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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS Departamento de Sociologia EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990: estudo de relações de gênero com homens de camadas médias S ANDRA G. U NBEHAUM Dissertação de mestrado, sob a orientação do Prof. Dr. Antônio Flávio Pierucci, apresentada ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, julho de 2000

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULOFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

DDeeppaarrttaammeennttoo ddee SSoocciioollooggiiaa

EEXXPPEERRIIÊÊNNCCIIAA MMAASSCCUULLIINNAA DDAA PPAATTEERRNNIIDDAADDEENNOOSS AANNOOSS 11999900::

eessttuuddoo ddee rreellaaççõõeess ddee ggêênneerroo ccoomm hhoommeennssddee ccaammaaddaass mmééddiiaass

SANDRA G. UNBEHAUM

Dissertação de mestrado, sob a orientação do Prof.Dr. Antônio Flávio Pierucci, apresentada aoDepartamento de Sociologia da Faculdade deFilosofia, Letras e Ciências Humanas daUniversidade de São Paulo.

São Paulo, julho de 2000

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BBaannccaa EExxaammiinnaaddoorraa

Dr. Sérgio Carrara (IMS/UERJ/RJ)

Dra. Cristina Bruschini (FCC/SP)

Dr. Antonio Flávio Pierucci (orientador)

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À memória de Erika Elfriede MewesUnbehaum, dona-de-casa, 5 filhos.Aos 32 anos, sem mais nem menos,partiu deixando-me a revelação de que avida pode ser breve e por isso merece serintensamente vivida.

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AAggrraaddeecciimmeennttooss

Ao ler o romance autobiográfico de Marguerite Duras – Escrever –achei as exatas palavras para o sentimento que não poucas vezes meacompanhou durante a elaboração desta dissertação:

Escrever. Não posso. Ninguém pode.É preciso dizer: não se pode. E se escreve.

É o desconhecido que trazemos conosco: escrever,é isto o que se alcança. Isto ou nada. (...)

A escrita é o desconhecido. Antes de escrever, nada se sabe do que se vaiescrever. E em total lucidez. (...)

Se soubéssemos algo daquilo que se vai escrever, antes de fazê-lo,antes de escrever, nunca escreveríamos. Não ia valer a pena.

Escrever significa tentar saber aquilo que se escreveria se fôssemos escrever –só se sabe depois – antes, é a coisa mais perigosa que se pode fazer. Mas

também a mais comum.A escrita vem como vento, nua, é de tinta, a escrita,

e passa como nada mais passa na vida ,nada, exceto ela, a vida.

Foi exatamente assim, nem sempre consegui manter a serenidadede quem sabe que com esforço e perseverança pode escrever, deixar asidéias fluírem sem censura, sem medo; quanta insegurança! Haviasempre alguma coisa mais urgente, que precisava de minha atenção.Houve, é claro, também muitas outras tarefas a serem conciliadas, jáque a vida não se sustenta fazendo mestrado! E mudanças na rota davida pessoal, bom não esquecer!

Algumas vezes sentia-me fora de lugar, uma imigrante deRolândia (PR) na cidade grande, denunciada pelos “erres” carregados epelo desconhecimento de um certo tipo de cultura “erudita” eacadêmica. Mas em nenhum momento me senti sozinha e estesvínculos foram decisivos na minha trajetória pessoal e profissional. Aolongo desses anos aqui, em São Paulo, fui colhendo amigos que dediferentes maneiras participaram de minhas pequenas conquistas,entre as quais esta dissertação de mestrado.

Uma dissertação pode tomar corpo em poucos meses, mas suaalma é gestada ao longo de muito mais tempo, não se cria sozinha.Algumas idéias e reflexões expostas nesta dissertação são devedorasdos incontáveis diálogos que travei com esses amigos e amigas nosúltimos cinco anos. Como nos encontros, desde 1994, do Edges (Grupode Estudos de Educação, Gênero e Cultura Sexual, FE/USP) comCláudia Vianna, Miriam Morelli, Diana Vidal, Marília Carvalho, TherezaPegoraro, Teresa Citeli, Daniela Auad;

Nas reuniões mensais do Gesmap, desde 1995, (Grupo deEstudos sobre Masculinidades e Paternidade, na Ecos) com Margareth

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Arilha, Wilza Villela, Susana Kalckmann, Reginaldo Bianco, Sérgio F.Barbosa, Sandra Garcia, minha Xará, Jorge Lyra, Benedito Medrado,Leandro Feitosa, Malvina Muszkat, Bete Cruz, Bete Pinto, IaraGuerriero, Elisiane Pasini, Marko Monteiro, Pedro Paulo M. Oliveira,Silvia Cavasin, Silvani Arruda.

Nestes grupos pude discutir o projeto inicial, meu texto dequalificação, trocamos referências bibliográficas, discutimosmetodologias e meus primeiros ensaios. Foram verdadeiros laboratóriospara esta “aprendiz a pesquisadora”.

Na Fundação Carlos Chagas, onde iniciei minha jornada, declarominha dívida com Cristina Bruschini, pelo primeiro empurrãozinho emdireção aos estudos de gênero. Obrigada pela confiança e pelo apoioinestimável e pelo suporte que garantiu o desenvolvimento destapesquisa, agradeço também à Bernardete Gatti, coordenadora do DPE.

Na FCC conheci Heloísa Padula, amiga que se tornou irmã, nãofaz idéia de quanta coisa me ensinou. Não posso esquecer da mãe daHeloísa, que me deu Santa Rita, abençoada, para me proteger! Agradeçoàs meninas da BAMP, Zezé, Ana e Helena, pela ajuda noslevantamentos bibliográficos, na aquisição de livros etc. Com GiselaTartuce, agora, mais recentemente, parceira de sala e amiga, osdesabafos, a troca de impressões sobre orientadores, a sociologia e suasdiversas tendências teóricas. As caronas e conversas com Celso Ferreti.Albertina O. Costa, conselheira e amiga, pelos bate papos e sugestões.

Não esqueço de Danielle Ardaillon, do rico aprendizado e dastrocas durante a nossa construção do TEG (Tesauro para Estudos deGênero e sobre Mulheres); das nossas saídas para tomar um vinho efalar da vida, de relacionamentos, de cinema e de uma paixão comum: anatação. A generosidade e o carinho de Teresa Citeli, amiga querida, enossas histórias compartilhadas. Neide Rezende, amiga para a vidatoda, colocou-me frente a frente com o desafio da escrita. Agradeço aleitura cuidadosa dos primeiros capítulos: de fato, nem sempre apalavra escrita consegue expressar o que gostaríamos de dizer. CláudiaVianna, amiga querida, sempre presente, generosa, ajudou-me a juntaras primeiras peças, quando as idéias ainda estavam confusas, perdidasem algumas páginas. Obrigada também por “orientar-me” na finalizaçãodo texto. Thereza Pegoraro, amiga-anjo da guarda, segurou as “pontas”nos momentos de sufoco e esteve ali sempre pertinho. Tudo teria sidomais difícil sem essa ajuda. Miriam Morelli, saudades das nossasconversas...

Jorge Lyra, parceiro de tema, de artigo, amigo, irmão tantoquanto Benedito Medrado, agradeço o carinho, a força, o entusiasmo,perto ou longe, sempre presente.

Paulo Baroukh, uma amizade inesperada iniciada na pesquisa decampo.

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Luiz Ramirez, primeiro apenas um professor de inglês, hoje umamigo querido, a quem admiro e respeito pelo empenho diário paraevitar que a diferença não se submeta à intolerância.

Agradeço aos professores da Pós-Graduação, Antônio FlávioPierucci, Eva Blay, Vera Silva Telles, James Holston (professor visitanteUniversidade da Califórnia, San Diego), José Machado Paes (professorvisitante Universidade de Lisboa, Portugal) que ao longo do curso demestrado alimentaram minhas reflexões sobre o tema de minhapesquisa; a Lucila Scavone (Unesp-Araraquara) sou agradecida peladisponibilidade para discutir no Seminário de Projetos meu pré-projeto.A James Holston agradeço também sua participação em minha bancade qualificação e seus estimulantes comentários. Agradeço a Isabel,Sonia e Samara da Secretaria de Pós Graduação pela simpatia eatenção. À CAPES pela bolsa de estudos, fundamental nos doisprimeiros anos da pesquisa.

Agradeço a Antonio Flávio Pierucci por aceitar-me comoorientanda. Em nossos encontros foi gentil, respeitoso com minhasidéias.

Não poderia deixar de mencionar Benício, Carlos, Leonel,Luciano, Luiz, Marcos, Mauro, Péricles, Renato, Saulo, nomesinventados para os personagens reais dessa história. Obrigada peladisponibilidade e pelo respeito ao meu trabalho.

Carlito, Helga, Clóvis e André; Ivan e Claudia, Silvana e Diego;Simone, Gabriel e Artur; Flávia, Beto, Eric e agora a Nicole. Tão longe,lá em Rolândia e Londrina, nem imaginam como são importantes.

Colho hoje um fruto que foi semeado há muito mais tempo, numoutro momento de vida, numa outra história que deve ser lembrada.Agradeço a Marcelo Ridenti, Márcia Ridenti e Stela Ridenti que foramespeciais nesta minha trajetória.

Marco Antonio e Luis Guilherme Ridenti, meus filhos, iluminamminha vida. Agradeço a paciência pelos fins de semana diante docomputador ou dos livros, pelos atrasos por ter ficado até mais tarde naFCC, pelo mau humor, às vezes inevitável.

E, finalmente, a Jefferson Alves da Costa Jr., presença amada,agradeço o apoio revelado dia a dia em pequenos e grandes gestos, ocarinho e respeito com os meninos, por colocar música logo pela manhãpara animar o dia, pelas panquecas com melado de cana no inverno,pelo feijãozinho bem temperadinho à moda da vó Julieta, pelo brinde acada refeição só para saudar mais um dia, pelas longas conversas aoredor da mesa, enfim, pelo sorriso contagiante e pela mão segurandofirme a minha na hora de dormir...

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RReessuummoo

Um acelerado processo de transformações socioculturais tem marcado a vidade homens e mulheres, mais especificamente destas, que passaram por significativamudança, como atestam estudos realizados nas ultimas três décadas. O advento dapílula anticoncepcional, por exemplo, permitiu que as mulheres tivessem autonomiaquanto a sua sexualidade e ampliou o poder de decisão sobre quando ser mãe ouparar de trabalhar. Há expressivo aumento da taxa de participação das mulheres,especialmente as casadas, no mercado de trabalho, bem como aumento de suaparticipação em espaços antes de domínio masculino. A opção pelo trabalho fora decasa traz para as mulheres e para os homens a necessidade de articularresponsabilidades familiares e profissionais, além de administrar conflitos de ordempessoal. Tais transformações fomentam especulações sobre a presença de um “novo”homem, de um “novo” pai, mais participativo na esfera doméstica, particularmentenas famílias de camadas médias. Este é o panorama que suscitou meu interesse empesquisar as dimensões que a paternidade adquire nos anos 1990.

A análise está restrita a um grupo de 10 homens, com escolaridade de nívelsuperior, profissionais qualificados, residentes na cidade de São Paulo, casados e paisde filhos(as) com idade até 10 anos. A escolha deste universo social e cultural sebaseia em uma bibliografia que aponta para sinais de transformações nas relaçõesentre homens e mulheres e para deslocamentos dos significados tradicionalmenteatribuídos à paternidade e à maternidade. Esta pesquisa procura verificar se diante detantas mudanças, a experiência masculina da paternidade, também tem se alterado ese tais transformações têm, de fato, estimulado, por parte dos homens, processos denegociação com suas parceiras no que diz respeito ao cuidado com os filhos pequenose à distribuição de afazeres domésticos.

AAbbssttrraacctt

Lives of women and men have been marked with a hasty process ofsociocultural changes. Many studies show that these changes had a more profoundmeaning to women’s life. The advent of new methods of birth control, like thecontraceptive pill, allowed women to be more free towards their sexuality and enlargetheir power of decision about being a mother or stop working. There was an impressiveincrease in the number of women in the work market, especially the married ones. Atthe same time, there was an expansion in their involvement in some spaces previouslyoccupied by men. Working outside the household brought to both women and men theneed of dealing with family and working responsibilities, besides the fact they have tohandle personal conflicts. From the thought about these sociocultural changes wasborn the idea of a “new man”, a “new father”. This idea asserted that this “new man”was more involved with household affairs.

The analysis was made with 10 graduates, married men that live in the city ofSao Paulo. All of them have children with ages from 0 to 10. This universe was chosenbased on a bibliography which shows some signals of changing in the relation betweenwomen and men and that brings new meanings to the concepts of fatherhood andmotherhood. The research wants to show if the father roles are being affected by thesesociocultural changes; if these changes have stimulated an increase on meninvolvement towards child care and the division of house work.

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SUMÁRIOIINNTTRROODDUUÇÇÃÃOO ......................................................................................................................................... 10

A PROPOSTA DE PESQUISA....................................................................................................................... 17O GÊNERO COMO REFERENCIAL DE ANÁLISE ............................................................................................ 19

CCAAPPÍÍTTUULLOO 11 DDAA MMAATTEERRNNIIDDAADDEE ÀÀ PPAATTEERRNNAAGGEEMM::...................................................................... 31

UUMMAA QQUUEESSTTÃÃOO DDEE GGÊÊNNEERROO ............................................................................................................... 31

A INVENÇÃO SOCIAL DA MATERNAGEM..................................................................................................... 34E O LUGAR DA PATERNIDADE ................................................................................................................... 34

CCuuiiddaarr:: aattrriibbuuiiççããoo ffeemmiinniinnaa?? ................................................................................................... 47PPaatteerrnnaaggeemm ee mmaatteerrnnaaggeemm:: aa ccoonnttrraaddiiççããoo nnaa ddiivviissããoo ddaass ttaarreeffaass............................... 49

CCAAPPÍÍTTUULLOO 22 AA PPAATTEERRNNIIDDAADDEE EEMM FFOOCCOO ........................................................................................ 53

EEssttuuddooss ssoobbrree ppaatteerrnniiddaaddee ...................................................................................................... 54O LUGAR DO PAI ..................................................................................................................................... 65

CCAAPPÍÍTTUULLOO 33 OO CCOONNTTEEXXTTOO DDAA PPEESSQQUUIISSAA....................................................................................... 72

A FAMÍLIA COMO LOCUS DE MUDANÇAS................................................................................................... 78AA ffaammíílliiaa ddee ccllaassssee mmééddiiaa::........................................................................................................ 83llooccuuss pprriivviilleeggiiaaddoo ddee mmuuddaannççaass.............................................................................................. 83

CRITÉRIOS PARA A DEFINIÇÃO DO UNIVERSO EMPÍRICO ............................................................................ 91A COLETA DE DADOS............................................................................................................................... 96PROCEDIMENTO DE ANÁLISE DAS ENTREVISTAS ...................................................................................... 100APRESENTAÇÃO DOS ENTREVISTADOS .................................................................................................... 101

CCAAPPÍÍTTUULLOO 44 AA FFAAMMÍÍLLIIAA DDEE OORRIIGGEEMM:: ............................................................................................ 107

AA DDEESSMMIITTIIFFIICCAAÇÇÃÃOO DDOO PPAAII--HHEERRÓÓII ................................................................................................ 107

O ESPAÇO DOMÉSTICO, EXPRESSÃO DA DESIGUALDADE DE GÊNERO ....................................................... 117AA ddiivviissããoo ddaass ttaarreeffaass ddoommééssttiiccaass ........................................................................................ 119AA eemmpprreeggaaddaa ddoommééssttiiccaa.......................................................................................................... 125

PAI: PROVEDOR, HERÓI......................................................................................................................... 127RELAÇÃO PAI-FILHO: ............................................................................................................................ 136O CONFLITO COMO UMA DIMENSÃO DA PATERNAGEM ............................................................................. 136

AAddoolleessccêênncciiaa ee sseexxuuaalliiddaaddee:: oo ccoonnfflliittoo ggeerraacciioonnaall ........................................................... 140A DESTRADICIONALIZAÇÃO DA PATERNIDADE ........................................................................................ 145

CCAAPPÍÍTTUULLOO 55 AA PPAATTEERRNNIIDDAADDEE NNOOSS AANNOOSS 11999900 ........................................................................... 147

PLANEJAMENTO FAMILIAR E GRAVIDEZ .................................................................................................. 151AA ggrraavviiddeezz nnããoo ppllaanneejjaaddaa ee nnããoo ddeesseejjaaddaa:: aa ooppççããoo ppeelloo aabboorrttoo ................................. 153

A “GESTAÇÃO” DA PATERNIDADE: A GRAVIDEZ DESEJADA ..................................................................... 157PPrréé--NNaattaall ee PPaarrttoo........................................................................................................................ 162SSeennttiimmeennttooss ee ccoonnttrraaddiiççõõeess ddoo sseerr ““ppaaii”” ............................................................................ 167OO ppaaii aajjuuddaannddoo aa ccuuiiddaarr ddoo bbeebbêê:: oo ddeessaaffiioo ddee ddiivviiddiirr aass ttaarreeffaass.............................. 170OO ppaappeell ddaa aavvóó ........................................................................................................................... 173

O RELACIONAMENTO DO CASAL E A ROTINA DA CASA .............................................................................. 177RRoottiinnaa DDoommééssttiiccaa ee FFaammiilliiaarr .................................................................................................. 179TTaarreeffaass ddee hhoommeemm,, ttaarreeffaass ddee mmuullhheerr ................................................................................ 182

AFINAL, O QUE É SER PAI?..................................................................................................................... 185

CCOONNSSIIDDEERRAAÇÇÕÕEESS FFIINNAAIISS................................................................................................................... 192

RREEFFEERRÊÊNNCCIIAASS BBIIBBLLIIOOGGRRÁÁFFIICCAASS..................................................................................................... 201

AANNEEXXOO ................................................................................................................................................... 218

ROTEIRO DE ENTREVISTA....................................................................................................................... 218

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— (...) Eu acho uma missão fudida de super herói. E o primeirofilho que eu tive, achava que não entendia, que isso nãoacontecia comigo, mas aos poucos você vai vendo que a gentetem instinto, a gente é bicho, sabe criar, sabe pegar. Você pensaque só vai ensinar coisa, você vê que não sabe tanta coisa,aprende coisa com o filho, aprende coisas por ter que cuidar decriança. Então, para mim, ser pai é muito um aprendizadopessoal. Eu não vou ser piegas aqui e falar “Pô, que coisa maislegal, ah, meus filhos!”, bem por aí, mas eu acho assim, é umputa exercício para você, para pessoa humana, é ser pai. Masser pai direito, não é simplesmente ser, chegar de noite, ver oque ele está fazendo, o que ele não gosta, dar umas porradasnele, comprar um monte de brinquedos e sair fora, eu acho quenão. Paternidade é assim, é dar tapas sim, sair na chuva parase molhar, não tem como. Fez, não tem como não, ou você somedo mapa e desiste, deixa para alguém criar, mas se você estádentro, cara, é uma coisa que (...) é uma atividade mutante! Vocêpega o tempo do meu pai, era de um jeito, você pega hoje é outro,não tem regra, não tem...(Benício, músico, 2 filhos)

— Sei tudo, sou aquele que escutei as tias falarem, sei tudo.Falava “sai da frente, que eu faço tudo”. Esse negócio de blá,blá, blá comigo não tem não. Eu peguei, lavei, fiz, bordei noprimeiro dia.— Você que deu o primeiro banho?— Não, eu não, a enfermeira. Aí foi para casa, aí, eu deixei ela,ela é a mãe, deixei ela fazer. ‘Posso fazer agora?’ Posso. ‘Tchum,pá, pá, como é que é?’ ‘É aqui, faz assim ó’. ‘Tó’, ‘Ohhh!’. Lógico,vocês têm medo do quê? Por quê? Eu assisti a enfermeira dandobanho, fazendo tudo, eu fiquei quatro horas olhando pelo vidro,e aquilo gravou, memorizou, então é só juntar o pescoção aqui,acabou.(Renato, gerente de correio, 2 filhas)

— E você costumava ficar com a Lara sozinho, quando suamulher tinha plantão?— Então, eu que sou a mãe da Lara, nesse sentido assim, se forcomparar com a minha infância, quem é que fica, eu fiquei com aminha mãe. E a Lara fica comigo. (...) (Saulo, produtor devídeo, 1 filha)

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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IInnttrroodduuççããoo

Escolhi como epígrafe trechos de 3 depoimentos de homens,

casados, com filhos até 10 anos de idade, entrevistados para esta

pesquisa. Estes trechos sintetizam a complexidade que envolve as

relações de gênero e a dificuldade de ter que estabelecer modelos

explicativos para paternidade, maternidade, para o masculino e o

feminino. A fala desses homens sugere que ser pai é uma “missão”, de

“super-herói”, mas é também diferente do que era há uma ou duas

gerações anteriores. Não se pode ser pai de qualquer jeito. Além disso, a

mãe parece não deter mais o monopólio do cuidado: os filhos “ficam”

também com o pai. O discurso deles sugere ainda que o pai pode ser

mesmo diferente da mãe, porque há algo que é da “natureza” da

maternidade e que, por sua vez, é diferente da paternidade. E ainda, o

pai dos anos noventa pode saber tudo sobre como cuidar dos filhos,

aprende observando as tias ou a enfermeira a dar banho, trocar fraldas

etc.; e sabendo como fazer deixa que as mulheres continuem cuidando

elas próprias de seus filhos.

Muitos são os fatores que influenciam a construção social da

paternidade: a relação familiar (com o pai, com a mãe e depois com a

própria mulher ou mãe de seu filho); as condições sociais e econômicas;

a relação com o grupo de pares etc. A estrutura sociocultural de uma

dada sociedade marca a vida de homens (e de mulheres) e por

conseqüência exerce efeito sobre a paternidade, até mesmo na

disponibilidade de tempo que os homens tem para se dedicar aos filhos

e à família. Algumas tarefas com relação aos filhos e a casa demandam

mais tempo do que outras, influenciando a divisão social e sexual do

trabalho (Nauhardt, 1996). Da mesma forma que certos valores e

costumes estabelecem expectativas com relação à masculinidade e à

paternidade. Deve-se considerar também, segundo Marcos Nauhardt

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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(1996: 2): “A idade, a maturidade, o tipo de emprego e salário e o status

atribuído a esta ocupação, o nível de educação e informação, a

qualidade de relação com os próprios pais; fatores relevantes na

maneira como os pais (e os homens em geral) formam uma cosmovisão,

de como entendem a vida e a importância das relações nela contidas,

assim como, a aceitação dos papéis paternos e as possibilidades de

mudanças desses papéis.”

As falas de Benício, Renato e Saulo são emblemáticas da

heterogeneidade que caracteriza o grupo de homens entrevistados,

embora todos pertençam a um mesmo segmento social, e das

contradições que envolvem as relações de gênero que, por sua vez,

ajudam a constituir a paternidade nos anos 1990. Está presente a idéia

de que a paternidade (e também a maternidade) não deve ser a mesma

que a de seus próprios pais. Não há regra, não há modelo, a

paternidade “é uma atividade mutante”, como afirma Benício. Não há

um modelo “novo” de paternidade (modelos são sempre questionáveis,

porque escamoteiam a complexidade e a diversidade da realidade

social), mas há no discurso desses homens uma clara reflexividade

sobre o que é ser pai e uma auto-confrontação com o ideal de chefe-

provedor.

Essas primeiras elucubrações, estimuladas por trechos dos

depoimentos, como aqueles, antecipam as reflexões que irão se seguir.

Antes de prosseguir, todavia, retorno ao início do processo que resultou

nesta pesquisa de mestrado.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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Meu interesse pelo tema da paternidade decorreu da pesquisa

Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo1, realizada de agosto de

1992 a fevereiro de 1992, e da qual participei como assistente.

Na ocasião, foram entrevistados homens e mulheres de diferentes

segmentos sociais que realizavam suas atividades profissionais no

interior do espaço domiciliar. Essas pessoas encontravam-se em

diferentes situações no curso da vida familiar — solteiras, casadas, sem

filhos ou com filhos pequenos ou adultos. A distinção fundamental

entre os homens e as mulheres foi o destaque dado por elas à

maternidade como o principal motivo para a opção pelo trabalho

remunerado realizado na moradia2.

Essa justificativa, recorrente entre as entrevistadas, aguçou

minha curiosidade em relação à persistência de certa estrutura familiar

e de uma certa modalidade de divisão sexual do trabalho, segundo as

quais cabem prioritariamente às mulheres as responsabilidades com o

mundo doméstico e em especial com o cuidado e a criação dos filhos. A

princípio, a conciliação da maternidade e dos afazeres domésticos com

uma atividade profissional realizada no domicílio parecia ser uma opção

espontânea e uma solução bastante sensata. Mas, por outro lado, as

falas daquelas mulheres sugeriam uma certa resignação diante do “ser-

mãe” e da responsabilidade que essa tarefa representa, atribuição que

aparentemente assumiam como sendo natural e inexorável. Cuidar da

casa e dos filhos era visto por elas como uma atividade feminina, uma

obrigação.

1 Pesquisa realizada na Fundação Carlos Chagas, sob a coordenação da pesquisadora Drª

Cristina Bruschini, no período de agosto de 1992 a fevereiro de 1994. A pesquisa resultou noartigo “Desvendando o oculto: família e trabalho domiciliar em São Paulo”, publicado nacoletânea organizada por Abreu e Sorj (1993), e no artigo “Trabalho Domiciliar Masculino”,Revista Estudos Feministas ( v.3, n.2, 1995).

2 As mulheres eram costureiras, professoras particulares, manicures e profissionais liberais,compondo uma amostra bastante heterogênea; tinham em comum, além de trabalhar namoradia, a necessidade de conciliar as responsabilidades profissionais e familiares. Entre oshomens havia dois marceneiros, um ourives, um professor de desenho/arquiteto, umrestaurador de cadeiras, um eletricista, um relojoeiro, um artista plástico, um artista gráfico eum tintureiro.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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Em nossa análise, observamos que para as trabalhadoras, os

limites entre a identidade profissional e a familiar revelavam-se tênues

em função da concomitância das atividades profissional e doméstica e

do uso do tempo e do espaço para a sua realização. O trabalho era

realizado, muitas vezes, nos intervalos de tempo entre os afazeres

domésticos, não dispondo a maioria de um espaço específico para

executar a atividade profissional, nem havia grande preocupação com

investimento em capacitação ou aperfeiçoamento da atividade. A

exceção ficava por conta das solteiras ou chefes de família, ou daquelas

cujas atividades eram mais formalizadas. Para esse grupo, o doméstico

e o familiar sobrepunham-se ao profissional com um certo

questionamento.

Os homens, por sua vez, procuravam garantir uma relativa

separação entre o espaço doméstico e o profissional, mesmo quando os

limites físicos entre os ambientes de vida familiar e de trabalho não

eram tão claros. Ou seja, conforme o sexo do entrevistado, o espaço e o

tempo domésticos eram vivenciados de maneira distinta do espaço-

tempo profissional.

Imaginávamos que o fato de estes homens permanecerem mais

tempo no domicílio deveria favorecer uma maior integração com o

cotidiano doméstico e a dinâmica que o acompanha. Muitos deles eram

casados, mas o fato de trabalharem no espaço doméstico não significou

a garantia de uma divisão sexual do trabalho mais eqüitativa, pois, por

trás de todo afazer doméstico havia sempre mãos femininas. Poucos

foram aqueles que demonstraram efetivo envolvimento com esses

afazeres: cuidando das compras, levando ou buscando os filhos na

escola, fazendo a limpeza da casa.

Ao mesmo tempo, no meu cotidiano eu observava um número

significativo de homens assumindo as mais diversas tarefas com as

crianças e com a casa: nas reuniões na escola de meus filhos, homens e

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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mulheres estão presentes em proporção quase equivalente; no cinema,

nos parques, nos restaurantes é sempre possível encontrar homens

sozinhos com seus filhos, enfrentando situações de indisciplina,

preocupados com o menor que não quer comer, perdendo o fôlego no

jogo de futebol ou ainda ensinando-os a andarem de patins ou bicicleta.

Outros levam as crianças ao pediatra ou ao dentista sem nenhum

constrangimento, enquanto suas mulheres estão no trabalho ou

estudando. No bairro onde moro é comum cruzar com homens levando

seus bebês para a creche ou para tomar sol ou simplesmente

acompanhando-os à padaria no meio de uma manhã de terça ou

quinta-feira. Onde estaria a mãe daquelas crianças, por que o pai estaria

com elas? – ocorreu-me. Em conseqüência de que atividades o pai se

envolve e se responsabiliza cotidianamente por seus filhos? Meu

estranhamento não deixava de revelar um certo preconceito, decorrente

de uma ideologia de gênero na qual se espera que aquele homem,

naquele horário, esteja no trabalho e não cuidando dos filhos.

Apresentava-se a necessidade de definir e caracterizar melhor a

experiência masculina da paternidade.

Em geral, a atuação do pai é definida como extradomiciliar, e a

princípio não é equiparável a atividades que visam atender certas

necessidades infantis, como, por exemplo, dar banho, preparar

alimentos, acompanhar nos deveres de casa, levantar durante a noite

quando a criança está doente, enfim, tarefas que as mães estão

habituadas a enfrentar em seu dia-a-dia, trabalhando fora ou não.

Aquele pai poderia ser descrito como o encarregado de inserir a criança

no espaço “fora da casa”: leva-a à escola, para passear, brincar no

parque, cortar o cabelo, enquanto a mãe provavelmente a ensina a

portar-se à mesa, a cuidar da higiene corporal, a lidar com as tarefas

escolares.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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Para muitos, as atividades exercidas pelas mães envolvem uma

certa habilidade, para as quais os homens não estariam preparados;

elas são especialistas no assunto filhos. Em geral, a referência para essa

idéia de distribuição de tarefas é o trabalho doméstico, que na maioria

das culturas ocidentais é realizado pelas mulheres: limpar a casa,

cozinhar, lavar e passar roupas, cuidar dos filhos (e isso envolve: dar

banho, trocar roupa, alimentar, zelar pela disciplina, acompanhar nas

tarefas escolares etc.), enfim toda a rotina doméstica. O envolvimento

masculino na vida familiar é então formulado a partir desses critérios.

Quando a divisão sexual do trabalho é questionada, pressupõe-se uma

redivisão das tarefas domésticas, pelas quais o homem deveria ser

também responsável.

A trajetória do meu argumento até este ponto chega a um

primeiro obstáculo conceitual ou etimológico: o que estou entendendo

por paternidade? A aparente obviedade merece uma tentativa de

esclarecimento.

Paternidade e maternidade, se referem à condição ou qualidade

de ser pai e mãe, respectivamente. Isto é, referem-se à capacidade

biológica de reproduzir. Porém, com a possibilidade de adoção de

crianças e o avanço das tecnologias reprodutivas, não só casais

heterossexuais, mas também casais homossexuais (de ambos os sexos)

e pessoas individualmente podem ascender à qualidade de ser pai ou

mãe, sem necessariamente vivenciar uma gravidez. Neste sentido,

paternidade e maternidade dizem respeito mais a uma relação social,

estabelecida entre dois adultos ou apenas a um deles e um ou mais

bebês, e menos a um vínculo estabelecido por herança genética. Ou

seja, o aspecto biológico (a junção do espermatozóide com um óvulo e a

sua gestação) é apenas uma dimensão da condição de ser pai ou de ser

mãe, não a sua condição primordial; homens e mulheres podem tornar–

se pais ou mães de crianças que não possuem seu material genético.

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Não obstante deve-se reconhecer que a sociedade moderna não se

desprende tão facilmente dos laços biológicos e a celeuma com exames

de DNA para comprovar paternidade, e a crescente demanda por

tecnologias reprodutivas reforçam em certa medida a ideologia de

família “natural”.

Alguns estudos, na tentativa de estabelecer uma diferença entre a

capacidade biológica para a reprodução — encerrada nos termos

paternidade e maternidade — e a dimensão social do ato de cuidar dos

filhos, de ampará-los, optam pelos termos maternagem (uma tradução

quase literal da palavra mothering3) e paternagem (fathering). Ambos,

paternagem e maternagem, são termos êmicos, próprios às ciências

sociais, e respondem mais à uma tradução literal a partir de textos

americanos, não constando inclusive nas versões mais recentes dos

dicionários da língua portuguesa.

Na cultura brasileira, os termos maternidade e paternidade

designam muito mais do que mera capacidade biológica de gerar;

significam também responsabilidade social, responsabilidade que

apresenta uma conotação distinta conforme o gênero: a mãe, podendo

ser biológica ou não, é responsável pelo bom desenvolvimento da

criança, pela sua educação, alimentação, saúde; e o pai é visto como

responsável por prover as necessidades materiais da família, sendo seu

condutor moral4. O que se constata é que tanto a paternidade como a

maternidade englobam significados que são construções socioculturais,

e, por isso, fortemente influenciadas pela constituição das identidades e

dos papéis de gênero. Nesta pesquisa, interessam-me as relações que

certos homens estabelecem no espaço familiar, decorrentes da

3 Ver Nancy CHODOROW. Psicanálise da Maternidade. Uma crítica a Freud a partir da mulher.

Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1990.4 Sobre os significados do termo responsabilidade e sua apreensão pelos homens, em particular,

ver a dissertação de mestrado de Margareth Arilha Silva(1999). Masculinidades e gênero:discursos sobre responsabilidade na reprodução. São Paulo: Pontifícia Universidade Católicade São Paulo, (Mestrado em Psicologia Social).

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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experiência de ter um filho, explorando as condições individuais,

culturais e sociais que contribuem para o exercício da paternagem e

para o desenvolvimento da masculinidade e suas implicações nas

relações de gênero.

Hoje, algum tipo de envolvimento masculino nas tarefas

domésticas e no cuidado com os filhos parece ganhar destaque; já não é

como nos tempos de nossos avós ou mesmo de nossos pais. Contudo,

por que então na divisão das atribuições domésticas o peso maior

parece ainda recair particularmente sobre as mulheres? Não caberia

perguntar qual a lógica que determina serem certas tarefas definidas

como maternas e outras como paternas? Mais: se os homens

passassem a trocar fraldas, dar banho em seus filhos, ir ao

supermercado e lavar a louça do jantar, isso significaria igualdade?

Bastaria para romper com a idéia de que desempenhar com êxito as

tarefas domésticas é uma prerrogativa do gênero feminino? O princípio

da igualdade de oportunidades na vida pública, baluarte de feministas e

de movimentos de mulheres, pode ser transposto para a vida privada?

Era preciso saber mais sobre a relação dos homens com o espaço

doméstico e familiar, sobre o que pensam a respeito da gravidez e da

paternidade, sobre cuidar dos filhos e de como conciliam essa tarefa

com a carreira profissional sua e da companheira.

A proposta de pesquisa

Estas reflexões, que foram surgindo no processo da Pesquisa

sobre Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo e durante as leituras

sobre relações de gênero, levaram-me a essa dissertação, uma vez que

mostraram a necessidade de estudar as diferentes formas de expressão

das desigualdades de gênero, sendo uma delas a responsabilidade

quase exclusiva das mulheres pelo cuidado com os filhos. Optei, então,

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por examinar qual a experiência vivida por homens casados,

pertencentes a um certo segmento das camadas médias paulistanas e

com filhos até 10 anos de idade, observando o seguinte contexto:

- o significativo aumento, na última década, da taxa de participação

das mulheres, especialmente as casadas, no mercado de trabalho;

- as necessidades econômicas, mas também o desejo de ascensão

social e de realização profissional de ambos os sexos;

- a divisão do orçamento doméstico entre os cônjuges;

- os indícios de mudanças de valores e costumes, apontados pela

mídia e por estudos acadêmicos, que indicam alterações nos

arranjos familiares e o questionamento de significados atribuídos à

maternagem e à paternagem;

procurei, a partir dos depoimentos, apreender:

1) se, para esses homens, essas mudanças têm provocado processos

de negociação no que diz respeito ao cuidado com os filhos

pequenos, à prática da anticoncepção e à distribuição de afazeres

domésticos;

2) se, para eles, essas mudanças resultaram numa maior participação

masculina e como ela se manifesta.

Esta minha proposta de investigação se justifica porque, apesar

de uma série de pesquisas mostrarem que as mudanças têm ocorrido

muito mais nas relações das mulheres com o mundo “lá fora” — por

meio de sua inserção no mercado de trabalho e de sua participação

política e social —, e menos por transformações em seu cotidiano

doméstico, tem sido veiculada tanto na mídia como em pesquisas

acadêmicas uma “nova” representação da participação do homem, na

qual se estimula seu envolvimento na gravidez, durante o parto, e na

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criação dos filhos. Essa representação pretensamente revela mudanças

nas relações conjugais, em particular nos casais de camadas médias,

fato apontado por vários estudiosos (Salem, 1980, 1985, 1989; Velho,

1983; Dauster, 1987; Romanelli, 1986; Novelino, 1989, entre outros).

Por outro lado, há indícios também de que prevalece a hierarquia

de gênero, que associa as mulheres à esfera da produção da vida e não

da riqueza (Izquerdo, 1994). Senão como explicar o fato de a grande

maioria das mulheres ainda se concentrar em atividades de cuidado

com outros, particularmente em atividades de prestação de serviços e

ganhando salários inferiores aos dos homens para funções

semelhantes? Ou, então, invertendo a questão: por que tem sido difícil

ampliar a participação de homens em atividades que envolvem o

cuidado com o outro, tais como em pré-escola, creches, no ensino

fundamental (em geral os homens são os professores de educação física)

ou como enfermeiros numa pediatria etc.?

O gênero como referencial de análise

Essas e outras questões levaram-me a orientar a análise segundo

a categoria gênero, por entender que ela permite desvelar significados

atribuídos às relações sociais e aos comportamentos individuais em

nossa sociedade. O gênero têm sido uma categoria analítica importante

para a compreensão do que representam as desigualdades entre

homens e mulheres, entre o masculino e feminino em determinada

sociedade e período histórico5. O gênero, porém, é mais do que uma

categoria analítica; juntamente com raça/etnia e classe social opera na

5 Minhas reflexões sobre gênero se devem às discussões que travamos no Edges (Grupo de

Estudos sobre Educação, Gênero e Culturas Sexuais, FEUSP), particularmente à síntese queelaboramos a quatro mãos, apresentada no Congresso Luso-Afro-Brasileiro de CiênciasSociais, Rio de Janeiro, 1996: “O uso analítico do gênero: balanço crítico de estudoscontemporâneos” (Vianna, C.; Morelli, M.; Pegoraro, T. e Ridenti, S.)

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realidade empírica como categoria histórica que permite a compreensão

da organização das relações sociais.

A historiadora Joan Scott tem sido, nas diferentes áreas de

conhecimento, a principal referência dessa perspectiva entre os estudos

de gênero no Brasil. Suas idéias oferecem pistas para uma possível

compreensão do modo como as sociedades representam o gênero e o

apreendem, estabelecendo as regras das relações sociais (Scott, 1990).

A história, para Scott, é o registro das mudanças da organização

social dos sexos, e é também participante da produção do conhecimento

sobre a diferença sexual. Participa, portanto, da construção do discurso

que estabelece significados para a diferença sexual. Esse raciocínio

permite chegar a outro conceito importante em sua teoria e que vai ser

fundamentado a partir de Foucault6: se o saber é o significado de

compreensão produzido pelas culturas e sociedades sobre as relações

humanas, este significado e o seu uso nascem de uma disputa política,

por meio da qual as relações de poder – de dominação e subordinação –

são construídas. O saber é, assim, um modo de ordenar o mundo e,

como tal, não antecede à organização social, mas é inseparável dela.

