás,

foi verbalmente expresso por ele.

Por outro lado, o tratamento dos idosos em relação aos funcionários é diferenciado,

marcado por muito respeito, – com exceção de Irajá – sobretudo ao se comparar com as

relações estabelecidas entre os mesmos nas poucas situações observadas de contato entre eles.

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Isto pode ser explicado pela dependência que eles têm dos cuidados dos funcionários, bem

como pelo fato de estes serem atenciosos para com eles. Os funcionários, sendo assim, são

por eles colocados em posição de destaque, pois, além de gozarem da autonomia de ir e vir,

trabalharem e possuírem boas condições físicas, são de certo modo representados pelos idosos

como responsáveis por eles.

Observou-se que há um número considerável de idosos que apresenta problemas

físicos decorrentes de doenças. Este aspecto pôde ser verificado em relação à Tiana, Zica,

Lude, Irajá e Peri, e em grande parte dos demais idosos abrigados que lá vivem, mas que não

foram aqui entrevistados.

Mais particularmente, cabe notar que, a partir das impressões registradas no diário de

campo em relação à Tiana, houve uma grande utilização por parte dela do termo “minha

filha” durante a entrevista. Cabe aqui destacar, em primeiro lugar, o fato de a entrevistada ter

perdido seu único filho. Embora a expressão seja coloquial, pode-se ressaltar o forte valor

afetivo aqui presente, sugerindo uma provável gratidão pelo respeito e atenção a ela

concedidos pelo pesquisador.

Prosseguindo em tais observações mais particulares sobre cada entrevistado, ressalta-

se que, ao longo de todo o contato com o pesquisador, Ava justificou, – seja no início, seja no

decorrer da entrevista ou nas interações posteriores – que o seu desejo de retornar para casa

não está, de maneira alguma, vinculado ao modo como ela é tratada no abrigo. Percebeu-se

que há da parte dela extrema preocupação em salientar que seu desejo de retorno ao lar está

fortemente ligado a querer estar num ambiente mais familiar. Registrou-se em diário de

campo o visível incômodo dela quando, no decorrer da entrevista, uma funcionária entrou no

quarto para limpar o banheiro. Neste momento de ausência de privacidade, ela reiterou

diversas vezes o desejo de voltar para casa, mas ressaltando o fato de que as pessoas que

trabalham no abrigo tratam-na bem. Tal fato, aliás, está registrado em sua entrevista, quando

ela, como se falasse também para a funcionária, diz num tom um pouco mais elevado do que

o habitual: “[...] eles aqui não é ruim! Eles aqui não é ruim, não! Eles é muito bom! Boa

pessoa com a gente e tudo. Mas é porque eu quero ir embora pra minha casa [...]”.

Ao contrário desta entrevistada, percebeu-se que Doca utilizou-se do contato com o

pesquisador para explicitar as impressões dela sobre o abrigo, ressaltando privações e

restrições a que tem de se submeter na instituição, como ausência de atendimento quando

solicitado, falta de produtos de que carece, impossibilidade de dispor de suas economias.

Além disso, notou-se, no mesmo tom, que ela aproveitou deste contato para reiterar seus

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pedidos. Reclamou do não atendimento da demanda de alguns produtos que, conforme diz,

deveriam ser comprados com o restante do dinheiro da aposentadoria destinado

exclusivamente ao atendimento dos pedidos dos internos.

Esta problemática foi também observada em relação à Irajá. Esta, por ocasião da

entrevista, reclamou das restrições do abrigo, especificamente dos funcionários, no

atendimento aos seus pedidos de cuidado para alívio da dor que comumente sente.

Observou-se, assim sendo, que a entrevista deu ensejo a várias reclamações, como se a

entrevistadora pudesse servir de porta-voz de tais insatisfações e fosse alçada à condição de

intermediadora nas reivindicações entre os idosos e a coordenadora da instituição. Tal fato

revela que estas idosas se sentem sem voz ativa na instituição, desvelando o aspecto de

dependência sob a qual estão submetidas, pois não mais dispõem de condições para

resolverem os problemas que as afligem, seja pela idade, seja pelo fato de perceberem a vida

no abrigo como restritiva.

Notou-se, no período de contato do pesquisador com os idosos e com a instituição, que

nenhum dos seus parentes os visitou, exceto uma das sobrinhas de Tiana que, além de visitá-

la, procurou a coordenadora da instituição para tratar de questões burocráticas.

A coordenadora do local mostrou-se extremamente solícita ao longo de toda a

pesquisa.

4.6.2.3 Aspectos comuns entre as instituições

Todos os idosos possuem convênio médico que lhes oferece pronto atendimento. A

equipe de profissionais disponibilizada por tal convênio os atende no próprio abrigo, mediante

contato e solicitação da coordenadora do local. Tal equipe realiza, nesta situação,

atendimentos aos idosos que exijam procedimentos médicos simples. Além disso, quando

necessário, encaminha-os em ambulância própria, equipada com materiais de primeiros

socorros, para órgãos públicos que se dispõem de estrutura necessária para atender aos casos

de maior gravidade e às situações nas quais os idosos correm risco de vida.

Os abrigos retêm valor correspondente a 70% da aposentadoria, benefício ou pensão

dos idosos para arcar com os gastos e despesas relativos à instituição. Os 30% do valor

restante são gastos no atendimento de pedidos efetuados por eles.

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A retirada do dinheiro é feita através de curatela, ou seja, uma pessoa da família

possui o direito, mediante permissão e assinatura do idoso, de responsabilizar-se pela conta

bancária e bens deste. Quando isso não ocorre, esse direito é transferido para a instituição a

fim de que ela assuma tal função. Em relação à segunda instituição mencionada, estima-se,

por idoso, um custo mensal que varia entre R$ 327,50 a R$ 416,00.

As visitas ocorrem diariamente entre 14h e 17h e não se restringem aos familiares,

parentes e amigos dos idosos, sendo, portanto, extensivas à comunidade.

Observou-se que há nas instituições número superior de mulheres em relação aos

homens.

Há nos abrigos um número expressivo de idosos que apresenta distúrbio articulatório

caracterizado por uma disfunção da fala devido à falta de dente. Este aspecto dificultou ao

pesquisador a compreensão da fala dos entrevistados, sobretudo na realização da etapa de

transcrição das fitas.

Os funcionários dos abrigos, em função da sua extensa rotina de trabalho, mantêm-se

ocupados por todo o tempo com os seus afazeres até se encerrar o seu turno de trabalho.

Notou-se que há um número significativo de idosos residentes nos abrigos em questão

portadores de doenças degenerativas, bem como de alguns que possuem algum tipo de

deficiência ou doença mental. Além disso, há também um número considerável de idosos que

apresentam problemas físicos decorrentes de doenças.

4.7 Análise de conteúdo

Utilizou-se, sobretudo no tratamento dos conteúdos das entrevistas, a análise temática

ou categorial, na perspectiva da análise de conteúdo de Bardin (1977).

A análise de conteúdo pode ser considerada como um conjunto de instrumentos

metodológicos utilizados na decodificação de comunicações em ciências sociais, que serve

para diversas situações de investigação: estudo das motivações; atitudes; valores; crenças ou

tendências. Sendo assim, “desde que se começou a lidar com comunicações, que se pretende

compreender para além dos seus significados imediatos, parece útil o recurso da análise de

conteúdo” (BARDIN, 1977, p. 29). Esta pode ser melhor definida como:

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[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos à produção/recepção de variáveis inferidas destas mensagens (BARDIN, 1977, p. 42).

A análise de conteúdo abrange, portanto, as iniciativas de explicitação, sistematização

e expressão do conteúdo das mensagens. A sua finalidade é efetuar deduções lógicas e

justificadas a respeito da origem de tais mensagens, atentando-se, sobretudo, para quem as

emitiu e ao seu contexto de produção. O interesse, assim sendo, não é na mera descrição dos

objetos, mas no que está neles implícito e pode ser evidenciado por meio da investigação:

[...] Do ponto de vista operacional, a análise de conteúdo parte de uma literatura de primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado: aquele que ultrapassa os significados manifestos. Para isso, a análise de conteúdo em termos gerais relaciona estruturas semânticas (significantes) com estruturas sociológicas (significados) dos enunciados. Articula a superfície dos textos descrita e analisada com os fatores que determinam suas características: variáveis psicossociais, contexto cultural, contexto e processo de produção de mensagens (MINAYO, 1992, p. 203).

A análise temática ou categorial foi, portanto, a técnica utilizada no tratamento dos

dados qualitativos desta pesquisa, visto que possibilite, mediante o uso da inferência e da

atividade interpretativa, atingir os significados latentes destes materiais, possibilitando assim

apreender o processo de elaboração e significação das representações sociais sobre

instituições asilares por idosos abrigados.

A categorização, de acordo com Bardin (1977), consiste em classificar elementos

constitutivos de um conjunto, por diferenciação e por reagrupamento segundo o gênero ou

analogia, com critérios previamente definidos: as categorias são rubricas ou classes que

reúnem um grupo de elementos sob um título genérico, podendo mencionar as unidades de

registro no caso da análise de conteúdo, dado que tal agrupamento seja efetuado em razão das

características comuns destes elementos.

Nesse sentido, Minayo (1992, p. 209) afirma que a realização de uma análise temática

consiste em:

[...] descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado. Ou seja, tradicionalmente, a análise temática se encaminha para a contagem de freqüência das unidades de significação como definitórias do caráter do discurso. Ou, ao contrário, qualitativamente a presença de determinados temas denota os valores de referência e os modelos de comportamento presentes no discurso.

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Para que a análise de um conteúdo, no entanto, seja válida, um conjunto de categorias

da comunicação deve possuir determinadas características. São elas: exclusão mútua;

homogeneidade; pertinência; objetividade e fidelidade; e produtividade.

Na exclusão mútua, cada elemento não pode ser classificado em duas ou mais

categorias. O princípio da exclusão mútua depende da homogeneidade das categorias, isto é,

um mesmo conjunto categorial funciona com apenas um registro e com uma dimensão de

análise. Considera-se, assim, que uma categoria é pertinente se ela estiver adaptada ao

material de análise e se pertencer a um quadro teórico definido. A objetividade e a fidelidade

asseguram, por meio de codificadores diferentes, resultados iguais. Desse modo, partes

diferentes do mesmo material devem ser codificadas da mesma maneira, mesmo quando

submetidas a várias análises. Um conjunto de categorias é considerado produtivo se ele for

capaz de fornecer resultados significativos em índices de inferências, em novas hipóteses e

em dados exatos (BARDIN, 1977).

Cabe salientar que o processo operacional de sistematização do conteúdo das

mensagens, por meio da análise temática ou categorial, ocorre por etapas sucessivas. São elas:

a pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos resultados obtidos e

interpretação (BARDIN, 1977; MINAYO, 1992).

Assim sendo, a pré-análise é a primeira etapa do processo de análise das

comunicações. Ela é a fase da organização e sistematização das idéias que consiste na escolha

dos documentos que serão analisados; na reformulação das hipóteses e objetivos inicias da

pesquisa, tendo como base o material coletado; na elaboração de indicadores que irão

fundamentar a interpretação final.

A pré-análise é subdividida, de acordo com Minayo (1992), em três etapas. Estas são:

leitura flutuante; constituição do corpus; formulação de hipóteses e objetivos.

Deve-se ter, na leitura flutuante, contato aprofundado com o material discursivo,

atentando-se para as impressões e orientações do seu conteúdo, o que possibilita a

organização dos temas no conjunto das comunicações; a constituição do corpus refere-se à

organização do material que deve ocorrer de modo que responda aos critérios de validade,

como a exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência22; a formulação de

hipóteses e objetivos diz respeito à necessidade de estabelecer hipóteses iniciais provisórias e 22 De acordo com Minayo (1992, p. 209), a exaustividade “contempla todos os aspectos levantados no roteiro”; a representatividade contém “a representação do universo pretendido”; a homogeneidade deve obedecer “a critérios precisos de escolha em torno dos temas, técnicas e interlocutores”; e na pertinência “os documentos analisados devem ser adequados ao objetivo do trabalho”.

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flexíveis, que podem ser verificadas nos procedimentos de análise a fim de serem ou não

confirmadas. Determina-se nesta fase, conforme aponta Minayo (1992, p. 210):

[...] a unidade de registro (palavra-chave ou frase), a unidade de contexto (a delimitação do contexto de compreensão da unidade de registro), os recortes, a forma de categorização, a modalidade de codificação e os conceitos teóricos mais gerais que orientarão a análise.

Pode-se mencionar a exploração do material como a segunda etapa de sistematização

do conteúdo das comunicações. Nesta etapa, os dados brutos do material são transformados e

agregados em unidades a fim de se atingir o núcleo de compreensão e sentido do texto. Este

procedimento envolve, portanto, o recorte do material, que permite a escolha das unidades de

significação, e a classificação e agregação dos dados em categorias (BARDIN, 1977;

MINAYO, 1992).

A terceira etapa de organização dos dados consiste no tratamento dos resultados

obtidos e interpretação. Os dados brutos, nesta etapa, devem ser tratados de modo que se

obtenham resultados significativos e válidos. O pesquisador, nesse sentido, pode realizar

inferências e interpretações de acordo com os objetivos propostos ou, a partir da leitura do

material, possibilitar o aparecimento de novas dimensões teóricas, podendo servir a outras

análises.

Para realizar a análise dos dados desta pesquisa, considerou-se, portanto, o conteúdo

total de dezesseis entrevistas com o intuito de compreender os relatos dos idosos. O processo

de análise destes dados consistiu, a princípio, na transcrição integral das entrevistas23 e na

realização de estudo minucioso dos seus conteúdos, buscando-se atentar para as impressões e

indagações que pudessem daí emergir.

Os conteúdos principais da pesquisa foram, portanto, discriminados e, posteriormente,

realizou-se uma síntese24 de todo o discurso, visando à compreensão das relações entre

instituição; meio social e cultural; e os idosos. Assim sendo, organizaram-se as marcas

discursivas em unidades de significado que foram agrupadas em conjuntos temáticos. Este

trabalho de codificação, isto é, de desmembramento do texto em agrupamentos semelhantes,

resultou num conjunto de categorias e subcategorias associadas ao objetivo da pesquisa.

A fase de interpretação baseou-se em todos os materiais de informação obtidos no

processo de coleta dos dados. Desse modo, as inferências e interpretações dos conteúdos

manifestos e latentes da comunicação embasaram-se em todos os materiais coletados, ou seja,

23 Ver, no Apêndice C, cinco entrevistas transcritas na íntegra. 24 Ver, no Apêndice D, a síntese de todas as entrevistas.

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quer por meio das observações realizadas nos abrigos; quer das anotações em diário de

campo; quer pelos conteúdos das entrevistas.

Atentou-se, sobretudo, para os conteúdos afetivos; para o processo de construção do

discurso; para as contradições e variações. Isto possibilitou mapear a relação destes com o

objetivo da pesquisa.

As inferências e interpretações dos conteúdos das entrevistas e dos dados informais

obtidos no processo de coleta dos dados possibilitaram ao pesquisador estabelecer relações:

entre os idosos e as instituições; entre eles mesmos; entre estes e os funcionários dos abrigos.

Por fim, estabelecer a percepção dos mesmos a respeito da sua atual condição de vida,

considerando sempre o meio social e institucional na produção destas representações.

A apresentação dos resultados e a posterior discussão dos dados obtidos nesta pesquisa

foram, portanto, realizadas a partir de definições, nomeações e estudo das categorias de

natureza temática, baseadas na literatura, o que possibilitou relacionar os achados deste estudo

com as propostas existentes na literatura sobre o tema em questão.

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5 RESULTADOS

As entrevistas, depois de transcritas, foram decompostas em unidades de significado e

posteriormente organizadas em categorias. Estas retratam as representações dos idosos

institucionalizados acerca de sua vida anterior ao asilamento, salientando-se suas relações

familiares e afetivas. Revelam, além disso, a condição atual deles, sobretudo no que concerne

à vivência no abrigo, e também as expectativas que tenham do futuro. Procurou-se, nesse

sentido, categorizar tais representações em relação à questão central deste trabalho, ou seja,

como os idosos avaliam a instituição e os processos de inclusão e exclusão sociais.

Elencaram-se, tendo como base a análise de dezesseis entrevistas, dois tópicos: um

referente ao período anterior à institucionalização; o outro, à sua vida atual no abrigo. O

primeiro, portanto, centra-se na origem dos entrevistados; o segundo, condição atual deles,

focando-a a partir do ingresso na instituição. Definiram-se, em função dos temas recorrentes

nos discursos dos entrevistados, oito categorias e dezesseis subcategorias que se encontram

abaixo especificadas.

a) Origem

Categoria 1 Estrutura familiar

Categoria 2 Processos de inclusão ou

de exclusão social

Categoria 3 Vulnerabilidade

Subcategoria 3.1

Doença como limitação da

vida

Subcategoria 3.2

Solidão

Subcategoria 1.1

Composição familiar

Subcategoria 1.2

Dinâmica familiar

Subcategoria 1.3

Figuras de identificação

Subcategoria 2.1

Formação escolar

Subcategoria 2.2

Trabalho

Subcategoria 2.3

Causas da internação

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a) Origem

O tópico aqui denominado origem está relacionado à classe social dos entrevistados e

à proveniência econômica dos mesmos, além de referir-se à dinâmica de organização e

funcionamento de suas famílias. Refere-se, além disso, às condições de vida em relação às

situações sócio-econômicas de suas famílias, assim como o modo pelo qual os agrupamentos

nucleares constituíram-se e estruturaram-se. Também se eles instituíram suas próprias

famílias nucleares (cônjuge e filhos).

Categoria 01: Estrutura Familiar

A categoria aqui denominada estrutura familiar refere-se ao modo de disposição e

organização dos membros das famílias, seja no tocante ao número de indivíduos que as

b) Institucionalização

Categoria 4 Cotidiano

Categoria 5 Percepção do

Abrigo

Categoria 6 Sentimentos e

perdas

Categoria 7 Espiritualidade e

crença

Categoria 8 Expectativas

Subcategoria 4.1

Convivência no abrigo

Subcategoria 4.2

Reativação

Subcategoria 4.3

Visitas e socialização

externa

Subcategoria 6.1

Auto-percepção

Subcategoria 8.1

Expectativa em relação à

família

Subcategoria 8.2

Expectativa de vida

Subcategoria. 8.3

Expectativa de autonomia

e independênci

Subcategoria 6.2

Distanciamento familiar

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compõem, seja às respectivas funções e papéis específicos por eles ocupados no meio

familiar.

Nesta categoria foram delimitadas três subcategorias que se referem, respectivamente,

à composição familiar dos entrevistados; à dinâmica de funcionamento das suas famílias;

às figuras com as quais eles, no decorrer da vida, identificaram-se.

Subcategoria 1.1: Composição familiar

Tal subcategoria refere-se aos familiares e parentes dos entrevistados, ou seja, àqueles

que fazem parte da composição familiar.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Éramos cinco irmãos. [...] Meu irmão mais novo, o único que ainda é vivo, está em São Paulo. [...] Eu tenho muitos primos, tenho três sobrinhas [...].

2. Miro [...] De irmão homem só resta eu. Mulher também só tem duas. [...] Tenho muito parente aqui. Tenho sobrinha, tenho sobrinho. [...] Eu adquiri uma filha do primeiro casamento. [...] E eu tenho neto [...].

3. Celeste [...] Eu tenho cinco irmãos e cinco irmãs comigo. [...] Hoje, de irmã tem mais três e eu. [...] E sobrinho tem muito [...].

4. Aracê [...] Esta família era, por tudo, sete irmãs e treze irmãos. [...] Hoje só existe três [...] Tem os meus sobrinhos. [...].

5. Lana [...] Eu tenho só um filho e eu tenho três neto. E eu tenho mais duas irmãs. Meu, só tem um irmão. [...] Parente eu tenho e os meus sobrinhos também [...]”.

6. Ava [...] Sou mãe de três filhos. Um morreu, o do meio. [...] O meu filho [mais novo] tem uma filha. [...] Tenho irmãos. Nove irmãos. Mas deles, agora tem só três. [...] Eu tenho primo e sobrinho espalhado aqui [...].

7. Tiana [...] Nós [ela e irmãos] era em doze. [...] Hoje não tenho irmão. Se existir, é um e no estado de São Paulo. [...] Sobrinho eu tenho bastante aí [...].

8. Zica [...] O filho que eu tenho é adotivo. [...] Ele tem um casal de filho. [...] Estou tendo quatro irmãos só. Já morreu quase tudo de nove [...] Eu tenho sobrinho aqui, né? [...].

9. Doca [...] Minha mãe pariu dez filho. Mas tem só cinco. [...] Mas eu tenho um mundo véio de sobrinho! [...].

10. Ina [...] Tenho dois irmão e uma irmã também. [...] Era nove no total. [...] Os neto tem três, né? [...] Tenho sobrinhos [...].

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11. Ceci [...] Tenho três irmão, mas mora na Bahia. [...] Aqui eu tenho primo [...].

12. Iole [...] Não tive filhos. [...] Tenho um irmão que já morreu, né? Agora tem é irmã. Duas irmã. [...] Eu tenho parente demais! Primo, sobrinho, tudo eu tenho [...].

13. Lude [...] Eu criei uma menina desde pequenininha, né? [...] Ela tem filho casado também. [...] Eu tinha nove irmão comigo, né? Fartou eu. [...] Tenho uns sobrinho aí [...].

14. Irajá [...] Tive dois irmão, mas já morreram os dois. [...] Eu tenho sobrinha, mas mora em outra cidade [...].

15. Peri [...] Nós somos um monte de irmão porque meu pai era casado duas vezes. [...] Do segundo casamento do meu pai é eu, meu irmão, mais dois irmão e uma irmã. Essa irmã já faleceu. [...] Eu tenho sobrinho. Tenho primo [...].

16. Aog [...] As minhas duas irmã é que eu ainda tenho até hoje. [...] Da parte do meu pai eu tenho tio [...].

Todos os entrevistados enfatizaram a importância dos familiares e parentes, sejam

eles de grau próximo de parentesco ou não. Nota-se que todos eles fazem parte de famílias

numerosas. Dois entrevistados (Irajá e Aog), contudo, integram famílias pouco numerosas,

constituídas por três filhos. Treze entrevistados mencionaram a existência de irmãos. Destes,

apenas Ceci e Aog não perderam nenhum dos irmãos, permanecendo assim todos vivos. As

entrevistadas Lude e Irajá não mais têm irmãos vivos. A entrevistada Tiana tinha onze

irmãos. Dentre estes, todos os de quem ela tinha notícia faleceram. Há, entretanto, uma irmã

de paradeiro desconhecido. O entrevistado Peri tinha oito irmãos, sendo quatro do primeiro

casamento do pai; os demais são bilaterais. Destes últimos, uma irmã faleceu.

Em relação ao número absoluto de irmãos dos entrevistados, de um total de 64 irmãos

do sexo masculino, 53 faleceram; de 56 irmãs, 34 morreram25. Observa-se, no que se refere à

ordem de nascimento dos entrevistados em relação aos seus irmãos, que os entrevistados

Miro, Peri e Aog são os filhos mais novos. As participantes Suyá, Aracê e Iole são o segundo

filho mais novo; Ava e Ceci são as filhas mais velhas. Os demais encontram-se entre estas

escalas.

Dentre os entrevistados, sete deles (Miro, Lana, Ava, Ceci, Tiana, Ina e Zica) tiveram

filhos, embora tenha havido, em alguns casos, perdas dos mesmos26. Miro, Lana e Ava têm

filhos e netos legítimos. Zica e Lude têm, cada uma delas, um filho e netos adotivos.

25 Cabe registrar que aqui não se inclui entre as falecidas a irmã da entrevistada Tiana, cujo paradeiro esta afirma desconhecer. 26 A perda dos filhos, embora seja um aspecto importante na caracterização da dinâmica das famílias, será considerada com mais vagar na categoria na subcategoria nomeada solidão.

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Quinze entrevistados indicaram a existência de parentes de grau de parentesco

próximo, incluindo primos e sobrinhos. Aog, como exceção, tem somente tios paternos.

Subcategoria 1.2: Dinâmica familiar

Esta subcategoria refere-se ao funcionamento e à dinâmica familiar, ou seja, ao modo

como os membros das famílias se relacionam e interagem entre si.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] O meu tio ficou sabendo que uma mulher queria uma negrinha do serviço, né?, e a minha mãe tinha morrido. O pai, já não tinha pai, né?, porque ele vivia sumido e não queria saber da família. Então me mandaram pra lá. Eu tinha uns dez anos [...] E os meus irmãos foram cada um pra uma casa, trabalhando também. [...] Eu sou solteira [...].

2. Miro [...] Os meus pai foi muito bom para nós tudo. [...] Mamãe tinha uma coisa comigo porque eu era caçula, sabe? [...] Ela pelejava comigo! Ela também fazia as coisa pra me agradar [...].

3. Celeste [...] Nós tinha horta, tinha verdura, e eu e meus irmão trabalhava junto com a minha mãe e com o meu pai. [...] A mamãe morreu, né?, e... descontrolou tudo. [...] Eu queria ter casado porque eu sou solteira, né? [...] E era pra mim casar. Mas depois nós [ela e o nubente] resorveu não casar, né? [...] Hoje eu estou pensando na minha irmã se tem algum doente lá. [...] Eu não vou telefonar porque eu não gosto de mexer nas coisa que não é minha [...].

4. Aracê [...] Mamãe e papai tinha o maior cuidado comigo. Ela falou para as minhas irmãs terem cuidado para comigo. [...] Sofria desmaio demais! [...] Eu morava com uma irmã. Ela me tratava muito bem [...].

5. Lana [...] Eu e meus irmão morava com a minha mãe e com o meu pai, sempre trabalhando. Mas depois que eles morreram, que nós era ainda meio pequeno, cada um tomou um rumo [...].

6. Ava [...] Mamãe fazia porvilho; nós torrava farinha. Nós fazia era isso, tudo junto, os meus irmão [...].

7. Tiana [...] Lá na roça, minha filha, eu fazia de tudo. [...] Nós trabalhava junto com os meus pai, e eles nunca deixou faltar nada pra nós. Trabalhava muito, mas... eu já fui nascida e criada ali... A gente não sentia, né? [...] E vivia bem porque eu tinha eles [...] Nem não sei se a minha irmã existe porque eu não tenho notícia dela, e nem ela tem notícia minha [...].

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8. Zica [...] Mamãe largou do meu pai e ele viveu com outra mulher. [...] Eu fiquei com o meu avô e minha mãe, e, não sei porquê, os meus irmão foram criados pra lá com o meu pai e a mulher dele. A gente via um ao outro muito pouco [...].

9. Doca [...] Na fazenda, eu e meus irmão vivia trabalhando com nossos pais. Aqui [cidade] nós morava em torno da minha mãe. [...] Eu e minhas três irmãs vinha buscar serragem de madeira pra ferver roupa, né? [...] Tenho uma irmã muito boa, mas a outra é mardita [...].

10. Ina [...] Na roça eu e meus irmãos morava com pai e com mãe. Vivemos com eles na roça até cada um tomar um jeito na vida e se virar [...].

11. Ceci [...] O meu pai morreu e deixou os filho pequeno. [...] Aí saí pro mundo. Eu e meus irmão saímo muito com a minha mãe pra ela trabalhar. [...] A minha mãe me batia demais porque eu era custosa. [...] Ela era muito ruim pra mim [...] Quando nós morava na mesma cidade, eles [irmãos] não ligava pra mim [...].

12. Iole [...] O meu pai já morreu. A minha mãe já morreu há muitos ano. Nós viveu junto até os meus irmão crescer e cada um arrumar a vida [...].

13. Lude [...] Eu morava com a minha irmã, mas depois que ela morreu eu fiquei igual bolinha de ping-pong na casa da minha família. Joga pra aqui. Joga pra ali, né? [...] Eu morava com a menina que eu criei. [...] Agora, ela decidiu ir pra praia, que ela pegou um dinheiro meu, gastou. [...] Nunca casei não! Nunca gostei desse negócio de casamento não! [...].

14. Irajá [...] Fui, uai, até os dez, onze ano, fiquei com os meus pai. Depois meu pai morreu, minha mãe ficou sozinha. [...] Eu trabalhava pra ganhar dinheiro pra ajudar a minha mãe a pagar aluguel de casa, comprar o que comer... [...] Eu e meus imão combinava muito porque eles era muito bão. [...] Eu nunca casei e nunca quis casar. Meu pai não deixava casar com gente pobre não [...].

15. Peri [...] Meus irmãos foram saindo de casa, aí só ficou eu e mais um. E depois foi esparramando tudo. [...] Continuei morando com o meu pai, com a minha mãe até... até o fim deles. E ajudando eles no trabalho. [...] Eu sou solteiro [...].

16. Aog [...] Nós [ele e irmãs] ficamo sempre junto com os meus pai lá na roça sendo criado por eles. [...] Eu, com a irmã minha que mora fora, toda a vida a gente teve melhor convivência. Agora, essa que mora aqui, nós também combinou mais ou menos. [...] Eu sou sorteiro. Não casei não [...].

Nota-se que a maioria dos entrevistados, ao menos em parte da infância, foi criada

pelos pais. Assim, quinze entrevistados identificam a família nuclear como uma instituição

que lhes garantiu proteção nos primeiros anos de vida. A única exceção é Suyá, já que houve

distanciamento de sua base familiar, devido à ausência do pai. As entrevistadas Lana, Ceci e

Zica assinalaram uma ruptura da família nuclear durante a infância, em virtude da separação

dos pais ou morte de um ou de ambos os genitores. Lude, por sua vez, não deixou claro o tipo

de relação estabelecida entre ela e seus pais.

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A mãe é representada, conforme aponta Suyá, como sustentáculo da família, sendo

assim a figura responsável por mantê-la integrada. Mesmo com o distanciamento do pai, mas

sob a guarda da mãe, os filhos se mantiveram unidos, acompanhando-a no trabalho. A perda

da mãe, contudo, fez com que houvesse a separação dos filhos.

Nove dos entrevistados provêm do meio rural. O trabalho exercido neste meio, para

sete destes, apareceu como mediador da união familiar, pois os membros da família

trabalhavam em colaboração conjunta a favor de sua própria subsistência. Os demais

entrevistados são provenientes do meio urbano. Embora também refiram o trabalho na

infância, não destacaram em suas falas que este seja um elemento unificador da família nem

que seja a área urbana um espaço delimitado para a convivência familiar. Suyá e Ceci que

acompanhavam a mãe ao trabalho, não apresentaram marcas de que elas próprias

trabalhassem nem de que tal ocasião fosse agregadora da família.

Onze entrevistados fizeram referência ao relacionamento entre eles e os irmãos: seis

entrevistados (Aracê, Lana, Doca, Lude, Irajá e Aog) mantinham bom relacionamento com os

irmãos, sendo por eles respeitados. A entrevistada Doca, contudo, apontou conflito com uma

de suas irmãs; os entrevistados Ceci, Tiana e Peri referiram-se ao distanciamento entre eles; a

entrevistada Celeste denota dificuldade de relacionamento com a irmã quando afirma com

esta se preocupar sem, no entanto, se sentir à vontade para procurá-la.

A migração do meio rural para o urbano decorreu, para Celeste, Lana e Tiana, da

perda de um ou dos dois genitores. Ina afirmou que a mudança para a cidade ocorreu em

virtude de seu casamento, com treze anos de idade. Os demais entrevistados justificaram a

mudança para obtenção de emprego, circunstâncias pessoais e motivos de saúde. Os

entrevistados Ava, Lude e Aog são os únicos que se mudaram para a cidade depois de adultos.

Todos os entrevistados, pelo que se nota a partir de suas origens, são provenientes de

famílias simples e de baixo nível sócio-econômico.

Quanto à constituição familiar, verificou-se que dez entrevistados se casaram27. Seis

entrevistados, por sua vez, permaneceram solteiros.

Em contraposição à representação idealizada da família nuclear, existem indícios nas

marcas discursivas de que a constituição de suas próprias famílias não configuraram um

período satisfatório. Três entrevistadas (Aracê, Ina e Iole) assinalam o matrimônio como um

27 As marcas discursivas de separação ou viuvez, embora refiram algo importante sobre a dinâmica familiar, serão tratadas, contudo, na categoria vulnerabilidade em sua subcategoria solidão, visto aqui se interprete que a perda daí decorrente deva ser posta em maior relevo.

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período conturbado. Outras três (Ava, Doca e Zica) ressaltam aspectos positivos do

casamento, acentuando a estabilidade financeira que dele auriram. Cabe ressaltar que as

entrevistadas Lana, Ceci e Tiana apenas referiram o fato de terem se casado, explicitando

poucos detalhes do matrimônio. Miro, por sua vez, foi o único homem a contrair matrimônio

do grupo.

Outro aspecto verificado na constituição das suas próprias famílias, em que houve

casamentos e nascimentos de filhos, é o fato de, mesmo tendo se dedicado a trabalhos

assalariados nas cidades em que viveram, não se registrou melhora nos seus padrões de vida.

A vida deles, assim como na família de origem, foi marcada por trabalhos que pudessem

garantir a subsistência pessoal ou da família, embora Miro e Ceci vislumbrassem melhora no

padrão de vida, o que se pôde verificar na subcategoria atividades profissionais.

Subcategoria 1.3: Figuras de identificação

Esta subcategoria apresenta-se bastante associada à subcategoria dinâmica familiar,

visto que aqui se explorem as figuras de identificação determinantes da constituição

identitária dos participantes.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu e meus irmãos fomos criados praticamente só pela minha mãe. [...] Ela trabalhava pra tratar dos filhos, né?, e eu sempre ia pro trabalho com ela. Todo lado que ela ia eu ia com ela, né? [...].

2. Miro [...] Papai quando morreu eu não tinha quinze ano. Mamãe... mamãe morreu nova, com mais de sessenta anos, mas eu e meus irmãos ficamos tudo criado na barra da saia dela [...].

3. Celeste [...] Eu gostava da mamãe porque nós ficava fazendo companhia uma pra outra. [...] Todo dia ela falava pra mim que eu ia sofrer o dia que ela morresse porque a gente era muito grudada uma na outra. E eu sinto muita falta dela [...].

4. Aracê [...] Meus pais sempre zelaram de mim. [...] Morei mais tempo com uma irmã, que é a irmã acima de mim, e ela quem sempre cuidou de mim depois que mamãe e papai faleceram [...].

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5. Lana [...] Eu fiquei sem meus pai desde nova. [...] O meu irmão desde pequeninho que ele cuida das irmã. [...] E aí ele faz o que pode e o que não pode pra gente [...].

6. Ava [...] Papai foi muito bão pra nós e a mamãe também. Eles sempre tratavam os filho muito bem e nós respeitava muito eles também. [...] Graças a Deus ele [marido] era bom pra mim. [...] Eu vivo com a INPS que ele deixou. E deixou a casa pra mim. Quer dizer que ele está tratando de mim até hoje [...].

7. Tiana [...] Tinha morrido mãe, morreu pai, e ficou só os filhos. Então eu tinha uma irmã casada aqui. Ela era a mais velha. Então ela trouxe nós pra cá pra nós morar com ela, pra nós viver com ela [...].

8. Zica [...] A mamãe criou eu sozinha e os meus irmão ficou lá com o meu pai. [...] O meu marido era muito bom pra mim. [...] Trabalhei muito, ajudei ele [...].

9. Doca [...] Eu fiquei junto da minha mãe até casar. [...] Apareceu um véio lá, já de idade também, gostou de mim e interessou pelo casamento. [...] Dos meus pai eu era escrava. No tempo do meu véio só tinha aquela vida limpa, né? Não me faltava nada na companhia dele [...].

10. Ina [...] Eu fui criada com pai e com mãe. Eu e meus irmão viveu ao redor deles até crescer [...].

11. Ceci [...] Depois que o meu pai morreu, a minha mãe cuidou dos filho sozinha. Onde ia, ela levava nós pra todo lado [...] Meu marido e eu tivemo sempre junto buscando serviço melhor. Ele não me deixava na falta das coisas [...].

12. Iole Não indica

13. Lude [...] O meu cunhado zelava de mim, né?, porque eu trabalhava pra ele, né?, em hotel. Ele nunca deixou me fartá nada não! [...].

14. Irajá [...] Meu pai morreu e eu e meus irmão ficamo junto com a minha mãe ajudando ela no serviço. Era sempre nós com ela [...].

15. Peri [...] Fui criado com pai e mãe. [...] Eu tinha aquela amizade com a minha mãe! [...] Nós dois era tudo unido um com o outro. [...] Fui companhia dela e eu olhava ela se fosse preciso [...].

16. Aog [...] Uai, a minha minha mãe e meu pai, que já faleceu há muitos ano, criou eu e as minhas irmã [...].

Quatorze entrevistados tiveram os pais como figuras centrais de identificação. Seis

entrevistados, em função do falecimento precoce do pai ou por meio do contato restrito com o

mesmo, apontaram a mãe como figura principal de identificação, visto que ela tenha sido

responsável pelo sustento e cuidados necessários dos filhos. Este aspecto é diferentemente

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verificado no caso de Aracê, que, com o falecimento da mãe, permaneceu sob os cuidados do

pai.

Estas figuras expressivas, com o falecimento dos genitores, foram assumidas por

algum membro da família, passando este assim a preencher a função de figura de

identificação tornada vaga. Observa-se que três entrevistadas (Aracê, Lana e Tiana) referiram-

se aos irmãos como as figuras com as quais se identificam, pois estes, com a ausência dos

pais, assumiram, em certo momento da vida dos entrevistados, o cuidado deles.

Pode-se apontar, além das figuras de identificação acima mencionadas, que as

entrevistadas Ava, Ceci, Doca e Zica indicaram seus maridos como figuras de grande

importância pessoal. Lude, por sua vez, apontou o cunhado, marido de uma de suas irmãs,

como figura provedora e propiciadora de cuidados.

Categoria 02: Processos de inclusão ou de exclusão social

A categoria processos de inclusão ou de exclusão social está associada à socialização

dos entrevistados e aos processos de inclusão e/ou exclusão social aos quais estão submetidos.

Dela emergem três subcategorias que se referem à formação escolar; às atividades

profissionais exercidas no decorrer de suas vidas; aos motivos que acarretaram a

institucionalização.

Subcategoria 2.1: Formação escolar

Esta subcategoria aponta o grau de escolaridade dos entrevistados. Pode-se verificar

que eles tiveram poucas oportunidades para um maior desenvolvimento nos estudos.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu estudei só os dois anos. Antigamente era o primeiro e o segundo ano, né? [...].

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2. Miro Não informado

3. Celeste [...] Eu estudei pouco. Eu não fiz série, não. Escrevo pouco. Eu era mocinha pequena e nós ia pra escola. Mas não... não... não aprendeu nada. A mulher não prestava pra ensinar [...].

4. Aracê [...] Eu tenho pouco estudo porque eu estudei até o terceiro ano primário. Eu saí da escola por conta dos desmaios que eu sofria demais! Epilepsia [...].

5. Lana [...] Eu falo que estudei até o terceiro grau. [...] De certo é por que foi lá pra roça, né? [...].

6. Ava [...] Estudei, mas foi bem pouco. Só até o terceiro ano [...].

7. Tiana [...] Mas eu e meus irmão só trabalhou porque naquele tempo não dava importância pro estudo [...].

8. Zica [...] Não cheguei nem a ir na escola. [...] Meu ir... meus irmão que morava com o meu pai foi pra escola, e eu não fui. Diz que mulher não precisava de aprender a ler [...].

9. Doca [...] Não pude estudar. Não tive oportunidade, né? Era só trabalhar [...].

10. Ina Não informado

11. Ceci Não informado

12. Iole [...] Estudei, uai! [...] Foi um... dois... três ano. Três ano porque foi lá na roça [...].

13. Lude [...] Não estudei, não! [...].

14. Irajá [...] Estudei só no primeiro ano. Não tinha tempo. Eu empregava [...].

15. Peri [...] Eu estudei até o quarto ano primário [...].

16. Aog [...] Eu tive uma escola, sabe?, quando eu era menino. [...] Mas... eu nem sei quanto tempo foi porque tem muitos ano atrás. [...] Só sei que foi pouco tempo, né? [...].

Seis entrevistados (Suyá, Aracê, Lana, Ava, Iole e Irajá) apresentam nível de formação

correspondente ao antigo primário, mas sem tê-lo concluído. Peri é o único que o concluiu.

Observou-se, além disso, que Celeste, embora alfabetizada, não concluiu nenhum ano escolar.

As entrevistadas Tiana, Doca, Zica e Lude são analfabetas, sem nunca ter freqüentado a

escola.

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Cabe ressaltar que três entrevistados (Miro, Ceci e Ina) não informaram o grau de

escolaridade por eles cursado, e Aog afirmou que não sabe informar sobre a série escolar

estudada.

A subcategoria formação escolar indica, sendo assim, um processo de exclusão

social, pois todos os entrevistados ressaltaram impedimentos e limitações sociais em

decorrência de pouco estudo.

Subcategoria 2.2: Atividades profissionais

A subcategoria atividades profissionais sintetiza o processo produtivo e o papel

estruturador que desempenha na própria organização familiar, bem como determina a inserção

das pessoas na sociedade.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu trabalhei muito. Desde criança, né?, eu já trabalhava na casa dos outros, na casa que eu fui criada. Eu era cozinheira de pensão com quatorze anos [...].

2. Miro [...] Trabalhei em muita coisa: em olaria, cerâmica. [...] Quando eu tinha uma base de quinze ano, eu trabalhei em uma companhia chamada CR. CER, Mato Grosso. [...] Depois trabalhei de... de guarda [...] Eu toquei comércio também, até antes de vir pra cá. [...] Eu estava alicerçado. Bem alicerçado mesmo! [...] E eu tenho um dinheiro no banco também, né? Pego o extrato. Está rico, não tá? [...].

3. Celeste [...] A minha infância foi de trabalhar na roça de capinar. Eu capinava, apanhava café, apanhava argodom. [...] Na cidade eu lavava roupa pra um, pra outro, e passava [...].

4. Aracê [...] Desde pequena sempre trabalhei dentro de casa. [...] Depois eu morei junto com as minhas irmãs. Continuei ajudando elas no serviço de casa [...].

5. Lana [...] Desde criancinha pequena que eu trabalho fora porque eu fiquei sem pai, sem mãe, né? [...] Trabalhava em roça apanhando algodão. [...] E eu trabalhava nas casa. [...] Cuido de criança. [...] Lavava. Passava [...].

6. Ava [...] Eu trabalhei na roça com a minha família. [...] Quando do tempo da minha mãe nós fiava. [...] Vixe!, era muita gente que eu trabalhei! Tanto na roça, como na cidade. [...] Eu lavava roupa [...].

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7. Tiana [...] A minha vida na roça era boa porque eu trabalhava. [...] Na cidade eu trabalhei em muitas casa. [...] Depois eu parei de trabalhar de doméstica e peguei lavação de roupa, passação [...].

8. Zica [...] Eu trabalhei quatorze ano de doméstica com uma mulher. Eu ajudei ela a criar os filho dela. [...] Eu aposentei e aí eu trabalhava só em casa [...].

9. Doca [...] No tempo da minha mãe, na fazenda, quando não era no pilão, pegava quarta de arroz, quarta de café dos vizinho lá pra limpar e moer o café no pilão. [...] Na cidade eu lavei muitas roupa pros outros [...].

10. Ina [...] Na roça nós morava quando criança e nós trabalhava muito, né? Fiava. [...] Depois que o marido largou de mim e que eu tive meu filho, fui cuidar, costurar [...].

11. Ceci [...] Uai, eu e meu marido mudava muito de cidade porque é o preço. Ganhar mais. [...] Eu era cozinheira [...].

12. Iole [...] Eu trabalhei na alfaiataria muitos ano. Duas alfaiataria [...].

13. Lude [...] Eu tinha minha profissão de zeladeira. [...] O meu cunhado fornecia as marmita lá na cadeia, né?, e eu que ajudava em tudo porque a minha... a minha irmã era doente [...].

14. Irajá [...] Eu era pajem de criança. [...] Eu tinha uns quinze, dezesseis ano, eu já trabalhava de limpar casa pros outro. Depois eu fui pro hospital ajudar a olhar os doente porque não tinha quem ajudasse a enfermeira [...].

15. Peri [...] Trabalhei muito tempo com o meu pai no depósito de bebida. Depois ele pôs um armazém. Trabalhei com ele lá no armazém. Depois ele pôs... ele comprou um bar. Eu trabalhei no bar com ele [...].

16. Aog [...] Já trabalhei muito desde que eu era criança. [...] Trabalhava na roça quando eu morava lá. [...] Era serviço braçal, né? [...] Nós [ele e família] morava em fazenda dos outro. Eu trabalhava pra eles e a minha família também.[...] Eu trabalhei numa construtora também uns tempo quando eu vim da roça pra cidade. Eu trabalhava como auxiliar de serviços gerais [...].

Sete dos nove entrevistados que provêm da zona rural referiram-se ao trabalho, na

infância, como o principal aspecto de suas vidas. Ele serviu como função integradora da

família, já que era exercido em colaboração conjunta no meio familiar e rural, e como garantia

de subsistência das próprias famílias. O trabalho, contudo, foi considerado bastante penoso e

árduo, o que não lhes permitiu vivenciar a vida infantil.

No entanto, com a migração para a cidade, assumiu-lhes outra dimensão: trabalhos

assalariados, geralmente no setor de serviços, marcando uma integração parcial com o

processo social.

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Todos os entrevistados, depois da infância, trabalharam. Aracê, contudo, sempre

trabalhou em serviços domésticos, seja na casa dos pais, seja no seu próprio lar ou na casa da

irmã com quem posterior morou. Peri, embora trabalhasse no comércio, permaneceu sempre

na esfera familiar. Os demais trabalharam para terceiros.

O trabalho, desse modo, emprestou-lhes sentido existencial. Os entrevistados, antes de

viveram no abrigo, mesmo os que já se encontravam aposentados, sempre optaram por

realizar alguma atividade. O trabalho é sempre representado como um fator de inclusão social

e sobrevivência.

Observa-se que os trabalhos exercidos pela maioria dos entrevistados do sexo

feminino estavam associados aos serviços domésticos em geral. Assim sendo, do total de

treze entrevistadas, oito trabalharam como empregada doméstica e cinco exerceram funções

extensivas ou socialmente relacionadas ao trabalho doméstico.

Os entrevistados do sexo masculino, por sua vez, ocuparam-se com funções que não

estivessem atreladas ao trabalho nos limites do espaço doméstico.

Subcategoria 2.3: Causas da internação

As limitações da autonomia impostas pela idade avançada ou pelas doenças, a

conseqüente dependência de um outro, e a impossibilidade do cuidado para consigo mesmos,

constituem as causas da internação.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu vim pra cá porque eu estava muito doente, né?, e eu tomava conta de uma irmã. Ela sofreu derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava dando conta mais de cuidar dela [...].

2. Miro [...] Me deu derrame e eu vim pra cá. [...] O sobrinho meu que trouxe eu, porque ele achava que aqui é mió pra tratar [...].

3. Celeste [...] Uai, pra onde que eu ia, né? Cinco irmão morreu. A outra era casada e marido você sabe como é que era, né? Não gosta da gente, né? [...] Como eu fiquei suzinha, aí o meu cunhado telefonou pro homem daqui. [...] Aí combinou e eu vim pra cá [...].

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4. Aracê [...] A minha irmã que me... que me colocou aqui por causa dos desmaio que eu sofria. Ela não queria me deixar sozinha [...].

5. Lana [...] Me deu derrame. [...] Quando eu chamava eles [filho e nora], eles vinha com a maior brutalidade, me sentando na parede, que eu vomitava até sangue! [...] “– Meu filho, eu não agüento essa vida não! Me leva pro asilo, pelo amor de Deus!” [...].

6. Ava [...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu adoeci.[...] Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu derramo. [...] Se eu estava sentada num lugar, ela [neta] ia lá e falava: “– Sai daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra hora eu levantava, ela vinha lá, me dava coice, me dava cotovelada. [...] Foi a minha sobrinha que arranjou aqui porque o meu filho pediu, né? [...].

7. Tiana [...] Eu fiquei doente e aí eu fui morar com uma sobrinha. Foi, ela precisava trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. [...] Então aí ela... ela foi e me trouxe pra cá [...].

8. Zica [...] Uai!, eu... eu morava com o meu filho, mas a minha sobrinha, porque eu adoeci, me levou pra casa dela, né? [...] Ela trabalhava fora e ela não podia me olhar, né? [...] Depois ela me trouxe pra cá [...].

9. Doca [...] Foi eu mesmo. Idéia minha de vir pra cá. [...] Não deu certo de ficar na casa da minha irmã, eu vortei pr`aqui [...].

10. Ina [...] Os meus neto falou que não era mais pra mim morar sozinha, não! Morar sozinha, né? Perigoso, né?, por causa da saúde. Eu fiquei na casa de uma sobrinha. Depois a minha sobrinha me mandou pra cá. [...].

11. Ceci [...] Eu era benzedeira, né?, e foi um paciente meu que veio aqui falar de mim. Ele disse que tinha uma dó de mim de ver eu ficar sozinha! [...] Aí ele pegou e arrumou aqui sem eu saber [...].

12. Iole [...] Minhas sobrinhas me trouxeram pra cá. É porque eu... a minha vida estava era muito sozinha, sabe? [...].

13. Lude [...] Infelizmente a menina que eu criei me deixou aqui. Eu é que pedi pra vir, né?, porque estava pra casa de um parente, pra casa de outro, parecendo cachorro sem dono [...].

14. Irajá [...] Eu estava andando na cadeira de roda. E eu não podia fazer uma comida pra mim, eu não podia andar. [...] Precisava ficar pedindo os outro. [...] A diretora daqui foi lá me vê na minha casa e me buscou. [...].

15. Peri [...] A minha mãe estava meia doente; então, meu irmão trouxe ela pra cá. Aí eles daqui viram que eu não tinha onde ficar e deixaram eu ficar aqui com ela [...].

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16. Aog [...] Cheguei aqui [abrigo], conversei com a senhora aí, e... aí deu certo, né? E é o fato de eu estar morando aqui esse tempo tudo. [...] Eu moro aqui pelo fato de... Primeira coisa é lugar de morar que eu não tenho. [...] E segundo é... [...] É porque eu não tenho saúde, né? [...].

A limitação física, que acarreta dependência dos cuidados do outro, e a falta de

pessoas a quem possam recorrer, configuraram um quadro em que o abrigo é representado

como única instância de acolhimento.

Desse modo, doze entrevistados atribuíram às restrições físicas impostas pelas

patologias os motivos causadores da internação no abrigo. Além disso, para o entrevistado

Aog, esta ocorreu por ele não ter local para morar. O sentido da instituição, neste caso, é de

um lar substituto.

Outros fatores mencionados referiram-se ao trabalho dos familiares, o que os

impossibilita de cuidar satisfatoriamente do idoso. Se a justificativa, no plano explícito, é a

ocupação e a necessidade de trabalho dos mesmos, no plano implícito, um idoso doente e

dependente passa a representar um incômodo, pois depende das condições financeiras e

psicológicas da família. A sociedade, no entanto, não quer se reconhecer no idoso pobre,

doente e abandonado, como fruto de seus conflitos e contradições, excluindo-o do convívio ao

encaminhá-lo para as instituições totais.

Suyá cuidava da irmã, que dela dependia completamente. Como ela própria foi

também acometida por doença e não mais tinha condições de continuar a zelar da irmã,

decidiu, assim, que as duas fossem para o abrigo.

As entrevistadas Lana e Ava, mesmo doentes, eram vítimas de maus-tratos familiares.

O abrigo, nesse sentido, constitui-se como um refúgio da violência contra o idoso.

Doca apontou o conflito familiar como motivo de ela ter sido internada no abrigo. Este

caso aponta para o processo de rejeição e marginalização no próprio grupo familiar.

A decisão da ida para o abrigo, para quatro entrevistados (Suyá, Lana, Doca e Aog),

decorreu da resolução própria. No entanto, para onze entrevistados, esta decisão foi tomada

por familiares ou terceiros, isto é, vizinhos, denúncias anônimas ou pessoas conhecidas.