Os significados podem variar no tempo de acordo com as culturas

e os grupos sociais, contrariamente a uma concepção universalizante da

realidade social que tende a tornar secundárias as diferenças, a

exemplo da sexual. Uma das características do significado é a sua

variabilidade, volatilidade e natureza política de construção. Ou seja, os

6 As implicações da filiação de Scott aos principais céticos do modernismo, entre eles Jacques

Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan não serão objeto de análise dessa dissertação. Paraacompanhar essas discussões ver Harding (1993); Lovibond (1990); Sorj (1992), entre outras.Minha intenção é situar sua elaboração teórica, extraindo pistas para a análise. Sem deixar-me seduzir por um certo relativismo sociológico, o discurso pós-moderno tem se reveladoatraente justamente porque as categorias e explicações universalizantes surgem frágeis diantede questões como a da desigualdade social, dos conflitos étnicos e religiosos. Sabine Lovibond(1990), por exemplo, argumenta contra a idéia de que a modernidade constitua um projeto jáacabado, bastando ver a situação das mulheres e os níveis de desigualdades a que estãosubmetidas em diferentes instâncias sociais. É a heterogeneidade que se faz presente e exigereconhecimento, se contrapondo ao modernismo e às concepções de unidade, de geral euniversal.

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significados dos conceitos não são fixos no repertório de uma cultura;

são, ao contrário, dinâmicos, se estabelecendo por meio de processos

conflitivos.

Para Scott (1994) é fundamental entendermos como ocorre a

construção das hierarquias entre os gêneros. E isto pode ser feito

mediante um estudo dos processos, das causas múltiplas, da retórica,

do discurso. Não se trata, contudo, de abandonar a explicação via

estruturas e instituições; trata-se de entender o que elas significam. O

papel do pesquisador, neste sentido, é o de interpretar como os

significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres foram

construídos.

Apreender a dimensão da construção social do gênero através da

história e nas diferentes culturas nos coloca no interior da proposta

metodológica de Joan Scott de estudar sistematicamente os processos

conflitivos que produzem “os significados variáveis e contraditórios

atribuídos à diferença sexual, os processos políticos através dos quais

esses significados são criados e criticados, a instabilidade e

maleabilidade das categorias 'mulheres' e 'homens' e os modos pelos

quais essas categorias se articulam uma em termos da outra, embora

de maneira não consistente ou da mesma maneira em cada momento”

(1994, p.25-6).

Ao desenvolver essa proposta, Scott permite pensar que todo

significado se apoia na negação ou repressão de algo que está em

oposição a esse significado. Ou seja, cada conceito oculta

contraditoriamente, tal como Lilith – o outro lado da lua – uma faceta

reprimida ou negada. E como tal, as oposições binárias fixas escondem

a heterogeneidade de cada categoria, bem como a extensão da

interdependência que se estabelece entre as oposições. Segundo ela,

essa interdependência "é comumente hierárquica, um termo sendo

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dominante, prioritário e visível e seu oposto subordinado e

freqüentemente ausente invisível”. (1994, p. 21).

Como desvelar essa relação analiticamente? Estudando, segundo

Scott, sistematicamente os processos conflitivos que produzem o

significado, o que implica a introdução de novas oposições, a reversão

das hierarquias, a tentativa de expor termos reprimidos, de contestar o

estatuto natural das dicotomias aparentes e de expor sua

interdependência e instabilidade interna.

É na literatura que ela vai buscar suporte teórico-metodológico.

Mais especificamente, na análise de texto, pois esta permitiria a

decomposição dos processos pelos quais os significados são

constituídos. Tanto a história quanto a literatura como formas de saber

permitiriam “uma análise dirigida aos conceitos, aos significados, aos

códigos e à organização da representação”. Scott pretende uma análise

crítica da história através do estudo dos processos pelos quais o saber é

e tem sido produzido, inclusive a produção do saber de gênero.

Mas será possível transportar essas reflexões para uma análise

sociológica? Como ela mesma observa, isso é possível se o gênero não

for considerado meramente uma categoria descritiva das relações entre

homens e mulheres. Gênero é um conceito que permite visualizar como,

em tempos históricos distintos e em sociedades distintas, os

significados construídos para as diferenças sexuais corroboram o

conjunto das relações sociais (Scott, 1992).

Todavia, Heleieth Saffioti (mimeo., s/d), numa leitura crítica de

Scott, destaca que a ênfase na desconstrução do discurso não é

suficiente para a compreensão de como operam as relações de gênero e

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as estruturas sociais e sua inter-relação7. Ela credita às raízes

derridianas e foucaultianas a rejeição de Scott ao conceito de estrutura.

Para Saffioti, “o discurso está sempre, negativa ou positivamente,

referido às condições materiais e não-materiais da existência concreta

de seus produtores. Ou seja, a linguagem não é apenas instituinte; é

também instituída. Donde não se pode resolver o problema da

transformação pela mera desconstrução do discurso” (mimeo., s/p).

Mas Saffioti relativiza dizendo que não há que se desprezar a força do

discurso para o poder da ideologia, é preciso considerar que linguagem

e posição estrutural dos sujeitos estão imbricados, sendo o sujeito

constituído por gênero, classe e raça na mesma medida em que é autor

dessas subestruturas e expressão de suas contradições.

Uma das dificuldades em enxergar o gênero para além do

discurso sobre as diferenças sexuais, está o fato de que muitas teorias,

mesmo afirmando o caráter de construção social das diferenças entre

homens e mulheres, utilizam o corpo, os fatores biológicos — a

natureza, enfim —, para estabelecer generalizações para as sociedades

em geral e explicar os significados do que é socialmente compreendido

como masculino e feminino (Nicholson, 1994). Estudos sociológicos

sobre reprodução e sexualidade, por exemplo, talvez por estarem

lidando com questões muito próximas da biologia, tendem a tomar o

corpo como base para descrever diferenças e semelhanças entre

7 Louise Tilly (1994) e Eleni Varikas (1994) também questionam a opção de Scott pela

desconstrução como método. Para elas a proposta de Scott subestima a ação humana esuperestima a coerção social. Segundo Varikas, Scott “parece conceder uma parte importanteà intervenção dos sujeitos agentes quando, por exemplo, trata da instabilidade do sentido dosconceitos como resultado dos processos de contestação e de redefinições múltiplas, dos quaiseles são o resultado. Mas, por outro, a impessoalidade das forças discursivas que, segundoela, constróem o sentido (mesmo múltiplo e instável) de uma cultura, assemelha-se demaneira inquietante à impessoalidade das forças produtivas que por muito tempodeterminaram o curso da história na historiografia. (...) se no centro da sua teoria daprodução do sentido e da formação do gênero se encontram relações conflitantes emconfronto permanente, os atores deste conflito são ‘as forças de significação’,‘oposições fixas’, ‘duplas oposicionais’ ou ‘procedimentos de diferenciação’ que (...)fazem desaparecer do horizonte as pessoas implicadas nesses ‘jogos de poder e de saberque constituem a identidade e a experiência’.” (Varikas, 1994:77-78, grifo meu).

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homens e mulheres. Como aponta Marília Carvalho, em sua leitura de

Nicholson, “A dificuldade está em que certos domínios da vida social

têm sido sistematicamente associados à natureza e assim retirados à

ação humana, à história e às relações sociais: a infância, a família, a

sexualidade, as mulheres são alguns exemplos. Parte do esforço das

teóricas feministas tem sido exatamente de desnaturalizar estes

domínios [...] construindo sua história, afirmando sua variabilidade e

sua inserção no campo da cultura” (Carvalho, 1999: 31).

Em muitas sociedades ocorre a distribuição das tarefas entre os

sexos como uma espécie de extensão das diferenças procriativas entre

homens e mulheres. A atribuição às mulheres da responsabilidade pelo

cuidado dos filhos, estabelecida então como “natural” nas sociedades

ocidentais, está em parte fundamentada na capacidade que elas têm de

engravidar, dar à luz e amamentar e na suposição decorrente de que

elas são mais ternas, mais carinhosas e habilitadas para cuidar da

prole (Durham, 1983, Heilborn,1992).

Não se trata de eliminar o corpo e as implicações biológicas de

nossas análises, mas de considerá-los como objeto de investigação

histórica e de variação cultural e social. Ou seja, o sexo não é algo que

podemos separar do gênero8. Nas palavras de Joan Scott: “o gênero é a

organização social da diferença sexual percebida” (1994:13).

Neste sentido, a adoção do conceito de gênero repercute

diretamente nas análises sobre a identidade feminina e masculina9.

8 Linda Nicholson (1994) defende a impropriedade das generalizações afirmando que a

população humana é formada por grupos distintos e que diferem quanto às expectativassociais sobre como cada um pensa a si mesmo, sente e age; da mesma forma que tambémdiferem nas variadas formas culturais de atribuir significados ao corpo e nas interpretaçõessobre o significado do ser mulher ou homem. Ver Marília Carvalho (1999), que seguindo aspistas de Nicholson, faz uma análise crítica de algumas teóricas feministas que tendem ageneralizações essencialistas sobre as diferenças de gênero.

9 De acordo com Arango, Leon, Viveros (1995) “a identidade de gênero é trabalhada como umaproblemática transversal, cuja análise requer uma aproximação pluri e interdisciplinar e umquestionamento das categorias binárias que mapeiam a análise social, tais comonatureza/cultura, público/privado, produção/reprodução e incluindo tambémmasculino/feminino” (p. 25) (tradução minha).

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Maria Luiza Heilborn (1992) observa que, quando a antropologia fala de

identidades socialmente construídas, refere-se "à perspectiva relacional

e sistêmica que domina o jogo de construção de papéis e identidades

para ambos os sexos" (Heilborn, 1992, p.40).

Segundo Heilborn, a centralidade da mulher no domínio familiar

e, em particular, do seu papel reprodutivo tende a constituir a base da

determinação das identidades femininas. Da mesma forma que a

identidade masculina, particularmente na cultura latina, é muitas vezes

construída com base na força física e na virilidade. Caracterizado a

partir do complexo simbólico honra-vergonha que organiza a sociedade

ocidental, o masculino está associado ao machismo latino e refere-se ao

prestígio e ao poder, cujo exercício se expressa no controle sobre as

mulheres e na centralidade da moral. Ao feminino, por sua vez, estão

relacionados aspectos mágicos, profanos, de negatividade. A sociedade

ocidental assim organizada estabelece distinções entre o público e o

privado, vendo no lar o refúgio e o espaço de culto aos ancestrais.

A casa é também o espaço destinado à mulher. Como então, sendo a

mulher representante do mal, a casa pode ser o espaço de culto aos

antepassados? Para Heilborn, esta incongruência é resolvida com a

santificação das mulheres, o que implica em sua assexualização. Essa

situação, porém, não deixa de ser permeada por conflitos e tensões,

uma vez que a impossibilidade do homem não conseguir garantir o

controle sobre a mulher se mantém latente. A afirmação da virilidade

implica a capacidade de controle e ao mesmo tempo a transgressão da

honra (Heilborn, 1992).

O que se conclui dessa explicação é que a identidade feminina,

em particular, é influenciada pela centralidade da função reprodutora

na vida das mulheres, e que, por intermédio de mecanismos ideológicos,

tende a se estender a outros campos da vida social. E a identidade

masculina, por sua vez, teria como fundamento de sua elaboração uma

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dimensão mais social (moral, prestígio e poder) e menos biológica.

Heilborn ressalta a assimetria valorativa entre os gêneros, fundada na

diferença sexual e cultural e simbolicamente reelaborada.

A questão, de fato, é que o corpo também inscreve a identidade

masculina. Na sociedade atual não só os corpos femininos tornaram-se

“corpos dóceis”, numa acepção foucaultiana, sujeitos ao poder

disciplinar da modernidade, ao aperfeiçoamento, mas também os corpos

masculinos estão inseridos numa cultura narcisista e disciplinadora. É

interessante observar como corpos masculinos têm sido bombardeados

por uma estética do homem saudável e pelo conhecimento científico, em

particular pela medicina — por exemplo, a incidência do câncer de

próstata frente a resistência de muitos homens ao exame preventivo

(parte do exame implica o toque retal, execrado pela maioria dos

homens que temem pela sua masculinidade) registra a importância da

construção social de um certo dado biológico na determinação da

identidade masculina. Masculinas e femininas, as identidades

expressam representações sobre masculinidade e feminilidade e

diferentes formas de apropriação do corpo num dado momento e

contexto histórico.

Estudar as relações de gênero envolve, assim, dois tipos de

análise: do gênero como uma construção ou categoria do pensamento

que ajuda na compreensão de histórias e mundos sociais particulares; e

do gênero como relação social que entra em todas as outras atividades e

relações sociais e parcialmente as constitui (Flax, 1991). Este último

significa adotar o gênero numa perspectiva relacional, na qual as

relações de gênero se constituem e são constituídas nas relações

sociais, ou seja, sem considerar o próprio conceito gênero como

unívoco, capaz de explicar, por si só, toda a trama social. Como já

mencionado anteriormente, outras variáveis devem ser acionadas e

estar articuladas ao gênero, tais como: classe, raça, religião, diferenças

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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regionais e etárias. As relações de gênero não se estabelecem, portanto,

a partir de uma simples extensão das diferenças biológicas, são, pois,

resultado de um processo de aprendizagem e de trabalhos contínuos

(Almeida, 1995).

Para exemplificar as implicações dessas variáveis na diferenciação

de gênero cito a pesquisa realizada por Maria Luiza Heilborn (1995) em

bairros populares do Rio de Janeiro, na qual ela buscava analisar o

tempo gasto por crianças de ambos os sexos com trabalho dentro de

casa. Ela observou que as meninas em função da socialização para um

determinado papel de gênero usavam boa parte dos seu tempo em

atividades voltadas para o grupo doméstico — a partir dos 5 anos de

idade exerciam tarefas como varrer a casa, lavar e passar roupa, cuidar

dos irmãos menores. Enquanto que, em comparação, os meninos

dispunham de muito mais tempo livre para brincar e desempenhavam

tarefas domésticas “externas” à casa, tais como levar o lixo, varrer o

quintal. Esse exemplo ilustra como no processo de socialização certos

valores — meninas em casa/meninos na rua — marcam a diferença de

gênero, caracterizando a assimetria das relações entre homens e

mulheres.

Se consideradas as relações de gênero e sua dinâmica particular,

a análise da divisão sexual do trabalho permite, na opinião de Teresita

de Barbieri (1991), revelar conflitos de poder, por ser esta divisão uma

arena de controle da capacidade reprodutiva. O esquema binário, que

coloca o masculino e o feminino como oposição, e designado segundo o

sexo — masculino/homem, feminino/mulher — dificulta pensarmos as

relações sociais de outras maneiras. Essa relação dicotômica se estende

para as definições que temos do que é ser pai e mãe em nossa sociedade

e cristaliza concepções do que devem ser as relações de homens e

mulheres com seus filhos. O cuidado, por exemplo, exercido por

mulheres, é visto como uma característica de gênero feminino e

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portanto– para alguns como manifestação “natural”, para outros, fruto

da socialização das mulheres. Muitas atividades profissionais, por

exemplo, que se relacionam ao cuidado são consideradas femininas

(enfermagem, babás, professoras de pré-escola e creches etc.)10, e como

trabalho são socialmente pouco valorizadas.

É preciso, pois, desvelar os sistemas de significados, ou seja,

perceber como as sociedades representam o gênero e o utilizam para

articular regras que conformam a divisão sexual do trabalho e que, por

sua vez, tem definido a maternagem e a paternagem. Assim sendo,

nesta pesquisa procuro apreender a concepção de paternidade

socialmente construída, expressa no discurso de homens de camadas

médias; observar se os indícios de mudanças nas relações familiares,

apontados pela literatura, se confirmam; e até que ponto têm alterado

as relações de gênero na esfera privada.

* * *

É com esta preocupação que escolhi o tema da paternidade: verificar as

mudanças e permanências que definem as dimensões sociais de ser pai

nos anos 90. Um eixo básico norteia minha argumentação: as

distinções socialmente construídas do gênero e que definem atribuições

especificas para homens e para mulheres no que se refere ao cuidado

com os filhos pequenos.

Esta dissertação explicita nos capítulos que se seguem a definição

desta opção analítica. No Capítulo 1, com a intenção de melhor

compreender por que o cuidado com os filhos se constituiu na cultura

ocidental como uma atribuição exclusiva das mulheres, recorro aos

textos de Nancy Chodorow e Elisabeth Badinter. As distintas

abordagens dessas autoras sobre a maternidade e maternagem —

10 Sobre a definição de atividades de gênero masculino e feminino ver Maria Jesus Izquerdo,

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considerando os distintos campos de conhecimento em que estão

situadas e enfoques teóricos, bem como suas limitações —, subsidiaram

a elaboração do problema de minha pesquisa, encaminhando minhas

preocupações para a questão da paternidade e da paternagem.

A partir daí percorri, até onde foi possível, parte da bibliografia

sobre paternidade e outros temas a ela relacionados, procurando

destacar aspectos relevantes que pudessem ajudar na análise da

construção social da paternidade em um segmento social das camadas

médias paulistanas. Uma síntese sobre os estudos da paternidade

constitui o capítulo 2.

No Capítulo 3, a intenção é situar a pesquisa, particularmente

considerando o lugar onde ela foi realizada – a cidade de São Paulo – e a

importância desse posicionamento na visão de mundo das pessoas que

nela vivem. Como parte da contextualização da pesquisa, desenvolvo o

tema da família, pensada como uma das instituições onde, nos últimos

anos, muitas mudanças vêm acontecendo. Neste aspecto, destaco a

literatura sobre as famílias de camadas médias, grupo no qual se

situam os homens que entrevistei para a pesquisa. A presença

masculina na vida familiar contemporânea, o envolvimento masculino

no cuidado com as crianças e a relação entre os diferentes significados

de paternidade e maternidade podem ser decisivos para a compreensão

de como operam as hierarquias e desigualdades de gênero no espaço

familiar. O exame dos significados que homens de camadas médias

atribuem à paternidade e ao seu envolvimento com os filhos pequenos,

suas perspectivas e conflitos em relação à educação das crianças estão

diretamente relacionados à investigação dos padrões de gênero que

constituem socialmente a paternagem. Neste capítulo apresento ainda

os critérios para a definição dos sujeitos entrevistados, os

1994.

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procedimentos utilizados na coleta dos dados e na análise das

entrevistas, bem como o perfil dos 10 entrevistados.

No quarto capítulo, desenvolvo a análise dos depoimentos. Inicio

com a família de origem, pois estou levando em conta que a vivência

com o pai nos diferentes momentos da trajetória de vida pode

influenciar não só na construção de sua própria paternagem, mas

também na autocrítica e na construção de um outro significado para a

família e para a relação conjugal.

No Capítulo 5, procuro desvelar os conflitos e as ambigüidades

que a experiência da paternidade apresenta para esses homens, bem

como os processos de negociação entre os casais e que expressam os

limites e as possibilidades da experiência masculina de paternagem.

E, por fim, faço um balanço de minhas reflexões iniciais e das

revelações da análise, destacando os obstáculos para uma efetiva

constituição de “novos padrões” de paternidade, bem como os avanços

em direção a essa constituição presente nas formas que esses homens

têm encontrado para dar outros significados à paternidade, à

paternagem e às relações de gênero na família.

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CCaappííttuulloo 11DDaa mmaatteerrnniiddaaddee àà ppaatteerrnnaaggeemm::

uummaa qquueessttããoo ddee ggêênneerroo

(...) do cuidado das mulheres depende a primeira educação doshomens; das mulheres dependem ainda os seus costumes...assim,educar os homens quando são jovens, cuidar deles quando grandes,aconselhá-los, consolá-los...eis os deveres das mulheres em todos ostempos. Rousseau

Como expus na introdução a esse trabalho, as concepções de

maternidade e maternagem presentes tanto na literatura sobre família e

nos estudos sobre as mulheres, como nos resultados da Pesquisa

Família e Trabalho Domiciliar em São Paulo, mencionada na

Introdução, ofereceram as primeiras pistas para o desenvolvimento do

projeto desta pesquisa. Embora eu supusesse que as mudanças nas

relações entre homens e mulheres estivessem forjando uma concepção

de paternidade distinta daquela até então descrita em estudos

sociológicos sobre família — e que merecia ser investigada —, prevalecia

em minhas próprias concepções a força da relação mãe-filho como

definidora de uma paternidade mais (ou menos) participativa.

Nas sociedades ocidentais, não só a naturalização da

maternagem, mas também da instituição família torna-se especialmente

marcante pela manipulação de concepções científicas para a sua

legitimação, contaminando a própria reflexão científica sobre a

paternidade. O fato das mulheres gestarem e a longa dependência do

recém nascido aos cuidados maternos, tornaram “legítimas” concepções

como a de Rousseau, descrita na epígrafe deste capítulo, sobre o lugar

das mulheres na sociedade ocidental.

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Até mesmo o parentesco é tido como uma extensão natural dos

laços familiares. A divisão sexual do trabalho —como decorrência dessa

naturalização — acaba por vincular as atribições sociais das mulheres,

derivadas de sua capacidade reprodutiva, a funções biológicas. A

paternidade, em contrapartida, não é formulada a partir da participação

do homem no processo reprodutivo. Na divisão sexual do trabalho, o pai

tem sido socialmente definido com a função de garantir e possibilitar a

maternidade e esta função nem sempre está associada ao vínculo

biológico, genético como mostram os estudos antropológicos

(Strathern,1995).

O fato de o pai ser sempre nomeado, presumido — o homem pode

até se autodenominar o pai da criança, mas é a mulher que define quem

é o pai — contribuiu para reforçar a idéia de que o homem não é um

ator no processo reprodutivo. Como observa Margareth Arilha (1998):

“Se a reprodução é aprendida e apreendida pela maior parte das

pessoas como um processo biológico que se concretiza essencialmente

num corpo do sexo feminino, como provocar novas linguagens acerca da

reprodução? Seria possível valorizar menos a gestação e mais a

concepção, apontando para uma posição compartilhada em termos de

significados, de mulheres e homens diante da reprodução biológica da

vida?” (Arilha, 1998:73, grifos meus).

A questão parece um pouco mais complexa, na verdade. Não se

trata de uma graduação na valorização da produção da vida, mas de

valorização da participação individual, de homens e de mulheres, nesse

processo. A proposta de uma gravidez do casal, muito em voga nos anos

oitenta entre alguns grupos de classe média, estava centrada na

valorização da participação masculina no processo gestacional; as

novas tecnologias reprodutivas são também um mecanismo que aloca a

participação masculina no processo de concepção, concretizando o seu

lugar biológico na reprodução. Ou seja, avento a possibilidade de que a

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suposta “exclusão masculina” do processo reprodutivo está para o

homem da mesma forma que estava para as mulheres a sua exclusão e

desvalorização do processo produtivo e dos postos de tomada de

decisões.

Mesmo considerando alguma relutância dos homens em assumir

os cuidados com os filhos e as tarefas domésticas, deve-se levar em

conta que há uma indeterminação cultural quanto às formas de

conduta para homens, quando se pensa em outras que não aquela do

macho bem-sucedido, do chefe-provedor, contrariamente à mulher, cujo

sucesso profissional é aceito e estimulado, desde que não se

sobreponha à mãe e esposa dedicada (Quadros, 1996). O “homem

andrógino” — aquele que corporifica elementos masculinos e femininos,

mas atenuados de seus atributos mais radicais — tem alimentado mais

a criatividade de diretores e atores, de escritores e publicitários do que

fundamentado o homem concreto, em particular o homem

heterossexual. As mudanças na experiência masculina da paternidade

nos últimos anos, convivem com a permanência de valores que

reproduzem algumas dimensões da divisão sexual do trabalho.

Há todo um conhecimento elaborado, como veremos mais adiante,

que busca explicar e compreender por que são as mulheres que cuidam

dos filhos e das tarefas domésticas. Mais especificamente, a

maternidade sempre foi tema importante entre aqueles que se

debruçaram sobre a condição feminina e mesmo entre as militantes

feministas. O enfoque da maternidade como uma função natural da

mulher, responsável exclusiva pelos deveres e obrigações na criação dos

filhos, alimentou ao longo dos anos 70 o discurso de algumas correntes

do movimento feminista, que atribuíam a essa concepção a causa da

opressão feminina e das desigualdades entre homens e mulheres

(Scavone, 1995).

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Numa outra perspectiva, o diferencialismo inspirado pela

psicanálise, a maternidade é concebida como um poder insubstituível, e

por isso invejado pelos homens. Essa dimensão definiu a pauta de

feministas que reivindicavam uma divisão mais eqüitativa das

responsabilidades familiares. Segundo Lucila Scavone, foi uma tomada

de posição decisiva para “um processo de construção de uma escolha

reflexiva da maternidade e abriu espaço para debates sobre o lugar do

pai” (Scavone, p.8, grifos da autora).

A invenção social da maternageme o lugar da paternidade

Nesta direção, a literatura sobre maternidade/maternagem foi,

num primeiro instante um ponto de partida para o desenrolar das

minhas reflexões, voltadas para a compreensão das relações parentais

na sociedade contemporânea. Duas leituras, em particular, que

focalizam a construção social da maternidade, direcionaram minhas

preocupações para a apreensão da experiência que certos homens, nos

dias atuais, num contexto de muitas mudanças, manifestam sobre a

paternidade e a paternagem. Assim, a paternidade foi se estabelecendo

como foco de análise, acompanhada de uma preocupação: afastar-me

da expectativa de que os homens deveriam cuidar dos filhos e assumir

as atribuições domésticas segundo um modelo feminino, como única via

para a equidade de gênero. Antes, é preciso saber como eles têm

vivenciado a paternidade e negociado as relações conjugais, num

contexto cultural e social que não corresponde àquele da sociedade de

Rousseau ou mesmo ao modelo de pai-herói/provedor tão marcante em

décadas passadas.

Nancy Chodorow

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Na tentativa de explicar por que as mulheres “maternam”, Nancy

Chodorow, em Psicanálise da maternidade: uma crítica a Freud a partir

da mulher (1990)11, argumenta que a reprodução do sistema (sócio-

político-econômico) patriarcal estaria relacionada à exclusividade das

mulheres no cuidado dos filhos. As idéias de Chodorow, de que a

estrutura das relações de gênero pode ser explicada pela dinâmica

psíquica dos indivíduos, têm influenciado não só feministas como, mais

recentemente, estudiosos da masculinidade12. Uma das críticas a esta

autora está em sua fundamentação teórico-metodológica, com base na

psicanálise (teoria das relações-objetais), e em sua tentativa de tecer

interpretações “sociológicas”, atribuindo distinções de gênero a

características de personalidade, necessidades, defesas e capacidades

particulares; criadoras, por conseqüência, das condições para a

reprodução da divisão sexual do trabalho.

A teoria de Chodorow é bastante simples. A reprodução

contemporânea da maternagem ocorreria por meio de processos

psicológicos estruturalmente induzidos. Para ela, as mulheres

maternam porque foram maternadas por mulheres e essa capacidade e

necessidade nasceriam da própria relação mãe-filha. Seguindo esse

raciocínio, a capacidade dos homens de cuidarem de seus filhos, por

oposição, estaria sendo sistematicamente reprimida. Nancy Chodorow

defende que a teoria das relações objetais, como base para uma

utilização sociológica da psicanálise, pode esclarecer como a família

produz mulheres para serem mães e preocupa-se com os modos como a

estrutura e o processo familiar, em especial a organização assimétrica

dos cuidados maternos e paternos, afetam a estrutura psíquica e os

processos inconscientes. As diversas formas de identificação acabariam

determinando funções adultas de gênero que situam as mulheres

11 O título original norte-americano é The reproduction of mothering: Psychoanalysis and the

sociology of gender (Berkley/Los Angeles, Univ. of California Press, 1978).12 Uma leitura crítica a respeito dessa influência pode ser lida em Oliveira, 1998, e Carvalho,

1999.

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sobretudo na esfera da reprodução. Na visão de Chodorow, a alteração

desse quadro dependeria basicamente da maior integração dos homens

no cuidado com os filhos. Ou seja, seria a destradicionalização13 da

família, em que as práticas tradicionais — tal como a maternagem —

seriam questionadas e reconstruídas.

A maternagem das mulheres seria um aspecto central e definidor

da organização social do gênero, implicando a própria construção e

reprodução da dominação masculina. Para ela é possível distinguir em

todas as sociedades aspectos domésticos e públicos da organização

social. Seria então pertinente definir e articular certas assimetrias

universais dos sexos na organização social do gênero, em decorrência

da maternagem das mulheres. Essa atividade determinaria a posição

das mulheres na esfera doméstica como sendo a principal, gerando a

diferenciação estrutural entre as esferas pública e privada. A dominação

cultural e política da esfera privada pela esfera pública estabeleceria a

dominação masculina sobre as mulheres14.

A ideologia que cerca a atividade de maternar, formulada ao longo

do tempo, tem, ainda hoje, influenciado a dinâmica das relações de

gênero. Sabe-se que não é possível sustentar a separação das esferas

privada (como feminina) e pública (como masculina) como áreas opostas

(auto-excludentes) e hierárquicas, quando na realidade elas se

articulam, se influenciam mutuamente, envolvendo relações que

13 De acordo com Anthony Giddens (1993,1997) a sociedade moderna está vivendo um processo

no qual as tradições só persistem na medida em que se tornam passíveis de justificaçãodiscursiva. O contexto social da atualidade confronta práticas tradicionais com outrastradições e outros modos alternativos de fazer as coisas.

14 O trabalho de Nancy Chodorow está diretamente influenciado por Gayle Rubin, de quemempresta a categoria de análise “sistema sexo/gênero”. Segundo esta autora, o “sistemasexo/gênero” organiza a sociedade em dois gêneros, com domínio do gênero masculino.Referindo-se ainda a Rubin, os cuidados maternos e paternos e a organização da famíliaformariam o núcleo do “sistema sexo/gênero” de qualquer sociedade.

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também são de poder. E, mais do que isso, é preciso considerar que é

no público que muitas decisões sobre o privado são tomadas15.

Chodorow se permite criticar algumas teorias, feministas e não

feministas16, por não questionarem e muito menos explicarem pelo

prisma cultural a reprodução da própria maternagem nas sociedades

modernas. Essa omissão estaria associada à definição corrente em

alguns estudos de que a estrutura da noção de cuidado materno e

paterno é explicativa por si mesma do ponto de vista biológico; levando

os cientistas sociais a reificarem a organização social do gênero e a

considerar como um produto natural e não uma construção social.

É interessante observar que, se de um lado, Chodorow parece

operar uma destradicionalização da maternagem, ao propor uma

construção social, por outro acaba reafirmando a idéia (essencialista e

a-histórica) de que as mulheres sempre cuidaram das crianças. Esse

comportamento social definiria, por sua vez, um processo psicológico

estruturante: mulheres maternam porque sempre foram maternadas

por mulheres. Sua explicação não rompe com argumentos

funcionalistas da teoria dos papéis sociais. Ao contrário, em sua

15 Quando menos se percebe, essa abstrata separação público/masculino, privado/feminino é

reforçada, dificultando avanços teóricos e políticos para a equidade de gênero. Umainteressante discussão crítica sobre o papel do feminismo, em particular do “feminismosocial”, nessa questão é apresentada por Mary Dietz (1998). Esta autora retoma Aristótelespara mostrar que tanto a vida familiar e privada, como a econômica e social estão no âmbitodas decisões políticas e, portanto, públicas: “[o que] ele quer sugerir é que a política é umaexperiência integradora, todos os outros atos e as ações humanas são examinados sob sua luze transformados em sua matéria. (...) que a vida familiar e privada, bem como as práticassociais e os assuntos econômicos, são questões que concernem a uma decisão política. Aspráticas familiares, o controle sobre a propriedade familiar, os direitos das crianças, anatureza das leis sobre a educação e o trabalho das crianças, benefícios para as mãessolteiras, o controle de natalidade - todas estas coisas, gostemos ou não, estão potencialmenteabertas ao controle político e podem ser politicamente determinadas. (...) Este exercício dopoder se estende através de toda nossa vida e determina as condições do que consideramos ‘privado’ e do que consideramos que são objetivos ‘públicos’.” (p. 53-4, tradução livre)

16 Discorda daqueles antropólogos que combinam uma interpretação funcionalista dassociedades coletoras-caçadoras com uma explicação evolucionista do homem. Ou seja, ohomem teria uma composição biológica mais apropriada à caça e as mulheres ao cuidado dosfilhos e à coleta de alimentos. Para a autora essas explicações são questionáveis, uma vez queo comportamento humano é mediado culturalmente e não apenas determinadoinstintivamente. Nem mesmo escapam de suas críticas a psicanálise e teorias psicológicas quereforçam a existência de um suposto instinto maternizante, dando portanto como natural queas mulheres maternem.

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análise, as diferenças sexuais são constitutivas das diferenças sociais

nas relações de gênero.

Elisabeth Badinter

Com o objetivo de mostrar que a relação mãe-filho é apenas mais

uma relação humana entre tantas outras — e portanto, não é nem

essencial, nem inerente às mulheres —, a historiadora Elisabeth

Badinter (1985) em Um amor conquistado: o mito do amor materno17

busca demonstrar que o instinto materno é um mito e que não há

conduta materna universal e necessária. Mesmo sendo passível de

críticas18, especialmente quanto aos argumentos de que a infância não

existia como conceito antes do século XVIII, Badinter foi citada em

inúmeros trabalhos para contestar a maternagem como uma atribuição

feminina universal.

Procurando traçar um panorama histórico, demonstra a oscilação

do comportamento materno entre a dedicação e a indiferença e rejeição,

num período que durou cerca de dois séculos. Descreve como desde

Aristóteles o poder paterno vem acompanhando a autoridade marital,

fundamentado principalmente na idéia da desigualdade natural entre os

seres humanos. Passa pelos escritos da bíblia cristã, que vieram,

posteriormente, reforçar a submissão da mulher à autoridade do

homem. Estado e Igreja, sustentando-se em concepções que defendem a

existência de uma hierarquia natural entre os indivíduos, teriam

arbitrado durante centenas de anos a arena da desigualdade entre

homens e mulheres. Ao homem cabia chefiar a família, os negócios, as

questões políticas, e à mulher, o cuidado dos filhos, o gerenciamento da

casa. A análise histórica operada pela autora revela que durante um

longo período a criança esteve relegada, tanto pela sociedade quanto

17 O título original é L’amour en plus (Paris: Flamarion,1980).18 Ver o artigo de Maria Lygia Q. de Moraes. Infância e Cidadania. Cadernos de Pesquisa. São

Paulo : Cortez; FCC, n.91, nov. 1994.

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pelos estudos históricos e científicos, a um segundo plano. Badinter

ilustra esta afirmação com vários exemplos: a medicina infantil só teria

surgido no século XIX, a literatura até o final do século XVIII pouco se

referia às crianças e a amamentação mercenária era adotada em quase

todas as classes sociais. Comportamentos como esses, associados a um

alto índice de mortalidade infantil, pareceriam algo de escandalosos

para os valores das sociedades ocidentais nos dias atuais, mas não

naquela época19.

O que teria motivado as transformações na sociedade com relação

às crianças, à família e às mulheres? Segundo Badinter, uma das

principais razões teria sido a valorização do ser humano como mão-de-

obra em potencial, produtor de riqueza e garantia de poderio militar.

Datam do final do século XVIII, por exemplo, os primeiros estudos

voltados para a questão demográfica. Ao final desse mesmo século há

uma mudança radical na imagem da mãe: pululam publicações que

recomendam às mães cuidar pessoalmente dos filhos e amamentá-los.

O discurso da igualdade, do amor e da felicidade, de um lado, e o apelo

ao senso do dever, da culpa, da ameaça, de outro, foram os principais

instrumentos ideológicos usados para conduzir a mulher à função

nutrícia e maternante, apregoada desde então como uma manifestação

natural e espontânea.

Essa condição promoveu mudanças de todas as ordens, inclusive

nas relações de poder. Se antes do século XIX o pátrio poder era

inquestionável, podendo ser até mesmo injusto — o pai podia, por

exemplo, deixar toda a sua herança para o filho primogênito, podia

19 Badinter conta, por exemplo, que quase não havia manifestação de luto pela família e, em

algumas regiões, nem mesmo iam ao enterro dos filhos menores de 5 anos, uma vez que amorte infantil era vista como uma conseqüência natural da vida. As mulheres de segmentossociais mais altos, não amamentavam seus filhos e as tarefas domésticas eram rejeitadas pelapouca valorização e pelo não reconhecimento da sociedade. A solução, então, eram as amas deleite, pobres em sua maioria, que além de terem seus próprios filhos para amamentaracolhiam outros bebês, a fim de ampliar o rendimento familiar. Quando crescidas, essascrianças eram geralmente entregues à governanta ou a um preceptor, ou ainda colocadasnum internato.

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decidir o destino das filhas —, a partir daí ele se mantinha, só que

justificado pelo bem-estar da criança. Por outro lado, se muitas

mulheres relutavam às mudanças, outras descobriram que a

maternidade, vista então como uma tarefa necessária e nobre, tornava-

se, de um lado, a porta para o reconhecimento social e, de outro, espaço

de poder nas relações familiares. É o período de pensadores como

Rousseau, Montesquieu, Voltaire e Condorcet. As idéias, desenvolvidas

por Rousseau em sua obra Émile teriam influenciado o comportamento

das mulheres burguesas20. Com o objetivo de estimular e justificar a

maternagem, surgem obras científicas que comparam o amor materno

animal ao humano, exaltando o amor instintivo nos animais, cujas

fêmeas se privam de muitas coisas em função dos filhos21.

Esses discursos moralizantes, segundo Badinter, não foram

suficientes para modificar os hábitos e costumes das mulheres em

geral, o processo de mudança foi longo e lento. Mesmo porque para

muitas delas esse novo comportamento com relação à maternagem

representava a possibilidade de desempenhar um papel mais

gratificante no seio da família e na sociedade. Aleitar o próprio filho, por

sua vez, tornou-se um sinal de modernidade. Mas esse comportamento

é, até meados do século XIX, heterogêneo e variável segundo a classe

social: as burguesas teriam sido as primeiras a incorporar as

mudanças, influenciadas principalmente por Rousseau22; já as

20 A epígrafe na abertura deste capítulo ilustra o pensamento de Rousseau sobre o papel das

mulheres na sociedade da época.21 Estudos comparando a vida de animais de outras espécies com o ser humano são freqüentes

até hoje, numa tentativa de justificar e explicar comportamentos mediante uma naturezacomum. A mídia é pródiga em divulgar informações dessa ordem. Um exemplo é a revelaçãode comportamento homossexual entre animais de várias espécies, inclusive entre os leões,publicada na Revista Superinteressante em 1999. Ver também, Citeli, Maria Teresa. Ciência egênero: a tenacidade das metáforas deterministas. Campinas:IFCH/Unicamp, 1999.(apresentado no Seminário Gênero e Reprodução). (mimeo) e Citeli, Maria Teresa. Fronteirasem litígio: mídia, ciência e humanidades. Campinas:NEPO/Unicamp, 1999. (apresentado noSeminário Saúde Reprodutiva na Esfera Pública e Política na América Latina). (mimeo).

22 O discurso moralizador herdado de Rousseau, segundo Badinter, revelava uma nova imagemde mulher: passiva e submissa, feita para agradar ao homem; elegante e prendada; deveriaaprender a ler e escrever essencialmente o necessário para governar a casa e ser uma boaeducadora.

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aristocratas e as pobres foram as últimas a assimilar o novo perfil

materno.

A interpretação histórica de Badinter procura demonstrar que a

relação mãe-filho não é nem universal e nem natural, tendo sido a

maternagem uma construção social, a partir de interesses sócio-

políticos específicos, entre os quais a sobrevivência das crianças,

necessária para o desenvolvimento da sociedade burguesa.

A autora aponta também o papel da psicanálise e do discurso

médico na consolidação da mulher como personagem central da família

e da maternagem23. Discursos como o de Winnicott, por exemplo, para

quem a boa mãe é aquela que se dedica ao filho, sendo até mesmo a

responsável pela boa paternidade do marido, contribuíram para a

culpabilização das mulheres com relação à maternagem e incitaram,

por outro lado, várias feministas a questionar os fundamentos da teoria

da mãe naturalmente devotada. Mais recentemente, entre alguns

estudiosos da masculinidade, esses argumentos têm contribuído para

explicar por que os homens dominam as mulheres ou por que negam

suas necessidades afetivas.

É o que Pedro Paulo Martins de Oliveira (1998) definiu como

“discurso vitimário”, no qual o homem é visto por alguns autores como

um sexo que também é frágil e sujeito à opressão de gênero. O “homem

vítima” seria fruto de um conjunto de fatores sociais e psíquicos,

corroborados por dados estatísticos alarmantes, como taxas de

homicídios, uso de drogas, incidência de acidentes etc. O não-

envolvimento dos homens no cuidado dos filhos, a falta de expressão

afetiva seria apenas reflexo de sua sujeição a um modelo de

masculinidade e feminilidade, no qual a paternagem estaria fundada em

23 Como foi visto anteriormente, as pesquisas sobre as diferenças anatômicas contribuíram em

parte para a construção de um saber sobre as diferenças de gênero, ao difundir justificativaspara os papéis socialmente distintos para homens e mulheres (Laqueur, 1987).

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outras bases, distintas da maternagem. O distanciamento das

demandas afetivas é, em nossa sociedade, reconhecido como inerente a

um certo modelo heterossexual de masculinidade e que norteia o

comportamento masculino. A crítica a esse modelo e a falta de clareza,

de certeza sobre uma outra forma de comportamento, ou de significados

para certas práticas estaria o cerne da crise da masculinidade. É neste

contexto que surgem tentativas midiáticas (jornais, revistas, filmes) de

estabelecer novos padrões de comportamento, tais como o do homem

que parece gay, se comporta como gay, mas não é. Esse “tipo”

heterossexual seria “admirado” e desejado pelas mulheres, ainda que a

adoção de comportamentos refinados, mais sensíveis não deve, no

entanto, anular a independência, autonomia, capacidade de prover,

segurança (emocional e material) atribuídos ao velho modelo masculino

heterossexual.

Enfim, Chodorow ataca a maternagem mostrando que ela se

reproduz mediante mecanismos psicológicos e sociais estruturalmente

induzidos, Badinter, por sua vez, aponta para o amor materno como um

sentimento não inerente às mulheres, mas fruto de uma construção

histórico-social. Para a construção da maternagem tal como pensada

por ambas, corresponderia também a construção de um certo tipo de

paternagem. Maternagem e paternagem não são apenas relações entre

pais e filhos, mas relações contraditórias entre homens e mulheres. A

dimensão tradicional de maternidade e paternidade pode estar sendo

questionada, mas fica ainda uma pergunta a anuviar minhas reflexões:

por que a organização do trabalho doméstico e a divisão das

responsabilidades familiares é ainda desigual, segundo o gênero?

A invenção social da maternagem, de acordo com Anthony

Giddens (1993), deu forma concreta à idéia de que é a mãe quem deve

atender às necessidades específicas da criança. A maternidade, vista

como uma função natural da mulher, passa a ser o componente central,

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definidor, da identidade feminina. Maternidade e feminilidade são

associadas como sendo qualidades da personalidade. E embora a

dissociação entre sexualidade e reprodução tenha se tornado possível

nos dias atuais, a relação mulher-mãe mantém a sua força no

imaginário e nas representações sociais sobre o gênero feminino24.

Maternidade e feminilidade continuam a se confundir e, segundo Aida

Novelino (1989), recusá-la significaria para muitas mulheres, no

mínimo, desviar-se do curso evolutivo que caracteriza o gênero

feminino, negando-se a experimentar de forma plena a condição de

mulher. As mulheres acabam enredadas no ideal da maternidade: fonte

de realização, prazer e necessidade. É comum a idéia de que filho e mãe

vivem uma relação simbiótica: a mãe “sabe” quando alguma coisa não

está bem com suas crias. Seguindo esse raciocínio, a construção social

da maternidade e da maternagem favorece uma menor participação

masculina no cotidiano familiar.

Operar a desnaturalização de uma evidência biológica – mulheres

procriam, bebês precisam de cuidados por longo tempo, mães

amamentam e por isso maternam (evidência social) – tem funcionado

mais no discurso do que na prática. O ponto está justamente em que

uma necessária divisão de tarefas (relativa à procriação) tem se

estendido a outras dimensões da vida social, definindo e determinando

uma divisão social de trabalho baseada nas diferenças sexuais,

estabelecendo uma desigualdade de gênero que se reflete, por exemplo,

no lugar ocupado pelas mulheres no mercado de trabalho e por

discriminações salariais (Bruschini, Lombardi, 1996) e no lugar

ocupado pelos homens na vida familiar. Isso aponta para as

24 É preciso considerar, todavia, que o advento da pílula anticoncepcional foi importante no

processo de emancipação da mulher nessas últimas décadas. O controle sobre suasexualidade e sobre a procriação ampliou o poder de decisão das mulheres quanto ao seudestino. Elas podem escolher quando ser mãe, quando começar ou parar de trabalhar.

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dificuldades de evitar algum tipo de essencialização quando se discute

maternidade ou mesmo paternidade25 .

Nem a maternagem nem a paternagem existem isoladamente,

ambos são aspectos constituintes da divisão do trabalho por sexos, e,

por conseguinte, encontram-se estruturalmente relacionados a outros

arranjos institucionais e formulações ideológicas que justificam essa

divisão de trabalho. A socialização, por exemplo, é importante na

reprodução da estrutura social e, conseqüentemente, na construção

social de modelos ideais de maternagem e paternagem. Os meios de

comunicação, a distribuição de renda, as escolas e a família, ou seja, as

relações sociais e econômicas, as instituições, os valores e a ideologia,

atuam diretamente na viabilização do cuidado com os filhos pelas

mulheres e não pelos homens. Para Chodorow, a desigualdade de

oportunidades e a menor remuneração das mulheres no mercado de

trabalho, por exemplo, servem como justificativa para explicar de forma

“racional” a divisão de atribuições: as mulheres cuidariam dos filhos e

da família por não compensar financeiramente a sua saída de casa.

Nos dias atuais, a desigualdade de gênero não pode mais ser

explicada apenas segundo essa lógica. Sabe-se que as mulheres estão

inseridas no mercado de trabalho e ocupam vários espaços antes

masculinos e não se limitam a ficar em casa maternando. A decisão,

inclusive, de ter filhos tem sido cada vez mais adiada, cedendo lugar a

outras prioridades, como a carreira profissional. Sabe-se também que o

salários das mulheres, em alguns setores do emprego, tem favorecido a

ascensão social e em outros é fundamental para o sustento familiar.

Ainda assim, os salários, em geral, são mais baixos do que os dos

homens e sua ascensão ocupacional é permeada de obstáculos. Como

explicar de “forma racional” essa disparidade?

25 Parceval (1986) e Corneau (1995) também apontam para o engodo do papel materno.

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Todavia uma outra questão se impõe: a mulher grávida, ao se

olhar no espelho vê barriga concreta e mamas concretas aumentarem;

as contrações, o trabalho de parto, estão longe de ser uma construção

social. Difícil não ceder aos apelos do bebê que precisa ser alimentado,

limpo e acarinhado para sobreviver. Após longa convivência intra-

uterina, como contestar que os cuidados infantis não sejam uma função

feminina? Como contrariar as teses psicanalíticas, religiosas e

pedagógicas de que o melhor para a criança é ser cuidada pela mãe ou,

na impossibilidade desta, por outra mulher? Inventa-se a maternagem,

que transfere o ato de procriar para uma outra atribuição culturalmente

destinada às mulheres: a de cuidar dos bebês e criá-los.

Mais do que isso: no caso específico da sociedade brasileira, a

tradição patriarcal, reforçada pela formação católica, contribuiu para

estruturar, ao longo de nossa história, as relações familiares em uma

rígida divisão de atribuições. Percebe-se que a maternagem se mantém

atrelada a aspectos biológicos (necessidades físicas do bebê que só a

mãe pode satisfazer) e psicológicos (o bom desenvolvimento da criança

depende de uma boa maternagem), em oposição à paternagem que se

define social e culturalmente (o pai deve prover a família e dar-lhe

respaldo moral) e aparece desvinculada do processo reprodutivo.

Não caberia questionar, entretanto, se expressões masculinas tais

como “fiz um filho” ou “ quem foi que te fez...” não estariam indicando

que o homem de alguma maneira está posicionado no processo

reprodutivo? O argumento de que o homem se encontra ausente desse

processo precisaria ser mais bem elucidado. Esta exclusão pode estar

se constituindo culturalmente como parte do processo de diferenciação

e hierarquização dos sexos. Thomas Laqueur (1987) em sua análise

sobre a literatura médica a respeito da anatomia humana mostra como

o conhecimento sobre os corpos, sobre as diferenças físicas,

contribuíram para justificar supostas diferenças morais e de

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comportamento. A própria forma de conceber o corpo é uma construção

social26.

Segundo Laqueur, os séculos XVII e XVIII pontuam a passagem

de um conhecimento teleológico do mundo para uma explicação mais

racional, baseada no conhecimento científico. Foi neste período que o

corpo passa a ser visto como constituído de dois sexos distintos. Até

então os corpos masculinos e femininos não eram definidos por uma

diferença em termos biológicos, mas em termos de grau de perfeição,

compondo uma hierarquia vertical: os orgãos reprodutivos vistos como

iguais em essência, sendo o corpo masculino o padrão. A partir do

Renascimento, o modelo do dimorfismo, da diferença biologicamente

determinada impôs uma anatomia de diferenças incomensuráveis; as

teorias médicas que despontavam, centradas no aparelho reprodutor

feminino, geraram justificativas biológicas que instituíram uma

diferença radical entre o masculino e o feminino (Spink, 1994).

Laqueur nos mostra que a historicidade do corpo, cujo

conhecimento esteve atrelado a demandas específicas, de momentos

históricos específicos, favoreceu a justificação das diferenças de gênero.

A fundação dessas diferenças não estaria mais baseada em algum fator

transcendental, cosmológico, mas na diferença biológica. A ciência, em

franco progresso no período, era convocada a validar o debate

ideológico. A natureza distinta de homens e mulheres fornecia um modo

de explicar diferenças sociais27.

O conhecimento sobre o corpo e a forma como esse saber foi formulado,

destacando a bipolaridade dos sexos, e a persistência ao longo do tempo, na forma como

a diferença entre os sexos é explicada, alerta-nos para a reprodução de modelos auto-

explicativos, como já observei anteriormente: o homem excluído do processo

26 Ver também o artigo de Fabiola Rohden (1998) sobre Laqueur.27 A comparação entre a conformação dos esqueletos de um homem e de uma mulher,

associando a diferença do tamanho do crânio da mulher com uma menor capacidadeintelectual é um exemplo. Ver Laqueur (1987), Rohden (1998) e Citeli (1999).

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reprodutivo porque a gravidez ocorre no corpo feminino, tendo essa exclusão se

espraiado para outras dimensões da paternidade, tal como a educação e o cuidado com

os filhos.

CCuuiiddaarr:: aattrriibbuuiiççããoo ffeemmiinniinnaa??

A noção de cuidar de alguém, na sociedade ocidental, está

associada à figura feminina (mãe, enfermeira, babá, dama de

companhia)28. Bren Neale (1995) observa que mesmo a lei tende a

reforçar essa idéia no caso de disputa dos pais pela custódia dos filhos.

Embora muitos homens venham conquistando não só a custódia dos

filhos como o direito à adoção, a regra geral ainda é o vínculo da mulher

com seu filho, interpretado como um direito “natural”. Esse mesmo

discurso norteia as políticas de bem-estar social, apoiadas no fato de

que, na maioria dos casos, são mesmo as mulheres que cuidam das

crianças e dos velhos.

Para se contrapor a isso, algumas feministas procuraram

problematizar a noção de cuidado. Basearam-se em trabalhos sobre

identidade de gênero, como os de Nancy Chodorow, e em psicólogas

como Carol Gilligan (1982), que desenvolve a idéia de uma “ ética do

cuidado”. Em um destes trabalhos, Joan Tronto (1997) contesta a

concepção de que o cuidado é um atributo feminino intrínseco ao

desenvolvimento moral das mulheres, argumentando que as feministas

“não podem supor que qualquer atributo das mulheres seja

automaticamente uma virtude digna de ser defendida como causa”

(p.187). Tronto distingue duas formas de cuidado: cuidado com/caring

about (forma mais geral de compromisso) e cuidar de/caring for

(implicando um objeto específico, que seria o centro dos cuidados). Essa

distinção é apenas instrumental e permite apreender como o ato de

cuidar pode ser generificado.

28 Ver Carol Gilligan, 1982.

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Tanto homens como mulheres “cuidam”, uma vez que cuidar

envolve responder às demandas particulares, concretas, físicas e

emocionais de outra pessoa ou grupo de pessoas. O que distingue a

forma desse cuidado é que cuidar de refere-se às estruturas privadas,

localizadas particularmente na família29. Não fica difícil, então,

compreender por que muitas atividades femininas envolvem cuidado: as

mulheres cuidam de (dos filhos, dos netos, dos velhos, dos doentes, da

família, enfim). O cuidado com remete a preocupar-se: com o trabalho,

com a família, com a justiça ou injustiça etc. instituindo aí o seu valor

moral. A questão, porém, é quando o cuidar de adquire significado

moral, não pelo fato de se referir à atividade de cuidar de alguém, mas

como essa atividade se reflete nas obrigações sociais atribuídas a quem

cuida e em quem detém essa atribuição, neste caso, as mulheres.

Tronto não localiza nessa lógica um espaço onde julgamentos de moral

têm lugar. E é a esse aspecto e às suas defensoras que as críticas de

Tronto se dirigem, particularmente à psicóloga Nell Noddings, Carol

Gilligan e Sara Ruddick30. O incômodo manifestado por Tronto localiza-

se na pressuposição de que há uma ética diferente das mulheres,

baseada não em princípios morais abstratos, mas expressão da

atividade de cuidar31.

Mesmo que na atualidade as posições de homens e mulheres na

família não sejam mais aquelas definidas segundo o modelo teórico de

Parsons, que distingue claramente as atribuições maternas e paternas,

e no qual a atividade de cuidar se sobressai como atribuição exclusiva

29 Tronto chama atenção para o fato de que “as profissões que proporcionam cuidados são

muitas vezes interpretadas como um apoio ou um substituto para cuidados que não podemmais ser proporcionados dentro da família.” (1997, p.188) É o caso, por exemplo, daenfermagem, da medicina, da docência etc.

30 Noddings, N. Caring: a Feminine Approach to Ethics (Berkley: University of California Press,1984); Gilligan, C. In a Different Voice (Cambridge: Harvard University Press, 1982) eRuddick, S. Maternal Thinking (Boston: Beacon Press, 1989).

31 Destaco o livro de Marília Carvalho (1999) como outra referência de uma análise crítica dasconcepções de Noddings e Gilligan, e de suas influências no feminismo da diferença e naeducação. Carvalho está particularmente interessada em compreender o trabalho docente nasséries iniciais do ensino fundamental, espaço privilegiado de atuação feminina (mas não só) e

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das mulheres, a força dessa estrutura parece ainda se manter. Mais

ainda, soma-se a ela um modelo idealizado de maternagem e

paternagem, difundido pela mídia e referendado por teorias

psicologizantes, que não correspondem à realidade social. Na mídia, a

figura de um homem cuidador está quase sempre associada à imagem

do efeminado, ou então do homem pouco habilitado para uma tarefa tão

bem executada pelas mulheres, como observou Benedito Medrado

(1998) em sua análise dos comerciais televisivos veiculados em âmbito

nacional por uma rede de grande audiência, ao longo de 1996. Ou seja,

a atividade de cuidar ainda aparece como um delimitador de atribuições

e responsabilidades. E se observarmos ao redor, de fato, as atividades

que envolvem cuidado são maioritariamente exercidas por mulheres.

Diante desse quadro, como situar a paternagem?

PPaatteerrnnaaggeemm ee mmaatteerrnnaaggeemm:: aa ccoonnttrraaddiiççããoo nnaa ddiivviissããoo ddaass ttaarreeffaass

Segundo Eunice Durham (1983), todas as sociedade apresentam

uma divisão de trabalho baseada na diferença entre homens e

mulheres, no que é masculino e feminino. Essa divisão se constituiria

em torno de uma tendência praticamente universal de separação da

vida social: a esfera pública, associada ao homem (a política e a guerra)

e a esfera doméstica, privada, vinculada à reprodução e ao cuidado com

as crianças. Atribuir a todas as culturas os mesmos critérios para a

separação entre as esferas pública e privada é, no mínimo, precipitado.

Contudo, é possível concordar com a autora que a divisão sexual do

trabalho se constrói socialmente a partir das diferenças biológicas,

sendo que cada sociedade organizaria e modificaria essa divisão de

modo a ressaltar ou suprimir as características que possuem

fundamentação biológica de acordo com valores, costumes e

interpretações específicas. A maternidade, por exemplo, pensada como

desenvolve sua análise problematizando a inter-relação entre a atividade docente e a noção de

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uma capacidade natural e exclusiva das mulheres, em algumas

sociedades se constitui como base para a divisão do trabalho entre os

sexos, estabelecendo posições diferenciadas para homens e mulheres

na sociedade.

Nas sociedades ocidentais, segundo Durham, o modelo tradicional

de divisão sexual do trabalho determina que o trabalho remunerado é

função do marido, chefe de família, que, portanto, deve prover o

sustento dos membros. As mulheres são responsáveis pelo trabalho

doméstico e pelas crianças. Esse modelo tradicional, observa a autora,

vem se mantendo, apesar de as mulheres estarem sendo motivadas a

buscar ocupações remuneradas dentro ou fora de casa. Essas

atividades, contudo são complementares ao orçamento doméstico,

preservando, pois, a posição de subordinação da mulher na família e na

sociedade. Durham localiza aí uma ambigüidade: a conquista pelas

mulheres do direito à igualdade na esfera do trabalho se mantém ao

lado de sua desigualdade como mulher, porque ancorada na esfera da

reprodução.

Esses argumentos revelam, por outro lado, que se a esfera da

reprodução é atribuída à mulher, o homem é excluído como co-

participante, contribuindo para naturalizar a diferença entre os sexos e

justificar a maternidade como uma atribuição feminina e para reafirmar

a desigualdade entre homens e mulheres em relação ao espaço privado.

A divisão de tarefas baseada em diferenças sexuais foi apontada por

alguns teóricos (entre eles Parsons) como um exemplo de

complementaridade das funções, não havendo, portanto, uma

hierarquia das atividades, dada a dependência recíproca de ambas as

esferas, pública e privada.

cuidado como uma característica intrínseca do gênero feminino.

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A disseminação de técnicas contraceptivas permitiu a liberdade

sexual e a autonomia em relação à reprodução, em parte garantindo a

individualidade das mulheres. Somente em parte, uma vez que a

responsabilidade social associada à maternidade e à paternidade

continua sendo um entrave à igualdade entre os sexos. Curiosamente,

as diversas propostas de solução para a questão dos filhos acabam

reforçando a desigualdade entre os sexos. Durham (1983) nos fala das

estratégias dos movimentos hippies e dos Kibutzin, que encontram na

coletivização do cuidado infantil a solução para promover a igualdade

entre homens e mulheres e garantir a liberdade individual. Ou ainda

outras propostas que colocam nas mãos do Estado a responsabilidade

de prover a assistência necessária para atender as crianças e liberar a

mulher para o mercado de trabalho. Todas essas soluções tendem a

privilegiar a participação igualitária das mulheres no mercado de

trabalho e a liberação de sua sexualidade, mas também, retiram do

casal a responsabilidade com a prole.

Em nossa sociedade cobra-se do Estado auxílio tanto para

garantir a liberdade sexual das mulheres, através da implantação do

planejamento familiar e de técnicas reprodutivas, como de participação

no cuidado infantil por meio de creches e/ou escolas em tempo integral,

para que as mulheres possam trabalhar. Durham vê aí a persistência

de um conflito básico marcado por dois aspectos: a livre expressão da

individualidade (que pode enfraquecer o vínculo conjugal) e a

responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns (que exige o

fortalecimento do vínculo conjugal). Para ela,

A competição individual de cada cônjuge no mercado detrabalho estabelece para cada um deles, separadamente, umconflito entre o tempo dedicado às tarefas domésticas e otempo de trabalho e do lazer, que pode se refletir numa lutainterna à família no sentido de fazer com que ‘o outro’ assumauma carga doméstica maior. Na inexistência de novos modelosestáveis, o estabelecimento de padrões de divisão do trabalhona família fica na dependência do confronto interpessoal entre

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os cônjuges, criando uma enorme área de conflito abertopossível (p.40).

A meu ver, o conflito pode ser também um momento de barganha, de

negociação, diversificando as formas de distribuir as responsabilidades

e tarefas concretas. É neste contexto que as relações conjugais e os

arranjos familiares na sociedade contemporânea devem ser analisadas.

É preciso observar quais os critérios que têm sido usados por homens e

mulheres para negociar suas relações, sejam elas familiares ou

pessoais. Avento até mesmo a possibilidade de que a divisão atual das

funções parentais pode estar sendo redefinida, mantendo-se entretanto

uma seleção generificada das atividades, que não é necessariamente

complementar, mas fruto de negociações e de condições sociais

concretas.

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CCaappííttuulloo 22

AA ppaatteerrnniiddaaddee eemm ffooccoo

Na tentativa de desvincular o cuidado infantil da maternidade e

associá-lo também a uma atividade realizada pelo pai, a paternidade

vem sendo pesquisada sob diferentes prismas. Em muitos casos, esses

estudos são tributários das concepções de Chodorow na idéia de que a

participação masculina na socialização primária das crianças é a única

forma para alterar a representação corrente da maternagem; ou seja,

bastaria que mulheres e homens mudassem seu comportamento para

que a história da desigualdade de gênero fosse outra. Além disso,

embora as pesquisas empíricas constatem alguma tendência para

transformações nas relações parentais, até mesmo um maior

envolvimento masculino, a maioria desses estudos continuou

apontando um comprometimento das mulheres com os seus filhos

maior que o dos homens32.

Essas reflexões, reforçam a idéia de que, em nossa sociedade, a

dimensão econômica da paternidade é socialmente reconhecida e

valorizada. Embora muitas vezes homens e mulheres sejam hoje em dia

responsáveis ambos pelo sustento do grupo familiar, ainda é possível

sustentar o argumento de que socialmente espera-se que o homem seja

o principal provedor e o chefe da família. Os dados demográficos

ilustram essa afirmação: são eles que lideram como chefes de família.

Na cidade de São Paulo, segundo a Pesquisa de Condição de Vida –

PCV, realizada pelo Seade para 1994, taxa de distribuição das famílias

segundo o sexo do chefe era de 78,4% para os homens e 21,6% para as

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mulheres. Essa mesma pesquisa realizada em 1998, indicava para a

Região Metropolitana de São Paulo um percentual de 77,1 de homens

chefes de família contra 22,9 de mulheres. Esses dados mostram que,

provavelmente, mesmo entre as famílias de “dupla carreira”, isto é,

famílias nas quais ambos os cônjuges têm atividade remunerada (e,

possivelmente, dividem as despesas e responsabilidades familiares), o

homem continua sendo nomeado como o chefe33. O status masculino é

definido pelo seu sucesso profissional e pela chefia da família, e o

desempenho da paternidade está atrelado a esses fatores (exemplo disso

é o impacto que o desemprego causa sobre o homem e sobre a família).

Embora o status da mulher “moderna”, de certa maneira, também se

defina como o masculino, ainda está marcado pelo sucesso em articular

trabalho profissional e família, mais especificamente a responsabilidade

pelos filhos.

EEssttuuddooss ssoobbrree ppaatteerrnniiddaaddee

Se há uma vasta produção sobre maternidade e sobre famílias,

pouco foi produzido sobre paternidade no Brasil34. Foram localizadas

dezenove teses e dissertações, a maioria delas na área de psicologia

social e de jurisprudência, como os próprios temas indicam: Ausência

paterna: correlatos cognitivos e de personalidade dos filhos na idade pré-

escolar, CAMPOS, J. C. (1979); Políticas de controle de natalidade e

ideologia da paternidade responsável, OLIVEIRA, Célia C. de (1983); Os

preconceitos sobre o papel, dever e direito do pai na legislação brasileira:

um estudo psicológico, ALMEIDA, Heloisa A. D. R. de (1985);

32 A maioria das pesquisas consultadas sobre famílias de camadas médias (anos 80 e 90) e

mesmo sobre paternidade, aponta para a mesma tendência: Bruschini (1990); Salém (1980);Romanelli (1986); Quadros (1996) entre outros.

33 Sabe-se que a partir do Censo de 1980, o recenseador deve instruir o informante sobre atarefa de designar a pessoa que acredita ser a chefia familiar, isto é, cabe ao informanteindicar quem considera como a pessoa de referência na família. (Bruschini, 1998).

34Informações completas, ver em Referências Bibliográficas. Parte desse levantamento foirealizado por Jorge Lyra para sua pesquisa de mestrado, em Psicologia Social, sobre apaternidade adolescente, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Paternidade: uma forma de existir, CARUSO, Ilda A (1986); Reflexões

sobre o pai: um estudo sobre a construção da paternidade na história de

vida e no desenvolvimento do sujeito, CARVALHO, Lilian A (1989); Pai

divorciado: auto-percepção de seu papel paternal antes e após o divórcio,

BREDA, Virgínia B. dos S. (1991); Paternidade: um enfoque evolutivo do

homem-menino ao homem-pai, DIAS, Isabel M. Q. (1991); Paternidade

presumida: do código civil a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal,

FACHIN, Luiz Edson (1991); Papel da figura paterna na formação da

personalidade: um estudo com adolescentes toxicômanos, SILVA, Alzira

S. B. P. da (1991); A construção do papel paterno, STINGEL, Ana

M.(1991); As representações sociais da paternidade e da maternidade:

implicações no processo de aconselhamento genético, TRINDADE, Zeide

A.(1991); Paternidade negada: contribuições ao estudo sobre o aborto,

VON SMIGAY, Karin Ellen (1992); Ser/estar pai: uma figura de

identidade, MACIEL, Alexandrina A.(1994); Paternidade em

transformação: o pai singular e sua família, SOUZA, Rosane M. de

(1994); Pais e filhos: uma relação co-construída, CRUZ, Elaine V. de

A.(1995); A experiência de ser pai de uma mulher, MATOS, Diva M. S.

(1995); Construindo uma nova paternidade? As representações

masculinas de pais pertencentes às camadas médias em uma escola

alternativa do Recife, PE , QUADROS, Marion T. (1996); A paternidade

ativa na separação conjugal, SILVA, Evani Z. M. (1996); Paternidade

adolescente: uma proposta de intervenção, FONSECA, Jorge LYRA da

(1997).

Ao acompanhar o fluxo desta produção, percebe-se que nos anos

90 o tema da paternidade ganha um fôlego especial, aglutinando a

maioria das pesquisas desenvolvidas. É também neste período que o

tema da masculinidade aparece com maior ênfase, tanto na academia

como na mídia. Até então nos estudos sobre a vida privada a fala de

mulheres de diferentes camadas sociais é predominante. São poucas as

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informações sobre o impacto do processo de modernização reflexiva35 na

vida privada dos homens. Sobre a intimidade masculina paira um

quase silêncio, quebrado apenas por pesquisadores/psicanalistas que

chamam atenção para uma “crise da masculinidade”. Pedro Paulo

Martins de Oliveira (1998) já havia chamado atenção para uma dada

característica na emergência deste tema entre alguns autores: “a

percepção de uma crise no modelo de comportamento masculino

socialmente sancionado”, com ênfase em supostas prescrições sociais

impostas ao gênero masculino. Além disso, a ausência de informações,

de dados sobre os homens (em particular sobre sua vida reprodutiva e

sexual e sobre sua participação na esfera privada) também estimulavam

o interesse por uma área de reflexão interdisciplinar, denominada nos

Estados Unidos e em alguns países da Europa, como Men’s Studies.

Na América Latina, incluindo o Brasil, o assunto ganha força na

década de 90 mediante pesquisas de mestrado e doutorado,

publicações, eventos e concursos de incentivo à pesquisa sobre

masculinidades36. Vários pesquisadores reúnem às suas próprias

reflexões e publicações, artigos de autores anglo-saxãos, que tornam-

se referências constantes em estudos sobre os homens e sobre a

masculinidade, entre os quais: ARANGO, Luz G., LÉON, Magdalena,

VIVEROS, Magdalena (org.). Género e identidad: ensayos sobre lo

femenino y lo masculino, 1995; VALDÉS, Teresa, OLAVARRIA, José

(eds.). Masculinidad/es: poder y crisis, 1997; VALDÉS, T. &

35 Para Giddens (1993, 1997),a sociedade moderna vem passando por etapa que denomina de

“modernização reflexiva” e de “destradicionalização”, referindo-se a uma ordem social na quala tradição muda de status, mas não desaparece. Compartilhando dessa idéia, Ulrich Beck(1997) argumenta que a sociedade moderna em seu dinamismo tem transformado suasformações de classe, os papéis sexuais, as relações familiares, os modos de produção, aorganização do trabalho – num processo de destruição e reconstrução fruto da auto-confrontação dos indivíduos com o processo de globalização e o dominio de determinadascertezas da sociedade industrial que ainda povoam o pensamento e a ação das pessoas, comopor exemplo o consenso para o progresso ou a abstração dos efeitos e dos riscos ecológicos(1997, p. 16).

36 Arilha, Ridenti e Medrado (1998); Heilborn e Carrara (1998) contextualizam o interesse poresse assunto no Brasil. Para América Latina ver Valdés e Olavarria, 1998.

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OLAVARRIA, J. (eds.). Masculinidades y equidad de género en América

Latina, 1998.

Estas coletâneas incluem artigos de autores americanos e

europeus, cujas principais obras — KIMMEL, Michael S. (ed). Changing

men: new directions in research on men and masculinity,1987;

KIMMEL, Michael S., MESSNER, Michael. A (orgs). Men’s Lives. 1994;

CONNELL, Robert W. Masculinities: knowledge, power and social

change. 1995; CONNEL, Robert W. Políticas da masculinidade. 1995

(artigo traduzido); ALMEIDA, Miguel Vale de. Senhores de si: uma

interpretação antropológica da masculinidade. 1995; BOURDIEU,

Pierre. La Domination Masculine. 1998 (traduzido para o português em

1999, pela Editora Bertrand do Brasil)37 — vêm subsidiando pesquisas

brasileiras, além de serem também objeto de reflexões críticas38,

consolidando o tema da masculinidade entre os estudiosos das relações

de gênero no Brasil.

Em parte, essa temática surge como reflexo do desenvolvimento

que os estudos feministas e de gênero alcançaram desde a década de

1970 e que demonstravam a necessidade de novas e diferentes

estratégias para maior eqüidade entre homens e mulheres bem como,

para expressão das sexualidades e subculturas sexuais. Os modelos

hegemônicos de masculinidade e feminilidade heterossexuais como via

única na conformação das identidades sexuais e dos comportamentos

têm sido colocados em xeque. Em minha pesquisa, optei em não

abordar a (vasta) literatura que discute o conceito de masculinidade(s),

suas limitações e possibilidades para os estudos de gênero. Contudo,

pareceu-me importante registrar alguns do principais autores que têm

37 O arrolamento destas referências bibliográficas apenas ilustra e contextualiza o tema da

pesquisa; não é pois exaustivo, destaca, no entanto, obras mais recorrentes, citadas nostextos consultados.

38 Garcia (1998); Oliveira (1998); Heilborn, Carrara (1998), Correa (1999) entre outros.

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influenciado as discussões sobre o assunto, na medida em que

subsidiam as pesquisas sobre paternidade.

Completa o levantamento uma série de artigos e livros de autores

americanos, europeus e latino-americanos, onde a paternidade e o

envolvimento masculino com os filhos vêm sendo estudados mais

atentamente há pelo menos duas décadas39. Boa parte desta

bibliografia tem subsidiado as pesquisas no Brasil.

Os estudos sobre a paternidade poderiam ser classificados em,

pelo menos, dois recortes: 1) estudos de caráter histórico40 (incluindo

uma abordagem a partir da mitologia); 2) estudos sobre identidade

masculina. Dentre esses últimos, alguns trabalhos fundamentam-se

sobretudo em depoimentos autobiográficos41, numa tentativa de

mostrar que é perfeitamente possível ao homem falar de suas

experiências cotidianas e conflitos pessoais; mesmo não

intencionalmente, tendem a essencializar a masculinidade,

generalizando uma experiência que pode ser socialmente distinta.

Os estudos sobre identidade masculina são uma interface das

discussões sobre paternidade. Ser ou não pai, biológico ou não, é um

dos elementos que caracterizam, em cada cultura, de maneiras

distintas, a identidade masculina. Os estudos sobre o “novo pai” direta

ou indiretamente acabam remetendo à existência de um “novo homem”

39 Ver Lamb (1982); Lamb, Sagi (1983); Lamb (1983); Eisikovits (1983); Jalmert (1990); Näsman

(1990); Combes, Devreux (1991); Singly (1993); Sachs (1994); Engle (1995); Evans (1995);Neale, Smart (1995).

40 A partir de uma perspectiva histórica há o livro de Jacques Dupuis: Em nome do pai: umahistória da paternidade. São Paulo : Martins Fontes, 1989. Trata-se de uma análise históricaque atribui ao período neolítico a descoberta da paternidade. Para o autor teria sido no quintomilênio que egípcios e indo-europeus se conscietizaram do papel do homem na procriação.Esse conhecimento teria dado origem à revolução social que subverteria particularmente asestruturas familiares, a vida sexual, as religiões e suas mitologias. Sobre um análise dapaternidade a partir da mitologia ver Colman, Arthur, Colman, Libby. O pai: mitologia ereinterpretação dos arquétipos. São Paulo : Cultrix, 1991.

41 Cito como exemplo na literatura brasileira: Gadotti (1985); Montgomery (1992); Von (1992),Nolasco (1993, 1995). Nos EUA a principal referência do denominado “movimento mitopoético”é o best seller Iron John, de Robert Bly, traduzido no Brasil como João de Ferro. Rio deJaneiro : Campus, 1991.

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e evidentemente problematizam o modelo de masculinidade

hegemônico42.

Ao contrário dos estudos sobre mulheres, as pesquisas sobre

paternidade não surgiram exatamente a partir de reflexões sobre a

condição masculina, menos ainda sobre a opressão masculina. Em

geral, enfatizam as conseqüências da ausência paterna ou do divórcio

na relação pai-filho e, em alguns casos, não deixam de lado

preocupações quanto aos efeitos da paternidade no desenvolvimento

moral da criança e na definição da identidade sexual heterossexual

(Lamb, 1982). Curiosamente, a ênfase parece recair muito mais na

necessidade de ampliar a presença física e simbólica do pai —

referência para modelar comportamentos e minimizar os efeitos de uma

ausência no ajustamento psicológico das crianças —, e menos na crítica

ao modelo de estrutura das relações de gênero.

A influência da psicologia nesses estudos é bastante evidente. De

maneira geral, a paternidade é focalizada a partir de dois eixos que

destacam: 1) uma suposta mudança na identidade masculina e nas

relações familiares — o “novo homem” e o “novo pai” são expressões

recorrentes; 2) a necessidade do envolvimento masculino na vida

familiar e com os filhos, como meio de viabilizar transformações nas

relações de gênero, além de atender às necessidades básicas das

famílias, particularmente das crianças43.

42 Sobre esse assunto consultar: Connel (1995); Kimmel (1987; 1992); Almeida (1995); No

Brasil, Medrado (1998); Oliveira (1998); Nolasco (1995); Nascimento (1999) entre outros.43 Judith Evans (1995) conta que em 1994, Ano Internacional da Família, discutiu-se em vários

países a respeito das políticas sociais que pudessem auxiliar famílias carentes. Em geral,essas políticas são voltadas para as mulheres e crianças (e por isso as políticas sociais parafamílias acabavam sendo vistas como uma questão das mulheres), mas nesse a ênfase dasdiscussões foi a importância do homem para a vida das crianças. Uma recomendação doConselho de Ministros Europeus sugeria a promoção e o encorajamento de uma maiorparticipação masculina na vida familiar. Isso implicaria em discutir o envolvimento de homensem serviços para as crianças, uma mudança cultural do ambiente de trabalho de forma aapoiar esse envolvimento no cuidado infantil, atuação junto à mídia como divulgador daimportância dessa participação etc.

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Nas pesquisas sobre o “novo pai”, a “nova paternidade” e mesmo

“novo homem”, o psicólogo Michael Lamb aparece como a principal

referência entre os que pontuam as mudanças contemporâneas nas

relações parentais a partir de uma participação mais efetiva dos

homens no cotidiano familiar. Lamb e seus colaboradores (1983) têm

enfatizado a necessidade de analisar mais detidamente a atuação do

homem na família e de investimentos em políticas sociais para dar

suporte à participação masculina. O tema da paternidade tem sido

também abordado por pesquisas que relacionam identidade masculina e

paternidade. Há uma tendência, nestes casos, a situar as discussões

sobre uma suposta “nova paternidade”, com o surgimento de um “novo

homem”, configurando uma “nova heterossexualidade”, da qual faz

parte a crítica a uma masculinidade hegemônica que se pensa no

singular.

Numa perspectiva não muito distinta, no Brasil, Sócrates Nolasco

(1995) reforça os estudos sobre a paternidade, em especial os mais

recentes, que procuram desmontar um modelo tradicional de pai e de

masculinidade, questionando denominações tais como “bom pai”, “pai

honrado”, “pai provedor”, que se sobrepõem a expressões como

virilidade, iniciativa e objetividade. Há um esforço em afirmar a

importância do envolvimento paterno com o filho: “do vínculo da

obrigação passa-se para o vínculo de afeto e prazer”. Autores como

Nolasco têm-se preocupado em questionar o papel masculino na

sociedade contemporânea, que restringe e constrange as subjetividades

masculinas, propondo um outro modelo de comportamento, que não

aquele do “homem máquina”.

Outra tendência nos estudos é a de explorar as denominadas

famílias não-tradicionais (Lamb, 1982), nas quais os homens têm maior

ou igual responsabilidade pelo cuidado diário com seus filhos,

motivados por um novo estilo de vida ou porque ambos, homem e

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mulher, trabalham em tempo integral. Algumas pesquisas mostram que

os efeitos dessas mudanças não são tão perversos quanto poderia se

supor. Graeme Russel (1982) constata, por exemplo, que nas famílias

australianas em que homens e mulheres trabalham fora, o pai tende a

contribuir mais no cuidado com as crianças do que os maridos de

mulheres que não trabalham44. Outra pesquisa, realizada por Phyllis

Moen (1982), mostra que homens cujas mulheres trabalham

despendem 1,8 hora em trabalho doméstico e 2,7 horas no cuidado com

os filhos por semana a mais do que maridos de mulheres que não

trabalham. Cabe destacar que a natureza do trabalho de cada cônjuge,

que afeta, por exemplo, a disponibilidade de tempo, interfere na forma

como ocorre a divisão do trabalho doméstico.