Observa-se, assim sendo, que a maioria dos entrevistados foi internada contra a própria

vontade, o que influencia na adaptação ao abrigo e no desejo de estabelecer novas relações.

Lude apontou motivos contraditórios que acarretaram a sua ida para o abrigo.

Atribuiu, por um lado, ao abandono da filha, que a deixou naquele local, mas por outro,

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apontou o fato de sentir-se desrespeitada pelos parentes por permanecer perambulando pelas

casas dos mesmos, sem lugar fixo de moradia.

Categoria 03: Vulnerabilidade

Percebe-se que a vulnerabilidade às doenças e à solidão é determinada por aspectos

que não dependem diretamente das ações dos entrevistados, embora estes, cada qual a seu

modo, possam lidar de maneiras diferentes com estas questões. Esta categoria sistematiza,

portanto, os diferentes modos e meios de enfrentar o envelhecimento.

Dela derivam duas subcategorias: a doença como limitação da vida e a solidão, que

são determinantes do sofrimento psíquico do idoso e do sentimento de impotência e

abandono.

Subcategoria 3.1: Doença como limitação da vida

A doença como limitação da vida expressa a falta de liberdade na realização e

escolhas e tomada de decisões. Desse modo, as limitações físicas são apontadas como perda

de autonomia e independência. Esta subcategoria, portanto, está relacionada à categoria

anterior, ou seja, aos motivos que acarretaram a ida deles para o abrigo.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu tive que ir para São Paulo fazer um tratamento e lá fez os exames e descobriu que eu tinha Chagas. [...] Aqui [abrigo] eu saía, eu pegava ônibus, eu ia onde eu queria. Mas agora eu não posso fazer isso mais devido ao meu estado de saúde, né? [...] Porque eu tenho aquele problema de artrose, né? Eu tenho problema de... de... de coluna muito sério [...].

2. Miro [...] Eu subia de bicicleta, descia; descia, subia; descia o dia inteiro!, Até que deu o derrame. E estou aí até hoje. [...] Ô trem encravado que é o derrame, né?, porque não tem... não tenho jeito mais de andar [...].

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3. Celeste [...] Eu tenho problema nas perna. Tanto que eu tenho medo de sair sozinha, né?, e cair na rua, né? [...] Tem a mulher que me dá banho aqui porque eu não posso, né? [...].

4. Aracê [...] Eu, desde a idade de cinco anos provocando desmaio, nunca podia ficar sozinha dentro de casa porque o incômodo diariamente ele sempre provocava. [...] Por causa do desmaio eu não posso fazer muito serviço e os remédios deixa a gente com a cabeça lerda [...].

5. Lana [...] Trabalhei até... sessenta e... e... seis anos, posso dizer, porque aí me deu derrame, fiquei desafirmada, né? [...] Nem pra varrer não estou dando conta, né?, porque caindo à toa, né? [...].

6. Ava [...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu adoeci. Eu sofro do coração e sofro de pressão alta também [...].

7. Tiana [...] Aí depois que eu fiquei doente eu não pude trabalhar mais porque não dei conta. [...] Eu tenho problema nas perna. Eu tenho problema de muita tonteira. Muita mesmo! Problema nas vista. Agora eu tenho uma hérnia também muito grande [...].

8. Zica [...] Eu sofri derrame na verdade. Eu não ando mais [...].

9. Doca [...] Não faço mais nada, não. [...] Eu não posso olhar perto porque dói demais as vista. [...] Eles falam que eu tenho diabete. [...] Eu tenho problema..., não sei se é da tiróide ou se é do relógio da vida [...].

10. Ina [...] Uai, ficando velha também, né? Ficando de idade e doente. Aí não tem jeito mais de morar sozinha e fazer as coisas [...].

11. Ceci Não tem problemas de saúde

12. Iole Não tem problemas de saúde

13. Lude [...] Eu sofri começo de derrame, né?, e parece que não sara! [...].

14. Irajá [...] Trabalhei até que quebrei as perna. Agora não posso trabalhar mais. Eu também não posso sair. Como é que eu vou com essa perna ruim? [...].

15. Peri [...] Ah, eu fiquei doente quando eu era menino. [...] Eu tenho um aparelho dentro do corpo. [...] Eu não posso fazer algumas coisas, principalmente esforço. Agora, as minhas perna é que não está muito boa, não! [...] Essa aqui que deu negócio... Começo de trombose [...].

16. Aog [...] Toda a vida eu tive o problema de não pegar peso, né? Problema de coluna. [...] E agora vários outro problema que eu tenho. Problema de estômago, né? [...] Mas eu não tenho condições pra trabalhar por causa da saúde [...].

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Tal subcategoria demonstra que as doenças crônicas como Chagas, artrose, trombose,

epilepsia e cardiopatia acarretam doenças secundárias que configuram uma síndrome de

natureza evolutiva e incapacitante.

As limitações decorrentes da doença, associadas à perda da autonomia pela

impossibilidade de cuidarem de si mesmos, foram verificadas em grande parte dos

entrevistados, com exceção da Ceci e Iole. Estas não apresentam problemas de saúde, mas,

em função das limitações provocadas pela idade avançada, demonstram dificuldades para

cuidarem delas mesmas.

Suyá, Ava, Doca e Aog, embora tenham mencionado a existência de diversas doenças,

não possuem doenças incapacitantes.

Nove entrevistados queixaram-se das limitações impostas ao trabalho, provocadas pela

doença, deixando assim de realizar atividades produtivas e remuneradas. A perda da

capacidade para o trabalho e as dependências física e financeira concorrem, sendo assim, para

a representação da instituição como depósito de inválidos.

Subcategoria 3.2: Solidão

A subcategoria solidão, formulada como um “vazio”, refere-se aos sentimentos

discursivamente marcados em conseqüência do afirmar-se estar só. Ela decorre das suas

histórias de vida marcadas por diversas perdas familiares, sobretudo de maridos e filhos, e da

falta de pessoas a quem possam recorrer.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu vivi sempre no serviço porque eu perdi a mãe nova ainda. Sem pai, sem mãe, né? O pai também tinha desaparecido e eu era sempre para as casas dos outros, né? [...].

2. Miro [...] Eu só tenho uma filha, mas eu vi ela pouco. Eu tinha um filho com outra mulher, mas ele morreu de acidente de mota. [...] Há muito tempo que eu estou sozinho [...].

3. Celeste [...] Depois que papai morreu, passou uns tempos mamãe morreu. E meus irmãos foi morrendo [...] e eu fiquei suzinha na casa [...].

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4. Aracê [...] Tive casada cinco anos, mas depois separei. [...]. Hoje eu sou viúva. [...] Eu não tive condição de ter filhos. Os remédios que eu tomo diariamente para os incômodos não deixar desmaiar, lia na bula, nunca deixa engravidar [...].

5. Lana [...] Eu fiquei sem meus pai desde nova. [...] Aí depois eu casei lá em São Paulo. Fui pra Bahia, mas depois fiquei viúva [...].

6. Ava [...] Faz muitos ano que o meu filho morreu. [...] Meu marido morreu, bem dizer, de repente. A gente sente falta das pessoa, né? [...] Isso dá interferência na vida da gente [...].

7. Tiana [...] Criei um filho só. Morreu meu filho, uai! O marido morreu também. [...] Meu marido morreu de repente, né? O menino teve doente muito tempo [...].

8. Zica [...] Tem mais de vinte ano que eu sou viúva. [...] Tive uma filha. Morreu. Era mulherzinha. Um ano e meio. Deu sarampo recolhido nela. [...] E também foi só essa: não evitei; não arrumei nada; e não criei mais [...].

9. Doca [...] Perdi meus pai, mas a perca maior foi o meu esposo. [...] Sinto farta da pessoa dele, da companhia. [...] Eu perdi também filho. Eu perdi quatro abortinho [...].

10. Ina [...] Fui casada. Hoje é largada. [...] Eu cuidei do meu filho até ele casar. [...] Depois eu morei sozinha. [...] O meu filho morreu de desastre [...].

11. Ceci [...] Eu sou viúva. Criei uma filha. A filha morreu com dois ano. Deu meningite na cabeça. [...] Eu não criei mais não. Eu não quis porque o meu velho tinha muita dificuldade pra trabalhar. [...] Eu casei velha; por isso que eu criei só uma filha [...].

12. Iole [...] Uai, casei, não deu certo. [...] Foi ser preciso largar. Ele arrumou outra. E também nem mexi com filho, não! [...].

13. Lude [...] Eu não tem... não tem família não! [...] Os meus irmão tudo já morreu. Eu estou aqui sozinha [...].

14. Irajá [...] Tinha irmão, meus irmão morreu. Morreu tudo. [...] Eu não tenho ninguém. [...] Quando a mulher daqui [coordenadora do abrigo] foi lá me buscar eu estava sozinha e Deus [...].

15. Peri [...] Inclusive meus pais já morreram. E os meus irmão está cada um pra um lugar. Tudo separado um do outro [...].

16. Aog [...] Lá no bairro que eu morei, eu morava sozinho. E... e depois no prédio também eu tive muito tempo morando sozinho porque o prédio, quando eu fui pra lá, estava em construção, né? [...] E... então eu estava morando lá pra mim... pra mim não ficar na rua porque eu não tinha parente - não tenho -, não tinha aonde morar, né?, e não tinha emprego [...].

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Em relação ao estado civil, de dez entrevistados que se casaram, três se separaram e

sete ficaram viúvos. Miro e Ava casaram-se oficialmente uma vez; amasiaram-se outra, tendo

seus companheiros falecidos. Miro cita, ademais, vários relacionamentos sem que se tenham

criado vínculos. Todas estas relações, portanto, foram marcadamente apontadas por ele como

transitórias.

Quatro dos entrevistados (Ava, Ceci, Tiana e Zica) perderam seus filhos legítimos e

únicos, – com exceção de Ava que tem mais dois filhos – quando crianças, por doença. Os

entrevistados Miro e Ina perderam seus filhos já adultos. O primeiro, em virtude de um

acidente de moto; a segunda, em decorrência de um acidente automobilístico, perdeu seu

único filho. Isto mostra uma vida trágica marcada por perdas e separações.

As entrevistadas Aracê, Ceci, Doca e Zica fizeram menção à impossibilidade de

engravidar: Aracê e Doca desejavam ter filhos; Ceci e Zica não conseguiram engravidar

novamente após a perda de seus únicos filhos. Desse modo, configura-se, assim, a solidão

representada como uma predestinação.

b) Institucionalização

Este tópico refere-se ao ingresso dos idosos no abrigo e aos seus desdobramentos, ou

seja, como eles se sentem por estar na instituição e o modo de vida neste local estabelecido,

assim como a sociabilidade e a subjetividade na instituição.

Categoria 04: Cotidiano

Esta categoria delimita as vivências cotidianas dos idosos nos abrigos. Refere-se,

assim sendo, às interações sociais, às tarefas e atividades diárias e às estratégias criadas para

superar o ócio.

Esta categoria subdivide-se em três subcategorias: convivência dos idosos; atividades

realizadas; visitas e socialização externa dos idosos abrigados.

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Subcategoria 4.1: Convivência no abrigo

A subcategoria convivência no abrigo refere-se ao modo como as relações cotidianas

são estabelecidas dentro do abrigo, seja entre os idosos residentes, seja entre estes e os

funcionários da instituição.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu me dou bem com as pessoas que moram e trabalham aqui [...].

2. Miro [...] O pessoal aqui é tudo bão. Tudo camarada. Dou bem com todo mundo daqui [...].

3. Celeste [...] E eu não combino com aquela [funcionária do abrigo] que saiu de carro. É um... um... uma estróia! [...] Mas aqui eu converso com um, converso com outro [...].

4. Aracê [...] Tem uns que é sem educação. Por isso que não sou com todos aqui. [...] E uns que são internos aqui também tem a cabeça melhor que a gente e vive fazendo malandragem [...].

5. Lana [...] Aqui tem uma enfermeira que implicou comigo. [...] porque essas pessoa muito fraca, principalmente essa [idosa abrigada] que passa aqui sempre, é muito agarrada comigo. [...] E ela [enfermeira], enciumando, diz que eu não sou enfermeira, não posso cuidar, nem nada. [...].

6. Ava [...] Eu não tenho mal querência com ninguém aqui. [...] Fazer amizade com todo mundo, porque tem gente que qualquer coisinha fica com raiva de você, te olha com a cara ruim, coisa e tal, né? [...].

7. Tiana [...] Eu gosto muito deles daqui. [...] Só tenho que gabar, porque são todos muito bão. Trata a gente muito bem! [...].

8. Zica [...] As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, têm umas aqui que não vai, não! É tudo doido. [...] Não compensa conversar, não! [...] Eu não tenho nada que queixar da minha companheira de quarto [...].

9. Doca [...] Tem quatro muié aqui, que implica comigo, é que eu tenho sentimento. [...] Mas aqui, oh, eu tenho as minha amizade. [...] Eu tenho duas amiga do coração, firme e importante, que é as do meu quarto [...].

10. Ina [...] Tem dia que tem umas briga aqui com uns, mas tem dia que passa [...].

11. Ceci [...] Eu aqui eu sou muito perseguida porque eu sou filha de Jesus. [...] Aqui é bom-dia e boa-tarde que eu dou. Não fico de xodó fazendo rodinha na beira da cadeira de ninguém, não, porque elas gostam de ilusão e eu não gosto [...].

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12. Iole [...] Tem a mulher que mora aqui, né?, nessa cama aqui. [...] É... é... essa mulher é muito custosa! [...] Eu não tenho relacionamento com ninguém! [...].

13. Lude [...] Tem uns doido aí, um povo muito esquisito. Eu não dou pra ficar junto com eles, não! [...] Não relaciono bom, não! Tem umas mulher que já me ameaçou muitas vez aqui. Elas é muito custosa! [...] Até que não tem separação com os outros não! [...].

14. Irajá [...] Eu não converso com as enfermeira não! [...] Elas não conversa [...] Quando acaba de doar a janta, elas fica doida! Deita a... as de cadeira de roda, fala com elas, deita tudo e vem, apronta e vai embora [...].

15. Peri [...] Tudo boa a convivência aqui dentro com as pessoas daqui. Não tem... não tem briga, não tem encrenca, não tem nada com ninguém [...].

16. Aog [...] É muito bão a minha convivência aqui. [...] Não!, quer dizer: têm umas pessoas que eu nem não converso. [...] Inclusive eu até saí da mesa [para fazer as refeições] por causa disso [...] Agora eu sento num cantinho que tem lá, mas fora da mesa, já pra evitar confusão, né?[...] Agora, não, com as outras pessoas, não! Eu tenho comunicação muito bem! [...].

Sete entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Lana, Ava, Tiana e Peri), embora pouco se

relacionem com os colegas abrigados, destacaram ter, em geral, bom relacionamento entre si,

declarando compreensão e respeito para com as diferenças no modo de ser de cada um. Tal

aspecto é diferentemente verificado em Aracê, Zica, Iole, Lude e Aog que afirmaram não

manter bom relacionamento com alguns colegas, visto que não aceitem o modo como estes se

comportam. Além disso, referem-se a eles como “sem educação; estróia; malandro; pessoa

fraca; doido”, o que indica relações estereotipadas e preconceituosas.

Irajá, por sua vez, referiu-se apenas à sua convivência com os funcionários,

atribuindo-lhes descaso para com ela. Celeste e Lana referiram-se também à convivência com

os mesmos, marcada por conflito.

Pode-se perceber, a partir destes dados, que todos os entrevistados mantêm vínculos

frágeis com os colegas de instituição, exceto nos casos das entrevistadas Tiana, Doca e Zica,

que mantêm contato estreito entre si, e acentuem ter respeito para com os funcionários.

Nota-se, em relação às entrevistadas Ceci, Ina e Iole, que o menor contato estabelecido

com os colegas é marcado por conflito. Da entrevistada Lude depreende-se algo semelhante,

embora destaque que com alguns ela tenha um bom relacionamento.

A frieza nas relações sociais dentro da instiutição alimenta, sendo assim, a

representação do abrigo como depositário de idosos, visto que não ocorra um trabalho em

grupo a fim de romper estereótipos e estimular o estabelecimento de vínculos.

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Subcategoria 4.2: Reativação

A subcategoria reativação demarca a participação ativa no abrigo, buscando

preencher o espaço vazio e o ócio angustiante.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu ainda conserto as roupas do abrigo até hoje. [...] E também faço crochê. Fico aqui fazendo crochê o dia inteiro! [...] Então a pessoa vem e gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre trabalhando [...].

2. Miro [...] Lá no CEAI, eu vou lá toda segunda e sexta. [...] Está com quatro ano que eu estou andando nisso. Acho bão. Passa o tempo, né? [...].

3. Celeste [...] Não faço nada aqui. [...] É... é... eu arrumo a minha cama. [...] Eu venho pra cá, sento aqui e fico aqui vendo o dia [...].

4. Aracê [...] A cozinheira aí me pede pra fazer uma coisa e outra. Varrer, fazer a limpeza por fora mais é eu que faço [...].

5. Lana [...] Eu vivo aqui é matando inseto. Não faço nada. Tenho tudo prontinho aqui [...].

6. Ava [...] Aqui eu faço crochê. Só. [...] Eu faço crochê todo dia. Até hoje eu ainda vendo. [...].

7. Tiana [...] A atividade que eu faço aqui é esse: escreve um pouquinho; lê um pouquinho [...].

8. Zica [...] Aqui eu faço desenho [...] Tirando dos desenho mais nada eu não faço [...].

9. Doca [...] Eu já fiz muito tapete. Hoje eu não faço mais nada. [...] A doutora me proibiu de fazer porque de olhar perto dói demais! [...].

10. Ina [...] Não faz nada aqui, menina! Fico à toa. Eu não tenho coragem de trabalhar mais [...].

11. Ceci [...] Eu faço a limpeza aqui no quintal. Varro, águo as planta tudo da manhã [...].

12. Iole [...] Não faço nada aqui. Não tem nada que quero fazer [...].

13. Lude [...] Não faço nada aqui, não! E não quero fazer nada também não! [...].

14. Irajá [...] Não faço nada não! Arrumo a minha cama e deito [...].

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15. Peri [...] Eu gosto é de escrever. Eu assisto às aulas que têm aqui [...].

16. Aog [...] Aqui eu não faço nada. Não mexo com nada. Gosto de ficar mais quieto [...].

Metade dos entrevistados, de acordo com suas capacidades físicas, realiza atividades

cuja finalidade precípua é o preenchimento do tempo. Embora atividades como crochê, tarefas

relacionadas à cozinha e cuidados com plantas sejam repetitivas, podem ter efeitos

terapêuticos. Tais atividades, por serem realizadas a partir de iniciativa pessoal, indicam,

desse modo, não haver práticas de terapia ocupacional organizadas institucionalmente.

A outra metade dos entrevistados permanece ociosa durante todo o dia, justificando a

inatividade pelo desinteresse em realizar qualquer tipo de atividade dentro do abrigo. O ócio,

a angústia decorrente da ausência de vínculos afetivos e o institucionalismo configuram o

fenômeno denominado por Goffman (1961) de “mortificação do eu”.

As entrevistadas Lana e Doca, por sua vez, afirmaram que permanecem ociosas em

função das limitações impostas pela doença. Ina justificou a ociosidade pela perda de vigor

físico atribuído à idade avançada. Lana também afirmou permanecer ociosa pelo fato de

receber tudo pronto do abrigo. Percebe-se, nessa representação do abrigo como local de

ociosidade, o sentido de improdutividade, associado à terceira idade, circulante no imaginário

institucional.

Subcategoria 4.3: Visitas e socialização externa

A subcategoria visitas e socialização externa delimita discursivamente as referências

dos entrevistados com relação ao contato mantido entre eles e as pessoas que não moram no

abrigo. Num regime de clausura, a visita dos familiares indica a pertença a uma família e a

representação do mundo externo, social e vivo.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Recebo visita de muita gente. [...] Essas pessoas que vêm visitar o abrigo, né? Agora, meus parentes também vêm. Sempre [...].

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2. Miro [...] Ih!, todo dia tem visita! [...] Tem muitas pessoas que vêm! Nossa, todo dia! Os meus sobrinho e minha irmã vêm quando pode [...].

3. Celeste [...] De vez em quando uns dos meus sobrinhos vêm aqui. Minha irmã e meu cunhado vêm aqui de vez em quando. Quando eles pode vir, eles vêm [...].

4. Aracê [...] Ih!, vem gente demais aqui visitar. Conhecidos daqui mesmo. [...] A minha irmã vem aqui de vez em quando. Ela não passa sem vir aqui, não! [...].

5. Lana [...] Tem meu irmão e tem as crianças do colégio eles vêm sempre aqui. [...] O meu filho vem sempre assim de quinze em quinze ou mais, quando precisa trazer alguma coisa ou... pra me levar ao médico, né? [...].

6. Ava [...] Recebo visita do meu menino toda semana. [...] Recebo da minha prima que mora ali. [...] Vem aqui uma cumade minha. Vem a minha sobrinha. [...] Sempre elas vêm aqui [...].

7. Tiana [...] Recebo muita visita! [...] Recebo visita do povo que vem aí. Dos visitante, né? Alguns dos meus parente vêm. [...] A sobrinha com quem eu morava de vez em quando ela vem [...].

8. Zica [...] Eles [filho e neto] vêm me ver de quinze em quinze dia, porque o meu filho trabalha na chácara, né? [...] Os irmão daqui tudo eu tenho notícia muito de vez em quando. Eles vêm cá. A lá de Taguatinga veio. Tem uns dois mês que ela veio aqui [...].

9. Doca [...] Sempre vem umas pessoa aqui pra conversar. [...] Uma irmã minha e uma sobrinha vêm aqui de vez em quando [...].

10. Ina [...] É custoso demais vir cá os meus neto. [...] Recebo visita das amigas, né? De vez em quando vem uma amiga. Aqui eu conheci elas [...].

11. Ceci [...] Recebo visita de conhecido. [...] Recebo de um... de um homem que tem um... um centro [de umbanda]. [...] Ele mora no fundo de onde eu morava [...].

12. Iole [...] De vez em quando as minhas irmã aparecem por aqui. [...] Um dia... um dia a minha sobrinha veio me buscar pra ir à missa [...].

13. Lude [...] É muito custoso a menina vir aqui [filha adotiva]. [...] Ontem mesmo teve uma sobrinha minha aqui. E só ela vem aqui de vez em quando [...].

14. Irajá [...] De primeiro vinha muita visita, mas agora não vem não. A minha amiga arrumou namorado e agora demora a vir [...].

15. Peri [...] De vez... de vez em quando vem uma irmã minha que mora aqui. [...] O meu irmão mora fora. De vez em quando vem cá [...].

16. Aog [...] Recebo sempre visita de várias pessoas, né?, que visitam aqui. [...] Recebo visitas é de um senhor que vem cá. [...] Aliás, esses dois senhor eles freqüentava já há muito tempo lá nesse asilo que eu morei. [...] Aí eu vim pra cá e aqui também eles continua vindo fazendo visita [...].

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Com exceção dos entrevistados Ceci, Irajá e Aog, os demais afirmaram receber visitas

dos familiares. Porém, destes entrevistados, apenas três (Suyá, Lana e Ava) declararam

receber visitas freqüentes de alguns deles. Os outros dez entrevistados afirmaram receber

visitas esporádicas dos familiares, indicando o abandono ao qual possa estar submetido o

idoso institucionalizado.

Metade dos entrevistados (Suyá, Miro, Aracê, Lana, Tiana, Doca, Ina e Aog) afirmou

que recebe inúmeras e freqüentes visitas da comunidade, ou seja, de pessoas com quem eles

não mantêm vínculos permanentes. A outra metade não mencionou receber visitas da

comunidade.

Os entrevistados Ceci, Irajá e Aog afirmaram receber visitas de pessoas que eles

conheceram no período anterior à ida para o abrigo.

Categoria 05: Percepção do abrigo

Esta categoria refere-se ao modo como os idosos percebem o abrigo e aos sentidos

que constroem para a vida institucionalizada.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Aqui tem tudo que precisa pra viver uma pessoa na minha idade, que precisa de cuidados, né? Afinal de contas, aqui tem tudo o que uma pessoa que tem problema de saúde, como eu tenho, que precisaria de um lugar pra viver [...].

2. Miro [...] Eu senti bão, uai!, de vir pr`aqui. Estou bem tratado, né?, bem zelado. Aqui não falta médico. Comê, quatro vez por dia. Se precisar de remédio, vem na hora [...] Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? [...].

3. Celeste [...] Ah, eu chorei quando vim pra cá. Morar aqui tem que morar, né?, porque pra onde é que eu vou? [...] Médico não farta aqui. E remédio, graças a Deus! [...].

4. Aracê [...] Ah, tanto faz lá na casa da minha irmã, como tanto faz aqui. Uma coisa só! [...] De um jeito só. Tudo bem. Vai bem [...] Tem uns aqui da cabeça fraca. Isso me deixa nervosa [...].

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5. Lana [...] Morre muita gente aqui porque, quando vem, já vem tudo fracassado, né? [...] E aqui, oh, eu vivo bem: eu saí do inferno e caí no céu, né? [comparação da vida atual com o período em que morava com o filho e a nora.] [...] Porque aqui, oh, a gente tem mais liberdade [...].

6. Ava [...] Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se está doente, se sente uma dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente. [...] Mas você na sua casa, fazer uma comparação: se você quiser fazer uma coisa, você faz; se você não quiser, você não faz. [...] E na casa dos outros não é assim... Na casa dos outros, come o que os outro dá [...].

7. Tiana [...] Eles têm muita paciência com a gente. [...] O que eles puderem fazer... o que eles podem fazer pra gente eles fazem [...].

8. Zica [...] Eu tenho muito desgosto daqui. [...] Porque é muita gente falso, muita gente defeituoso. É perigoso demais da conta! [...] Aqui não falta nada. Tem médico, tem tudo, né?, no jeito. [...] O tratamento aqui é bão demais! [...].

9. Doca [...] Aqui, consagradamente, eu já conversei com eles tudo aqui, é um sagrado lar. [...] E as funcionária têm que dar desconto porque não tem tudo na hora. [...] Mas aqui eu não tenho direito de pedir nada! É muita coisa que a gente precisa e... e não tem [...].

10. Ina [...] Ih!, achei ruim demais vir pra cá. Eu acho muito ruim! [...] Uai, não tem nada a fazer mais não. Como é que faz? Eu estou nesse lugar [...].

11. Ceci [...] Eu fiquei assim chocada quando vim pra cá, mas eu conformei. [...] Eu não podia ficar lá [na casa dela] sozinha, conformei. [...] Quando a mulher daqui me buscou, ela falou: “– A senhora não leva nada daqui pra lá. Nada daqui pra lá porque lá onde a senhora vai tem tudo: comida no prato, cama pra senhora dormir, banho no tempo e na hora”. E aqui tem tudo isso mesmo que a gente precisa [...].

12. Iole [...] Ah, eu não senti bem nada em vir pra cá não! [...] Se não tivesse me trazido eu estava lá. [...] Era minha casinha. [...] E eu tomava conta de lá [...].

13. Lude [...] Aqui não é bom, não, mas o quê que vai fazer, né? Eu porque estava... estava... pra casa de um, pra casa de outro, sem lugar. [...] Aqui tem uns doido que Deus me livre! [...] Se eles entrar aqui o dia que eles está na onda de loucura neles, eles pode fazer qualquer coisa com a gente, né? Pode machucar muito, pode me matar. E ainda sair matando uma véia aí, oh! [...].

14. Irajá [...] Ah, eu achei ruim de vir pra cá porque casa dos outros não vai não! [...] Você pede um remédio, não tem. Pede outro, não dá. Pede outro, some. Pede uma coisa, não dá. [...] Mas o quê que eu vou fazer, né? Eu, sozinha, como é que eu andava? [...].

15. Peri [...] Aqui é uma estadia da gente. É um... é um... é uma coisa que a gente vem pra morar. Ficar. Tomo banho todo dia. Troca roupa limpa todo dia. [...] Aqui nós recebemos cinco refeição por dia. [...] Praticamente aqui todos aqui são uma família aqui dentro, né? [...] Aqui eu trato. Eu estou... eu tenho médico particular pra me tratar. Faço fisioterapia [...].

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16. Aog [...] O asilo é... é... dá apoio pras pessoas doente, né? Para as pessoas idoso e doente, né? [...] Eu sentia muito ruim pelo costume de... pelo fato de eu sair todo dia. E em asilo não pode sair, né? [...] Hoje eu praticamente acostumei morar em asilo [...].

O abrigo é percebido, para a maioria dos entrevistados, com exceção de Irajá, como

provedor, representado como um local de cuidados com a saúde física e de atendimento às

necessidades de sobrevivência, embora grande parte dos entrevistados tenha feito referência

ao descontentamento por ter ido para o abrigo, bem como da condição de interno. Assim, o

sentido atribuído à instituição, em função da perda da liberdade de ir e vir, é de clausura e

carência de subjetividade produtiva.

Por outro lado, a instituição é representada como mal necessário no prosseguimento da

vida, tendo eles de se conformar com o fato de lá estar e com a vida que ora caminha diante

da impossibilidade de efetuar escolhas.

Percebe-se que o abrigo, nas marcas discursivas “eu chorei quando vim pra cá”;

“fiquei chocada”; “tenho muito desgosto”; “não me sinto bem”, foi imposto ao idoso como

uma “solução” para sua penúria, abandono e solidão.

A vida atual, para nove entrevistados (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Zica, Lude, Irajá

e Aog), é insatisfatória, restrita e limitada, o que os faz sentirem insatisfeitos e à espera de

mudanças. Miro e Peri consideram aceitável a vida na instituição. Para Aracê, embora a vida

no abrigo não seja essencialmente insatisfatória, ela afirmou ser indiferente viver ali ou em

outro lugar.

Quatro entrevistadas (Aracê, Lana, Zica e Lude) representam o abrigo como um local

de assistência a pessoas inválidas e mentalmente limitadas, ou seja, de quem não têm

consciência daquilo que fazem. A representação da instituição como sanatório, expressa pela

marca discursiva “aqui tem uns doido que Deus me livre!”, demonstra a intolerância ao

diferente que, paradoxalmente, encontra-se na mesma situação do intolerante.

A maior parte dos entrevistados não representa o abrigo como um lar e não gostaria,

portanto, de estar naquele local.

Peri, ao contrário, referiu-se ao abrigo como uma família, sendo assim porta-voz

daqueles que, ao sofrerem um processo de abandono e marginalização desde a infância,

encontram estabilidade e cuidados na terceira idade.

Apenas Suyá e Aog mencionaram o abrigo como um local de acolhimento a pessoas

de idade avançada.

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Categoria 06: Sentimentos e perdas

A categoria intitulada de sentimentos e perdas refere-se às conseqüências das perdas

que tiveram ao longo da vida de suas vidas e ao modo como elaboram o luto. Destaca-se aqui

também os sentimentos de solidão como resultado expresso das diversas perdas familiares, do

distanciamento dos parentes e da ausência de vínculos.

Esta categoria compreende duas subcategorias, ou seja, a de auto-percepção e

distanciamento dos familiares.

Subcategoria 6.1: Auto-percepção

A subcategoria auto-percepção diz respeito ao modo como os entrevistados referem-

se a si mesmos.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu fui pra essa casa onde morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar uma menina cedo, ainda mais de cor, né? O povo tem muito preconceito, né? [...] Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a gente já passou tão duro na vida! E agora eu tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de mim, né?, quando preciso assim [...].

2. Miro [...] Eu sou um cabra já andado. Muito. Sabido de um mundo de coisa. [...] Por isso que eu digo: eu já desfrutei a vida, puta merda! [...] Andei por todo lado e virei pra trás. Aí estou aqui. [...] O que eu acho é que falta saúde. A saúde é o principal. Faltou ele, acabou, né? [...].

3. Celeste [...] É, eu sei que eu já sofri! [...] A vida da gente é dura, né? Nós, desde pequena, é trabalhando. A minha vida não foi fácil, não! Labuta. [...] Com a idade a gente vai ficando fraca e isso atrapalha a vida da gente porque não dá conta de fazer as coisa [...].

4. Aracê [...] Eu sofro nervoso demais! Sempre eu fui muito nervosa. [...] Eu sofro constantemente é desmaio. Agora já tem mais de um ano que eu não sofro, mas o... minha cabeça é provocada ainda. O sentido muito fraco. [...] A memória é muito falhada, esquecida demais! [...].

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5. Lana [...] Eu acho que nasci pra sofrer é porque é... desde criança fiquei sem pai, sem mãe, e vivia pras casa dos outro pelejando, né?, pra viver. Então, eu acho que eu nasci pra sofrer até a hora da morte [...].

6. Ava [...] A gente quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa mesmo! O que é da gente é da gente. Eu tenho minha casa, tenho os meus trem, eu estou aqui, oh, desse jeito! [...] Ah!, a vida da gente é assim mesmo! Depois a gente vai ficando de mais idade, é uma coisa e outra, né? [...].

7. Tiana [...] Eu não queria mudar nada na minha vida. [...] Em pé, eu não fico em pé sozinha. Eu só fico em pé segurando isso aqui. [bengala]. Não tem jeito de nada mais, né? [...].

8. Zica [...] Eu trabalhava. Agora, depois que eu sofri derrame, acabou, porque não tem mais jeito de muita coisa [...].

9. Doca [...] Porque, pensando bem, se eu for um... um... veja bem o meu tamanhozinho, né? Se eu fosse uma criatura melhor de saúde, eu ajudava fazer alguma coisa de serviço. O único incômodo que eu nunca tive: preguiça. Eu não fui criada com preguiça não! [...].

10. Ina [...] É duro o que eu estou passando. É triste! A minha vida é ruim demais! [...] Meu marido não prestava pra nada. Eu criei filho sozinha e eu passava até fome. [...] Eu casei com treze anos porque gostei dele. [...] É bobagem, né?, que eu fiz, né? [...] Hoje não tem vontade mais com a idade. Parece que a idade impede de fazer as coisas [...].

11. Ceci [...] Eu sou benzedeira. [...] Eu faço caridade. Benzo as pessoa só com prece. [...] Fiz prece com carta e sarou, né? [cura de uma pessoa que a procurou] [...]. Desapareceu na mesma hora. E diz que doía pior do que um trem! [...].

12. Iole [...] Eu ando muito nervosa, sabe? Eu bato em mim mesma. [...] Tenho raiva de mim, da minha vida de hoje. [...] Hoje eu sinto a minha vida virou uma besteira, virou um bobagem [...].

13. Lude [...] Antigamente eu tinha gosto na vida. Eu era alegre. Eu não era assim sem força, não! [...] Hoje o meu caminho não tem sentido mais não! [...].

14. Irajá [...] Se eu lembrar de trem que eu já fui! Desde os quinze ano que eu... eu era empregada pra pajiar criança dos outro. Eu sofria muito. Não era pouca coisa não! [...] Minha vida, uai, acabou! Por que como é que eu vou fazer? Eu não posso sair, não vou arranjar meus negócio, não posso fazer em nada [...].

15. Peri [...] Eu sei fazer muita coisa. Eu sei escrever. Eu sei ler. [...] E eu não tenho muito estudo não, hein? Tenho o quarto ano primário só. [...] Não... não vem dizer que eu estou atrás de gente de... de sexta série, de sétima série pra frente aí que me passa pra trás! Não me passa, não! [...].

16. Aog [...] Eu trato todo mundo bem aonde eu chego. E aonde eu chego eu, graças a Deus, é, todo mundo fica gostando de mim.[...] Inclusive aqui mesmo eles têm me admirado por esse fato aqui porque aqui tem muita confusão. Muita briga, discursão, né? E eu estou sempre por fora, né? [...].

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Sete entrevistados (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Doca, Ina e Irajá) representam-se

como sofredores e vítimas do mundo. As marcas discursivas “eu nasci pra sofrer” e “Deus

sofreu, eu sofro animada”, indicam uma representação de si como predestinada à doença e ao

sofrimento.

Além disso, seis entrevistados – Suyá, Celeste, Lana, Ina, Iole e Irajá – demonstraram

que a vida era ruim no período anterior da ida para o abrigo. Por outro lado, para dez

entrevistados, a vida antes do abrigo era satisfatória.

Doze entrevistados apresentam indícios de que é negativa a representação que eles têm

de si, sendo pouco valorados por estarem num local que proporciona cuidados vitais, mas não

propicia incentivos para o prosseguimento satisfatório da vida. O fato de estarem cerceados e

inativos parece levar a uma condição regredida da auto-percepção de modo a generalizar essa

representação negativa, independente dos diferentes históricos de vida descritos.

Nesse sentido, sete entrevistados (Miro, Ava, Doca, Ina, Zica, Lude e Irajá) apontaram

para o sentido de fatalidade, pois foram vítimas de doenças graves e crônicas. A entrevistada

Aracê ressaltou que o “nervosismo” sempre a acompanhou. Aog apresentou a doença como

companheira inseparável, sendo a atual condição uma extensão de sua vida anterior.

Cinco entrevistados (Suyá, Ceci, Tiana, Peri e Aog) têm uma percepção positiva de si

mesmos na atual condição de abrigados. Tiana e Peri positivamente demonstraram

maleabilidade para depreender das circunstâncias uma representação positiva, mesmo que em

ambos se note debilidade física. A entrevistada Suyá apresentou uma auto-percepção positiva

da condição atual por sentir que no abrigo ela é mais valorizada do que fora dele. A

entrevistada Ceci declarou possuir um dom especial, afirmando assim ser capaz de benzer

para curar quem precise. Aog afirmou tratar bem as pessoas com quem convive e, como

retribuição, é por elas bem tratado.

Subcategoria 6.2: Distanciamento familiar

A subcategoria aqui denominada distanciamento familiar refere-se ao modo como

ocorre a relação dos entrevistados com os seus familiares, mostrando-se intrínseca e

fortemente associada à subcategoria solidão.

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Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Depois é que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou. Separou tudo os irmãos. Cada um foi pra um lugar, né? [...].

2. Miro [...] Não tenho notícia nenhuma da minha filha. Já está desligado há muitos anos já. [...] Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica custoso [...].

3. Celeste [...] As minhas irmãs me escrevem de vez em quando, telefona lá na minha irmã. [...] Tudo me escreve que... tem saudade de mim, mas elas precisam trabalhar também [...].

4. Aracê [...] O meu sobrinho que mora aqui veio muitas vezes já. [...] Mas hoje ele vem pouco, bem pouco aqui. É atarefado. [...] Os meus irmãos estão todos velhos, já de idade também. Aí fica difícil pra eles vir aqui [...]”.

5. Lana Não indica

6. Ava [...] Ah!, os meus irmão nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei porquê não! [...].

7. Tiana [...] De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito. Três, quatro mês, cinco, seis. [...] Eles falam que está apertado por causa do serviço; que não tem tempo; que não sei o quê. [...] Mas... não sei se é isso, não! Eu acho que é porque não quer vir [...].

8. Zica [...] A minha sobrinha trouxe eu pra cá e pronto, largou aí! E ficou custoso de ela vir cá. [...] Mas embora que ela trabalha, né? [...].

9. Doca [...] A minha irmã falou que não podia vim cá me ver porque ela está meia doente. E as filhas dela trabalha, né? [...] Não sei por que os meu parente eles não vêm não, sô! [...].

10. Ina [...] Os neto tudo aqui e nem vem cá também. [...] Eles fala que está ocupado, né? Trabalhando, né? [...] Tenho um irmão aí que mora na mesma rua daqui, mas não vem cá de jeito nenhum! [...].

11. Ceci [...] Meus irmão ficou homem e foi embora pra Bahia. [...] Eu não tenho contato com eles [...].

12. Iole [...] As minhas irmã eu vejo pouco. [...] Não sei o quê que aconteceu, não! [...].

13. Lude [...] E, tirando ela [filha adotiva], só uma sobrinha que vem aqui muito de vez em quando. [...] Mas eu não faço muita questão não! [...].

14. Irajá [...] Eu tenho sobrinha, mas não vale nada com ninguém não! Nem me conhece! [...].

15. Peri [...] Eu tenho irmão espalhado aqui e em um monte de lugar. É tudo meio afastado da gente. [...] Não sei porquê que afastaram [...].

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16. Aog [...] Já tem uns vinte ano que eu não vejo essa irmã minha que mora fora. Ela não vem cá e eu também não tenho condições de ir lá, né? [...] Da irmã que mora aqui eu tenho notícia. [...] Mas deve ter mais de ano que eu nem lá [local onde ela mora e trabalha] eu não vou. [...] Visitar aqui ela nunca veio [...].

Seis entrevistados (Suyá, Miro, Ceci, Irajá, Peri e Aog) representam o distanciamento

dos seus familiares como conseqüência da dinâmica de suas famílias ocorrida no período

anterior à institucionalização. Tal distanciamento permanece para a maioria deles,

configurando um quadro de rejeição e abandono por estarem excluídos do meio familiar.

Para os demais, o distanciamento dos familiares ocorreu no período posterior à ida

deles para o abrigo, mas o quadro de afastamento e isolamento consiste em um processo

ocorrido ao longo de suas vidas.

Oito entrevistados (Celeste, Aracê, Tiana, Doca, Ina, Zica, Iole e Lude) justificaram,

pelo trabalho ou por outras obrigações dos familiares, o distanciamento que todos ou alguns

destes estabeleceram a partir da ida deles para o abrigo, procurando, assim, racionalizar o

abandono. As entrevistadas Ava e Iole declararam desconhecer as razões do distanciamento.

Ina e Lude, nada justificaram. A última delas, no entanto, afirmou que não tem interesse em

manter contato com a filha adotiva.

As entrevistadas Lana e Ava, embora a partir do asilamento tenham se distanciado de

alguns parentes, mantêm contato com outros. Isto poderá ser verificado na subcategoria

visitas e socialização externa, na qual se observa que elas recebem visitas freqüentes destes,

fundamentais para a manutenção de uma auto-estima positiva.

Categoria 07: Espiritualidade e crença

A categoria aqui denominada espiritualidade e crença refere-se à influência

imaginada das forças que transcendem ao domínio dos indivíduos. A vivência espiritual é,

portanto, uma experiência subjetiva e simbólica que propicia significado para a existência dos

entrevistados. Esta categoria refere-se, pois, à busca de um apoio transcendental no

enfrentamento das dificuldades e problemas apresentados na vida cotidiana, auxiliando na

manutenção do equilíbrio e lucidez.

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Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Então esse lugar foi preparado por Deus pra mim. Eu não tenho a menor dúvida disso. [...] Sempre Deus nunca me desamparou, né? [...] Aqueles que confiam nele, ele não desampara [...].

2. Miro [...] Ah!, é tanta coisa da gente na vida, né? [...] Entregar pra Deus que ele arruma tudo, né? [...] A única coisa que pode resolver é Deus. Mais nada [...].

3. Celeste [...] Eu deito na cama, vou rezando, vou rezando, vou rezando... até dormir! [...] Não sei o quê que vai ser, né? É. Mas Deus é que sabe, né? [...].

4. Aracê [...] Eu, pra começar da minha infância, seguindo a Deus, crente, Presbiteriana, só quero a Deus. [...] A gente não sabe o dia de hoje, de amanhã e depois de amanhã. Só Deus sabe [...].

5. Lana [...] Uai, tem que sofrer porque, nossa, o destino é esse, né? [...] Então eu sei que Deus sofreu também, eu sofro animada [...].

6. Ava [...] A gente nunca deve esquecer de Deus. [...] Deus dá força pra gente; dá coragem pra gente; dá saúde pra gente, né? [...].

7. Tiana Não indica

8. Zica [...] Eu vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não, está nas mãos de Deus [...].

9. Doca [...] Eu falo com Deus, né? Peço força. Porque cada um é com Deus nessa vida, né? [...].

10. Ina [...] Só um filho eu tive. E um aborto que eu tive. Pecado que eu levei pra Deus [...].

11. Ceci [...] Quando tenho qualquer coisa, [...] eu firmo nele, no Senhor Ogum, e deito, falo pra ele. Eu oro pra ele todo dia, toda noite. Oro pra ele me olhar, sabe? [...].

12. Iole [...] Deus podia ter dó de mim. Me ajudar, né? [...] E me tirar eu. Tirar eu desse mundo [...].

13. Lude Não indica

14. Irajá Não indica

15. Peri Não indica

16. Aog Não indica

Deus ou outra divindade foi apontado, por onze entrevistados, como referência e guia

em suas vidas.

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A divindade, para seis entrevistadas (Suyá, Aracê, Lana, Ava, Ceci e Doca), é

representada como apoio fundamental para o prosseguimento de suas vidas. Todas elas

dedicam-se às práticas católicas e evangélicas, com exceção de Ceci que crê nos orixás como

fonte de apoio e proteção.

Ina, em razão de forte sentimento de culpa por ter realizado um aborto, reportou-se a

Deus como figura onipotente e punitiva, que a castiga, a seu ver justamente, por pecados que

afirma ter cometido em sua vida pregressa. Tem-se aqui, portanto, a instituição asilar

representada como local de expiação de culpa e pecados cometidos.

Iole, por entender que a sua vida atual é desprovida de sentido, referiu-se a Deus como

aquele que pode resolver a sua situação insolúvel, retirando-lhe a vida. Há, neste caso, uma

representação do abrigo como local de espera da morte.

Categoria 08: Expectativas

Esta categoria refere-se à expectativa que os idosos têm em relação à família; à vida

futura; à possibilidade de adquirir autonomia e independência para efetivar escolhas.

Três subcategorias, pois, resultam desta categoria. Elas são assim designadas:

expectativa em relação à família; expectativa de vida; expectativa de autonomia e

independência.

Subcategoria 8.1: Expectativa em relação à família

Outro ponto importante que se percebe nas entrevistas é a figuração do distanciamento

ou proximidade com a família como importante para o prosseguimento de suas vidas, seja em

relação à possibilidade de estreitar relações com quem não mais têm contato, apresentando

carência de vínculos mais estreitos, seja por manifestarem vontade de serem cuidados por

pessoas mais próximas. Daí se identifica esta subcategoria, a da expectativa em relação à

família.

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Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Eu queria assim que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado, né?, e que tivesse tido um lar mesmo, né? [...] Acho triste, né?, triste da família ter esparramado [...].

2. Miro [...] Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! [...] Ela veio uma vez lá na cidade que eu morava. Só essa vez. Acabou! [...].

3. Celeste [...] Eu espero da minha família que eles me dá um pouco de dinheiro pra comprar os trem que eu quero, né?, mas ninguém não me dá nem um tostão! [...] Ah, eu queria assim: ter a mamãe, o papai, os meus irmãos tudo, né? Mas não tem nenhum! [...].

4. Aracê [...] Só a minha irmã vindo aqui visitar a mim é o que interessa [...].

5. Lana [...] Meu sobrinho disse que vem cá me buscar a qualquer hora pra mim ir lá numa chácara que ele comprou. E ele está arrumando lá pra mim poder ir, ficar lá um pouco, [...] passar umas hora lá com eles [família] [...].

6. Ava [...] Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou embora. [...] Meu filho falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou arrumar lá pra nós ir embora e vou levar a senhora [...].

7. Tiana [...] Eu queria que os meus parentes viessem ao menos uma vez no mês. [...] Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? [...] Tem muitos ano que eu não vejo a minha irmã. E eu tinha vontade de saber notícia dela! [...].

8. Zica [...] Vou ficando aqui até esperar o meu fio. [...] Ele só farta poder me zelar [...].

9. Doca [...] Ao invés de me cuidar, né?, os meus parentes, mas não me cuida de mim. Não importa comigo [...].

10. Ina [...] Os neto não pode zelar de mim. Mas bem que podia. [...] Mas, ah, eu queria que eles viesse aqui, que a minha irmã viesse aqui, né? [...].

11. Ceci [...] Eu tenho uns parente aqui, mas eu não gosto deles, não, porque eles é metido a rico. Eles é rico. [...] Eu não interesso por notícia deles não! Eu não dou confiança pra eles não! [...].

12. Iole Não indica

13. Lude [...] Eles da minha família não faz nada pra mim, né? Eles têm fazenda... Uma tem fazenda, a outra tem casa boa pra morar. Não paga aluguel, né? [...] Era pra menina [filha adotiva] ter zelado de mim, né? Mas ela não tem condução também, né? [...].

14. Irajá Não indica

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15. Peri [...] Gostaria que fosse bom eu e mais meus outros irmão. É a convivência da gente que deve fazer assim ficar bom, ficar melhor [...].

16. Aog [...] É a comunicação, é a convivência, né?, que importa da família. [...] Pra mim o importante é isso porque tem várias família que não tem nem boa convivência [...].

Três entrevistadas – Aracê, Lana, Tiana –, mesmo conformadas com o fato de que

viverão no abrigo, demonstram vontade de continuar mantendo contato com os familiares,

recebendo visitas dos mesmos. A espera de um parente próximo ou distante mantém a

esperança do reconhecimento afetivo e do contato fundamental com o mundo externo, sem o

qual o mundo se reduz à vida institucionalizada, marcada pela falta de expectativa, em que a

noção de futuro deixa de existir.

A expectativa das entrevistadas Ava, Doca, Ina, Zica e Lude é a de poder voltar a

morar com os familiares e de ser por eles cuidadas.

O cuidado que almejam dos familiares, para as entrevistadas Celeste e Lude, poderia

se objetivar por meio dos bens materiais e financeiros que eles possuem, havendo aqui uma

associação entre afeto e dinheiro.

Quatro entrevistados (Suyá, Miro, Peri e Aog) imaginam a união dos familiares como

se pudessem reunir o que se tornou disperso ao longo de suas vidas. Há assim, pois, nos casos

de Suyá e Miro, uma idealização de retorno a um possível convívio familiar que efetivamente

é marcado por ele nunca ter ocorrido. Peri e Aog marcaram discursivamente a expectativa em

relação à família como a retomada de um convívio cercado de afetos e vínculos.

No caso da entrevistada Ceci, a expectativa que ela tem dos familiares é marcada

negativamente, como se da parte dela, mesmo que saliente as boas condições financeiras

deles, não houvesse desejo algum de contato ou de cuidados.

Subcategoria 8.2: Expectativa de vida

A subcategoria expectativa de vida relaciona-se com a subcategoria anterior.

Enquanto, contudo, aquela especifica e demarca seu foco no que os entrevistados dizem

esperar das relações familiares, esta aqui amplia a configuração do horizonte, pois ela se

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refere ao que se espera, daqui adiante, para a própria vida futura, ou da expectativa com

relação à morte, enunciada como limite daquela.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Ah, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver muito tempo, não! Eu quero ir embora. [...] Eu já estou com oitenta e um e estou inteirando oitenta e dois anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a vontade dele [...].

2. Miro [...] Eu acho que não espero nada mais, não! Derrame é duro de sarar. [...] Eu nunca ouvi falar em derrame sarar. [...] Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? [...].

3. Celeste [...] Uai, pra onde eu vou, né? [...] Não sei o que que eu vou mudar, né? Tem que ficar é aqui. [...] É duro a gente viver assim, né?, sem poder fazer as coisa! [...] É a morte que eu estou esperando, né? E peço a mamãe todo dia pra ela vir me buscar. [...] Aqui eles fala que a gente... Eles morre aqui, mas eles veve, vive lá no céu. Eu acho que sim, né? [...].

4. Aracê [...] A gente não escolhe a vida da gente assim não! [...] Escolhimento assim pra frente, não! [...] Depois que eu estou doente assim, interna aqui, não... não... não quero mais nada, não! [...] Ah, eu espero o que Deus mandar. [...].

5. Lana [...] Uai, não tem jeito mais de mudar nada porque eu já estou dessa idade, né? [...] Os meus prano é ficar aí até chegar a morte. É isso que eu espero. Eu espero só a morte [...].

6. Ava [...] Ih!, eu tenho uma vontade de ir embora pra casa! Nossa Senhora, casa da gente é bom demais! Mas falar a verdade: eles aqui não é ruim! [...] Mas é porque eu quero ir embora pra minha casa. [...] Ah!, daqui pra frente, nós tudo está nas mão de Deus, né? [...].