Mais recentemente, na década de 90, as discussões sobre

maternidade e paternidade têm sido influenciadas especialmente pela

introdução de novas tecnologias reprodutivas e suas implicações para

os direitos reprodutivos e para a saúde das mulheres. A crescente

interferência da medicina procriativa tem fomentado um novo leque de

discussões e estudos, reavivando as indagações sobre a dicotomia

natureza (feminino) e cultura (masculino). Certos autores destacam a

polêmica provocada pelo desenvolvimento de algumas tecnologias

reprodutivas como formas de apropriação pelos homens do corpo

reprodutor feminino e conseqüentemente das crianças, ou então como

forma de questionamento da paternidade e da maternidade45. A essas

discussões, somam-se pesquisas sobre identidades sexuais, vida

reprodutiva e sexualidade masculina, e questões relacionadas à

violência.

44 Na pesquisa de Graeme Russel (1982) com famílias australianas, dentre os motivos

apontados para a opção de um estilo de vida no qual as responsabilidades com os filhos sãodivididas, 6 famílias disseram que era porque o marido estava desempregado, 19 por causados benefícios financeiros, 12 por causa da carreira (inclusive da mulher), 13 pela crença deque essa é uma tarefa que deve ser compartilhada.

45 Mais adiante irei explorar essa questão a partir da análise de Marilyn Strathern do impactodas tecnologias reprodutivas sobre a cultura urbana contemporânea, naquilo que tange oparentesco, a paternidade e maternidade (ver também: Ferrand, 1989; Scavone, 1995).

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A paternidade tem sido objeto de investigação de autores também

preocupados com o crescimento, nas famílias carentes, do desemprego

masculino — muitas vezes apontado como uma das causas da

desagregação familiar — e das famílias chefiadas por mulheres —

fenômeno associado à pauperização das mulheres. Essas pesquisas, em

geral, visam subsidiar políticas sociais, especialmente para os países do

Terceiro Mundo. Nessas abordagens o homem é apontado como um ator

importante para a saúde e para o desenvolvimento infantil.

Argumentam, por exemplo, que os homens, em muitas sociedades, ao

ocuparem espaços de poder fora da família, atuando como líderes

religiosos, comunitários, como professores, agentes de saúde etc. podem

contribuir para a implementação de programas sociais (Evans, 1995,

Mundigo, 1995).

No Brasil, as pesquisas sobre paternidade não diferem

substancialmente das anteriormente citadas. A maioria delas situa-se

no campo da psicologia social e sustenta seus argumentos a partir das

concepções de Nancy Chodorow e Michael Lamb.

A idéia de que uma “nova paternidade” estaria surgindo situa

várias dessas pesquisas numa mesma linha de argumentação: a da

paternidade como um momento de redefinição do lugar do homem na

família e na sociedade contemporânea. Esse homem é marcado por

ambigüidades, por conflitos etc., pois atrelado a valores tradicionais. A

literatura psicológica tende a analisar a paternidade a partir do impacto

de uma participação mais ou menos efetiva no desenvolvimento infantil

e a partir dos efeitos do divórcio e a conseqüente disputa pela custódia

dos filhos. A participação dos homens no pré-natal e durante o parto é

definida como um marco na passagem para a “nova” paternidade

(Souza, 1994).

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Karin Von Smigay (1992), por exemplo, investiga a “paternidade

negada” a homens de camadas médias e altas, cujas parceiras

praticaram aborto. Esta psicóloga destaca que a vivência da gravidez

intensifica um sentimento de ambivalência em relação ao próprio pai,

com manifestação de disputa e inveja da capacidade geradora da

mulher. Há uma reativação dos conflitos relativos à sexualidade e

sentimentos de incapacidade quanto ao papel paterno. Esses

fenômenos são denominados por ela de “psicose da paternidade”. A

paternidade é analisada como um ritual de passagem marcado por

conflitos e expressões de afetividade.

Focalizando o impacto das experiências vividas por homens na

construção da paternidade, Ilda Caruso (1986) analisa o depoimento de

dez homens, com diferentes níveis de escolaridade e origem sócio-

econômica. A partir de uma perspectiva psicológica, conclui que a

paternidade é representada como possibilidade de garantir a

continuidade genética, sendo o filho o meio dessa perpertuação;

significa crescimento, reajustamento psicológico e independência em

relação à família de origem.

Investigando o processo de transformação da identidade

masculina, a partir da paternidade de homens que ficam com a

custódia dos filhos após o divórcio, Rosane M. Souza (1994) observou

que os homens entrevistados por ela de início concentravam-se na

organização da casa e no ajuste da rotina dos filhos, perseguindo na

vida familiar um padrão semelhante ao do mundo do trabalho; depois,

diante das necessidades afetivas dos filhos, as dificuldades favoreceram

um funcionamento familiar mais flexível e incitaram a um processo de

transformação individual, sem, contudo, questionamento da função de

provedor. Para Souza, o fato de os homens não lutarem pela custódia

dos filhos após a separação reforça a idéia de que a paternidade diz

respeito mais à satisfação pessoal de ter um filho (reafirmação da

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masculinidade e, mais do que isso, a garantia da perpetuação) e menos

ao desejo de estabelecer uma relação concreta com o filho.

As representações de paternidade a partir de uma perspectiva de

trajetória de vida, isto é, a relação avô-pai-filho, foram investigadas por

Lilian A. Carvalho (1989). Segundo suas conclusões, muito do padrão

da família de origem permanece, mesmo quando as mulheres trabalham

fora. A aproximação com os filhos é maior do que em relação à família

de origem e se expressa num diálogo mais aberto.

No campo da saúde, destacam-se dois trabalhos: o de Célia C.

Oliveira (1983) e de Alexandrina Maciel (1994). O primeiro faz uma

análise do sentido ideológico da política de controle da natalidade no

período das décadas de 1970 e 80 no Brasil. Já Maciel, focalizando a

gravidez e o parto, entrevista pais e profissionais da saúde com o intuito

de verificar a possibilidade de uma nova definição para o “ser homem”.

Suas considerações finais indicam que, embora o homem esteja

receptivo às transformações (participando do processo de gestação e do

parto), ele ainda está preso ao estereótipo masculino representado na

figura do pai protetor e provedor material.

Numa perspectiva antropológica, Marion T. de Quadros (1996)

investigou as representações masculinas do papel de pai e de mãe no

cotidiano de famílias de camadas médias recifenses. Procurou verificar

a existência ou não do fenômeno da “nova paternidade” e de como

ocorre o envolvimento e a participação do pai no cotidiano familiar.

Conclui que os pais mais participativos tendem a apresentar maior

proximidade e afinidade com o cônjuge e com os filhos, porém a maioria

dos pais que entrevistou participava pouco do cotidiano familiar,

reafirmando relações conjugais assimétricas e conflituosas.

A gravidez na adolescência tem sido um tema vastamente

abordado, mais especificamente como um fenômeno social afetando

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precocemente a vida de milhares de meninas, contudo a paternidade

adolescente tem sido pouco explorada. Pretendendo suprir essa lacuna,

Jorge Lyra (1997) não só desenvolveu uma pesquisa sobre o menino

adolescente e sua vida sexual e reprodutiva, como elaborou uma

proposta de intervenção específica nesse grupo. Trata-se do projeto

Paternidade Adolescente: Construindo um Lugar, desenvolvido com bolsa

individual do Fundo de Capacitação e Desenvolvimento de Projetos da

Fundação MacArthur (1997-1999). O projeto resultou no Programa

PAPAI, que tem promovido ações e estudos em saúde e relações de

gênero. As ações estão voltadas particularmente para a participação de

jovens adolescentes (com ênfase na população masculina de Recife,

Pernambuco) no campo da sexualidade e reprodução. A iniciativa de

Lyra se coaduna com uma proposta mais ampla de organismos

internacionais de promover políticas sociais de atendimento à

população masculina quanto às demandas saúde, sexualidade e

reprodução, sem contudo, neste caso, deixar para um segundo plano a

reflexão teórica46.

O lugar do pai

Procurei apresentar um sucinto panorama da produção

acadêmica sobre paternidade. Alguns desses estudos discorrem a

respeito das vantagens, tanto para os homens como para as mulheres e

as crianças, de um maior envolvimento masculino com as atribuições

familiares. Se há vantagens é preciso pensar em como se constitui o

lugar do pai na família contemporânea.

Estudos etnográficos revelam que em todas as sociedades há

sempre alguma forma de organização do trabalho, no interior da qual os

homens participam na criação dos filhos. Margaret Mead (1971), por

46 Para maiores informações consultar o site: http://www.ufpe.br/papai.

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exemplo, interpreta como uma conduta nutridora do homem a busca

por alimentos para a mulher e a prole47. O homem aprende que deve

alimentar e cuidar daqueles que fazem parte do seu núcleo de

convivência, podendo ser a família consangüínea ou não. Em muitas

culturas, o pai representa uma importante figura na educação e

formação do jovem, em especial dos meninos, não só no aspecto moral,

mas de aprendizado dos costumes, tradições e ofícios. Rivka Eisikovits

(1992) cita o exemplo dos esquimós que levam seus filhos de 6 e 7 anos

para as caçadas, assim como os Kpelle da Libéria. A atividade dessas

crianças consiste em observar os adultos e eventualmente ajudar em

alguma coisa, iniciando seu aprendizado. Outro autor (Evans, 1995)

lembra os costumes dos muçulmanos, cujas mulheres raramente

podem sair de casa. O pai muçulmano é o elo da criança com o mundo

fora da casa, é ele quem a leva para a escola e o médico. O pai precisa,

neste caso, saber quais são as necessidades de seus filhos. No entanto,

esse envolvimento paterno não se traduz em relações mais igualitárias

(ao menos segundo uma concepção ocidental de igualdade de gênero);

ao contrário, nesse caso, a ideologia religiosa reforça a distinção de

gênero: homens na rua (na vida pública/política), mulheres em casa.

A organização do trabalho e a concepção de que as mulheres e as

crianças devem ser sustentadas e protegidas variam de cultura para

cultura; em nossa sociedade, por exemplo, o padrão é geralmente o do

homem sustentando sua família biológica. No entanto, o crescente

número de famílias chefiadas por mulheres que assumem as

responsabilidades pelos filhos demonstra a exigüidade do tempo de

relação pai-filho nas sociedades contemporâneas, podendo facilmente

ser abolida, ao contrário do elo mãe-filho.

47 Na sociedade trobriandesa, estudada por Malinovski, o homem também desempenha uma

função nutriz. No intercurso sexual com uma mulher grávida, o homem garante odesenvolvimento do feto, dá-lhe forma e feição, é, portanto, nutridor e criador (Ver Strathern,1995).

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Recentemente, tal exigüidade, aliada às novas tecnologias

reprodutivas, veio à baila com a polêmica da “Síndrome do Nascimento

Virgem”. Marilyn Strathern (1995) explica que a Síndrome48 foi assim

denominada a partir das reivindicações de um grupo de mulheres, na

Grã-Bretanha em 1991, pelo direito de gerar filhos sem relações

sexuais, recorrendo à inseminação artificial.

Um desejo, aparentemente tão natural, pois é esperado que as

mulheres queiram ter filhos, causou significativo impacto na imprensa e

na comunidade científica. A “Síndrome do Nascimento Virgem” gerou

polêmica porque essas mulheres buscavam o processo de inseminação

sem uma necessidade aparente, movidas apenas pelo desejo de

engravidar sem ter relações sexuais. Em circunstâncias como essas a

concepção não tinha o objetivo de unir pessoas, não criava a

parentalidade. Para existir a parentalidade, segundo Strathern (1995),

pressupõe-se o parentesco, a existência de dois indivíduos iguais em

termos de doação genética e desiguais nas relações sociais que

estabelecem entre si e com a criança.

O debate promovido a partir do desejo desse grupo de mulheres

reavivou, de um lado, as discussões em torno das práticas das clínicas

de inseminação e, de outro, a importância da família nuclear

heterossexual, mais especificamente, a família como a vêem os euro-

americanos49, uma formação de relacionamentos com base na

procriação, que atribui significado à parentalidade.

Um aspecto polêmico é que a iniciativa dessas mulheres

desmonta a relação existente entre o ato sexual e a concepção na

48 Essa polêmica, segundo a autora, já havia aparecido nas décadas de 60 e 70, denominada

então de Polêmica do Nascimento Virgem e referia-se a depoimentos etnográficos (decomunidades da Austrália, Melanésia, mais especificamente nas ilhas Trobriand) sobreconcepções que desvinculavam a reprodução do ato sexual.

49 A autora embora utilize um acontecimento europeu para tecer sua análise, considera quetrata de “características de sistemas de parentesco que abrangem tanto a América do Nortequanto a Europa” (p.306) e por isso usa o termo euro-americanos.

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definição do pai. Tanto na representação da classe médica quanto no

senso comum euro-americano, a problemática estava em que, ao negar

a relação sexual, aparentemente essas mulheres estariam negando a

necessidade da presença de um pai. As tecnologias reprodutivas

deveriam ter um único objetivo, ajudar as relações físicas, o intercurso

sexual, mantendo intacto o processo “natural” da procriação.

Entretanto, as mulheres virgens que solicitam os tratamentos de

fertilidade a fim de evitar relações sexuais desmontam esse princípio e

evidenciam o lugar “generificado” (gendered) do clínico que concebe com

a ajuda da tecnologia um bebê. O pedido de inseminação para evitar o

intercurso significa que não há nenhum pai pretendido, e

simbolicamente transforma o médico no único parceiro sexual.

A princípio não é imperativo explicar a “necessidade da mãe”, ela

é presumida, por ser socialmente inconcebível para os euro-americanos

(eu acrescentaria, para os latino-americanos também) que um filho

nasça sem mãe50. A legislação sobre o uso de tecnologias reprodutivas

prevê em algumas circunstâncias a fertilização a partir de material

genético de uma terceira pessoa — nos casos de doação de

espermatozóides é garantido o anonimato do doador, isto é, o pai

biológico não é reconhecido. Além disso, socialmente a idéia de que um

filho nasça sem pai não é um sentimento que provoque indignação

moral. Há, porém, a pressuposição da possibilidade de existência de um

pai, se não biológico, ao menos social. Os homens podem desejar uma

relação sexual e não desejar o filho que dela resulta, e isto não

incomoda. O desejo das mulheres da “Síndrome do Nascimento Virgem”

é justamente o contrário. Para Strathern, essa polêmica se revela

incoerente, uma vez que culturalmente é esperado que as mulheres

tenham filhos e é socialmente aceito o descaso paterno.

50 Supõe-se que com os avanços das novas tecnologias num futuro bem próximo já será

possível desenvolver em útero artificial um embrião humano.

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Aparentemente, a questão, nesse caso, seria que essas mulheres

estariam negando aos homens o exercício da opção de assumir ou não a

paternidade: eles dependem da presença física das mulheres para se

constituírem como pais; elas, por sua vez, não dependem diretamente

deles para serem mães — as tecnologias reprodutivas garantem a

fertilização. Por outro lado, o que também causou indignação foi o fato

de elas deixarem evidente que não queriam jamais ter relações sexuais.

Na sociedade euro-americana, é desejável que as crianças

convivam com os pais para que possam aprender o significado do

relacionamento amoroso. A relação sexual seria o fundamento do amor

conjugal, cuja importante função simbólica consistiria em realizar uma

necessidade biológica, estimular o amor entre os pais e

conseqüentemente o amor destes pelos filhos. Essa seria a descrição de

uma família ideal e, portanto, deveria ser preservada como forma de

manter o sistema social. As mulheres da “Síndrome do Nascimento

Virgem”, ao planejarem ter filhos sem o intercurso sexual e, portanto,

negando a existência de um pai, ameaçariam esse ideal.

(...) as mulheres são as guardiãs do ideal. São elas que têm demostrar que a procriação é um fato natural, estabelecer apossibilidade de sua criança ter um pai, e, dispondo-se aointercurso sexual, mostrar que os filhos nascemnecessariamente de relacionamentos (Strathern, 1995, p. 314-5).

Strathern chama a atenção para o fato de que essa argumentação, ao

pressupor que o intercurso faria o pai e a mãe e, por tabela, a família,

desconsidera que o ato sexual reúne pessoas que são diferenciadas pelo

gênero e que, portanto, atribuem significados específicos não só ao ato

em si, mas à relação que dele poderá eventualmente decorrer. Isto

posto, a autora afirma que para as sociedades euro-americanas a

relação mãe-filho em si e por si não significa sociabilidade, havendo a

necessidade de uma terceira pessoa – o pai –, que teria a função de

promover essa sociabilidade.

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Outra questão importante levantada por Strathern diz respeito às

interferências de ordem biológica que a cultura incorpora na definição

de pai e mãe. Por exemplo, a definição da parentalidade física e jurídica

é fundamentada no caráter biológico (a mulher engravida e tem o parto).

O filho, porque gestado no ventre materno, é quem define a mãe,

estabelecendo um processo no qual o ato sexual está subsumido. E é a

mãe quem, por sua vez, define o pai. No caso da polêmica, o implante

de um embrião não bastaria para criar uma mãe e muito menos um

pai. É preciso o desejo dos parceiros conjugais um pelo outro e

conseqüentemente pelo filho. O esforço humano estaria em promover o

relacionamento que fará o filho e a gravidez seria um processo biológico

(quase) inevitável.

Mesmo que a gravidez seja fruto de um intervenção clinica, está

presente a idéia de um pai social, ou seja, a criança nasce como uma

pessoa que necessita de relacionamentos. É o filho quem cria a

possibilidade de união entre indivíduos que são primeiramente distintos

quanto ao sexo e, segundo, quanto ao gênero, uma vez que cada um,

homens e mulheres, atribuiria significados diferentes à relação. É o

filho quem determinaria o pai e a mãe.

Não é objetivo desta pesquisa discutir o impacto das tecnologias

reprodutivas nas representações de família das sociedades ocidentais,

porém a discussão posta por Strathern nos mostra que o pai

desempenha uma outra atribuição além daquela de sustentar sua

família ou de exercer a autoridade moral. O lugar de pai lhe é

assegurado até mesmo independentemente do vínculo biológico.

Este pai soma um conjunto de valores simbólicos, presentes

mesmo quando se encontra fisicamente ausente, mas considerados

socialmente fundamentais para a organização de qualquer arranjo

familiar. Strathern tem o cuidado de não afirmar que a necessidade do

pai é a necessidade de família, ela fala em relacionamentos. E talvez seja

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uma expressão adequada, se considerarmos os diversos arranjos, que

sempre acabamos denominando como “famílias”, que alteram o

referencial fundado no modelo de família conjugal heterossexual. A

paternidade, portanto, irá conformar-se por intermédio do

relacionamento que virá a ser estabelecido entre

homem/mulher/criança; relacionamento por sua vez mediado por

variáveis como gênero, geração (diferencial de idade) e contexto sócio-

cultural.

Por suposto, o lugar do pai, atrelado a valores simbólicos, parece

marcado particularmente por um conjunto de obrigações para com os

filhos. A partir desse pressuposto todo um sistema defensivo é

construído, desde o legislativo até às políticas sociais, que determina a

paternidade a partir de suas conseqüências familiares e institucionais:

o sobrenome que é dado pelo pai, o reconhecimento paterno, as

diversas obrigações jurídicas para o sustento dos filhos, as leis

referentes à herança etc. (Parceval, 1986).

Até aqui busquei descrever o percurso de minhas reflexões a

partir de uma série de leituras que culminaram na proposta de

investigar como a paternidade e a paternagem vêm sendo elaboradas

por homens de camadas médias, que residem na cidade de São Paulo.

Entendo que o lugar de onde as pessoas falam imprime alguma

especificidade à sua visão de mundo, sendo este lugar referente a uma

posição social de classe, de idade, de sexo e até mesmo de localidade.

Assim, antes de debruçar-me sobre os temas que explorei a partir dos

depoimentos, apresentarei um capítulo contextualizando a pesquisa, o

lugar de onde os homens/pais que entrevistei estão falando. Aproveito

para situar a pesquisa em relação aos estudos sobre família, tema

relacionado à pesquisa. E, por fim, apresento os critérios de seleção dos

entrevistados e um perfil biográfico sobre eles, com o objetivo de

introduzi-los como sujeitos desta história que estou construindo.

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CCaappííttuulloo 33

OO ccoonntteexxttoo ddaa ppeessqquuiissaa

Onde foi a esquina já não é. Já não éa torre onde ficou. E a praça, a grama,

o angico, onde foram? Onde foio rio, agora é rua, e essa em que te

enuncias é pedra que foi antessol que será lodo. Onde hoje é o

café, pois aí foi livraria.Onde foi o silêncio não será jamais.

(...)Branco universo de aço e papel,

nunca o imprevisto, nunca a surpresaem tua agenda terão lugar.

Tuas cores faltam, tuas flores cautasmal se advinham. Fragor é músicaaos teus ouvidos. Martelo e estaca

embalam sonhos aterradores.(...)

(Afrânio Zuccoloto, Porto Geral)

Este poema de Afrânio Zuccoloto foi citado por Florestan

Fernandes no artigo O homem e a cidade-Metrópole (1974), publicado a

primeira vez em abril de 1959, no Diário de São Paulo. O poema fala de

um lugar que já não é o mesmo, de um lugar metaformoseado pela

urbanização, pela industrialização, um processo constante,

ininterrupto, cadenciado no som barulhento do martelo e da estaca, dos

motores de carros. São Paulo, a capital, é assim dinâmica, febril,

barulhenta, tumultuada, onde se pode ser tudo e nada ao mesmo

tempo, é moderna ou, como querem alguns, pós-moderna. Com seus

quase 10 milhões de habitantes, caras e bocas de diferentes etnias e

nacionalidades, é uma cidade de “fronteiras móveis, capaz, de manter,

alimentar e expandir extensas zonas suburbanas, compensando assim

pela extensão horizontal o rápido crescimento vertical que a afetou”

(Fernandes, 1974).

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A industrialização acelerada e a transformação urbana definiram

um cenário ecológico caótico. Se de um lado, o crescimento urbano

favoreceu a distribuição e ocupação do espaço social, de outro essa

ocupação foi também marcada por condições precárias de serviços

públicos. Como bem observou Florestan Fernandes há quatro décadas:

“No conjunto o homem conquistou o espaço, mas não o domesticou no

sentido urbano”.

Maior cidade da América Latina, graças à uma mobilidade

demográfica intensa, São Paulo recebe pessoas do interior do Estado, de

outros Estados brasileiros e de países estrangeiros. Aqui primeiro os

senhores rurais e os estrangeiros conseguiram depressa afirmar-se

econômica e socialmente. Em busca dessa mesma oportunidade de

ascensão social e de enriquecimento, muitos migrantes continuam

chegando a São Paulo51. As “tradicionais famílias” paulistanas do final

do século passado foram diluídas em meio a uma massa de

“estrangeiros” vindos de todas as partes, que traziam na bagagem

interesses, costumes e valores próprios instituindo uma ordem moral e

social peculiar, credenciando São Paulo à modernidade. Em suas

avenidas e praças centrais acontecem manifestações sociais e políticas,

cujo berço foi a luta contra a escravidão e as campanhas republicanas.

As minorias e os contestadores de toda ordem e ideologias encontram

em São Paulo espaço e ouvido para seus clamores. Esse contexto

urbano foi sendo desenhado por uma divisão social do trabalho e

desenvolvimento industrial que inaugurou um processo de mudanças

significativas em todas as esferas da vida social.

Como observou Florestan Fernandes, o acelerado

desenvolvimento sócio-econômico de São Paulo estabeleceu “condições

51 Sobretudo nos anos 60 e 70 o processo de migração foi marcante, como parte de um processo

de expansão econômica e intensa urbanização. Boa parte do contingente de migrantes seinstalou na periferia paulista e compõe a massa de trabalhadores: operários, autônomos debaixa renda, pequenos comerciantes, ambulantes etc. Ver Durham, 1978, Sarti, 1996.

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favoráveis à expansão da sociedade de classes, ao funcionamento da

democracia e à constituição de um sistema educacional complexo,

suscetível de servir como um canal de peneiramento e de ascensão

sociais.”(1974:299). E por isso é uma cidade de contrastes sociais

marcantes, conseqüência de seu crescimento desordenado, de uma

distribuição de renda desigual refletida na coexistência do luxo com a

miséria. São Paulo congrega bairros sofisticados fronteiriços com

bairros populares e favelas.

O crescimento urbano, comercial e industrial associado a

políticas econômicas e sociais pouco eficazes favoreceu essa

segmentação: de um lado segmentos sociais carentes de infraestrutura

básica e de outro o desenvolvimento de um segmento médio constituído

de profissionais liberais, pequenos comerciantes, industriais e

funcionários públicos. O ideário desenvolvimentista, da década de 50,

expandiu esse segmento social, fortalecendo-lhe uma característica — a

flutuação social, econômica e política — descrita já em 1959 por

Florestan Fernandes:

Estas constituem uma condição importante ao equilíbrio deuma sociedade de classes e à estabilidade do regimedemocrático. Apesar de sua insegurança econômica e de sualabilidade política, as classes médias exercem papel influentenos movimentos de opinião e nas decisões que ponham emchoque valores centrais da ordem estabelecida. Pois bem, astendências à ampliação das classes médias em São Paulo, e àdiferenciação dos níveis de vida no seio delas estão sofrendorudes golpes sob o processo inflacionário. Seus estratos maisbaixos tendem a nivelar-se com o proletariado; enquanto osestratos mais altos se encontram na contingência de recorrerao endividamento para manter um nível de vida conspícuo esalvar as aparências. (1974:303).

O desenvolvimento brasileiro sempre esteve marcado por um

movimento de fluxo e refluxo, que imprimi significativas mudanças na

estrutura social, econômica, política, geográfica e espacial em todo

território nacional, e em particular nos grandes centros urbanos.

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O panorama econômico da década de 1980 e início de 90 está

associado a desequilíbrios decorrentes dos sucessivos planos

econômicos, déficit público e inflação. Em apenas uma década (1986-

1994), logo após o processo de abertura política, o país passou por seis

planos de estabilização econômica (o Cruzado I, Cruzado II, Plano

Bresser, Plano Verão, Brasil Novo e Real). Período que também

correspondeu à consolidação democrática e a elaboração de uma nova

Constituição em 1988, e um longo processo de eleições livres. Tratou-se

de um processo de mobilidade social e expansão da sociedade de

consumo acompanhada de desigualdade, de mudanças na estrutura de

ocupação no mercado de trabalho; marcada pela insuficiência na

criação de empregos na indústria e pela concentração da pobreza nas

áreas metropolitanas (Faria, 1984). Esse processo de mudanças de

ordem política, social e econômica afeta a vida cotidiana e as relações

sociais.

Já em 1902, Georg Simmel (1979), observa que nas metrópoles

convivem e se confrontam visões de mundo diferenciadas, e tantas

vezes antagônicas, que produzem combinações geradoras de novos

significados. Mais do que nunca a metrópole está associada à

pluralidade de modos específicos de recortar e construir a realidade,

com concepções particulares de tempo, espaço e indivíduo.

As reflexões de Simmel parecem ter inspirado Gilberto Velho

(1995) a descrever vivamente o estilo de vida urbano contemporâneo,

retratando elementos que se assemelham às reflexões de Ulrick Beck,

Anthony Giddens e Scott Lash (1997) sobre a modernização reflexiva, já

referida no capítulo anterior:

A cidade tornou-se o locus, por excelência, dessas mudançasnão como receptáculo passivo, mas como produtora de novasformas de sociabilidade e interação social, de modo genérico.A explosão demográfica, resultado de mudanças sócio-econômicas, com progressos médicos e sanitários, multiplicou

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muitas vezes em curtos períodos de tempo o número dehabitantes dos principais centros urbanos. As correntesmigratórias e os diversos deslocamentos de populaçãoalteraram a relação tradicional entre cidade e campo. Adivisão social do trabalho, com novas regras e característicasdo capitalismo em ascensão, destruiu modos de vidatradicionais, alterando drasticamente tanto as estruturassociais como o ambiental natural. As sucessivas inovaçõeseconômicas e tecnológicas, aceleradas a partir do século XVIII,cujas origens recentes remontavam, pelo menos, aos séculosXV e XVI, geraram um processo inédito de globalização aoestabelecerem vínculos econômicos, políticos e culturais entrequase todas as grandes regiões do planeta (Velho, 1995:228).

Uma metrópole como São Paulo não inaugura a heterogeneidade, mas

associada a todos esses elementos transformadores revela-se como um

espaço paradigmático de novos modos de vida. Ou como diz Velho, a

“interação intensa e permanente entre atores variados, circulando entre

mundos e domínios, num espaço social e geograficamente delimitado, é

um dos seus traços essenciais” (p.229); e que só pode ser compreendido

se associado, segundo este antropólogo, à formação de um mercado

mundial, à expansão da moeda como meio de troca universalizante e à

ampliação do horizonte de trocas materiais e simbólicas.

A divisão do trabalho numa sociedade como São Paulo propicia o

surgimento de tarefas e carreiras, profissões que expandem quantitativa

e qualitativamente as alternativas; oferecendo-se como espaço de menor

controle social e de maior autonomia, ainda que relativa. O alto nível de

especialização da sociedade moderna oferece a possibilidade do

indivíduo transitar entre mundos e esferas diferenciadas; a própria

fragmentação do trabalho tende a desenvolver áreas e domínios

especializados de sociabilidade, crenças religiosas, atividade política etc.

Nesse trânsito o confronto com valores tradicionais produz

combinações, sínteses conflituosas que caracterizam a reflexividade

institucional apreciada por Giddens (1997), e que permitem aos

indivíduos “transitar entre domínios e papéis, num processo de

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constante metamorfose”, na expressão de Gilberto Velho (1995, grifo do

autor). Isto não significa, como ele mesmo alerta, que “poderosas forças

históricas e sociais — e, por que não dizer tradicionais52 —, que

estabelecem tendências, direções e limites” atuem sobre as biografias

individuais ou sobre determinados estilos de vida.

A clareza de que uma metrópole como São Paulo incorpora visões

de mundo e estilos díspares, que produzem formas alternativas de

arranjos sociais e de formas de identidade social, reforça a necessidade

de situar o lugar de onde falam os homens que entrevistei para esta

pesquisa. A visão de mundo destes sujeitos está contaminada pela

agitação febril característica de uma sociedade reflexiva. O bombardeio

cultural, o acesso quase ilimitado a todo tipo de informação, os

modismos, a necessidade de estar “antenado” nas últimas novidades ou

de rejeitá-las e, mais do que isso, de estar integrado a um grupo

formado por pares, são elementos que devem ser considerados na

leitura do discurso destes sujeitos.

É neste contexto que deve ser pensada a paternidade, como

relação que ainda comporta significado constituído a partir de uma

“verdade formular”53 e por isso aceito como verdade incontestável.

Porém, se for considerado o momento histórico atual como “pós-

tradicional”, essa verdade é tratada pela sociedade – então reflexiva –

como verdade proposicional contestável, aberta à crítica. A própria

família aglutina valores como verdades incontestáveis, ainda assim, é a

52 Refiro-me a tradição no sentido em que Giddens (1997) formula: estruturas normativas de

conteúdo moral obrigatório, relacionadas a memória coletiva e que ao reconstruir o tempopassado, permitem organizar o tempo futuro.

53 A verdade formular, segundo Anthony Giddens, está restrita ao domínio de alguns que detêmsua compreensão; envolve aceitação incondicional e atribui eficácia causal aos ritos. Parapensar a paternagem e a paternidade como um domínio sob a mira da ação reflexiva adotei aanalogia de Scott Lash (1997) para a ciência: “ a ciência, por exemplo, em uma modernidadeprecoce, é um campo de especialistas, mas o público aceita suas verdadesinquestionavelmente, como verdades formulares. Somente na modernidade tardia asafirmações científicas são tratadas pelo público – agora reflexivo – como verdadesproposicionais contestáveis, abertas à ‘articulação discursiva’ e à crítica.” (p. 240).

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instituição social que maiores transformações sofreu nas últimas

décadas.

A família como locus de mudanças

Uma das lições aprendidas no desenrolar da pesquisa Família e

Trabalho Domiciliar em São Paulo, foi a de que, quando se vai falar

sobre qualquer tema associado à família, é preciso esclarecer o que se

está entendendo por família.

A literatura sobre esse tema é vasta e percorre várias áreas de

conhecimento: História, Antropologia, Sociologia e Demografia. Em cada

uma delas é possível encontrar uma ampla discussão sobre o

significado do termo família e sobre seu estatuto teórico54. No Brasil,

esse tema só veio ganhar fôlego como objeto de estudo a partir da

década de 70, cujo interesse foi despertado por estudos sobre as

estratégias de sobrevivência das camadas populares e a reprodução do

trabalhador. Também as pesquisas sobre a condição das mulheres

convergiram para o tema das relações familiares. Percebia-se que a

inserção da mulher no mercado de trabalho estava submetida, entre

outras coisas, à sua posição na família, aos ciclos de vida familiar, à

presença ou não de filhos e aos valores. A articulação trabalho e família

(trabalho produtivo/reprodutivo) e a crítica do mito presente na

definição do espaço doméstico como “espaço natural” da mulher,

mobilizaram muitos pesquisadores. Posteriormente, a noção de que a

família deveria ser tomada como grupo de pessoas, cada uma delas com

individualidade própria, inspiraria na década de 80 vários outros

54 Uma primorosa revisão bibliográfica sobre os estudos de família, as várias tendências

teóricas e suas limitações foi realizada por Cristina Bruschini (1989; 1990). Ver também naAntropologia: Correa, M. (1981); Durham, E.; Sarti, C. (1996); na História (1983); Samara, E.(1983); Almeida et. al. (1987); Ribeiro, Ribeiro (1995); na Demografia: Berquó (1989); Goldani(1993), entre outros.

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pesquisadores, notadamente antropólogos, voltados, particularmente,

para as camadas médias.

O nível da formulação teórica a respeito da família demonstra

certo grau de dificuldade em estabelecer uma definição a partir de uma

única vertente teórica. Como bem observou Cristina Bruschini (1989),

os limites e possibilidades aparecem em todas as áreas de

conhecimento que se dedicam ao assunto :

Se na Antropologia predomina a noção de família como grupode pessoas ligadas por relações afetivas construídas sobreuma base de consangüinidade e aliança, durante muito tempoo pensamento sociológico foi dominado por uma representaçãode família como grupo conjugal coincidente com a unidaderesidencial. Esse modelo foi reforçado pelos estudoshistóricos, que descreviam a transformação de famílias que sesupunha anteriormente mais extensas e que se nuclearizavamcom a industrialização. Na Demografia, que se interessou pelafamília em seu papel mediador na reprodução, predominou omodelo da sociologia funcionalista, para a qual a família édefinida como núcleo conjugal composto do casal e seusfilhos, nos limites de um domicílio comum. (1989 : 9)

É certo, porém, que de lá para cá muitos desses limites foram sendo

superados e a discussão crítica dos estudos sobre família se mantém na

agenda do dia, permitindo que novas pesquisas possam apreender a

diversidade e riqueza das relações sociais que marcam o grupo familiar.

Basta acompanhar as discussões do GT Família e Sociedade, da

ANPOCS e a literatura mais recente.

Tradicionalmente, a representação de família presente em muitas

pesquisas tem sido aquela da família nuclear composta por um casal e

seus filhos, abrigados sob o mesmo teto, nos limites da unidade

doméstica. De acordo com Bruschini (1989, 1990), várias razões podem

ser apontadas para explicar o predomínio dessa forma de organização

familiar nas pesquisas. Entre elas a influência de teorias sociológicas

americanas (marcadas pelas teorias funcionalistas e particularmente

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por Talcott Parsons55), que analisam sociedades urbanas

industrializadas onde essa forma de organização familiar é

predominante. Outra razão é a possibilidade de investigar formas de

organização e vivência familiar mediante pesquisas domiciliares, com a

adoção de um modelo de família coincidente com a unidade doméstica.

De fato, a organização familiar conjugal é predominante em

muitas sociedades, inclusive na brasileira. Deve-se, porém, ter cuidado

para não descrevê-la ou analisá-la tomando como referência o modelo

tipíco-ideal universal e a-histórico pensado por Parsons, para a

sociedade americana de uma determinada época. A família é mais do

que um grupo de pessoas ligadas por laços de parentesco ou

consangüinidade; é mais do que um grupo cujos indivíduos têm

obrigações específicas. A família, tal como foi definida por Bruschini, é

“um grupo social composto de indivíduos diferenciados por sexo e por

idade, que se relacionam cotidianamente, gerando uma complexa e

dinâmica trama de emoções; ela não é uma mera somatória dos

indivíduos que a compõem, mas sim um conjunto heterogêneo

composto de seres com sua própria individualidade e personalidade. (...)

É também no cotidiano da vida familiar que surgem novas idéias, novos

hábitos, novos elementos, através dos quais os membros do grupo

questionam a ideologia dominante e criam condições para a lenta e

gradativa transformação da sociedade” (1990:80-81).

A História e a Antropologia, em particular, mostram que as

relações sociais observadas no dia a dia entre o grupo conjugal, a rede

de parentesco e a unidade doméstica ou residencial podem apresentar,

55 Talcott Parsons é uma das principais referências nos estudos sobre a família nuclear. Ele a

descreve como pequeno grupo-tarefa, no qual os membros adultos desempenham papéisaltamente diferenciados, assimétricos e complementares, cuja distinção de gênero é marcante.O homem se caracteriza por ser o líder “instrumental” do grupo, enquanto que a mulher, denatureza “expressiva”, estaria voltada para os assuntos internos da família, sendo acima dequalquer coisa mãe e esposa. Mesmo sendo apenas um modelo teórico de análise, essadescrição de família muitas vezes foi tomada como expressão da realidade social. Entre osautores que ressaltaram as limitações da concepção parsoniana de família, cito Bott (1976),Bruschini (1990), Romanelli (1986).

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em diferentes momentos históricos, uma significativa diversidade. A

Antropologia lembra que as relações de parentesco, o casamento e a

divisão sexual do trabalho existem em todas as sociedades, variando

apenas as formas como que se combinam. Alguns historiadores (Ariés,

1977; Poster, 1979), por exemplo, destacam que o modelo nuclear de

família só se consolidou por volta do século XVIII, com a privatização da

instituição familiar e a passagem das funções socializadoras para o

âmbito mais restrito do lar. A família deixa de ser unicamente uma

unidade econômica, tornando-se um espaço de refúgio, de afetividade,

de relações de sentimento entre o casal e os filhos.

No período contemporâneo, dois aspectos irão reforçar, segundo

François de Singly (1993), um certo domínio do destino pessoal sobre o

familiar: um sistema de valores que aprova de certa maneira a

autonomia, desvalorizando a herança material e simbólica, e as

condições objetivas — entre elas o progresso científico-tecnológico —

que aumentam a facilidade desse controle pessoal, autônomo, tal como

a contracepção. Os indivíduos estariam envolvidos numa busca,

explícita ou não, de autonomia pessoal, o que tende a desvalorizar

qualquer relação de dependência com as instituições comunitárias

adscritas. Há uma recusa declarada das pessoas de se prenderem aos

hábitos e uma tentativa de transformar os papéis sociais de marido e

esposa. A recusa é expressa por um duplo movimento de contestação:

da instituição casamento (o crescimento de uniões consensuais é um

exemplo) e uma crítica à divisão do trabalho por sexo

(homem/provedor, mulher/dona-de-casa). Vemos aqui novamente a

idéia de destradicionalização da sociedade moderna, defendida por

Giddens (1993), processo no qual certas práticas tradicionais podem

mudar de status, mas não desaparecem necessariamente.

Com o desenvolvimento das instituições modernas, que deixaram

a família nuclear em um enorme isolamento, declarou-se amplamente

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que as relações de parentesco foram se destruindo. Para Anthony

Giddens (1993) trata-se de uma visão equivocada: para ele, na

sociedade da separação e do divórcio, a família nuclear em

transformação gera uma diversidade de novos laços de parentesco — e

não sua destruição — associada, por exemplo, às chamadas famílias

“recombinadas”56. A natureza desses laços modifica-se à medida que os

indivíduos estão sujeitos a uma negociação maior que a anterior. Trata-

se da natureza reflexiva das relações sociais, conseqüência da

modernidade, tal como sugerido por Giddens.

Também no Brasil houve a tendência, entre alguns autores, de

apontar para a existência de uma suposta crise/desagregação na

família. Atribuída ao crescimento populacional, à crise econômica, à

violência, aos menores abandonados, a explicação para mudanças era

quase sempre negativa. Ou atribuída a mudanças estruturais, tais

como: padrão de comportamento, diferentes tipos de união, declínio da

fecundidade, aumento das famílias monoparentais, divórcios etc.

(Goldani, 1993)

Cláudia Fonseca (1995) observa que não só no senso comum,

mas também no interior de estudos progressistas – reforçados por uma

retórica da “desagregação”, das “estratégias de sobrevivência” etc. – tem

prevalecido uma idéia evolucionista de família, ou seja, a família antes

extensa, na qual a figura paterna personificava a autoridade, teria se

transformado na família conjugal contemporânea. A crítica à

desagregação da família, em função da estrutura social capitalista,

remete à idéia de que existiria uma família ideal e que esta

corresponderia à família conjugal comum das camadas médias, quando,

na realidade, segundo essa autora, as sociedades tendem

historicamente a oscilar entre a conjugalidade e a consangüinidade nos

diferentes segmentos sociais.

56 Cônjuges com filhos de relacionamentos anteriores, mais os filhos (ou não) da atual relação.

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O modelo de família conjugal, com o qual se está acostumado a

pesquisar ou trabalhar, não pode ser tomado como estrutura única,

mas como uma dentre outras formas válidas de organização social, tais

como as famílias que contam com apenas um dos cônjuges, entre elas

as chefiadas por mulheres.

AA ffaammíílliiaa ddee ccllaassssee mmééddiiaa::

llooccuuss pprriivviilleeggiiaaddoo ddee mmuuddaannççaass

A família de classe média, em particular, tem sido considerada

um locus privilegiado da ideologia do individualismo e por isso

possibilitando comportamentos inovadores. De acordo com as

premissas de uma vertente antropológica marcante na década de 80 —

refiro-me particularmente aos antropólogos do Museu Nacional do Rio

de Janeiro57 —, homens e mulheres de camadas médias metropolitanas

apresentariam uma maior predisposição — em função de um nível de

escolaridade mais alto, maior acesso às informações, inclusive às

teorias psicanalíticas e pedagógicas —, para relações mais igualitárias.

É preciso observar que estas características fazem referência a um certo

segmento do conjunto denominado como classe média.

Alguns fatores podem ser apontados como promotores, nas

últimas décadas, de uma acelerada transformação na área dos

costumes. Maria Luiza Heilborn (1995) enumera, por exemplo, a forte

concentração de renda, a existência de um mercado de consumo mais

sofisticado, a redução do tamanho da família, a eclosão dos movimentos

de liberação das mulheres e dos homossexuais, entre outros. Além

disso, o atual comportamento das mulheres em relação ao espaço

familiar e doméstico e uma possível valorização da escolha profissional

57 Vários desses estudos trataram de uma fração muito específica das camadas médias, isto é,

grupos intelectualizados e psicanalizados da zona sul do Rio de Janeiro. Ver particularmenteVelho (1983, 1985), Dauster (1987, 1984, 1990), Salém (1985, 1986,1989), Heilborn, 1992entre outros. As orientações teóricas que pautam esses estudos repousam em autores comoGeorg Simmel e Louis Dumont.

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podem ser, no segmento das camadas médias, um fator desencadeador

de mudanças na relação com o companheiro e nas atribuições

domésticas e com os filhos. E como não há indícios de reversão no

ingresso das mulheres no mercado de trabalho — ao contrário, tem-se

verificado um aumento da participação das mulheres casadas

(Bruschini, Lombardi 1996) —, pode-se supor que a participação

masculina no cuidado com as crianças e nas tarefas domésticas estaria

se ampliando.

As famílias igualitárias (modernas) contestariam a divisão

tradicional de papéis sexuais e propagariam o esmaecimento das

diferenças entre o masculino e o feminino. Enquanto que o

relacionamento doméstico na família tradicional estaria pautado na

assimetria da autoridade e respeito, na família moderna prevaleceria

uma relação mais aberta, baseada no diálogo e na dedicação aos

aspectos subjetivos e psicológicos da personalidade individual58. Essa

dimensão atingiu, por exemplo, a educação dos filhos, manifestada na

década de 1970 e 80 no crescimento de escolas cuja proposta

pedagógica se mostrava "alternativa” em oposição a um modelo

tradicional de ensino (Revah,1994). Havia aí coerência com a ideologia

do “individualismo libertário” que percorreu o imaginário social da

classe média intelectualizada dos anos 60, trazendo no seu bojo o

questionamento radical de todas as formas de poder e de autoridade, de

negação do sistema político vigente e de contestação aos valores

tradicionais (Salém, 1991).

Apesar de trazer uma significação mais libertária e igualitária

para a família nuclear, destacada da rede de parentesco, esse modelo de

família esbarra em algumas contradições, como quando há separação

dos cônjuges ou o nascimento de uma criança, muitos valores se

aproximam da família tradicional (Salém, 1986 ).

58 Ver também Bruschini (1990).

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Parece ser ainda difícil explicar a tensão entre os princípios

individualizantes e os hierárquicos, ou o que é chamado pelos

estudiosos das camadas médias de dilema de mudar ou permanecer. Os

autores analisados por Tânia Salém “sustentam que a tensão e a

oscilação entre os modelos ‘moderno’ e ‘tradicional’ resultariam de uma

descontinuidade entre sistemas simbólicos internalizados em diferentes

momentos da biografia dos sujeitos” (1986:33). O principal autor que

trabalha essa idéia no Brasil é Sérvulo Figueira (1985), mediante o

conceito de desmapeamento, empregado como metáfora para designar a

presença de ordens, formas e mapas contraditórios – a convivência de

um processo de mudança com formas internalizadas de processos

anteriores, nem sempre explícitos e por isso, geradores de conflitos.

O problema dessa abordagem, na visão de Geraldo Romanelli

(1986), está no fato de que a resposta a esses conflitos estaria no plano

individual e o universo psi surgiria como instância mediadora59. O

confronto se daria entre sistemas simbólicos e a família seria o

instrumento para se pensar a oposição entre os valores tradicionais e a

ideologia individualista.

Numa outra direção, Gilberto Velho (1981) prefere interpretar a

oscilação dos sujeitos entre códigos dispares e contraditórios como um

fenômeno da coexistência de visões de mundo concorrentes e de

domínios sociais operando com linguagens próprias, que levariam os

sujeitos a internalizarem códigos diferentes e oscilarem de acordo com o

contexto. Para ele, numa sociedade como a brasileira, na qual a

hierarquia exerce um papel crucial, o pertencimento a uma

determinada família é elemento fundamental no sistema de

59 Para Figueira (1985) a solução desses conflitos estaria na psicanálise, um recurso utilizado

por uma parcela das camadas médias. Geraldo Romanelli (1986) observa que o processo demodernização, responsável pelo surgimento de novos códigos culturais, teria sido responsáveltambém por um boom psicanalítico dos anos 70. Os conflitos gerados no plano das práticassociais teriam encontrado seu ponto de chegada no nível das soluções individuais (p. 16). Vertambém Salém (1991).

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classificação dos grupos que investigou, até mesmo nos processos mais

radicais de individualização. Ou como argumenta Anthony Giddens

(1997), a vida pessoal na sociedade globalizada ou pós-tradicional, como

ele prefere denominar, constitui um projeto aberto a novas demandas e

ansiedades, ainda que alguns elementos da tradição não tenham sido

tocados, em especial aqueles que se referem à família e às diferenças de

gênero. As pessoas têm sido afetadas por acontecimentos,

universalizados por meio dos processos de globalização, que extrapolam

os limites de sua comunidade. Isto é, são influenciadas e influenciam

acontecimentos que podem afetar outros indivíduos para além de sua

vizinhança. Um exemplo típico é qualquer agressão ao meio ambiente.

Inauguram, assim, um tipo de confrontação das bases da

modernização e de suas conseqüências a partir da apropriação reflexiva

do conhecimento, vertida em ação reflexiva. Essa ação levaria, segundo

Scott Lash (1997), os indivíduos a se libertarem das expectativas

normativas das instituições da modernidade simples e a se engajarem

no acompanhamento reflexivo dessas estruturas, assim como na auto-

avaliação da construção de suas próprias identidades. O caráter aberto

da auto-identidade e a natureza reflexiva do corpo, que se manifesta por

exemplo na luta das mulheres para se libertar dos papéis sexuais e na

contestação dos estereótipos heterossexuais dominantes, são

características fundamentais de uma sociedade de alta reflexividade

(Giddens , 1993). Mais do que nunca, podemos escolher como será

nosso estilo de vida, podemos decidir como ser e como agir. Para

Giddens até os vícios são escolhas, pois são maneiras que as pessoas

têm encontrado para enfrentar a multiplicidade de possibilidades que a

vida cotidiana “destradicionalizada” oferece. Um exemplo é o consumo

de cigarro. Todas as campanhas publicitárias de cigarros são obrigadas

a divulgar que o fumo é prejudicial a saúde; ainda assim a população

fumante não parece decrescer, a despeito de todo o movimento pró-

saúde que permeia o cotidiano. Não surpreende que o consumo do

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tabaco tem crescido particularmente entre as mulheres, sobretudo

entre as mais jovens.

É certo, porém, que essas escolhas estão condicionadas pela

necessidade de rotinas exigidas e algumas vezes até obrigatórias, ou

seja, “todas as escolhas, mesmo aquelas dos mais pobres ou

aparentemente impotentes, sofrem refração das relações de poder

preexistentes. Por isso, a abertura da vida social à tomada de decisão

não deve ser identificada ipso facto com o pluralismo; é também um

meio de poder e de estratificação.” (Giddens, 1997:95-6)

Essas aspirações, próprias de uma sociedade reflexiva,

coadunam-se com o princípio de individualização, de desincorporação

de um modo de vida que não se ajusta mais aos interesses individuais e

coletivos de um dado grupo social ou mesmo de toda uma sociedade. As

lutas dos movimentos feministas, associadas a mudanças estruturais

têm provocado uma série de questionamentos sobre os lugares que

homens e mulheres ocupam na estrutura social, sobre os significados

de masculinidade e feminilidade e suas decorrências na constituição da

identidade dos indivíduos. Isto significa, seguindo a análise de Giddens,

que os comportamentos e as atitudes precisam ser justificados, ou seja,

as razões devem ser explicitadas e ao fazê-lo dão visibilidade às relações

de poder, provendo seu questionamento.

De certa maneira, esses argumentos estão por trás do crescente

interesse que os homens e temas a eles associados (tais como

paternidade, violência, sexualidade, masculinidade etc.) têm despertado

nas ciências humanas. Esse interesse está relacionado, no âmbito mais

geral, à necessidade de mudanças nas relações de gênero, e na

inadequação dos paradigmas explicativos frente a complexidade da

dinâmica social; no âmbito mais restrito, político até, relaciona-se à

constatação de que a compreensão das práticas masculinas, por

exemplo, pode contribuir para melhorar os resultados de programas

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voltados para a saúde das crianças, para a prevenção de doenças

sexualmente transmissíveis e para as decisões de planejamento

familiar. Conseqüência, de certo modo, de uma agenda política

mundial, expressa nas últimas conferências internacionais relativas aos

direitos das mulheres e sobre população, que destacaram a necessidade

de incorporar os homens como alvo de políticas públicas (Arilha, Ridenti

e Medrado, 1998; Garcia, 1998; Silva, 1999).

Militantes engajados em campanhas de prevenção contra doenças

sexualmente transmissíveis estão a cada dia mais convencidos de que

somente obterão melhores resultados se sensibilizarem os homens.

Estudiosos americanos e europeus de várias áreas têm, desde a década

de 80, insistido para que as políticas voltadas para as famílias se

preocupem com o envolvimento masculino no cuidado com os filhos,

uma vez que a eqüidade entre os sexos depende fundamentalmente da

participação dos homens em todas as instâncias da vida privada,

inclusive em decisões sobre planejamento familiar e sexualidade.60

Esse interesse surge também de um contexto no qual vários

estudos, que versam sobre o cotidiano das mulheres e suas relações

com o mundo do trabalho, argumentam que são pequenas as

transformações com relação à assimetria heterossexual das atribuições

em relação aos filhos, a despeito do processo de individualização das

mulheres e de sua autonomização (Novelino; 1989; Di Ciommo, 1990;

Massi, 1992; Ardaillon, 1997).

A profissionalização das mulheres, como observou Danielle

Ardaillon (1997), representa para elas a aquisição de outra identidade,

envolvendo outro modo de sociabilidade. O trabalho fora de casa é um

“projeto individualizador”, em particular para as mulheres de camadas

médias. E se nesse processo as mulheres têm caminhado passo a passo

60 Lamb, 1982; 1983; Jalmert, 1990; Näsman, 1990; Evans, 1995; Neale, 1995; Mundigo, 1995

entre outros.

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rumo à igualdade na valorização de sua condição de profissional, o

mesmo não acontece quando ao homem e à mulher é associada a

condição de pai e mãe:

Ao acoplar “pai” ou “mãe” às categorias originais, a viailuminada da igualdade prometida entre os profissionais se vêtotalmente obstruída. Por que o desempenho ativo de suaprofissão não é requerido igualmente do profissional-pai e daprofissional-mãe? Mais competente profissionalmente, maisbem-remunerado, melhor pai. Mais amamentadora, maiscaseira, melhor mãe. Dois pesos, duas medidas. De um lado avalorização da paternidade no seu aspecto social, do outro, avalorização da maternidade no seu aspecto biológico.(Ardaillon, 1997 : 34-35)

Apesar de todas as conquistas femininas, o cuidado com os filhos

continua recaindo sobre as mulheres. O desafio proposto às mulheres é

o de integrar, da melhor forma, seu mundo pessoal às várias

conquistas. Esta mudança exige uma nova estruturação da organização

familiar e das relações entre homens e mulheres, além de envolver,

inclusive, outros significados para a maternidade e a paternidade. Nem

sempre o discurso, o desejo se coaduna à prática cotidiana, ainda que a

autoreflexão, o questionamento, a confrontação dessas práticas possa

ser localizada nos depoimentos de mulheres em várias pesquisas ao

longo dos anos 80 e 90.

Marina Massi (1992), por exemplo, descreve que, embora o

trabalho profissional representasse para muitas das mulheres que

entrevistou a possibilidade de desenvolvimento pessoal e

independência, em seus relatos a maternidade aparece fortemente como

a maior contribuição social da mulher. “O trabalho fora de casa é

considerado mais como um complemento ao desenvolvimento pessoal”

(p.42). Massi observou que são poucas as mulheres que trabalham

seguindo a carreira que escolheram, que são bem remuneradas e bem-

sucedidas. A socialização da mulher é baseada preponderantemente na

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construção da família, na maternidade e nos cuidados com a casa. Para

a mulher, a relação entre trabalho fora de casa e maternidade parece

acontecer entremeada pelo conflito da realização pessoal e da formação

moral/social que delega à mulher os cuidados com os filhos e com a

família, como sendo um atributo natural.

A partir de outro enfoque, Maria Isabel Mendes de Almeida (1987)

realizou uma pesquisa que considera a maternidade como uma das

possíveis portas de entrada para uma reflexão sobre o processo de

modernização da família de classe média urbana no Brasil.

Constatando a formação, no início dos anos 80, de grupos de

preparação e orientação de casais para a gravidez e o parto, conduzidos

por psicólogos, médicos homeopatas e outros especialistas, Almeida

acreditava que se iniciava a implementação de uma proposta

“alternativa” a uma visão tradicional da maternidade e a um conjunto

de valores e comportamentos tidos como ultrapassados. A busca por

essa “maternidade alternativa” estaria ocorrendo em função de um

sentimento de perda, de ausência de referências, mapas e guias diante

da maternidade, além de representar também uma fuga do modelo de

suas mães. Sua pesquisa, entretanto, demonstrou que a experiência da

maternidade, da forma como foi observada e relatada por suas

entrevistadas – um grupo de gestantes e suas respectivas mães –, não

chegou a configurar uma marcante mudança na visão de mundo entre

as duas gerações. Revelou, na realidade, a coexistência de um amplo

conjunto de valores ditos “modernos” com modalidades tradicionais de

vida61.

O longo período de dependência que garante o desenvolvimento

do ser humano e o fato de a gravidez ocorrer no corpo da mulher

poderiam ser consideradas justificativas para que certas atribuições se

61 Para Gilberto Velho (1981) os grupos de camadas médias vivem o dilema de mudar ou

permanecer mais do que outras camadas sociais, justamente por estarem mais expostos àideologia da modernização.

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mantenham atreladas às mulheres. A “natural” vocação da mãe para

cuidar da criança e compreender suas necessidades é argumento usado

por médicos, educadores, psicólogos e mesmo cientistas sociais, dando

fundamento aos discursos tanto de instituições como a Igreja e o

Estado, como do senso comum.

Observa-se, no entanto, que a separação das atividades segundo

o sexo cria um significativo grau de dependência entre os indivíduos e

atribui, por outro lado, a cada um, homens e mulheres, uma área de

autonomia e independência62. Uma análise do possível não-

envolvimento masculino no cuidado dos filhos deveria, no meu

entender, levar em consideração o fato de as mulheres serem

culturalmente consideradas habilitadas para cuidar dos filhos e dos

afazeres domésticos. Deter esse conhecimento revela duas dimensões:

de autonomia e, portanto, de poder (uma mãe não precisa de um

homem para aprender como criar seus filhos) e ao mesmo tempo de

dependência (há a suposição de que os homens e as crianças precisam

das mulheres para suprir suas necessidades, enquanto elas precisam

dos homens para garantir o exercício de uma boa maternidade),

tornando complexa a relação entre dominação (masculina) e

subordinação (feminina), desvalorizando essa ordem hierárquica,

ameaçando sua naturalização.

Critérios para a definição do universo empírico

A posição dos indivíduos numa dada sociedade — podendo ser

marcada por classe social, etnia, idade e sexo e espaço geográfico —,

influencia seus modos de pensar e ser, contribuindo para a diversidade

nas relações sociais. Se essa posição influencia a maneira de os

62 A reprodução, por exemplo, seria uma área de autonomia das mulheres e, portanto, de poder

(Durham , 1983).

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indivíduos atuarem na vida pública, ela define critérios para as relações

familiares e interpessoais.

Desta forma, algumas variáveis foram privilegiadas na definição

do universo empírico: o sexo dos sujeitos pesquisados — masculino; a

situação de conjugalidade — homens que estivessem vivendo

maritalmente e com filhos até 10 anos idade; e a que se refere à posição

sócio-econômica dos sujeitos — classe média. Esta variável, assim

denominada, se baseia, não somente na escolaridade de nível superior,

mas também na renda, no acesso a um mercado de consumo

sofisticado e por aceitar e compartilhar valores e comportamentos que,

em princípio, deveriam expressar uma ideologia igualitarista, tais como:

a afirmação da liberdade do exercício da sexualidade para os dois sexos,

a aceitação da proliferação de arranjos conjugais, do divórcio, da

maternidade voluntária fora do casamento etc. (Heilborn, 1995).

Considerando que a classe média se caracteriza por ser propícia a

aceitar mudanças e mesmo a difundi-las, circunscrevi minha pesquisa

a este universo, cujas informações, do ponto de vista sociológico para os

estudos de gênero e sobre família, são importantes para a compreensão

da desigualdade de gênero e do processo de transformação nas relações

sociais entre homens e mulheres. Minha meta é saber como homens

deste segmento social elaboram e vivenciam a paternidade, num

contexto no qual significativas mudanças têm sido apontadas.

Os homens de minha pesquisa são de uma geração cujos valores

culturais mesclam ideais libertários com a medicina “alternativa”

(filosofia antroposófica, homeopatia, acupuntura), alimentação natural,

experiência com drogas (mais especificamente a maconha) e uma busca

por relações interpessoais mais afetivas e sinceras, por relações mais

harmoniosas com o corpo e a sexualidade. Esse estilo de vida teve, com

certeza, inspiração nos ideais libertários dos anos 70 e 80, período

histórico marcado por movimentos sociais e políticos de contestação do

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sistema político vigente (ditadura); por uma pedagogia e psicologia

influenciadas em idéias socialistas e anarquistas e pelas

transformações culturais que vinham se desenvolvendo desde os anos

60 (Revah, 1994).

Cabe observar, todavia, que os critérios que definem a

denominada classe média ou camadas médias ou ainda setor médio não

são suficientes para circunscrevê-la como homogênea. O fato de possuir

nível de escolaridade superior ou razoável poder aquisitivo e acesso a

um mercado de consumo mais sofisticado (em comparação ao setor

popular) não significa necessariamente defesa de uma ideologia

igualitarista (o que a distinguiria das elites sociais e dos setores

populares). Do mesmo modo, considerar que sujeitos psicanalizados,

afeitos ao mercado “alternativo” sejam menos conservadores, também

pode ser precipitado. Obviamente, as classes médias (talvez, seja

mesmo mais seguro usar a expressão no plural) apresentam uma certa

especificidade em relação aos setores populares e a elite; sendo uma de

suas particularidades a heterogeneidade. Tal como metáfora bem

empregada por Francisco de Oliveira (1988), as classes médias são

como a Medusa e sua cabeça cheia de serpentes, cada qual apontando

em uma direção.

Feita essa mediação, a escolha deste universo sócio-cultural se

baseou em uma bibliografia que aponta mudanças nas relações entre

homens e mulheres e deslocamentos dos significados tradicionalmente

atribuídos à paternidade e à maternidade.

Isto não significa, porém, que outros segmentos sociais não

possam apresentar padrões de comportamento autodenominados

“modernos”. As diferentes formas de inserção desses grupos no espaço

urbano, a difusão de informações nesse meio e a própria dinâmica das

relações sociais não permitem a cristalização de um modelo familiar e

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conjugal em um único segmento social em detrimento de outro63,

inclusive porque os limites entre os segmentos populares e médios se

flexibilizam a cada nova crise econômica. Mas não só: o grau de

reflexividade atingido também relativiza o peso estrutural da classe em

cima do ator individual.

A pesquisa se restringe, portanto, a dez profissionaisqualificados, todos do sexo masculino, com escolaridade de nível

superior, vivendo maritalmente, e pais de filhos com idade até 10 anos,

residentes na cidade de São Paulo. A variável idade do sujeito foi

negligenciada, uma vez que o recorte etário foi fixado segundo a idade

dos filhos. Já a etnia não foi considerada como critério de seleção.

Os critérios que se referem à situação conjugal e à presença de

filhos respondem a um interesse bastante específico: criar uma situação

“ideal” que pudesse balizar a análise a partir do problema de pesquisa.

Isto é, foram entrevistados homens casados, que têm filhos numa idade

em que o grau de dependência em relação aos pais ainda é significativo.

Além disso, compartilho do mesmo critério de Marion T. Quadros

(1996), em sua pesquisa de mestrado sobre a “nova” paternidade nas

camadas médias de Recife, ao selecionar casais que tivessem filhos

entre 2 e 7 anos: a possibilidade de focalizar uma geração que teria

desenvolvido sua socialização primária nos anos 1970, sob a influência

de importantes acontecimentos tais como a contracultura, a difusão da

pílula e de métodos anticoncepcionais, o movimento feminista, que

traziam em seu bojo o questionamento dos papéis de gênero.

A opção por esse tipo de família foi meramente um recurso

metodológico. É certo que a sociedade das décadas de 1980/90

apresenta mudanças nas formas de conceber e viver as relações

63 São vários os autores brasileiros que procuram desmistificar uma concepção unívoca de

família recorrente em alguns estudos acadêmicos, que está na verdade baseada em ummodelo conjugal de camada média idealizado. Ver Fonseca, 1995; Duarte, 1995, Sarti, 1996,entre outros.

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familiares como, por exemplo, as famílias conjugais constituídas a

partir de segundas uniões, muitas vezes com a presença de filhos de

casamentos anteriores, de ambos os cônjuges. A maioria das famílias

não compartilha mais o modelo idealizado de uniões baseadas no amor

romântico. O crescimento das dissoluções dos casamentos é um dado a

toda prova: as separações e divórcios por casamento apresentavam, em

São Paulo, um percentual de 22.2% em 1988, passando para 32,4% em

1991 (Oliveira, 1996).

Alguns trabalhos sugerem que as famílias adotivas ou

reconstituídas a partir de um segundo casamento estabelecem relações

distintas das famílias biológicas. Essas relações refletiriam

ambigüidades quanto à parentalidade e confusão sobre as expectativas

individuais (Hanson, 1985). Incluir essas especificidades complexificaria

a pesquisa, o que, por um lado, poderia ser extremamente rico; mas,

por outro, as famílias nucleares, formada pelo casal e seus filhos ainda

são predominantes na sociedade brasileira e acredito ser relevante uma

análise mais cuidadosa dos impactos das mudanças e resistências aí.

Mesmo consciente da diversidade, optei por essas famílias, por

considerar que, apesar do crescimento de famílias chefiadas por

mulheres, do aumento da taxa de divórcio e da própria contestação da

instituição casamento, marcada pelo crescimento de uniões informais,

há indícios de que elas estão se reestruturando, por meio de um

processo de negociação, a partir de uma ética da vida cotidiana, numa

tentativa de transformar suas relações como marido e esposa, pai e

mãe, homem e mulher64.

A preocupação em selecionar homens cujas esposas trabalhassem

fora se refere à possibilidade de averiguar se a inserção das mulheres

no mercado de trabalho promoveria, forçosamente, um maior

envolvimento masculino com os filhos e com os afazeres domésticos,

64 Singly (1993) e Giddens (1993)

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favorecendo a simetria nas relações de gênero. Estou considerando que

um dos aspectos das relações igualitárias deva ser a contestação de um

princípio básico do modelo familiar parsoniano: o homem provedor e a

mulher dona-de-casa.

É preciso salientar que a delimitação do campo de pesquisa leva

em conta dois aspectos: 1) circunscrever um campo de investigação do

qual se pressupõe dar conta; 2) consciência de que a escolha de um

determinado grupo de sujeitos, a partir de critérios bem definidos, não é

sinônimo de um bloco monolítico em relação a outros segmentos sociais

ou mesmo internamente. Sempre haverá diferenças e foi minha tarefa

buscar as relações de convergência e de divergência a respeito da

maneira pela qual esses sujeitos pensam e constróem a paternagem.

Vale destacar ainda que os depoimentos de cada um desses homens, ao

mesmo tempo únicos em sua singularidade, são reveladores de códigos

culturais e simbólicos que denunciam sua inserção em uma certa

fração de classe social e isto funda a possibilidade de um certo grau de

generalização, mesmo porque possibilita comparações com grupos

semelhantes em outros contextos.

A coleta de dados

Para localizar estes sujeitos recorri à “rede de relações”. Informei

amigos e conhecidos sobre a pesquisa e os critérios para a seleção de

possíveis entrevistados. Essas pessoas fariam as vezes de

intermediárias, responsáveis pelo primeiro contato. Preocupei-me

também em diversificar características ideológicas dos entrevistados

(diversidade de profissões, universo cultural e político).

Marquei as entrevistas após o primeiro contato já ter sido

realizado pela minha “rede de relações”. Ao telefonar, os homens sabiam

quem eu era e por que os estava procurando. Normalmente aproveitava

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para falar um pouco mais dos objetivos da pesquisa, mesmo quando era

evidente que aceitariam dar a entrevista. Todos os que me foram

indicados demonstraram significativo interesse em falar sobre o

assunto, curiosos também com o fato de haver alguém pesquisando

sobre paternidade. As entrevistas foram realizadas ao longo de 1997.

Procurei deixar que eles próprios definissem o local para a

entrevista, somente observando que caso escolhessem o domicílio era

importante que a esposa e os filhos não participassem do depoimento.

Seis entrevistas aconteceram no local de trabalho, sendo que das outras

quatro, dois usavam o domicílio como principal ambiente de trabalho e

um estava desempregado. De todas as indicações que recebi, apenas

duas não resultaram em entrevista. Não por recusa, mas por

desencontros de agenda, viagem etc.

Cabe destacar que um dos entrevistados, fugindo à regra de ser

meu total desconhecido, era morador do edifício onde eu residia, por

ocasião da pesquisa de campo. Por ter o perfil definido para a pesquisa

e como não tínhamos nenhum laço mais estreito de convivência, achei

que poderia testar com ele o roteiro de entrevista. Realizei a entrevista

no domicílio e após comparação com as demais entrevistas, não

encontrei nenhuma razão para descartá-la.

As entrevistas duraram, em média, duas horas. Apenas uma

delas, coincidentemente a última, durou apenas quarenta e cinco

minutos. Tratava-se de um sujeito bastante falante, mas que

propositadamente iniciou a entrevista dizendo que era bastante objetivo

sobre qualquer assunto relativo a sua vida, não ficava “dramatizando” e

assim foi, minimalista. Apesar de tão sintética entrevista, e talvez por

isso mesmo, decidi mantê-la para análise.

A delimitação de 10 sujeitos deve-se mais a uma estratégia de

tempo e de recursos financeiros, do que propriamente a um critério

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metodológico. Considerando que cada uma das entrevistas durou, em

média, 2 horas, disponho, aproximadamente, de 30 horas de

depoimentos; material suficientemente extenso para uma análise sobre

a paternidade, sem a pretensão de esgotar o assunto. As informações

colhidas a cada entrevista foram se somando às demais e após o último

depoimento, nenhum dado novo surgiu, que exigisse um

redirecionamento das entrevistas. Atribuo esse fato aos critérios para

seleção dos sujeitos, que favoreceram o estabelecimento de um certo

padrão, inclusive para as contradições.

A técnica de pesquisa privilegiada foi a de depoimentos gravados,

a partir de um roteiro semi-estruturado (em anexo). Com o claro

objetivo de perseguir os dados que me revelassem o processo de

construção da paternidade, o roteiro foi organizado em dois blocos

principais de questões. O primeiro apresenta uma estrutura

fundamentalmente biográfica. É a reconstituição dos acontecimentos

mais significativos, a trajetória de vida à luz das lembranças da família

de origem que permite captar mudanças e permanências em relação à

família de procriação. A entrevista foi iniciada com a descrição da

família, o número de irmãos, a escolaridade, a profissão dos pais,

seguido de relatos sobre o cotidiano familiar e escolar durante a

infância e a adolescência, o relacionamento familiar, e, sempre que

possível, colocando a figura paterna como o elemento desencadeador da

memória. Como dizem Jacqueline Gysling e Maria Cristina Benavente

(1996), essa narrativa permite que o indivíduo se tome como objeto,

olhando-se à distância, expressando uma consciência reflexiva sobre si

mesmo, interpretando o mundo que o rodeia e sua própria vida.

“Revela-se e revela ao outro como quer que o vejam”.

Na seqüência, o depoimento fala do período da adolescência até o

momento atual, enfocando aspectos como métodos contraceptivos

durante o relacionamento com a atual companheira e depois no

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casamento; a gravidez e o nascimento do filho, explorando o cotidiano

do casal com a chegada do bebê; a organização da rotina familiar no

atendimento à criança, abordando inclusive a divisão de algumas

tarefas domésticas.

Para encerrar a entrevista, fiz algumas questões que defini como

“provocativas”. Foram perguntas com o objetivo de captar eventuais

contradições, ambigüidades em relação à narrativa desenvolvida

durante a entrevista. Como, por exemplo, qual a opinião dos

entrevistados sobre homens que solicitam na justiça a custódia dos

filhos em caso de separação65, e o que pensam sobre homens solteiros

adotarem crianças.

O roteiro foi elaborado de tal maneira que a narrativa dos

informantes pudesse revelar, mediante fatos e acontecimentos

marcantes, suas concepções sobre a temática da pesquisa. Este

procedimento induz o informante a seguir uma ordem de questões,

dando à entrevista a forma de seu próprio pensamento, a partir de um

objeto de interesse arquitetado pelo pesquisador. Mesmo com um

roteiro semi-estruturado, a imprevisibilidade se manteve e muitas vezes

acabou precipitando a formulação de novas questões que conduziram a

conversa para outros caminhos, não previstos inicialmente. A fala

pertence, portanto, sempre ao contexto do diálogo; o roteiro apenas

desencadeia o processo e o mantém vivo.

Adotei como parte de meus procedimentos de pesquisa um

caderno de campo para registrar após cada entrevista não só uma breve

identificação do entrevistado, mas também minhas impressões. Nele

constam observações sobre as características do entrevistado, suas

reações às minhas perguntas e anotações de conversas importantes

65 As reflexões sobre essa questão deram origem ao artigo A desigualdade de gênero nas

relações parentais: o exemplo da custódia dos filhos, de minha autoria (Ridenti, 1998) e,portanto, não foram retomadas aqui.

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ocorridas depois de encerrada a entrevista. Esse procedimento já se

revelara bastante útil durante a pesquisa Família e Trabalho Domiciliar

em São Paulo, permitindo que descrevêssemos, por exemplo, o local de

trabalho, que era também residencial e pequenas situações domésticas

impossíveis de serem captadas pelo gravador. É nesse caderno que

também anotei, a cada leitura das transcrições das entrevistas, fatos

importantes que me vinham à memória, completando meus registros

sobre cada um dos contextos de diálogo.

Procedimento de análise das entrevistas

A análise das entrevistas seguiu os seguintes procedimentos:

! leitura das entrevistas acompanhada do áudio da fita gravada;

O objetivo é rememorar a situação de entrevista e anotar no

caderno de campo pequenos detalhes trazidos pela lembrança. É

também nesta fase que sublinhei as falas “interessantes”, que remetem

às questões da pesquisa. Tratou-se de uma leitura vertical das

entrevistas, cada uma sendo analisada individualmente.

! segunda leitura, ainda vertical;

Nesta etapa procurei captar se havia um roteiro subliminar ao

roteiro utilizado para conduzir a entrevista. Afinal, em decorrência da

própria dinâmica da entrevista e da relação (de conflito e de poder) que

se estabelece entre informante e entrevistador outras questões podem

se interpor. Teoricamente falando, essas questões poderiam reorganizar

a problemática da pesquisa, até mesmo refutar o problema inicial.

! última leitura: a visão do conjunto;

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Nesta fase procurei reconstruir as entrevistas horizontalmente,

numa nova totalidade, captando convergências e divergências no

conjunto dos depoimentos a partir dos recortes que havia feito na

leitura de cada entrevista isoladamente e na qual defini temas, em

consonância com as questões de pesquisa, para desenvolver em minha

análise.

Apresentação dos entrevistados

Com base nas informações anotadas no diário de campo e na

leitura dos depoimentos, elaborei um sintético perfil dos entrevistados

que permite visualizar a composição do grupo familiar de origem e de

procriação. Cada um deles recebeu um nome fictício, evitando que

possam ser identificados.

Benício é músico, tem 37 anos. Nasceu em São Paulo e atéos 14 anos morou na Vila Olímpia. O pai, publicitário, nasceu emCampinas e a mãe na capital. A mãe exerceu várias atividades: deuaulas de piano, trabalhou no INPS e foi micro-empresária. Ambostêm curso superior. Na casa dos pais sempre tiveram empregadadoméstica. Benício é o primogênito, têm mais dois irmãos.Saiu da casa dos pais aos 25 anos, quando se casou com Luiza, 30anos, professora numa grande escola privada. Eles têm um casal defilhos: Marlon com 6 anos e Manoela com 3. Ele fez jornalismo e amulher pedagogia. A primeira gravidez aconteceu um ano e meiodepois do casamento, não foi planejada, a tabelinha “furou”. Usamcamisinha, preferida por Benício à pílula, que considera prejudicialà mulher. Tem empregada doméstica e moram em casa própria.

Carlos tem 48 anos. O pai nasceu no interior de São Paulo,trabalhou a vida toda como gerente de banco federal e por issoCarlos nasceu no Paraná. A mãe é do sul de Minas, mas morava nonorte do Paraná quando conheceu o marido. Ele é o irmão maisvelho, de cinco, dois homens e três mulheres. Na primeiraoportunidade o pai se transferiu para o Estado de São Paulo, ondenasceram os outros irmãos. A mãe nunca trabalhou fora.A mulher de Carlos tem 46, é da região do triângulo mineiro. Ela écineasta e professora universitária. Ele cursou a Poli e atualmente éprofessor titular numa universidade pública. Ambos fizeramespecialização na Europa. Moram em casa própria com os 2 filhos,um menino de 11 anos e uma menina de 7. Antes do nascimento doprimeiro filho fizeram dois abortos. A mulher usava pílula e

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diafragma. A gravidez do primeiro filho foi planejada e aconteceu 10anos após o último aborto. Tem empregada doméstica.

Leonel, 39 anos, é engenheiro. Nasceu na Ilha da Madeira,em Portugal, vindo para o Brasil aos cinco anos com a família. Ele éo caçula de seis irmãos, quatro mulheres e dois homens. O irmãomais velho, aos onze anos foi morar na Venezuela, na casa deparentes. Lá trabalhou e ajudou a família que continuava emPortugal. Com a falência do pai vieram para o Brasil. Mais tarde oirmão se juntaria à família em São Paulo. Aqui o pai de Leonel teveuma panificadora e depois um posto de gasolina, no qual eletrabalhou quando adolescente e depois por um período como sócio.A mãe não estudou, sempre foi dona de casa. Nunca tiveramempregados domésticos. Leonel e a irmã mais nova são os únicosfilhos que possuem curso superior.Morou na casa dos pais até os 27 anos, quando se casou. À épocada entrevista Leonel estava desempregado. A mulher, 40 anos, éfuncionária pública da prefeitura, na área da saúde. Eles têm umafilha de 7 anos. Usavam a tabelinha como método contraceptivo. Agravidez ocorreu 4 anos após o casamento, numa falha databelinha. Por contenção de despesas, no momento da entrevistanão tinham empregada doméstica. Moram em apartamento próprio.

Luciano, 35 anos, é descendente de poloneses judeus não-ortodoxos, nascido no interior de São Paulo, veio com dois anospara a capital, se considera paulistano. O pai nasceu no interior e amãe no Rio Grande do Sul. Primogênito, tem mais uma irmã.Moraram por muitos anos no Bom Retiro em apartamento próprio;lá o pai teve uma loja de móveis e depois de tecidos. A escolaridadedo pai é ginásio incompleto, a mãe concluiu o segundo grau. A mãetrabalhava inicialmente com o pai na loja de tecidos e tinha outrasatividades, uma delas numa escola pública onde substituíaprofessores. Até a adolescência dos filhos sempre tiveramempregada doméstica. Luciano formou-se em química pelaMackenzie, logo depois fez extensão para Química Industrial eoutros cursos de especialização. Atualmente, trabalha na áreacomercial e de marketing.Luciano saiu da casa dos pais com 28 anos, quando casou. Suaesposa, 37 anos, formou-se em Engenharia Química. Por ocasião docasamento estava desempregada e não quis voltar a trabalhar,optando por cuidar da casa e dos filhos que pretendia logo ter.Moram com as duas filhas, uma de 4 anos e outra de 2 anos, emapartamento próprio. Usavam pílula alternando com tabelinha ecamisinha. A gravidez foi planejada e aconteceu 2 anos após ocasamento. Tem faxineira.