7. Tiana [...] Eu não quero fazer mais nada, porque as vistas não ajuda. [...] O que me interessa agora é só ir passear na casa deles, dos sobrinho. [...] Agora, minha filha, plano pra vida eu não... não espero é nada mais porque eu já estou no fim da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é esperar [...].

8. Zica [...] Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do meu filho. [...] O dia que o meu filho puder me levar, bem. O dia que ele não puder, fica, né? [...].

9. Doca [...] Eu tinha uma vontade de voltar pra casa da minha irmã! Porque família é família! [...] Ai, espero a hora que Deus leva dessa vida, né? [...].

10. Ina [...] Uai, não tem nada a fazer mais, não! Como é que faz? [...] Eu queria escolher a minha casinha, mas eu não posso morar sozinha. [...] Ah, mas um dia a minha sorte vai melhorar, né? [...].

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11. Ceci [...] Daqui em diante eu penso só em morrer. Só morrer. Eu não tenho vontade de nada, não! [...] Então quando ele vê que eu mereço desencarnar, ele vem, recolhe meu espírito, porque eu sou filha dele [...].

12. Iole [...] Pra mim... nenhum... não serve nenhum lugar. [...] Eu peço demais pra Deus ter misericórdia de mim, sabe? Me tirar eu desse mundo [...].

13. Lude [...] Não quero fazer nada porque agora eu não tenho possibilidade de fazer mais nada, né? [...] Depois de véia, já cansada. [...] Mas, ah, tenho planos de morrer, morrer! [...].

14. Irajá [...] Eu não faço nada, minha filha! E não espero nada. Eu sinto vontade é de morrer [...] pra livrar desse mundo pra não sofrer o tanto que eu estou sofrendo. [...] Eu queria ter minha casa, ter uma pessoa que me ajudasse [...].

15. Peri [...] Ah, eu não... não... não sei de nada, não sei o quê que vai acontecer comigo. [...] Gostaria que fosse uma coisa boa pra mim sair daqui porque meu irmão já quis me tirar daqui muitas vezes. Mas eu não quis sair, não! [...] Ele mexe com... está mexendo com chácara fora daqui. [...] Fico doente lá, como é que fica? É preciso ficar quieto aqui [...].

16. Aog [...] Se eu conseguir aposentar, aí eu não sei, não! Eu tenho idéia de sair daqui. E a gente ainda vai planejar o quê que vai ser, o quê que vai fazer, aonde vai morar. Às vezes nem não vai fazer nada também [...].

A expectativa de vida, para oito entrevistados (Miro, Ava, Doca, Ina, Zica, Irajá, Peri e

Aog) é a possibilidade de sair do abrigo para retomar contato com os familiares ou de realizar

algo em suas vidas.

As marcas discursivas da maioria dos entrevistados revelaram que estes não têm mais

expectativa com relação à vida futura, seja por afirmarem o desejo de morrer, seja o de

salientarem não ter mais nada a cumprir na vida.

Sendo assim, em dez entrevistados – Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Doca,

Iole, Lude e Irajá – a expectativa é de que a vida, tendo já completado seu ciclo, finde. Desse

modo, todos eles ressaltaram estar à espera da morte.

No caso das entrevistadas Suyá, Celeste, Aracê, Ceci, Doca e Iole, contudo, salienta-se

que a morte é uma decisão divina ou transcendente, ou seja, afirma-se a morte como

determinação e vontade de Deus ou como transcendência para outra vida.

Depreende-se, nos casos de Miro e Ina, que nada mais eles têm a realizar, em função

das limitações da saúde, como se a vida tivesse cumprido seu ciclo, sem, contudo, que eles

vinculem explicitamente tal termo à morte.

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O diálogo cotidiano com as divindades, a sacralização da morte e o “nada” como uma

expressão recorrente, indicam que o vazio apoderou-se de suas vidas.

Subcategoria 8.3: Expectativa de autonomia e independência

A categoria aqui estabelecida refere-se à expectativa de autonomia e independência

física para realização de atividades da vida diária.

Participantes Marcas discursivas

1. Suyá [...] Mas... eu não gostaria de ficar assim, igual os meus colegas, na cadeira de roda. Assim é triste, muito triste, né? [...].

2. Miro [...] Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço até demais! [...] A melhora é um tantinho assim que a gente nem não vê. Se melhorar um pouco assim eu já fico animado de fazer mais. [...] Espero fazer muita coisa ainda [...].

3. Celeste [...] Eu tomo remédio antes do armoço e depois na hora de deitar [...] Eu tenho uma vontade de sarar! [...] Eu tenho vontade de andar, né?, de ir nos lugar, porque [a perna] atrapalha um pouco pra andar, né? [...].

4. Aracê [...] Faço a lavagem, ajudo a fazer limpeza, ajudo a cozinheira cascar uma verdura e outra. [...] Gostaria de fazer uma coisa e outra, mas... aqui... a gente não... não dá conta de... trabalhar, fazer uma coisa e outra, o serviço daqui [...].

5. Lana [...] Eu peço a Deus que me dê força até a hora da morte pra mim ao meno andar, ir ao banheiro, tomar meu banho. [...] Gostaria de ter liberdade [...].

6. Ava [...] Ah!, lá em casa eu vou... vou... plantar minhas cebola, eu vou arranjar meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minha galinha... [...].

7. Tiana [...] Não penso em fazer mais nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como eu trabalhava [...].

8. Zica Não indica

9. Doca [...] Eu tomo o meu banho, né? Eu mesmo arrumo meu cabelo. [...] E Deus Senhor tenha piedade! Porque eu peço pra não ficar prostrada, pra não sacrificar mais a lutadora, né? [...].

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10. Ina [...] É eu que tomava conta da minha casinha. Eu que fazia comida. Tudo era eu que fazia. [...] Se eu pudesse consumir a minha vida, eu consumia. Eu ficava na minha casa, mas não posso [...].

11. Ceci Não indica

12. Iole [...] Eu tenho vontade de viver a minha vida e fazer as coisa! Mas não tem jeito não! [...].

13. Lude [...] Eu não tenho iniciativa pra nada mais. Não quero fazer mais nada. Depois disso pra cá, que a menina [filha adotiva] pegou o meu dinheiro, acabou! Pode dizer que eu morri e vivi outra vez [...].

14. Irajá Não indica

15. Peri [...] Eu tenho vontade de levar a vida... a vida normal. Normal é a que sempre tem: é estudar, é fazer uma coisa, fazer outra [...].

16. Aog [...] Quando eu sair, por exemplo, se eu conseguir isso, aí eu vou ser uma pessoa assim... eu vou ter mais liberdade, né? [...] Vou poder ir aonde eu quero, por exemplo, e participar mais das coisa, o qual eu não estou participando nada disso aqui [...].

Para a maior parte dos entrevistados, a marca de autonomia e independência é a

retomada de suas condições de vida anteriores ao asilamento, tendo em vista maior liberdade

na efetuação de escolha. Sendo assim, em sete entrevistados há uma forte associação entre

restrição da autonomia e o fato de estarem no abrigo entendido como limitante.

Suyá, Lana e Doca têm como expectativa a autonomia física que ainda possuem, ou

seja, esperam apenas manter as condições físicas necessárias que hoje apresentam para a

conservação da autonomia que as permite ainda cuidar de si mesmas.

Aracê realiza atividades no abrigo. Manifestou a expectativa de poder ter maior

liberdade de autonomia para o trabalho, visto que lá ocorram limitações de sua atividade

estabelecidas pelas restrições presentes no abrigo.

As entrevistadas Tiana e Lude possuem marcas negativas quanto à expectativa futura

de autonomia. A primeira faz associação entre expectativa e trabalho: como não mais há

possibilidade para trabalhar, por ela ter sido acometida pela doença, a expectativa se finda.

Lude justificou o desinteresse pela vida ou por qualquer atividade pelas atitudes desonestas da

filha adotiva. Esta a enganou, ao pegar sem o seu consentimento, todo o dinheiro da

aposentadoria.

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6 DISCUSSÃO

Tendo em vista as categorias temáticas referentes à vida pregressa e a experiência de

institucionalização, realizou-se análise dos temas recorrentes que desvelam o objeto da

investigação: representações sociais sobre instituição asilar e sentidos existenciais construídos

por idosos abrigados.

Internação

As causas da institucionalização estão diretamente associadas em suas representações

às limitações físicas. Associam-na também ao fato de, sem poderem viver só, não haver

alguém mais próximo com quem possam contar. Há, pois, na ida para o abrigo um sentido de

perda que se lhes afigura como impossibilidade de independência. É assim figurada como

dupla decorrência do processo de vida: a perda ou ausência de pessoas próximas; os limites

físicos.

O abrigo se configura, inicialmente, como uma região de exclusão de uma vida

anterior em que não mais se inserem em virtude das limitações físicas. Se se pode dizer que

econômica e socialmente eles ocupavam local pouco privilegiado na sociedade, a ruptura e

exclusão são nitidamente marcadas na ida para o abrigo, como se condensasse, tornando-o

manifesto, um processo já presente por estarem afastados do trabalho e da família, elementos

destacados por eles como de inserção social. Muito do que declaram como perda anterior,

inclusive, é realçado com o asilamento.

A doença ou decrepitude física ocasionada pela idade avançada são apresentadas por

todos os entrevistados como razão da ida para o abrigo. A maioria morava sozinha (Suyá,

Miro, Celeste, Ceci, Tiana, Ina, Iole, Irajá e Aog), mas salienta que, em razão de problemas

físicos, passou a depender de alguém. Irajá, por exemplo, já que usava cadeira de rodas,

contava com a cooperação diária dos vizinhos, visto que ela não se encontrava em condições

de cuidar de si mesma: [...] Eu estava andando na cadeira de roda. E eu não podia fazer uma

comida pra mim, eu não podia andar. [...] Precisava ficar pedindo os outro [...].

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Para Suyá, o fato de não ter a quem recorrer culminou na ida para o abrigo, visto não

mais conseguir cuidar de si própria, nem da irmã: [...] Eu vim pra cá porque eu estava muito

doente, né?, e eu tomava conta de uma irmã. Ela sofreu derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava

dando conta mais de cuidar dela [...].

Para os demais entrevistados (Aracê, Lana, Ava, Doca, Zica, Lude e Peri), embora eles

morassem com as suas famílias, as doenças fizeram com que se tornassem dependentes dos

cuidados dos seus familiares As entrevistadas Lana e Ava, em particular, relacionam a ida

para o abrigo aos maus-tratos sofridos por membros de suas famílias: [...] Me deu derrame. [...]

Quando eu chamava eles [filho e nora], eles vinha com a maior brutalidade, me sentando na parede,

que eu vomitava até sangue! [...] “– Meu filho, eu não agüento essa vida, não! Me leva pro asilo, pelo

amor de Deus!” [...] (Lana). Ava e Peri, além das próprias limitações físicas, justificam a ida

para o abrigo também em razão de doenças sofridas por quem deles cuidava: [...] A minha mãe

estava meia doente; então, meu irmão trouxe ela pra cá. Aí eles daqui viram que eu não tinha onde

ficar e deixaram eu ficar aqui com ela [...] (Peri).

O caso de Ava é assim emblemático. Ela morava sozinha, mas, por ter ficado doente,

mudou-se para a casa do filho. Ela permaneceu sob os seus cuidados até este adoecer. Além

disso, a sua decisão de ida para o abrigo ocorreu em função dos maus-tratos da neta e da nora:

[...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu adoeci.

[...] Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu derramo. [...] Se eu estava sentada num lugar, ela

[neta] ia lá e falava: “– Sai daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra hora eu levantava, ela vinha

lá, me dava coice, me dava cotovelada [...]. Pode-se aí perceber um conflito de gerações.

Depreende-se do que ela afirma como uma diferença de pensamento que sua idade e a doença

do filho retiravam-lhes força, em função de poder e autoridade, pois o conflito girava em

torno de quem mandava na casa e ordenava nas questões em disputa.

Minayo (1994) afirma, nessa perspectiva, que a violência é um fenômeno complexo e

dinâmico que se origina e desenvolve na vida em sociedade. Na configuração da violência,

portanto, relacionam-se problemas de diversas ordens, mesclando, entre outras coisas,

relações humanas e institucionais ao plano individual.

Percebe-se que as causas da institucionalização, para Aracê, Tiana e Zica, estão

relacionadas à impossibilidade de os familiares cuidarem delas pela ocupação diária exigida

por suas obrigações: [...] Eu fiquei doente e aí eu fui morar com uma sobrinha. Foi, ela precisava

trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. [...] Então aí ela... ela foi e me trouxe pra cá

[...] (Tiana).

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Observa-se, no caso das entrevistadas acima mencionadas, que os familiares de quem

elas dependiam eram do sexo feminino. Segundo Veras, Ramos e Kalache (1987), a maior

participação da mulher no mercado de trabalho implica, na família, na falta de alguém que

cuide do idoso em caso de doença ou de incapacidade física, pois tais funções são

culturalmente atribuídas à mulher.

A ida para o abrigo deve-se, em grande parte, à decisão do outro, seja este um familiar

ou não. Este aspecto pode ser verificado em onze entrevistados. Para os entrevistados Miro,

Tiana, Zica e Iole, a decisão decorreu dos sobrinhos. No caso de Celeste, do cunhado; para

Aracê e o Peri, dos irmãos; no caso da entrevistada Ava, a decisão partiu do filho; Ceci, de

conhecido; Ina, dos netos; Irajá, da coordenadora do abrigo mediante denúncia da

comunidade. Nota-se, em todos estes, a ausência de autonomia em conduzir suas próprias

vidas.

As entrevistadas Ceci e Iole não foram para o abrigo por decisão própria. No entanto,

assumem a ida para este local como modo de escapar da solidão. Embora permanecer lá lhes

cause descontentamento, afirmaram que não mais era possível morarem sozinhas em função

da solidão: [...] Minhas sobrinhas me trouxeram pra cá. É porque eu... a minha vida estava era muito

sozinha, sabe? [...] (Iole).

Lude aponta causas contraditórias da ida para o abrigo, haja vista a necessidade de

afastar-se dos motivos reais como meio de manter a sua integridade psíquica. Ela inicialmente

aponta o fato de a filha adotiva tê-la deixado naquele local. Posteriormente, afirma que

ocorreu por escolha própria, dado o desprezo e desrespeito dos familiares, já que passou a

residir, sem local fixo, na casa de diversos parentes. Ao deparar-se com uma situação de

abandono, ela se apega a mecanismos defensivos como meio de proteção psíquica: [...]

Infelizmente a menina que eu criei me deixou aqui. Eu é que pedi pra vir, né?, porque estava pra casa

de um parente, pra casa de outro, parecendo cachorro sem dono [...].

Suyá, Lana, Doca e Aog, por iniciativa própria, decidiram morar no abrigo por

julgarem não haver outra possibilidade. No caso de Doca, o conflito familiar impulsionou a

sua decisão: [...] Foi eu mesmo. Idéia minha de vir pra cá. [...] Não deu certo de ficar na casa da

minha irmã, eu vortei pr`aqui [...]. Em relação à entrada voluntária na instituição, Goffman

(1961, p. 25) afirma que “o novato parcialmente já se afastara de seu mundo doméstico; o que

é nitidamente cortado pela instituição é algo que já tinha começado a definhar”.

Veras (1988) declara que a mudança do modelo das famílias tradicionais para as

atuais, expressa pelo menor número de membros das famílias e pelo aumento do número de

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separações entre os casais, acarreta, como conseqüência para o idoso, a diminuição do auxílio

familiar, levando-o a morar sozinho ou com parentes distantes. Este aspecto pode ser

verificado nos entrevistados em questão, visto que as suas famílias de origem sejam

numerosas. Tais aspectos estão relacionados à solidão. Além disso, as limitações físicas

decorrentes da doença ou da idade avançada tornam-nos incapazes de cuidarem de si mesmos.

A falta de pessoas com quem possam contar agrega-se aos demais motivos como causa da

institucionalização.

Rezende (2001) afirma, ademais, que o mundo do capital e a absorção dos indivíduos

pelo trabalho, além da individualização progressiva, contribuem para um aumento da

institucionalização dos idosos, visto que estes dificilmente dispõem de suporte familiar. A

situação dos indivíduos que progressivamente perdem a autonomia e a independência,

chegando aos limites da miséria e do abandono, é agravada, nos países em desenvolvimento,

sobretudo pela falta de estrutura e apoio a eles dados. No caso presente, além da ausência, na

maior parte dos casos, do suporte de uma estrutura familiar, a impossibilidade de permanecer

no mundo do trabalho, bem como os valores financeiros pouco expressivos que recebem,

quando isso ocorre, acarretam a ida para o abrigo.

As instituições, por sua vez, constituem-se na resposta que a sociedade atual

desenvolve como mecanismo para lidar com tais problemas por ela mesma criados. Tais

instituições existem devido ao papel representado hoje pelo grande número de idosos na

sociedade; pela questão econômica, visto que muitas famílias não podem mantê-los em casa;

pela necessidade de evitar o abandono daqueles que não têm família. Os motivos pelos quais

ocorre a solicitação de vaga nos abrigos por parte das famílias, de outra parte, é a falta de

tempo ou de recursos para os cuidados com os idosos que mantêm grande dependência de

seus familiares para realização das atividades diárias. Assim sendo, os motivos determinantes

da internação de grande parte de idosos, em que pese a dependência física ou mental, é a

miséria e o abandono (ZIMERMAN, 2000). Nos casos presentes, os idosos figuram as perdas

familiares assim como a ausência de autonomia em decorrência da debilidade física como

determinantes para a institucionalização. O abandono dos familiares é figurado com nuanças,

ainda que se apresente. A miséria está ausente, embora, na maioria dos casos, seja ressaltada

por eles a precariedade econômica em que viviam antes da internação.

As instituições e suas representações

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Quinze entrevistados representam o abrigo como um local provedor. A entrevistada

Irajá é a única exceção. Relacionam-no, sobretudo, aos cuidados da saúde física. Desse modo,

é figurado como uma espécie de instituição hospitalar de mais longa permanência, dado o fato

de que não associem as limitações do corpo a um órgão específico cuja cura tenha prazo

delimitado para ocorrer. Em pesquisa sobre idosos, ressalta-se que os problemas de saúde não

são focalizados no mau funcionamento de um órgão ou sistema específico, mas em algo

inerente à totalidade do ser (ANDRADE, 2003). Este aspecto hospitalar do abrigo é assim

destacado mesmo por aqueles, como as entrevistadas Ceci e Iole, que não apresentam nenhum

problema de saúde.

Zica expressa claramente a sua percepção sobre o abrigo como um local de tratamento

da saúde, associando-o a “hospital”: [...] Aqui não falta nada. Tem médico, tem tudo, né?, no jeito.

[...] O tratamento aqui é bão demais! [...]. Ela, neste sentido, também afirma: [...] O menino [filho

da antiga patroa] não vem aqui, não. Ele não gosta de hospital [...].

Aog ainda mais fortemente estabelece esta relação. Sua representação, no entanto, traz

marcas a serem consideradas, pois dá uma conotação diversa à palavra que socialmente

designa negativamente a instituição para idosos: [...] O asilo é... é... dá apoio pras pessoas

doente, né? Para as pessoas idoso e doente, né? [...]. A figuração mescla a tal ponto sentidos

diferentes que passa a implicar hospital como local de reclusão: [...] Eu sentia muito ruim pelo

costume de... pelo fato de eu sair todo dia. E em asilo não pode sair, né? [...] Hoje eu praticamente

acostumei morar em asilo [...].

Outra figuração positivamente formulada por quase todos, com exceção de Irajá, é

que, por ancoragem, o abrigo se enquadra nas antigas estruturas mentais da infância

relacionadas à atenção e cuidado socialmente vinculados à família. Peri associa-o ao papel

que ele assume como provedor e cuidador ao papel cumprido por uma família. Destaca-se

assim a sobreposição entre o espaço familiar da infância: [...] Aqui é uma estadia da gente. É

um... é um... é uma coisa que a gente vem pra morar. Ficar. Tomo banho todo dia. Troca roupa limpa

todo dia. [...] Aqui nós recebemos cinco refeição por dia. [...] Praticamente aqui todos aqui são uma

família aqui dentro, né? [...].

Tal figuração do abrigo como provedor remete a outro aspecto importante relacionado

à infância: o sentido igualitário com quem simbolizam a vida em família encontra certa

ressonância no tratamento semelhante pelo qual são cuidados. Tal fato é vinculado a outra

característica destacada daquele período distante em suas vidas: a alimentação em comum.

Esta os faz iguais, como eram com os familiares, sem distinção e exclusão que socialmente os

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marcaram na vida anterior ao asilamento: [...] Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se

está doente, se sente uma dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente [...] (Ava).

Todos os entrevistados delineiam o abrigo, na terceira figuração digna de destaque,

como perda de autonomia, ocorrida antes da internação, com a conseqüente dependência de

outrem. Neste caso, realçam a ausência de alguém a quem possam recorrer. O abrigo é este

local acolhedor, figurado como “tábua de salvação” e último recurso daqueles que sem ele

encontrar-se-iam inteiramente sozinhos. Funciona, pois, como um local de inclusão de

pessoas socialmente excluídas e que se figuram como vitimizadas.

Para Iole, a separação conjugal foi percebida como uma primeira ruptura, pois o

marido a trocou por outra pessoa. Vivia só antes de ir para o abrigo, mas reclama da ida para

lá, pois isso parece explicitar outro rompimento e quebra de continuidade de seu lar, ao afastá-

la do espaço doméstico a que se apegara. A percepção do abrigo está, portanto, associada à

solidão e às perdas ocorridas em suas vidas como último refúgio: [...] Uai!, viveu... viveu uma

vida bobage. Viveu uma vida besteira purinha! [...] Uai, ele... [ex-marido] ele arrumou outra! [...] Ah,

eu não senti bem nada em vir pra cá não! [...] Se não tivesse me trazido eu estava lá. [...] Era minha

casinha. [...] E eu tomava conta de lá [...]. Lude conforma-se com o fato de morar no abrigo por

não haver outra possibilidade de escolha: [...] Aqui não é bom, não, mas o quê que vai fazer, né?

Eu porque estava... estava... pra casa de um, pra casa de outro, sem lugar [...].

Outra representação destacada pelos idosos do abrigo demarca-o como um local de

permanência provisória. Nove entrevistados (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Zica, Irajá, Peri e

Aog) percebem-no assim como um local de espera para o retorno ao lar; para a casa de algum

familiar; ou para retomar a vida anterior. Parece aqui ocorrer uma distorção28 do referente,

pois nenhum dos entrevistados, ou mesmo da maior parte dos idosos abrigados, deixa de viver

no abrigo. Há nesta configuração a marca de que a vida atual não lhes é satisfatória, pois se

contrapõe à estranheza do abrigo e da reunião circunstancial de pessoas que nele vivem ao

espaço privado e familiar, figurado como mais acolhedor. A instituição, mesmo que, por

ancoragem, passe a ter significados de acolhimento, não se lhes figura completamente como

um espaço doméstico, sempre para eles configurado como mais hospitaleiro: [...] Eu tinha uma

vontade de voltar pra casa da minha irmã! Porque família é família! [...] (Doca). Para as

28 Na distorção, segundo Jodelet (2001, p. 36), “todos os atributos do objeto representado estão presentes, porém, acentuados ou atenuados, de modo específico”. Dentre eles, há um mecanismo de inversão em que, exemplifica-se, “o dominado apresenta as características inversas às do dominante; assim, a imagem da criança autêntica é o reflexo invertido da imagem do adulto na sociedade”. Doravante, quando citado, tal conceito – assim como outros retirados da mesma autora que serão apontados – aparecerá em itálico.

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entrevistadas Ava e Zica, há muitos anos no abrigo, mesmo sem muita perspectiva de dele

sair, este se traça como um local de espera, visto que afirmem o desejo de retornar para as

suas casas29.

Os demais entrevistados (Suyá, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Iole e Lude), por sua vez,

percebem-no como um local permanente de moradia, visto não haver outra possibilidade de

escolha, aceitando a realidade que a elas se apresenta. O abrigo, por meio da ancoragem,

passa a significar, com as novas representações que se constroem a partir das antigas, um

novo lar. A entrevistada Tiana, inclusive, explicita satisfação por morar nele: [...] A escolha

acho que é essa que eu estou aqui agora. Uai, minha filha, é isso que eu escolho, né? É essa vida que

eu estou vivendo aqui é que eu esco... que eu escolho [...]. Excetuam-se apenas Iole e Lude, que,

ao negar qualquer valor à vida atual, conformam-se em apenas esperar a morte: [...] Não quero

fazer nada porque agora eu não tenho possibilidade de fazer mais nada, né? [...] Mas, ah, tenho

planos de morrer, morrer! [...] (Lude).

Para Celeste, além de a instituição ser representada como um local de acolhimento a

pessoas que estão sozinhas, e, portanto, não têm a quem recorrer, destaca-se, paradoxalmente,

tanto como um local de espera fim da vida, quanto explicita a expectativa de ela dele sair para

fazer o que deseja: [...] É a morte que eu estou esperando, né? E peço a mamãe todo dia pra ela vir

me buscar. [...] Aqui eles fala que a gente... Eles morre aqui, mas eles veve... vive lá no céu [...] Eu

tenho uma vontade de sarar! [...] Eu tenho vontade de andar, né?, de ir nos lugar, porque [a perna]

atrapalha um pouco pra andar, né? [...].

A sexta configuração (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Lude, Irajá e Aog) digna de

destaque ressalta, negativamente, o abrigo como um local de restrição da liberdade, visto que

impossibilite a efetuação de escolhas. Ele assim é visto como um local impeditivo. Nota-se,

em certos casos, que a percepção que se tem do abrigo é uma extensão da própria história de

vida, marcada por uma série de perdas que a foram destituindo de sentido. Embora Doca

considere o abrigo como um local sagrado, porque provedor, contraditoriamente afirma que

ele é restritivo, pois diminui a sua possibilidade de efetivar o que quer, destituindo-a de

direitos, pois permanentemente ela depende de alguém que, sobrecarregado, conforme afirma,

não pode realizar seus desejos: [...] Aqui, consagradamente, eu já conversei com eles tudo aqui, é

um sagrado lar. [...] E as funcionária têm que dar desconto porque não tem tudo na hora. [...] Mas

aqui eu não tenho direito de pedir nada! É muita coisa que a gente precisa e... e não tem [...].

29 Tal questão será retomada no tópico denominado Intramuros: a espera pelos familiares.

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Lana, contudo, ao contrário deles, percebe o abrigo como um local que propicia

liberdade, visto que ela o contraponha aos maus-tratos sofridos antes pela nora e pelo filho. O

abrigo, assim sendo, é visto como um local que, por propiciar cuidados, implica liberdade de

efetuar escolhas, ao contrário da violência que vivenciava em família: [...] E aqui, oh, eu vivo

bem: eu saí do inferno e caí no céu, né? [comparação da vida atual com o período em que morava com

o filho e a nora.] [...] Porque aqui, oh, a gente tem mais liberdade [...].

As entrevistadas Aracê, Lana, Zica e Lude também destacam a instituição como um

local de acolhimento e cuidados. No entanto, elas o percebem como um local para pessoas

inválidas e esclerosadas, ou seja, que não têm consciência do que fazem. O abrigo, desse

modo, é percebido como um local que não impõe restrição de acolhimento, pois abriga

pessoas com características físicas e mentais diversificadas: [...] Eu tenho muito desgosto daqui.

[...] Porque é muita gente falso, muita gente defeituoso [...]. (Zica). Para Zica e Lude, ademais, o

abrigo se mostra como um ambiente estranho, arriscado e até mesmo de perigo para a vida,

uma vez que abriga pessoas com diversas debilidades mentais: [...] Aqui tem uns doido que Deus

me livre! [...] Se eles entrar aqui o dia que eles está na onda de loucura neles, eles pode fazer

qualquer coisa com a gente, né? Pode machucar muito, pode me matar. E ainda sair matando uma

véia aí, oh! [...] (Lude). Tal imagem parece, contudo, realçar marcadamente diferenças: o

enunciador se postula saudável, por suplementação30, vítima de um companheiro estranho,

perigoso ou mentalmente deficiente. Nesse sentido, o abrigo nada tem de familiar, visto ser

tudo ali figurado como desconhecido, pois está desvinculado do tipo de vida que levavam,

seja em relação aos vínculos que mantinham e aos hábitos anteriormente criados, seja quanto

aos bens materiais que possuíam. Assim, elas o vêem como um local de não pertencimento,

visto que a vida pelo abrigo propiciada esteja desvinculada das suas histórias e estilos de vida

estabelecidos no período anterior ao ingresso na instituição. Este é mais um dos aspectos que

contribui para a “mortificação do eu”. Segundo Goffman (1961, p. 28-29):

[...] um conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande com o eu. [...] No entanto, ao ser admitido numa instituição, é muito provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e serviços com os quais a mantém, o que provoca desfiguração pessoal [...] A perda de um sentido de segurança pessoal é comum, e constitui um fundamento para angústias quanto aos desfiguramento.

30 Na suplementação, conforme aponta Jodelet (2001, p. 36), conferem-se “atributos e conotações que não lhe são próprias ao objeto representado, [...] um acréscimo de significações devido ao investimento do sujeito naquilo e a seu imaginário”.

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Irajá é uma exceção. Representa a instituição como um local restritivo, visto que não

atenda às necessidades básicas por ela apresentadas: o abrigo não cuida bem da sua saúde e

não propicia a atenção e cuidados que ela requer. Por outro lado, paradoxalmente, ela se

conforma por ser esta a sua única possibilidade de prosseguir com a vida, visto que se depare

com a impossibilidade de cuidar de si mesma em função das limitações da saúde: [...] Ah, eu

achei ruim de vir pra cá porque casa dos outros não vai não! [...] Você pede um remédio, não tem.

Pede outro, não dá. Pede outro, some. Pede uma coisa, não dá. [...] Mas o quê que eu vou fazer, né?

Eu, sozinha, como é que eu andava? [...].

Cabe ressaltar, acerca destas representações, que o idoso, ao ser abrigado, conforme

aponta Medeiros (1981), é separado de seus hábitos anteriores de vida, de pessoas a ele

significativas e de referenciais que o permitiam ter o seu próprio mundo. A vida no abrigo,

por sua vez, é limitada e muitas vezes se configura para os abrigados como impeditiva para o

idoso reconstruir seu próprio espaço, perdendo ele seus antigos referenciais e não criando

novos, tendo em vista a dinâmica da instituição. Desse modo, ele se perde no espaço do outro

e passa a fazer parte do abrigo apenas como mais um elemento, sem sentido, no meio de

tantos iguais.

Há um risco, pois, de o idoso não assumir sua vida na instituição por sentir-se

homogeneizado, tendo perdido suas características individuais. Sem reconstruir novas

significações, o idoso pode isolar-se da vida presente dando sentido a sua vida atual apenas

pelo passado:

[...] La reminiscencia es un mecanismo que ayuda a solucionar la crisis de identidad producida por el proceso de envejecimiento, ya que con ella el adulto mayor logra perpetuar su pasado en el presente. Una de las principales reminiscencias reportadas fue su añoranza por la situación del anciano en épocas pasadas, sobre todo lo relativo al respeto e importancia de la figura del anciano dentro de la familia y de la comunidad (FERNÁNDEZ; REYES, 1996).

Cumpre também destacar que, embora os abrigos sejam destinados ao acolhimento de

pessoas da terceira idade, apenas Suyá e Aog referiram-se a ele como um local de abrigo a

idosos. Curiosamente são estes os que têm neles maiores privilégios: Suyá mora na única casa

dentro da instituição; Aog foi viver lá sem ter 60 anos, idade na qual se encontra o marco

inicial que define o idoso.

Davim et al. (2004) afirmam que os abrigos geralmente são locais inapropriados e

inadequados às necessidades do idoso, visto que não lhes oferecem assistência social,

cuidados básicos de higiene e alimentação. Além disso, os abrigos dificultam as relações no

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contexto comunitário, indispensáveis à manutenção do idoso pela vida e pela construção de

sua cidadania. Os entrevistados, contudo, exceto Irajá, configuram positivamente os dois

abrigos em que vivem em relação a tais problemas. Cumpre destacar assim que tais abrigos,

por suas condições materiais oferecidas, não se enquadram numa definição de local não

propício em termos de saúde e alimentação.

Restrições e autonomia

O principal motivo que levou à institucionalização dos entrevistados foi a perda da

autonomia em função da limitação física. Na impossibilidade de cuidarem de si mesmos ou de

ter quem deles tratasse, o abrigo lhes oferece tais cuidados. Este, no entanto, reforça-lhes

limitações, pois cerceia ainda mais a vida com as restrições de mobilidade e as regras ali

impostas31. Tais figurações, contudo, são, em geral, bastante paradoxais, pois ora contrapõem

os limites presentes na instituição a uma antiga liberdade que almejam novamente obter; ora

figuram esta como perdida e o abrigo, mesmo com suas normas, é a melhor opção que pode

haver atualmente para eles.

A vida no abrigo, para Iole e Lude, figuram as restrições no abrigo como limitadoras e

não encontram mais razões que justifiquem suas vidas ali ou em outro lugar. Não há, pois, o

desejo de liberdade, mas apenas a constatação de que os limites da instituição encontram-se

em consonância com os de suas vidas: [...] Pra mim... nenhum... não serve nenhum lugar. Eu peço

demais pra Deus ter misericórdia de mim, sabe? Me tirar eu desse mundo [...] (Iole).

As entrevistadas Ceci e Tiana, ao também associar a condição atual como fim do seu

ciclo de vida, manifestam espera da morte. Não associam, contudo, isso às limitações trazidas

pelo asilamento, mas como resultado dos limites impostos pela própria vida ou pela doença:

[...] Daqui em diante eu penso só em morrer. Só morrer. Eu não tenho vontade de nada, não! [...]

Então quando ele vê que eu mereço desencarnar, ele vem, recolhe meu espírito, porque eu sou filha

dele [...] (Ceci).

Suyá e Miro configuram a limitação apenas à doença. A instituição é positiva por lhes

ajudar neste momento: ou a melhorar; ou propiciar tudo que necessitam para viver em suas

atuais condições de saúde. Miro, nesse sentido, afirma: [...] Eu acho que não espero nada mais, 31 Tal questão foi tratada no tópico Institucionalização do idoso na Introdução.

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não! Derrame é duro de sarar. [...] Eu nunca ouvi falar em derrame sarar [...]. Suyá, inclusive, é

um caso à parte, pois, como se viu, gozou de completa liberdade de ir e vir até não poder

mais, em virtude de sua condição física, se locomover sem riscos.

Celeste, Doca, Ina e Aog apontam certas restrições no abrigo e manifestam

insatisfação em ali estar. Todos os quatro, no entanto, dizem que lá estão porque não há outra

solução. Paradoxalmente, contudo, figuram mais fortemente do que os entrevistados

anteriores o desejo de autonomia ao expressar a vontade manifesta de retornarem para uma

maior liberdade configurada para eles na vida externa do abrigo. Pretendem, assim, dele sair e

reviver no futuro esta independência que crêem ter tido no passado. A fala de Aog

exemplifica tal aspecto: [...] Quando eu sair, por exemplo, se eu conseguir isso, aí eu vou ser uma

pessoa assim... eu vou ter mais liberdade, né? [...] Vou poder ir aonde eu quero, por exemplo, e

participar mais das coisa, o qual eu não estou participando nada disso aqui [...]. Além disso, a

entrevistada Doca, como já se viu, configura as restrições por não ter quando deseja as coisas

que quer.

Os entrevistados Ava, Zica e Peri representam a vida institucionalizada como

vinculada a restrições. Explicitam assim o desejo de retomar uma antiga autonomia figurada

por eles no fato de poder voltar a viver fora do abrigo. No entanto, embora destaquem os

limites que os cercam ali, delineiam como positiva a permanência na instituição, não se

furtando a participar de atividades ou de querer realizar algo lá dentro. A fala de Peri confirma

tal afirmação: [...] Eu tenho vontade de levar a vida... a vida normal. Normal é a que sempre tem: é

estudar, é fazer uma coisa, fazer outra [...]. A entrevistada Lana, além de considerar boa a vida

no abrigo, manifesta o desejo de maior liberdade, sem, contudo, expressá-la em comparação

com a vida anterior ao asilamento.

A instituição asilar, no entanto, não deveria ser assim figurada; com efeito, mesmo

com as restrições a ela inerentes, seria preciso que nela sobressaísse o bem-estar do idoso:

[...] Muitos idosos encaram o processo de institucionalização como perda de liberdade, abandono pelos filhos, aproximação da morte, além da ansiedade quanto à condução do tratamento pelos funcionários. Tem de se levar em conta que o abrigo cumpre o papel de acolhimento ao idoso excluído da sociedade e da família, abandonado e sem um lar fixo, podendo se tornar o único ponto de referência para uma vida e um envelhecimento dignos (FREIRE JÚNIOR; TAVARES, 2004/2005, p. 152).

Dever-se-ia, pois, mesmo com restrições inelutáveis, estimular a busca de autonomia

dos abrigados, pois o bem-estar na instituição parece estar associado à possibilidade de

escolha do que se deseja realizar. Poder escolher é algo, inclusive, assimilável à cidadania, o

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que, além do bem-estar físico e imediato, pode acarretar, a longo prazo, a percepção de que a

autonomia propicia a todo idoso o sentido de inclusão social de que ele parece carecer:

[...] Na etapa da velhice, é comum observarmos que as pessoas que cercam o idoso freqüentemente têm atitudes que contribuem para que ele vá perdendo a sua autonomia. Uma das piores formas de exclusão do idoso é seu isolamento em casa ou seu asilamento e na maioria das vezes a família, seguida pela sociedade e o Estado, aparece como responsável pela maior expropriação da autonomia do idoso (BRAGA, 2001, p. 4).

No abrigo, figura-se uma busca incessante de situações que propiciem a realização de

escolhas. Tal marca se nota, sobretudo, quando os entrevistados destacam as tarefas que

executam. O desejo de melhora do estado de saúde é freqüentemente apontado como meio de

readquirir autonomia. Mesmo em pequenos detalhes nota-se o cuidado deles em destacar a

importância da autonomia, seja nos cuidados físicos para não depender de alguém; seja pela

ausência de coisas que tinham e que não são, por alguma ancoragem, ressignificadas. O valor

de trabalho, por exemplo, não é substituído.

Suyá, Lana e Doca apontam os cuidados para consigo mesmas como a maneira de não

se tornarem dependentes dos cuidados de um outro. Figuram o que querem pelo que evitam:

tornarem-se dependentes como alguns companheiros de abrigo. Isto se verifica no depoimento

de Suyá: [...] Mas... eu não gostaria de ficar assim, igual os meus colegas, na cadeira de roda. Assim

é triste, muito triste, né? [...]. Miro também relaciona autonomia aos cuidados físicos. Pratica,

assim, exercícios de fisioterapia para obter autonomia. Seu escopo, no entanto, é poder sair do

abrigo: [...] Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço até demais! [...] Espero fazer muita coisa

ainda. [...] Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? [...].

Ava, Ina, Iole e Aog negam o presente pelo destaque da figuração do passado ou da

melhora futura. O trabalho, em alguns casos, só é incluso na afirmação deles ao retorno ao lar,

como se a volta à casa recuperasse o sentido existencial, sobretudo pelo espaço de autonomia

e identidade, expressos, no caso de Ava, nos pronomes possessivos que lhe asseguram pelo

retorno ao passado o sentido do presente: [...] Ah!, lá em casa eu vou... vou... plantar minhas

cebola, eu vou arranjar meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minhas galinha... [...]. A

autonomia, no entanto, é por eles representada como algo vislumbrado apenas mentalmente.

Seis entrevistados (Aracê, Lana, Ava, Tiana, Doca e Peri) destacam que a autonomia e

independência obtêm-se pelo trabalho. O trabalho, assim sendo, propicia significado à vida.

Nota-se, pois, nesta representação a contraposição do sentido inclusivo pelo qual figuram o

trabalho antes da internação. Como não mais conseguem trabalhar, em função das limitações

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impostas pela doença, a autonomia lhes parece negada. Para Tiana, por exemplo, a vida deve

se moldar em conformidade com uma certa exigência social, isto é, uma pessoa só adquire

valor se trabalhar e produzir. Sendo assim, ela delineia a falta de expectativa na vida pela

impossibilidade de exercer, em função da doença, algum tipo de trabalho: [...] Não penso em

fazer mais nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como eu trabalhava [...].

Lude responsabiliza um outro pela perda de autonomia. Atribui assim às atitudes da

filha, que pegara todo o dinheiro de sua aposentadoria, o desinteresse pela vida: [...] Eu não

tenho iniciativa pra nada mais. Não quero fazer mais nada. Depois disso pra cá, que a menina [filha

adotiva] pegou o meu dinheiro, acabou! Pode dizer que eu morri e vivi outra vez [...].

Convivendo na instituição

A convivência no abrigo de idosos implica uma série de questões de difícil contorno;

com efeito, agregam-se pessoas com diferentes históricos de vida que estão ou se figuram

impossibilitadas de tomar suas próprias decisões. Há, pois, evidente ruptura com o passado

para, talvez permanentemente, viver uma vida institucional que rompe com o que passa a ser

um espaço exterior, mas no qual, até então, habitavam. Além deste convívio mútuo entre os

internos, numa ao menos aparente situação de iguais, estão também presentes os funcionários

que lá trabalham (GOFFMAN, 1961). Cria-se com isso uma situação hierárquica que implica

maior dificuldade nas relações:

[...] As instituições, por serem praticamente formadas só por velhos, com exceção das pessoas que lá trabalham, criam uma situação muito diferente da que existe no mundo real. Com o tempo, o velho perde contato com crianças e com pessoas do sexo oposto. As instituições não são pensadas como um lugar para onde as pessoas vão para uma temporada de longa duração (ZIMERMAN, 2000, p. 97).

Os relacionamentos entre si e com os funcionários do abrigo são mencionados por dez

entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Aracê, Lana, Ava, Tiana, Zica, Peri e Aog). Cinco (Ceci,

Doca, Ina, Iole e Lude) ressaltam apenas sua convivência com os colegas abrigados. Irajá

destaca apenas o seu convívio com os funcionários do abrigo.

A maioria dos entrevistados mantém pouco contato entre si, com exceção de Tiana,

Doca e Zica que se mostram próximas umas das outras.

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Embora haja pouco contato, sete entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Lana, Ava, Tiana

e Peri) apontam como satisfatória a convivência em relação aos colegas abrigados,

respeitando as diferenças existentes entre eles. Essa disponibilidade apresentada por eles

parece, contudo, querer destacar que são pessoas de fácil convivência. Tal figuração parece

estar relacionada com o fato de que há, nas instituições, maiores gratificações quando os

internos apresentam comportamentos maleáveis (GOFFMAN, 1961).

Aracê, Zica, Iole, Lude e Aog não aceitam o comportamento de alguns colegas. Ao se

indisporem com determinadas atitudes, figuram não compreender nem aceitar algo

fundamental nas instituições: as diferenças ali presentes. Desse modo, preferem isolar-se: [...]

[...] É muito bão a minha convivência aqui. [...] Não!, quer dizer: têm umas pessoas que eu nem não

converso. [...] Inclusive eu até saí da mesa [para fazer as refeições] por causa disso [...] Agora eu

sento num cantinho que tem lá, mas fora da mesa, já pra evitar confusão, né? [...] (Aog).

Tais entrevistados, apesar de apresentarem doenças, crêem que, no tocante ao aspecto

mental, se mantenham saudáveis. Tal fato lhes estabelece diferenças intransponíveis, pois daí

decorre que efetuem uma discriminação baseada na avaliação que fazem da sanidade dos

outros abrigados: [...] As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, tem umas aqui que não vai, não! É

tudo doido. [...] Não compensa conversar, não! [...] (Zica). Observa-se o aspecto mental como

parâmetro de comparação e aceitação ou segregação do outro. Baseados em tais diferenças,

representam-se positivamente, sugerindo uma supremacia em relação aos demais. Parece aqui

ocorrer o efeito da suplementação; com efeito, há aqui:

[...] uma tendência a projetar em outra pessoa traços que se possui, sobretudo se acreditarmos que esses traços são avaliados desfavoravelmente; a projeção sobre outro serve para restaurar a auto-estima, uma representação do outro conforme a si mesmo valoriza sua própria imagem, construída a partir de grupos de referência (JODELET, 2001, p. 36).

Ceci, Ina e Iole configuram como conflituoso o pouco contato que estabelecem com os

colegas. Ceci aborrece-se com eles por terem expectativas futuras. Além disso, sente-se,

porque é do bem, ameaçada pelos outros: [...] Eu aqui eu sou muito perseguida porque eu sou

filha de Jesus. [...] Aqui é bom-dia e boa-tarde que eu dou. Não fico de xodó fazendo rodinha na beira

da cadeira de ninguém, não, porque elas gostam de ilusão e eu não gosto [...]. Ressalta-se outra vez

a diferença. Neste caso, acentuada por elo divino. Há aqui um acento da diferença que

preserva o ego de uma possível padronização institucional, evitando sua mutilação

(GOFFMAN, 1961).

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Duas entrevistadas, Celeste e Lana, apresentam conflito com funcionários, visto que

estes ajam de modo que as contrarie. Elas parecem não aceitar as restrições impostas pela vida

na instituição. Os funcionários, contra os quais se rebelam, possivelmente representa para elas

tais limites: [...] Aqui tem uma enfermeira que implicou comigo. [...] porque essas pessoa muito

fraca, principalmente essa [idosa abrigada] que passa aqui sempre, é muito agarrada comigo. [...] E

ela [enfermeira], enciumando, diz que eu não sou enfermeira, não posso cuidar, nem nada [...]

(Lana).

Irajá reclama dos funcionários, mas parece não entrar em conflito com eles. Afirma

não ser atendida e crê, com relação aos demais abrigados, que lhe é dada pouca atenção.

Figura assim uma carência que parece estender no abrigo a desconsideração social de que se

sentia vítima antes de nele ingressar: [...] Eu não converso com as enfermeira não! [...] Elas não

conversa. [...] Quando acaba de doar a janta, elas fica doida! Deita a... as de cadeira de roda, fala

com elas, deita tudo e vem, apronta e vai embora [...].

Tais aspectos condizem com o que afirma Goffman (1961, p. 18-19) sobre as relações

estabelecidas entre os internos e os funcionários das instituições totais:

[...] Geralmente, os internados vivem na instituição e têm contato restrito com o mundo existente fora de suas paredes. A equipe dirigente muitas vezes trabalha num sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo externo. Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos limitados e hostis - a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas vezes vêem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos. Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos; os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados.

Para os demais entrevistados, em contraste com a afirmação acima descrita, há

evidência de bom relacionamento com os funcionários. Estes, por serem considerados

superiores e serem de quem se dependa, são em geral respeitados em toda instituição [...] Eu

gosto muito deles daqui. [...] Só tenho que gabar, porque são todos muito bão. Trata a gente muito

bem! [...] (Tiana).

Nota-se que a convivência no abrigo, de modo geral, é delicada, pois o convívio diário

entre as pessoas, que anteriormente não se conheciam, é ali estabelecido pela primeira vez.

Não há, pois, possibilidade na escolha dos relacionamentos, visto que se torna obrigatória a

convivência mútua. Goffman (1961, p. 31), nesse sentido, afirma:

[...] Nas instituições totais há outra forma de mortificação; a partir da admissão, ocorre uma espécie de exposição contaminadora. No mundo externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos

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do eu - por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e alguns de seus bens - fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras. No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e as encarnações do eu são profanadas.

Percebe-se que grande parte dos problemas que emergem da convivência nas

instituições está ligada aos relacionamentos que são estabelecidos naqueles locais. Assim

sendo, é importante, segundo afirmações de Zimerman (2000), que os idosos saibam lidar

com as diferenças que, porventura, possam existir entre eles, sobretudo no que refere às

diferenças sociais, econômicas, culturais, religiosas e de temperamento. Além disso, eles

podem se deparar com alguns idosos que aceitam estar na instituição, bem como com outros

que comumente se queixam e mostram-se, com freqüência, doentes e deprimidos.

A família longínqua

O distanciamento dos familiares, conforme explicitado pelos entrevistados Suyá, Miro,

Ceci, Irajá, Peri e Aog, ocorreu no período anterior ao ingresso deles no abrigo, por serem

frágeis os vínculos afetivos. Para os demais, com exceção de Lana e Ava, esse distanciamento

se intensificou após o ingresso na instituição. Estas duas entrevistadas, embora mencionem o

distanciamento de alguns dos familiares, apontam a permanência de contato freqüente com

outros. De modo geral, o distanciamento familiar é representado como uma fragmentação da

estrutura familiar ocorrida depois da infância. A dispersão daí decorrente enfraqueceu

vínculos. A ida para o abrigo, no entanto, marca, indelével, a consumação da separação, pois

lhes configura o afastamento.

O falecimento da mãe, para Suyá, é apontado como a causa da separação dos filhos

desde sua infância. Embora ela aponte tal distanciamento, este hoje não se verifica em relação

a outros parentes, tendo em vista o recebimento no abrigo de visitas freqüentes de sobrinhas e

primas: [...] Depois é que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou. Separou tudo os

irmãos. Cada um foi pra um lugar, né? [...]. Miro apresenta o distanciamento da filha como algo

que ocorrera ao longo dos anos, a partir da falta de contato e da não criação de vínculos

estreitos. Justifica que isto atualmente não pode ocorrer pelo fato de ela ser casada e ter

responsabilidades como mãe e esposa. Demonstra ser assim tênue o vínculo entre eles

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estabelecido, fazendo que ela não o visite no abrigo: [...] Não tenho notícia nenhuma da minha

filha. Já está desligado há muitos anos já. [...] Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica

custoso [...].

Ceci indica que ela e os irmãos sempre mantiveram distantes uns dos outros.

Atualmente seus irmãos moram em outro estado, pois mudaram-se para tal local à procura de

melhor emprego. Eles não mantêm contato entre si e ela afirma que, mesmo quando moravam

na mesma cidade, não se interessavam por ter notícias dela: [...] Quando nós morava na mesma

cidade, eles [irmãos] não ligava pra mim. [...] Meus irmão ficou homem e foi embora pra Bahia. [...]

Eu não tenho contato com eles [...].

A vida de Irajá foi marcada por diversas perdas e ela revela que atualmente tem apenas

uma sobrinha viva. Esta não manifesta interesse por ela, tão pouco a conhece; por isso, ela

parece desdenhar da sobrinha, ao desmerecê-la: [...] Eu tenho sobrinha, mas não vale nada com

ninguém não! Nem me conhece! [...].

Peri e Aog, ao contrário desta, indicam a existência de familiares de grau de

parentesco próximo, embora mencionem distanciamento entre eles. Peri afirma desconhecer o

motivo de tal distanciamento: [...] Eu tenho irmão espalhado aqui e em um monte de lugar. É tudo

meio afastado da gente. [...] Não sei porquê que afastaram [...]; Aog, embora diga que mantenha

contato com as irmãs, revela, de modo contraditório, que eles não se encontram há vários anos

justificando o distanciamento pelo desinteresse delas em visitá-lo, bem como pela

impossibilidade de ele visitá-las: [...] Já tem uns vinte ano que eu não vejo essa irmã minha que

mora fora. Ela não vem cá e eu também não tenho condições de ir lá, né? [...] Da irmã que mora aqui

eu tenho notícia. [...] Mas deve ter mais de ano que eu nem lá [local onde ela mora e trabalha] eu não

vou. [...] Visitar aqui ela nunca veio [...].

A ida para o abrigo, para oito entrevistados (Celeste, Aracê, Doca, Ina, Zica, Iole e

Lude), determinou um maior distanciamento entre eles e seus familiares.