Luiz tem traços orientais, herança do pai nascido no Japão.O pai era protético, habilitação adquirida num curso técnico desegundo grau. A mãe, brasileira, neta de italianos, completou osegundo grau. Após o casamento dedicou-se à família e aos filhos,não exercendo nenhuma atividade profissional. Nunca tiveramempregada doméstica. Tiveram 3 filhos, dois homens e uma mulher.Luiz é o filho mais velho.Aos 39 anos, ocupa o cargo de diretor de sistemas e processos,numa empresa multinacional. Formou-se pela Politécnica em

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engenharia de produção com especialização nos Estados Unidos. Amulher de Luiz tem 37 anos, formada em Psicologia, atualmentecoordena o sistema de creches de uma universidade pública. Elestem uma filha de 6 anos. Moram em apartamento próprio. Após trêsanos do nascimento da filha, o casal passou por uma crise eseparou-se por um ano e meio. Luiz conta que o distanciamento damulher após o nascimento da filha e sua exclusão dessa relação foiresponsável pela separação. Usavam camisinha como métodocontraceptivo. A gravidez foi planejada e ocorreu 7 anos após ocasamento. Tem empregada doméstica.

Marcos, 37 anos, é formado em engenharia, mas atua naárea de finanças, no apoio a financiamentos e execução de projetos.Marcos nasceu no interior de São Paulo. Tem mais 4 irmãos, 2homens e 2 mulheres. Ele é o segundo. O pai é fazendeiro e a mãeprofessora, mas quando as filhas nasceram deixou de trabalharfora, em casa fazia bordados e enxoval para bebês. Sempre tiveramempregada doméstica. Os pais têm escolaridade superior. Marcosmorou no interior até os 14 anos quando veio para São Pauloestudar.A mulher de Marcos, que também é do interior, tem 30 anos,formou-se em publicidade, após o nascimento da primeira filhaparou de trabalhar. Atualmente está montando uma confecçãoinfantil. Eles têm 3 filhos, a mais velha tem 7 anos, o menino tem 4e a mais nova 2 anos. Usavam camisinha e tabelinha como métodocontraceptivo. A primeira gravidez não foi planejada e aconteceu 1ano após o casamento. Tem empregada doméstica.

Mauro, 35 anos, nasceu em São Paulo, filho de imigrantesegípcios, judeus. Ambos se conheceram e se casaram em São Paulo.O pai, já falecido, era engenheiro químico, formado por escolaBritânica, no Cairo. A mãe, quando solteira, trabalhou numaempresa de aviação, casou-se aos 18 anos deixando os estudos e otrabalho. Mauro nasceu primeiro, depois vieram mais dois irmãos.Sempre tiveram empregada doméstica. Depois da morte do pai, amãe de Mauro voltou a estudar, fez colegial e cursinho e formou-sehá dois anos em psicologia. Está começando a clinicar e casou-senovamente.Atualmente, ele é produtor de vídeo, cursou até o terceiro ano dejornalismo mas não concluiu. Mauro namorou a mulher por 2 anose estavam casados há 8. Porém, ao final da entrevista, revelou quehá duas semanas morava no escritório de sua produtora. Estavampassando por uma crise conjugal, que poderia resultar emseparação definitiva, o que de fato aconteceu posteriormente. Amulher de Mauro, 33 anos, é formada em pedagogia e jornalismo;leciona numa escola privada. Eles têm dois filhos, um menino de 5anos e uma menina de 3. A primeira gravidez foi interrompida.Usavam como método contraceptivo camisinha e diafragma. Agravidez do filho foi planejada e aconteceu dois anos apóscasamento. A mulher tem empregada doméstica.

Péricles, 39 anos, único negro entre os entrevistados, éformado em engenharia eletrônica, com mestrado em administraçãofinanceira. Atuava como juiz classista do trabalho e pelo InstitutoNacional de Mediação em Arbitragem, na área de conflitos da vara

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de família e civil. Também leciona matemática financeira paraexecutivos. Mineiro, nasceu em Governador Valadares, sendo omais velho de seis irmãos, 4 homens e 2 mulheres. O pai éfazendeiro e a mãe dona-de-casa. Tinham empregada doméstica.Até os setes anos Péricles morou na fazenda, mudou-se para acidade quando foi à escola. O pai tem o segundo grau completo e amãe, incompleto.Péricles morou na casa dos pais até os 18 anos, quando foi para afaculdade em outra cidade. Aos 24 anos conheceu a esposa e emum ano estavam casados. Sua mulher tem 39 anos, formada emadministração de empresa, trabalha num banco federal. Eles têmduas filhas, a mais velha com 9 anos e a segunda com 7. Usavampílula como método anticoncepcional e a gravidez foi planejada,ocorrendo 3 anos após o casamento. Tem empregada doméstica.

Renato tem 39 anos e sua esposa 32. Sempre viveu em SãoPaulo; onde seu pai trabalhou por 45 anos numa concessionária ehá um ano e meio está aposentado. A mãe quando solteiratrabalhou numa fábrica de sapato, depois de casada tornou-sedona-de-casa. Ambos têm o segundo grau completo. Renato temapenas uma irmã, que é mais velha.Ele cursou somente até o segundo ano de administração e deixou acasa dos pais aos 31 anos para morar com a atual esposa. Há 4anos tem uma franquia dos Correios. Sua mulher cursoumatemática e pedagogia, foi gerente de banco, mas no momento nãotrabalha. Eles moram em casa própria com as duas filhas, de 7 e 2anos. Usavam pílula como método anticoncepcional, a primeiragravidez ocorreu sem planejamento 3 meses após o casamento. Temempregada doméstica.

Saulo, 39 anos, é formado em engenharia mecânica, masatua como produtor de vídeo. Os pais de Saulo são nascidos nointerior de São Paulo e vieram para a capital para cursar faculdade.Ele é cirurgião dentista e ela fez pedagogia, mas nunca trabalhou naárea. Saulo é o quarto filho, entre seis, mas o primeiro homem. São3 mulheres e 3 homens. Moraram sempre numa mesma casa, nobairro da Lapa. Depois de casada a mãe não trabalhou mais. Afamília dispunha de empregados domésticos, arrumadeira ecozinheira.Saulo deixou a casa dos pais aos 27 anos, quando passou a morarcom sua atual mulher. Ela tem 35 anos e é formada emenfermagem, com especialização em pediatria; trabalha comocoordenadora de uma creche, numa empresa do setor decosméticos. Eles têm uma filha de nove anos. Saulo e a mulherpassaram por dois abortos, um provocado, antes do casamento eoutro involuntário, logo após o casamento. Usavam tabelinha ecamisinha como método contraceptivo. A gravidez da filha foiplanejada, 2 anos após um segundo aborto. Tem empregadadoméstica e moram em casa alugada.

Para situar os entrevistados em relação à sua família de origem,

algumas informações básicas foram organizadas no quadro 1 e

apresentam dados sobre a ocupação dos pais do entrevistado,

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escolaridade, número de irmãos, ordem de nascimento e presença de

empregada doméstica.

Quadro 1

Características principais da família de origem

Nº deordem Nome

Ocupação EscolaridadeNº de irmãos

Ordem denascimento

Empr.doméstica

Idadeque saiude casa

Pai Mãe Pai Mãe

1 Benício Publicitário Funcionáriapública

Superior Superior 2 (H) Primeiro Sim 25

2 Carlos Gerente deBanco

Dona decasa

Médio Médio 1 (M) Primeiro Sim 14

3 Leonel Comerciante Dona decasa

Fundamental Analfabeta 1(H) e 4 (M) Sexto Não 27

4 Luciano Comerciante Funcionáriapública

Fundamental Médio 1 (H) Primeiro Sim 28

5 Luiz Protético Dona decasa

Médio Médio 1 (H) e 1 (M) Primeiro Não 22

6 Marcos Fazendeiro Dona decasa

Superior Superior 2 (H) e 2 (M) Segundo Sim 14

7 Mauro EngenheiroQuímico

Dona decasa

Superior Superior 2 (H) Primeiro Sim 22

8 Péricles Fazendeiro Dona decasa

Médio Médio 3 (H) e 2 (M) Primeiro Sim 18

9 Renato Gerente deOficina

Dona decasa

Médio Médio 1 (M) Segundo Sim 31

10 Saulo Dentista Dona decasa

Superior Superior 2 (H) e 3 (M) Quarto Sim 27

Apresento no quadro 2 alguns dados sobre a família do

entrevistado: idade dele e da cônjuge, escolaridade e ocupação de

ambos, número de filhos e idade a por fim a indicação da presença de

empregada doméstica e de casa própria.

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Quadro 2Características da família do entrevistado

Nº deordem Nome Idade Escolaridade Ocupação Nº de

filhosIdadedos

filhos

Empregadadoméstica

Residênciaprópria

Dele Cônjuge Dele Cônjuge Dele Cônjuge H M

1 Benício 37 30 Superior Superior Músico Professora 1 1 05 - 02 mensalista Casa

2 Carlos 48 46 Superior Superior Prof. Univ. Prof. Univ. eCineasta

1 1 11 - 07 mensalista Casa

3 Leonel 39 40 Superior Superior Engenheiro(desempregado)

FuncionáriaPública

1 7 não Apto.

4 Luciano 35 37 Superior Superior DiretorComercial

Dona decasa

2 4 - 3 faxineira Apto.

5 Luiz 39 37 Superior Superior Diretor deSistemas

Coord. deCreche

(func. publ.)

1 6 mensalista Apto.

6 Marcos 37 30 Superior Superior Diretor deFinanças

Dona decasa

1 2 7 - 4 - 2 mensalista Casa

7 Mauro 35 33 SuperiorIncompl.

Superior Produtor devídeo

Professora 1 1 5 - 3 mensalista Casa

8 Péricles 39 39 Superior Superior Juiz Classista/

Professor aut.

Bancária 2 9 - 7 mensalista Apto.

9 Renato 39 32 SuperiorIncompl.

Superior Gerente deCorreio

Dona decasa

2 7 - 2 mensalista Apto.

10 Saulo 39 35 Superior Superior Produtor devídeo

Coord. deCreche(empr.

Privada)

1 9 mensalista Não

Considerando que a vivência com a família de origem, o relacionamento

com o pai, a mãe e os irmãos são geradores de experiências,

conflituosas (ou não), mas fundamentais no processo de construção da

pessoa, inicio o próximo capítulo descrevendo a família de origem e

analisando os depoimentos que aludem à figura do pai, em particular,

com o objetivo de apreender quais aspectos da experiência de filho

incidiram sobre a experiência de pai. Os relatos sobre a vivência com a

família de origem permitem ainda visualizar como a desigualdade de

gênero se expressava num outro momento histórico e como, no

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momento presente, em que a destradicionalização do modelo de

paternidade na família de origem possibilitou mudanças, ainda se

manifesta como uma das faces da constituição da paternidade nos anos

90.

CCaappííttuulloo 44AA ffaammíílliiaa ddee oorriiggeemm::

aa ddeessmmiittiiffiiccaaççããoo ddoo ppaaii--hheerróóii

Com o objetivo de recuperar a trajetória de vida dos homens desta

pesquisa e estabelecer correlações entre a vivência com o pai e a

construção da própria paternagem, iniciei cada uma das entrevistas

com questões sobre a família de origem: o cotidiano familiar, as

brincadeiras com o pai, o lazer da família, as questões de disciplina e

como descreviam o pai, a mãe, enfim, sobre o relacionamento e a rotina

doméstica na infância e adolescência. A idéia era buscar na memória do

entrevistado sobre a relação pai-filho, mãe-pai, mãe-filho o repertório

que poderia estar favorecendo, ou não, uma paternidade reflexiva e,

portanto, aberta a questionamento e à reformulação de seu conteúdo

tradicional. A tradição, tal como pensada por Anthony Giddens (1997)

está ligada à memória e tem uma força de união que associa conteúdo

moral e emocional. A memória se refere à organização do passado em

relação ao presente; sendo que o passado não é preservado, mas

continuamente reconstruído, tomando como base o presente, a partir

da experiência acumulada, das relações sociais e familiares, num

processo que é, por isso, apenas parcialmente individual (Giddens,

1997:81).

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Pensada como estratégia metodológica, a fala inicial sobre a

infância facilitou o diálogo e permitiu que eu apreendesse os aspectos

relevantes sobre a família de origem. Por outro lado, a possibilidade de

ouvir sobre essa relação pai-filho com o olhar da vivência, com uma

experiência de paternidade já constituída, possibilitou aos

entrevistados, diluir críticas e atenuar eventuais ressentimentos com

relação ao pai. Ter seus próprios filhos habilitou-os, de certa maneira, a

entender as razões que levaram o pai ou a mãe a adotar um

comportamento mais ou menos autoritário, mais ou menos ausente,

bem como para descrever a sua própria experiência de paternidade,

através da analogia por negação ou por aproximação com um modelo de

paternagem e de relação conjugal.

Embora o enfoque deste capítulo seja o entrevistado e sua relação

com a família de origem, em particular com seu pai, algumas questões,

suscitadas no decorrer da análise, levaram-me a antecipar algumas

reflexões sobre a experiência presente do entrevistado com a cônjuge e

com os filhos. Neste sentido, estabeleci uma interrelação entre o tempo

presente (relação com a cônjuge e filhos) e o tempo passado (relação

com o pai e com a mãe) que permite visualizar o processo reflexivo de

construção da paternidade e da masculinidade. Esse vai e vem permite

apreender indícios de mudanças e, algumas vezes, permanências de

comportamentos e valores que estão relacionados à vivência com a

família de origem, à socialização, bem como revelar formas de

resistência encontradas por esses homens para instituir uma forma

própria de posicionar-se no mundo.

O perfil registrado da família de origem mostra que, de maneira

geral, os pais dos entrevistados ascenderam às camadas médias na

esteira do processo de industrialização e urbanização que caracterizou a

sociedade brasileira nos primeiros cinqüenta anos do séc. XX. A

ascensão da família de origem se reflete especialmente na atual posição

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social dos entrevistados — todos têm curso superior e apenas um não

tem casa própria. A trajetória de vida da família de origem registra tanto

a migração dos pais que vieram de outros estados ou cidades para a

capital, como a imigração (o pai de Luiz veio do Japão; os pais de Leonel

de Portugal quando ele ainda era pequeno e os pais de Mauro vieram do

Egito). As dificuldades econômicas e culturais enfrentadas pela família

marcam a atuação paterna. O pai dos entrevistados é um pai provedor,

a quem cabe também a tarefa de encaminhar um futuro melhor para os

filhos e garantir o status familiar. Quase sempre essa expectativa é

conduzida para o filho primogênito de quem se espera que possa

conquistar uma carreira promissora, avançando no projeto familiar de

ascensão.

A história pregressa da família, as dificuldades financeiras, os

sacrifícios são elementos resgatados para explicar o autoritarismo, a

rigidez, que conformam um certo tipo de paternidade e de

masculinidade:

(...) A família do meu pai era pobre. Então, é assim, eles tentaramsegurar a barra lá. Tentaram achar que “isso vai passar”. Elessofreram muitos atentados, meu tio foi esfaqueado lá, ele tem origemjudaica. Eles ficaram muito com isso não resolvido. Não sei se issotem a ver, então ele tinha essa coisa de ser autoritário demais,machista demais, rígido demais com as coisas. E ele realmentequeria que eu, como filho mais velho, fosse um cara que... tinha muitaexpectativa em cima do filho mais velho. Então, tinha que ser bom naescola, tinha que ter objetivos parecidos com os dele. Coitado, foi tudoao contrário. Acabou saindo tudo ao contrário (Mauro, produtor devídeo)66.

Mauro, filho primogênito, frustou as expectativas de seu pai ao não se

tornar nem engenheiro (tal como o pai), nem médico, nem advogado67.

Ele acredita que para seu pai as dificuldades enfrentadas pela família

66 Esse trecho do depoimento de Mauro se refere ao relato sobre a questão da disciplina.67 Contrariando o desejo paterno Mauro não só abandonou a faculdade de engenharia, mas

passou por outras três faculdades na área das ciências humanas, não concluindo nenhuma.Atualmente, é um bem sucedido produtor de vídeo.

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de origem deveriam ser recompensadas na forma de uma condição de

vida melhor, oferecida pelos filhos mediante uma carreira profissional

bem sucedida. A escolarização e uma boa carreira profissional seriam

os instrumentos. Essa mesma frustração, por supostamente não ter

correspondido aos anseios do pai, aparece na fala dos demais

entrevistados

— Qual é a principal lembrança, qual a principal referência quevocê tem dele? Quem vem primeiramente, que te marca, que é amarca do teu pai, assim, na tua vida?

— Olha, o que me marca hoje é que meu pai nunca foi empregado, elesempre trabalhou por conta, foi caminhoneiro, mas sempre teve ocaminhão dele, mas foi caminhoneiro. Depois trabalhou com meu avôna casa de móveis, mas ele que fazia o carregamento, loja pequena;isso nós estamos falando da década de 50, início da 60, mas elenunca foi empregado, mesmo na vida profissional dele, mesmo nosmomentos baixos, quando teve um sócio, tiveram problemas, brigastal, perda de dinheiro e tal. Mas ele sempre teve o seu afazer, daí oseu ganha pão, na qual constituiu toda a família. Eu tenho quasecerteza de que ele gostaria.... por exemplo, meu pai tem uma loja,uma fábrica pequena, tem quatro funcionários e tudo mais, mas é oque garantiu a sobrevivência da família e o que eu tenho hoje, muitascoisas da minha irmã também. Eu acho que ele queria que a gentecontinuasse isso, e dessa loja criasse outras lojas, por aí. Tanto eucomo minha irmã tivemos profissões completamente diferentes. Eununca fui dono de nada, sempre fui empregado, continuo sendo atéhoje. Minha irmã não, minha irmã é fono, tem um consultório. Então,meu pai sempre fala o seguinte “que basta você ser empregado, paravocê ser despedido amanhã”. Então, ele fala de não se envolvermuito, eu ouço isso dele há muito tempo, acho que desde a época queeu optei por alguma profissão, na época do vestibular. Então, elefalou, isso é o que me marca. “Basta ser empregado para amanhãvocê estar desempregado”. Isso é algo que me marca, sei lá, comofilosofia de vida, mas como coisa que ele fez, assim, eu não tenhonão, nada marcante. (Luciano, diretor comercial)

Mesmo apresentando uma trajetória social distinta, que garantiu-lhes

uma ascensão relativa através da escolarização ou de ocupações

profissionais qualificadas, os relatos enfatizam as dificuldades

enfrentadas pela família de origem para chegar aonde estão. Destaca-se

neste contexto a dedicação ao trabalho e que conforma a categoria pai-

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de-família e chefe-provedor. A idealização deste tipo de paternidade e de

masculinidade, fortemente marcada na figura do chefe provedor, do

homem trabalhador, capaz de sustentar o grupo familiar se revelou

persistente no imaginário social e por isso presente nos depoimentos.

Para Cynthia Sarti (1996) a ética do trabalho se constitui em ética

do provedor em razão de uma concepção de trabalho e de relação de

trabalho em que fatores econômicos se articulam a elementos morais.

Sarti está se referindo aos trabalhadores pobres, da periferia paulistana

que estudou para sua pesquisa de doutorado, na década de oitenta.

Essa mesma articulação ética entre trabalho e provedor pode ser

identificada no discurso dos entrevistados ao falarem sobre o pai:

— Como você descreveria seu pai?

— Descreveria da seguinte forma, um cara quatrocentão. Cara assimda antiga, que foi criado da mesma forma que ele me criou, meioseco, meio ríspido, assim. Pegava muito pouco [no colo], deveria terpego mais (...) ele passou a infância com muita dificuldade, entãoacredito que por falta de estudo ele se tornou aquele cara meio ochefão, dono da família. Tem que sair lá fora, resolver tudo para todomundo e aqui dentro quem manda é ele. Então mais ou menos destaforma (...) uma pessoa muito trabalhadora, muito honesta, meu paiera o que todo mundo queria ter e que amigos invejavam...(Renato,gerente de correio)

O trabalho se impõe como referência e afirmação da identidade

masculina e atua sobre o modo de conceber a paternidade, como

veremos mais adiante. Sarti (1996) observou que “A identidade

masculina, na família e fora dela, associa-se diretamente ao valor do

trabalho, não apenas para os pobres. O trabalho é muito mais do que o

instrumento da sobrevivência material, mas constitui o substrato da

identidade masculina, forjando um jeito de ser homem.” (p.66).

A ascensão social da família dos entrevistados foi particularmente

favorecida pelo processo de industrialização dos anos 1950. O nível de

escolaridade é o diferencial, ao qualificar o pai para o exercício tanto de

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uma profissão liberal como para ocupar um cargo no funcionalismo

público ou ainda na indústria: quatro pais tinham curso superior e os

demais haviam no mínimo completado o ensino fundamental e exerciam

atividades técnicas qualificadas: protético dentário, metalurgia, gerência

de banco. Os de menor escolaridade tornaram-se comerciantes: o pai de

Leonel era proprietário de uma padaria e posteriormente de posto de

gasolina; o pai de Luciano possuía uma loja de tecidos no Bairro do

Bom Retiro.

Entre as mães, o nível de escolaridade se assemelha ao dos

cônjuges, com exceção da mãe de Leonel, que era analfabeta. Filho de

pais imigrantes portugueses, vindos da Ilha da Madeira, somente Leonel

e a irmã caçula tiveram oportunidade de cursar a universidade. Os

outros 4 irmãos (3 homens e 1 mulher) trabalharam desde cedo para

ajudar no sustento da família. A família se constitui num

“empreendimento cooperativo” na ascensão social e na educação dos

filhos, principal investimento, facilitado por um sistema público de

ensino de boa qualidade.

O nível de escolaridade das mães e o fato de muitas delas terem

trabalhado antes do casamento não impediram que a maioria

interrompesse a carreira profissional após o casamento e a chegada dos

filhos: oito mães eram donas-de-casa. Só três delas têm 2 filhos, as

demais têm entre 3 e 6 filhos.

Sabe-se que o estado conjugal e a maternidade são fatores

determinantes na trajetória profissional das mulheres. Estudos sobre a

força de trabalho feminina indicam que somente a partir da década de

1970 a participação da mulher casada no mercado de trabalho começou

a se expandir. Até então as mulheres casadas apresentavam uma taxa

de atividade de apenas 9,8%, sendo que em 1980 esse percentual sobe

para 19,5% e em 1993 para 49,7% (Bruschini, 1989, 1998). Ou seja, o

casamento e a educação dos filhos tinham, na geração dos pais dos

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entrevistados, primazia sobre uma eventual carreira profissional, como

é possível ver pelo relato de Luiz:

— Ela nunca pensou em voltar a trabalhar, já que ela era umamulher que trabalhava fora?

— Acho que não. Até porque... quer dizer, minha mãe tinha um poucouma coisa... um pouco nessa linha, de ter se preparado para casar,de ter feito enxoval, e na família dela tem várias, tinha muitasmulheres na família, várias que morreram solteiras. Então acho quetinha muito essa coisa de se preparar para se casar, de se dedicar aomarido... Assim, ela tinha uma coisa de obediência cega, assim atéde matar totalmente a opinião dela e a vontade dela em função domarido ou dos filhos. Então a minha mãe, assim, estar omitindoopinião...Sei lá, submissão, falta de iniciativa, vontade própria. Avontade era... do marido e da família. (Luiz, diretor de sistemas)

O fato da mãe não trabalhar fora é avaliado, em parte, como uma

postura de submissão ao marido e, de outra, falta de vontade própria,

como mostra o relato acima. Ou ainda, resultado de “bloqueio interno”:

— E a sua mãe, como você descreveria a sua mãe?

— A minha mãe é aquela mulher que queria muita coisa, mas foisempre muito submissa ao marido (...) eu descrevo a minha mãe,mais ou menos assim, aquela mulher muito submissa ao marido, coma vontade muito grande de ter as coisas, de batalhar, de crescer,mas sempre foi meio... é... bloqueada por aquelas regras internas.Ela era muito mais atirada e meu pai muito mais pé no chão. Mastambém uma pessoa maravilhosa, passava muito carinho, tratavamuito bem todo mundo. (Renato, gerente de correio)

A vontade do marido associada a valores tradicionais sufoca desejos

pessoais e, em alguns casos, somente após a viuvez o desenvolvimento

pessoal da mãe pôde ser conquistado:

— E qual era o nível de escolaridade dos seus pais?

— (...) a minha mãe quando eu nasci, eu sou o primeiro filho, tinha 18anos. Portanto, segundo os padrões da época, ela largou a vida delatoda, parou de estudar...Ela trabalhava antes, porque como eleseram imigrantes, mesmo as mulheres precisavam trabalhar paratrazer dinheiro (...) E a minha mãe a vida inteira ela quis muitoestudar, ela tentou muito estudar, mas meu pai era muito machista,muito autoritário e dificultou o que pôde. Apesar disso ela fez omadureza para terminar o ginásio, que ela não tinha terminado e só

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depois que ele morreu, que ela ficou viúva, que ela conseguiu fazerdaí o colegial, o cursinho e entrou na Faculdade e há dois anos atrásse formou em Psicologia. Ela está começando a atender agora, comoela se formou no ano passado, ela está começando, está com algunspacientes, tal. Casou de novo. (Mauro, produtor de vídeo)

A submissão da mãe à vontade do marido e dos filhos não significava

necessariamente passividade, como bem demonstra o relato de Mauro.

A casa é considerada um espaço de autonomia feminina. A mãe é, em

geral, descrita como uma mulher forte no comando da disciplina, da

vida familiar e presença marcante na vida dos filhos:

— Mas ela era mais severa?

— Ela era mais severa, controladora, né. Dona do pedaço. Sempreessa impressão de matriarcado, né. Ela era a galinha da casamesmo. Tinha os pintainhos ali... Respeitava demais meu pai, mas agente sentia que a força da minha mãe era muito grande. Transmitiaforça para meu pai, essa era a sensação que até hoje eu tenho.Sensação de criança. (Leonel, engenheiro, desempregado)

Os estudos sobre família68, em especial aqueles desenvolvidos nos anos

80, mostram que para as mulheres ser boa mãe, boa dona-de-casa têm

um forte significado de realização e é fundamental na construção da

identidade feminina. A persistência de um certo modelo cultural de

maternidade e de feminilidade foi discutido por Danielle Ardaillon

(1997) em sua pesquisa de mestrado realizada nos anos 80. Para ela, o

impacto da maternidade sobre a vida das mulheres, no caso mulheres

profissionais, expõe o choque entre o modelo tradicional da mãe que se

dedica à família e o desejo/necessidade do trabalho profissional:

No discurso das mulheres profissionais, a referência ao modelo de“boa mãe” é fonte de dúvidas quanto ao seu desempenho cotidianopor mais de um motivo. A sensação que eu tenho é de que ELAStentam responder a vários apelos, não somente dos outros(maridos, filhos, empregadores, colegas etc.), como seus próprios,de indivíduos com direitos dos mais diversos: à liberdade, à

68 Ver Salém (1990), Dauster (1987), Di Ciommo (1990), Buschini (1990), Sarti (1996), Ardaillon

(1997) entre outros.

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igualdade, à cidadania. Assim, as ambigüidades com as quaisELAS se defrontam não são apenas aquelas da profissional versusa “boa mãe”, mas do indivíduo livre e criador, sujeito de suas açõesversus aquele outro, determinado por uma sujeição a papéissociais pré-moldados. ELAS deixam claro que não se trata dedeixar de ser mãe porque profissional, ou vice-versa, e começam aestar conscientes de que estão desbravando caminhosdesconhecidos (Ardaillon, 1997, p.140).

Ao mencionarem a submissão da mãe à família e à vontade do marido e

dos filhos, ressaltando a abdicação daquelas mulheres à vida

profissional, os entrevistados sinalizam os primeiros indícios de

confrontação ao ideal de maternidade e de relação conjugal. A

independência da mulher, proporcionada pelas conquistas feminista,

pelo trabalho e pelo investimento em uma carreira profissional, é um

aspecto de significativa mudança na geração desses homens em relação

a de seus pais: as esposas de sete entrevistados trabalham fora e eles

consideram fundamental para “a relação do casal” e para ela que

mantenha um projeto próprio de desenvolvimento pessoal. Mais do que

isso, reconhecem que a dedicação exclusiva a família não é um fator de

realização pessoal. Mesmo entre aqueles cuja mulher optou por dedicar-

se à família, está presente no discurso o receio de que essa opção possa

no futuro ser motivo de insatisfação e cobrança. É o que expressa

claramente Luciano quando perguntei-lhe sobre o que pensava sobre as

mulheres trabalharem fora:

— As crianças já estão grandes, as duas estão na escola. No meumodo de ver ela já devia estar retomando um pouco. Eu sempre aincentivei para não parar de trabalhar, mas eu não vejo elaquerendo retomar o mercado de trabalho. Apesar de com algumafreqüência eu tocar no assunto, sempre escuto desculpas maisesfarrapadas. Na época das crianças ela falou que queria curtirser mãe, não tinha nenhuma intenção...ela queria viver essa fasede mãe até a pré-escola, era o objetivo dela, ser mãe. Mas eutenho muito medo disso, eu falo para ela que a gente não sabe odia de amanhã e amanhã ela pode jogar na minha cara que elase dedicou à família e perdeu a atividade profissional dela. Temhora que eu tenho medo do meu casamento...(Luciano, diretorcomercial)

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O trabalho profissional da mulher, a sua realização pessoal é visto como

vital, menos pelo fator financeiro e mais pela satisfação dela e,

conseqüentemente, como garantiria para o bom relacionamento

conjugal. Por outro lado, a maternidade parece não mais sustentar o

vínculo conjugal. Espera-se que a cônjuge desenvolva outros interesses,

minimizando desta forma possíveis expectativas em relação ao parceiro

e à própria relação conjugal:

— Eu acho que é vital. Assim, eu acho que eu não conseguiria casarcom uma mulher que não tivesse a vida dela, que não gastasse aenergia dela, não tivesse as ambições dela, não cruzasse outraspessoas, sabe? Eu acho vital até para o casamento funcionar,areja sabe? Não fica em cima do marido, não fica em cima dofilho, tem as próprias coisas que ninguém precisa saber, leva avida, passa o tempo fora de casa, eu acho que é vital...(Benício,músico)

— Você acha importante a mulher trabalhar fora?

— Super...faz parte hoje, não tem porque não trabalhar. A Tãnia, seTãnia não trabalhasse ela não existiria. (...) hoje ela é cineasta,trabalha com montagem, que é o que ela mais gosta (...) Ficoimaginando a vida da Tânia sem o cinema. Ela simplesmente nãoia existir. Tem as suas dificuldades, claro, com relação aos filhos,eu vejo nela que ela sempre acha que é devedora com os filhos porconta do trabalho. Acho isso meio bobagem, acho ainda coisa decultura que vem arrastando aí, também não precisa ficar grudadono filho o tempo todo. (...) (Carlos, professor universitário)

— Eu lembro que no começo, no primeiro ano que a gente estavanamorando, ela não trabalhava. Então tinha até uma certa...nãouma briga, mas uma insistência para ela começar a fazer isso.Quer dizer, da mesma forma que para mim hoje seria ruim aIsadora não estar numa escola, não estar tendo uma vida maisampla do que ela teria dentro de casa, para mim é ruim ver umamulher que não trabalha. Um pouco como eu vejo a minha mãe,de ter uma limitação em uma série de aspectos, de como ela vê omundo, porque há quase 40 anos ela está dentro de casa... entãosempre tive uma insistência com a Débora para elatrabalhar...Não é nem por questão financeira (...) eu me sentiriamuito incomodado por ela deixar de ter toda uma relação...achoque não daria certo se ela não trabalhasse. (Luiz, diretor desistemas)

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As falas deixam transparecer uma crítica a um certo ideal de

maternidade, no qual a mãe dedica-se exclusivamente aos filhos —

mais do que isso — prevalece a idéia de que as crianças não necessitam

de tanto empenho materno para se desenvolverem. Diferentemente da

geração de seus pais, a realização pessoal da mulher está associada ao

investimento numa carreira profissional. No entanto, a condicionam ao

mero desejo da mulher (basta querer) e não identificam eventuais

obstáculos que podem ter levado algumas delas a abandonarem ou a

adiar a carreira profissional. Para esses homens nem a casa nem a

presença de filhos justifica a opção de não trabalhar fora. A questão que

se coloca é: como operacionalizar a carreira profissional e as imposições

do mercado de trabalho frente à dinâmica da vida familiar, que inclui

demandas diversas com os filhos pequenos ?

O espaço doméstico, expressão da desigualdade de gênero

Os entrevistados relatam que era a mãe quem cuidava dos

afazeres domésticos ou orientava o trabalho da empregada doméstica,

assumindo para si as atividades relativas aos filhos e ao preparo da

comida. Apenas dois deles não relataram a presença da doméstica:

Leonel e Luiz. A família de Luiz era de imigrantes; pai japonês e mãe

filha de italianos; moraram durante algum tempo com familiares

maternos, estabelecendo com a rede de parentesco a divisão das tarefas

domésticas. Mesmo quando passam a morar em casa própria é a mãe

que continua a assumir os afazeres domésticos. Leonel, por sua vez,

também filho de imigrantes, vem de uma grande família com muitas

irmãs (quatro). Todo o trabalho doméstico e de sustento da família era

dividido entre o grupo familiar. As mulheres tanto ajudavam nos

afazeres domésticos como na atividade comercial dirigida pelo pai e,

diante da necessidade, até os filhos homens podiam ser convocados

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para ajudar nos afazeres domésticos, se não estivessem trabalhando,

como foi o caso de Leonel, o caçula da família:

— Todo mundo se empenhava em fazer a limpeza, fazer as coisas dacasa e trabalhar no negócio junto com o meu pai. Então fazia aquelerevezamento. Também uma das minhas irmãs casou na Madeira e foipara a África do Sul, depois é que veio para o Brasil, muitos anosdepois. Então a idade era... as duas mais velhas, eram duas,ajudando meu pai e na limpeza da casa, e os pentelhos, eu e a Tita,atrapalhando e de vez em quando até ajudando alguma coisa.Enxugar a louça era basicamente a minha tarefa. A Tita gostava delavar. E eu não tinha muito o que opinar, se gostava ou não, tinhaque enxugar. (Leonel, engenheiro desempregado)

Cabe destacar que Leonel, na ocasião da entrevista, por estar

desempregado, era responsável por boa parte dos afazeres domésticos

de sua casa, já que o orçamento não permitia custear uma faxineira. A

experiência vivida na casa dos pais, durante a infância e adolescência,

foi providencial:

— E você, tem alguma tarefa sua na casa?

— Tenho. Arrumar a casa (risos). Atualmente...fazer limpeza,vassoura, lustra móveis, lavar louça... Enxugar a louça eu nãoenxugo muito, deixo escorrer, passo um paninho e largo. Antestambém fazia [de estar desempregado], mas como nós dispensamosa faxineira, já um período grande, nós dispensamos a faxineira e eupassei a fazer. Mas antes quando não tínhamos faxineira, tambémfazia. A Julia era pequenininha, e eu que saía limpando apartamento,lavando azulejo, chão. Era um apartamento no térreo, tinha umquintalzinho, lavava o quintal...

— E a Raquel te ensinou a fazer isso ou você foi fazendo?

— Não, eu fazia isso em casa. Fazia em casa, meus pais... o quintaldos meus pais era um horror. Duas horas limpando aquele quintal...meu Deus do céu... Também tinha minhas irmãs, ‘não, você vailimpar o seu quarto’, aí vai lá e limpava o quarto, lavava o banheiro,faxina. Vai limpar não sei o quê...(Leonel, engenheiro,desempregado)

Diferente da geração de Leonel, o envolvimento paterno nos afazeres da

casa era restrito a algum auxílio com a arrumação da mesa para as

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refeições (normalmente o jantar), ou algum conserto. Ou ainda, o pai

podia fazer as compras de supermercado ou da feira. Todos foram

unânimes em responder que o cuidado da casa era uma tarefa da mãe,

que muitas vezes contava com a presença de uma empregada doméstica

ou com a ajuda das filhas. Ao pai cabia o trabalho remunerado, externo

à casa.

AA ddiivviissããoo ddaass ttaarreeffaass ddoommééssttiiccaass

Na fase da primeira infância o pai não é citado como alguém que

divide ou ajuda nas tarefas domésticas. A ele cabe prover o sustento, e

em relação a família, agir na disciplina quando fosse necessário. Seu

envolvimento com os filhos, no entanto, não era desprezível, e muito

provavelmente representou um avanço em relação à geração anterior.

Um exemplo é a disponibilidade de alguns para sentar com os filhos e

ensinar matemática ou inglês, acompanhando as tarefas escolares.

Como foi observado, o investimento na educação dos filhos é valorizado

como forma de ascensão social.

Ainda assim, o relato dos entrevistados mostra que a família de

origem estava organizada de maneira tradicional, cabendo à mãe o

gerenciamento da casa. As mães, como mencionado anteriormente,

apresentavam um bom nível de escolaridade e muitas delas

trabalhavam antes do casamento ou antes do nascimento dos filhos.

Contudo, o casamento e a maternidade se impuseram como um destino

pouco questionado naquele contexto cultural (anos 50 e 60). O relato de

Saulo é bastante revelador deste quadro e da reprodução das

desigualdades de gênero no processo de socialização. Saulo tem três

irmãs mais velhas e um irmão mais novo:

— E a sua mãe, depois do casamento, não trabalhava?

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— Não trabalhava mais. Ela ficou em casa cuidando da gente, muitopresente em casa.

— Mesmo assim vocês tinham empregadas domésticas?

— Eu costumo dizer, na forma pejorativa, que minha mãe foi umadondoca, porque a família dela era muito rica, um chegou a serdeputado federal, e a família do meu pai já não, meu pai já veio deum meio humilde. Então, a impressão que passou é que o meu paiquando casou com ela quis mantê-la no mesmo padrão, desatou atrabalhar que nem um alucinado para manter esse padrão. Então elateve sempre uma ou duas empregadas em casa, lembro muito dainfância que tem assim, a arrumadeira e a cozinheira. Geralmente aarrumadeira cuidava da gente também. Essa história de dar banhoou mandar para o banho, hora do lanche, gerenciava essa situação(...) Eu sempre lembro da minha mãe trocando botão, dando trato naroupa, bainha, esse tipo de coisa. E na cozinha, ela fazia os quitutes,assim, pratos especiais, um doce, ela sempre fez doces deliciosos, tal.Então, ali na rotina era isso.

— E você e seus irmãos, eram irmãs, né, eram responsáveis poralguma tarefa doméstica?

— As meninas, com certeza.

— Você ficava livre...

— Ah... noventa por cento dos casos. Eu não era envolvido...

— Nem a sua cama você precisava arrumar?

— Nunca. Nem pegar cueca do chão, nada. Zero. Já as minhas irmãs,tinham atribuições de deixar o quarto em ordem, elas tinham... eassim eu lembro de levantar, de ir para o banheiro, tomar café, equando eu voltava, minha mãe já tinha feito a minha cama. A açãoera ela, ela arrumava.

— E você se lembra do teu pai ajudando em alguma tarefa na casa?

— (...) em casa ele fazia muito pouco, muito pouco mesmo. Trazia... aimpressão que me passa, ‘a minha função é equipar a casa, vocês seviram. Eu providencio a entrada em grana, e vocês se viram’. Ele...vamos ver, tem que dividir um pouco as etapas da vida, porque naprimeira infância, ele com seis filhos, crianças, trabalhava de manhã,de tarde e de noite no consultório, e à noite ia dar aula num cursinho,cursinho pré vestibular. Então ele ia para o consultório e para ocursinho. Quando ele vendeu o cursinho, ele começou a comprarfazendas, a administrar fazendas, tal. Ele ia para o consultório,ficava até tarde no consultório, e nos dias em que ele não ia para oconsultório ia para as fazendas. O tempo inteiro fora. Essas coisasde... do dia a dia, ele não se envolvia. Não se envolvia mesmo! Maistarde, ele teve alguns acidentes de percurso, acidentes físicos de

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carro (...) algumas rotinas acabaram sendo mudadas. Então nessasegunda fase, que eu já estou adolescente, jovem, ele acaba secomprometendo a de manhã levantar e comprar um pão. Isso elefazia. Mas por épocas.... Aí de repente vem uma empregada quechega todo dia às sete da manhã, já traz o pão. Que eu acho que oformato de hoje é esse, a empregada chega e traz o pão (...) Gozado,se tem alguém ele não faz absolutamente nada. Se não tem, ele faz.Só que estou falando essas coisas, de um pai jovem. Hoje ele tem 72anos, eu vejo ele e a minha mãe super dividindo, ele fazendo ascoisas, lavando... agora ele está mais doméstico... (Saulo, produtorde vídeo)

O relato de Saulo sintetiza o processo de socialização no qual se

estabelece uma clara divisão sexual do trabalho e que compõe um certo

padrão de gênero adotado em nossa sociedade. Às meninas cabem

arrumar o quarto, ajudar a mãe nos afazeres domésticos. Tarefas

femininas. A Saulo, por sua vez, nem mesmo é cobrado “pegar as

cuecas do chão”. Saulo é menino69.

Maria Luiza Heilborn (1995), em pesquisa realizada em bairros

populares do Rio de Janeiro identificou um processo de socialização

semelhante ao relatado por Saulo, no qual é estimulado o envolvimento

feminino nos afazeres domésticos, ao contrário dos meninos, que são

incentivados a exercer pequenas tarefas externas à casa.

O comportamento em relação ao envolvimento do pai, não é muito

distinto. Ele, como chefe-provedor, sai cedo para o trabalho, volta muito

tarde e está ocupado em ganhar dinheiro para o sustento da família.

Não há porque esperar que ele divida os afazeres domésticos. Sua

participação é mencionada como ajuda e não há questionamento desta

ordem das coisas. Diferentemente do que virá a acontecer com a

unidade familiar do entrevistado, no qual mesmo que ele mantenha

uma posição de provedor (até porque seu rendimento em geral é o maior

69 A maioria dos homens entrevistados tinham filhas (são 14 meninas e 4 meninos), assim não

foi possível avaliar como se processava a educação dos meninos com relação às tarefasdomésticas, por exemplo, comparativamente às meninas. Há que se considerar também aidade das crianças, a maioria tem menos de 7 anos, além da presença da empregadadoméstica. Não houve registro de preocupação com a educação das crianças, com relação auma maior equidade de gênero.

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no orçamento doméstico) é esperado da cônjuge uma outra forma de

atuação na estrutura familiar, e que não deve limitar-se ao espaço

doméstico.

No caso da família de origem, somente num outro momento de

vida, o da aposentadoria, há por parte do homem disponibilidade para

uma maior participação na esfera doméstica. Sem ter que sair para

trabalhar, sem estar sujeito aos horários rígidos ele divide com a sua

companheira os afazeres domésticos. Esta diferença do ciclo de vida foi

observada também por Luiz, Luciano e Marcos, que vêem o pai mais

envolvido nesta fase de sua vida com as coisas da casa, do que outrora.

Os depoimentos mostram que é a mãe quem normalmente levava

os filhos ao médico ou dentista e a justificativa é sempre a mesma: “o

pai trabalhava o dia inteiro”. Levar os filhos para escola é uma tarefa

para o pai somente quando a mãe não pode ou porque o trajeto até o

trabalho é o mesmo.

— Quem costumava levar você e seus irmãos ao médico, aodentista?

— Minha mãe.

— Sempre ela?

— Sempre ela. Na escola, meu pai levava por que tinha aquela coisada condução familiar, meu pai saía de manhã para trabalhar, jálevava, deixava todo mundo na escola. Nessa época de infância, agente tinha um carro só. A partir do momento que a gente teve doiscarros, minha mãe sempre fez isso. (Mauro, produtor de vídeo)

— Quem costumava ir às reuniões escolares?

— Minha mãe.

— E quem costumava te levar ao dentista, ao médico?

— Minha mãe.

— Sempre ela?

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— É, por que ela era do lar. Meu pai que trabalhava das oito às oito,às dez ou as doze. (Renato, gerente de correio)

A mãe é do lar e por isso é “natural” que seja ela e não o pai a levar os

filhos para o médico, para a escola, enfim acompanhá-los em suas

necessidades cotidianas. Por outro lado, nenhum dos entrevistados se

referiu, ao longo das entrevistas, à própria mulher como sendo “do lar”

ou “dona-de-casa”, mesmo entre aqueles cuja cônjuge não desempenha

atividade profissional. Como destaquei anteriormente, não é “natural”

para esses homens que a mulher não trabalhe fora. Poderíamos pensar

que neste subtexto há a indicação de que as tarefas domésticas podem

estar sendo negociadas, diferentemente do que ocorria no caso do grupo

familiar de origem.

O pai de Carlos levava os filhos ao médico, quase como um ritual

anual, que acontecia quando iam a São Paulo, já que na época

moravam no interior do estado. No entanto, esse seu comportamento

não significava conhecimento sobre o estado de saúde dos filhos;

apenas acompanhava os meninos ao médico. Diferentemente do

comportamento do pai, Carlos acompanha os filhos ao médico, sozinho

ou com a esposa.

— Quem te levava ao médico?

— Meu pai. isso eu lembro direitinho. Ele que me levava. Ao médico,médico a gente ia uma vez por ano, que era tradição, tivesse ondeestivesse a gente vinha para São Paulo, as tias minhas, irmãs domeu pai que moravam aqui no Ipiranga, então era tradição, nasférias, pelo menos uma semana das férias, era gasto em São Paulopara ir em médico, fazer exame de fezes, porque no interior não tinhanada disso. Fazia um check-up.

— E aí nessas situações iam os dois, ou ia a sua mãe?

— Não, ia o meu pai. Acho que minha mãe cuidava de outras coisas,eu não lembro direito, mas eu lembro que quem ia no médico era meupai, e quem cuidava dessas coisas era ele. Comigo foi assim. Eu nãosei dizer com os outros irmãos, como é que foi, mas comigo foi assim.

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No dentista era ele que me levava... eu lembro direitinho porque eraum escarcéu para ir ao dentista.

— Quer dizer, para levar uma criança ao médico você devia saberum pouco da rotina da criança, né, das coisas, o que come, o quenão come, o que faz e não faz...

— Eu não sei se a consulta passava tanto por aí naquela época, não,viu Sandra. Porque o meu pai era uma pessoa assim de poucaspalavras, acho que ele não sabia o que eu comia, ele cumpria essafunção, tinha que levar, ele levava, mas...examinar, e acho que elenão saberia responder muita coisa a meu respeito não. Minha mãesim, mas ele não. Mas era ele que levava. Acho que ele confiava emexame clínico, essas coisas. Diferente de hoje, quando a gente vainum pediatra homeopático, que tem toda uma conversa, vou eu eTânia junto, essa...

— Você costuma ir, costuma levar os seus filhos?

— Vou, algumas vezes a gente divide. Vou eu ou vai Tânia; sempreque possível a gente vai junto. (Carlos, professor universitário)

Esse comportamento, de acompanhar os filhos ao médico, à escola,

enfim, compartilhar o cotidiano dos filhos com a mulher, é outra marca

de distinção entre a geração dos entrevistados e de seus pais. No

capítulo seguinte, ao explorar o envolvimento desses homens com seus

filhos, veremos que muitos deles estão empenhados não só em

participar, mas em “saber” sobre o filhos: o que sentem, o que pensam.

No entanto, destaco em minha análise dos depoimentos, que a

negociação entre o casal para estabelecer uma divisão das demandas

familiares leva em conta critérios tais como a disponibilidade de tempo

de cada um; a possibilidade de ganho (renda); o tipo de ocupação (que

por sua vez define a disponibilidade de tempo), além de

escolhas/decisões de ordem subjetiva. O resultado desta negociação

tende a manter a divisão sexual das tarefas. Em geral, os depoimentos

revelam que as demandas impostas pelos filhos acabam por absorver

mais tempo de dedicação das mulheres.

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AA eemmpprreeggaaddaa ddoommééssttiiccaa

A presença da empregada doméstica entre as camadas sociais de

melhor poder aquisitivo, como é o caso nesta pesquisa, constitui uma

característica da sociedade brasileira70. Os afazeres domésticos,

culturalmente definidos como uma responsabilidade da mulher, são

condicionados por relações afetivas entre ela e os demais membros do

grupo familiar. Isto é, o trabalho doméstico quando realizado pela dona-

de-casa não é considerado como trabalho, sendo socialmente pouco

valorizado, mesmo quando remunerado, como no caso das empregadas

domésticas. Ao contratar uma terceira pessoa para desempenhar essa

atividade, a mulher com melhor poder aquisitivo se libera das tarefas

que exigem esforço, porém menor habilidade, para trabalhar, estudar

ou exercer outras atividades domésticas, mais valorizadas, como por

exemplo cuidar dos filhos pequenos. A presença da empregada tem o

efeito perverso de reforçar o trabalho doméstico como uma seara

feminina. Ao passar os afazeres da casa para outras mãos femininas, a

estrutura de gênero não é questionada. O que é reafirmada é a

hierarquia de classes.

A presença da empregada doméstica é particularmente marcante

no período da infância, ou seja, na fase em que as crianças são

pequenas e a demanda por atenção é redobrada. Na fase da

adolescência esse padrão muda, mas é a mãe quem continua

assumindo a casa, cabendo aos filhos participarem eventualmente de

alguma tarefa.

— Vocês tinham empregados domésticos?

70 Para um aprofundamento sobre o emprego doméstico e sua decorrência para a desigualdade

de gênero ver Saffioti, Heleieth I.B. Emprego Doméstico e Capitalismo. Petrópolis:Vozes, 1978.;Chaney, Elsa M.; Castro, Mary G. (eds.) Muchacha/ cachifa/criada/emp leada... Trabajadorasdomésticas en América Latina y el Caribe. Venezuela: Editorial Nueva Sociedad, 1993.; Melo,Hildete Pereira de. De criadas a Trabalhadoras. Revista de Estudos Feministas. Rio de Janeiro:IFCS/UFRJ/PPCIS/UERJ.2, v.6, 1998, p.323-357.

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— Ó, eu acho que a gente era bem mimado em casa, pelo fato de terempregadas antigas, sabe, que nem a minha madrinha decasamento, é uma, cara, que foi empregada, há uns trinta anos,estava lá. Tinha essa preta velha, que pô, que me ensinou um montede coisa, também criou metade da minha família. Então, a gentetinha uma mordomia legal nesse ponto. Algumas coisas, eu tendo aser bagunçado com minhas coisas, como você vê aqui, eu sei ondeestá tudo, mas eu sou bagunçado, até porque como eu não tenho umtrabalho fixo, estou sempre trazendo coisa para trabalhar e nemsempre arrumo ou jogo fora tudo. Eu sempre ajuntava muitapapelada, muita coisa, então a minha [empregada] de vez em quandodava uma arrumação, e o que eu costumava fazer? Eu costumavaarrumar a minha cama, não sei de onde eu peguei esse hábito,mesmo tendo quem fizesse. E uma época que eu andei natureba,assim, eu cuidava do meu café da manhã e tal, mas eu acho ... Eutinha uns dezesseis, dezessete, sei lá. Mas era isso, uma parte daminha alimentação teve uma época em que eu fazia pão, essascoisas. Mas de modo geral acho que a gente era bem mimado...(Benício, músico)

Lembro de empregado doméstico desde Assis, eu lembro da gente terempregado em casa. Quando a gente era em três filhos. Pres.Wenceslau também lembro...É, uma pessoa que ajudava a minhamãe nas tarefas da casa. Quem cozinhava sempre foi a minha mãe, eque eu me lembro, a empregada ajudava na limpeza da casa. Masalgumas vezes, eu me lembro, provavelmente porque estava semempregada, eu lembro de encerar, passar escovão...(Carlos,professor universitário)

No grupo familiar de procriação a presença da empregada doméstica é

também marcante. Entre os entrevistados, apenas um deles não conta

com ajuda nem de diarista, nem de mensalista, porque está

desempregado. Na família de origem a empregada doméstica

desempenhava o papel de ajudar a dona-de-casa com os afazeres

domésticos, liberando-a para atender outras necessidades da família e

particularmente dos filhos e menos para um trabalho profissional. Na

atualidade, a presença da empregada em famílias de dupla carreira

(quando ambos os cônjuges trabalham), como é o caso nesta pesquisa,

garante não só o funcionamento da casa como complementa o

atendimento às necessidades dos filhos. A empregada não é responsável

somente pelo serviço doméstico, suas atribuições incluem também levar

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as crianças à escola e buscá-las, colocar os filhos para dormir, quando

os pais chegam mais tarde do trabalho etc.

A presença da empregada doméstica garante a autonomia para a

mulher, que pode dedicar-se ao trabalho profissional. De certa maneira,

a presença dela minimiza os conflitos de gênero, pois tira das mãos da

cônjuge os afazeres domésticos que são repassados para as mãos de

uma outra mulher de classe social inferior. Na ausência da empregada,

os afazeres domésticos teriam que ser negociados e divididos entre os

membros da família. O que se observa é que há ainda uma relativa

dificuldade quanto à negociação dos afazeres domésticos. Essa

negociação implicaria em adequação dos horários de trabalho de cada

um dos cônjuges às necessidades dos filhos e da rotina doméstica.

Veremos mais adiante que o tipo de ocupação profissional, tanto dos

homens como das mulheres, contribui para determinar a intensidade e

a forma de participação do casal na rotina familiar e doméstica.

Pai: provedor, herói

Como vimos, o grupo familiar de origem é organizado de forma

tradicional, sendo o pai o chefe provedor e a mãe, dona de casa,

responsável pelo gerenciamento da casa e pelas necessidades dos filhos.

O pai, além da figura de provedor, é relembrado como o pai-herói

da infância, o pai forte que sabe e pode tudo. Na medida em que o filho

também se torna adulto essa imagem se desfaz, transformada em outra:

a do homem com qualidades e com defeitos, do homem que também é

frágil. Essa constatação sobre o pai é também o reconhecimento de seus

próprios limites como pai. Afinal, na infância e na adolescência há um

certo olhar sobre a figura paterna, diferente daquele da maturidade,

quando filho e pai se aproximam, se identificam:

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— Como é que você descreveria o teu pai?

— Esses dias eu vi, essas coisinhas que tem em banca de jornal. Viuma de pai, que falava um negócio bem estereotipado e eu falei, “umdia vou pensar assim”, e no fim acaba sendo mais ou menos isso.Então... no começo da minha infância meu pai era o super homem, osuper herói, um cara super alto, meu pai... Eu sou baixinho, ele émais baixo que eu. Mas para mim ele era o mais alto do mundo, omais forte... sabia tudo, tinha aquela coisa de autoridade muitopresente, e tal. Então isso, até essa fase quase até os dezoito anos,quando a gente começou a divergir, aí foram também divergênciasprofundas... (Luiz, diretor de sistemas)

— Como é que ele era? Como é que ele foi para você?

— Como toda criança, até os dez anos de idade, pelo menos, do queeu me recordo, era um pai herói. Teve alguns momentos,extremamente amigo, menos pai mais amigo, em outros momentosmuito menos amigo e mais pai. É difícil colocar isso no tempo, mas,como eu podia dizer, papai foi sempre muito preocupado com ascoisas dele mesmo, muito possessivo com as coisas dele (...) Depois,de uma certa época, ele deixou de ser possessivo com os bens, deixoude ser possessivo com tudo, numa outra Era. Agora que ele estáentrando numa outra fase, ele percebe que tem muito mais parareceber do que para dar, então, ficou carente, aquelas coisas. Meupai está com sessenta anos, mas está com o Mal deParkinson...(Péricles, juiz classista)

Como chefe provedor o pai quase sempre está ausente; trabalha em

período integral, às vezes também durante a noite e nos finais de

semana, dependendo da atividade profissional, como foi o caso do pai

de Leonel que mantinha a padaria aberta todos os dias da semana; ou o

pai de Marcos e Péricles, ambos fazendeiros; ou ainda o pai de Saulo,

dentista, professor e fazendeiro de ocasião. Se há um qualificativo

comum para descrever o pai, este é o trabalho. Paternidade e trabalho

estão intrinsecamente relacionados, mesmo quando o assunto era sobre

lazer com o pai:

— E você se lembra de brincadeiras com teu pai?

— Olha, com o meu pai a única situação de brincadeira que ficou,muito forte foi de brinquedos de pilha, brinquedos elétricos, essascoisinhas. Na verdade, na época era muito caro, não era como hojeque a gente compra na feira. Então, ele comprava esses brinquedos e

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não deixava a gente brincar. O barato era... ‘pai, vamos brincar comaquilo’, tal, então ele reservava uma tarde de domingo para descertodos os brinquedos e montar, e eu lembro de brincar com ele, assimmas na verdade acho que era ele que brincava. Tipo, não podiaencostar naquilo ali, eram os brinquedos dele. E a presença dele emcasa era muito rara. A impressão que me passa era que ele estavasempre trabalhando. Mesmo nos fins de semana, porque ele tevefazenda, nos fins de semana ou a gente ia para o sítio, fazenda. Ouele ficava ou ele realmente ia para a fazenda. Então, em casa nãolembro dele, muito. Nem em fim de semana. (Saulo, produtor devídeo)

— Então, meu pai por esse trabalho muito grande na padaria, umtempo muito grande, na infância e mesmo assim boa parte daadolescência, eu lembro pouco assim do meu pai porque ele estavamuito tempo fora de casa. E eu, por outro lado, também saía parabrincar na rua, então tinha um contato pequeno...no domingo, nahora do almoço... Então lembro mais do meu pai, numa fase dos 14anos em diante, que aí eu comecei a estar lá junto com ele no posto,era o posto de gasolina, ia lá ajudar... mas uma pessoa carinhosa, naminha idéia sempre muito alto, grande... depois acabei ficando maisalto que ele, mas uma pessoa muito alta, muito forte, né. Mascarinhoso, carinhoso. (Leonel, engenheiro, desempregado)

A afetividade do pai é lembrada pela dedicação aos assuntos escolares e

pela preocupação em relação ao futuro dos filhos. Se ele não podia

acompanhar a rotina escolar diariamente, o fazia quando o

aproveitamento escolar não ia bem e nestes momentos dedicava algum

tempo para ensinar a matéria ao filho. Esse dado reforça ainda o

argumento de que o investimento na educação, na formação dos filhos

era significativo para as famílias em projeção social:

— E alguém te acompanhava nas tarefas escolares?

— Meu pai, sempre foi assim atento ao boletim. Era o tipo rigoroso.Então, conforme o andamento do boletim, ele se empenhava. Fins desemana, me lembro assim... na... primeira série do ginásio, porexemplo, eu observo agora no meu filho, começa a ter a primeiravontade de malandragem, fazer cola, essas coisas. Eu me lembroassim, na época tinha francês e inglês no ginásio. E eu me lembroque eu ia mal, não gostava, não entendia e relaxava. Eu sempre fuibem aplicado, só em francês e inglês eu não fui com a cara e não meempenhava. Então quando veio minha primeira nota, não lembro qualmas deve ter sido muito baixa, eu lembro que tive vários fins desemana com o meu pai, que não entende de inglês nem francês, massentava comigo sábado e domingo inteirinho. Na prova seguinte eu jáfaturei e daí embalei, fiquei por conta. Entrei no ritmo. Ele era bom de

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matemática, isso ele sempre acompanhava.. Ele era assim, muitoligado, não podia ter nota baixa nem em matemática nem emportuguês. Isso eu lembro bem. Ele não admitia. (Carlos, professoruniversitário)

— (...) Vários momentos, ele investiu na minha educação, quem sabeeu não tenha dado o retorno que ele esperava.

— Você acha que ele tinha expectativa, quer dizer, ele tinha umprojeto, assim, para você?

— Eu acho. Não que ele me cobrasse, mas ele com muita dificuldade,ele sempre dava aulas de inglês para mim, até hoje eu não faloinglês, mas por uma culpa minha não porque ele não investisse emmim. Eu faço, eu estudo inglês há anos, hoje eu estou investindo emmim, mas meu pai investiu há muito mais tempo, então, algunsretornos, ele sabia ou porque ele estava fazendo isso, eu que não tiveconsciência na época de aproveitar. Mas ele nunca deixou de investir.(Luciano, diretor comercial)

O pai rigoroso com as coisas da escola é também o pai severo com

relação à disciplina, ainda que convocado somente quando a mãe não

consegue resolver o assunto. A disciplina desta maneira aparece como

uma responsabilidade de ambos, pai e mãe. A mãe, mais presente no

cotidiano, é quem cuida de resolver os aperreios do dia a dia e, em

geral, recorre mais aos castigos físicos do que o pai. Os relatos, no

entanto, deixam transparecer a severidade, a autoridade paterna

sempre presente e ameaçadora. Ser repreendido quotidianamente pela

mãe era menos ruim do que sentir a “voz autoritária do pai”, mesmo

que uma única vez. Esse poder era, de certa maneira, alimentado pela

própria mãe, que transforma a autoridade paterna num instrumento de

coação e de controle contra os filhos:

— Quem cuidava da disciplina?

— Os dois. Ele mais pela imposição de pai mesmo. Me lembro dele terme dado um tapa só na vida, e minha mãe era no chicote mesmo.Minha mãe não sei se era fruto de ficar ali em casa com oscapetinhas rondando em volta era mais intempestiva. Então lembrode muita surra que eu e meu irmão levamos por conta dela. (Carlos,professor universitário)

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— Minha mãe, no meu caso, o caçula. Dos outros eu não lembro, masacho que era minha mãe também. Eu só lembro de um safanão domeu pai, o único que levei. Devia ter uns sete, oito anos. Estava lápentelhando a vida dele na padaria e ele me deu...do jeito que bateueu entrei pela casa adentro. Foi o único que levei do meu pai. Daminha mãe não, uma infinidade, né. De cinta...(Leonel, engenheiro,desempregado)

— Era um problema, por que quem me dava bronca no dia-a-dia era aminha mãe, mas o pior era o meu pai. Então, quando eu tinha quemostrar o vermelho [notas escolares] era castigo direto. E éinteressante que com tudo isso, minha mãe me protegia, por exemplo,para meu pai castigo era não ir no jogo do São Paulo, então, porquemeu pai sempre me levou, desde pequenininho (...) Então, quando eraépoca de provas, que a gente ia mal e tinha que mostrar o boletim eminha mãe sabia que eu queria ir no jogo tal, deixava passar: ‘nãovou contar para o teu pai nesse final de semana, vou esperarsegunda ou terça-feira’. Então, ela sempre dava essa canja, mas nodia-a-dia ela é quem me cobrava (...) (Luciano, diretor comercial)

— Quem era, estava ali, era minha mãe, mas quem era a voz,autoritário, era o meu pai. A gente tinha até um certo medo dahistoria, porque meu pai, como trabalhava muito, chegava em casa sópara dar bronca, assim: ‘Espera só o seu pai chegar’, ‘seu pai chegare vai te dar uma dura’, era essa a ameaça. Então se o meu paientrasse na... na discussão da disciplina, aí a coisa pegava. A gentetentava sempre manter a negociação no nível da minha mãe, que elaainda era mais mansa. Havia muita ameaça, tipo vai pegar o chinelo,dar dois quentes e três fervendo, minha mãe costumava dizer, paratentar acalmar a moçadinha. Mas a grande autoridade era o meu pai.Tinha muita ameaça, puxão de orelha, tapinha na bunda, umacoisinha assim. Mas a coisa era oprimida na ameaça do ‘vou tetrucidar’, não era bem essa palavra, não lembro qual era, mas eramuito verbal. (Saulo, produtor de vídeo)

Esse mesmo pai, forte, autoritário passa a ser desmistificado quando o

filho, ao tornar-se adulto, descobre que na vida real, ele pode sim

mostrar-se frágil e inseguro. Aqui repousa uma diferença em relação à

geração da família de origem, para alguns dos entrevistados é possível,

e necessário, mostrar a fragilidade em certos momentos. A

masculinidade apoiada no conceito do homem machão, durão, é uma

referência fundamental na constituição da própria identidade, mas

permite também o questionamento das premissas que embasam este

modelo de masculinidade tido como hegemônico na sociedade

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latinoamericana. A fragilidade encontra um espaço para se manifestar e

esboçar outras formas de conceber a masculinidade heterossexual:

— (...) se você fosse fazer um retrato dele, como é que você odescreveria?

— Meu pai era uma pessoa assim muito... meu pai era muito..., euacho que a característica principal, que eu lembro, principalmentepor ele já ter morrido, ele era muito íntegro, muito honesto, levavaa honestidade e integridade até as últimas conseqüências. Elesofreu muito com isso, porque no Brasil tem aquela coisa dojeitinho, que ele nunca conseguiu entender, e, ao mesmo tempo,muito autoritário, muito rígido com as coisas. Ele queria que ascoisas funcionassem do jeito que ele idealizava, muito idealistamesmo. Eu vou te falar uma coisa, eu vou te falar uma única vezque eu vi meu pai frágil: morto. Foi a única hora que eu olhei paraele e disse “pô!”, foi a única hora que eu percebi que ele eramortal, porque ele sempre se colocou como um imortal. Então, euprocuro sim mostrar a fragilidade, quando é a hora, quando euestou realmente frágil, mostrar a dúvida, quando eu estou emdúvida. Agora, por exemplo, eu estou numa fragilidade prácaramba e também mostrando força, porque para haver essaruptura, para haver essa iniciativa,[a separação] que foi minha,foi preciso uma grande força, uma grande coragem, mas aomesmo tempo, assumindo todas as minhas fraquezas, minhasfragilidades, meus complexos. Não vou falar com eles [com osfilhos] na mesma linguagem que eu estou falando com você, masvou falar e espero que eles entendam. Eu acho importante semanter maleável. (Mauro, produtor de vídeo)

— Como é a sua relação com ele hoje?

— Ele sempre foi a referência de poder para mim, de autoridade,pouquíssimas vezes eu o questionei, se ele falou eu não entrava emceleumas com ele, não discutia. Eu tinha uma... dificuldade deconversar com ele assim olhando no olho, ele começava a falar eu jáabaixava, às vezes chorava e me sentia oprimido por esse pai. E eleacabou sendo uma referência masculina para mim, de poder, deforça. Referência de trabalho. Eu sempre o vi um grande trabalhador,uma pessoa que... não mede esforço para trabalhar, atividade setedias por semana, férias eu não lembro dele tirar, as férias que agente tirou dá para lembrar três ou quatro, sempre trabalhando,trabalhando, trabalhando... Tanto é que aos 72 anos continuatrabalhando, não pára de jeito nenhum. É... ele não tem...movimentos de carinho. Eu sinto falta disso, senti falta disso, hoje euconsigo lidar com isso muito mais fácil ‘ele não me dá carinho, foda-se, eu dou carinho a ele’. (Saulo, produtor de vídeo)

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A irrestrita dedicação ao trabalho com objetivo de garantir o sustento

familiar é também explicativa da dificuldade daqueles homens

expressarem afeto. Um relativo esmaecimento nas décadas mais

recentes do ideal de chefe provedor (relativo porque é crescente a

participação das mulheres no orçamento doméstico e no gerenciamento

da família) abre fissuras que desencadeiam um processo de

confrontação em relação às expectativas sociais e individuais da

masculinidade e da paternidade. Paradoxalmente, há uma

“necessidade” de expressar sentimentos, muito alimentada pela mídia e

pela literatura psi.

Ao observar o passado, os entrevistados são levados a captar e

compreender certas atitudes de seu pai. A falta de tempo em

decorrência da dedicação integral ao trabalho, é vista hoje como

referência masculina, referência de trabalho. Mesmo assim, o pai que

na infância é o herói, na adolescência é posto em questionamento,

pequenos defeitos aparecem e os conflitos surgem na vida adulta e a

vivência da paternidade torna o olhar sobre o próprio pai, de certo

modo, condescendente:

— Como é que você descreveria o seu pai?

— Eu acho assim, hoje, eu descreveria diferente de vinte anos atrás,até porque hoje eu sou pai, até porque eu descrevo como sou hoje,com a crítica... Ele tinha um lado muito bem humorado e tinha essacoisa dele não ser ditador, então, tinha um lado mais folgado com ele,não era muito tradicional, a coisa de ser publicitário, um cara muitorápido na idéia e tal. Então, tinha essa coisa dele ser divertido, achoque a principal coisa de quando eu era pequeno, era isso. Depois,quando eu estava adolescente, eu fiquei meio cismado, eu falei ‘pô ocara não é ditador, mas também o cara não se coloca muito, ele nãoestá aí nunca’.

— Você sentia falta da presença dele?

— Eu acho que sentia, ou pelo menos, eu acho que na hora do pau elenão estava lá mesmo, porque não era um assunto, o assuntodoméstico não era muito dele, o esquema da casa. E depois, que eutive filho, eu revi mesmo, eu pensei assim, ‘bom, essa coisa dohomem ficar fora de casa o dia inteiro, tudo bem, ela tem um lado que

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é uma imposição, tem um lado que é uma folga que todo homem podeter’. Porque a coisa doméstica enche o saco, se você for ver, desgastamais do que a vida profissional. Mas, eu dei todo desconto depois queeu tive filho, sabe? Eu pensei assim, era outra geração, de umageração de transição, não sei. E acho que até dentro da geraçãodeles, eles estavam tentando abrir para cabeça da gente rolar. Euacho que eles fizeram o possível, eu acho que eu não tenho, hoje eunão tenho tanta crítica (...) eu acho que, por um lado, tem a cabeça deitaliano e, por outro lado, tem uma coisa de modernizar os hábitosentre aspas, que é você cair na... sabe, significa um pouco não teramarre, significa ser, bem ou mal, você respeitar a liberdade de todomundo se movimentar. E essa coisa de ser casa de homem, eu achoque influencia seguramente. Eu sinto o fato de não ter tido irmãomulher, eu acho que a casa ia ser diferente, na dinâmica (...).(Benício, músico)

O relato de Benício é paradigmático das mudanças e das contradições

que engendram a paternidade e o lugar do homem no espaço privado.

Já na adolescência ele percebe a ausência do pai como uma ausência

de quem não quer enfrentar os problemas domésticos. Diferente dele,

que hoje como pai e, muito provavelmente, por estar mais presente no

espaço doméstico, em função de sua atividade profissional, acaba mais

envolvido com a rotina familiar. Reconhece que a rotina doméstica

“desgasta mais do que a vida profissional”. Porém, “dá um desconto” ao

comportamento do pai, pouco envolvido com as coisas da casa, afinal

ele era de uma outra geração. Ao mesmo tempo, o fato do pai “ não

estar muito aí” é interpretado como uma forma de abrir espaço para a “

liberdade de cada um”, para a individualidade e neste sentido,

representava para Benício, naquele momento, uma modernização das

relações familiares.

A contradição está na justificativa usada para explicar o

comportamento masculino do próprio pai, no passado, e o dele, na vida

adulta: a casa ser só de homens. Isso teria imprimido uma dinâmica

diferente, menos sensível às necessidades domésticas, o que não quer

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dizer que eles não fossem afetivos, eram sobretudo tímidos. A mãe,

neste caso, era durona:

— (...) o lance do meu pai é o seguinte: ele é muito afetivo agora queestá mais velho. É até mais claro . Mas também era muito tímido,mas muito tímido. A afetividade ela era muito devagar para sair, massem dúvida é afetivo. Minha mãe é até mais durona do que ele.(Benício, músico)

Outra expressão de contradição aparece quando o assunto é a

disciplina dos próprios filhos. Todos os entrevistados situam a

disciplina em relação aos filhos como uma responsabilidade de ambos,

pai e mãe. Ainda que a mãe possa ser mais atuante por estar mais

presente no cotidiano dos filhos. Há neste aspecto muitas semelhanças

com as atitudes tomadas na família de origem, em particular com a

questão da “autoridade paterna”. A autoridade e o autoritarismo

acabam se confundindo quase como sinônimos em alguns momentos e

são referidos como um instrumento necessário para impor limites aos

filhos:

— Bom, a gente estava falando dessa coisa da disciplina, dessadivisão da disciplina, aí você estava dizendo que tem, quer dizer, aLú cuida da disciplina no varejo, mas...

— Assim, eu estou muito presente também, eu também cuido dessevarejo, porque o varejo é a bronca, é o cara estar brigando com aoutra, você separa, essa coisa. Agora quando a coisa é mais grave,assim, ou é os dois, ou tem que ser eu, como se... não que eu mandomais que a Lú, mas, porque não sei, “Ó, vai falar com seu pai”, nãosei de onde vem essa expressão “vai falar com seu pai”...

— A Lú usa essa expressão?

— A Lú usa porque ela também é filha de mineiro, o pai dela erabravo para burro, um puta mineiro estourado. E mesmo na minhacasa, onde o meu pai não mandava nada, também minha mãe falava“Ó você vai falar com o seu pai”, isso é da cultura brasileira, não sei oque quer dizer. Outro dia a Lú reclamou para mim “Pô, o Marlon nãotem medo de você como eu tinha medo do meu pai”, eu falei “Graçasa Deus que ele não tem medo de mim”. Eu não sou, eu jamais voudar um esporro no cara, eu sou contra isso, mas assim, uma certadisciplina, vou lá e dou uma dura, mas não vou. As coisas não vão

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ser sem argumentos, mas eu sinto que o cara tem um certo respeito,assim que...Até por que quando eu fico invocado com um negócio nãotem muita conversa, acho que não tem nem que conversar muito,porque eu acho que o cara é inteligente, ele sabe qual é a história. E,as vezes, ele faz para provocar ou ele está de sacanagem, então nãotem conversa

— Aí, é a bronca, mesmo?

— Dou bronca ou dou umas palmadas no cara, também, que eu achoimportante. Não acho nada lógico dar palmadas, mas o cara precisatomar umas também, por que não sei por quê, acho que isso é daeducação, e até faz parte do afetivo, assim...

— Teu pai fazia isso com você?

— Um pouco. Minha mãe dava um pouco de (porrada). Eu acho,assim, a gente lá em casa, a gente discute isso, a gente precisava tertomado uns, a gente precisava ter apanhado e ter sofridoautoritarismo, para gente ter até mais limite ...é que se você é criadosolto, até você fabricar teus limites, cara, isso demora até os trintaanos, então, acho que a gente está sendo prático dentro do limite,muito limite. (Benício, músico)

Benício identifica a “autoridade paterna” como uma característica da

cultura brasileira: é assim, o pai representa a autoridade e deve ser

acionado quando necessário, mesmo que na prática essa divisão não

seja tão nítida, pois como ele mesmo se refere ao pai:“(...)ele não manda

em casa” . Por outro lado, ele questiona a necessidade de uma atitude

mais enérgica para educar os filhos, o melhor é usar argumentos. Mas

quando a “conversa” não funciona, Benício acha legitimo o uso de algo

mais convincente e admite que seu próprio pai deveria ter recorrido a

um certo “autoritarismo” para impor limites que ele mesmo hoje sente

falta.

Relação pai-filho:

o conflito como uma dimensão da paternagem

Ao descrever o perfil da família de origem destaquei a idade com

que o entrevistado deixou a casa dos pais. Essa informação, em

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particular, chamou atenção, uma vez que cinco entrevistados saíram da

casa dos pais após os 25 anos, quando constituíram sua própria

família. Nesta fase de sua trajetória de vida já haviam concluído os

estudos e exerciam alguma atividade profissional. A princípio busquei

uma explicação na hipótese de que esses jovens pertenciam a uma

geração cujo modelo familiar era pouco autoritário e que, portanto, não

havia estímulo para grandes rupturas, próprias das relações entre

gerações. Além disso, tratava-se de um segmento social em que o valor

da educação (escolarização) era maior do que o do trabalho. Isto é, a

família investe nos estudos dos filhos, adiando o ingresso no mercado

de trabalho para quando estivessem com o “diploma nas mãos”. Este

investimento, além de garantir a manutenção do status social da família

ou de ampliá-lo, possibilita alguma forma de retorno para os pais, em

sua velhice.

Contudo, os conflitos estão presentes e não só se mantém como

expressam um rito de passagem, que pode ser interpretado como um

confronto necessário de idéias, de valores e princípios; de

questionamento e afirmação da própria identidade. É a partir deste

confronto que a pessoa se realoca no mundo, redefinindo seus

princípios. Esse processo ganha uma nova luz quando é entendido

como um processo de destradicionalização, tal como pensado por

Giddens (1997). Dispor de um emprego, de um salário que permita

garantir o sustento é fundamental para desencadear o processo de

independência da família. Vejamos o depoimento de Luiz (diretor de

sistemas) contando-me sobre os conflitos com o pai e sua saída de casa:

— Foi um momento de ruptura com a tua família?

— Foi. Inclusive... eu não falei assim que estava saindo de casa,falei que ia passar um tempo na casa deles [de amigos]. Foi umalinguagem cifrada que eu estava... saindo, eles sabiam que euestava saindo, mas oficialmente estava indo passar um tempo...sei lá porque. Aí, foi uma ruptura. Porque aí, no períodoimediatamente anterior, estava ficando bastante... difícil a relação

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principalmente com o meu pai, que estava muito ruim, porque agente estava divergindo completamente. E para mim o problemamaior... não é que eu tinha uma idéia diferente da dele, era queele não aceitava as pessoas terem outra idéia. Independente deser oposta, mais ou menos igual, mas o fato da gente... eu, emparticular, ter uma linha de raciocínio que não era exatamente amesma da dele. Aí tanto é que depois que eu saí, aí a minharelação com ele melhorou profundamente. Porque aí, rapidamenteele aceitou isso daí...

— Você já estava trabalhando naquela época?

— Já. (...) do ponto de vista financeiro, sempre me virei. (...) eusempre tive uma independência, entre aspas, né. Aí quando meformei, estava trabalhando no Itaú, aí já tinha um salário, vamosdizer, razoável, estava me formando, então dava para eu me virar,quer dizer, mais tranqüilamente.

É preciso salientar que os conflitos se iniciaram porque Luiz, filho mais

velho, manifestou desinteresse em seguir carreira militar, a exemplo do

avô. Tendo sido imigrante, o pai de Luiz não pôde seguir a tradição da

família e esperava que o filho o fizesse.