Percebe-se que o distanciamento dos familiares é justificado por fatores externos que

independam dos seus atos e comportamentos. Nove entrevistados (Miro, Celeste, Aracê, Ava,

Tiana, Doca, Ina, Zica e Aog) assim o representam. Há aqui uma espécie de mecanismo

defensivo, evitando se depararem com sentimentos decorrentes da solidão que os assolam e

não se responsabilizando por isso. No entanto, no caso de Lude, tal fato não ocorre. Ao

contrário, por considerar os familiares causa de suas mazelas, manifesta desejo de distância

deles, como se, ante a possibilidade de ser desdenhada, ressaltasse o seu desprezo, a fim de

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que pelo ataque se tenha a melhor defesa: [...] E, tirando ela [filha adotiva], só uma sobrinha que

vem aqui muito de vez em quando. [...] Mas eu não faço muita questão não! [...].

Celeste, Aracê, Tiana, Doca, Ina e Zica apegam-se ao trabalho dos familiares e a falta

de tempo ou impossibilidade deles como justificativas do distanciamento, sendo relegados a

segundo plano.

Tiana apresenta o trabalho como justificativa dada por seus próprios familiares sobre o

distanciamento deles. Por outro lado, diferentemente dos demais entrevistados, mostra-se

ciente, enfrentando a realidade tal como a apresenta, de que tal distanciamento possa ocorrer

em virtude de desinteresse dos mesmos por visitá-la. Isto é expresso em sua fala e reiterado

pelos risos ao longo da entrevista. Estes parecem atuar como meio de enfrentamento das dores

com as quais depara, conforme se verifica na anotação do diário de campo sobre o significado

deste comportamento: [...] De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito. Três,

quatro mês, cinco, seis. [...] Eles falam que está apertado por causa do serviço; que não tem tempo;

que não sei o quê. [...] Mas... não sei se é isso, não! Eu acho que é porque não quer vir [...].

Os entrevistados Ava, Doca, Iole e Peri justificam o distanciamento de certos

familiares, alegando desconhecimento dos motivos por que isso ocorre: [...] Ah!, os meus irmão

nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei porquê não! [...] (Ava). Ina, em particular,

apenas menciona o distanciamento dos irmãos, sem apresentar justificativa de tal fato: [...]

Tenho um irmão aí que mora na mesma rua daqui, mas não vem cá de jeito nenhum! [...].

Nota-se que alguns entrevistados apresentam maior empenho em revelar causas para certos

parentes, talvez mais próximos, sem mencionar as de outros.

Observa-se que, com a ida para o abrigo, os laços familiares tendem a se atenuar, seja

em função da legitimação da separação e da distância física estabelecida entre eles e seus

familiares, ou pelo próprio afastamento que é decorrente de certo descaso da parte destes,

justificado pelos idosos por motivos externos, como trabalho e falta de tempo.

Morar no abrigo, portanto, implica em uma certa ruptura com o meio social. O

distanciamento dos familiares, após o período de ingresso no abrigo, parece reforçar a sua

imagem como um local de segregação, seja em relação ao mundo externo propriamente dito,

seja à continuidade dos tênues vínculos que lá mantinham.

Intramuros: a espera pelos familiares

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Parece haver por parte dos idosos abrigados dois efeitos sobre os conteúdos

representativos da infância. Por subtração32, eles figuram-na suprimindo atributos que

possivelmente nela estiveram presentes. Sendo assim, nada se fala sobre os possíveis castigos

corporais que os pais costumavam aplicar aos filhos; por suplementação, conferem-lhe

atributos que lhe acrescem significação. É “devido ao investimento do sujeito naquilo e a seu

imaginário” (JODELET, 2001, p. 36) que eles contrapõem, na maior parte negativamente, a

pouca presença dos familiares no abrigo, desejando-lhes visitas, mesmo que apenas

esporádicas; positivamente, contudo, a maioria tem neles sua principal expectativa futura: a

saída do abrigo para morar com algum familiar.

Quase todos os entrevistados têm a expectativa de ter maior aproximação dos

familiares, mantendo contato, ainda que pouco, por meio de visitas dos membros de suas

famílias ao abrigo. Iole e Irajá, contudo, são exceções por não manifestarem expresso desejo

de que isso ocorra.

As entrevistadas Aracê, Lana e Tiana figuram a instituição como única realidade em

que podem viver. Mencionam, com relação aos familiares, apenas que gostariam de recebê-

los no abrigo, ou, como afirmam as entrevistadas Lana e Tiana, de elas esporadicamente

visitá-los. Nota-se que Tiana representa a questão como desejo que dela não depende, visto

que nada possa fazer quanto ao interesse dos familiares por ela: [...] Eu queria que os meus

parentes viessem ao menos uma vez no mês. [...] Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? [...].

Ina tanto ressalta o desejo de receber visitas dos familiares, quanto manifesta vontade de ser

cuidada por eles: [...] Os neto não pode zelar de mim. Mas bem que podia. [...] Mas, ah, eu queria

que eles viesse aqui, que a minha irmã viesse aqui, né? [...].

Ressalta-se, em relação às entrevistadas Ava, Doca, Ina, Zica e Lude, que elas têm

como expectativa serem cuidadas por seus familiares. Acentua-se, por distorção, o referente:

a família é vista como meio no qual deveriam viver. Tal figuração, contudo, é por elas

mesmas refigurado, já que, em outro momento, explicitam, justificando os familiares, a

impossibilidade de serem por eles cuidadas.

A expectativa que Ava e Zica têm das suas famílias está associada à possibilidade de

seus filhos poderem cuidar delas ante suas manifestas vontades de retornar para casa. A

entrevistada Ava depende da melhora do estado de saúde do filho que sofrera “derrame

cerebral”: [...] Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou embora. [...]

32 A subtração, segundo Jodelet (2001, p. 37), “corresponde à supressão de atributos pertencentes ao objeto: na maior parte dos casos resulta do efeito repressivo das normas sociais”.

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Meu filho falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou

arrumar lá pra nós ir embora e vou levar a senhora [...]; Zica, por sua vez, depende da mudança

de trabalho do filho, visto que, embora para ela o filho queira, não pode fazê-lo por morar

num local distante da cidade: [...] Vou ficando aqui até esperar o meu fio. [...] Ele só farta poder

me zelar [...] Enquanto ele estiver morando na chácara não tem jeito também não. A hora que ele vir

pra cidade, aí é bom, né? [...]. Percebe-se, porém, que esse período de espera, que compreende

o tempo em que elas se encontram no abrigo, resulte, conforme se verifica em seus

prontuários, em pouco mais de dois anos para Ava; para Zica, em quase 6 anos. Há, portanto,

como meio de enfrentar a realidade, a expectativa como espera, a fim de amenizar a situação

presente ao se depararem com a possibilidade de não ser concretizado o que elas tanto

almejam. Pode-se dizer, além disso, que o bem-estar delas depende do outro e a condição

atual parece se resumir nesta expectativa.

Suyá, Miro, Celeste, Tiana, Peri e Aog apontam a antiga estrutura familiar da infância

como expectativa futura, por suplementação, idealmente imaginada como passível de

novamente ocorrer com os parentes que ainda permanecem vivos.

Suyá aponta o desejo de a família estar unida para que pudesse experienciar, de modo

idealizado, o funcionamento efetivo da antiga família, com todos os seus membros – pais e

filhos –, cada qual reocupando os lugares devidos e exercendo suas funções no meio familiar.

Desse modo, ao referir-se sobre a importância de uma família, declara que gostaria de ter

experienciado uma efetiva relação familiar, com a condição de ter sido criada sem que se

separasse dos irmãos. Como se encontra satisfeita com o abrigo, figura no passado algo que,

inclusive, evita no presente visto constate a impossibilidade de efetivação: [...] Eu queria assim

que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado, né?, e que tivesse tido um lar mesmo, né? [...]

Acho triste, né?, triste da família ter esparramado [...].

Miro aponta o desejo de ter contato com a filha, com quem, desde a infância desta,

mantivera-se distante e ausente. Como já perdeu a mulher e o filho do segundo casamento,

parece, pois, dadas tais adversidades, querer recompor o antigo vínculo familiar da infância

dele com os pais. A filha distante lhe aparece, assim, como último elo desta possibilidade: [...]

Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! [...] Ela veio uma vez lá na cidade

que eu morava. Só essa vez. Acabou! [...].

Algo semelhante é representado por Peri e Aog. Ao manifestarem que a convivência

familiar é responsável pela integração de membros de uma família, miram uma condição

passada que, em relação aos irmãos, gostariam que ocorresse em suas vidas. Aog, inclusive,

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explicita a reunião familiar como uma “festa”, montando, assim, um cenário cuja figuração

discursiva aponta para este horizonte da infância entendido como um momento privilegiado

de suas vidas: [...] É a comunicação, é a convivência, né?, que importa da família. [...] Pra mim o

importante é isso porque tem várias família que não tem nem boa convivência [...].

Há, no entanto, quem configure a relação familiar pela perspectiva material. As

entrevistadas Celeste e Lude expressam desejo manifesto de receber ajuda financeira dos

familiares. Os afetos são aqui associados a bens. Já que parecem não poder, por desinteresse

dos familiares, receber-lhes afeto, o dinheiro serve como prova de atenção e cuidado. Além

disso, elas parecem fazer uma comparação entre elas e seus familiares, visto que eles muito

têm e elas nada possuem. Para Celeste, a desigualdade atual configura-se, invertida e injusta,

contrária à proximidade da infância: [...] Eu espero da minha família que eles me dá um pouco de

dinheiro pra comprar os trem que eu quero, né?, mas ninguém não me dá nem um tostão! [...]. Ava

ressalta ganhos materiais dos filhos, mas destaca-os como prova de cuidado deles para com

ela: [...] Ele [filho mais novo] tirou um terreninho pra mim e fez a casa pra mim. [...] Graças a Deus,

o meu filho não é ruim pra mim. O que mora em São Paulo sempre vem aí, traz roupa pra mim, traz

roupa de cama, traz roupa pra vestir. Tudo ele compra [...].

Tal é também a perspectiva da entrevistada Ceci. Os bens materiais que os parentes

possuem justificam o desinteresse dela, que não os possui, por eles; com efeito, considera-os

“metidos” e afirma não querer contato com os mesmos. O quadro é semelhante ao das

entrevistadas Celeste e Lude. Aqui, contudo, nota-se uma hostilidade mais acentuada. Ceci,

por distorção, ao não se permitir entrar em contato com referentes que possam lhe mostrar a

realidade marcada por abandono e solidão, modifica os significados, como meio de preservar

intactos os seus núcleos psíquicos, do que possa ser apenas desinteresse dos familiares em

relação a ela: [...] Eu tenho uns parente aqui, mas eu não gosto deles, não, porque eles é metido a

rico. Eles é rico. [...] Eu não interesso por notícia deles não! Eu não dou confiança pra eles não! [...].

Há, pois, por parte de praticamente todos os entrevistados, uma marcada diferenciação

entre a vida familiar e o contraste desta com a instituição. Goffman (1961, p. 22), nesse

sentido, afirma:

[...] As instituições totais são também incompatíveis com outro elemento decisivo da nossa sociedade - a família. A vida familial é às vezes contrastada com a vida solitária, mas, na realidade, um contraste mais adequado poderia ser feito com a vida em grupo, pois aqueles que comem e dormem no trabalho, com um grupo de companheiros de serviço, dificilmente podem manter uma existência doméstica significativa.

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Como, porém, seus laços familiares antes e durante a vida no abrigo são tênues, eles

lançam a comparação para a infância, momento em que percebem a família em seus vínculos

e elos fortalecidos.

Convivendo com o lado de lá

A maioria dos entrevistados, com exceção de Ceci, Irajá e Aog, recebem visitas dos

familiares. Dentre eles, somente Suyá, Lana e Ava mantêm contato freqüente com alguns

deles: [...] Recebo visita do meu menino toda semana. [...] Recebo da minha prima que mora ali. [...]

Vem aqui uma cumade minha. Vem a minha sobrinha. [...] Sempre elas vêm aqui [...] (Ava). Para os

demais, elas são esporádicas, num espaço de quinze dias ou, o que geralmente ocorre, mais.

Estas são assim marcadas pelos entrevistados: [...] De vez em quando uns dos meus sobrinhos vêm

aqui. Minha irmã e meu cunhado vêm aqui de vez em quando. Quando eles pode vir, eles vêm [...]

(Celeste).

Nota-se, pois, o prosseguimento de um processo de ruptura com a família já ressaltado

na dinâmica. Acentua-se, contudo, tal corte pelo isolamento e distância que o abrigo lhes

parece representar. Além disso, é possível se entrever que os entrevistados percebem mais

claramente a separação dos familiares com a situação que lhes leva ao abrigo. O fato de que

nenhum familiar os assuma neste momento configura-se mais evidente.

Oito entrevistados (Suyá, Miro, Aracê, Lana, Tiana, Doca, Ina e Aog) demonstram

receber muitas visitas da comunidade, ou seja, de pessoas com quem eles, em grande parte,

não mantêm vínculo efetivo e, muito menos, afetivo. Deste aspecto, aliás, pouco se fala em

geral. Parece que eles criam – ou criaram por suas relações ao longo da vida – uma defesa de

vínculos mais estreitos a fim de evitar a frustração de uma futura ruptura: [...] Recebo visita de

muita gente. [...] Essas pessoas que vêm visitar o abrigo, né? (Suyá).

Ina afirma receber visitas abundantes e freqüentes da comunidade, ou seja, de pessoas

que ali esporadicamente vão e com as quais, portanto, não mantém vínculos estreitos. Sugere

em sua fala, contudo, ter intimidade com elas. Parece ocorrer aqui uma compensação,

substituindo por ancoragem, o distanciamento dos parentes: [...] Recebo visita das amigas, né?

De vez em quando vem uma amiga. Aqui eu conheci elas [...] (Ina). Age, assim, a representação no

sentido de aplacar uma possível dor em razão da distância dos familiares: as visitas freqüentes

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da comunidade, embora não criem vínculos efetivos com os abrigados, servem como meio de

estes justificarem que não estão sozinhos e abandonados, ou seja, que são lembrados.

Os entrevistados Ceci, Irajá e Aog recebem visitas esporádicas de pessoas que

conheceram antes do ingresso no abrigo, o que evidencia terem com eles vínculos mais

próximos: [...] Recebo visita de conhecido. [...] Recebo de um... de um homem que tem um... um

centro [de umbanda]. [...] Ele mora no fundo de onde eu morava [...] (Ceci). Nota-se que há uma

tendência a ocorrer, à medida que se envelhece, restrições nas relações sociais decorrentes,

dentre vários fatores, das perdas de pessoas próximas, da falta de estímulo e das limitações

físicas e psíquicas. Pode-se assim melhor evidenciar tal aspecto em idosos moradores em

abrigos, visto que neste local o contato social é ainda mais restrito.

As visitas da comunidade, no entanto, não devem ter minorada sua importância. Ao

contrário, elas permitem a estruturação da ancoragem que lhes faculta a possibilidade de

figurar elos com o espaço social exterior ao abrigo. Sluzki (1997a) e Valla (2000) (apud

FREIRE JÚNIOR; TAVARES, 2004/2005, p. 151) afirmam assim que:

[...] o apoio social contribui para manutenção da saúde das pessoas, aumentando a sobrevida e acelerando os processos de cura; além de permitir a superação de certos acontecimentos como a morte de alguém da família, a perda da capacidade de trabalhar, a perda de papéis sociais, o despejo da casa ou mesmo a institucionalização, entre outros. Assim, a rede de apoio e o convívio com outras pessoas podem ser entendidos como verdadeira estratégia de sobrevivência.

Representações da própria imagem

Pode-se dizer, conforme já se viu, que, antes de ir para a instituição, cada um carrega

uma “cultura aparente” derivada do “mundo da família”. Ao entrar na instituição, esta, pela

padronização ali imposta, contribui para a “mortificação do eu”. Há, pois, uma ruptura com o

espaço externo e as configurações lá formadas por cada um. Como “as pessoas atribuem

sentimentos do eu àquilo que possuem”, cabe à instituição, uma vez que o internado seja

despojado de seus bens, “providenciar pelo menos algumas substituições, mas estas

apresentam padronizadas, uniformes no caráter e uniformemente distribuídas. Tais bens são

claramente marcados como pertencentes à instituição” (GOFFMAN, 1961, p. 27). O interno,

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desprovido de seu mundo anterior, deve assim reorientar-se sob normas e diretrizes

institucionais que se configuram como agentes de identidade dos idosos.

Percebe-se, em grande parte dos entrevistados, uma espécie de uma dissociação gerada

pela própria instituição; com efeito, a percepção que os entrevistados têm de si mesmos

aponta para as condições anteriores à padronização operada pelo abrigo. Em vista da

preservação do ego, as referências dos entrevistados são daquilo que possuíam antes da

institucionalização. Miro, sendo assim, valora-se pelos bens materiais que obteve, ou seja, um

indivíduo adquire valor se ele possuir uma gama de bens acumulados ao longo da vida. Tal

figuração parece recompor-lhe o ego mutilado pela solidão que vivencia no abrigo.

A percepção de si da maioria dos entrevistados (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ava,

Doca, Ina e Irajá) representa-os como sofredores e vítimas. A vitimização, neste caso, lança-

se para o exterior da instituição. A ida para o abrigo é apenas o arremate de um longo

processo de enfraquecimento de um ego figurado no mundo. A institucionalização opera

assim a mutilação de um eu que ora, retrospectivamente, se figura enfraquecido.

Muitos têm na doença precoce a configuração de uma percepção enfraquecida de si

mesmos. Aracê é a mais emblemática: o fato de ter sempre estado doente criou-lhe limitações

intransponíveis. Ressalta com isso a necessidade de cuidados e as limitações em relação à

vida: [...] Eu, desde a idade de cinco anos provocando desmaio, nunca podia ficar sozinha dentro de

casa porque o incômodo diariamente ele sempre provocava. [...] Por causa do desmaio eu não posso

fazer muito serviço e os remédios deixa a gente com a cabeça lerda [...].

Suyá e Lana justificam o sofrimento que lhes acompanha desde a infância. A perda

precoce dos pais é o marco inicial que lhes traça os limites na vida. O trabalho figura-se como

provedor e inclusivo, pois lhes assegurou enfrentar adversidades. Suyá, vítima de preconceito

racial, aponta a vida no abrigo como o avesso do que teve até então: ela, antes, pouco teve e

muito sofreu pela solidão; hoje, muito tem e pouco sofre, porque é cuidada: [...] Eu fui pra essa

casa onde morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar uma menina cedo, ainda mais de cor, né?

O povo tem muito preconceito, né? [...] Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a

gente já passou tão duro na vida! E agora eu tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de mim, né?,

quando preciso assim [...].

Ina representa-se como vítima de suas próprias decisões anteriores, reputadas como

equívocas. O casamento aos treze anos de idade; a figura ausente do marido; o aborto que

praticou, tudo é configurado como escolhas errôneas anteriores que são cobradas no presente.

A institucionalização, também neste caso, encontra um ego já enfraquecido: [...] É duro o que

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eu estou passando. É triste! A minha vida é ruim demais! [...] Meu marido não prestava pra nada. Eu

criei filho sozinha e eu passava até fome. [...] Eu casei com treze anos porque gostei dele. [...] É

bobagem, né?, que eu fiz, né? [...].

As entrevistadas Lana e Ava representam a vida associada a uma predestinação. Para

Lana o sofrimento, desde a infância, é uma refiguração do padecer de Cristo. As coisas que

lhes acontecem, obras do destino, isentam-nas de qualquer responsabilidade: [...] Eu acho que

nasci pra sofrer é porque é... desde criança fiquei sem pai, sem mãe, e vivia pras casa dos outro

pelejando, né?, pra viver. Então, eu acho que eu nasci pra sofrer até a hora da morte [...]. Ava, no

entanto, declara contraditoriamente que cada um determina sua vida. Se a pessoa agir ou não

corretamente, fará que ela seja reconhecida de um ou de outro modo, dependendo do que fez.

Ora obra do destino, ora das próprias ações, o ego arca com forças a ele exteriores ou

constrói-se por suas próprias forças. Em ambos os casos, contudo, figura-se o presente pelo

passado: [...] A gente quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa mesmo! O que é da

gente é da gente. Eu tenho minha casa, tenho os meus trem, eu estou aqui, oh, desse jeito! [...] Ah!, a

vida da gente é assim mesmo! Depois a gente vai ficando de mais idade, é uma coisa e outra, né? [...].

Seis entrevistadas (Suyá, Celeste, Lana, Doca, Zica e Irajá) também apontam no

passado as figurações de sua percepção atual. O trabalho excessivo, neste caso, é descrito

como razão dos seus sofrimentos, visto que a vida fora marcada por muita luta e esforço. Ele,

no entanto, também lhes é figurado como norteador da vida, servindo como parâmetro na

avaliação deles mesmos. Ao mesmo tempo que seu excesso se afigura como sofrimento, sua

ausência os faz verem-se como incapazes, implicando, com exceções das entrevistadas Suyá e

Zica, a perda de sentido de suas vidas: [...] Se eu lembrar de trem que eu já fui! Desde os quinze

ano que eu... eu era empregada pra pajiar criança dos outro. Eu sofria muito. Não era pouca coisa

não! [...] (Irajá).

Parece haver sempre, pois, uma associação da vida passada com a atual. Reforçam-se,

porém, nesta os traços que os fazem ter a percepção de si mesmos associada à desvalorização

e inutilidade.

Há também a projeção do passado no presente em relação às doenças decorrentes da

idade. Neste caso, portanto, o passado é visto como causa imediata da ida para o abrigo. Há

aqui fortes sentimentos negativos associados à desvalorização e diminuição da auto-estima.

Isto pode ser verificado em relação à Celeste, Ava, Tiana, Doca, Ina, Zica e Irajá. A idade

avançada e as doenças acarretam a impossibilidade de efetuar escolhas, pois a vida se tornara

limitada. Doca assim afirma: [...] Porque, pensando bem, se eu for um... um... veja bem o meu

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tamanhozinho, né? Se eu fosse uma criatura melhor de saúde, eu ajudava fazer alguma coisa de

serviço. O único incômodo que eu nunca tive: preguiça. Eu não fui criada com preguiça não! [...].

Celeste, Ava e Ina, além disso, fazem associação entre idade e incapacidade ou

desinteresse por realizar atividades de qualquer natureza. Eles parecem perceber que, com o

avançar da idade, a vida fica mais restrita, não tendo condições alguma de efetuar escolhas.

Celeste, sobre este aspecto, comenta: [...] Com a idade a gente vai ficando fraca e isso atrapalha a

vida da gente porque não dá conta de fazer as coisa [...].

Os entrevistados Ceci, Peri e Aog figuram a auto-percepção mais positiva. A

institucionalização, neste caso, por meio da ancoragem, cria objetivações positivas a partir de

esquemas fora do abrigo socialmente valorados. Ceci figura-se caridosa e praticante do bem, e

diz, como benzedeira, ter o dom da cura: [...] Eu sou benzedeira. [...] Eu faço caridade. Benzo as

pessoa só com prece. [...] Fiz prece com carta e sarou, né? [cura de uma pessoa que a procurou] [...].

Desapareceu na mesma hora. E diz que doía pior do que um trem! [...]. Peri valora-se pelo saber,

pois, embora tenha pouco estudo, mostra-se conhecedor das coisas. Ele, assim, declara: [...]

Eu sei fazer muita coisa. Eu sei escrever. Eu sei ler. [...] E eu não tenho muito estudo não, hein?

Tenho o quarto ano primário só. [...] Não... não vem dizer que eu estou atrás de gente de... de sexta

série, de sétima série pra frente aí que me passa pra trás! Não me passa, não! [...]. Aog destaca a si

mesmo pela sociabilidade que diz ter fora do abrigo e lá com os funcionários, pois descreve-

se distante das confusões dos demais abrigados: [...] Eu trato todo mundo bem aonde eu chego. E

aonde eu chego eu, graças a Deus, é, todo mundo fica gostando de mim. [...] Inclusive aqui mesmo

eles têm me admirado por esse fato aqui porque aqui tem muita confusão. Muita briga, discursão, né?

E eu estou sempre por fora, né? [...].

Iole e Lude também focam a percepção de si no presente em relação ao passado. No

entanto, aqui o contraste marca negativamente apenas a vida atual, pois anteriormente podiam

realizar escolhas: [...] Antigamente eu tinha gosto na vida. Eu era alegre. Eu não era assim sem

força, não! [...] Hoje o meu caminho não tem sentido mais não! [...] (Lude).

Os idosos, sobretudo os institucionalizados, em conseqüência da perda de papéis

sociais ou dos estereótipos acerca da longevidade, defrontam-se com crises provenientes com

o avanço da idade. Tal fato, conforme visto, faz que eles, em geral, figurem-se a partir do que

foi, lançando no passado as bases positivas e, sobretudo negativas, de sua própria imagem. O

ego enfraquecido percebe-se, por meio da exclusão pela qual figura a vida no abrigo, excluído

também na sua vida social anterior. À instituição, portanto, cabe propiciar condições para que,

em vez de mutilação, haja reconstrução deste ego enfraquecido que a ela chega. Isso, como se

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depreende da representação de Ceci, Peri e Aog, é possível. Para tanto, o respeito à

individualidade expresso por seu histórico de vida é fundamental:

[...] Nessa problemática, o idoso institucionalizado constitui, quase sempre, um grupo privado de seus projetos, pois encontra-se afastado da família, da casa, dos amigos, das relações nas quais sua história de vida foi construída. Pode-se associar a essa exclusão social as marcas e seqüelas das doenças crônicas não transmissíveis, que são os motivos principais de sua internação inclusive nas Instituições de Longa Permanência (ILP). [...] Pensadas como cenários de cuidados, as ILP ainda constituem um desafio, principalmente se contrastadas com a proposta da promoção da saúde, que se funda no empoderamento, expressos, entre outros aspectos, pelo direito à individualidade, muitas vezes interditado neste contexto (FREIRE JÚNIOR; TAVA RES, 2004/2005, p. 148).

Reativando o tempo

A questão da reativação no abrigo se liga de imediato a uma questão mais ampla: o

fato de que os idosos, em geral, após a aposentadoria tenham de enfrentar as conseqüências

do afastamento do trabalho. Este talvez seja, conforme aponta França (1999, p. 9-10), “a

perda mais importante da vida social das pessoas, pois ela pode resultar em outras perdas

futuras, que tendem a afetar a sua estrutura psicológica”:

[...] A aposentadoria e a inatividade podem assim levar a um sentimento de depressão que conseqüentemente compromete a saúde do indivíduo. [...] Por isso, mesmo para os idosos não abrigados, é preciso um planejamento de vida para que se encontre uma nova organização das atividades diárias para que haja mudanças no tocante [...] ‘à afetividade, à vida familiar, ao lazer, à participação sociocomunitária’, bem como de um trabalho remunerado ou voluntário que permita ‘enfrentar objetivamente as condições frustrantes a que muitos aposentados ficam expostos’. Deve-se, contudo, ressaltar que tal planejamento não se apresenta, via de regra, realizado pelos próprios interessados. Ao contrário, [...] a falta da consciência, o fatalismo e certas características de personalidade podem levar à acomodação e à espera de que alguém, o ‘outro’, ou o governo tomem alguma atitude. [...] É preciso destacar esta responsabilidade individual diante do coletivo e do próprio destino. Walter Benjamin (1994) em Rua de mão única aborda a importância da nossa interferência no planejamento de um dia: ‘A felicidade das próximas vinte e quatro horas depende de que nós, ao acordar, saibamos como apanhá-la’ (FRANÇA, 1999, p. 12).

A questão, se assim se apresenta em difíceis contornos para o aposentado

genericamente referido, é ainda mais difícil de ser enfrentada pelos idosos abrigados, cujo

planejamento parece por eles próprios figurado como pertencente inteiramente a um outro, a

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instituição asilar.

No caso presente, podem-se separar as atividades dos entrevistados entre aquelas

realizadas fora ou dentro do abrigo. As primeiras são sempre planejadas pela própria

instituição asilar em cooperação com outras instituições. Dentro do próprio abrigo, por sua

vez, há atividades institucionais promovidas pela coordenadora sob a supervisão de

voluntários, cujo planejamento, portanto, é da instituição; há, por outro, atividades

voluntárias, ou seja, por iniciativa dos próprios idosos. Neste caso, algumas se realizam em

benefício da própria instituição, tendo uma dimensão coletiva; outras, no entanto,

permanecem no âmbito individual, para aumentar a própria renda, objetivando satisfação

pessoal.

Miro é o único a realizar atividades programadas fora do abrigo: [...] Lá no CEAI, eu

vou lá toda segunda e sexta. [...] Acho bão. Passa o tempo, né? [...]. Nota-se, pois, que ele

figura tais atividades como prazerosas e lúdicas, ocupando-lhe positivamente o dia. Parece

assim se apresentar dupla importância para quem tem disposição para realizar tais tarefas: sair

do espaço em que se encontra encerrado; ampliar socialmente o horizonte ao encontrar outros

idosos.

Os entrevistados Tiana, Zica e Peri realizam atividades internamente propostas pelo

abrigo. Estes lá realizam atividades associadas ao cotidiano escolar, como desenho, escrita e

leitura, a fim de aprender ou de exercitar o que não tiveram maior oportunidade de realizar ao

longo da vida: [...] A atividade que eu faço aqui é esse: escreve um pouquinho; lê um pouquinho [...]

(Tiana).

Por outro lado, Suyá, Aracê e Ceci realizam tarefas voluntárias para o próprio abrigo,

mas que não são por este planejadas. A principal atividade aqui é a de auxiliar os funcionários

na execução de tarefas. Cada uma delas, respectivamente, realiza o conserto das roupas da

instituição; auxilia os funcionários na realização das funções de cozinha e limpeza do pátio do

abrigo; responsabiliza-se por aguar as plantas do local. O depoimento de Ceci exprime tal

questão: [...] Eu faço a limpeza aqui no quintal. Varro, águo as planta tudo da manhã [...].

Suyá e Ava são as únicas que se ocupam com a realização diária de trabalhos manuais.

Tais atividades, além de voluntárias, são as únicas que permanecem na esfera estritamente

individual, com resultados efetivos e concretos. Observa-se que estes são realizados com mais

envolvimento e satisfação dos que aqueles feitos pelos demais entrevistados. Elas não

representam suas atividades no abrigo como mero preenchimento do tempo. Usufruem,

ademais, do produto de seus trabalhos. Além, pois, de eles darem significado para as suas

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vidas, fazendo que elas se orgulhem de serem reconhecidas pelo que fazem, seus produtos são

vendidos para as pessoas que visitam o abrigo: [...] E também faço crochê. Fico aqui fazendo

crochê o dia inteiro! [...] Então a pessoa vem e gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre

trabalhando [...] (Suyá).

Metade dos entrevistados, no entanto, permanece ociosa durante todo o tempo. Cinco

entrevistados (Celeste, Iole, Lude, Irajá e Aog), depois de ingressarem no abrigo, não

manifestaram vontade de realizar qualquer tipo de atividade. Este aspecto parece indicar um

reforço da condição do idoso aposentado acima mencionado, pois a permanência no abrigo

ainda mais se lhes configura como limitadora de ação, fazendo com que eles se desinteressem

por realizar atividades que não estão na esfera de seus desejos. Além disso, a ida para o

abrigo, para a maioria destes entrevistados, não dependeu de suas decisões, o que, em geral,

os contrariou, demonstrando eles assim ainda maior desinteresse pela vida que ali levam: [...]

Não faço nada aqui, não! E não quero fazer nada também não! [...] (Lude).

Aog, por sua vez, manifesta indisposição para o trabalho, justificando-a, ao longo da

vida, por algumas doenças incapacitantes que apresenta. Desse modo, embora o trabalho seja

referido desde a infância, a ociosidade no abrigo é para ele uma extensão de sua vida

caracterizada por inatividade: [...] Aqui eu não faço nada. Não mexo com nada. Gosto de ficar mais

quieto [...].

Lana e Doca também justificam a ociosidade no abrigo pelas doenças que lhes

acometeram. Estas, tendo como base a representação que elas formulam da doença,

incapacitam-na de realizar qualquer tipo de atividade; algumas vezes, parece que se apegam

às doenças como meio de não realizar determinadas tarefas que elas não queiram cumprir: [...]

Eu já fiz muito tapete. Hoje eu não faço mais nada. [...] A doutora me proibiu de fazer porque de

olhar perto dói demais! [...] (Doca). Além disso, Lana explica a ociosidade pelo fato de receber

tudo pronto do abrigo, não precisando realizar qualquer esforço: [...] Eu vivo aqui é matando

inseto. Não faço nada. Tenho tudo prontinho aqui [...]. Afirma, contudo, a tentativa, mas

impossibilidade de realizar tarefas em razão de suas limitações físicas: [...] Nem pra varrer não

estou dando conta, né?, porque caindo à toa, né? [...].

Observa-se que a adoção de atividades que promovam a interação física e social do

idoso com o ambiente em que ele vive é, portanto, necessária, pois pode aumentar o seu bem-

estar e assim promover aumento na qualidade de vida. Porém, a promoção ou não de

atividades, sobretudo para idosos que vivem em abrigos, deve ser analisada com base na

dinâmica do contexto institucional.

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A atividade na longevidade tem correlação importante com a satisfação na vida. A

manutenção da auto-estima, segundo Andrade (2003), deve-se, em parte, à sensação de

pertencer a um grupo social produtivo e tem efeitos benéficos na saúde física, social e mental

dos idosos. Deve-se, contudo, sempre respeitar a individualidade do idoso ao lhe propor tais

atividades.

O território do divino

O recurso à divindade pode ser explicado como um modo de o homem criar

mecanismos para enfrentar situações com as quais não saiba lidar:

[...] Estes [deuses] mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que uma vida civilizada em comum lhes impôs (FREUD, 1988c).

Sem que as forças naturais contemporaneamente estejam presentes de modo intenso,

nota-se, no caso dos abrigados, a presença marcada de duas características acima citadas:

Deus é por eles representado como Destino inexorável; a divindade recompensa, ou pune,

com justiça os atos que eles figuram como tendo sido deliberada ou forçosamente levados a

praticar.

Onze entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Aracê, Lana, Ava, Ceci, Doca, Ina, Zica e

Iole) delineiam a presença do divino no horizonte de suas vidas na instituição. Destes, apenas

Suyá, Miro, Aracê, Lana e Ava representam-no explicitamente na vida anterior ao abrigo.

Para Miro, como curso natural das coisas; para os demais, como a força do destino que

governa o presente e decide no futuro o que virá.

No abrigo, a divindade é representada, para as entrevistadas Suyá, Lana, Ava, Ceci e

Doca, como aquela que cuida e protege, garantindo-lhes forças para prosseguirem com a vida.

A figura divina neste caso serve como segurança contra incertezas e adversidades. Os

entrevistados Miro, Celeste e Zica referem-se a Deus como aquele que lhes conduz a vida,

visto que eles, por causa da doença e perda de autonomia, não mais a controlam. Deus figura,

pois, como solução de problemas para quem não consegue enfrentá-los, ou por insegurança,

ou por enfraquecimento físico: [...] Eu vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não,

está nas mãos de Deus [...] (Zica).

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Há, pois, uma representação da divindade como fuga da situação em que se

encontram. O maior recurso a Deus a partir da condição abrigada parece implicar a reposição

de forças superiores a partir da constatação de uma situação de desamparo não enfrentada

completamente:

[...] A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito claras, até o sentimento de desamparo infantil. [...] A ‘unidade com o universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo externo (FREUD, 1998c).

Deus também é figurado como uma justiça retributiva das ações terrenas no plano

divino. A entrevistada Aracê utiliza-se da crença em Deus para referir a si mesma como uma

pessoa bondosa que segue o bom caminho. Assim sendo, crer em Deus, desde a infância, é,

para ela, significado da prática do bem, suporte que dá sentido a suas ações: [...] Eu, pra

começar da minha infância, seguindo a Deus, crente, Presbiteriana, só quero a Deus [...].

Deus também, de modo semelhante, é representado como justiça punitiva. Desse

modo, Ina refere-se a Ele como aquele que a julgará pelas suas atitudes e comportamentos

inadequados, pois é visto como quem a condenará e castigará pelo aborto cometido. Isso,

aliás, ela representa como algo que já ocorre: seu único filho faleceu por decorrência de

acidente automobilístico. Deus parece aí agir como aquele quem castiga os atos iníquos: [...]

Só um filho eu tive. E um aborto que eu tive. Pecado que eu levei pra Deus [...].

Iole refere-se a Deus como aquele que pode resolver seu conflito, ou seja, tirar-lhe a

vida. Desse modo, a falta de sentido existencial e o seu sofrimento, decorrente de estar no

abrigo e da sua história de vida marcada, sobretudo, pela solidão e pelo fato de ter sido, pelo

marido, trocada por outra mulher, teriam, pela morte, seu fim. Deus, assim sendo, pode ser a

única solução dos seus conflitos, visto que ele seja, pela força que ela lhe atribui, o único a

dar fim ao seu sofrimento: [...] Deus podia ter dó de mim. Me ajudar, né? [...] E me tirar eu. Tirar

eu desse mundo [...].

Destaca-se, além disso, o fato de o primeiro abrigo, ligado à Igreja Presbiteriana,

encontrar, dentre os cinco idosos entrevistados, três que participam do culto nele praticado.

Dos outros dois, Celeste, ainda que não explicite ir ao culto, salienta ser praticante fervorosa:

[...] Eu deito na cama, vou rezando, vou rezando, vou rezando... até dormir! [...] Não sei o quê que

vai ser, né? É. Mas Deus é que sabe, né? [...].

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Há, pois, neste abrigo, uma relação direta da instituição com a religião, parecendo

uniformizar escolhas:

[...] A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual (FREUD, 1988c).

Presume-se que haja, neste caso, um fortalecimento institucional da religião com um

propósito de uniformização. Tal fato, embora possa reafirmar ou criar novos valores no

desamparo em que muitos idosos possam estar vivendo, uniformiza e homogeiniza padrões,

fazendo assim da religião um agente de institucionalização do ego, sem a necessidade de

mortificá-lo; com efeito, neste caso, reafirmam-se crenças cujos significados, por objetivação,

já se encontravam presentes na representação efetuada pelos entrevistados.

Os entrevistados do outro abrigo, ligado ao Grupo da Esperança, não parecem seguir

uniformemente uma religião. Ecumênico, o abrigo, além de parecer incentivar, não restringe

práticas religiosas, possibilitando maiores escolhas e efetiva prática da fé de cada um.

O caso notável da entrevistada Ceci o confirma. Os orixás são temas recorrentes em

sua entrevista. Eles, além de a proteger, são os responsáveis por guiar sua vida. O

distanciamento dela para com os colegas de abrigo e a falta de expectativa na vida são

justificados a partir de ordens recebidas das entidades. Estes, diz ela, recobrem traços já vistos

no tocante ao divino, pois conduzem a sua vida a fim de protegê-la. Mais próximos e diretos

que um deus monoteísta, eles determinam-lhe o que deve ou não ser feito: [...] Quando tenho

qualquer coisa, [...] eu firmo nele, no Senhor Ogum, e deito, falo pra ele. Eu oro pra ele todo dia,

toda noite. Oro pra ele me olhar, sabe? [...].

Há, pois, de se salientar três aspectos em sua fala. O primeiro é que, mesmo que a

instituição permita, sua prática religiosa a distancia dos demais asilados; em segundo, é dupla

via desta distância: dela, ao se considerar superior por sua prática; da possível distância dos

demais abrigados com relação a ela, por não comungarem do mesmo credo; por fim, a

questão acerca da própria instituição: em que medida o respeito devido às individualidades

resguarda, no tocante às práticas religiosas, a manutenção de um espaço comunitário que, sem

ser homogêneo, se mantenha igualitário?

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Nota-se que os entrevistados Tiana, Lude, Irajá, Peri e Aog não mencionam Deus nem

nenhuma prática religiosa em suas falas. Neste caso, cabe destacar que os entrevistados Tiana,

Lude, Peri e Aog, embora com nuanças diferentes, assumem como, na atual conjuntura de

suas vidas, o abrigo como melhor opção. No caso de Irajá, seu ego parece se recompor pelo

que Goffman (1961) aponta presente em diversas instituições: a rebeldia às regras para manter

traços identitários que não se enquadrem às normas nem lhe mortifiquem o eu.

A religião e o apelo ao divino parecem assim, sobretudo para os entrevistados que não

os mencionam antes do asilamento, funcionar como uma estruturação por ancoragem de

novas significações mentais a partir de antigos esquemas. Na ausência da família e do

trabalho, valores de significação social fundamentais antes da institucionalização para a

estruturação do psiquismo, o transcendente dá-lhes o arcabouço para sustentar a fragmentação

e mortificação que, na ausência de significados, poderiam conduzir alguns dos idosos a se

entregar à solidão e à possível depressão desta decorrente.

Próximas projeções

O quadro modelado pelos entrevistados de suas expectativas futuras é o de contornos

mais negativamente marcados. Aponta-se, na maioria dos casos, o círculo da vida como tendo

sido completado, nada mais lhes restando a fazer. Sendo assim, acentua-se a exclusão de que

sentem vitimados por viver no abrigo. Quando positiva, a figuração dos entrevistados é

contraditória, pois implica ter a esperança de sair do abrigo, mas eles próprios ressaltam a

quase impossibilidade de que isso ocorra.

Nota-se, pois, na projeção da vida futura um dos principais problemas de inserção

destes idosos. Há como um quadro de desalento em relação ao presente que se estende para o

futuro. A marca depressiva que enfatiza as perdas apontam aqui até para uma maior: a morte

como esperança de resolução das dificuldades; a doença como limitação permanente:

[...] Do ponto de vista vivencial, o idoso está numa situação de perdas continuadas; a diminuição sócio-familiar, a perda do status ocupacional e económico, o declínio físico continuado, a maior frequência de doenças físicas e a incapacidade pragmática crescente, bem como o aparecimento de fenómenos degenerativos ou doenças físicas incapacitantes, compõem o elenco de perdas suficientes para desenvolver um quadro de sintomatologia depressiva. [...] Outro aspecto a enfatizar é a depressão no idoso

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institucionalizado. Encontra-se separado do ambiente familiar e habitacional, sensação de abandono, inutilidade e dependência, isolado da actualidade cultural. A baixa qualidade de vida (falta de intimidade, insegurança, tristeza silênciosa, etc.) oferecida nessas instituições, o insuficiente grau de bem-estar pessoal, a reduzida auto-estima, contribui para o agravamento do estado depressivo (CHAVES, 2006, p. 5-6).

A rotina rígida dos abrigos contribuem, por meio da perda da autonomia e da falta de

expectativa de vida dos idosos, por torná-los pessoas apáticas e passivas à espera do fim,

sobretudo por desconsiderar as particularidades de cada um e as suas histórias e experiências

pessoais (REZENDE, 2001).

A figuração da morte como expectativa central é assim apresentada por dez

entrevistadas (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Doca, Iole, Lude e Irajá). A idade

avançada é diretamente relacionada ao fim da vida. Em comparação com a natureza, assim

como os dias nascem e morrem, o quadro aqui acentua o ocaso de uma noite final que se

aproxima: [...] Agora, minha filha, plano pra vida eu não... não espero é nada mais porque eu já

estou no fim da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é esperar [...] (Tiana).

Tal perspectiva, conforme aponta Freud (1998b), positivamente poderia ser

apresentada como um enfrentamento direto e natural da realidade humana, ou seja, um retorno

resoluto de que a vida implica a preparação para a morte:

[...] Nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é, ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo. Contudo, como nos distanciamos desse estado primevo em nossa atitude convencional e cultural para com a morte! [...] Não devemos confessar que em nossa atitude civilizada para com a morte estamos mais uma vez vivendo psicologicamente acima de nossos meios, e não devemos, antes, voltar atrás e reconhecer a verdade? Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão cuidadosamente suprimimos? Isso dificilmente parece um progresso no sentido de uma realização mais elevada, mas antes, sob certos aspectos, um passo atrás - uma regressão; mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade e de novamente tornar a vida mais tolerável para nós. Tolerar a vida continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos. A ilusão perderá todo o seu valor, se tornar isso mais difícil para nós. [...] Lembramo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres preservar a paz, prepara-te para a guerra. [...] Estaria de acordo com o tempo em que vivemos alterá-lo para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar a vida, preparar-te para a morte (FREUD, 1998b).

Tal atitude, no entanto, não é tomada por todos como limitada à esfera humana, em

que se configure a vida como um ciclo natural que encontre na morte seu limite. Para a

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metade deles (Celeste, Lana, Tiana, Lude e Irajá), assume-se resignadamente a sua espera.

Diversamente, contudo, do que indica o autor supra citado, pois, neste caso, tal fato revela

pendores depressivos, já que não se vincula a morte às atividades da vida, mas apenas

enquanto espera de quem nada mais tem a fazer. A entrevistada Lana, nesse sentido, declara:

[...] Uai, não tem jeito mais de mudar nada porque eu já estou dessa idade, né? [...] Os meus prano é

ficar aí até chegar a morte. É isso que eu espero. Eu espero só a morte [...].

Suyá, Aracê, Ceci, Doca e Iole traçam diferentemente tal quadro. Para eles, vincula-se

a morte a um encontro com a divindade. Fora da esfera humana, a morte ganha relevo

enquanto esfera do transcendente, espaço superior e mais elevado do que o dos homens. Há,

pois, o que Freud (1998c) apresente como ilusão, pois dissocia-se da realidade presente em

função de uma projeção superior de perfeição divina:

[...] A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se acha no caminho da evolução para algo mais elevado. E, olhando na outra direção, essa visão anuncia que as mesmas leis morais que nossas civilizações estabeleceram, governam também o universo inteiro, com a única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte. Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a se desfazer. A vida após a morte, que continua a vida sobre a terra exatamente como a parte invisível do espectro se une à parte visível, nos conduz à perfeição que talvez tenhamos deixado de atingir aqui. E a sabedoria superior que dirige esse curso das coisas, a bondade infinita que nela se expressa, a justiça que nela atinge seu objetivo, são os atributos dos seres divinos que também nos criaram, e ao mundo como um todo, ou melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização, todos os deuses da Antiguidade foram condensados.

Os valores da vida assim aparecem enfraquecidos na representação de todos os

entrevistados que dela só esperam a morte. Algumas entrevistadas (Celeste, Aracê e Tiana)

relacionam tal fato às doenças e limitações da ação daí advindas: [...] Depois que eu estou

doente assim, interna aqui, não... não... não quero mais nada, não! [...] Ah, eu espero o que Deus

mandar [...] (Aracê). Esta e Tiana, diferentemente de Celeste, mesmo assim aceitam a vida

institucional e lá participam do que podem, até ser impossibilitada por suas condições físicas.

Outros, à própria longevidade, cuja conseqüência mais clara é a morte. É o caso de Lude e

Suyá. Esta declara: [...] Ah, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver muito

tempo, não! Eu quero ir embora. [...] Eu já estou com oitenta e um e estou inteirando oitenta e dois

anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a vontade dele [...].

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Celeste, Tiana, Doca e Irajá, embora afirmem esperar a morte, contraditoriamente

apresentam a esperança de melhora de saúde, ou de maior autonomia, para mudar ou tornar

mais prazerosa sua situação atual: [...] Eu não faço nada, minha filha! E não espero nada. Eu sinto

vontade é de morrer [...] pra livrar desse mundo pra não sofrer o tanto que eu estou sofrendo. [...] Eu

queria ter minha casa, ter uma pessoa que me ajudasse [...] (Irajá). Celeste, Doca e Irajá projetam

a saída do abrigo. Tiana expressa o desejo de visitar os parentes. Sem afirmar querer sair do

abrigo, ela apenas anseia por maior contato social.

Seis entrevistados (Miro, Ava, Ina, Zica, Peri e Aog) não indicam a morte como

questão futura mais importante. Se para os demais a morte é a marca definitiva e consoladora,

dado ser a solução externa definitiva para seus conflitos, estes não a figuram como ruptura

determinante para o fim das suas atuais condições de vida. No entanto, isso nem sempre

significa enfrentamento da realidade, pois projetam, contraditoriamente, tanto uma esperança

numa situação no futuro melhor do que a atual, marcadamente figurada como negativa,

quanto aceitam o futuro tal qual se fosse o presente.

Miro, Ava, Ina, Zica, Peri figuram poucas expectativas futuras em virtude da doença e

das limitações decorrentes desta. Afirmam nada mais ter a fazer. Delineiam, assim, o futuro

como limitado, em prosseguimento da vida atual no abrigo, que declaram positivamente

aceitar. Contraditoriamente, contudo, esperam, desde que melhorem de saúde, sair do abrigo,

e retornar para as próprias casas ou a dos familiares. O abrigo é, pois, também figurado por

eles como um mal menor do qual pretendem, com melhores condições físicas, sair. Reforça-se

a imagem dele como um hospital. Aqui, provisório, de que partirão quando recobrarem a

saúde. Peri, nesse sentido, afirma: [...] Ah, eu não... não... não sei de nada, não sei o quê que vai

acontecer comigo. [...] Gostaria que fosse uma coisa boa pra mim sair daqui porque meu irmão já

quis me tirar daqui muitas vezes. Mas eu não quis sair, não! [...] Ele mexe com... está mexendo com

chácara fora daqui. [...] Fico doente lá, como é que fica? É preciso ficar quieto aqui [...].

Aog apresenta figurações peculiares no tocante às expectativas futuras. Embora tenha

em comum com os demais deste grupo não só o fato de não entregar o futuro à morte como

também a permanência no abrigo em razão da doença, ele tem a expectativa associada a

motivos externos, isto é, ao recebimento de benefício previdenciário a fim de que possa

garantir, fora da instituição, o seu próprio sustento. A condição financeira daí decorrente

parece garantir-lhe autonomia e liberdade de escolha. Como, no entanto, as coisas podem ou

não ocorrer em conformidade com o que ele espera. ele não cria grandes expectativas quanto

a isso: [...] Se eu conseguir aposentar, aí eu não sei, não! Eu tenho idéia de sair daqui. E a gente

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ainda vai planejar o quê que vai ser, o quê que vai fazer, aonde vai morar. Às vezes nem não vai fazer

nada também [...]. Como a entrevistada Zica, parece assim se precaver contra frustrações

futuras: [...] Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do meu filho. [...] O dia que o meu filho puder me

levar, bem. O dia que ele não puder, fica, né? [...].

Cabe por fim destacar alguns aspectos aqui verificados na representação feita pelos

entrevistados. A perda da autonomia figura-se para eles como uma entrega das decisões sobre

seus futuros nas mãos de outra pessoa. Tal aspecto se percebe nos entrevistados Ava, Tiana,

Doca, Zica, Peri e Aog. Para a maioria destes, nas mãos dos familiares; para Aog, de um

órgão público.

Outro fenômeno notável é que, dos únicos três homens entrevistados, nenhum delineia

a morte como expectativa. Além disso, não figuram o futuro como decisão divina.

Diferentemente, dez mulheres apresentam a morte como principal expectativa futura. Destas,

cinco apontam-na como melhora, pois dirige-se ao transcendente. Parece haver aqui um eco

das diferenças sociais de gênero; com efeito, sem a casa e a família, os homens parecem não

ansiar pela morte como solução da vida. Além disso, o recurso à divindade para traçar o

futuro está vinculado, conforme aponta Carvalho (2006), ao apego religioso socialmente mais

entronizado na vida das mulheres.

Vale ressaltar que a expectativa quanto ao futuro é um aspecto fundamental a ser

considerado na terceira idade; com efeito, as dificuldades de integração dos idosos na

sociedade moderna negam-lhes um lugar significativo, pois a longevidade é muitas vezes

considerada apenas como próxima ao fim da vida sem perspectivas de crescimento e

desenvolvimento. Ao atingir a vida longeva, os idosos tendem a sentir-se sozinhos e, ante a

realidade que se lhes apresenta, a ela adaptam-se, contra ela reagem ou, sobretudo, deixam-se

morrer, social e fisicamente. A morte, ante tal quadro, pode passar a ser vista com maior

naturalidade, uma vez que, dadas as diversas situações de perdas ao longo da vida, a ela se

acostumem (ZIMERMAN, 2000). Além disso, a melancolia (FREUD, 1988a), decorrente da

ausência dos entes mais próximos, pode criar um quadro depressivo cuja saída o idoso, sem

forças para enfrentar a vida, encontra na morte.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

As representações de instituição por idosos abrigados convergem para certas

formulações comuns que destacam, em suas trajetórias de vida, elementos que compõem um

mosaico, em que certas marcas são mais expressivas e reiteradas. Elementos se sobrepõem

principalmente em certas etapas existenciais como registros com maior realce na figuração do

que percebem como inclusão ou exclusão social.

A infância para os entrevistados do meio rural é por todos determinante nos traços

mais fortes de inclusão social. Destacam-se aqui dois aspectos: a integração da família; o

trabalho comunitário na esfera familiar para subsistência.

A integração do núcleo familiar é, por suplementação, uma espécie de eixo

ideologicamente representado pelos idosos como paradigma para a vida restante. Os

contornos que ali se delineiam passam a ser requeridos modelarmente como escopo a ser

revivido. Muito do quadro de isolamento e distância familiar que na terceira idade se

apresenta – tanto antes quanto depois da institucionalização – é por eles compreendida em

contraposição a esta imagem da presença contínua, da estrutura de família que poucos (Lana e

Ava) marcam como posteriormente reavivada.

Nesta esfera familiar, associa-se à imagem de reunião através do trabalho no seio da

família também como imagem de inclusão. Destaca-se o fato de os entrevistados figurarem a

família como um grupo fechado em que não se percebe a presença do exterior. A imagem

apresenta o grupo familiar como limite que se basta, como se de nada necessitasse do que se

supõe externo, do qual, aliás, nada se fala.

O trabalho, mesmo que posteriormente em posições socialmente representadas como

subalternas, manterá algo inclusivo que parece dever muito a esta imagem da infância. Numa

lavoura de subsistência, o trabalho afasta, mesmo que se socialmente estivesse presente, as

forças do patronato, da subserviência e da baixa remuneração. Ele agrega a família:

considerado sempre o modelo conjunto e ideal a configurar a inclusão.

A infância dos asilados que viveram no meio urbano também se compõe como

momento marcante da vida. Estes, em menor número (sete entrevistados), não apresentam tão

destacadamente a inclusão familiar. Em vista do trabalho, sobretudo das mães, há aqui

também uma figuração da exclusão; com efeito, trabalhando para terceiros, os filhos

acompanham-nas em serviços em que é mais visível a submissão. Além disso, o trabalho dos

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pais é uma ruptura com o lar entendido em sentido mais lato, pois os serviços trazem o espaço

externo, rompendo os limites mais amplos e inclusivos da família no meio rural.

Há marcada ruptura com a fase posterior de suas vidas. Em contraposição à infância, a

dispersão familiar é por eles percebida como um momento marcante de quebra da antiga

unidade. O êxodo rural e as vicissitudes em busca de trabalho tornam a maioria deles vítimas

de um processo pouco absorvido e traduzido, nos termos pelos quais expressam a exclusão,

por um espalhar que apenas figuram como decomposição familiar causada pela morte dos

pais.

Eles curiosamente nunca apontam razões sociais como causas desta separação. Tal

fato é marcante em suas representações: eles não delineiam forças mais amplas na sociedade

nas suas ações. Todos os acontecimentos de suas vidas configuram-se apenas no horizonte da

proximidade imediata: é sempre a morte dos pais; a doença; a ação de um filho, ou algo

semelhante.

Tais mudanças sociais, – como a ida do meio rural para o urbano, no caso dos que

provinham do campo; mudanças para outras cidades maiores, no caso dos de origem urbana –

revelam, no entanto, a falta de planejamento político do país, resultando num processo de

exclusão que será, sem que se apresente tal dimensão, sempre confrontado pelos idosos com a

primeira imagem da infância, na qual a família se encontrava reunida. Deste processo pode-se

inferir que eles se tornam vítimas, duplamente: não puderam manter-se em seu local de

origem; não se garantiu, na velhice, nem um local de referência em que pudessem viver, nem

as condições materiais que evitassem o asilamento.

Percebe-se, pois, que há uma violência simbolicamente figurada por eles nesta ruptura

tanto do local de origem como da família nuclear. Isso, contudo, não é completamente

explicitado. Nota-se, por este trajeto, que há uma violência social anterior cuja resultante à

frente será o abrigo, que se configura então como solução provedora e fixadora, recompondo

antigos aspectos da origem de grande parte deles.

Mesmo reparadora, há, no entanto, implícita na ida para o abrigo uma outra violência

também simbólica: a falta de escolha, de autonomia para decidir seus próprios destinos,

obrigando-os a sair do convívio e da vida que até então levavam. Este é um dos principais

modos de representação da insatisfação com a vida institucional: a liberdade tolhida antes da

internação, mas que a instituição reforça.

Cabe, antes de realçar suas representações do abrigo, destacar mais dois problemas

enfrentados pelos idosos antes da internação. Um é a evidente falta de políticas públicas para

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as pessoas mais carentes da terceira idade, criando dependências materiais e financeiras que

implicam a falta de autonomia. A família, responsável legal por assegurar-lhes as condições,

não possuem, na maioria dos casos, estrutura e possibilidade para mantê-los, mesmo que isso

também não se encontre claro em suas configurações. A ida para o abrigo é, antes,

representada por eles como se encontrasse suas causas na ruptura familiar ocorrida no fim da

infância, com a conseqüente ausência de um eixo a que pertençam: a cidade em que estão,

Uberlândia, pouco tem a ver, enquanto referência, com suas vidas, pois nenhum entrevistado

nasceu neste local.

Depois da dispersão familiar, no entanto, há o outro problema a destacar: o trabalho

percebido por eles como fator de inclusão social antes da terceira idade. Pelas funções que

exerceram, seus empregos e ocupações são representados socialmente como marginais ou

secundários. Para eles, entretanto, o trabalho delineia um papel social compreendido como

integrador e, pelo esforço empreendido, útil e significativo. Afinal, representam-no como

provedor e necessário para a sobrevivência. Socialmente, pelas próprias representações,

destacam-lhes a utilidade para outros, mesmo que impliquem uma subserviência. A ausência

do trabalho na terceira idade será, por isso, também figurada como causa da exclusão e da ida

para o abrigo.

Este, do ponto de vista social, é, pois, conseqüência do afastamento implicado na falta

do que lhes era mais significativo e principal modo de inserção numa sociedade em que, de

modo geral, tiveram muito poucas oportunidades. A impossibilidade de exercício do trabalho

é, portanto, um outro fator para determinar-lhes o asilamento. Tal fato, porém, também não é

por eles marcado como causa imediata do ingresso na instituição.

Mais do que estas causas sociais por eles marcadas negativamente como razão da ida

para o abrigo, ou seja, a ausência de um eixo familiar e a impossibilidade de trabalhar; eles

justificam positivamente a institucionalização pelas doenças e falta de condições de quem os

trate. Aqui a família é mais diretamente apresentada como causa, mas, por ancoragem,

também justificada. A doença é o que lhes impede de trabalhar e cuidar de si mesmos. Sendo

assim, as causas sociais, políticas ou familiares, são internalizadas pela doença como razão

principal para separar-se da vida anterior: as evidências de desajustes sociais são, por

ancoragem, assumidas corporalmente nas debilidades físicas que apresentam. Eles assim

incorporam muito da representação social dominante na sociedade para caracterizar o idoso.

Diferentemente, contudo, da dispersão da infância, agora a separação social significa

“confinamento”, perda de escolhas. A falta de autonomia será doravante o principal motivo de

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angústia. Mas a representação do próprio abrigo não é negativa: em geral, é o estado de seus

corpos que para lá os encaminham. Neste sentido, a figuração do abrigo será percebida como

um hospital, local em que as pessoas vão, dada a fraqueza física, ou para sarar ou para morrer.

Neste último caso, delineia-se como a ante-sala da morte. Sempre, contudo, sem assumir por

completo tal sentido: há, por outro, para quase todos, a configuração da possibilidade de

retornar à vida com parentes, ou mesmo sozinhos, numa recuperação física que este hospital

também pode proporcionar.

A ida para o abrigo, mesmo sendo fruto de uma ruptura e de uma dor, encontra outras

figurações positivas nas representações efetuadas pelos idosos. Antes de mais nada, ele

retoma uma nova significação, por ancoragem, de um sentido presente na infância. Estrutura-

se, pois, a partir da imagem do prover. Mesmo sem a positivação plena composta

conjuntamente com a família e o trabalho em conjunto, ressaltam-se os cuidados médicos e

alimentares que ali recebem, contrapondo-se ao que sofreram antes de ir para lá: a falta de

quem os trate e as debilidades físicas.

Neste sentido positivo, representam a igualdade de tratamento oferecido a todos, bem

como a alimentação servida sem criar distinções como algo inclusivo, já que todos recebem o

mesmo. Evidencia-se, pois, em contraste com a desigualdade e perda que figuram, excluí-los

de condições materiais e físicas existentes antes da ida para o abrigo.

A internação no abrigo, além disso, visto que eles representam o afastamento social

pela distância dos parentes por debilidade física, é figurada, por ancoragem, como inserção

neste novo grupo social. O acolhimento institucional funciona para aplacar o abandono e a

solidão. Mas isso nem sempre ocorre completamente. Tal fato se dá, sobretudo, para quem

assume tarefas institucionais e por elas procura.

A internação é representada por alguns deles (Suyá, Aracê, Ava e Tiana), nesse

sentido, como uma nova inserção, pois estes buscam justificar suas vidas a partir das tarefas e

obrigações que desenvolvem no cotidiano institucional, obtendo assim legitimidade de um

sentido para viver a partir dos novos papéis que precisam construir na internação.

Estes novos papéis se apresentam, sobretudo, contrapostos à antiga imagem de

utilidade figurada por eles como presente no trabalho. Nota-se, no entanto, que a necessidade

de ocupação e as expectativas de vida dos mesmos estão condicionadas à saúde e à autonomia

e independência, ou seja, há uma busca pelo trabalho, desde que figurem a possibilidade de

empreendê-lo. Por incorporarem a fraqueza física, até alguns idosos lá nada fazem ou querem

fazer (Celeste, Lana, Doca, Ina, Iole, Lude, Irajá e Aog), ainda que certos deles pudessem.

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A realização de atividades empresta para alguns idosos sentido existencial ao se

depararem com a incessante busca de algo que venha a preencher as suas vidas. Há assim uma

visão funcional de vida que se molda em conformidade com uma certa exigência social, isto

é, uma pessoa só adquire valor se trabalhar e produzir. Recupera-se, com isso, não só parte da

imagem da infância, mas também a representação socialmente dominante de uma sociedade

capitalista. Quanto à infância, lá o mundo externo estava representado como excluído, visto

que a família o completava integralmente no trabalho conjunto. Aqui, a família está

efetivamente no mundo externo. É preciso, pois, haver funções que, por outras, reestruturem

este mundo dos internos.

Neste momento, nota-se em suas representações certos pressupostos sociais, ou seja,

como a atual sociedade exclui o idoso, seja para a perspectiva do trabalho, seja por ter o

jovem como modelo, vê-se como a violência do afastamento é apaziguada por uma fala que

refigura a exclusão: a inserção num todo institucional deve assim procurar afastar o psiquismo

do enfrentamento da violência de se ver sem referências que garantem sua estruturação. Os

fios do tempo, mínimos de relações afetivas, devem reconstruir-se em função do presente que

eles institucionalizam ao reiterar o cumprimento de funções que possam justificar as suas

vidas.

Percebe-se, aliás, a importância da reativação no próprio plano afetivo. Nota-se que os

entrevistados não distinguem o plano dos afetos com o das funções, institucionalizando assim

os afetos em função da realização de tarefas e atividades ou na expectativa de voltar a fazê-

las. Não se fala, aliás, nem na saída do abrigo para reencontrar afeições, mas, sim, certos

papéis funcionais na estrutura familiar. Suas representações, como espécie de castração,

perderam uma função social pela deficiência decorrente da saúde física que justifica as suas

histórias de vida pela idade. Portanto, necessitaram criar um novo vínculo social que possa

explicar, mostrando-se presente, a partir das funções exercidas, o sentido da vida e a harmonia

estabelecida com as suas respectivas histórias, sejam elas de abandono ou do distanciamento

dos familiares.

Neste sentido, no entanto, há outro sentido negativo para o abrigo, pois ele não

funciona completamente como inclusivo; com efeito, o trabalho sempre foi percebido por eles

como fator de integração, seja, modelarmente, da família; seja como resistência e luta para

sobreviver, pelo papel que cumpriram na sociedade. A reativação não se figura por todos eles

como esta reposição. Cabe aqui insistir: ela deveria ser estimulada na instituição para repor e

reestruturar parte destas perdas.

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Desse modo, dever-se-ia procurar traçar no trabalho um respeito a partir da

constatação explicitada das diferenças: a história de vida de cada um poderia ser levada em

conta para estimular práticas não padronizadas; com efeito, como afirma Goffman, a

“mortificação do eu” institucional homogeiniza e cria padrões: estimular práticas iguais

provavelmente reforce esta perda de identidade que deveria ser combatida. No entanto, ali

estão pessoas com nomes e histórias. A reativação deveria procurar ser qualitativa, e não mera

quantificação de números de idosos – como, aliás, tende a ser um trabalho acadêmico que os

enumera e torna personas fictícias.

Prova de que a reativação deve operar junto com o respeito à individualidade são os

exemplos das entrevistadas Suyá e Ava. O crochê mantém vínculos com o trabalho anterior;

não é uma atividade imposta. Além disso, pela venda, faz que tenham contato com as pessoas

de fora do abrigo. Estas entrevistadas assim readquirem o valor de uma função social que o

trabalho já lhes deu. Fornece-lhes, ademais, um dinheiro próprio que podem usufruir sem o

controle institucional. Devolve-lhes direitos, respeito e autonomia de que muitos ali carecem.

O caso da entrevistada Suyá levanta outro problema: ela teve autonomia na decisão de

ir para o abrigo, coisas que poucos tiveram. Além disso, já interna, ela teve liberdade de ir e

vir, podendo sair de lá a hora que quisesse. Embora não se possa tratar em bloco tal questão,

isto deveria ser estendido, dentro dos limites possíveis, para os demais. Foi a própria Suyá

quem decidiu que não mais sairia do abrigo por causa das limitações da saúde, ou seja, teve o

discernimento para decidir, quando quis, o melhor para ela, mantendo-se de algum modo

respeitada sua cidadania: fora as intempéries e doenças que pode acometer qualquer um, isso

faz lembrar que o idoso não é um menor de idade, mas um cidadão a ser, inclusive, mais

respeitado pelas experiências que teve, como, aliás, muitas sociedades o fazem. O critério

para ocupar-lhe um lugar é a idade, já que nela acumulam-se experiências e discernimento.

O caso da Suyá aponta também para outra questão de inclusão que não abarca todos

que lá estão. No caso dela, também não houve rompimento familiar na ida para lá. Este

também foi o caso do Peri, que foi para o abrigo juntamente com a mãe. Ambos não

representam a instituição como ruptura. Suyá e a irmã foram as primeiras pessoas a morar no

abrigo. Foi assim para um espaço social que já freqüentavam, pois o abrigo é da religião

delas. Quando lá chegaram, Suyá pôde ajudar as enfermeiras em certas atividades. Não

rompimento familiar nem de círculo social, reativação que sempre lhe deu funções e figuração

de utilidade, tudo fez e faz que ela não perceba negativamente o abrigo. Amenizar a ruptura,

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mantendo elos com a vida anterior, é, pois, um princípio altamente positivo para a vida

institucionalizada.

Outra questão que se pode propor para melhora da instituição a partir das

representações modeladas pelos idosos é a relação com o espaço externo. Praticamente não há

o estímulo para atividades fora do espaço intramuros. Um dos principais pontos atuais de

reativação e socialização de idosos são os programas de terceira idade que estimulam contatos

entre eles, seja em associações ou clubes para organizar festas e viagens. Nada disso se vê no

abrigo. O único contato externo explicitado (Miro) é marcado como altamente positivo.

Além disso, as próprias visitas da comunidade também são atividades que quebram

com a solidão e separação dos familiares. Tais encontros seriam ainda mais proveitosos se

refigurassem a imagem do convívio alegre da festa na infância (Celeste, Ava e Aog). As

visitas, mesmo que padronizadas e formais, mostram-se positivas, muito ganhariam se

retomassem este elo com um dos poucos traços pelos quais delineiam a felicidade como algo

presente ao longo de suas vidas.

O elo da família, outra questão delicada, pois sempre implica que suas questões mais

pessoais e específicas devam merecer destaque, também precisa ser priorizada. A se notar,

neste sentido, uma diferença entre as duas instituições: o segundo abrigo, ao manter contato

constante com os familiares por meio de reuniões, reforça vínculos que o outro não parece

preocupado em estimular.

Há outras questões que merecem ser ressaltadas. Embora a igualdade seja um quadro

apresentado pelos idosos como presente nos abrigos, notam-se, conforme aponta Goffman

(1961), certos privilégios entre os internos. Este é o caso da Suyá. O curioso é que nenhum

dos demais figura claramente tal questão como um problema: dada a carência material em que

viviam no período anterior ao asilamento, o tratamento presente é destacado como positivo

em detrimento de qualquer menção a privilégios.

Há, sim, um cuidado em se manterem afastados da imagem pela qual vêem o outro.

Como lá se mesclam idosos em diferentes condições psicofísicas de saúde, há uma constante

demarcação do próprio psiquismo ao se negar ser o outro. Esta ruptura parece reforçar a

ligação na infância com os familiares, com aquilo que lhes é semelhante. Deve-se, pois, pôr

em questão se, assim como em outras instituições, o critério psíquico e físico da sanidade não

deveria criar parâmetros para estabelecer proximidades de relacionamento e convívio.

Outra questão difícil de ser abordada é a religião. Ainda que ela possa implicar uma

fuga do enfrentamento dos problemas atuais, ela lhes figura um caráter catártico ao entregar

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nas mãos da Providência tanto o presente quanto o futuro. Reconforta na solidão, recompõe,

por ancoragem, ou reforça, por incremento de uma objetivação social anterior, os elos da vida

que podem se mostrar sem sentido, se com ela não se contasse.

Cabe, no entanto, destacar as possíveis dificuldades de aceitação de diferenças

religiosas. Este parece ser um problema tanto para o primeiro abrigo, ligado a uma religião;

quanto ao segundo, em que a presença de crenças distintas livremente manifestas pode

estabelecer conflitos entre os internos.

Vale destacar que nenhum dos dois abrigos apresenta traços de violência manifesta. A

dignidade e integridade física dos idosos são preservadas e eles assim as configuram

positivamente, marcando em si mesmos, pela doença e fraqueza física, uma carência que lá é

tratada. No entanto, a dignidade da cidadania não se nota: o principal reclamo de todos é a

perda de autonomia, de não poderem mais assumir decisões na própria vida. Há nisto uma

violência simbólica: a que retira dos homens um de seus direitos mais valorosos, a liberdade.

Aqui, contudo, se a instituição pode melhorar – e ela deveria, e muito, fazer isso –, tal

melhora não ocorrerá completamente se as desigualdades sociais do lado de fora do abrigo

não diminuírem. Afinal, eles levam para a instituição e lá internalizam as exclusões que estão

fora de seus muros, mas que são internamente representadas por eles.

Por último, cabe aqui destacar que as representações sociais sobre instituição se

caracterizam por uma diversidade de significados e sentidos existenciais. Se se olhar pela

trajetória de vida, marcada por perdas e abandono, o abrigo é configurado como “tábua de

salvação” e “providência divina”, sendo assim um lugar que acolhe, cuida, trata das doenças e

supre as necessidades materiais. Por outro lado, o asilamento resulta de um processo de

exclusão do meio social. Nesse sentido, o abrigo é representado como um local desagradável

e “frio”, restando a espera da morte.

As representações sobre instituição asilar estão ancoradas nas significações

construídas de outras instituições em que se viveu a dialética da inclusão e exclusão social,

objetivadas por meio de imagens, ora positivas, como “hospital; lar substituto; local divino”;

ora negativas, como “ambiente não-familiar e ameaçador; local de assistência precária e de

atendimento desigual e injusto”, dependendo da posição do idoso frente às suas necessidades

e desejos. Os sentidos atribuídos pelos sujeitos à instituição sintetizam uma existência

marcada pela busca de uma adaptação ativa à sociedade pelos fracassos e sucessos

percebidos; pelas relações de amor e ódio; pelos processos de vida e morte.

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APÊNDICE A – Termo de esclarecimento aos sujeitos da pesquisa

Eu, Telma Maria Leite, aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia vinculado à

Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto, sob

orientação do Prof. Dr. Sérgio Kodato, estou realizando um estudo sobre idosos que moram

em abrigos. Pretendo, portanto, compreender como cada idoso percebe a sua vida. Assim

sendo, necessito de sua colaboração para participar de uma entrevista. Para tanto:

a) A sua participação deverá ser inteiramente voluntária, ou seja, de sua livre vontade;

b) Não existe nenhum risco em participar da entrevista;

c) A entrevista será gravada para eu não perder as informações que o(a) Sr(a) me der,

mas essa gravação não será mostrada a ninguém;

d) O(a) Sr(a) será entrevistado sobre questões ligadas à sua vida passada, presente e o

que espera dela para daqui em diante.

e) Todas as informações que o(a) Sr(a) der serão mantidas em sigilo absoluto e utilizadas

apenas para esse estudo. Assim, o seu nome não será identificado e ninguém saberá da

sua participação;

f) O(a) Sr(a) estará livre para desistir da sua participação em qualquer momento da

entrevista.

Considerando os aspectos acima descritos, eu, ______________________________,

aceito participar desse estudo, visto que minha participação é inteiramente voluntária e estou

livre, a qualquer momento, para desistir de conceder a entrevista, sem nenhum prejuízo a

mim.

Assinatura do entrevistado: __________________________________________________.

Assinatura do entrevistador: _________________________________________________.

Uberlândia,________, de______________________de_________.

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APÊNDICE B – Roteiro de entrevista

Fale-me sobre a sua vida.

Como foi o seu relacionamento com os seus pais?

Como é o seu relacionamento com os seus irmãos?

Há quanto tempo o(a) senhor(a) está aqui no abrigo?

Qual foi o motivo da sua vinda para cá?

Como foi essa decisão de vir para o abrigo?

Como é para o(a) senhor(a) morar aqui?

Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?

O(a) senhor recebe visitas?

O(a) senhor(a) faz alguma atividade aqui dentro?

O(a) senhora faz algum plano para daqui adiante?

O(a) senhor(a) gostaria de falar mais alguma coisa?

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APÊNDICE C – Síntese das entrevistas33 ENTREVISTA 1 Entrevistada: Suyá Naturalidade: Patrocínio - M.G Idade: 82 anos Escolaridade: 1° ano primário Estado civil: Solteira Tempo de abrigo: 09 anos e 07 meses A entrevistada é de uma família constituída por cinco filhos – três mulheres e dois homens. Destes, apenas um, que é o mais novo, está vivo. Ela é a penúltima filha do casal. É solteira, natural de Patrocínio, cidade localizada no Triângulo Mineiro. Cursou até o segundo ano primário. Embora seus pais fossem casados, ela e os irmãos, segundo suas afirmações, foram criados praticamente apenas pela mãe, pois o pai “aparecia em casa, engravidava esta e desaparecia”. Ela afirma que não o conheceu, embora declare que tem lembrança dele, ainda que pouca. A mãe, conforme relata, fez de tudo para os filhos, trabalhando em serviço pesado no meio rural para cuidar deles. Ela acompanhava a mãe no trabalho, fosse na colheita, fosse na lavagem de roupas nas casas dos outros. Os irmãos, após o falecimento da mãe, separaram-se uns dos outros. Três permaneceram com os familiares: um ficou na casa da avó; outro, na do tio; uma, com a tia. Ela e uma de suas irmãs foram morar e trabalhar na casa de terceiros. Declara que se entristece com o fato de a família ter se esparramado, porque a considera uma instituição divina. Na ausência do pai, um tio dela decidiu que moraria em casa de terceiros. Este soube, por meio de uma conhecida, que uma mulher queria “criar uma negrinha do serviço”. Começou a trabalhar nessa casa quando tinha cerca de dez anos. Afirma que foi para tal lugar para ser escrava pelo fato de eles terem pego “uma menina cedo, ainda mais de cor”. Além disso, declara também ter sido tratada como escrava por haver “muito preconceito por causa da cor”. Não recebia salário e era mal tratada. Morou nessa casa, em que funcionava uma pensão, por cerca de treze anos. Lá exerceu a função de cozinheira a partir dos quatorze anos. Deixou de ali trabalhar por decisão da patroa, que lhe pediu “para juntar as trouxas”. Isto ocorreu, conforme afirma, por ter se revoltado com o modo pelo qual era tratada. Ao sair dessa casa, passou a morar próxima dos familiares. Mudou-se, então, para Patrocínio. Lá trabalhou em casas de família e também como cozinheira em um colégio durante sete anos. Nestes empregos recebeu um pequeno salário, o suficiente, segundo ela, para arcar com gastos referentes à comida. Afirma que, nas casas em que trabalhou, os quarto em que dormia eram sempre os piores. Mesmo assim, diz que foi vítima de maior preconceito na primeira casa em que morou. Destaca que os motivos para mudar de emprego, via de regra, foram conflitos dela com os patrões. Trabalhou nessas residências até por volta de quarenta anos, quando se mudou para Uberlândia acompanhando a família que fora para lá. Além disso, os americanos para os quais trabalhava voltaram para seu país. Em Uberlândia, também trabalhou em várias residências, mas, neste ínterim, começou a aprender a costurar. Depois ela adoeceu e, com ajuda de amigos, foi encaminhada para São Paulo a fim de fazer tratamento para Doença de Chagas. Como seu caso foi considerado muito grave, disseram-lhe que havia poucas chances de sobreviver. Dos três anos que lhe deram de vida já ultrapassou os trinta. Passou então a viver de costura, já que não podia trabalhar em outra coisa. A sua família é extensa. Atualmente tem primos e sobrinhas. Estas a visitam com freqüência no abrigo. De vez em quando tem notícias do irmão que mora em São Paulo. Afirma que não queria morar com ninguém da família, porque tiraria a liberdade dos outros e ficaria sem a sua. O motivo de ter ido para o abrigo foi o fato de uma de suas irmãs, que sofrera “derrame cerebral”, depender de seus cuidados, e ela, por também estar doente, não mais poder ajudá-la. Antes da sua decisão final de ir para o abrigo, consultou sua médica que lhe aconselhou a sua internação e da irmã, pois no futuro elas não poderiam de forma alguma viver sozinhas. Foi para lá a convite do pastor de sua igreja. Este já havia dito que tão logo o abrigo ficasse pronto, ela e a irmã iriam para tal local. Quando decidiu, ela e a irmã foram prontamente aceitas na instituição, sendo as duas primeiras moradoras do abrigo. Afirma não ter 33 As informações sobre os idosos apresentadas inicialmente neste tópico foram retiradas de seus prontuários. As sínteses foram realizadas a partir dos dados fornecidos pelos próprios idosos nas entrevistas.

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estranhado nada quando se mudou para lá. A irmã faleceu no abrigo. Após sua morte, o pastor da igreja construiu uma casa dentro do próprio abrigo para ela morar. A princípio, por estar deprimida, não se importou com a casa, mas diz que depois gostou muito dela. Afirma estar num lugar “que Deus preparou pra velhice dela e pro que não tem boa saúde”. Como, segundo diz, já sofreu muito na vida, ali encontra tudo limpo e também quem dela cuide. Diz que ali uma pessoa idosa e doente encontra tudo de que precisa para viver. Considera-o um lugar preparado por Deus, pois acredita que quem nele confia não fica desamparado. Também atribui a Deus o fato de muitas pessoas a ajudarem ao longo da vida. Anteriormente saía do abrigo quando quisesse. Por causa do seu estado de saúde atual, permanece nele o tempo todo por opção própria e também por sugestão do pastor da igerja. Afirma ter bom relacionamento com os colegas e funcionários do abrigo. Recebe visitas freqüentes dos parentes e de pessoas da comunidade. Ela ajudava a olhar os internos quando a enfermeira estava sozinha e tinha de levar, em situação emergencial, algum idoso para o hospital. Atualmente conserta as roupas dos internos do abrigo e, na maior parte do tempo, faz crochê, que é vendido, sob encomenda, a pessoas que freqüentam o abrigo. Lamenta, retrospectivamente, não ter tido um lar. Declara, sobre o futuro, não querer viver por muito tempo mais, pois, segundo ela, tudo está “nas mãos de Deus e que seja feita a vontade dele, mas gostaria de não ficar igual aos colegas, na cadeira de rodas porque é muito triste”. ENTREVISTA 2 Entrevistado: Miro Naturalidade: Alto Graças - M.T Idade: 74 anos Escolaridade: Alfabetizado Estado civil: Separado Tempo de abrigo: 09 anos e 06 meses O entrevistado é natural de Alto Garças (M.T). É de uma família constituída por doze filhos (seis homens e seis mulheres). Atualmente há duas irmãs vivas. Uma mora no Paraná; a outra, em Uberlândia. Ele e seus irmãos foram criados pelos pais. Estes, conforme afirma, foram muito bons para os filhos. Tinha cerca de quinze anos quando seu pai faleceu. A mãe faleceu com mais de sessenta anos. Declara que a mãe lhe tinha um afeto especial por ser o filho caçula. Casou-se, mas se separou, com pouco mais de três anos de casado, porque se apaixonou por outra mulher. Teve uma filha desse casamento. Com a nova companheira também teve um filho. Como esta faleceu, o filho, ainda criança, foi criado apenas por ele. Este também faleceu, aos vinte e dois anos de idade, vítima de acidente de moto. Em relação à filha, declara que pouco se encontraram. Afirma que desfrutou muito da vida, tendo se casado e se amasiado várias vezes. Após a morte da segunda esposa e do filho, preferiu não ter mais elos duradouros. Está sozinho há mais de vinte anos. Trabalhou, ao longo dos anos, em diversas coisas: como corretor; em olaria; como guarda que fazia controle de chegada e saída de carro; teve uma loja comercial; além disso, negociou muitos produtos. Afirma que vivia bem financeiramente até ter ficado doente. Se não fosse a doença, diz ele, estaria rico. Mas, mesmo assim, paradoxalmente declara ter dinheiro no banco e estar rico. Sofreu “derrame cerebral”, o que, segundo ele, desencadeou-lhe a ida para o abrigo. Um dos sobrinhos foi o responsável por levá-lo até lá, porque achou que este seria o melhor local para tratar de sua saúde, visto que tal sobrinho não poderia cuidar dele. Diz que foi para este abrigo porque tem muitos parentes em Uberlândia. Quanto à doença, afirma que ela interferiu na sua locomoção, mas que as seqüelas não foram tão graves, porque ele ainda pode ler e escrever, estando a memória preservada. Declara se sentir bem no abrigo, por lá ser bem tratado e ter tudo de que precisa: médico, várias refeições por dia; remédios; pronto atendimento quando necessário. No entanto, afirma que, nas atuais condições de saúde, qualquer lugar ser-lhe-ia bom. Acredita que a saúde é a coisa principal para o homem, pois sem ela tudo acaba. Em Uberlândia, além de uma irmã, tem muitos sobrinhos. Possui parentes em outras cidades. Afirma receber visitas esporádicas de um sobrinho e da irmã, porque, segundo alega, eles são muito ocupados. Visitam-no ou mensalmente ou num período mais espaçado. Mantém contato por telefone com os sobrinhos. Diz que os parentes estão longe e que não mais se importa com isso. Recebe visitas de várias pessoas da comunidade. Afirma que as pessoas do abrigo são boas e que se dá bem com todos. Em relação às atividades, vai semanalmente ao CEAI há quatro anos. Afirma isso ser bom por ajudar a passar o

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tempo. Faz fisioterapia semanalmente, além de caminhada e muitos exercícios. Declara que, embora a melhora seja imperceptível, anima-se a sempre fazer mais. Espera fazer muita coisa ainda e, se tivesse saúde, cuidaria da casa herdada da irmã recentemente falecida, atualmente alugada. Por outro lado, afirma que não espera mais nada da vida porque nunca ouviu falar que alguém recobrasse a saúde depois de um “derrame”. Ainda tem expectativa de encontrar-se com a filha, mas constata que nunca houve tal contato para que isso ocorra agora. Além disso, alega ser para ela difícil fazer isso, já que é casada e tem filho. Ele, por causa da doença, não pode ir até lá. Diz, contraditoriamente, que não se preocupa com esse distanciamento por não haver mais vínculos entre eles há vários anos. Como muitos anos se passaram, afirma que não se recorda dela, dizendo ser preciso haver contato para que possa haver relacionamento. Declara, assim, que a vida é uma constante mudança em que nada perdura. Conclui que o melhor é “entregar pra Deus porque ele arruma tudo. A única coisa que pode resolver é Deus. Mais nada”. ENTREVISTA 3 Entrevistada: Celeste Naturalidade: Zona rural de Igarapava - S.P Idade: 79 anos Escolaridade: Alfabetizada Estado civil: Solteira Tempo de abrigo: 03 anos e 08 meses A entrevistada é proveniente da zona rural de Igarapava (S.P), tendo lá passado a infância e a adolescência com os pais. Estes faleceram há muitos anos. Ela é a terceira filha mais nova desta família constituída por doze irmãos, cinco homens e sete mulheres. Somente três permanecem vivas. Uma de suas irmãs também reside em Uberlândia; as demais, em diferentes cidades: uma, no Distrito Federal; a outra, em Goiânia. A entrevistada possui baixo nível de escolaridade, pois não chegou a concluir nenhuma série escolar. É, no entanto, alfabetizada. Declara que havia tranqüilidade no lar, tendo tido um bom relacionamento com os pais, marcado sempre por um respeito mútuo. Afirma que tanto os seus pais agradavam os filhos quanto estes, desde crianças, auxiliavam-nos em todos os serviços domésticos. A sua infância no meio rural foi assim, de acordo com ela, marcada pelo trabalho; com efeito, além de colaborar com os pais nas tarefas domésticas, ela amiúde os ajudava no plantio e colheita de produtos que possibilitavam a subsistência da família. Afirma ter sempre sido feliz enquanto morou com os pais. Segundo ela, sua vida só se descontrolou a partir das doenças que lhes ocasionaram a morte. Ela conta que permaneceu morando sozinha após a morte dos demais irmãos. Ela destaca que, após os falecimentos – sobretudo o da mãe, dado o forte vínculo com ela – sua vida não mais teve alegria. Trabalhou, quando se mudou para a cidade de Uberlândia, como lavadeira e passadeira de roupas. É solteira e afirma que teve vontade de se casar. Declara ter tido a possibilidade, mas, sem apontar justificativa, diz que ela e o nubente desistiram do casamento. Morou, por um curto período de tempo, com a irmã que reside em Uberlândia. Não pôde, contudo, lá permanecer porque, segundo ela, não era bem quista pelo cunhado. O avançar da idade e as limitações da saúde, decorrentes da doença, impedem-na de trabalhar, visto não mais ter forças suficientes para o trabalho em função do que ela afirma ser o “enfraquecimento das pernas”. Não consegue, contudo, precisar qual é este problema físico. Afirma que o dinheiro que recebe da aposentadoria a “protege”. Os motivos, portanto, que acarretaram a ida para o abrigo, de acordo com as suas afirmações, resultam do fato de estar sozinha; em função do falecimento dos pais e dos irmãos; da falta de pessoas a quem possa recorrer por causa das limitações da saúde, visto que as irmãs, sobrinhos e outros parentes por ela não se interessem nem lhe queiram próxima deles. A vaga no abrigo foi obtida pelo cunhado. Foi ele quem entrou em contato com o local e, na seqüência, firmou o acordo de internação. Ela diz ter respeitado esta decisão dos familiares, visto que perdera, com a idade, o poder de decisão sobre sua própria vida. Afirma ter ficado, a princípio, insatisfeita em lá morar, mas que aos poucos foi se acostumado, visto não ter outra escolha. Comenta, de modo contraditório, que desconhece o motivo da decisão do cunhado procurar por vaga no abrigo e refere a sua vida como “dura”, já que não é possível fazer o que deseja, dadas as limitações decorrentes da doença, e pelo fato de permanecer distante dos seus familiares. Afirma que tem como expectativa receber dinheiro da família para poder então

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comprar as coisas que deseja, visto que os seus familiares nada lhe dão. Recebe visitas esporádicas da irmã e do cunhado que residem em Uberlândia. Estes, vez ou outra, trazem cartas ou notícias das outras irmãs. Tem vários sobrinhos e também recebe visitas esparsas de alguns deles. Possui primos e outros parentes de grau mais distante, mas não tem com estes nenhuma proximidade. Mantém contato restrito com os colegas de abrigo. Afirma que arruma diariamente a cama dela. Permanece, contudo, ociosa durante o dia todo, sentada em uma cadeira que se encontra no pátio do abrigo. Depende, em função da tal “fraqueza nas pernas”, dos cuidados de um funcionário do abrigo que se responsabiliza por dar-lhe o banho. Declara que é bem assistida no abrigo, pois não lhe faltam médico e remédio. Nota, no entanto, um enfraquecimento com o avançar da idade. Diz que, por tais limitações de saúde, está impedida de realizar certas tarefas. Afirma ter conflito com funcionários do abrigo porque retiram, sem seu consentimento, folhas de alecrim de seu vaso. Em relação à convivência com os colegas, declara se relacionar apenas com alguns deles. A vida dela, segundo suas afirmações, fora sempre difícil e, assim sendo, marcada por muito esforço e luta. O desejo expresso é o de ter a mãe, o pai e todos os irmãos presentes ao seu redor. Relembra, tendo se emocionado, a época em que a mãe era viva, quando permaneciam diariamente juntas, fazendo companhia uma para a outra. Concorda com a afirmação da mãe que lhe previa muito sofrimento após sua morte. Pede, assim, que a mãe venha buscá-la, findando o infortúnio da vida terrena para viver lá no céu. Quanto às precauções clínicas, ela afirma seguir à risca e de bom grado a medicação prescrita, como manifesta vontade de curar-se, pois almeja autonomia e independência para fazer o que deseja. Declara, no entanto, que desconhece o rumo que sua vida seguirá. Diz, porém, que Deus sabe o que deve fazer por ela. Não deixa, contudo, de pedir a morte para Deus, pois se sente uma pessoa sofrida e abandonada pelos familiares. ENTREVISTA 4 Entrevistada: Aracê Naturalidade: Sacramento - M.G Idade: 64 anos Escolaridade: 3° ano primário Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 07 anos e 09 meses A entrevistada é natural de Sacramento, cidade localizada no Triângulo Mineiro. A sua família base era composta, além dos pais, por sete filhas e treze filhos, sendo ela a penúltima a nascer. Atualmente, apenas três irmãos estão vivos: duas irmãs e um irmão. Todos residem no Distrito Federal. Ela tem também vários sobrinhos dispersos, morando em São Paulo, em Rondônia e no Distrito Federal. Apenas um deles reside em Uberlândia. Afirma que ela sempre morou com os pais. Mesmo com o falecimento da mãe, que ocorreu há cerca de dez anos, permaneceu com o pai até a morte. Afirma que ela e o pai tinham bom relacionamento, sendo muito próximos um do outro. Declara ter epilepsia desde os cinco anos de idade. Foi assim obrigada, por ordem médica, a interromper os estudos, dadas as freqüentes crises convulsivas causadas pela doença. Cursou, por isso, apenas até o terceiro ano primário. Comenta não ter crises há mais de ano, mas diz que, conseqüência da doença, a sua “cabeça é ainda provocada e o sentido é muito fraco, tendo ficado lerda e esquecida demais”, o que a impossibilita de recordar os fatos passados. Em virtude disso, os pais, segundo ela, cercavam-na de cuidados, tendo a mãe recomendado aos outros filhos que mantivessem o mesmo tratamento, visto que a “sua cabeça não funcione direito” por causa dos inúmeros desmaios sofridos. Casou-se após a morte do pai. Permaneceu casada por cinco anos. Logo após a separação conjugal, o ex-marido também faleceu. Afirma que se separou dele porque ele tinha “fingido” passar para a sua religião (ela é evangélica, membro da Igreja Presbiteriana); e – o que para ela é ainda mais grave – porque ele a tinha “forçado a ir para a macumbaria”. Assim sendo, afirma ter-lhe avisado, visto ele se interessasse por outra religião, que “passasse sozinho para o caminho do demônio, porque macumbaria é algo maligno e nunca de Deus”. Ela e a sua família, entretanto, desde criança são, conforme ressalta, seguidores de Deus. Dedicou-se, enquanto permaneceu casada, aos serviços domésticos. Não teve filhos, pois os remédios que toma diariamente poderiam interferir na concepção. Morou, após a separação conjugal, com as irmãs, auxiliando-as nos serviços domésticos. Permaneceu por um tempo maior na casa da irmã de quem se diz mais próxima. Esta, mais velha, lhe é imediatamente precedente. Ali permaneceu

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até a irmã decidir levá-la para o abrigo. Afirma ter sido bem cuidada por ela, o que diz ocorrer ainda hoje. Isso faz, segundo diz, que seus sobrinhos tenham ciúmes da relação dela com a irmã, dado o excesso de zelo que esta sempre lhe teve. Refere, porém, os desmaios como o principal motivo de sua ida para o abrigo, já que não podia, por causa disso, permanecer sozinha em casa. Diz também que, desrespeitando orientações médicas, lá se mantinha sempre ocupada com os serviços domésticos. Acresce que se machucava muito, pois, em função dos desmaios, caía sobre objetos de estruturas metálicas, como fogão e ferro de passar roupas. A decisão de ir para um abrigo na cidade de Uberlândia ocorreu por sugestão do sogro do sobrinho dela, que é o pastor da igreja a que o abrigo está vinculado. Retorna a Brasília apenas para o Natal, passando-o com a família, a convite da irmã mais velha. Em tal ocasião, para lá viaja com o sobrinho que mora em Uberlândia. Esta irmã também a visita esporadicamente. Recebe, contudo, notícias freqüentes dela por meio do pastor da igreja. Justifica, pelo excesso de trabalho, as poucas visitas do sobrinho; pela idade avançada, o fato de os outros irmãos não a visitarem. Comenta, contudo, receber visitas diárias das pessoas que freqüentam o abrigo. Afirma que é para ela indiferente morar no abrigo ou na casa da sua irmã, mas declara que gostava, quando permaneceu na casa da família, de manter-se ocupada com os afazeres domésticos diários. Diz não conseguir realizar os serviços do abrigo dada a sobrecarga de trabalho. Declara, além disso, não ter bom relacionamento com alguns colegas do abrigo, irritando-se com o fato de eles terem “cabeça fraca”, visto que a incomodem com tais limitações. Falta-lhes, segundo ela, boa educação, além de, como contraditoriamente afirma, “fazerem malandragem por ter a cabeça melhor do que a dela”. Eles, ademais, diz ela, têm “malícia” e aborrecem-na, por agirem de modo a irritá-la. As atitudes destes fazem-na recordar-se, por semelhança, das atitudes dos sobrinhos quando ela morava com a família. Cabe, por fim, ressaltar que ela se dispõe, quando se encontra em boas condições de saúde, a ajudar a cozinheira do abrigo. Auxilia assim, a pedido desta, na retirada da polpa das frutas, na realização da limpeza do pátio e no descascar verduras. Gosta, além disso, de assistir aos cultos realizados na igreja. Afirma não ter expectativas para a vida, ressaltando, entretanto, querer continuar recebendo visitas da irmã. Destaca não poder efetuar escolhas, visto sempre ter sido muito doente e, em decorrência disso, ter hoje de morar no abrigo. Espera as ordens de Deus para a sua vida presente e futura, pois, conforme alega, a escolha “do dia de hoje, de amanhã e de depois de amanhã”, visto ela não tenha como determinar as possibilidades para a sua vida, não está em suas mãos.

ENTREVISTA 5 Entrevistada: Lana Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G Idade: 68 anos Escolaridade: 3° ano primário Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 07 meses Os pais desta entrevistada tiveram cinco filhas e um filho. Atualmente, além dela, estão vivos duas irmãs e um irmão. Ela é viúva, tendo um filho, três netos e vários sobrinhos. Nasceu e foi criada na zona rural, numa região próxima à cidade de Uberlândia (M.G). Justifica por ter tal proveniência o fato de ter cursado somente até o terceiro ano primário. Trabalhou até sessenta e seis anos de idade, tendo parado apenas quando, segundo afirma, sofreu “derrame cerebral”. Apresenta ainda as seqüelas físicas da doença. O trabalho esteve, portanto, presente em sua vida desde a infância. Sendo assim, relata que auxiliava os pais tanto nos afazeres domésticos diários quanto no plantio e colheita de alimentos para a subsistência da família. Com o falecimento dos pais, no início da adolescência, mudou-se para São Paulo e empregou-se como babá de crianças e doméstica, lavando e passando roupas na residência da madrinha do irmão. Lá se casou e mudou-se para a Bahia, local de nascimento do filho. Passados alguns anos, ficou viúva. Relata que na Bahia trabalhou na zona rural, outra vez plantando e cultivando produtos para o sustento da família. Cuidou, além disso, do próprio lar e exerceu, nas horas vagas, a função de costureira. O seu filho então amasiou-se e, sem a permissão dela, conforme afirma, morou com a esposa em sua casa. O fato de ela estar doente, de não ser respeitada pela nora, e de elas permanecerem em conflito fez que ela entrasse em contato, por meio de carta, com os familiares que residem em Uberlândia, a fim de solicitar que eles a buscassem. Assim

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seu irmão a levou para lá, passando ela então a residir nos fundos da casa dele. Afirma, no entanto, ter ficado insatisfeita por estar longe do filho. Diz ter sofrido muito por não aceitar tal distanciamento. O seu irmão, diante dessa situação, escreveu para o filho dela pedindo para que este também se mudasse para Uberlândia e vivesse próximo da mãe. Tendo o filho prontamente atendido o pedido, ela novamente passou a morar com ele e a nora. Mas, visto que ela e a nora outra vez se desentendessem, relata que o casal mudou de bairro. Ela, por sua vez, foi para a casa da irmã – que é a mais velha dentre os irmãos vivos – a fim de auxiliá-la, já que esta se encontrava doente. Retornou, porém, após alguns meses, para a casa do filho. Dado que este e sua esposa lhe tivessem “desmanchado a casa”, ela diz que, desse modo, teve de morar com eles, tendo sido construído um cômodo especialmente para ela. Foi, neste período, que afirma ter sofrido “derrame cerebral”. Necessitou então do auxílio constante dos mesmos para locomover-se dentro de casa. Declara ter então sofrido maus tratos, tanto morais como físicos. Diz também que houve, da parte dos dois, negligência com a sua saúde. Assim sendo, pediu ao filho para que a levasse a um abrigo, pois não queria mais viver naquela situação. O irmão dela, ao ficar ciente dos maus tratos e saber da vontade da irmã, conseguiu uma vaga no abrigo. Ela, em vista disso, comenta não ter boa relação com o filho e com a nora, dado eles serem, segundo ela, “muito nervosos e impacientes”. O irmão a que ela faz referência é o “caçula” da família. Ela afirma que ele sempre se responsabilizou pelos cuidados dos demais irmãos. Por isso, diz ter muito respeito para com ele. Tal irmão a visita com freqüência. O seu filho a leva quinzenalmente ao médico. Além disso, aparece quando é preciso levar-lhe alguma coisa no abrigo. Os seus netos e sobrinhos visitam-na esporadicamente. Ela comenta receber visitas das crianças de algumas escolas primárias que, segundo suas afirmações, levam os alunos aos asilos para visitar as pessoas que lá estão. Tem, a partir da promessa de um dos seus sobrinhos, a expectativa de passear na chácara dele a fim de “passar umas horas” com a família. Ela justifica permanecer todo o tempo ociosa porque recebe tudo na mão e já pronto. Acresce, porém, que não realiza tarefa alguma no abrigo por estar, como seqüela do “derrame cerebral”, “desafirmada”. Declara que o filho se aborrece com o fato de ela fazer comentários sobre a sua história de vida e os motivos que a levaram para o abrigo. Comenta que um funcionário do abrigo não gosta dela, chamando-lhe a atenção quando ela se prontifica a auxiliar nos cuidados de alguns colegas. Afirma que a vida no abrigo lhe propicia liberdade, pois se sente no direito de efetuar escolhas, ao contrário do modo como vivia com o filho e a nora. Assim sendo, de acordo com as suas afirmações, “ela saiu do inferno e caiu no céu”. Justifica pela idade a falta de expectativa na vida, e afirma que deve permanecer no abrigo até a sua morte por não haver outra possibilidade de escolha. Diz pedir a Deus que ele lhe dê forças suficientes, até o fim de seus dias, para conseguir realizar ao menos os cuidados básicos consigo própria. Ela, segundo a sua afirmação, “nasceu para sofrer até a hora da morte pela força do destino” porque a vida dela, em toda a sua trajetória, sempre foi marcada por sofrimento decorrente da perda precoce dos pais e de muita luta e esforço para a sua sobrevivência. Além disso, justifica o seu sofrimento comparando-o com a desgraça sofrida por Jesus. Afirma assim poder suportá-lo, já que o próprio Jesus também muito sofreu. ENTREVISTA 6 Entrevistada: Ava Naturalidade: Zona rural de Veríssimo - M.G Idade: 89 anos Escolaridade: 3° ano primário Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 1 ano e 10 meses A entrevistada nasceu e foi criada na zona rural de Veríssimo (M.G.). É a filha mais velha de uma família de nove filhos – cinco homens e quatro mulheres. Atualmente apenas uma irmã e um irmão estão vivos. Ambos moram em Uberlândia. Afirma que a infância vivida no meio rural foi muito boa, sobretudo pelo ótimo relacionamento entre pais e filhos, com muito respeito destes para com aqueles. Neste período, a mãe e os filhos trabalhavam em conjunto. Estudou até o terceiro ano primário. Casou-se quando já morava na cidade, mas há mais de vinte anos é viúva. Ainda hoje declara sentir muita falta do marido, pois, para ela, tal perda é “a coisa mais doída da vida”. Ressalta que se dava muito bem com ele, pois, além de muito trabalhador, ele nada deixava faltar em casa. Diz que o marido trata

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dela até hoje, porque lhe deixou casa e pensão, dinheiro que atualmente a mantém. Salienta, por um lado, que não quis morar, após o falecimento dele, com outras pessoas, embora propostas de pretendentes tenham surgido. Por outro, declara ter tido um outro companheiro, também já falecido. Teve três filhos. Um deles morreu ainda criança por causa de sarampo. O filho mais velho mora atualmente em São Paulo; o mais novo, em Uberlândia. Este foi criado por uma irmã dela até os onze anos de idade para poder estudar. Nesta idade, contudo, voltou a morar com ela. Afirma ser boa sua convivência com os filhos. Ressalta, no entanto, nunca ter necessitado de qualquer ajuda deles, em virtude do que o marido lhe deixara. Destaca, mesmo assim, que o filho mais novo, quando a visita, sempre a presenteia. Ela trabalhou, no meio rural e na cidade, como lavadeira. Depois de alguns anos de casada, o marido não quis que ela trabalhasse fora, já que ele e os filhos garantiriam o sustento da casa. Passou, então, a lidar exclusivamente com os afazeres domésticos. Morava sozinha até se adoecer. Passou a residir com o filho mais novo numa casa construída para ela nos fundos da dele. Este, conforme ela afirma, cuidou muito dela nesta época. Afirma, contudo, que tinha conflitos com a nora e com a neta, tendo sofrido, inclusive, maus-tratos físicos e morais. Crê que as duas foram a causa de sua ida para o abrigo, pois, seu filho, alegando não mais suportar ver os sofrimentos da mãe, pediu para que uma sobrinha dela arrumasse uma vaga no abrigo, tendo ido para lá a partir da doença do filho. Este sofreu “derrame cerebral” Depois da sua institucionalização, esta neta também levou o pai para fazer fisioterapia no abrigo. Este saiu de lá depois de ter apresentado melhoras físicas. Ele a visita semanalmente. Os seus irmãos nunca a visitaram e ela não sabe precisar o motivo. Afirma ter muitos parentes e declara receber sempre visitas da prima, da comadre e de uma sobrinha. Afirma que os demais idosos são boas pessoas. Ressalta que o abrigo é um bom lugar, pois todos são atendidos quando preciso, além de a comida ser boa e a mesma para todos. Diz tratar todo mundo bem. Ocupa-se com a realização diária de crochê que faz tanto para seu prazer quanto para vender. Embora refira a vida no abrigo como tranqüila, espera a melhora do estado de saúde do filho para retornar para a sua casa, fazendo, contudo, reiteradamente a ressalva de que esta vontade não está relacionada ao modo como é tratada no abrigo. Diz que o filho sempre reafirma o desejo de que ela more novamente com ele. Ressalta, assim, que na própria casa há liberdade para fazer e comer o que deseja, diferentemente da casa dos outros em que se deve aceitar o que lhe dão. Afirma que não se deve esquecer de Deus porque ele dá “força, coragem e saúde”. Além disso, diz que daqui em diante “nós tudo está nas mãos de Deus” e, se Deus quiser, ela voltará para a sua casa. Lá ela quer “plantar cebola, criar galinhas e cuidar da casa”. ENTREVISTA 7 Entrevistada: Tiana Naturalidade: Zona rural de Monte Alegre - M.G Idade: 83 anos Escolaridade: Analfabeta Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 05 anos e 09 meses A entrevistada nasceu e foi criada pelos pais, juntamente com os irmãos, na zona rural de Monte Alegre (M.G). Ela é a sexta de uma família de doze filhos – seis mulheres e seis homens. Três (uma mulher e dois homens) faleceram ainda crianças. Ela desconhece o paradeiro de uma de suas irmãs; os demaisjá morreram. Manifesta, contudo, vontade de ter notícias da irmã. Afirma que na infância ela e os irmãos apenas trabalharam porque “naquele tempo não dava importância pro estudo”. Declara que a vida na roça era boa, porque ela e a família trabalhavam e todos tinham saúde, não tendo “dificuldade de nada”. Declara, pois, que “vivia muito feliz” nesta época, pois os filhos trabalhavam em colaboração conjunta com os pais no plantio e colheita de produtos agrícolas. Estes, ademais, não deixaram faltar nada para aqueles. Afirma que trabalhava em excesso, mas não sentia o peso do trabalho porque a rotina de vida no campo lhe era familiar, visto que nascera e crescera naquele local e, além disso, porque tinha os pais. Reitera, pois, “que vivia bem, alegre e satisfeita, porque tinha eles”. Ela e os irmãos, ainda solteiros, se mudaram para a cidade, em função do falecimento dos pais. Foram morar com a irmã mais velha, já casada, que passou a se responsabilizar pelos cuidados deles. Posteriormente, em virtude do trabalho do cunhado, todos retornaram com eles para o meio rural.

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Afirma reiteradamente ter, então, se casado no local em que o cunhado trabalhava, a “Fazenda das Flore”, localizada no município de Canápolis. Atualmente é viúva. Teve um único filho, mas este faleceu com um ano e três meses de idade, vítima de doença. Na cidade, trabalhou em diversas residências como doméstica, lavadeira e passadeira de roupas. Por ficar doente e não mais poder trabalhar, sua patroa a aposentou, passando, a partir daí, a morar com uma sobrinha. Seu estado de saúde se agravou depois disso: “problemas nas pernas, nas vistas, muita tonteira e hérnia”. Ela, em vista disso, passou a depender totalmente dos cuidados da sobrinha. Como esta precisava trabalhar e se preocupava com o fato de ela permanecer sozinha em casa, decidiu levá-la para o abrigo. Esta sobrinha foi e ainda é, segundo suas afirmações, muito boa pra ela e tentava, no período em que moravam juntas, satisfazer as suas vontades. Atualmente, no entanto, a sobrinha não mais trabalha porque também é doente. Ela afirma ter muitos sobrinhos. Recebe visitas esparsas de alguns de seus parentes, num intervalo que varia de três a seis meses ou mais. A sobrinha, com a qual viveu, comparece mensalmente ao abrigo para tratar de questões burocráticas relativas à sua permanência no local. Ela manifesta vontade de receber visitas mais freqüentes dos familiares, pelo menos uma vez ao mês. Afirma desconhecer os motivos da demora das visitas dos mesmos, embora mencione a falta de tempo deles decorrente do excesso de trabalho. Acredita, por outro lado, que eles não a visitam por mero desinteresse. Ela lamenta, mas diz nada poder fazer. Por outro lado, fala que não se incomoda com isso e “o dia que eles resolverem, eles vão”. Ela justifica as suas poucas visitas na casa dos parentes pela indisponibilidade dos funcionários do abrigo em levá-la, dado o excesso de trabalho deles. Quando há possibilidade, a família dela a busca. Declara, por outro lado, receber muitas visitas da comunidade. No abrigo, ela realiza atividades voltadas para a leitura e escrita. Comenta que acha bom estar naquele local e gosta muito das pessoas que lá estão, pois são “boas pessoas”, não tendo ela que se “queixar de ninguém”. Diz que os funcionários a tratam muito bem, têm muita paciência com ela e com os seus colegas e fazem o que podem para atendê-los. Declara “que não quer fazer mais nada” e não deseja “mudar nada em sua vida”. Afirma que apenas mudaria se pudesse continuar trabalhando. Além disso, afirma que não quer fazer mais nada porque “as vistas não ajudam”; por outro lado, diz que não há possibilidade de fazer mais nada porque ela depende do uso de bengala. Segundo ela, a escolha para sua vida é essa que ora se faz, ou seja, é a vida que ela está vivendo. Manifesta interesse apenas por passar algumas horas ou um dia na casa dos seus familiares. Não faz planos e não espera mais nada porque “está no fim da vida e já fez o que tinha de ser feito: agora é esperar”. ENTREVISTADA 8 Entrevistada: Zica Naturalidade: Bom Jardim - M.G Idade: 80 anos Escolaridade: Analfabeta Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 05 anos e 07 meses A entrevistada, embora seja natural de Bom Jardim (M.G), foi registrada em Uberlândia (M.G), pois mudou-se, ainda nova, para esta cidade. É a quinta de uma família de dez filhos (quatro mulheres e seis homens). Atualmente tem quatro irmãos vivos, sendo destes apenas uma mulher. Esta reside em Brasília; um irmão mora em São Paulo; os demais, em Uberlândia. Com a separação dos pais, ocorrida na infância, ela permaneceu sob os cuidados da mãe e do avô. Os seus irmãos, por sua vez, ficaram sob a responsabilidade do pai e da madrasta com quem este se casou. Teve pouco contato com os irmãos na infância. Desconhece, segundo afirma, o motivo por que foi separada dos irmãos. Justifica não ter freqüentado escola porque onde foi criada acreditavam que mulher não precisava aprender a ler. Afirma ter tido vontade de estudar. Salienta que seus irmãos, que permaneceram com o pai, estudaram. Ela se casou, mas é viúva há mais de vinte anos. Diz ter tido um bom marido. Ela o auxiliou, tendo também trabalhado muito. Foi empregada doméstica durante quatorze anos na casa de uma mesma família, exercendo funções de cozinheira e auxiliando na educação dos filhos da patroa. Atualmente é aposentada. Teve uma única filha, mas esta faleceu quando tinha um ano e meio de idade, vítima de sarampo. Não teve outros filhos, ainda que, conforme diz, não os tivesse evitado.

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Adotou um menino com sete meses de vida como filho. Morou com ele antes de ir para o abrigo. Quando adoeceu, já aposentada, cuidava do neto que é deficiente, visto que seu filho bebia muito. No entanto, conforme afirma, depois da sua doença, o filho passou a cuidar muito bem do neto dela. Ela sofreu “derrame cerebral”. As conseqüências da doença impediram-na de se locomover. Passou então a andar em cadeira de rodas. Diz ter se descuidado da saúde por trabalhar demais a vida toda. Depois da doença, permaneceu na casa de uma das sobrinhas durante quinze dias. Antes disso, porém, morou um tempo na casa de um dos seus irmãos. Diz que a sobrinha, por trabalhar fora e não poder dela cuidar, levou-a ao abrigo, por lá haver tratamento fisioterápico. Ressalta que seu estado de saúde atual apresentou melhora quando comparado ao anterior à internação. Acha bom estar no abrigo, pois, conforme ressalta, lá tem “fartura”; não falta médico; tem “tudo no jeito”. Além disso, afirma que é muito bem tratada, pois ela e os outros internos fazem fisioterapia semanalmente. Destaca, contudo, não se sentir totalmente à vontade, porque lá é muita “gente falso, muita gente defeituoso, sendo um local perigoso”. Diz que, sem motivo algum, foi atacada por um interno. Além disso, afirma que o “povo de lá é tudo doido” e tem “gente de todo jeito”. Mantém-se, por isso, mais distante e silenciosa. Destaca, no entanto, gostar dos funcionários, mantendo também, segundo ela, um bom relacionamento com a sua colega de quarto. Recebe visitas esporádicas dos irmãos que moram em Uberlândia. Recebeu visita recente da irmã, após o falecimento do marido desta. Não tem notícia há muito tempo do irmão que mora em São Paulo e, conforme ela afirma, não a visita porque já está velho O filho e o neto a visitam quinzenalmente, nas folgas do trabalho do filho, já que este trabalha numa chácara e não pode sair de lá com mais freqüência. Além destes, recebe visitas da neta que, segundo afirma, a visita muito. Tem sobrinhos e alguns deles a visitam. A sobrinha, que a levou para o abrigo, raramente a visita. Recebe também visitas da antiga patroa e da filha dela. O filho dessa sua antiga patroa não a visita porque ele não gosta de “hospital”. Ela destaca que no abrigo não vê o dinheiro de sua aposentadoria, pois “a mulher pega o dinheiro e nós não vê um puto”. Reclama, pois, do fato de que, se quiser algo, ter de encomendar, sem ter acesso ao dinheiro. No abrigo ocupa o tempo desenhando. Realça sua habilidade, afirmando que faz qualquer coisa que lhe pedirem. Não participa de outras tarefas, porque, conforme afirma, tem dificuldade em enxergar, além de utilizar uma só mão. Diz que, excetuando a visão, não sofre mais nada, mesmo que tenha tido um “derrame cerebral” e a perna e o braço sejam “bobos”. Contraditoriamente, entretanto, diz que depois da doença, “acabou, porque não tem mais jeito de muita coisa”. Ela afirma que, embora queira, seu filho não tem condições financeiras de pagar uma pessoa para cuidar dela e de seu neto, pois, se assim fosse, ela estaria na casa dele. Se pudesse escolher, preferiria morar na casa do filho. Diz, no entanto, que ele não pode levá-la porque trabalha na chácara, distante da cidade, sem condições de cuidar de sua saúde numa emergência. Afirma que tinha uma vida boa, mas “Deus quis assim: a gente trabalha uns tempos, depois adoece. Não sabe se vai viver, se vai morrer ou o que vai acontecer”. Além disso, diz que ficará no abrigo “até Deus quiser e às vezes ela pode ir pra casa do filho, às vezes pode morrer ali”. Se ela vai voltar ou não, está nas “mãos de Deus”. “O dia que o filho puder levar, bem. O dia que ele não puder, fica. Ele só falta poder zelar dela”. ENTREVISTA 9 Entrevistada: Doca Idade: 71 anos Escolaridade: Analfabeta Naturalidade: Zona rural de São Gotardo - M.G Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 04 anos e 07 meses A entrevistada é a oitava filha de uma família constituída por dez irmãos, sendo cinco mulheres e cinco homens. De todos os irmãos, atualmente cinco estão vivos: quatro mulheres e um homem. Ela e os irmãos foram criados pelos pais no meio rural, numa região do município de São Gotardo (M.G). É analfabeta e justifica, por ter sempre trabalhado, o fato de não ter freqüentado nenhuma escola. Afirma que a família lá sempre laborava em colaboração uns com os outros: ora para o próprio sustento; ora, na limpeza de arroz e na moagem de café, para os vizinhos. Da roça eles se mudaram para Uberlândia. Ali, ela e algumas irmãs trabalharam como lavadeiras de roupa. Então sua mãe e um dos irmãos

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“idearam” que ela se casasse, conforme ela relata: “[...] A minha mãe e meu irmão não sei o quê que ideiou. Apareceu um véio lá, já de idade também, gostou de mim e interessou pelo casamento. [...] Então fez o casamento [...]”. Ela tinha trinta e oito anos de idade quando se casou com o marido de cinqüenta e oito anos. Afirma que a sua vida teve paz nos anos em que conviveu com o marido, pois, além de ter a companhia dele, nada lhe faltou na casa em termos materiais. Engravidou por quatro vezes, mas nenhuma tentativa foi bem sucedida, pois em todas ocorreu aborto espontâneo. O marido dela, por sua vez, já tinha três filhos. Ela, contudo, com eles não manteve contato. Demonstra ressentimento por uma irmã e sobrinha, pois afirma que as mesmas sempre quiseram se aproveitar do pouco dinheiro que ela e o marido tinham, visto que constantemente lhe pedissem algo. Tal fato fez, conforme infere, que aos poucos o seu marido “perdesse as forças” e adoecesse. O sobrinho dele responsabilizou-se pelos cuidados e tratamento médico, mas o marido rapidamente faleceu. Afirma que este “não sai de sua cabeça”, pois a vida com ele “era limpa”, diferentemente de quando viveu com os pais de quem, conforme declara, ela sempre fora escrava. Afirma que “ficou fraca da cabeça” por não poder, em função dos desentendimentos ocorridos, continuar morando com a família. Decidiu, assim sendo, morar no abrigo por vontade própria, embora ainda tenha a expectativa de voltar a residir com os familiares. Ela tem vários sobrinhos, mas mantém pouco contato com a família, que apenas esporadicamente a visita. Vive em conflito com uma parte dos seus familiares, embora afirme ter bom relacionamento com uma das irmãs. Esta, inclusive, mora próximo do abrigo. O fato de tal irmã não visitá-la, segunda sua afirmação, justifica-se por esta ser doente; quanto aos sobrinhos, ela diz que eles não têm tempo, em função do trabalho. Ela, no entanto, manifesta expressa vontade de deles receber cuidados. Assegura, contraditoriamente, que a irmã mencionada é injusta ao não visitá-la, já que ela, cuidando-lhe dos filhos, auxiliou-a quando esta dela necessitou. Ressalta, porém, receber visitas da comunidade. Acha que a sua vida no abrigo é restrita, pois não tem o que precisa e não se sente no direito de pedir o que deseja, embora diga, de modo contraditório, que se satisfaça com as condições básicas que lhe são oferecidas. Nesse sentido, o abrigo, segundo a sua opinião, é “um sagrado lar”. Afirma manter bom relacionamento com os colegas que moram no abrigo, sobretudo com aqueles com quem compartilha quarto. Relata, contudo, que há conflitos e ressentimentos da sua parte com alguns deles que criticam o seu físico e o seu modo de ser. Encontra-se atualmente ociosa, pois deixou de fazer tapetes, por recomendação da fisioterapeuta, visto manifestasse irritação nos olhos. Tem várias doenças: a diabetes; problema na tireóide; complicações cardíacas. Tais doenças tornam-na dependente do uso diário de medicação. Pede, em razão disso, forças a Deus e suplica para que ele dela tenha “piedade” a fim de não deixá-la “prostrada”, isto é, dependente dos cuidados permanentes de um outro. ENTREVISTA 10 Entrevistada: Ina Naturalidade: Zona rural de Tupaciguara - M.G Idade: 73 anos Escolaridade: Primário incompleto Estado civil: Separada Tempo de abrigo: 03 anos e 01 mês A entrevistada tinha nove irmãos, cinco homens e quatro mulheres. Ela é a quinta filha. Atualmente apenas três estão vivos, sendo dois homens e uma mulher. Somente um dos irmãos mora em Uberlândia. Ela e os irmãos foram criados pelos pais na zona rural, num distrito de Tupaciguara, cidade localizada no Triângulo Mineiro. O trabalho, nesse período de sua vida, ela justifica, era excessivo, visto que todos os membros da família, em colaboração conjunta, fiavam tecidos a fim de contribuir para com o sustento da casa. Os filhos moraram com os pais durante a infância. Ela se casou aos treze anos de idade em Tupaciguara. Ali morou até o período de ingresso no abrigo. O casamento, de acordo com a sua afirmação, ocorreu por vontade própria, mas manifesta arrependimento de ter se casado tão jovem. O marido separou-se dela quando ainda estava grávida do filho. Após alguns anos, porém, ele quis reatar o casamento, mas ela afirma ter recusado tal proposta. Comenta não ter notícias mais recentes do ex-marido. Soube, contudo, por informações dos netos, que ele reside em outro abrigo da cidade. O ex-marido, segundo seus comentários, não tinha bom caráter, pois não trabalhava,

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não a auxiliava na criação do filho nem nas despesas e gastos da casa, deixando-os passar até fome. Desse modo, responsabilizou-se sozinha pelos cuidados do filho. Sendo assim, com a separação conjugal, trabalhou como costureira para garantir o sustento da casa. O filho faleceu há tempos, em razão de um acidente automobilístico. Ela criou apenas este filho. Declara ter praticado um aborto. Isso, afirma, é “um pecado que ela levará para Deus”. Morou com este filho até ele casar-se e residiu sozinha até a data de ingresso no abrigo. Tem três netos e diz que houve proibição da parte deles de ela continuar morando sozinha, por precaução, dadas suas limitações da saúde. Uma sobrinha, residente em Uberlândia, prontificou-se a cuidar dela, tendo se mudado para a cidade. Permaneceu por uma semana na casa da sobrinha que, após esse período, levou-a definitivamente para o abrigo. Justifica pela ausência do filho sua ida para o abrigo, pois estaria morando com ele, conforme crê, caso ainda estivesse vivo. Não mantém contato com os irmãos, dado o fato de eles não a visitarem no abrigo. Um destes, inclusive, é vizinho do abrigo em que ela se encontra. Recebe, contudo, visitas freqüentes das “amigas”, palavra pela qual designa as pessoas da comunidade que conheceu nas visitas realizadas ao abrigo. Além disso, de acordo com as suas afirmações, os netos a visitam esporadicamente em virtude de ocupações diárias. Manifesta claramente o desejo de que eles e sua irmã visitem-na com maior freqüência. Diz que permanece ociosa no abrigo todo o tempo, pois alega não mais ter “coragem para o trabalho”. Afirma que o relacionamento com os colegas do abrigo é instável e oscilante, havendo alguns dias conflituosos, mas outros calmos. Afirma, assim, que se sente insatisfeita com a vida atual, pelo fato de morar no abrigo, alegando que sua vida é “triste e muito ruim”. Assevera, contudo, ter de se conformar, pois declara que não há outra escolha para ela a não ser morar no abrigo Mantém, entretanto, a expectativa de retornar para sua casa, da qual, afirma, sempre cuidara bem. Assim, embora esteja ciente de que as doenças decorrentes da idade avançada impossibilitem-na de morar sozinha e ter autonomia para conduzir a sua própria vida, foca em seu horizonte a possibilidade de independência. Mas não só. Além disso, declara também querer ser cuidada pelos netos, embora afirme que eles não tenham condições de zelar por ela. ENTREVISTA 11 Entrevistada: Ceci Naturalidade: Paracatu - M.G Idade: 79 anos Escolaridade: Analfabeta Estado civil: Viúva Tempo de abrigo: 09 meses A entrevistada é a filha primogênita de uma família constituída por quatro filhos – três mulheres e um homem. Todos estes estão vivos. É natural de Paracatu, cidade localizada no interior de Minas Gerais. Após a morte do pai, mudou-se com a mãe e os irmãos, ainda crianças, para uma cidade localizada no Triângulo Mineiro. Moraram então em diversas cidades da região, sempre em busca de um melhor emprego. Afirma que a mãe criou e sustentou sozinha os seus filhos. Sendo assim, a mãe, segundo ela, sofreu muito para criá-los. Ela comenta que acompanhava a mãe no serviço. Ressalta, porém, que ela a castigava com freqüência. Justifica a mãe, contudo, afirmando ter sido ela muito “custosa”, visto que um “espírito mal nela entrou”, tornando-a um “demônio em figura de gente”. Os irmãos moram na Bahia. Para lá mudaram em busca de emprego. Eles, segundo afirma, não mantêm contato com ela. Esta, por sua vez, justifica o distanciamento dos mesmos pelo fato de eles nunca terem se importado com ela, mesmo quando moravam na mesma cidade. Assim sendo, raramente recebe notícias deles. Quando isso ocorre, é por meio de conhecidos que para lá viajam e trazem notícias dos irmãos. Foi casada, mas hoje é viúva. Teve uma filha, mas esta faleceu aos dois anos de idade por causa de uma meningite. Afirma, a princípio, que não pôde mais engravidar pelo fato de o marido nunca ter tido estabilidade financeira. Comenta a seguir, contudo, que não teve outros filhos por ter se casado mais velha, com trinta anos de idade. Relata que ela e o marido mudavam com freqüência de cidade, sempre em busca de serviço e salário melhores. Moraram em capitais e em cidades do interior de vários estados, trabalhando geralmente em empregos temporários. Afirma ter trabalhado como cozinheira em residência e em restaurante; o marido, por sua vez, exerceu a profissão de instalador de luminosos. Eles então se mudaram para Uberlândia, onde ela está há cinqüenta anos. Após o falecimento do

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marido, passou a morar sozinha em uma pequena casa cedida gentilmente por um conhecido enquanto trabalhava como benzedeira. Fazia assim, de acordo com a sua declaração, “caridade para as pessoas”. Afirma que “benzia com preces e não incorporava porque a enfermidade poderia descarregar-se na pessoa que está sendo benta”. Responsabilizou-se assim, segundo ela, por benzer pessoas que necessitassem de orações para promover a cura das enfermidades do corpo e paz para os males da alma. A ida para o abrigo ocorreu de modo inesperado e por meio de terceiros. Segundo sua afirmação, um “paciente dela tinha dó de vê-la morando sozinha”. Além disso, conforme ela declara, quando ele soube do boato de que alguns dos seus vizinhos poderiam matá-la para tomar os seus “guias espirituais”, arrumou imediatamente uma vaga no abrigo, sem nem mesmo comunicá-la. Afirma que a coordenadora do abrigo a buscou em casa. Ela afirma que se assustou com o fato de ter de se mudar de modo inesperado para o abrigo, mas depois compreendeu que não mais seria possível morar sozinha em sua casa por causa da idade. Recebe visitas dos seus conhecidos, pessoas que mantêm ligação com centros de umbanda e com quem ela tinha algum contato antes de ir para o abrigo. Tem primos em Uberlândia, mas não se interessa nem por deles ter notícias nem por manter contato com eles, alegando não gostar destes primos porque os considera “ricos e metidos”. Afirma que é perseguida pelos colegas de abrigo, visto que a atormentem e dela tenham inveja “por ser filha de Jesus”. Além disso, declara que “não fica de xodó fazendo rodinha na beira da cadeira dos colegas porque eles gostam de ilusão e ela não gosta”. Mantém por tais motivos contato restrito com eles. Alega permanecer no abrigo unicamente porque os orixás, seus protetores, dela “têm ciúmes e se transformam em gente”, o que a faz “perder os sentidos”. Afirma possuir um “rei que tem ciúmes dela e teme que os outros possam matá-la pelo fato de ser muito bondosa”. Assim, alega que é conduzida por “guias”, a quem recorre em busca de apoio ou ante a necessidade de algum pedido. Diz que eles proibem-na de sair do abrigo; de pentear cabelo; de realizar tarefas diversas (embora ela tenha dito que varre e regue as plantas do quintal do abrigo); de relacionar-se com as pessoas que nele moram. Afirma que não tem interesse algum em fazer mais nada, tendo assim apenas a morte como expectativa. Não pede, contudo, para morrer por ser, como ela própria afirma, “filha de Jesus”. Este, sendo assim, deve levá-la quando vir que ela mereça “desencarnar”. ENTREVISTA 12 Entrevistada: Iole Idade: 81 anos Escolaridade: 3° ano primário Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G Estado civil: Separada Tempo de abrigo: 03 anos e 10 meses A família desta entrevistada, além dos pais, era composta por quatro filhos, sendo ela a terceira. Como o irmão já faleceu, tem apenas duas irmãs vivas, além de inúmeros primos e sobrinhos. Foi criada pelos pais, falecidos há muitos anos. Ela, assim como os irmãos, nasceu e morou na zona rural, num distrito de Uberlândia. Cursou apenas até o terceiro ano primário. Foi para a cidade com os irmãos tão logo se tornou independente. Lá trabalhou por muitos anos em duas alfaiatarias. Casou-se, mas, segundo ela afirma, como “o casamento não deu certo”, separou-se. Assevera que seu casamento foi uma “bobagem”, porque o marido, segundo ela, “arrumou outra”. Não teve filhos. Morava sozinha e afirma desconhecer o motivo pelo qual suas sobrinhas decidiram levá-la para o abrigo. Sente-se insatisfeita em lá morar, pois gostaria de estar na casa dela. Reconhece, contudo, que estava muito só. Soube, por funcionários do abrigo, que seu ex-marido a procurou; comenta, entretanto, que não o viu. Uma das suas sobrinhas de vez em quando a busca para levá-la à igreja; outra a visita com freqüência. Ela, inicialmente, comentou não receber visitas das irmãs. Mas depois afirmou que elas a visitam esporadicamente. Além disso, diz que não as procurará, porque alega que elas deveriam ir até ela caso tivessem realmente interesse em vê-la. Permanece ociosa o tempo todo, não manifestando interesse em se ocupar com alguma atividade. É distante das colegas do quarto e também não se relaciona com os demais abrigados. Não apresenta nenhum problema de saúde. Afirma que não se sente bem pelo fato de estar no abrigo e percebe, segundo as suas afirmações, que “a sua vida virou besteira” após a sua ida para lá. Afirma sentir-se muito nervosa atualmente e, por isso, bate em si mesma com raiva. Além

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disso, pede, conforme sua afirmação, “para que Deus tenha dó e misericórdia dela e tire-a desse mundo”. Observa, no entanto, que gostaria de ter a mesma vida tranqüila de quando era solteira, manifestando vontade de ter autonomia para viver a vida e fazer o que deseja. Isso, contudo, segundo ela própria declara, não é mais possível. ENTREVISTA 13 Entrevistada: Lude Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G Idade: 79 anos Escolaridade: Analfabeta Estado civil: Solteira Tempo de abrigo: 04 anos e 05 meses Esta entrevistada é a sétima filha de uma família composta por nove irmãos (quatro mulheres e cinco homens). Todos estes já faleceram. Ela e os irmãos foram criados pelos pais na zona rural, numa região localizada nos arredores de Uberlândia (M.G). Nunca freqüentou a escola. É solteira e, conforme ela própria diz, “nunca gostou desse negócio de casamento”. Criou, porém, uma filha adotiva desde que esta era criança, a quem ela se refere como “menina”. Esta, segundo afirma, constituiu família, visto ter se casado e tido filhos. Declara, entretanto que foi por ela ludibriada, pois a filha adotiva, segunda ela, pegou o dinheiro da sua aposentadoria, usando-o para mudar-se de cidade. A entrevistada, por sua vez, morou na zona rural com um dos seus sobrinhos, e só se mudou para Uberlândia após o fato de “menina”, conforme relata, ter-lhe levado todo o dinheiro. A sua vida, após tal acontecimento, ficou desprovida de sentido. Ela, assim sendo, afirma que “viver e morrer é uma coisa só”. Declara, além disso, que o falecimento dos irmãos tirou-lhe também a alegria. A sua família, de acordo com o que ela relata, possui bens materiais, embora ela nada tenha. Eles, contudo, segundo ela, não a ajudam. Morou, entretanto, durante um tempo com uma das irmãs e com o cunhado. Dado o fato de a irmã ter adoecido, trabalhou neste período como “zeladeira”, auxiliando o cunhado em um hotel e numa pensão, fornecendo marmitas. Afirma, assim, ter com eles contribuído. Comenta que o cunhado cuidou dela e lhe proveu de todo o necessário, incluindo a medicação de que sempre dependeu. Comentou ter sido alegre nesse período em que trabalhou. Afirma que “sofreu começo de derrame cerebral”, e diz nunca ter tido boa saúde. Num primeiro momento, de acordo com as suas afirmações, a ida dela para o abrigo decorreu de a filha adotiva tê-la deixado naquele local. Mas, num segundo, afirma que a escolha de morar no abrigo foi dela própria, visto não tivesse local fixo de moradia e daí, conseqüentemente, permanecesse a cada momento na casa de um parente, parecendo, como ela própria afirma, “um cachorro sem dono”. Acresce que, embora não goste de morar no abrigo, a sua permanência lá é obrigatória, dado não haja outra possibilidade de escolha para a vida, pois não tem para onde ir. De modo contraditório, porém, afirma que no abrigo sente-se melhor do que no período em que perambulava pelas casas dos diversos familiares. Recebe visitas de algumas das sobrinhas, mas diz que elas a procuram apenas para tirar-lhe o sossego. Dada a morte dos pais e irmãos, afirma não ter mais família, assim explicando o fato de ser sozinha. Recebe visitas esporádicas da filha adotiva, mas afirma não fazer questão de que ela vá vê-la. Declara, de modo contraditório, que tinha como pretensão de ser por ela cuidada, embora esteja ciente que a filha adotiva não tenha condições de fazê-lo. Permanece no abrigo deitada em sua cama todo o tempo, pois não manifesta interesse por nenhuma atividade. Justifica a ociosidade e o desinteresse em ocupar o tempo pela impossibilidade de poder fazer algo, dado o cansaço decorrente da idade. Entra em conflito com alguns colegas de abrigo e não tem, sendo assim, bom relacionamento com eles. Não se relaciona com quem ela considera, conforme afirma, “doidos e esquisitos”. Ela considera os demais colegas como a ela semelhantes, pois, conforme declara, não há entre eles “separação”. Afirma, por fim, não ter nenhuma expectativa para a vida, devendo apenas permanecer no abrigo, pois declara que tem a morte como único plano. ENTREVISTA 14 Entrevistada: Irajá

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Naturalidade: Uberaba - M.G Idade: 99 anos Escolaridade: 1° ano primário Estado civil: Solteira Tempo de abrigo: 03 anos e 02 meses A entrevistada ora em questão, bem como seus dois irmãos – um homem e uma mulher –, foi criada pelos pais, sendo ela a filha “do meio”. É natural de Uberaba (M.G). O trabalho e a conseqüente falta de tempo são, conforme diz, a justificativa por ter freqüentado a escola somente no primeiro ano do ensino primário. Diz ela que não acredita ter cem anos de idade, como afirmam as pessoas com quem mantém contato. Pensa estar com oitenta anos. Alega ter sido oficialmente registrada às pressas, quando já era adulta, a fim de que pudesse trabalhar como cozinheira na residência de uma família. Desse modo, afirma que no seu registro os dados são incorretos, aumentando-lhe a idade. O pai faleceu quando ela tinha cerca de onze anos de idade. A sua mãe, desse modo, responsabilizou-se sozinha pela criação dos filhos. Logo após o falecimento do pai, a mãe trabalhou numa clínica, enquanto ela exercia a função de pajem de criança, para auxiliar no pagamento do aluguel da casa em que moravam e nos gastos com as despesas da família. Também na adolescência, com cerca de quinze anos, trabalhou como doméstica; depois, em hospitais, auxiliando médicos e enfermeiros nos cuidados para com os enfermos. É solteira e afirma não ter tido interesse em se casar. Justifica tal fato porque o pai dela sempre disse que seus filhos não podiam se casar com pessoas de baixo nível sócio-econômico, pois a vida dos mesmos seguiria caminho semelhante ao deles, com dificuldades e muita luta. Ela diz ter acreditado nele e, portanto, nunca ter almejado o casamento. A sua irmã mais velha foi a única filha a se casar. Afirma que mantinha bom relacionamento com os irmãos, todos já falecidos, referindo-se a eles como boas pessoas. Ela se considera muito sofrida por ter trabalhado desde criança. Após o falecimento da mãe, morou sozinha. Teve, contudo, por alguns anos a companhia de um casal que ela acolheu em sua casa, visto que eles, naquela ocasião, segundo sua afirmação, procurassem local para morar. Ela e tal casal, conforme sua declaração, dividiam as despesas da casa. Quando eles se mudaram, ela voltou a morar sozinha. Depois, alojou em sua casa uma moça com o filho, pois, segundo afirma, eles também necessitavam de um local para morar. Esta moça, além de dividir com ela as funções domésticas, trabalhava como manicure. A entrevistada relata que um dia, cuidando da casa, caiu e quebrou a perna. Quando retornou do hospital, a moça lhe disse que se mudaria para a casa dos pais dela, em outro estado. Menciona tal fato aborrecida, pois indigna-se com o fato de não ter recebido auxílio da moça no momento em que mais dela precisara, pois, segundo afirma, ela ajudara a moça quando esta se encontrava sozinha, necessitando de abrigo. Voltou, pois, depois disso, a morar sozinha. Mas, conseqüência da queda que sofrera, passou a necessitar do uso de andador e de cadeira de rodas, tendo de contar diariamente com o auxílio de uma vizinha que lhe ajudava durante o dia, fazendo-lhe também companhia durante as noites. Declara que assim se encontrava quando a coordenadora do abrigo entrou em contato com ela e levou-a para lá, uma vez que lhe diziam não poder continuar vivendo sozinha. Comenta que ficou contrariada com o fato de ter de morar no abrigo, pois, conforme afirma, “casa dos outros não vai, não”. Anseia assim poder retornar para a sua casa, visto que lá tenha, segundo diz, mais liberdade. Conta, para tanto, com a possibilidade de receber auxílio de alguém. Recebe visitas esporádicas no abrigo da tal moça que, após alguns meses, retornou da casa dos pais. Comentou não lhe dar confiança, visto que desconfie de tal interesse, acreditando que esta a procurou com a intenção de lhe pedir auxílio financeiro. Recebia, até pouco tempo atrás, visitas freqüentes de amigas que conhecera no período anterior ao asilamento. Tais visitas atualmente são esporádicas, pois, segundo ela, a melhor amiga arrumou namorado. Afirma, a princípio, que não tem parentes, para a seguir declarar, contraditoriamente, que tem sobrinhas. Do mesmo modo contraditório, alega, inicialmente, que não mantém contato com as sobrinhas porque elas moram em outra cidade. Declara depois, entretanto, que não se relacionam porque elas nem mesmo a conhecem. Comenta permanecer ociosa durante todo o tempo, visto que a dor, decorrente do seu problema na perna, a impeça de realizar diversas tarefas. Ela se ocupa apenas em arrumar sua cama e dobrar as cobertas. Aborrece-se por não conseguir, em função da perna, sair do abrigo para visitar as pessoas que conhece. Afirma assim que, por tal motivo e também pelo fato de sentir-se sozinha sem ter ninguém, a sua vida não mais tem sentido. Alega não conversar com os enfermeiros porque eles, após assistirem aos internos, vão embora e não lhe dão atenção. Além disso, indigna-se com o fato de ela

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lhes solicitar remédios, além de outras coisas, e não ser atendida. Assim sendo, diz estar insatisfeita com o fato de morar no abrigo. Declara, contudo, conformar-se com a vida atual, dado não haver outra possibilidade de escolha, já que reconhece não ter condições de sozinha cuidar da própria vida. Afirma, entretanto, sentir vontade de morrer, pois nada mais, dadas as limitações da perna, pode fazer sozinha. Além, pois, de não ter expectativa futura, acredita também que a morte seria a solução do sofrimento que padece, decorrente de “muito desgosto na vida”. Reafirma que, visto não poder fazer as coisas, a vida acabou. ENTREVISTA 15 Entrevistado: Peri Naturalidade: Araguari - M.G Idade: 60 anos Escolaridade: 4° ano primário Estado civil: Solteiro Tempo de abrigo: 01 ano e 07 meses O entrevistado possui oito irmãos. Quatro, dois homens e duas mulheres, contudo, são meios-irmãos, apenas pelo lado paterno, visto sejam frutos do primeiro casamento do pai. Ele é o filho mais novo dentre os cinco filhos bilaterais, quatro homens e uma mulher, já falecida, do segundo casamento do pai. Ele, juntamente com estes irmãos, foi criado pelos pais em Araguari, cidade localizada no interior de Minas Gerais. Os demais, quando novos, saíram de casa em busca de emprego, tendo apenas ele e um outro permanecido na companhia dos pais. Este irmão, posteriormente, também de lá saiu, tendo somente ele ali permanecido. Trabalhou sempre com o pai no comércio e auxiliou-o, primeiramente no depósito de bebidas; depois, no bar que o mesmo adquirira; por fim, no armazém que o pai administrou até o fim da vida. É solteiro. Tem hidrocefalia desde criança e, por isso, faz uso diário de medicação. Cursou até o quarto ano primário e vangloria-se por saber fazer diversas coisas, embora tenha pouco estudo. Orgulha-se do fato de sempre ter vivido com os pais e não lhes ter deixado. Com o falecimento do pai e o fato de a mãe não mais conseguir, em função das limitações da saúde, cuidar dela mesma, esta mudou-se para o abrigo, por iniciativa de um dos seus filhos, visto dependesse do uso de andador para locomover-se. O coordenador do abrigo, dado o fato de ele não ter onde morar, permitiu a sua permanência no abrigo com a mãe. Afirma ter mantido bom relacionamento com a mãe e cuidado dela quando necessário, além de lhe fazer companhia. Diz que o fato de ela morar no abrigo muito a auxiliou, dados os cuidados diários ali recebidos, no tratamento da sua saúde. A mãe dele, porém, faleceu há dois anos. Abrigo, para ele, é “uma estadia, um local que se tem para morar”. Recebe visitas esporádicas de dois irmãos bilaterais e declara que ele e os irmãos, tanto do primeiro como do segundo casamento do pai, são distantes uns dos outros, embora não saiba dizer os motivos que levaram a este distanciamento. Diz apenas que seus irmãos foram aos poucos se “esparramando”. Há alguns anos não tem notícias dos irmãos que moram em outras cidades. Expressa, no entanto, manifesto desejo de manter contato efetivo com os irmãos, afirmando que a convivência é a responsável por fazer com que as relações tornem-se sólidas. Tem sobrinhos, mas justifica, dado o trabalho excessivo deles, o fato de não o visitarem. Tem primos, bem como outros parentes de grau mais distante. A sua vida, com a instalação da doença, desde a infância, ficou um pouco limitada, dado o fato de ele não poder fazer muito esforço. Além disso, tal limitação se intensificou recentemente, visto que apresente problemas nas pernas, sobretudo em uma delas, com início de trombose. Afirma que tem bom relacionamento com as pessoas que moram no abrigo e prontifica-se a auxiliar qualquer pessoa no que for preciso, considerando que todos no abrigo constituam uma família. Comenta que auxiliava os funcionários na locomoção de alguns idosos para que eles pudessem realizar alguma atividade ou para conduzir os colegas que são dependentes de cadeira de rodas, mas afirma que houve proibição, por parte do coordenador do abrigo, da realização desse tipo de ajuda por parte das pessoas também ali abrigadas. Ele declara que gosta de escrever e assiste às aulas oferecidas pelo abrigo aos idosos que lá se encontram. Afirma não saber os rumos que a vida dele seguirá, mas manifesta vontade de sair do abrigo para que possa, conforme comenta, “levar uma vida normal”, ou seja, poder estudar, efetuar escolhas e optar por realizar o que deseja. Um dos seus irmãos, a quem ele se refere como boa pessoa, fez-lhe diversos convites para que com ele morasse. Acredita, contudo, que não deve sair do

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abrigo neste momento pelo fato de seu irmão residir em uma chácara distante da cidade, dificultando o acesso a diversos recursos, sobretudo médicos. Crê, no entanto, que a única possibilidade de sair do abrigo, no que se refere aos cuidados da sua saúde, é quando houver a certeza de que poderá levar uma vida segura fora dali. Acredita que o irmão dele, no momento, não tem uma vida estável e, por isso, não lhe propiciaria uma qualidade de vida satisfatória semelhante à de que dispõe no abrigo. ENTREVISTA 16 Entrevistado: Aog Naturalidade: Miraporanga (Distrito de Uberlândia - M.G) Idade: 58 anos Escolaridade: Primário incompleto Estado civil: Solteiro Tempo de abrigo: 02 anos e 06 meses O entrevistado, assim como as suas duas irmãs, ainda vivas, foi criado na zona rural pelos pais, já falecidos há muitos anos. Ele, filho mais novo do casal, é natural de Miraporanga, distrito de Uberlândia (M.G). Tem pouco estudo, mas declara, pelo longo tempo em que saiu da escola, não recordar até que série cursou. Como os pais não tinham propriedade, eles moravam e trabalhavam em fazendas de terceiros, tendo ele efetuado, desde a infância, serviço braçal ou lidado com o gado. É solteiro. Reside há cerca de vinte anos em Uberlândia, apontando problemas de saúde como a razão da sua mudança para o meio urbano. Na cidade, trabalhou, por cerca de dois meses, numa construtora de imóveis, exercendo a função de auxiliar de serviços gerais. No decorrer desse curto período, morou sozinho em uma casa que alugara. Residiu, depois, em uma pensão. Por “não poder pegar peso”, conforme ele próprio afirma, em função de um problema na coluna, abandonou o trabalho, não tendo tido, então, mais condições financeiras para custear a sua estada na pensão. Desse modo, por não ter onde morar e para evitar que ficasse nas ruas, visto que não conseguisse emprego, abrigou-se num prédio em construção, local em que afirma ter morado durante cinco anos com a permissão do mestre-de-obra responsável pelo local. Este permitiu que ele lá permanecesse até a finalização da obra, pois os apartamentos, a partir daí, seriam ocupados pelos futuros proprietários. Este também lhe fez, quando do término da obra, uma proposta para que ele assumisse a função de faxineiro do prédio. Ele, no entanto, recusou, alegando que o salário seria insuficiente para custear o aluguel de uma casa em que pudesse morar. Além deste emprego, houve também a possibilidade de trabalhar numa chácara, mas ele novamente não aceitou. Alegou, nesta situação, que não havia recursos necessários para montagem da casa em que moraria. Além disso, diz que teria de assumir, além das suas funções na chácara, a responsabilidade de todos os afazeres domésticos. Sendo assim, julgando que as possibilidades de trabalho eram inviáveis, relatou sua condição de vida para um casal que já havia mudado para o prédio. Estes se responsabilizaram por lhe conseguir uma vaga num dos abrigos da cidade. A partir daí, então, passou a neles morar. Viveu cerca de nove anos no antigo abrigo. Há aproximadamente dois anos reside no abrigo em que reside atualmente. A saída daquele abrigo, de acordo com sua afirmação, decorreu da agressão de um colega de quem ele fora vítima, além de diversas outras situações que não o agradaram, mas que ele não precisa quais sejam. Declara que não comunicou a sua saída a ninguém, tendo, a partir daí, se deslocado para o albergue da cidade. Permaneceu neste local por cerca de um mês, até conseguir vaga no abrigo em que ele atualmente está. Sua irmã foi comunicada do seu desaparecimento do antigo abrigo e só soube, segundo ele, de seu paradeiro por meio da coordenadora daquele em que ora reside, depois de ele a ter procurado para solicitar uma vaga. O abrigo, segundo ele, é o único lugar em que pode morar, visto ser muito doente e não ter a quem recorrer. É, conforme sua opinião, um local que tem como função dar apoio e assistência às pessoas doentes e idosas. Ele, de acordo com o que declara, apresenta diversos problemas de saúde: faz tratamento de pele e de micose; tem problema no estômago. Afirma que, se não morasse no abrigo, não teria condições de se tratar. Diz, num primeiro momento, que se sente insatisfeito por morar no abrigo em que se encontra, visto que a sua vida tenha se tornado limitada e restrita, uma vez que não possua autonomia e liberdade para realizar escolhas. Mas, a seguir, comenta que se acostumou com o modo e ritmo de vida que há ali. Além disso, deduz, tendo a si mesmo como referência, que as pessoas procuram por vagas em abrigos diante de necessidades extremas, pois supõe que ninguém deva gostar

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de morar nestes locais, uma vez que eles cerceiem a liberdade. Comenta que as normas de funcionamento do abrigo em que ele atualmente reside restringem a sua possibilidade de ir e vir, pois elas não permitem que os internos saiam sozinhos. Diz que gostaria de que tais normas assemelhassem-se às do abrigo em que morou, pois, neste, a sua saída era permitida. Afirma, por sua vez, que apreciava morar sozinho no prédio em construção, pois neste local tinha completa liberdade para conduzir a vida do modo como bem quisesse, além de poder ocupar-se com um e outro serviço ali mesmo, ou realizando, quando solicitado, pequenos afazeres para os vizinhos do local. Uma de suas irmãs reside em Uberlândia e a outra mora em Brasília. Afirma que sempre teve maior entrosamento com esta irmã, mas diz que eles não se encontram há cerca de vinte anos, visto que ela não o visite e ele não tenha condições de ir ao encontro dela. Recebe, porém, notícias dela por meio da irmã que mora em Uberlândia. Faz cerca de um ano que ele e esta irmã não se encontram, pois afirma ser complicado para ele visitá-la, uma vez que a “patroa” - proprietária da residência em quem ela trabalha e mora - estabeleceu o domingo para visitas, sendo este dia difícil para os funcionários do abrigo levá-lo. Diz que, quando morou no prédio, mantinha contato mais efetivo com esta irmã, visitando-a quinzenalmente. Ela, no entanto, foi ao abrigo somente uma vez, na ocasião em que se resolveu a ida dele para lá. Convocada, há alguns meses, para participar de uma reunião, ela lá não compareceu. Ele comenta que esta irmã não gosta de que ele more em abrigo e ela lhe sugere, quando se encontram, que procure algum emprego. Ele, por sua vez, contesta a opinião da irmã, alegando que ela desconsidera a sua impossibilidade de trabalhar, em virtude do problema na coluna. Afirma que não lhe agrada o fato de permanecer distante das irmãs, sobretudo por elas serem de grau de parentesco próximo e por considerá-las como as únicas pessoas que efetivamente compõem a sua família. Diz que a convivência, o bom relacionamento e a união são aspectos importantes de uma família, pois há famílias que não possuem tal dinâmica de funcionamento. Comenta que receba visitas esporádicas de um senhor que conhecera por meio das visitas da comunidade no abrigo em que primeiramente morou. É também freqüentemente visitado por pessoas da comunidade. Acredita que estejam vivos alguns tios paternos, mas declara ter perdido, há muito tempo, o contato com os mesmos. Eles freqüentavam a casa dele, quando este ainda era criança, mas não mais se comunicaram depois de ele se tornar adulto. Afirma que não tem nenhum parente do lado materno. Comenta que sempre é educado com todas as pessoas com quem convive e que elas sempre gostam dele. Assim sendo, afirma tratar bem as pessoas no abrigo e que elas, por sua vez, tratam-no bem. Alega não gostar de conflito, embora ele e um colega de abrigo não conversem. A fim de evitar confusões, conforme declara, afastou-se do mesmo e passou a ignorá-lo. Assegura que os funcionários do abrigo lhe tecem elogios pelo fato de ele não dar atenção aos problemas que surgem na instituição. Eles, conforme afirma, elegeram-no, tendo como base as suas atitudes, o interno que apresenta melhor comportamento. Permanece ocioso todo o tempo, pois, de acordo com suas próprias palavras, “não mexe com nada e gosta de ficar quieto”. Declara, a princípio, que possui poucos planos para a sua vida, mas afirma, num segundo momento, que estabelecerá vários outros, caso consiga aposentar-se, visto que tenha, como expectativa de vida, sair do abrigo e procurar, desse modo, um local para morar. Ressalta, contudo, saber que tal expectativa pode ou não ocorrer. Anseia, como ele próprio afirma, “por melhora da sua vida”, ou seja, espera por liberdade para viver do modo como deseja, tendo possibilidade de efetuar escolhas. Cita, como exemplo, vontade de ter contato efetivo com as pessoas que conhece, podendo realizar-lhes visitas sem restrições.

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APÊNDICE D – Transcrições das entrevistas 1, 2, 6, 7 e 8

ENTREVISTA 1 Entrevistada: Suyá

P: Fale-me sobre sua vida. R: Eu tenho oitenta e um, quase oitenta e dois anos. Eu estudei só os dois anos. Antigamente era o primeiro e o segundo ano, né? Eu sou solteira. Eu recebo aposentadoria porque eu trabalhava antes de vir pra cá. Eu trabalhei muito. Desde criança, né?, eu já trabalhava na casa dos outros, na casa que eu fui criada. Eu era cozinheira de pensão com quatorze anos. P: Como foi a sua trajetória de trabalho? R: Bom. Eu vivi sempre no serviço porque eu perdi a mãe nova ainda. Sem pai, sem mãe, né? O pai também tinha desaparecido e eu era sempre para as casas dos outros, né? Morei numa casa, onde era o meu serviço. Foi muitos e muitos anos, desde que a minha mãe morreu. Eu fui pra essa casa onde morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar uma menina cedo, ainda mais de cor, né? O povo tem muito preconceito, né? Então a gente era tratada como, dizer a verdade, como escrava mesmo, né? É, por causa da cor é muito preconceito, né? Eu penso que foram uns doze, treze anos que eu morei lá. (Pausa.) E os meus irmãos foram cada um pra uma casa, trabalhando também. P: O que a senhora quer dizer com “ser tratada como escrava”? R: Ah!, ser escrava é porque não tinha ordenado, né?, nem o salário. E não tinha nada. Não era bem tratada assim. Era humilhada, sabe? E era criada mesmo pro serviço, sabe?, da casa. (Pausa.) Eu gostaria de ser tratada com carinho, com consideração, né? E não era, sabe? Era mesmo pro serviço, viu?, da casa. P: Como foi a decisão de morar nessa casa? R: Foi uma pessoa conhecida, sabe? É... A mulher ficou sabendo que a mulher queria uma menina, né?, criar uma negrinha do serviço. (Risos.) A verdade é essa, né? O meu tio ficou sabendo que uma mulher queria uma negrinha do serviço, né?, e a minha mãe tinha morrido. O pai, já não tinha pai, né?, porque ele vivia sumido e não queria saber da família. Então me mandaram pra lá. Eu tinha uns dez anos. Morei muitos anos nessa casa! Aí foi daqui pr`ali. Trabalhei numa casa, trabalhei noutra, trabalhei noutra. Eu já recebia ordenado. Pouquinho, muito pouquinho, mas eu recebia. Naquele tempo a gente não tinha... Empregada não tinha garantia nenhuma, né? Nenhuma mesmo! Ganhava aquele dinheirinho, e pra comer! Os quarto sempre os pior, né?, que existia na casa pra dormir. E era assim, né?, a vida. Trabalhei nessas casas eu penso que até uns trinta e tantos anos, quase quarenta. Saía de uma casa, de um lugar, ia pra outro lugar. P: Qual o motivo de sair de uma casa e ir para outra? R: Uai, é... Quando a gente saía... a gente ficava muito tempo, mas o motivo dessa casa que eu morei mais tempo, porque eu fui criada lá, não era bem tratada e eu revoltei. Fiquei revoltada demais! Até que chegou um dia... Mas essa última vez ela mandou eu juntar minha trouxa e sair e eu saí. Fui embora ficar perto do meu povo. Mas trabalhando, né? Sempre saía de uma casa, ia pra outra. Saía de um emprego, brigava (Risos), descombinava. Outra hora era porque eu não queria ficar mais. Queria procurar outro lugar que fosse melhor, né? Assim!

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P: A senhora se sentia “tratada como escrava” somente nessa casa ou também nas outras casas em que trabalhou? R: Não, não! Nas outras casas não foi tanto assim. Por exemplo, eu fiquei... Os... os americanos também falam que são muito preconceituosos, né? Portanto que lá no país é... eu acho que ainda é tudo separado, né?, os negros dos brancos, né? Mas lá não foi tanto assim, sabe? Trabalhar eu trabalhei três anos. Lá eu trabalhei. Nesse colégio também eu trabalhei sete anos. Mas lá eu... era cozinheira também. E... é assim! A pessoa, por exemplo, eles falavam que a gente era empregada. Mas não era empregada. Eu não ganhava um centavo, né?, pra fazer o serviço. Nem roupa direito eu não tinha. Na mesma hora que... acho que o tempo da escravidão era assim, né? Depois eu vim pra cá. Eu estava morando em Patrocínio, na cidade onde eu e meus irmãos nascemos. Não sei se eu já tinha quarenta. Eu estava trabalhando na casa do americano, mas depois meu povo tinha mudado pra cá. Aí essa família ia embora pros Estados Unidos, então eu vim pra cá. Aí meu povo estava morando aqui. Aí eu fiquei trabalhando em uma casa e outra também... Mas eu sempre tive muita vontade de aprender a costurar. Então eu ia aprendendo aos pouquinhos. Depois eu... eu... porque estava muito doente e minha amiga veio aqui e ficou preocupada comigo, com meu estado de saúde. Eu tive que ir para São Paulo fazer um tratamento e lá fez os exames e descobriu que eu tinha Chagas. E o médico me disse que era um caso muito grave meu caso de Chagas. Ele me recomendou muito repouso, muito... tratamento. Então, um ajudou daqui, ajudou dali e encaminhou eu para lá. Lá eu vivia em tratamento, eu vivia em tratamento de saúde, sabe? Eu fui muito mal pra lá. E eu costurava. Costurei pra fora. Quando eu descobri é porque eu já estava muito doente, né? Tanto que o médico, quando eu fui daqui, fui desenganada, né? Cheguei lá, esperava conseguir tratamento no Hospital das Clínicas, não conseguia. Eles me mandaram pra Santa Casa. Aí eu fiquei lá, até na Santa Casa. O médico me disse que eu podia viver mais uns três anos. E ele já foi já tem bem uns trinta anos. (Risos.) Quase que devem ter uns trinta anos que eu fiquei e ele foi. (Risos). P: A senhora falou sobre os seus pais. Como foi o seu relacionamento com eles? R: A minha mãe e o meu pai eram casados, mas o meu pai eu nem cheguei a conhecer ele, não, sabe? Ele... ele vinha em casa, desaparecia, aí minha mãe ficava grávida. Aí ele sumia. Às vezes, quando ele voltava, os meninos já estavam com dois anos, até quase três... Era desse jeito. Tornava a arrumar mais. Foi assim, sabe?, até que, por fim, a minha mãe saiu conosco porque ele não estava em casa também. Vivia só sumido, né?, e nem sabia por onde ele andava assim. Depois, passava uns tempos, ele voltava. Era assim. Eu não conheci ele de... não tenho a menor lembrança! Só um pouquinho mesmo que eu tenho... que eu lembro dele. Eu só esperaria que a gente tivesse um pai que considerasse a família, né?, que desse valor, que pudesse ter um nome de pai mesmo, né?, realmente, porque nunca foi assim. Eu e meus irmãos fomos criados praticamente só pela minha mãe. E a minha mãe faleceu há muitos anos. E... pois é. Foi assim! Eu fui pra essa casa lá onde eu morei. Foi... foi... foi quando a minha mãe morreu. Depois é que... que fui de uma casa pra outra trabalhando. Trabalhei num colégio lá em Patrocínio muitos anos como cozinheira. E depois trabalhei nessa outra casa. Quando eu vim embora, eu estava trabalhando na casa dos americanos. E aqui mesmo, eu também já trabalhei em casa de família. Depois é que eu fui pra São Paulo. Agora, a mãe fazia o que podia, coitada, né? Ela morria de trabalhar pra tratar dos filhos. Trabalhava, né?, a semana inteirinha esse serviço muito pesado de roça, né? Tanto que, quando ela adoeceu, eu não gosto de lembrar disso, mas... ela morreu à mingua, né? (Pausa). P: A senhora comentou sobre os seus irmãos. Quantos são? R: Éramos cinco irmãos. A que sofreu derrame, a outra mais velha que morreu e um que também já morreu. Meu irmão mais novo, o único que ainda é vivo, está em São Paulo. Esse irmão vez em quando eu tenho notícia. Ele liga de vez em quando. Eu sou o segundo filho mais novo da minha casa. Esse de São Paulo é o mais novo de todos os irmãos. P: Como é o seu relacionamento de vocês dois?

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R: Uai, a gente tem muito pouca lembrança! A minha mãe saía pra trabalhar pras casa dos outros, fazer farinha, fazer... panhar café, panhar... Fazer esses serviços assim. Ela saía e eu acompanhava ela, assim. Lavava roupa nas casa dos outros, né? Fazer... esses serviços assim. Ela trabalhava pra tratar dos filhos, né?, e eu sempre ia pro trabalho com ela. Todo lado que ela ia eu ia com ela, né? Depois é que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou. Separou tudo os irmãos. Cada um foi pra um lugar, né?, trabalhando nas casas dos outros. P: O que a senhora pensa sobre isso? R: Acho triste, né? Triste da família ter esparramado. Eu acho muito bonito, muito importante um lar, a família. Eu acho muito bonita! Essa instituição é divina, né? Foi Deus que constituiu a família, né? Eu acho muito bonito. P: Por que a senhora acha que vocês se “esparramaram”? R: Ah!, porque quando minha irmã foi... Ele morou com a minha irmã mais velha uns tempos. Depois ele foi pra São Paulo e ele ficou lá na casa dos outros assim, sozinho. Não casou, né? E vivia uma vida muito sem futuro demais, né? E milagrosamente, por muito milagre de Deus, ele foi encontrado. Graças a Deus. Ele adquiriu família sem ter casado, mas pelo menos agora ele tem a casinha dele, ele tem... ele aposentou também, né? Ele caiu da laje e machucou e agora ele não pode trabalhar mais. Ele é pedreiro. Mas melhorou. As meninas já estão moças. Uma até já... já formou em inglês e está fazendo outro curso agora. A outra também está estudando. E ele está... melhorou demais, graças a Deus, né? O outro morreu. E essa que veio pra cá comigo. P: Como foi a vida dos seus irmãos com o falecimento da sua mãe? R: Cada um foi pra uma casa... foi pra uma casa. Um ficou lá na casa da minha avó, da minha... avó. O outro na casa do meu tio. A outra, essa que veio pra cá comigo, também ficou nas casas das pessoas que a gente conhecia, né? Tudo trabalhando. A mais velha foi pra casa da minha tia, mas... tudo foi assim. (Pausa.) É. Eu queria assim que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado, né?, e que tivesse tido um lar mesmo, né?, porque a gente assim... porque muita... a ignorância é tanta assim das pessoas! Aquilo fica tratando a menina assim como um traste, como um intruso, né?, como uma coisa inútil, né? E isso... eu passei por isso demais da conta, né? O meu irmão demais também, né? E umas pessoas recebem de um jeito e outras de outro, né? Umas não sei se é ser mais orgulhoso, né? E... eles é duro. A pessoa quando é tratada com desprezo é muito triste, né? Por isso que a gente não deve, sabe?... Carinho é uma coisa tão barata (Risos): não custa nada! Coisa que todo mundo pode dar. Não é verdade? Coisa que todo mundo pode dar a uma criança, né? Passa a mão numa cabeça de uma criança mostrando o amor. Isso é tão importante na vida de uma pessoa! Tão importante! E aí a gente não faz muitas das vezes, né?, porque a maior parte, essas coisas, dessas pessoas que se tornam esses bandido, essas pessoas tão perigosas, vai saber atrás dessa vida o porquê, o que aconteceu. Você pode saber. A maior parte dos casos é isso: é a criação. P: A senhora, além dos irmãos, tem outros parentes? R: Bom... Como assim? P: A senhora tem sobrinhos, primos ou outros parentes? R: Eu tenho, eu tenho, eu tenho, eu tenho. Eu tenho muitos parentes! A minha família é grande. Eu tenho muitos primos, tenho três sobrinhas, que são filhas da minha irmã, e tem uma que ela criou. P: Onde eles moram? R: Mora aqui. A que ela criou mora aqui. Tem uma moça que é loira, sabe? Ela... Menos uma que são os netinhos dela.

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P: A senhora tem algum contato com eles? R: Dema... Tenho, sim. As minhas sobrinhas vêm sempre aqui. Eu gosto demais delas! Todas elas. São quatro com ela, né? Eu não queria morar com ninguém porque... assim é bem melhor, né? Porque a gente fica sem liberdade, né?, tira a liberdade dos outros também, né? Não é como estar aqui, assim sozinha, né? P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo? R: Desde que começou. Desde que inaugurou. Está fazendo dez anos em dezembro. Dia oito de dezembro faz dez anos que eu estou aqui. P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá? R: Eu vim pra cá porque eu estava muito doente, né?, e eu tomava conta de uma irmã. Ela sofreu derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava dando conta mais de cuidar dela. Ela viveu vinte e três anos depois que sofreu derrame. A outra irmã que cuidou dela nove anos. Mas, depois, ela morreu e eu fiquei cuidando dela. E a nossa médica falou que... Quando eu falei pra ela que nós íamos ficar e ela não achou ruim a idéia, não: “– Porque vai chegar um tempo que você não vai dar conta nem de você, nem dela. Nem de cuidar de você, nem dela”. Mas, depois que nós estávamos aqui, ela morreu. P: Como foi essa decisão de vir para o abrigo? R: Bom. A gente... Bem, o nosso pastor era muito... Conhecia já... nos conhecia muitos anos e ele sempre falava: “– Quando eu fizer o abrigo eu vou levar vocês pra lá”. Então já estava tudo arrumado, né? Ele e o S. Mário que foi diretor daqui por noves anos. Ele também conhecia a gente muito, de modo que não houve problema, né? E eu telefonei pra ele. Mas eu também tinha que vir mesmo porque eu estava muito doente na ocasião, né? Vindo pra cá eu não estranhei nada, não estranhei nada. No começo era só nós duas, né? Mas logo, logo, começou a juntar gente, né? E eu achei bom e ela também achou. P: Como é para a senhora morar aqui? R: Eu estou muito bem. Eu não tenho... não tenho a menor dúvida de que eu estou num lugar que Deus preparou pra mim, pra minha velhice, pro que não tem boa saúde, né? Aqui eu tenho o que eu preciso. Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a gente já passou tão duro na vida! E agora eu tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de mim, né?, quando preciso assim. Eu ainda posso fazer alguma coisa, posso cuidar do meu corpo, né? Mas aqui o que eu precisar, eu tenho aqui. E eu já saí, mas não quis sair mais, né? Aqui eu saía, eu pegava ônibus, eu ia onde eu queria. Mas agora eu não posso fazer isso mais devido ao meu estado de saúde, né? Eu não tenho condição. Eu não tenho condição de pegar ônibus mais. É isso aí. Porque eu tenho aquele problema de artrose, né? Eu tenho problema de... de... de coluna muito sério. Eu tenho problema muito sério de coluna. Então eu já não posso mais. Dessa última vez que eu saí, eu caí dentro do ônibus. Ainda bem que foi dentro do ônibus. Aí o S. Mário – nesse tempo era o S. Mário o diretor daqui – ele não quis que eu saísse mais sozinha. Então agora, quando eu tenho que sair, eu tenho que ir ao médico, eles me levam, né? P: O que a senhora quer dizer com “ter o que precisa”? R: Hein? P: O que é “ter o que precisa”? R: Tudo, tudo. Aqui tem tudo que precisa pra viver uma pessoa na minha idade, que precisa de cuidados, né? Afinal de contas, aqui tem tudo o que uma pessoa que tem problema de saúde, como eu tenho, que precisaria de um lugar pra viver. Então esse lugar foi preparado por Deus pra mim. Eu não tenho a menor dúvida disso. Eu estou bem, muito bem, graças a Deus. Sempre Deus nunca me

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desamparou, né? E não desampara mesmo! Aqueles que confiam nele, ele não desampara. Mas eu... é evidente que viver assim pelas casas dos outros, trabalha aqui, trabalha ali, cada casa é um... de um jeito, né? A gente tem a comida e um quarto. Os quartinho sempre os pior pra dormir, né? É sempre assim. Agora tem pessoas que são bem tratadas demais mesmo, né? Mas eu... sempre fui... fiz muita amizade, graças a Deus. Fiz bons amigos, né? E Deus preparou pessoas que me ajudou demais! Por exemplo, tem um que já morreu, né?, há muitos anos. E essa foi uma benção mesmo na minha vida. E através dela, outras pessoas ficaram me conhecendo, como o senhor... o senhor aqui que morou em São Paulo. O irmão dela é advogado lá. Agora já está aposentado. Então é isso. Através dessa minha amiga eles ficaram me conhecendo e me ajudaram muito. Muito mesmo! P: Ajudaram em que sentido? R: Bom. Aquele problema que eu tive, né?, assim de resolver o problema. Por exemplo de... Ela é enfermeira, né? Lá no hospital, ela... Tudo que eu precisava, ela conseguia pra mim. Ele como advogado também. O que eu precisei, né? Eu conheci pessoas boas, né? São amigos na verdade. P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui? R: É bom. Eu me dou bem com as pessoas que moram e trabalham aqui. P: A senhora recebe visitas além dos seus parentes? R: Recebo visita de muita gente. No abrigo vem muita gente, né? Essas pessoas que vêm visitar o abrigo, né? Agora meus parentes também vêm. Sempre. P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro? R: O que que eu faço? Bom. No princípio... Desde primeiro eu fazia bastante coisa. Eu até fazia as compras daqui. Eu até em supermercado cheguei a fazer. Fazia compra de sacolão. O sacolão é aqui pertinho, ali na esquina, né? Elas preenchia o papel com o pedido das coisas, né?, e eu ia, escolhia as coisas e trazia. Consertava as roupas. Eu ainda conserto as roupas do abrigo até hoje. Fico, por exemplo, a noite assim... Às vezes a enfermeira estava sozinha e precisa de uma emergência, assim de sair com uma pessoa que precisava de ir pro hospital. Aconteceu muitas vezes. E, na noite que minha irmã morreu, a enfermeira foi levar ela pro hospital e eu fiquei tomando conta deles. Eu fazia muito. Agora o que eu faço é só mesmo consertar as roupas, né? E fico, quando precisa de alguma coisinha assim, de eu olhar. Eu assim eu faço, né? É, eu já ajudei bastante, porque o S. Mário fala que eu já ajudei demais pro abrigo. E também faço crochê. Fico aqui fazendo crochê o dia inteiro! Mais pra mim, né? Sempre trabalhando. Faço o dia inteiro. Tenho freguesia, graças a Deus. Agora eu não sou... eu não sou... “– Dá licença, eu tomo remédio”. [Ela se levanta, dirige-se ao banheiro e retorna para o local em que estava sentada.] Ah!, eu gosto demais! Gosto muito de fazer crochê, sabe? [Ela se levanta para pegar o crochê a fim de mostrar ao pesquisador.] Eu comecei sem esperar que isso acontecesse. Quando eu estava em São Paulo, eu aprendi lá na minha escola, né? E depois eu vim pra cá e fui fazendo, tirando amostra, perguntando pra uma e outra pessoa, apanhando, né?, (Risos), quebrando cabeça. Esse daqui é um leque, um tapete leque. Esse daqui eu fiz mais pra amostra, mas eu já fiz oito desses pra encomenda, sabe? [Ela se levanta para guardar o crochê]. P: Como as pessoas ficam sabendo que a senhora faz crochê? R: Elas vêm... vêm aqui, ficam sabendo e vê, né? Eu não sei negociar, não! Não sou de negócio. (Risos.) Nem! Às vezes eles chegam e eu nem mostro para ninguém. Mas toda a vida eu fui assim. Então a pessoa vem e gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre trabalhando. Tenho serviço direto, graças a Deus. Fiz pra uma moça psicóloga. Conhece a Luciana? Não sei se ela já terminou... Eu acho que já.

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P: Há quanto tempo a senhora mora nesta casa? R: Não, não, não morava! A casinha foi feita depois. Depois que minha irmã morreu é que fez a casinha aqui pra mim. P: E como foi a decisão de fazer esta casa para a senhora? R: O S. Mário que era o... o... presidente, o diretor, né?, ele, um dia, ele falou que ia fazer essa casinha aqui pra mim, né? E eu estava muito doente, porque eu tive depressão, né? E eu nem liguei, sabe? Quando ele falou, eu nem liguei. Diz ele, foi Deus que pôs na cabeça dele que devia fazer aqui. E ele resolveu fazer e fez mesmo, né? Depois que fez, aí eu achei bom demais, né? (Risos.) É. Mas hoje, graças a Deus, eu estou muito feliz com Jesus. Louvado seja Deus. Sou contente mesmo! P: A senhora faz algum plano para daqui em diante? R: Quinze anos? Essa espera eu não sei mais o que é, não! P: Eu digo: planos para a sua vida daqui em diante. R: Ah! Daqui em diante... (Risos.) Ah!, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver muito tempo, não! Eu quero ir embora. (Risos.) Eu já estou com oitenta e um e estou inteirando oitenta e dois anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a vontade dele. Mas... eu não gostaria de ficar assim, igual os meus colegas, na cadeira de roda. Assim é triste, muito triste, né? Mas ser feita a vontade de Deus. P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa? R: Não. (Risos.) Acho que... Parece que a gente já falou tudo, né? Não sei.

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ENTREVISTA 2 Entrevistado: Miro P: Fale-me sobre a sua vida. R: Eu tenho setenta e três ano, mas fui registrado a dois a mais, pra mim poder votar. Mas já está no registro. Mas eu não tenho, né? Para com Deus eu não tenho. Mas está bom! O meu cunhado, ele é farmacêutico formado. Ele é louco por partido, né? Nesse tempo era PSD e UDN. Registrou eu, uma irmã minha mais um irmão numa idade avançada. Ele já morreu também. Era farmacêutico formado. Chamava Nelson Pereira. Tem um filho em Guarulhos, que é meu sobrinho. É advogado metalúrgico. E ele tem duas filhas que já formou também. Advogada. Tem uma mansão lá que é um mundo! Está, oh!, muntado! Eu já fui lá três vez. As filha dele casou. É sozinha já. P: O senhor trabalhava? R: Trabalhava. Eu era corretor. Ih! Tanta coisa que eu até esqueci! (Pausa.) Vixe! Eu trabalhei muito tempo! Trabalhei em muita coisa: em olaria, cerâmica. Tudo isso. Isso aí tudo eu faço, sabe? Fazia. Quando eu tinha uma base de quinze ano, eu trabalhei em uma companhia chamada CR. CER, Mato Grosso. Trabalhei muito tempo. Trabalhei, depois saí. Fui pra olaria. Depois trabalhei de... de guarda e... tomar nota de carro: pra onde você vai; pra onde você vem; que carga você vai levando; pra onde você vai. Ih!, aquele piseiro, sabe? Muito coisa eu fazia. Tá doido! Eu toquei comércio também, até antes de vir pra cá. Quando sofreu o derrame, aí eu estava por minha conta no Alto Araguaia. Eu estava por minha conta antes de vir pra cá e o meu comércio estava controlado. Tinha bebida, refrigerante, Guaraná, Caracu, bolo, caramelo... Eu vim de Mato Grosso com um senhor, Francisco José de Jesus. Francisco José de Jesus! Um pouco vesgo. Fui em Guarulhos com ele. Fui comprar bolacha. Tinha um carrão assim escrito no carro: Francisco José de Jesus! Fui com ele lá, vortei, e o meu menino já estava assim... Ele não me cobrou passagem. Ele falou: “– Miro, eu vou te levar em Guarulho. Não te cobro nada e nem a despesa também. Não cobro nada de você porque você é dos freguês mió que eu tenho lá no Alto Araguaia!”. (Risos.) Eu falei: “– Muito bem”. Me levou. Me levou lá na casa do meu sobrinho. Eu apresentei pra ele. O Paulinho ficou muito satisfeito com ele. “– Ah, S. Paulinho, isso é... tio do senhor?”. “– É!”. “– O que o senhor precisar aqui comigo o senhor pode falar que eu telefono qualquer hora pro senhor. Eu acudo na hora!”. É isso aí. P: O senhor foi criado com os seus pais? R: Fui. Vixe!, nossa! P: Como foi o seu relacionamento com eles? R: Os meus pai foi muito bom para nós tudo. Papai quando morreu eu não tinha quinze ano. Mamãe... mamãe morreu nova, com mais de sessenta anos, mas eu e meus irmãos ficamos tudo criado na barra da saia dela. Eu ainda trouxe ela aqui. Vixe! Ela era de Trindade. Trindade. O papai também era de Trindade. Tudo era goiano. Tinha fazenda, tinha gado. A filha da mamãe falou: “– Mãe, vamos passear no Uberlândia? Fica lá comigo uns três mês!”. Ela falou assim: “– Não, eu não vou, não! Eu já estou velha, já! Se eu resorvê, eu vou mais o Miro”, que é eu. Eu falei: “– A hora que a senhora quiser ir pode falar que eu vou”. Aí um dia ela resorveu. “– Ah, então eu já vou buscar dinheiro lá na fazenda!”. Eu trouxe ela e ela ficou aqui três meses com a filha dela. A filha já morreu. Chama, chama... Francisca. Aí depois ela ficou doida pra voltar e escreveu pra mim buscar ela. Eu peguei e vim. Levei pro Mato Grosso. Mamãe tinha uma coisa comigo porque eu era caçula, sabe? Toda a vida eu era caçula. Ela pelejava comigo! Ela também fazia as coisa pra me agradar. Toda coisa ela falava pra mim: “– Ô meu filho, compra uma bicicletinha pra você! Você gosta! Reloginho...”. É. Ai, ai! P: O senhor tem outros irmãos? R: Cinco. Cinco!

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P: Como é o seu relacionamento com eles? R: Morreu tudo já os meus irmão. Era o Mauro, Walmir, Júlio, Eduardo, Airton. De irmão homem só resta eu. Mulher só tem duas. Uma mora aqui, a outra mora em Paraná. As outra irmã morreu. Mulher é a Aparecida, Isildinha, Francisca, Tina e Tereza. É a Ti... Isildinha... Isildinha! P: O senhor tem notícia delas? R: Essa aí morreu, uai! Chamava Francisca. P: Qual é o seu estado civil: solteiro, casado ou viúvo? R: Casei no civil e no padre. A minha mulher mora em Jataí, Goiás. Conhece? Está lá. Ela tem duas casas. As minhas duas casas. Ela foi lá em Alto Araguaia e falou: “– Miro, eu vim aqui pra você assinar a procuração porque eu quero dar uma casa pra menina minha. E você sabe, nós é casado e sem você eu não dou. Você vai lá?”. Eu falei: “– Vou!”. Fui lá em Jataí, assinei. Eu era bãozão! Ainda bão, sabe? Assinei e vortei. Mas, ah!, uns três anos ou mais ficamos casados! Ah!, é... Eu adquiri só um filho... uma filha. Eu adquiri uma filha do primeiro casamento. Ela era desse tamanhozinho assim, oh! Eu sabia... não. Você quer ver a foto dela? Quando eu separei dela, ela não tinha nada. Depois ela controlou. Controlou, melhorou de vida. (Pausa.) Eu morei em... Eu nasci em Alto Garças, pra lá de Araguaia, Mato Grosso. Ela hoje está grande! Mudei de lá pra cá. Passei pro Araguaia. Fiquei muitos anos no Araguaia. Eu estava alicerçado. Bem alicerçado mesmo! Aí... Me deu derrame e eu vim pra cá. Isso tem nove anos. Eu estava lá no Araguaia. Eu estava dirigindo, oh! Quando deu o derrame, o rapaz do Posto de Saúde de lá falou: “– Miro, vai olhar essa pressão, Miro!”. Eu disse: “– Não, eu estou bão!”. Até que o trem deu. Eu subia de bicicleta, descia; descia, subia; descia o dia inteiro! Até que deu o derrame. E estou aí até hoje. Ô trem encravado que é o derrame, né?, porque não tem... não tenho jeito mais de andar. Não tem jeito, né? P: O senhor falou que tem uma filha. Há outros filhos? R: Eu só tenho uma filha, mas eu vi ela pouco. Eu tinha um filho com outra mulher, mas ele morreu de acidente de mota. Era motoqueiro, mecânico de mota, mecânico de carro, consertava televisão Ele era motoqueiro. Chamava Sócrates da Silva. Morreu de mota. Êh!, mais eu vou te contar! Morreu com vinte e dois anos. Ele falou: “– Pai, eu tenho que ir no Jataí comprar decalco platinado, condensador de mota, porque aqui não tem essas peça. Tem cinco mota pra mim arrumar de Cuiabá. Está tudo desmontada aí. Eu tenho que ir lá”. Eu falei: “– Deixa pra você ir amanhã!”. “– Não, é hoje!”. Ficou teimando, teimando, pôs o capacete, pegou o documento e saiu e voltou. “– Ô, eu esqueci minha identidade!”. Eu falei: “– Deixa pra você ir amanhã!”. Ele falou: “– Não. Eu quero ir é hoje!”. Aí foi. Foi embora. Aí quando foi três horas da madrugada chegou a funerária lá em casa com ele, minhas duas sobrinhas minhas...: uma sobrinha, um primo e a prima. Falou: “– Pan, pan, pan, pan”. “– Quem é? Quem que fala? Se não falar quem que é, eu não abro!”. “– Ah!, Miro, é seu sobrin... é sua prima e um primo seu de Mineiros. Infelizmente o Adão morreu de acidente”. Nossa Senhora, arranjou um baque em mim! Nossa! Quando abriu a funerária assim, a Kombi, estava ele. Ele era filho com outra mulher. Eu peguei ele desse tamanhozinho aqui! [Mostra, com a mão, o tamanho de uma criança bem pequena.] Quando ela morreu, eu fui criando ele até... ficar rapazinho, sabe? Não bebia, não fumava, não estragava dinheiro com farra, nem nada. Ele gostava era disso, oh! [Esfrega o dedo polegar com o médio, referindo-se a dinheiro.] Não aprendeu arte nenhuma. Ele falou: “– Eu não vou aprender profissão nenhuma com ninguém! Eu vou trabalhar às minhas custas. Não quero ser mandado por ninguém!”. Já aprendeu por conta dele: motoqueiro; mecânico de carro; mecânico de moto; consertava televisão; consertava energia. Eu tinha uma televisão Philco, enguiçou lá, eu falei: “– Eu vou levar no conserto”. “– Não, pai, não leva não!”. Eu vou consertar pro senhor. Eu não cobro nada. Se o senhor leva pra outro, o outro vai cobrar do senhor uns quinhentos cruzeiros”. Ele levou pro quarto dele e olhou ela tudo. Desmanchou ela todinha e juntou dois fios arrebentados. Está pronto! P: O senhor tem outros parentes?

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R: Tenho parente em Mineiros. Eu ia lá muitas vezes. Minha tia chamava Yolanda, irmã da minha mãe. E o meu tio chamava Vinícius. Também já morreu tudo. Ficou as casa lá tudo pros filho. Aqui tenho irmã, tenho sobrinha, tenho sobrinho, tenho muito parente aqui. Bom. De lá eu tinha mais parente. No Alto Araguaia eu tinha uma irmã com o nome de Helena. Minha irmã morreu agora em fevereiro. Fevereiro. Chamava Helena. O herdeiro dela é eu, porque ela não tinha filho. Ficou a casa dela pra mim, e a geladeira e a máquina de pé. E está alugada ainda, porque a minha sobrinha já está tomando conta. A Cristina. Ela veio aqui: “– Tio Miro, aqui o papel, oh! O senhor quer vender lá ou como é que é?”. Eu falei: “– Oh!, vamos parar, né?. Deixa eu normalizar primeiro”. Então está alugada. A casa está alugada lá. Tem água, tem luz, tem quintalão, tem laranja. Tudo. P: O senhor mantém contato com os seus parentes? R: Tenho. Eu converso por telefone com sobrinha minha. Sobrinha, sobrinho também. Eu tenho uma sobrinha que chama Cristina. É minha afilhada e sobrinha. Ela casou e morreu o marido dela de acidente. Ficou a casa de dois andares pra ela. Deixou duas filhas e um salário de novecentos pra ela. Então ela ficou muntada também, né? O meu sobrinho, o que me trouxe pra cá, passou aqui uma vez. Foi em Alto Araguaia, onde ele nasceu, Mato Grosso. Não! Alto Garças, onde ele nasceu. Passou ele e a mulher dele. O carro dele é tudo importado. Ele tem três carro. Tudo importado. O carro usou com ele dois ano, ele vende, acaba logo. Quer outro novo. Demanda quando ele pega lá. Ele falou: “– Tio Miro, quando eu pego uma demanda, se tiver qualquer coisa eu recebo. Revorve. Eu tenho cinco revorve, aí que eu recebi demanda. Às vezes não tem dinheiro eu recebo qualquer trem e vendo pra outro”. (Pausa.) Aprendeu? Você vai guardar isso na memória também, né?, o que eu falei assim. Você vai falar: “– Bem que o Miro falou pra mim!”. Menino, é desse jeito! P: Há quanto tempo o senhor está aqui no abrigo? R: Nove anos que estou aqui. Faz tempo. Eles não tinham nem terminado a casa ainda. O S. Mário ainda falou pra mim: “– Miro, pode deixar que eu te levo a hora que terminar de fazer um banheiro lá”. Ele fez, foi lá me buscar e eu estou aí até hoje fazendo fisioterapia e tudo isso, sabe? Todo exercício eu faço. (Pausa). P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá? R: Meu sobrinho que trouxe eu. Advogado metalúrgico lá em Guarulhos. Eu tive sozinho uns tempo. Muito tempo. Foi uns vinte anos. Eu larguei da minha mulher. Não foi por ela, foi por mim. Foi trocar conversa no meio de muita mulher e aí atrapalhou. (Risos.) Ela falou: “– Miro, Miro, nós larga, Miro, nós larga!”. “– Mexer com isso, não!”. Morei com uma de Jataí. Chama Sebastiana. Ela é bonita, sabe? Morei com ela também muito tempo. E ela depois morreu de... de... essa doença que não cura! Como é que fala? Essa doença que dá e é duro salvar: câncer! É, câncer. Deu na mulher. Eh, tanta coisa que eu passei na vida, Nossa Senhora! Passei muita coisa boa, desfrutei minha vida. Muito mesmo! E depois que eu casei, amiguei outra vez cinco vez. E larguei. Fui pra Jataí. De Jataí pra Campinas. De Guarulhos virei pra trás. Andei por todo lado e virei pra trás. Aí estou aqui. E eu vim pra cá porque eu tenho muito parente aqui. Tenho muito parente aqui. Tenho sobrinho, tenho sobrinha. P: Como foi essa decisão do seu sobrinho de trazer o senhor para o abrigo? R: O sobrinho meu que trouxe eu, porque ele achava que aqui é mió pra tratar. Eu vim de Araguaia pra cá. Meu sobrinho trouxe do... do Guarulho foi no Araguaia. Ele trouxe e pôs eu aqui porque eu estava doente. Ele ainda falou: “– Tio Miro, eu não vou dar... tratar do senhor porque isso é dureza pra sarar! E só sara com terapia. Se fosse apenas pelo dinheiro eu pagava o possível pra tratar do senhor. Mas não é, não! Não adianta dinheiro pra isso. É só movimento”. P: Como é para o senhor morar aqui?

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R: Uai! Eu senti bão, uai!, de vir pr`aqui! Estou bem tratado, né?, bem zelado. Aqui não falta médico. Comê, quatro vez por dia. Se precisar de remédio, vem na hora. Então está bem tratado, não está? Pra mim qualquer lugar estava bão. E está bão até hoje. Não me falta nada. (Pausa.) Ah!, eu nem não sei. O que eu acho é que falta saúde. A saúde é o principal. Faltou ele, acabou, né? P: Por que o senhor acha que “faltou saúde, acabou”? R: Uai!, porque não tem jeito mais de andar. Não tem jeito, né? Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? Está lá, oh!, alugada. Está os trem tudo dela lá em um cômodo na casa dela, né? Tem geladeira, tem máquina de pé, tem... tem geladeira, máquina de pé, guarda-roupa. Tanta coisa ela tem lá, mas eu não posso ir lá, né? Mas não me prejudicou muita coisa, não, sabe? Eu sei ler ainda, sei escrever. Se você me falar uma coisa hoje, eu te falo outra vez. Muitos dias eu falo. É só o jeito de andar. Eu ando meio mancando, né? Meu braço também. Aqui não estava mexendo, não, oh! Aí tem terapêutica, sabe? Agora mesmo saiu uma aí. Você viu? Você conhece ela? Onte eu fiz, porque eu é segunda e quinta. Fiz onte e, agora, quinta. Lá no CEAI [Centro de Apoio ao Idoso], eu vou lá toda segunda e sexta. Tem um senhor lá que deu derrame. Falou: “– Miro, eu não sei ler mais. Saiu da cabeça. Eu falei pra mim ver, não dou conta mais”. Chama Eurípedes. E tem mulher também. Ih!, você precisa de ver o tanto! Nossa Senhora, tanta mulher que deu derrame! Agora está de férias. Entrou dia seis. Um mês. Aí vem um ônibus buscar nós. Buscar todo mundo. E eu vou no CEAI I, no II, no I, numa Van. Essa é segunda-feira, e o outro é terça. Vai começar agora em agosto. Está de férias. Está com quatro ano que eu estou andando nisso. Acho bão. Passa o tempo, né? P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui? R: O pessoal aqui é tudo bão. Tudo camarada. Dou bem com todo mundo daqui. A D. Suyá é muito boa. Ela costura também, né? Se precisa de pregar um botão da camisa ela prega. Cerzir, zig-zag. Eu tinha uma máquina de pé bonita e vendi no Araguaia. Marca Zig-zag. Eu gambiava muito lá: era máquina de pé; era bicicleta; era carro; revorve; relógio. Tanta coisa! Eu estava bem lá. Estava bem, menina, tá doido! Se eu não tivesse dado derrame eu estava era rico. Era um homem que vivia independente no Alto Araguaia. Todo mundo falava pra mim: “– Miro, você pode levar fiado”. “– Não, não quero não!”. “– Pode levar. Você é direito”. “– Mas eu não quero!”. (Risos.) Pra que comprar fiado, né?, eu tinha dinheiro! Comprar fiado mais pra quê? Roupa eu tenho muita. Pra que comprar mais? Eu tenho muita roupa que eu trouxe lá do Araguaia. Tinha uma senhora, D. Ângela – a costureira de lá chamava D. Ângela. Costurava pra mulher enxoval de casamento. Tudo ela fazia. Tinha fazenda. O filho dela tinha fazenda, tinha açougue. Eu falei: “– D. Ângela, a senhora não precisa trabalhar”. “– Não, Miro, eu não agüento ficar sem... sem trabalhar, não! Vou trabalhar”. Tá véia! Está com noventa anos. P: O senhor recebe visitas? R: Ih!, todo dia tem visita! P: Quem são as pessoas que o visitam? R: Ih!, muita gente! Eu nem não sei mais! Tem muitas pessoas que vêm! Nossa, todo dia! Os meus sobrinho e minha irmã vêm quando pode. Tem muitos que é ocupado, não vem todo dia, né? Vem de um mês, dois. Assim... Pra mim... é bom, né? (Pausa.) Mas está tudo longe. Está tudo longe. Não estou nem ligando por isso mai... por isso, não. Hoje eu não preocupo idéia com muié; não preocupo com filho. Há muito tempo que eu estou sozinho. Eu preocupava com o menino meu que morreu. Esse viveu comigo desde assim, oh!, [Mostra novamente o tamanho de uma criança muito pequena] até morrer. P: O senhor faz alguma atividade aqui dentro?

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R: Não. Só... exercício. (Pausa.) Exercício. E eu tenho um dinheiro no banco também, né? Pego o extrato. Está rico, não tá? E dois mil reais que eu emprestei pra um sobrinho meu que chama Roberto Tiluca. Roberto Tiluca! “– Tio Miro, empresta dois mil pra mim, Tio Miro? Eu pago o senhor, os juro que tiver correndo, Tio Miro! Eu estou desempregado agora, perdi o emprego”. Falei: “– Olha, Bertinho...!”. “– Ih, não, Tio Miro, empresta!”. Emprestei, e até hoje! Está com oito anos. Não vem aqui não! Foi chamado pra vir aqui. “– Eu não vou, não! Eu estou devendo pro Tio Miro dois mil reais, e... e... não tenho dinheiro pra dar”. Mentira! Ele já comprou casa de quarenta mil reais aí, e não pagou porque não quis. P: O senhor faz algum plano para daqui adiante? R: Ah, eu não... não sei, não! Eu acho que não espero nada mais, não! Derrame é duro de sarar. Eu nunca ouvi falar em derrame sarar. Você já viu? Tá doido! Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço até demais! A terapêutica falou: “– Você... você é danado, você faz muita coisa!”. E está custoso! Eu faço caminhada; vou no banheiro ali e tem um cano assim, oh!: levanto e abaixo; levanto e abaixo. Deito na cama e levanto os pé assim, oh! Eu não estico os pé, não, oh! Esse aqui, oh, é dureza! Isso é muito pouco. A melhora é um tantinho assim que a gente nem não vê. Se melhorar um pouco assim eu já fico animado de fazer mais. (Risos.) Ah!, isso é... memória. Mas deu fraco em mim. Tem uns que dá demais, né? Você não ouviu falar isso, sobre a memória? Atingiu a memória. (Pausa.) Espero fazer muita coisa ainda. P: O quê, por exemplo, o senhor espera fazer? R: Andava muito de carro, de bicicleta. Quando eu vim pra cá eu tinha uma Brasília novinha. E eu peguei e vendi ela. Eu falei: eu não posso guiar mais. Só meu sobrinho é que estava dirigindo. Aí eu fui lá e vendi ela. Tinha duas bicicleta no Alto Araguaia. Mandei vender ela também. Uma verdinha. Tinha até seta nela, assim, oh!, no lado esquerdo e no lado direito. Uma Ceci de mulher novinha que eu tinha também. Eu gambirava muito lá no Alto Araguaia: comprava, vendia; comprava, vendia. Passeava pra São Paulo onde está meu sobrinho. Chama Lázaro Pereira. Estudou até! Está muntado no dinheiro, oh! Um advogado metalúrgico ganha dinheiro, não ganha? E ele formou duas filha também. Filha dele, sobrinha minha. Uma já casou. É... é... Eu não... não... eu não... não interesso mais por... por morar com muié, de ter mulher pra mim. Hoje em dia só tem vagabundagem de muié e de homem. Lá no Araguaia tinha um senhor, chamava... Esqueci o nome dele. Ele tinha fazenda, tinha madeireira. Casado. Bem casado. Envolveu! Envolveu, envolveu, até que ficou puro! Aí ele foi e voltou pra mulher dele. E ela: “– Não, eu não quero mais, não! Pode virar pra lá! Depois que acabou tudo que você tinha!”. Ah!, é José! O nome dele é José. Ela falou: “– Eu não quero de jeito nenhum mais! Eu era tão boa para você e você vivia pintando comigo”. É. Ele falou: “– Então eu vou morrer!”. “– Então pode morrer!”. E começou. E lá tinha um delegado que chamava Sombrinha, lá no Araguaia. E ele era dureza, justiceiro que só vendo! Ele falou: “–Quem precisa de apanhar é moleque, porque eu conheço cara é de home. Home eu conheço, moleque também”. (Risos.) “– Não, vem me bater! Você queria me bater! Toma o meu revorve!”. “– Não, ninguém quer tomar o seu revorve, não! Você está doido, rapaz! Você não está certo”. “– Vem tomar!”. “– Não!”. “– Vem me prender!”. “– Também não!”. Olha, ele é dureza! “– Então você não quer prender?” Ele falou: “– Não!”. “– Então eu vou ali pra minha casa dormir um soninho e volto agora mesmo”. “– Vai!”. Chegou lá, pegou o revorve, oh!, pá! Morreu! Aí o delegado foi lá e pegou o revorve dele. Eu fui no enterro dele. A mulher dele nem lá foi pra ver como é que era. Como que era mulher vagabunda, e home também tem. (Risos). P: O senhor gostaria de falar mais alguma coisa? R: Não. Podemos parar mesmo. Tem muita coisa. Mas não é agora, não. Te dei... te dei uma escola também, não dei? Das coisas que passou comigo pode passar com você também, né? É... hoje em dia está... está desse jeito. É duro de você entender, né? Você casa, por exemplo, casa e... logo o home já começa a andar, chega brigando com a mulher... Já está arrumando outra, né? É desse jeito, porque vira a cabeça. Gosta de outra. Passa a gostar de outra, né? Passou a gostar, pronto, né? Eu sou um

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cabra já andado. Muito. Sabido de um mundo de coisa. Tá doido! Eu falei muita coisa. Agora você fala a sua vida também! (Risos.) Agora fala: “– Você é casada, hein?”. (Risos). P: Hoje nós estamos aqui para falar do senhor. R: Todo final de mês ia todo mundo pra São Paulo. E apareceu uma mulher lá, uma moça bonita. Falou: “– Moço, você é da onde?”. “– Eu sou de Mato Grosso. Por quê?”. “– Nada”. Falou assim: “– Nada!”. Puxou o terno pro meu lado, sabe? Ela pegou e me deu o relógio dela. Tem muitos anos, sabe? Falou: “– Eu vou te dar esse relógio pra você. Você fuma?”. Falei: “– Fumo”. “– Vou mandar comprar cigarro pra você”. Aí ela falou pra mim... [Ele se levanta, dirige-se ao quarto e retorna trazendo uma foto para mostrar-me]. P: Essa é... R: Filha. P: Que idade ela tinha aqui? R: Ah, era mais de vinte ano! Hoje ela tem uma base de trinta, quarenta. P: Como o senhor conseguiu essa foto? R: Eu tinha fotografia dela. A minha filha é feia? P: O que o senhor acha dela? R: Todo mundo acha ela bonitinha, né? (Pausa). P: Onde ela mora? R: Em Jataí mesmo. É de lá. A mulher... tem duas casas com ela, né? Deu uma pra menina e ela ficou com a outra. Está morando lá toda vida. P: Vocês mantêm contato um com o outro? R: A que eu casei? Não! Ela está lá longe. Não! Tem muito tempo que eu não vou lá e nem ela vem cá também. A última vez que eu vi ela foi no Araguaia, quando elas foi lá. Encontrava minha filha. (Pausa.) E eu tenho neto. (Pausa.) Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! O contato acabou. Mais nunca mais. A filha, quando ela veio aí... Ela veio uma vez lá na cidade que eu morava. Só essa vez. Acabou! Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica custoso. O marido dela é motorista e... pedreiro. Eu não preocupo com isso, não! Não procurei, não tenho notícia nenhuma, nem telefone, nem nada. Eu não preocupo com isso mais, não! Nem procuro também. Não tenho notícia nenhuma da minha filha. Já está desligado há muitos anos já, porque eu não posso ir lá e ela não vem cá também. Se eu tivesse sadio eu ia lá. Eu não tenho nem o telefone dela porque passou muito tempo, né? Eu nem alembro mais. (Pausa.) Eu nem não sonho com ela. Nem... (Pausa.) Quando eu fui lá assinar a procuração a mulher falou: “– Ó Miro!, isso aqui tudo é nosso, oh!”. Falei: “– Não, eu não quero nada! Pode ficar tudo pra você”. “– Mas você tem mulher lá?”. Eu falei: “– Não, não tenho. Tinha, mas não tenho mais”. “– Fica aqui com nós!”. Eu falei: “– Não, eu vou embora!”. “– Ah!, então você tem outra lá, né?”. Eu falei: “– Muito quebra-galho, lá eu tenho é muito...”. (Pausa.) Ah!, é tanta coisa da gente na vida, né? (Pausa.) Uma coisa, outra; uma coisa, outra. Passa um ano; passa dois; vem uma coisa; passa três; vem mais... E... fico quieto. Entregar pra Deus, não é? Entregar pra Deus que ele arruma tudo, né? Você também não é assim? (Risos.) A única coisa que pode resolver é Deus. Mais nada. (Pausa.) Eu fiquei distanciado é porque não combinava. É isso. Quando você casar você vai ver como é que é. Ou você casou já? (Risos.) Não? Ah!, então você já é casada! Ah!, eu não importo com isso, não! É do jeito que está mesmo. E hoje em dia, quantos e quantas aqui

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casado, o marido dá... dá uma doença e fica aí toda vida, oh! E a mulher fica pulando cambango aí, oh! Eu vi foi muitas. P: O que é pulando cambango? R: É pulando moitinha. Vinha com o motorista aí pra ver o marido, mas o outro está lá aguardando, esperando ele. Ara! P: Como o senhor gostaria que fosse a sua relação com a filha? R: Não acha nada. (Pausa.) Ai! A gente pra gostar muito é preciso de ter muita relação, né? Assim, morar junto. Aí a gente lembra. Mas assim: passar trinta ano; vinte. Não alembra mais, não! Lembra por lembrar. Foi muito pouco. (Pausa.) Muito pouco. Ah!, eu num sei, não! Só Deus que sabe. (Pausa grande.) Pois é. Quando eu trabalhei nessa fazenda, essa moça falou assim: “– Ô moço, você quer ir morar comigo em São Paulo?”. Eu falei: “– Vou procurar mamãe”. “– Lá eu te dou muita roupa pra você. Tem casa boa lá pra nós morar. Te dou tudo pra você”. Eu falei: “– Eu vou falar pra mamãe”. Falei pra mamãe. “– Não vai de jeito nenhum!”. (Risos.) Eu falei: “– Mãe, lá é bom!”. “– Não, não vai!”. Eu era novinho, sabe? “– Não vai”. Eu falei pra ela: “– Não! Mamãe não quer que eu vou!”. “– Então eu vou deixar o meu telefone aqui pra você. A R. Panamá. Se você resorve a ir um dia, você vai parar lá na minha casa”. (Risos.) Vixe! Ah!, nunca mais! Ela pegou um aviãozão. Me deu o relógio dela pra mim, um relógio de mulher... de homem. Cigarro ela mandava comprar pra mim todo dia. Não era pra mim ir lá na rua, não! (Risos.) Eh! Por isso que eu digo: eu já desfrutei a vida, puta merda! (Pausa.) Hoje em dia, esses rapaz e essas moça de hoje em dia não aproveita mais nada. É pouco tempo: morre de tanta doença que aparece, né? [Ele conversa com a funcionária do abrigo que passava perto do local em que conversávamos. Olha o relógio e diz: “– Já é quatro e meia, hein? Você já está quase na hora de ir, hein?”. Ela respondeu: “– Já passou da hora. Eu vou é no de quatro horas”.] [Retorna à entrevista.] Já é quatro e trinta e dois. Tá satisfeita? P: O que o senhor quer dizer com “desfrutei muito”? R: Passeei muito; namorei; casei; larguei; ajuntei; mais larguei outra vez. (Risos.) É isso! O casamento eu achei bom. Foi, virei a cabeça, né? Depois virei a cabeça também. Virei... virou por outra mulher. Você também está pensando em você, né? Com o tempo tudo vai virando, né? É amor de outro. É isso. Fica doidinho por causa de outro e vira. Vê uma mulher assim e... “– Puta, mas que mulher bonita!”. E se ela insistir com você, você sendo homem, ih!, logo vira. Dinheiro não segura amor, não! Não adianta. Quantos e quantos têm dinheiro e a cabeça vira por causa de um pobrezinho, né? Você já não viu aquele... aquele dito da Igrejinha da Serra? P: Como é? R: Dois rapaz. Um rapaz gostava muito da moça. E o rapaz também da moça, e a moça gostava dele. E ele era pobre. Só tocava violão. E o pai não queria porque ele era pobre. Combinou os dois e beberam veneno. Bebeu e morreu. Foi enterrado em Rio Verde. Eu vi a casinha lá deles quando eu fui pra São Paulo. Você não ouviu contar isso? Foi desse jeito, né? (Risos.) É amor. E é... É pobre. Ela queria ele e não queria o rico. [Ele começa a cantar: “Vou me embora pra terra lá. Eu aqui não posso mais morar. Vou me embora pra ver se eu esqueço da mulher que eu mais amo na vida”]. É assim. (Risos.) Tá respondendo, aí? Vixe!, conversei muito borracha, hein? Vixe, não pode nem mostrar pros outros, né? P: Essa conversa, como eu falei para o senhor, será utilizada apenas para o estudo que estou realizando. R: Ah, pensei que você ia mostrar! (Risos.) É só pra nós dois, né?

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ENTREVISTA 6 Entrevistada: Ava P: Fale-me sobre a sua vida. R: Eu fui nascida na fazenda de um homem chamado Mauro. Eu fui criada... nascida e criada na roça perto de um lugar chamado Veríssimo. Estava com dois ano quando nós mudou de lá. Mudou pra um lugar com nome de Piracanjuba. Lá eu criei. Estudei, mas foi bem pouco. Só até o terceiro ano. Aí quando eu estava moça, nós mudou pra um lugar por nome de Patrimônio de São José do Rio do Peixe. E depois... lá eu casei, né? Eu fui casada. Depois nós mudou pra cá pra labutar. Meu marido morreu aqui. Fiquei viúva. Já tem mais de vinte ano que o meu marido morreu. Sou mãe de três filhos. Um morreu, o do meio. E tem dois. Tem o mais velho e tem o terceiro. Eu fiquei com Deus. Eu não quis morar com ninguém. Um chamava; o outro chamava, e eu não morava, não! Ele deixou uma casa pra mim, deixou INPS pra mim. Graças a Deus ele era bom pra mim. O nome dele era Márcio José Guimarães. E eu, Ava Maria Guimarães. Agora, os meus menino... O mais velho chama Paulo Mário, né? O do... o do meio chama... chama Antônio Pedro. O mais novo chama Hélio Henrique Guimarães. (Risos.) (Pausa.) Eu estou com oitenta e nove ano. (Risos.) Eu sou do dia sete de novembro de um mil novecentos e quinze. (Pausa.) Nós morava no Patrimônio quando o meu filho morreu. Ele morreu foi lá. Então... é isso aí! Mas... agora, os outros dois..., quer dizer, o Hélio Henrique, eu não dei escola pra ele. Ele entrou na escola com cinco ano, porque a minha irmã é madrinha dele. Então ele: “– Ah!, não, não quero entrar na escola!”. Ele não queria. “– Ah!, ele está muito novo, Cleusa!”. O nome dela é Cleusa. Então, ela: “– Não, madrinha, deixa ele ir!”. Foi... foi... Depois que ela casou, levou! (Risos.) Levou ele, né? Depois ela falou – ela é professora – : “– Ó madrinha, agora o Hélio Henrique fica comigo porque ele olha os menino pra mim!”. Ele foi e ficou lá com ela. Ela criou ele e ele saiu de lá com onze anos. É quando ele veio pra cá. Ela dava roupa pra ele, deu escola. Ela quem deu escola pra ele. Eu dava roupa pra ele também, porque a gente que é mãe, né? Às vez eu comprava um terno de roupa, ela falava: “– Ah!, madrinha...” – eu sou madrinha dela – “– Ah!, madrinha, pra quê? Depois eu compro pra você!”. “– Não, mas eu sou a mãe dele, uai!”. (Risos.) Depois disso ele foi morar comigo. Com onze anos ele foi lá pra casa. (Pausa.) Faz muitos ano que o meu filho morreu. O Hélio Henrique é o mais novo. O Hélio Henrique já fez sessenta ano no dia cinco de dezembro. Ele é... Ele estava mais ou meno com sessenta e dois ano. Ele sofreu sarampo. Ele sofreu sarampo quando criança e morreu. (Pausa.) O Antônio Pedro. (Pausa.) Eu sei que a vida da gente é assim mesmo, né? P: Assim mesmo, como? R: É assim mesmo. Porque... a gente nasce num lugar, muda pra outro. Daquilo muda pra outro. Daquilo vai pra outro. Eu nunca pensava que ia morar em cidade. (Risos.) Eu, não! Mas foi, nós mudou pra cá. Meu marido morreu, bem dizer, de repente. A gente sente falta das pessoa, né? A gente nunca esquece daquelas pessoa. Isso dá interferência na vida da gente. Ih!, demais... Deus me livre! Nós combinava bem. É. E a gente está aqui... O Hélio Henrique vem cá toda semana. Dia de segunda. Qualquer um dia desses aqui ele vem cá. P: Em que sentido essas perdas interferiram na sua vida? R: Uai!, ele morreu de repente, né? Ele falou: “– Ava, eu estou com vontade de comer canjica!”. Eu falei: “– Uai!, então compra, ué!”. Ele foi e comprou. Ele cozinhou a canjica, comprou leite, eu fui e falei: “– Por que você comprou dois litro de leite se nós é só dois?”. Os menino já tinha casado. Todos os dois, né? Ele falou: “– Um pra nós comer com lei... com canjica; o outro pra nós comer coalhada amanhã”. Agora, quando meu irmão chegou lá, nós comeu canjica e tudo, meu marido saiu e foi pra venda. Ele chegou lá na venda. Ele bebeu pinga. Foi, deu congestão cerebral. Foi... Ele não tinha chegado e eu falei pro Hélio Henrique: “– Ô Hélio Henrique, o seu pai não está aqui, não!”. Foi, e o Hélio Henrique falou: “– Eu vou lá no boteco e eu vou levar o carro”. Mas ele não bebia pinga assim, não! Ele nunca chegou lá em casa tonto! Ele falava que tinha uma raiva desses homem que chegava em casa brigando com a mulher, quebrando trem! Ele tinha rai... Ele não... Lá, um dia, ele bebia um golinho. Ele foi, bebeu lá e morreu. Foi. O Hélio Henrique foi, chegou lá: “– Ah!, S. Sebastião, cadê o

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papai?”. E tinha um atalho assim, oh! Ele falou: “– Já foi embora”. Ele falou: “– Não!”. Foi. O Hélio Henrique saiu no atalho. Ele estava caído lá no chão. Foi, o Hélio Henrique chamou ele, chamou, ele não respondeu. Foi ver, foi lá no S. Sebastião e falou: “– Ó S. Sebastião, eu chamei, chamei, ele não respondeu. Vamos lá comigo?”. Foi, S. Sebastião chegou lá, chamou ele, falou: “– Ai, seu pai morreu!”. Foi, pôs ele lá no carro e levou lá pra casa. Chegou lá, S. Sebastião me chamou: “– Ó D. Ava, vem cá! Eu vou falar pra senhora uma coisa”. Eu falei: “– O quê?”. “– O marido da senhora morreu”. Eu falei: “– Ah!, quê que foi?”. “–Vem cá pra senhora ver!”. Eu fui lá, apalpei ele, ele estava quentinho. Foi, ele levou lá, levou ele pra Medicina. Foi, o povo da Medicina falou: “– Não, vocês pode levar ele pra trás! Amanhã cedo nós vai buscar ele pra fazer autópsia”. Foi, levou lá pra casa, passou a noite lá. No outro dia, sete hora mais ou meno, eles foram lá. Levaram ele, fizeram autópsia nele e levaram ele pra casa outra vez. Depois, quando foi de tardinha, fez o enterro dele. Mas ele era muito trabalhador! Muito mesmo! Não deixava faltar nada pra mim. P: Onde os seus filhos moram? R: O mais velho mora em São Paulo. O mais novo mora aqui. Eu moro com ele. P: Como assim: “eu moro com ele”? R: Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou embora. P: Como é o seu relacionamento com eles? R: Graças a Deus vive bem. Ele não é ruim pra mim. Quer dizer, ele nunca tratou de mim, porque meu marido deixou casa, deixou INPS. Eu vivo é com o meu INPS. Lá eles é bão. Eles vai comprar as coisa, ele: “– Mãe, o que a senhora precisa?”. “– Eu não preciso, porque eu tenho, graças a Deus, né?”. Mas eles sempre compra alguma coisa pra mim. (Risos.) Eu peço pra eles é boa vida, né? Que Deus dá bom, boa idéia pra eles. Que eles... Graças a Deus eles não é brigador com ninguém. Ele é pintor e todo mundo gosta muito do serviço dele. É. Ele é pintor de casa, todos os dois. É. P: A senhora tem irmãos? R: Tenho irmãos. Nove irmãos. São cinco filho homem e quatro filha mulher. Mas deles, agora tem só três. (Risos.) É eu, a Fiinha e o compadre Elmar. Eu sou a mais velha. E a Fiinha, essa é a caçula. Ela chama Lourdes Cristina. (Risos). P: Onde eles moram? R: Eles moram tudo aqui em Uberlândia. P: Como é o seu relacionamento com eles? R: Ah!, os meus irmão nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei o porquê, não! O meu irmão chama Elmar Henrique dos Santos. O meu irmão nunca veio aqui, não! Mas aqui, graças a Deus, a gente come, bebe. Não bebe, não come, se não quiser. Eles é muito bãozinho. P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo? R: Agora, no dia vinte e nove de setembro, vai fazer dois anos. P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá? R: Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu derramo. Ele sofreu derramo. A mulher dele largou ele e foi embora. Largou ele de derramo. O meu filho tem uma filha. Foi, a filha dele foi lá e trouxe ele. E nós veio pra cá. Depois nós estava lá, a filha dele estava fazendo muita ruindade pra mim. Juntou ela

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com a mãe dela e me jogou na rua. Eu vim pra cá porque a filha dele me tocou. Uai!, eu fiquei muito esquisita, porque eu gostava muito da minha casa, e tudo! Ela é muito esquisita. Essa menina é muito má pra mim, toda a vida! Quando eu fazia... Eu morava lá, eu tinha meu fogão a gás e meu fogão de lenha. Às vez eu estava fazendo o comê e ela ia lá e jogava água no fogo. Apagava o fogo tudo, falava que não precisava de mim. Falava que... E lá era meu. Ela falava que eu não mandava lá, que eu não mandava lá. Eu falei pra ela: “– Uai!, vai lá, vai lá na prefeitura! Manda aqui quem... O nome que está lá na prefeitura é que manda! Manda aqui o nome que está lá na prefeitura, porque eu lavei tanta roupa, pelejei pra comprar aqui. Você não deu um puto vintém! Agora, pra falar que eu não mando aqui!”. A mãe dela me puxando pra mão, ela me empurrando, me xingando. Foi, o Henrique garrou a Mônica, sobrinha minha, e ele foi lá. Ele falou assim: “–Mônica, arruma um lugarzinho pra minha mãe porque eu não agüento mais a Geralda mais a Neca fazer ruindade pra minha mãe! A minha mãe caladinha e tudo, e elas pintando com a minha mãe!”. Foi a minha sobrinha que arranjou aqui porque o meu filho pediu, né? E agora, graças a Deus, ele está bem bonzinho! Ele veio pra cá numa cadeira de roda. Foi a... dona... dona... Como é que é o nome dela? Ah!, aquela... Como que ela chama aquela fazedeira de biscoito? É... Gabriela! D. Gabriela fez fisioterapia nele. Graças a Deus, ele está bonzinho. [Entra no banheiro, nesse momento, uma funcionária do abrigo. O banheiro localiza-se dentro do quarto.] Mas falar a verdade: eles aqui não é ruim! Eles aqui não é ruim, não! Eles é muito bom! Boa pessoa com a gente e tudo. Mas é porque eu quero ir embora pra minha casa. Não é dizer que é ruindade deles, não! Eles é bom. Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se está doente, se sente uma dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente. É. Não é ruim. (Pausa.) A gente quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa mesmo! O que é da gente é da gente. Eu tenho minha casa, tenho os meus trem, eu estou aqui, oh!, desse jeito. O que a gente tem de passar, ninguém passa. Ninguém passa! O que a minha neta fez comigo, do jeito que ela fez, me livre! A menina dele fazer do jeito que ela fazia, Deus me livre! Agora, o meu menino vem cá. Toda semana ele vem. Tem semana que ele vem duas vez. Outra hora ele vem uma vez. Mas... falar que eles aqui é ruim, não é, não! P: Por que a senhora acha que a sua neta agia assim? R: Uai!, ruindade dela, porque eu nunca fiz nada com ela. Eu nunca fiz nada com ela! Mas ela é assim mesmo: ela briga com a mãe dela, joga praga na mãe dela, a mãe dela joga praga nela. É assim! Eu estava em pé assim, oh!, ela veio de lá, falou: “– Eu não quero mais você na minha companhia!”. Eu falei: “– Não, eu dou um jeito, uai! Você não quer mais a minha companhia, eu tenho jeito pra mim. Brasil é grande! Você não me quer, eu não brigo com ninguém!”. Pergunta pra eles aqui se eu brigo com alguém! Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu adoeci. Eu sofro do coração e sofro de pressão alta também. Pra mim não ficar sozinha, tinha dia que ele vinha do serviço, passava lá em casa e eu estava passando mal. Eu falava: “– Eu estou passando mal”. Ele falava: “– Mãe, então eu vou levar a senhora lá na UAI!”. Ele me levava lá, me aplicava soro. Ele ia embora, lá pra Morada Nova, aí pras onze hora, meia-noite, sozinho. Eu ficava incomodada com ele, porque ele ia sozinho, e Deus, né? E ele ficava lá incomodado comigo. No outro dia a sete hora ele batia lá em casa. “– Mãe, eu não dormi, mãe! Cheguei lá, tomei banho, jantei, mas fiquei pensando na senhora! Eu não dormi”. Pois aí ele já tinha feito café, tomava café, ia pro serviço. E, quando era de tarde, ele tornava a passar lá pra ver como é que eu estava. Aí eu resolvi vender lá e ficar com ele lá. Mas ele na casa dele e eu na minha. Ele fez uma casinha pra mim. Ele tirou um terreninho pra mim e fez a casa pra mim. Ele morava na frente e eu no fundo. (Risos.) Graças a Deus, o meu filho não é ruim pra mim. O que mora em São Paulo sempre vem aí, traz roupa pra mim, traz roupa de cama, traz roupa pra vestir. Tudo ele compra. (Risos). P: Vocês dois vieram para cá? R: Não, não! Ele ficou lá na filha dele. Veio só eu. Depois ela arrumou... arrumou aqui pra ele fazer fisioterapia aqui. Depois eu vim pra cá. Foi. E arrumou aqui tudo pra mim. Mas eu quero ir embora pra minha casa, se Deus quiser! Na hora que ele veio, ele falou: “– Ó mãe, é só eu ficar mais bonzinho, eu vou...”. Nós tem casa: eu tenho a minha casa e ele tem a dele. Ele comprou uma lá na Morada Nova. Tem um terreno lá. Eu tinha a casa ali, oh! Depois, por causa de ficar doente, e vendeu

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lá, né? E ele comprou um terreninho pra mim e fez uma casa pra mim. A dele lá fica mais ou menos assim, de frente. (Pausa.) Ah!, é ruim, né? Quê que eu vou fazer? Se, graças a Deus, ele está bonzinho... Meu filho fala: “– Ó mãe, não precisa pensar muito em mim, não, porque eu estou bão. Eu estou tomando os remédio direitinho!”. Ele está tratando com dois médico, graças a Deus! Meu filho falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou arrumar lá pra nós ir embora e vou levar a senhora”. A gente nunca deve esquecer de Deus. Deus dá dá força pra gente; dá coragem pra gente; dá saúde pra gente, né? (Risos.) Graças a Deus. Às vezes eu falo que tenho oitenta e nove e muita gente fala que é minha mentira. Eu falo: “– Não é mentira, uai! Eu sou de um mil novecentos quinze. Eu sou de um mil novecentos e quinze do dia nove... do dia sete de dezem... de... novembro”. A mamãe casou no dia vinte de janeiro de um mil novecentos e quinze e eu sou de um mil novecentos e quinze. Fazia onze ano... Não! Onze mês que ela tinha casado quando ela ganhou eu. (Risos). P: Como é para a senhora morar aqui? R: Não, aqui não é ruim, não! E a gente leva uma vida tranqüila. Mas falar a verdade... Que seja a verdade! Eles não é ruim pra gente. O que eles põe no prato de um, eles põe no prato de todo mundo. Se sente uma dor, clama que está doendo, elas dá um remedinho a gente. Eu não tenho nada a clamar deles, não! Eu tenho vontade de ir embora. Mas não é falar que eles é que é ruim, eles que é isso... Não, não! Eles não é ruim pessoa, não! O meu filho que está lá em São Paulo não queria que eu viesse, né? Mas ele está lá pro São Paulo e elas fazendo desse jeito comigo, né? Um dia foi que eu estava aqui, ele falou: “– Ô mãe, se a senhora não tivesse vindo pra cá, a senhora sabe que tinha morrido?”. Se eu estava sentada num lugar, ela ia lá e falava: “– Sai daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra hora eu levantava, ela vinha lá, me dava coice, me dava cotovelada. Aí foi um dia, eu falei assim: “– Ó menina, uma hora eu te dou um pescoção que eu vou te jogar muito longe!”. Aí foi um dia, ela colocou o Fausto: “– Ó vô, a vó falou que um dia vai me dar um pescoção e vai me jogar muito longe!”. Aí eu fui e falei assim: “– Mas conta pro seu pai por que... conta pro seu avô por que... por que eu vou fazer isso com você. Conta!”. Aí ele foi e não falou nada, não. O Hélio Henrique falou: “– Não, mãe, se Deus quiser, a hora que eu ficar mais bão eu vou arrumar a casa”. Ele arranjou a casa lá. A minha casa tem um povo morando pra olhar as duas casa, né? Quando ele ficar mais bão, ele vai arrumar e nós vamos embora. Meus filho nenhum é ruim pra mim, graças a Deus. Nenhum. Nenhum dos dois. O de São Paulo até desejou pra mim ir pra lá, mas eu não gosto de São Paulo, não. Lá é muito frio, né? (Risos.) Eu já fui lá em São Paulo muitas vez, mas, ah!, quando eu quero ir embora ele me põe na... no ônibus e fala pro motorista: “–Oh!, minha mãe lá vai aqui com você!”. “– Oh!, então o senhor me apresenta ela!”. Aí ele me apresenta eu pro motorista, né? Chegava aí na rodoviária eu pegava um táxi, ia lá pra casa. Chegava aqui era cinco hora, quatro e meia. (Risos). P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui? R: Ahn? P: Como é o convívio diário, o dia-a-dia com as pessoas que estão aqui? R: Ah!, graças a Deus, eu não tenho mal querência com ninguém aqui. (Risos.) Eu estava em outro quarto, me passaram pra esse aqui. Tudo é bão! A gente que faz a gente é a gente. (Risos.) Não adianta uma comparação: a pessoa há anos num serviço, você fala: “– Ah!, fulano é muito boa!”. Você vem cá e me arruma pra trabalhar lá e eu vou trabalhar lá. Quando eu não fui, eu faço uma coisa errada lá, pego um trem da mulher, levo outra coisa: “– Uai! Mas fulana é mentirosa! Falou que fulana era muito boa e fulana não era boa”. (Risos.) Não é? Fazer amizade com todo mundo, porque tem gente que qualquer coisinha fica com raiva de você, te olha com a cara ruim, coisa e tal, né? A gente não pode ser assim. P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro?

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R: Aqui eu faço crochê. Só. (Risos.) Eu é que estou fazendo esses crochezinho. Eu estou fazendo é pra mim mesmo. (Risos.) Eu faço um pouquinho, saio, ando, depois faço mais um bocadinho. Aqui eu faço só crochê. Eu vendi só um aqui. Só um caminho de mesa. Foi. Meu menino, acabando de ficar mais bão, eu vou pra casa. Ih!, eu tenho uma vontade de ir embora pra casa! Nossa Senhora, casa da gente é bom demais! É, uai! Mas você na sua casa, fazer uma comparação: se você quiser fazer uma coisa, você faz; se você não quiser, você não faz; se deu vontade de comer alguma coisa, você vai lá, você compra aquilo assim. E na casa dos outros não é assim... Na casa dos outros, come o que os outro dá. É que aqui não é ruim. Aqui não é ruim, não! Mas eu que quero ir embora. Mas falar que eles aqui é ruim, é isso, aquilo outro, não é, não! (Risos.) Eu é que tenho vontade de ir embora. Mas falar que é ruindade deles, não! (Risos.) Graças a Deus. P: A senhora recebe visitas? R: Recebo. P: Quem são as pessoas que a visitam? R: Recebo visita do meu menino toda semana. Recebo da minha prima que mora ali. Eu tenho muito parente aqui, ih! Eu tenho primo e sobrinho espalhado aqui. Vem aqui uma cumade minha. Vem a minha sobrinha. Já veio qua... quatro vez.. Vem a Alice, vem a Salete, vem a Antônia, vem a Mônica. É. Já veio aqui. Agora, a... Agora, vem a... a Amparo. A Maria do Amparo com as filha. Uma filha dela chama Maria, a outra chama Amparo. Sempre elas vêm aqui. Vem a neta dela também. Sempre elas vêm aqui. Só as filhas da cumade Teca têm seis mulher e três home. Agora do compadre Bernardino têm uns seis também. (Pausa.) Aqui eles não deixa sair, não! Pra mim sair daqui tem que existir uma pessoa pra assinar pra mim ir. Só assim eles deixa sair. Se Deus quiser, eu quero ir pra minha casa. P: A senhora falou de problema de saúde. Como é? R: Ah!, sô!, eu sinto uma dor assim! [Ela aponta para o coração.] Agora esses dia, graças a Deus, eu não sentindo, não! É, mais é, estou aí! Graças a Deus, eu estou alimentando bem, eu estou dormindo. P: A senhora chegou a trabalhar fora de casa? R: Ih!, muito, nossa Senhora! Ah!, trabalhei... Eu nunca trabalhei de carteira assinada. Nós morava na roça. Eu trabalhava pra uma mulher de nome Conceição. O marido dela chamava Luiz. Trabalhei muito pra esse povo. Trabalhei pra D. Betinha. O marido dela chamava Tõe Veca. Vixe!, era muita gente que eu já trabalhei! Tanto na roça, como na cidade. Aqui trabalhei pra D. Nair. Trabalhei pra... pra D. Beatriz. Pra muita gente que eu nem sei mais o nome das mulher. Eu lavava roupa. Lavava pra Dona... Como é que é? Pra D. Cláudia. Ih!, muita gente! Ah!, sô!, eu nem sei até que idade eu trabalhei, não!, porque depois o meu marido não deixou eu trabalhar mais. Ele falou: “– Você não precisa estar trabalhando assim, não, sô! Eu trabalho, os menino trabalha. Não, você não vai trabalhar mais, não!”. Aí eu fui... (Risos.) “– Nada! Você fazendo o servicinho de casa, lavando a roupa, está bom!”. Depois ele morreu. Eu vivo com a INPS que ele deixou. E deixou a casa pra mim. Quer dizer que ele está tratando de mim até hoje. (Pausa.) É. A vida não é fácil, não! Não é mole a pessoa perder o marido, não. Nem! É a coisa mais doída que tem na vida. É. Não é mole, não! (Pausa.) Mas eu, toda a vida, eu gostava dos meus crochê. Eu faço crochê todo dia. Até hoje eu ainda vendo. Eu faço tapete na máquina. Eu faço tapete na mão. Eu faço coberta de retalho na máquina. Quando nós morava lá na roça, nós criava muito, porque, quando nós morava lá na roça, lá eles alugava... Primeiro, onde eu criei, onde eu fui criada, toda a lavoura era lá. Depois eles vendeu lá. Depois nós mudou. Nós mudou lá pro Patrimônio. Porque na roça a gente não tem que pagar água, não tem que pagar luz, não tem que pagar nada. É a gente que planta as verdura da gente, né? (Risos.) É porque eu fui criada na roça. A gente vai é do costume, né? O ritmo da cidade é muito diferente da roça. Quando do tempo da minha mãe nós fiava; mamãe fazia porvilho; nós torrava farinha. Nós fazia era isso, tudo junto, os meus irmão. Era bão lá na roça, onde nós morava. Bão mesmo! Papai, graças a Deus, era bão pra nós. A

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mamãe... Mas, ah!, não! Eu acho muito melhor na roça do que na cidade. Depois nós mudou pra cá, criava umas galinha. Mas eles foram lá, roubaram. Porque, depois que meu marido morreu, eu arranjei um outro. O outro sofria do coração. Quando ele foi saber que eles tinha roubado nossas galinha, ele foi e morreu. Ele foi e morreu por causa disso. P: A senhora faz algum plano para daqui em diante? R: Ah!, daqui pra frente, nós tudo está nas mão de Deus, né? Agora, se Deus me ajudar, eu quero ir pra minha casa, viver na minha casa. Mas falar que eu quero ir daqui, que eles é ruim, não! Não posso falar que eles é ruim. Eu gosto é de falar é a verdade, menina! Não é? (Risos.) Ah!, lá em casa eu vou... vou... plantar minhas cebola, eu vou arranjar meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minha galinha... (Risos.) É desse jeito! P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa? R: (Risos.) Ah!, se a gente for falar é muita coisa, né? (Risos.) Se for falar é alguma coisa de família. O papai e a mamãe era bão pra nós. (Pausa). P: Como foi o seu relacionamento com os seus pais? R: O papai levava nós em festa. Na roça fazia muita... eles falava pagode, né? Fazia muito pagode, nós ia. Papai marcava... papai marcava quadrilha, nós dançava. (Risos.) E vai indo, graças a Deus! Papai foi muito bão pra nós e a mamãe também. Eles sempre tratavam os filho muito bem e nós respeitava muito eles também. Meu pai chama Aristides Custódio dos Santos e a mamãe chama Maria Augusta dos Santos. Ah!, a vida da gente é assim mesmo! Depois a gente vai ficando de mais idade, é uma coisa e outra, né? Agora, eu... Ah sô!, eu, devido a idade, a gente sente uma coisa, sente outra, né?, essa dor no peito. É isso aí!

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ENTREVISTA 7 Entrevistada: Tiana P: Fale-me sobre a sua vida. R: Sou viúva, sou viúva. (Pausa.) Fui nascida e criada na roça. Quando eu vim pra cidade, em Monte Alegre, eu morava na roça, sabe? A roça onde nós morava fica pertinho dessa cidade. A minha vida na roça era boa porque eu trabalhava, tinha saúde. Eu tinha muita saúde! Meus irmão – tudo sadio também – tinha saúde. Nós não tinha dificuldade de nada. Meus pai, minhas mãe, meus irmão. Tudo. Eu vivia muito feliz. Lá na roça, minha filha, eu fazia de tudo: eu capinava; eu batia arroz; eu colhia feijão; pegava milho; nós banava café. Trabalhava no cafezal, sabe? Fazia colheita de café. Nós fazia isso tudo. Nós trabalhava junto com os meus pai, e eles nunca deixou faltar nada pra nós. Trabalhava muito, mas... eu já fui nascida e criada ali... A gente não sentia, né? Na roça eu trabalhava muito, mas não sentia. E vivia bem porque eu tinha eles. Nós vivia bem porque eu tinha meus pai, né? E eles era muito bão pra nós. Vivia bem. Vivia alegre, satisfeita. Todo mundo alegre, satisfeita. Vivia bem. Eu gostava de lá. É isso. (Pausa.) Mas eu e meus irmão só trabalhou porque naquele tempo não dava importância pro estudo. Então aí eu vim pra cidade porque meu pai morreu. Tinha morrido mãe, morreu pai e ficou só os filhos. Então eu tinha uma irmã casada aqui. Ela era a mais velha. Então ela trouxe nós pra cá pra nós morar com ela, pra nós viver com ela. Ela chamava Arminda. Tudo era solteiro, né? Aí nós viemo pra cá. Sou... Traba... Quando... Depois que eu vim pra cidade eu trabalhava. Na cidade, eu trabalhei em muitas casa. Era de serviço de doméstica, né? É. Depois eu parei de trabalhar de doméstica e peguei lavação de roupa, passação. Aí trabalhava cada dia numa casa. Depois eu fiquei doente, né? Adoeci, né?, e a minha patroa me aposentou. É isso aí. Aí não pude trabalhar mais e ela me aposentou. P: Vocês são quantos irmãos? R: Nós era em oi... em nove. Era em doze, morreu três. Ficou... é... Nós era em doze: morreu três, ficou nove. Os nove criou. Os três que morreu, morreu tudo pequeno. P: Dos seus irmãos, são quantos homens e mulheres no total? R: Dos que morreu, era uma mulher e dois homem. Dos que foi criado, mulher era cinco, contando mais eu, e homem era quatro. P: Atualmente vocês são quantos? R: Hoje não tenho irmão. Se existir, é um e no estado de São Paulo. Nem não sei se a minha irmã existe porque eu não tenho notícia dela, e nem ela tem notícia minha. E nem endereço. Tem muitos ano que nós não vê uma a outra. Agora meus irmãos daqui... Minha irmã morreu. Só eu aqui de... Só tenho sobrinho. Sobrinho eu tenho bastante aí. Filho dos meus irmão, né? Mas irmão, irmã, aqui eu não tenho mais, não. P: Por que vocês não têm notícia uma da outra? R: Uai! Porque eu... eu vim pra cá. Ela... ela... ela mora lá, né? Daí ela mudou de fazenda. Mudou e não... não tem endereço nem dela, nem ela tem meu. É isso. Tem muitos ano já. Tem muitos ano que eu não vejo a minha irmã. E eu tinha vontade de saber notícia dela! (Pausa.) Agora, o sogro dela, não sei se é vivo também não. Foi embora, mas tem muitos ano. Morava em Guaíra. E o marido... Ela trabalhava mais o marido dela em uma daquelas fazenda do banco. Eu nem sei aonde é ali. De certo que é pros lado de Guaíra, né? Eu não sei. Eu não estava aqui. Eu não sei falar. Eu não sei se ela é viva, se... Mas deve ser porque ela é bem mais nova do que eu. Se bem que irmão bem mais novo que eu já morreu. O caçula, o mais novo. Ele é bem mais novo. Morreu tudo também. Eu sou, dos doze irmão, e dos três que já morreu, a sexta filha dos meus pai. (Risos).

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P: Qual é o seu problema de saúde? R: Uai, minha filha, eu tenho problema nas perna. Eu tenho problema de muita tonteira. Muita mesmo! Problema nas vista. Agora eu tenho uma hérnia também muito grande. É isso. P: Quando a senhora se casou? R: Quando que foi? Eu casei aqui. Aí minha irmã trouxe nós pra cá, né? Aí, daqui, aqui eu casei. Casei na Fazenda das Flore. Eu morava na Fazenda das Flore. Daqui nós foi. O marido dela arranjou um serviço na Fazenda Flore e foi pra lá. E nós mudou pra lá, sabe? Então eu casei. Eu casei... eu casei em Canápolis. Nesse tempo que eu casei em Canápolis não tinha cartório. Lá era pouquinhas casa, e lá não tinha cartório. Então, fazia o re... fazia o... Tirava os papel aqui em... em Monte Alegre. De Monte Alegre a gente ia pra... pra uma pensão lá e eles fazia o... o... O escrivão daqui fazia o casamento lá. Foi assim que foi o meu casamento. P: A senhora teve filhos? R: Criei um filho só. Morreu meu filho, uai! O marido morreu também. Eles adoeceu e morreu. Meu marido morreu de repente, né? O menino esteve doente muito tempo. Depois nós morava na Fazenda das Flor e minha irmã morava aqui. Eu trouxe ele pra cá pra tratar aqui. Lá em um... Ele estava tratando com um farmacêutico lá em Canápolis. O farmacêutico não estava conhecendo a doença dele. Passou a doença. Quando veio pra cá tratar a doença, já estava passada. Eu nem nunca ouvi falar nessa doença. O médico é que falou que ele tinha uma doença com o nome piluríase. Eu nunca ouvi falar nisso. Você já viu? Você conhece? Quem tratou dele foi o Dr. Guilherme. Ele foi, ele mudou pra... Esse doutor mudou pra Belo Horizonte. Ele não mora aqui mais não. Ele morreu pequeno. Um ano e três mês. Ele era criancinha. P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo? R: Cinco anos. Mais de cinco anos. Vai fazer seis agora dia nove de outubro. Vai fazer seis ano que eu estou aqui. P: Qual foi o motivo da sua vinda pra cá? R: Então... Aí depois eu fui morar aqui com uma sobrinha minha aqui, a Rosária. Aí depois que eu fiquei doente, eu não pude trabalhar mais porque não dei conta. Eu fiquei doente e aí eu fui morar com uma sobrinha. Foi, ela precisava trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. E eu ficava sozinha e não podia fazer as coisa, né? Aí ela arrumou e pôs aqui pra mim... pra mim. Eu vim pra cá. Ela ficava com medo de eu... de eu ficar sozinha, cair, machucar ou queimar. Então aí ela... ela foi e me trouxe pra cá. Arrumou aqui. Ela era muito boa pra mim. Muito boa mesmo! Não tenho que falar, que queixar dela. Ela foi muito boa. O que ela pôde fazer pra mim ela fez. Fazia alegre, satisfeita, contente. Mas muito mesmo! Às vez eu estava com vontade de comer um trem. Quando eu esperava, ela estava chegando com aquele trem pra mim. Ou ela sabia que eu gostava daquele trem, quando eu via, ela comprava lá e trazia. Quando eu via, ela trazia pra mim. Ela era muito boa e é boa até hoje, tadinha! E ela também, hoje em dia, também veve doente também. Não está trabalhando mais. Ela mora em... aqui em... Luizote. P: Como é para a senhora morar aqui? R: Acho bão, minha filha! Acho bão. Acho bão estar aqui. Eu achei bom, eu gostei. Eu gostei muito mesmo! Assim está muito bom! Eu não queria mudar nada na minha vida e não penso em fazer mais nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como eu trabalhava. Não... não... não... não vai dar mesmo mais, né? Não tem nada não. O que me interessa agora é só ir passear na casa deles, dos sobrinho. Ficar lá um dia, ir cedo e voltar de tarde. Ou ficar um dia, ficar dois. Ou ficar um pouquinho lá e voltar. É só isso.

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P: A senhora visita os seus sobrinhos? R: Uai, minha filha, vou. Até fui esturdia. No Dia das Mães eu fui, sabe? Mas eles aqui não têm tempo de estar levando a gente. Eles é muito corrido aqui, muito ocupado, né? Eles tendo tempo, eles leva a gente. Eles... eles... Agora, o povo da gente tendo jeito de buscar, eles vêm buscar e a gente vai. Eles deixa ir, né? A gente incomoda, mas pra levar é... é... muita coisa pra eles. Tem muitas coisa pra eles cuidar, né? Aí a gente... Agora, eles podendo, eles leva. P: A senhora recebe visitas? R: Uai, minha filha, recebo. Recebo muita visita! P: Quem são as pessoas que a visitam? R: Recebo visita do povo que vem aí. Dos visitante, né? Alguns dos meus parente vêm. Não é todos, não. Algum deles vêm. Alguns. De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito. Três, quatro mês, cinco, seis. Aí aparece um de vez em... Uma sobrinha vem de mês em mês porque precisa vim. Os outros demora três, quatro, cinco, seis mês. Até... acho que até mais. Mas vem. Algum deles vem. Eu queria que os meus parentes viessem ao menos uma vez no mês. (Risos.) Se não pudesse vir mais, pelo menos uma vez no mês, né? Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? A sobrinha com quem eu morava de vez em quando ela vem. Agora tem um... deve ter mais de uns dois mês que ela não vem cá. Tem mais de dois mês que eu fui lá na Iná. Dia das Mãe já está com dois mês. Mais de dois mês. Eu fui... eu fui no dia oito de... no dia oito de... de maio, junho, julho. Agora já está com mês e tanto já. Já tem mais. [Ela dirige a pergunta para a sua companheira de quarto que permaneceu, durante toda a entrevista, sentada em sua cama: “– Já tem uns quatro mês que ela veio cá, né, Doca? Tem uns quatro mês, né?”.] [Retorna à entrevistadora.] Pra aí assim: quatro mês, cinco, por aí.... É assim que eles vêm cá. Desse jeito! Quatro, cinco mês, seis. (Risos.) É assim. Eu não sei por que que eles demoram, né? Eles falam que está apertado por causa do serviço; que não tem tempo; que não sei o quê. Mas... não sei se é isso, não! Eu acho que é porque não quer vir. (Risos.) Eu acho que é isso, né? Eu acho que é porque não quer vir mesmo, uai! (Pausa.) E eu fico, ah!, pensando, achando ruim! Mas o quê que vai fazer, né? Eu não incomodo mais não! O dia que eles resorvê eles vêm. (Risos.) Né? P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui? R: É muito bom. Eu gosto muito deles daqui. São todos muito bão. São boas pessoas. Eu não tenho nada que falar. Só tenho que gabar, porque são todos muito bão. Trata a gente muito bem! O que eles puderem fazer... o que eles podem fazer pra gente eles fazem. Eu tenho é que falar bem, não é falar mal, né? Pra mim está tudo bem. Tudo são bão. Eu não tenho que queixar de ninguém! Tudo eles são bão. P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro? R: Uai, minha filha, a atividade que eu faço é esse: escreve um pouquinho; lê um pouquinho. (Risos.) Só isso! Eu não quero fazer mais nada, porque as vistas não ajuda. Não tem jeito de fazer na... Em pé, eu não fico em pé sozinha. Eu só fico em pé segurando isso aqui. (Ela aponta para uma bengala.) Não tem jeito de nada mais, né? Uai! Não tem jeito de fazer nada mais, né? (Pausa). P: A senhora faz algum plano para daqui em diante? R: A escolha acho que é essa que eu estou aqui agora. Uai, minha filha, é isso que eu escolho, né? É essa vida que eu estou vivendo aqui é que eu esco... que eu escolho. Eu sair daqui e ir na casa do meu povo se eu pudesse... tivesse jeito, ia lá, passeava, voltava, ficava aqui. É isso. Só isso, né?, minha filha, porque não tem outro jeito, né? O jeito é esse. Agora, minha filha, plano pra vida eu não... não espero é nada mais porque eu já estou no fim da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é esperar. (Risos.) Não tem jeito mais de falar. Eu não espero mais nada não, né?

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P: A senhora gostaria de dizer mais alguma coisa? R: Não. É só isso mesmo, filha. É só isso mesmo. (Pausa.) Eles têm muita paciência com a gente. É tudo muito bão aí.

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ENTREVISTA 8 Entrevistada: Zica P: Fale-me sobre a sua vida. R: Eu sou daqui de Uberlândia. Sou nascida em... Como é que chama o lugar, gente! Ih!, eu esqueci o nome do lugar! É.. é... Bom Jardim. Mas fui registrada aqui. E vim pra Uberlândia novinha com os meus pais. Depois o papai... Mamãe largou do meu pai, e ele viveu com outra mulher. A mamãe criou eu sozinha, e os meus irmão ficou lá com o meu pai. Até já morreu todos os dois. Todos os dois já morreu... Não cheguei nem a ir na escola. Meu ir... meus irmão que morava com o meu pai foi pra escola, e eu não fui. Diz que mulher não precisava de aprender a ler. E eu não aprendi porque eu não fui na escola. Mas tive vontade de aprender. Se eu fosse... viesse pra com o meu pai, eu sabia ler, porque o meu pai pôs os menino tudo na escola. E eu, o meu avô não pôs. Eu fiquei com o meu avô e minha mãe. E não sei por que os meus irmão foram criados pra lá com o meu pai e a mulher dele. A gente via um ao outro muito pouco. (Pausa.) Eu fui casada, sabe? Fui casada nos dois, no cartório e na igreja. Depois fiquei viúva. Agora, hoje eu sou viúva. Tem mais de vinte ano que eu sou viúva. O meu marido era muito bom pra mim. Aí depois ele morreu. Eu... Ele... Nós morava em Goiás, né? Aí o dia que nós chegou... chegou aqui em um... em um mês, no outro mês ele morreu. Ele era mais velho do que eu. Ele era... Quando nós casou, ele tinha vinte e oito; eu tinha vinte. Foi bem, graças a Deus! Trabalhei muito, ajudei ele. P: Atualmente a senhora tem irmãos? R: Eu tenho. Agora eu estou tendo só... deixa eu ver: quatro! Estou tendo quatro irmãos só. Já morreu quase tudo, de nove. Deles, eu tinha três irmã e seis irmão homem. Eu fui a quinta a nascer. Quer dizer que abaixo de mim ainda tive quatro irmão. P: Onde eles moram? R: Uma mora em Taguatinga, em Brasília. E os dois mora aqui. Um não, não! Um mora em São Paula, e aqui mora dois. O mais velho mora em São Paula. P: Como é o seu relacionamento com os seus irmãos? R: O meu irmão de São Paula não vem aqui porque ele já está velho já, né? Muito tempo que ele não vem cá. Desse não tenho notícia dele, não! Os irmão daqui tudo eu tenho notícia muito de vez em quando. Eles vêm cá. A lá de Taguatinga veio. Tem uns dois mês que ela veio aqui. Ela ficou viúva, ela veio cá. Veio me ver. É a caçula. P: O que a senhora pensa sobre o fato de ter sido criada pela mãe? R: Foi... foi... Mas... é só... Tudo bem. Tudo... Eu sofri derrame na verdade. Eu não ando mais. Eu trabalhava. Agora, depois que eu sofri derrame, acabou, porque não tem mais jeito de muita coisa. Adoece é de repente, né? A gente não sabe, né? Eu estava sadia, boa mesmo, quando o derrame me pegou. Isso é pra você ver que coisa esquisita, né? Mas eles falam que é de pressão. Não sei se eu sofria de pressão, nem nada. Eu não tomava remédio! A gente é boba. Na... na época que eu casei a gente é boba demais, né? Não importou com nada, né? Era só trabalhar, né? De forma é que é só isso mesmo. P: A senhora teve filhos? R: Tive uma filha. Morreu. Um ano e meio. Era mulherzinha. Deu sarampo recolhido nela. O sarampo recolheu. Ela estava com... estava... estava boazinha. Depois ela adoeceu. Ficou dois mês, logo ela morreu. Nem o médico, era tão bobo que não conheceu nem a doença da menina, uai! Não conheceu não! Tratava da menina e não sabia o quê que era que a menina tinha: a menina acabou morrendo. E

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também foi só essa: não evitei; não arrumei nada; e não criei mais. Eu criei esse adotivo. O filho que eu tenho é adotivo. Ele me quer muito bem. Eu peguei ele pra criar com sete mês. Ele me quer muito bem! Meu filho tem quarenta e cinco ano. Muito bom meu filho pra mim. Hoje, hoje, hoje... ele tem um menino deficiente. Eu criava ele, mas depois eu adoeci. Ele que toma conta do menino. Ele trabalha, o menino fica na creche. Vorta, trabalha na chácara, né?, vem trabalhar, de tarde busca o menino. Mas mora sozinho, ele e o filho. Um trabalhão pra ele, coitado! Mas ele... mas ele tra... trabalha. Quer muito bem o filho, né? Ele zela melhor do que eu! (Risos.) Ele não gostava dele, não! Ele bebia muita pinga quando eu criava o filho dele. Mas não gostava do menino de jeito nenhum! Agora cuida bem do filho, sô! Anda muito bem arrumadinho, assiadinho. Nada aperta pro menino. Ele quer bem o menino, sabe? Domingo é dia do meu filho e do meu neto vir cá. Eles vêm cá me ver de quinze em quinze dia, porque o meu filho trabalha na chácara, né? Como é que ele vem cá? Mas se não fosse isso eu estava com ele. Mas ele não pode pagar uma pessoa pra me olhar, olhar eu e o filho, né? Mas se eu pudesse, vixe!, eu estava em casa, oh! P: Ele tem outros filhos? R: Ele tem um casal de filho. Não. Esse menino dele é de uma mulher que ele casou com ela, né? Ela dava muito acesso e ela... ela bebia demais. Ele largou dela. Aí ele juntou com uma outra preta. Viveu oito ano e criou a menina. Ele tem só um casal. A minha neta mora aqui embaixo, perto da... É na Avenida Araguari. Ela vem muito me ver a menina dele. A gente fica com uma vida atrapalhada, sabe? Ele não tem mulher, é custoso pra ele. É pesado. Ele trabalha muito, né? Mas dá conta de tudo quanto há! O menino é bem zelado. É. P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo? R: Tem cinco ano. P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá? R: Uai!, eu... eu morava com o meu filho, mas a minha sobrinha, porque eu adoeci, me levou pra casa dela, né? Eu tenho sobrinho aqui, né? E... e... ela deixou a minha casa fechada. Fiquei uns tempo na... na casa da minha irmã na Santa Luzia e eu fui lá pra casa da minha sobrinha. Ela trabalhava fora e ela não podia me olhar, né? Aí ela... ela soube que aqui era bom pra fazer fisioterapia. Depois ela me trouxe pra cá. Com quinze dia ela me trouxe pra cá, pra fazer fisioterapia, né? E aí eu peguei a fazer fisioterapia e melhorei, graças a Deus. Em vista do que eu vim pra cá eu estou boa, sabe? A minha sobrinha trouxe eu pra cá e pronto, largou aí! E ficou custoso dela vir cá. Não vem cá fácil me ver. Mas embora que ela trabalha, né? Mas assim mesmo, né?, sô! É sadia, né? Pode vir ver a gente, né? A obrigação dela é vir cá me ver, não é? Mas ela quase não vem. Vêm as outras irmã dela, mas ela não vem, não. P: Então a senhora e o seu filho moravam juntos? R: Ele morava comigo. A casa era minha. É. Aí depois eu fui e adoeci, né? E pegaram ele, tadinho, puseram na rua! Isso é minha sobrinha, hein? Pôs ele na rua. Me... me levou pra casa dela e o menino ficou pr`aqui, pr`ali, o menino que eu criava. O fio dele que eu criava. E... e... e... não, vou te contar! Não posso nem lembrar disso. P: Por que a senhora acha que a sua sobrinha agiu assim? R: Uai!, não sei! Não sei por quê que ela fez isso, não! Jogou ele na rua! Nesse tempo eu estava fora de si, eu não sabia. Eu estava... estava ruim demais por conta do derrame. P: Como é para a senhora morar aqui?

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R: Hoje eu acho bão, graças a Deus. O povo é muito pra... É muito bão. Aqui tem muita fartura, a gente come bem, não farta nada pra gente. Mas se eu pudesse escolher, ah!, eu ia... ia pra casa do meu filho! Mas ele não pode me levar, né? Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do filho. Se a hora que eu puder, ele... ele mudar da chácara. É lá... lá perto da... no Distrito de Martinésia que ele mora, né? É longe pra... pra ele vir cá. Ele vem me ver de quinze em quinze dia porque ele trabalha. Sábado é forga dele. No outro sábado ele trabalha. Mas não pode vir... vir... vir cá todo dia, né? O ruim é isso que eu acho. Ele é muito bom pra mim, né? Mas cuida do ser... do menino dele. Cuida do serviço, né? Não tem tempo, né? É muito bom. Ah!, é muito bo... É muito boa, sô! Mas... aqui é... é... Eu tenho muito desgosto daqui. Sabe por quê que é? Porque é muita gente falso, muita gente defeituoso. É perigoso demais da conta! A gente não pode falar nada que eles grita com a gente. P: A senhora está falando de quem? R: Do povo que é internado aqui. Os que trabalha aqui, não, é muito bom! Os enfermeiro é bom demais! Os que vem pra cá, Deus me livre! Aquela que está ali, oh!, de blusa vermeia, ela me pegou uma vez e me unhou tudo assim, oh!, sem eu falar nada. Ainda é ruim de natureza, precisa ver! Eu não gosto dela, não! Ah vai!... vai falar as coisa! Ah!, você não é nada meu, você não me conhece! Eu não sou nada sua! Uai!, não é nada minha, o quê que eu vou falar? Conversar com ela pra quê, né? Largo pra lá. Agora as outra, não! As outra é muito boa. As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, tem umas aqui que não vai, não! É tudo doido. P: E a sua casa hoje? R: Eu levei meus trem de lá pra minha... minha irmã. Morreu ela e o meu cunhado. Agora os meus trem lá, eu não sei o quê que foi feito dos meus trem. Sim, senhora! De certo ele... todo mundo opiniou. E certamente... “– Não fui eu que pus e os trem da mamãe eu não vou mexer, né?”. E acabou com tudo... Não... não tem mais nada. A casa... aquela casa era alugada. Era alugada, né? Ela tirou os meus trem e deixou ele na rua com o menino dele. Ela fez isso comigo, sabe? Eu tenho uma dó dele! Mas hoje não farta nada pra ele. É. Deus é muito bão, né? Ela vem cá de vez em quando me ver. Ih!, oh!, tem tempo que ela não vem cá! É. Mas está muito bão. Hoje nada falta pra ele. Ele mora numa chácara pra lá... perto de Martinésia. Está muito bem. Ele... ele cuida do menino, ele mesmo conzinha, lava a roupinha dele. O dia que ele não... Sábado passado ele não veio, não, porque ele esteve, ele esteve... ele trabalhava, né? Agora sábado que vem ele tem a forga dele, ele vem cá me ver mais o rapazinho dele. Ele já está um moção o filho dele. Tem vinte ano o menino dele. P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui? R: Dá certo. Aquela lá, oh!, nós... nós era vizinha de quarto, né? Agora, foi, ela me passou pra cá. E a outra que eu estava... que estava lá comigo, veio pra cá. E eu que estou... que estou pra cá no quarto da D. Doca. Eu não tenho nada que queixar da minha companheira de quarto. Mas os outro... é um povo tudo esquisito. Sei não! A gente tem uma natureza e o outro tem outro, né? Eu sou calada. Não gosto de estar conversando. Não compensa, né? Não compensa conversar, não! Mas o tratamento aqui é muito bão. Eu tenho uma... Eu faço fisioterapia. Tem a doutora que vem de segunda a sexta. Ela faz fisioterapia nesse povão tudo aqui. É muito boa a médica. Eu não tenho nada que queixar daqui, não! São muito bom. Muito bom! Eu não tenho nada que dizer daqui, não! P: A senhora chegou a trabalhar fora de casa? R: Eu trabalhei quatorze ano de doméstica com uma mulher. Eu ajudei ela a criar os filho dela, um casal. Depois eles foram pra minha casa, porque eles ficou tudo embutido na minha casa. Mas todo... todo dia eu ia, sim! Só no sábado eu não trabalhava, eu ficava em casa, né? Mas a semana inteira pra ela. Pois é. Quatorze ano eu trabalhei de doméstica, né? Eu olhava os menino dela. É. Ela trabalhava no Centro de Saúde, e eu ficava em casa e eu olhava os menino dela. Um casal de filho que ela tinha. Por isso eu recebo aposentadoria. Mas vai prá pagar luz. Pagar luz e água. Uma coisa que, né?, a não ser que nós ajuda a pagar, como é que faz, né? Mas sei que eu sou aposentada, mas agora eu não sei. A

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mulher pega o dinheiro, nós não vê um puto. É desse jeito. Nós quer uma coisa, encomenda. Eles compra, mas nós não vê dinheiro. É desse jeito! Agora foi pra trezentos o meu salário. O meu décimo terceiro esse ano eu não vi um tostão! Quando o meu menino recebia pra mim eu pegava tudo. Agora ele não pega mais pra mim. Quem recebe de nós tudo aqui é eles. É desse jeito! P: Como foi trabalhar nessa casa durante esses quatorze anos? R: Uai!, foi muito bom. Eu gosto demais dela. Ela gosta demais de mim. Eu... eu não tenho nada que queixar dela. Muito boa, sabe? Até hoje ela vem cá me ver. Tem uma menina que gosta demais de mim! O menino não vem aqui, não! Ele não gosta de hospital. Mas a... a menina dela vem. Ele é bom demais! Ela é muito boa. O marido dela. Os filhos dela é bom pra mim. P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro? R: Nós... nós... nós faz desenho que eu... os outros tudo... Aqui eu faço desenho. Eu faço muito bem desenho. O que elas riscar pra mim eu faço. Muita coisa. Trem difícil, trem bom. Mas é tudo bão! Os desenho é bonito. É. Tirando dos desenho mais nada eu não faço porque eu não... não posso firmar com as vista. É porque eu não agüento, né?, fazer, né?, por causa da mão, né? Eu faço só com uma mão, né? Ai, ai! Como eu te falei, eu era sadia. Foi. Eu trabalhei quatorze ano na casa, né?, da mulher, ajudando a cuidar dos filho dela, cozinhando pra ela. E ela trabalhava no Centro de Saúde, né? Deixava a casa por minha conta, dos filhos dela, né? Eu era boa de saúde. É. A coisa quando tem de acontecer, acontece, né? Mas quando me deu derrame eu já não trabalhava pra ela mais não. Faz... fazia tempo que eu tinha deixado ela. P: Como é? [Ela disse algo que não foi possível ao pesquisador entender.] R: Quando eu trabalhei... Quando me deu derrame eu já tinha... já fazia tempo que eu já tinha ido pra minha casa, não trabalhava pra ela mais não. Eu aposentei e aí eu trabalhava só em casa. Aí eu olhava o meu neto, né? Tinha uma vidinha boa! (Risos.) Mas é. Deus quis assim, né? A gente trabalha uns tempo, depois adoece, né? Não sabe se vai viver, se vai morrer, se vai... o quê que vai acontecer. Eu vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não, está só nas mãos de Deus. (Pausa.) O dia que o meu filho puder me levar, bem! O dia que ele não puder, fica, né? Mas não por ele, porque, tadinho, ele tem vontade de me levar pra lá! Mas não pode, né? Enquanto ele estiver morando na chácara não tem jeito também não. A hora que ele vir pra cidade, aí é bom, né? Que aí já tem... ele pode me levar no... no recurso se for preciso, né? Aqui não falta nada. Tem médico, tem tudo, né?, no jeito. Tem a doutora aí que faz a fisioterapia, né?, de segunda a sexta. O tratamento aqui é bão demais! (Pausa.) (Ela aponta para idosos próximos que se encontram no pátio do abrigo.) Ele não come sozinho aquele ali, oh! Tudo ele depende. Ele é bruto! Nervoso que só vendo! Aquela ali, ela... ela não conversa. Eu não sei o quê que ela tem. O filho dela diz que bebe demais! Tem setenta ano, sessenta ano o filho dela, e ela está aí. De certo que foi descuido do filho, né? Ela está aí: não conversa, não alimenta pela sonda. Tadinha, é só daquele jeito lá, oh! Aqui tem gente de todo jeito, sabe? Só você vendo que tristeza! É. Não falta nada! P: A senhora faz algum plano para daqui adiante? R: Vou ficando aqui até esperar o meu fio; até ele melhorar de situação, porque ele ganha mais do que eu e o filho dele. Porque o filho dele é aposentado e eu, né?, mas ele não pode me olhar. Eu vou ficando aqui, né?, até Deus quiser. (Risos.) Eu não sei. Eu falo que às vez eu posso ir pra casa do meu filho, às vez eu posso morrer aqui, né? (Risos.) Ele só farta poder me zelar. Mas... mas ele... O menino trabalha muito, mas dá conta direitinho. Zela bem do filho dele. Zela mió do que eu. (Risos.) Ele tem um ciúme do fio dele que péla! (Risos.) Ah!, um menino doente também! O povo judiar dele pra quê, né? É... No mais está tudo bem! Está tudo certo, graças a Deus! O que me... o que me amola mais é as vista que não presta. Minha vista, nossa! De manhã é pior. Eu vou no sol assim e não agüento ficar no sol. Enquanto não operar não tem jeito de melhorar. Mas não é sobre o derrame, não. O derrame que deu, eu não sofro dor nenhuma, graças a Deus! Só a perna que é boba, mais o braço. Eu sou sadia até,

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sabe? Graças a Deus. Tirando das vista, mais nada eu não sofro pela idade que eu tenho, né? (Risos.) É. (Pausa). P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa? R: Não. É só isso então. Está bom, né? Já falei muito. Ai, ai! Eu falei que está tudo certo, né? (Pausa.) Está tudo certo, né? Aqui, oh!, mais bobo é a perna. Eu... eu... eu... pra mim sentar na cama... pra me dar banho eu ajudo a sentar na cama. Eu ajudo vestir roupa.

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ANEXO A – Aspectos éticos

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