A situação de imigrante é acrescida de outros fatores, como a

educação, a socialização em outra cultura, e intensifica o conflito

geracional. Esse aspecto é apontado por Boris Fausto (1998) em seu

ensaio sobre a vida privada dos imigrantes em São Paulo:

Seria equivocado, porém, associar a família tão-somente a umsigno positivo, como suporte afetivo e material, pois, no seuinterior, ocorrem fortes e às vezes explosivas tensões. Sob esseaspecto, membros da família imigrante — assim como dequalquer família — descarregam, em certas situações, noâmbito privado, problemas e frustrações reprimidos na vidasocial. Para além desse quadro geral, alguns elementosespecíficos integram a complexidade do relacionamentodoméstico no âmbito familiar do imigrante e seusdescendentes. Entre eles, destaquemos o conflito geracional,decorrente entre outros fatores da educação, trazendo comoconseqüência a apreensão de dimensões diferentes da vida, oaprendizado da norma culta da língua do país, os contatoscom gente de outras etnias, os quais conduzem a amizades eligações afetivas não controláveis (Fausto, 1998:36)

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É interessante observar que o pai de Luiz, japonês, já havia ele próprio

rompido com a regra endogâmica, típica de sua etnia, casando-se com

uma descendente de italianos, revelando ele próprio uma postura de

resistência aos costumes de seu povo. Mas nem sempre a ruptura com

o tradicional é definitiva; ao contrário persistem comportamentos que

são claramente não-reflexivos. Coube a Luiz avançar na

desincorporação de valores tradicionais nas esferas mais imediatas da

vida cotidiana: na relação pai-filho, neste caso. O conflito com a

autoridade paterna, no plano da vida privada, ganha força com a

resistência à autoridade política, do período da ditadura que marcou a

adolescência de Luiz.

— (...) Tanto é que até essa idade, até os 18 anos, eu diria que nuncative nenhum grande problema em casa, nenhum grande atrito, até ahora em que eu comecei a ter algumas atitudes próprias, da minhacabeça. Quer dizer, comecei a falar isso por causa do período de...tanto é que quando comecei a ir para a faculdade, um período quetinha uma agitação política muito grande...

— Você fazia parte do movimento estudantil?

— É, eu entrei na faculdade exatamente no ano que o movimentoestudantil foi retomado no Brasil, foi o ano em que começaram a sereorganizar as entidades estudantis, depois de anos de ditadura, derepressão. Então essa coisa para mim estava ficando muito colocadade... se rebelar contra a, vamos dizer, a repressão... até hoje eutenho... se vou num lugar, o cara fala de uma maneira muito rígida,muito enérgica, é um negócio que me incomoda. E isso de algumamaneira, tinha esse mesmo sentimento dentro de casa. Tinhaalgumas coisas que eu estava brigando fora de casa, e dentro decasa eu também sentia só cobrança... Na minha cabeça, eu nãoestava fazendo nada errado, continuava cumprindo minhasobrigações, vamos dizer assim, estava na melhor universidade dopaís, estava... estudando, e estava sendo... comecei a ser cobrado emcasa. Quer dizer, comecei a sair de uma situação, que eu sempre quistudo dentro dos conformes, mas não tinha nenhuma vida externa. Apartir do momento que comecei a ter isso, começou a ter um conflitodentro de casa. A partir daí, minha relação em casa sempre... querdizer, começou a ser mais complexa, principalmente com o meu pai.

O direito de se expressar negado pelo pai ao filho, de ter atitudes

próprias é o mesmo direito reivindicado pelo estudante inconformado

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com a autoridade do “superpai” (superpadre na expressão utilizada por

Regina Nava, 1995) corporificada “no conjunto de instituições que,

dirigem, controlam e detém, em diferentes níveis, os poderes políticos,

econômicos e sociais e, simultaneamente estabelecem os conjuntos de

normas que conformam os modelos hegemônicos para organizar a

sociedade”, tais como o Estado, os partidos políticos, as classes

dominantes e os meios de comunicação de massa (Nava, 1995, tradução

livre).

O enfrentamento de Luiz à autoridade paterna, sua resistência às

imposições do pai sobre seu futuro têm o mesmo significado da recusa

de Mauro a cursar uma faculdade apenas para satisfazer um desejo do

pai. Saulo encontrou outra estratégia de enfrentamento: fez o curso de

engenharia, como o pai desejava, entregou o diploma ao pai, e seguiu a

carreira profissional de seu agrado: produção de vídeos. Percebe-se que

nestes embates familiares, valores e comportamentos são questionados

e reavaliados. A negação, num primeiro momento, de tudo o que a

família e o pai representam age como esteio para a conformação da

identidade. O modelo hegemônico de masculinidade (e por suposto de

paternidade) está presente, como verdade secular, mas é a todo

momento confrontado, questionado e neste sentido, permite que outras

formas de atuação, mediadas por valores tradicionais e outros pós-

tradicionais (ou modernos), possam co-existir.

AAddoolleessccêênncciiaa ee sseexxuuaalliiddaaddee:: oo ccoonnfflliittoo ggeerraacciioonnaall

A fase da adolescência é reconhecida como momento de transição,

como período de transformação física e comportamental, na qual se

destaca a iniciação da vida sexual. Os homens que entrevistei embora

tenham feito parte de uma geração de transição dos comportamentos

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sexuais desvendaram os mistérios de sua sexualidade da mesma forma

que seus próprios pais, isto é, entre amigos ou sozinhos.

— Olha, um pouquinho de falta, eu senti, talvez, foi nessa partesexual, que eu acho que ele devia ter falado mais comigo, vai,primeiro por ser homem. Você vai falar “mas, a tua mãe que deveriater falado com você” Não, minha mãe, naquela época, seria um poucodifícil, mas ele podia ter chegado e “Ó meu, o papo é o seguinte: Ó lána rua, vai rolar isso, isso, isso, fica esperto com isso, com isso, comaquilo”. Essa é uma parte que eu acho que ele faliu, do resto tudo queele fez, fez muito bem feito e na hora certa. (Renato, gerente decorreio)

A vivência da sexualidade masculina é perpassada por repressões e

desconhecimento; não havia espaço para falar naturalmente sobre a

sexualidade. Mesmo entre aqueles que tiveram algum tipo de diálogo, a

orientação sexual se limitou a aspectos “técnicos” da questão e não

emocionais, afetivos. Neste sentido, não só a sexualidade feminina é

cercada de interdições, de regras de comportamento ou exigências. A

idéia de que a sexualidade masculina é valorizada e evidenciada, de que

o exercício da sexualidade dos meninos é estimulado está mais presente

no imaginário social do que na prática. O próprio ocultamento é uma

maneira de falar sobre a sexualidade, como aponta Foucault. É certo

que sempre houve um controle explícito da sexualidade feminina,

porém, a sexualidade dos meninos sofre interdições menos rígidas, mas

que têm conseqüências sobre a identidade masculina.

Benício é um homem que vem fazendo terapia há algum tempo o

que lhe permite refletir sobre os conceitos de masculinidade que lhe

foram impingidos. Fez-lhe falta uma dose de afetividade, de

sensibilidade, e que atribui entre outras coisas ao fato de ter sido criado

numa família predominantemente masculina:

— Você teve algum tipo de conversa sobre orientação sexual comseu pai?

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— Teve com meu pai e com minha mãe, saca, de dar um papo e tal.Mas, assim, acho que o que eu conversei com meu pai sobre a minhainiciação sexual, tecnicamente até resolve para você perder algummedo, mas assim o afetivo, a geração é bem diferente. Então, eu atéquebrei a cara quando eu tinha que quebrar, mas eu levei uns anospara entender que pelo menos o meu temperamento funcionava maisafetivamente, para coisas que na geração dele, acho que se resolvia,não digo friamente, mas o macho tinha que desempenhar mais antesdo que agora, e eu acho que dá para ser mais afetivo.

— Essa mudança que você sente em relação a essa pressão de terum determinado comportamento do homem, na adolescência, issote marcou muito?

— Para mim, se é sexualmente? Me marcou, me marcou. Acho quenão tanto quanto se a minha casa fosse tão tradicional, sabe, sefosse família de italiano, assim, mas não deixou de influenciar. E euacho que o fato da casa ser uma casa de homens tambéminfluenciou, talvez, até mais isso do que a pressão, a pressão naturalde educar esse homem. Pô, porque uma casa de homens você nãotem uma mulher para ver o outro lado da iniciação, por exemplo. Ecasualmente, o colégio do Estado que eu estudei, nos anos 70,quando eu estava entre os dez e quatorze, era só de homem. Odiretor achava que homem e mulher não combinavam, isso tambémme influenciou, assim, a cabeça. Não é que você fica machista, masvocê fica com um certo tipo de falta de finesse, que dá quando umsexo fica muito perto da própria prática, acho que isso vai paramulher também, muita mulher junto também acho que não dá certo.(Benício, músico)

A fala de Benício é expressiva de um comportamento autoreflexivo sobre

masculinidade. O modelo paterno é reconhecido por ele como aquele do

“macho que tem que desempenhar”. Benício questiona este modelo e,

mais do que isso, se permite ser mais afetivo do que socialmente é

esperado do homem macho heterossexual latinoamericano. Ao refletir

sobre a influência do modelo masculino recebido em sua socialização,

atribui à falta de convivência no ambiente familiar, e mesmo na escola,

com mais mulheres. Neste sentido, reconhece que há um código de

conduta próprio aos homens, aos seus pares e que poderia ser

corrompido se mesclado a uma maior convivência com o universo

feminino.

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Se para muitos falar de sexo com os pais não era uma tarefa fácil,

para alguns o contato com outras famílias mais liberais permitiu

contrabalançar as dificuldades enfrentadas com o próprio pai. Saulo

conta uma longa passagem de sua adolescência sobre isso:

— Ah, essa passagem é interessante. Eu gosto de falar dela. Eu...sempre quis namorar, desde muito cedo, eu queria namorar. Nãotanto pela parte sexual do namoro, mas pela coisa de querer estarjunto com uma menina, era uma coisa que eu morria de vontade.E tinha uma dificuldade absurda, porque na primeira fase daadolescência, dos treze aos quinze, eu rapidamente ficava amigodas meninas, então na escola, eu era tipo o líder da classe, masnão o líder assim de ser o conquistador, é que todas elas erammuito amigas minhas (...) Mas logo que eu consegui dar um jeitona história e consegui uma namorada, devia ter uns 16 anos, 17anos, eu grudei na menina. Grudei! Os pais da menina, supercabeça aberta, deixaram a gente namorar à vontade, então saí decasa, praticamente desapareci da minha casa e fui morar na casada menina. Mas o morar, era um morar super careta, eu ia para aescola, à tarde eu ia passar a tarde na casa dela, e à noitevoltava para casa. Não tinha aquela coisa de dormir na casa damenina. Mas meus pais ficaram tudo de orelha em pé: ‘como?que história é essa? Como os pais deixam?’ Essas coisas todas.Aí um dia, estou na casa dela, jantando, no meio da semana, meupai liga dizendo que eu tinha que ir para casa que ele tinha que irpara o sítio e queria que eu fosse junto. Eu falei , ‘não estou a fim,não vou’ . Imagina, tinha 17 anos...trocar pelo sítio.. Só que quemfalou isso foi minha mãe, não foi meu pai. Minha mãe pegou otelefone e falou, ‘olha, vem prá cá que você tem que ir para o sítio’,‘Eu não vou, não sei quê’. Aí ela começou com a ameaça, ‘olha,vem, que o seu pai quer que você vá’, fez aquela pressãopsicológica e falei ‘está bom, vamos lá’. E saímos de casa, umasnove horas da noite, até Cabreúva, Itú, para ir para o sítio. Falei‘o que você vai fazer à noite, no meio da semana’... E a ida para osítio era para uma conversa porque estavam ficando apavoradoscom as questões sexuais. Mas eu já com 17 anos, trepando com amenina à vontade, e ela... eles agora tinham acordado que podiaacontecer alguma coisa. Aí, abordou a questão toda só para olado da medicina, da medicina da época, nem tinha Aids. ‘Vocêpode pegar uma sífilis, uma gonorréia, uma coisa’, e falei ‘pai,estou namorando uma menina de 15 anos, sou o namorado dela,é com ela que eu trepo, não vou para uma zona, nada disso’.‘Não, são as meninas mais direitas que acabam tendo asdoenças’. Um papo totalmente equivocado, em termos de conceitoe linguagem para aquela situação. Foi a única vez que houveabordagem direta, do assunto, do caso. A minha mãe nãoconseguia nem falar no assunto, zero e com ele foi esse papo. Só.A descoberta da mecânica do sexo, com nove, dez anos, foi com

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amigos. ‘Ei, sabe como é que é?’, e pega e conta, e ‘nossa, mas éassim, não é possível!’, né. A partir daí, com amigos, nem com osirmãos a gente conversava, era um assunto super tabu, assim,não se falava. Por outro lado, a minha casa tem uma bibliotecafantástica. E tem muitos livros, não atualizados, porque... hojeeles estariam superados, mas com informações claras, técnicas,assim ‘a nossa vida sexual’, ‘sexo no casamento’, coisas assim,que na hora que eu comecei a me interessar eu mesmo fui nabiblioteca, pesquisei, eu lia e tirava minhas dúvidas nos livros,pesquisando, eu mesmo...

O depoimento de Saulo mostra a dificuldade da família, mesmo entre os

mais instruídos, de orientar seus filhos para a vida sexual,

particularmente com relação à gravidez. O relato de Saulo sobre a

descoberta da mecânica do sexo se assemelha a de outros

entrevistados, que também recorreram a amigos, primos para

“aprender” sobre a vida sexual. Por tratar-se de um menino, a

orientação é dirigida aos riscos das doenças sexualmente

transmissíveis. A gravidez, como veremos na seqüência do depoimento

de Saulo, era um assunto para as mães das meninas:

— E como é que você, porque, pelo que você me fala da preocupaçãodo teu pai, em relação a isso, era em relação a possíveis doençasque você podia ter. Mas e a questão de uma gravidez? Como vocêlidou com isso?

— Não se abordou, com ele pessoalmente não teve esse tipo deabordagem. As questões da gravidez, para mim, aconteceram quandoeu comecei a transar com a Liliana. Os pais dela, muito diferentesdos meus, eram muito abertos, o pai dela era médico, a mãe dela eraprofessora de português, então tinha um nível cultural super legal,tal, quer dizer... com eles a gente acabava conversando. Me lembroque a menina, perguntou para a mãe se podia usar O.B, a mãe falou,‘se você ainda é virgem, é meio complicado, precisa fazer uma coisamais bem feita’, e ela ‘não, mãe, já não sou mais virgem’. Aí a mãe‘mas como, você e o Saulo já estão transando?’, ‘é, estamos’. Aí elasentou com a gente, a mãe da menina, para ter um papo a respeitode perigos, de como funcionava, anticoncepção... Só que eram todasconversas, que bem ou mal a gente já tinha tido eu e ela. ‘Olha,funciona assim, tem que esperar a menstruação, não pode transar nointervalo’... Informações que a gente sabia de boca a boca, e porpesquisar, eu tinha pesquisado nos livros. Eu queria saber dessascoisas. (Saulo, produtor de vídeo)

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É interessante notar que se havia dificuldades para a família de Saulo

abordar assuntos relativos à sexualidade, para outras o assunto podia

ser abertamente discutido, inclusive como forma de controle. Saulo

usufruiu do contanto com uma destas famílias, mais liberais e de sua

própria curiosidade que o levou a pesquisar o assunto em livros,

estabelecendo a partir daí seus próprios critérios para o exercício de sua

vida sexual.

A destradicionalização da Paternidade

Anthony Giddens (1993,1997) argumenta que na sociedade

moderna, ou pós-tradicional, como ele prefere, as tradições se mantém

somente quando bem justificadas. Os relatos desses 10 homens, de um

segmento das classes médias, corroboram o argumento de Giddens, na

medida em que seu discurso sobre o pai, sobre o cotidiano familiar está

permeado por críticas, avaliações e questionamentos sobre

masculinidade, paternidade e sexualidade, como é possível apreender

nos depoimentos.

Vimos que o pai-herói, provedor dedicado à família se constitui

numa referência masculina positiva, ainda que passível de crítica e até

mesmo de reformulação. O olhar crítico sobre o comportamento do pai e

a vivência pessoal com a paternidade, com a vida conjugal, mais o

capital cultural adquirido em sua trajetória de vida (adquirido num

momento de muitas transformações sociais, mudanças de valores e

costumes) favoreceu que esses homens formulassem outras formas de

conceber a masculinidade heterossexual, na qual a afetividade e a

fragilidade puderam encontrar espaço para manifestação.

O olhar crítico se espraia também sobre as relações com as

mulheres. Os homens que entrevistei compreendem a atitude de

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submissão da mãe que abdicou de uma carreira profissional, mas

entendem que esse comportamento não cabe às mulheres de sua

geração. Percebe-se que a ideologia da mulher independente está

incorporada pela geração destes homens e a consciência de viver uma

relação onde o outro tem autonomia em suas decisões desencadeia um

processo no qual os arranjos familiares e a participação de cada um na

estrutura familiar é articulada de maneira distinta daquela na família

de origem. Pode-se afirmar que há um movimento favorável às

mudanças nas relações de gênero, no espaço da vida privada.

No capítulo seguinte procuro apreender dos depoimentos as

diferentes formas de expressão das desigualdades de gênero, sendo

uma delas o cuidado com os filhos. Temas como gravidez e parto, a

rotina com os filhos e com a casa, a relação do casal com a chegada do

filho, e o significado de ser pai emergem como um roteiro, descrevendo

como esses homens expressam a paternidade e a paternagem e como

essa experiência se faz em suas vidas.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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CCaappííttuulloo 55

AA ppaatteerrnniiddaaddee nnooss aannooss 11999900

A experiência paterna de que trata esta pesquisa é constituída a

partir de uma relação entre um homem e uma mulher, ou seja, a partir

de uma relação heterossexual, assentada na família. Esta experiência

foi construída também ao longo da vivência na família de origem,

constituída por um pai e uma mãe, seguindo um determinado padrão

hegemônico de organização das relações familiares. Ainda que se saiba

que a sociedade vem apresentado formas variadas de organização

familiar, o modelo conjugal, heterossexual, mantém caráter hegemônico

e normativo respondendo à necessidade de assegurar a reprodução

biológica e sócio-cultural da sociedade brasileira.

O pai, seguindo a definição de Regina Nava (1999), é aquele

homem que se vincula afetivamente com seus filhos, de maneira

permanente e cotidiana, exercendo sobre eles poder de gênero e

geracional, em conseqüência da diferença de idade. Uma série de

fatores afeta a maneira como um homem exercerá sua paternidade.

Nava (1999) destaca os seguintes: 1) características individuais de sua

personalidade psicológica e de sua inserção na hierarquia social, ou

seja, de acordo, com sua classe social, raça, nível de escolaridade, tipo

de ocupação, afiliação política e religiosa, idade etc.; 2) a forma como

exerce sua masculinidade, ou seja, a forma como se relaciona com

outros homens e com as mulheres; 3) a forma como se realiza e mantém

a relação conjugal, que, por sua vez, depende do grau de flexibilidade e

dos arranjos na divisão do trabalho doméstico e extradoméstico;

dependendo também da relação de poder no interior da família e do

processo de tomada de decisões, cotidianas e a curto prazo.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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A forma como se materializa o compromisso afetivo, emocional,

amoroso e erótico, se traduz em relações que podem ser duradouras ou

não. Nava (1999) destaca a influência da rede familiar e de compadrio,

que favorece a reprodução dos esquemas aprendidos na família de

origem, bem como sua transgressão, buscando modelos diferentes, a

partir da reflexão de sua própria experiência como filho; 4) depende

também do número real e ideal de filhos, assim como da forma como a

paternidade ocorreu, se foi de uma gravidez planejada, acidental, ou

meramente resultado de obrigações sociais e conjugais.

Esses fatores permitem mediar a análise dos depoimentos quanto

à forma como os entrevistados elaboram a paternidade e exercem a

paternagem. Procuro ressaltar dos depoimentos diferentes dimensões

da paternidade expressada nos distintos momentos de sua trajetória na

constituição da família de procriação, atendo-me sobretudo ao período

da gravidez, dos primeiros anos de vida dos filhos.

É preciso observar que a participação, o envolvimento do homem

com seus filhos pode apresentar graus de intensidade e de significado

de acordo com as diferentes fases da trajetória familiar. A relação

marido-mulher ganha contornos distintos durante a gravidez e

posteriormente com a chegada da criança, quando a relação pai-filho (e

mãe-filho) se concretiza. A partir daí diferentes experiências irão se

somando ao longo do exercício da paternagem: os primeiros dias com o

bebê, a etapa escolar, a adolescência, a entrada dos filhos na faculdade

e no mercado de trabalho, a relação do pai com o filho adulto e depois

com os próprios netos. Nesta pesquisa, a análise estará restrita à

primeira fase na constituição da paternagem, qual seja, da primeira à

segunda infância, segundo critérios estabelecidos para a seleção do

grupo entrevistado, que previa homens-pais, com filhos até 10 anos de

idade.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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O grupo de homens que entrevistei tem idade média de 38 anos.

Todos com curso superior, sendo que apenas um não concluiu a

faculdade. Dois deles tem especialização no exterior. Entrevistei um

músico, dois produtores de vídeo, um gerente de correio (detém uma

franquia), um diretor comercial e de marketing, um diretor de sistemas

e processos, um juiz classista, um diretor de financiamentos, um

engenheiro de produção (desempregado) e um professor universitário da

rede pública. Todos vivendo maritalmente71 há pelo menos 8 anos, em

média. Porém, um deles, Mauro (produtor de vídeo, 2 filhos), revelou-me

ao final da entrevista que passava por uma crise conjugal, na qual a

separação estava sendo fortemente cogitada, vindo a se confirmar

tempos depois. Optei por manter a entrevista ainda assim, pela riqueza

do depoimento e pelo fato dela expressar a dinâmica que envolve as

relações familiares e os conflitos que permeiam as relações de gênero.

Outro caso foi o de Luiz (diretor de sistemas, 1 filha), além de

estar no segundo casamento (o primeiro durou um ano, sem filhos),

viveu um período de separação da atual companheira, três anos após o

nascimento da filha, vindo a reatar o casamento um ano e meio depois.

Neste caso, as mudanças no relacionamento do casal decorrentes do

nascimento da filha foram decisivas na crise conjugal e trazem

interessantes elementos para a compreensão do impacto da paternidade

na vida do homem e do casal.

Ambos os casos desmontam a pressuposição de que podemos, a

partir de critérios pré-definidos, controlar nosso objeto de estudo e,

portanto, a realidade social. Nesse sentido, permiti-me uma

transgressão nos critérios de seleção definidos a priori e mantive os dois

depoimentos para análise. O modelo parsoniano de família constitui-se,

pois, num recurso metodológico que, absolutamente, não dá conta da

71 Uso essa expressão para caracterizar a relação conjugal, não me limitando ao estado civil, já

que alguns dos entrevistados não se casaram nem no civil, nem no religioso.

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EXPERIÊNCIA MASCULINA DA PATERNIDADE NOS ANOS 1990:estudo de relações de gênero com homens de camadas médias

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realidade social, muito mais dinâmica e complexa. Deste modo, os

homens entrevistados para esta pesquisa compõem famílias conjugais,

formadas pelo casal e seus filhos, sem a presença de enteados. As

singularidades de cada uma das entrevistas, como no caso de Mauro e

Luiz, são apenas um elemento a mais no tratamento dos dados.

Todas as cônjuges têm curso superior e trabalhavam antes do

nascimento dos filhos. Três delas não exerciam atividade profissional no

momento da entrevista. É interessante observar que, com exceção da

esposa de Carlos, que é professora universitária e cineasta, as demais

exercem atividades profissionais que, em geral, apresentam significativa

concentração de mulheres: duas são professoras do ensino fundamental

e médio; duas são coordenadoras de creche; uma é bancária e a outra

funcionária pública na área de saúde. Essas atividades, por sua

característica, favorecem uma relativa flexibilidade nos horários,

permitindo que elas possam conciliar o trabalho profissional com as

demandas familiares. O tipo de ocupação profissional, tanto dos

homens como das mulheres, contribui para determinar a intensidade e

a forma de participação do casal nas atribuições domésticas e

familiares.

A idade média das mulheres por ocasião do nascimento do

primeiro filho foi de 29 anos, seguindo a tendência, descrita pelos

estudos sócio-demográficos de que as mulheres vêm adiando a gravidez

e tendo menos filhos (média de filhos desse grupo é de 1,8, enquanto

que a da família de origem era de 2,8), atendendo a outros interesses

pessoais e profissionais. Destaco que a idade média dos homens por

ocasião da primeira gravidez era de 32 anos. Dados sobre o

comportamento reprodutivo e sexual da população masculina,

levantados pela Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde

(PNDS/96), realizada pela BEMFAM (1999), mostram que 88% dos

homens entrevistados com menos de 25 anos de idade não tinham

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filhos; enquanto que na faixa etária de 25 a 34 anos de idade, 45% têm

1 ou 2 filhos72. Esses dados indicam que há uma tendência entre

homens e mulheres de adiar a gravidez, investindo primeiro em sua

própria formação escolar e profissional.

Planejamento familiar e gravidez

O método anticoncepcional adotado pela maioria dos casais foi

preferencialmente o preservativo masculino. Esse dado chamou minha

atenção, pois a camisinha masculina é um método administrado pelo

homem e nestes casos o controle da reprodução cabe, de certa maneira,

a ele. A camisinha é citada como a preferida e os outros métodos

entram como substitutos ou mesmo como complemento. A opção pela

camisinha indica dois aspectos: um, o da negociação, a mulher não

podendo usar algum outro método contraceptivo, a camisinha entra

como uma opção. Outro aspecto é que a camisinha é uma forma de o

homem evitar a gravidez, de controle masculino da concepção.

Ainda assim, os relatos deixam transparecer que há uma

expectativa de que a mulher esteja cuidando para evitar uma gravidez

indesejada, principalmente porque a camisinha era, em muitos casos,

usada em concomitância com outros métodos contraceptivos femininos

(DIU, tabelinha, diafragma). Uma gravidez não planejada é considerada

assim descuido, “relaxo da mulher”, e não dele como expressa Renato.

Nos relatos em que ocorreu uma gravidez não planejada, o resultado,

em alguns casos, foi recorrer ao aborto, e noutros foi levá-la a termo,

72 A PNDS/96 é uma pesquisa domiciliar, por amostragem, desenhada a partir de uma

subamostra da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD/95) do IBGE. Envolveu oRio de Janeiro, São Paulo, e as regiões Sul, Centro-Leste, Nordeste, Norte e Centro-Oeste.Foram entrevistados 2.949 homens, com idade entre 15-59 anos, a partir de uma subamostrade 25% do total da amostra de domicílios. O trabalho de campo da pesquisa foi realizado em1996 e os dados divulgados em novembro de 1999.

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pois, nestes casos, avaliou-se que “ já era a hora” ou porque o desejo

por um filho já se manifestara.

— Foi uma gravidez planejada, já que ela tomava pílula?

— Pode-se dizer planejada, que devia ter pílula, mas vou saberquando? Então, acho que ela parou ...

— Você sabia que ela tinha parado?

— Ah, sim. Não! Minto, minto, até foi uma discussão. Ela tomavapílula e ela engravidou com a pílula. Tomando pílula, aí, foi saberdo médico, não sei o quê? Disse que na época, sei lá eu, que essapílula não fazia efeito há muito tempo e continuava tomando.Talvez, ela tinha aquela coisa de ir no médico, sempre, ver.Relaxo, relaxo da mulher, sabe? De relaxo. Então, ela ficougrávida, dois, três meses, depois. Mas ótimo, tinha tudo a ver, oque eu mais queria era filho, não queria nem casar, entendeu?(Renato, gerente de correio, 2 filhas)

— Foi uma gravidez planejada?

— Acho que... a gente não estava assim, não falamos sobre. Masachamos que já estava no momento.

— Mas vocês estavam controlando, evitando...

— É, a gente continuava na tabelinha, com certeza. (...) Camisinha devez em quando. E ela usava... na época de casada ela usouanticoncepcional. Mas tinha, usava durante dois anos, aíparava... um ano, uma coisa assim. Faz tempo, não me recordodesse detalhe.(...) Fizemos uma tabelinha meio errada e deu umgol (risos). (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha)

A gravidez que resultou no nascimento do primeiro filho foi planejada

por seis, entre os dez entrevistados. Planejamento que significa a

interrupção deliberada do método contraceptivo com a intenção de

engravidar. Um primeiro esboço do projeto/desejo de ser pai e ser mãe.

O primeiro filho nasce, de maneira geral, dois ou três anos após o

casamento. Há um investimento do casal em estabilizar a relação

conjugal e a vida profissional, adiando a vinda do filho para um

momento apropriado. As falas de Luciano e de Saulo expressam essa

afirmação:

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— Foi uma gravidez planejada?

— Foi, tanto a primeira como a segunda, planejadas. Nós sabíamosdireitinho o que nós queríamos, sabemos até hoje, quando a gentecasou tinha que comprar o apartamento, tinha que mobiliar oapartamento, quando tudo isso tivesse pronto, nós partiríamos para ofilho, até pela, como a Elena, ela casou com trinta anos, a gente nãopodia esperar muito, também, então, foi planejada, a gente sabia queem dois anos, mais ou menos, a gente iria ter o primeiro filho e logodepois, a gente, teria o segundo, foi planejado os dois juntos, comoestá certo não ter o terceiro. (Luciano, diretor comercial, 2 filhas)

— Dia, hora, local, ascendência, tudo. Aí foi assim tipo umacerimônia, a gente.... decidiu uns meses antes, passou peloginecologista, fez exames, tudo em cima, o.k., legal.. Aí a gente fezum cálculo do período dela. Bom, está no período fértil, a gente fezum jantar, acendemos um incenso tal, fizemos uma noite superbonita, gostosa, tipo assim: é hoje, e realmente foi. (Saulo, produtorde vídeo, 1 filha)

AA ggrraavviiddeezz nnããoo ppllaanneejjaaddaa ee nnããoo ddeesseejjaaddaa:: aa ooppççããoo ppeelloo aabboorrttoo

Entre os dez entrevistados três relataram-me suas experiências

com o aborto antes da gravidez planejada. O assunto surgiu porque

para eles tratava-se de um acontecimento pontual em suas vidas,

envolta em menor ou maior conflito. Falar em gravidez significava falar

também na gravidez não concretizada.

O aborto, nestes casos, foi a saída para uma gravidez não

planejada e, mais do que isto, não desejada. Em todas as situações os

casais estavam usando algum método anticoncepcional que foi

negligenciado ou ineficaz. A opção pela interrupção aparece como uma

decisão conjunta, tomada antes mesmo da gravidez acontecer e

relacionada a um momento da trajetória de vida, na qual outras eram

as prioridades, como por exemplo a carreira profissional.

A fala dos sujeitos deixa transparecer a complexidade da

negociação entre os casais, que envolve não só a decisão por um método

contraceptivo, como do próprio controle da reprodução, que por sua vez

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condiz com aspectos subjetivos diferenciados, conforme o gênero,

fundamentalmente relacionados a um determinado momento da

trajetória de vida pessoal. Vejamos a fala de Saulo e em seguida a de

Carlos:

— Você falou que viveu várias experiências de aborto, no casoanterior à Carla, eram sempre decisões que partiam de você, da tuanamorada? Como é que era essa coisa de decidir, de optar peloaborto?

— A primeira namorada, a Julia, era muito esclarecida... de dentro decasa tinha uma formação super legal e era muito responsável. Agente não permitia qualquer tipo de deslize e risco. Então com ela,fiquei quase quatro anos, três anos e meio, e nunca aconteceuabsolutamente nada. A gente sempre seguiu as regras certinhas, nãoteve problema. Com a Patrícia, que foi outra namorada que eu fiqueibastante tempo, e as outras nesse ínterim eram rápidas tal, Eu... foicomigo que ela iniciou a vida sexual e eu acabei passando toda aexperiência que tinha construído com a Julia, e a gente conseguiu irsegurando a onda durante algum tempo. Até que um dia rompeu umacamisinha, foi um negócio assim. E ela acabou engravidando, e entrea gente era muito claro, que a gente não ia ter filho, não queríamoster filho, com isso tomávamos cuidado, e quando aconteceu eu nãome lembro da gente ter titubeado, lembro assim ‘vamos tirar o filho’,nem pensamos na possibilidade desse filho. Eu estava no meio daFEI, ela estava na FAAP, quer dizer...

— E com a tua mulher, vocês também viveram uma experiência deaborto.

— Agora com ela... imagino talvez que a gente estivesse nummomento da vida que valia a pena correr risco. Assim, se correr riscoa gente vê, se for o caso até casa, ou se não, não casa, sabe.Começou a se considerar, ponderar a possibilidade de ter um filho.Super inconsciente, tá, porque para mim era bem claro, eu não queroter filho. O discurso era esse. Na época até falava que não queria terfilho, mas hoje vejo que era não quero ter filho agora. ‘Não querocasar enquanto estiver nos vinte, não quero casar’. Acabei nãocasando nunca, mas naquela época era discurso panfletário. E comoela veio da área de saúde, formada em Enfermagem, estava fazendojá especialização... então a impressão que me passa é que eu deiuma relaxada, ‘bom, você cuida disso, tá? me diz se pode ou se nãopode, se está no período ou se não está, tal’. E com ela não teveacidente, foi uma super valorização da tabelinha, a gente esticou asmargens de segurança e entrou nas margens de risco. E com elatinha tido papo... acho que a gente tinha tido uma transa só, nomáximo, e veio esse papo de engravidar e eu falei ‘olha, eu não vouter filho. Ponto. Eu não vou, não adianta, se for para ter filho a gentenem começa’. Aquelas coisas bem radicais. E ela não, ‘eu vou ter

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filho, eu quero ter filho’. ‘Tudo bem, mas que não seja agora, comigoprincipalmente, e agora’. ‘Ah não, então tá’. ‘Então o seguinte, se poracaso acontecer de você engravidar, a gente tira, está bom?’ ‘Ah, tá’.Acordos feitos, legal, seguimos viagem. Deu três meses depois,estava grávida. Então no momento em que saiu essa gravidez daCarla, não houve discussão, a gente já tinha discutido. ‘Está grávida,bom, então vamos marcar hora no cara, ele vai te examinar (...) Agente começou a namorar no dia 04 de julho, e casou no dia 06 dejulho, no ano seguinte. Então nesse período, houve o caso da primeiragravidez. E depois de três meses, ou quatro meses a gente fez oaborto, e depois de mais... seis meses, mais ou menos, elaengravidou de novo, então falei ‘vamos casar’. Casar não, vamosmontar a nossa casa. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

— Mas a decisão [de aborto] foi dos dois, foi uma coisa... como é quefoi?

— Nem imaginava ter filho nessa época, não fazia parte dos nossosplanos. A gente nem sabia se... foi no começo da nossa relação.Tinha um ano, acho. Nenhum dos dois se sentia assim pai ou mãe.

— E... depois que vocês estavam já juntos, quanto tempo depois aVera ficou grávida do Marlon?

— Ah, demorou. Demorou exatos dez anos. A gente casou em fins de75, o Marlon nasceu em fins de 85. Ele é de outubro, a gente casouno comecinho de 76, vai.

— E nesses dez anos, ela tomava pílula, como é que vocêsevitavam?

— No começo tomava, depois usava diafragma. Grande parte depoisfoi com diafragma, a anticoncepção. É engraçado porque... quando agente cismou, bateu aquela vontade louca de ter filho, a gente ficouquase um ano tentando ter filho e Vera não engravidava. E a gente jáestava achando que era punição (Carlos, professor universitário, 2filhos).

Carlos e a mulher passaram por dois abortos, um no Brasil e outro na

Europa, onde moraram durante a pós-graduação e somente vieram a

ter o primeiro filho dez anos depois. Ou seja, ter filhos era um projeto,

mas um projeto para ser colocado em prática num certo momento da

vida pessoal. O aborto se inscreve nesse contexto, aparentemente, como

uma decisão racional, objetivando determinados fins.

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A racionalidade da decisão, discutida, pensada, não evita uma

certa ambigüidade nas negociações, revelada, por exemplo na fala de

Saulo. Para ele era ponto pacífico não ter filhos naquele momento; para

a primeira namorada, durante a faculdade provavelmente também, mas

já com Carla, sua atual mulher, embora ela tenha aceitado fazer um

aborto se surgisse uma gravidez, estava também implícito o desejo de

ter um filho. O controle da reprodução foi delegado a ela, uma vez que

ela trabalhava na área da saúde, e a gravidez ocorre assim mesmo,

levando-os a um aborto e meses depois a uma segunda gravidez.

Quanto à contracepção, não houve negociação, essa ficou restrita à

atitude a ser tomada no caso de uma gravidez indesejada. É preciso

dizer que o primeiro aborto foi traumático, resultando numa perfuração

de útero. Ou seja, a segunda gravidez meses depois ganha um outro

significado na vida de Saulo, levando-o a mudar de idéia, decidindo pelo

casamento. Essa gravidez resulta num aborto espontâneo adiando a

vinda da filha para três anos depois.

A questão do aborto leva-me a pensar nos parâmetros das

negociações que se estabelecem entre o casal sobre métodos

contraceptivos e planejamento familiar. Sabe-se que, de uma maneira

geral, a anticoncepção é delegada, em maior ou menor grau, à mulher.

Afinal, é no corpo dela que ocorre a gravidez. Todavia, mesmo para os

casais entre os quais se estabelece ao menos algum diálogo, onde a

opção de ter ou não filhos num determinado momento é colocada em

discussão, a decisão final pode acabar circunscrita à mulher, sem que o

homem nada possa fazer. Digo isso, porque mesmo que o homem

decida pela camisinha, se ela se romper e a gravidez acontecer, a

decisão pela interrupção não é controlada por ele. A interrupção pode

até acontecer a partir de um acordo prévio, mas é preciso que a mulher

não queira aquela gravidez. Se for desejo da mulher dar seguimento à

gravidez, o homem nada poderá fazer. Trata-se a meu ver de uma

situação complexa, que envolve um jogo de poder desigual e, neste caso,

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desigual em relação ao homem. O homem não tem o direito de decidir

sobre o corpo de sua parceira, porém como equilibrar essa questão?

Como pensar o lugar do homem na reprodução a partir desta

perspectiva?

Trata-se de uma questão para a qual não tenho resposta, mas

que permite refletir sobre as diversas dimensões das relações de gênero,

na qual o poder é parte constitutiva, podendo inclusive oscilar de

posição. É possível apenas especular que a participação ativa dos

homens no processo reprodutivo, desde a decisão de como evitar uma

gravidez indesejada, até quando engravidar e quantos filhos ter, poderia

favorecer a negociação também quanto às decisões a tomar com relação

às demandas que a chegada de um filho impõe ao casal.

A “gestação” da paternidade: a gravidez desejada

A fala dos entrevistados mostra que a gravidez, mesmo que não

planejada mas desejada, se configura no momento em que a

paternidade começa a ser delineada. Entre magia e conflitos, a gravidez,

que é concreta no corpo feminino, se constitui abstratamente no

homem, embora alguns autores, entre eles Parseval (1986), relatem

casos de homens, em diferentes culturas, que manifestam dores de

cabeça, náusea, vômitos, aumento do stress durante a gravidez de suas

mulheres, sinais conhecidos como “síndrome de couvade”. De acordo

com essa autora, na Antropologia a couvade indica um ritual mágico

observável em muitas culturas, que acontecem durante o período

gestacional ou logo após o parto. Para a Psiquiatria as modificações

corporais podem ser consideradas como uma elaboração

psicopatológica da inveja da capacidade feminina, tendo um caráter

defensivo em relação às angústias de tornar-se pai.

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No Brasil, a pesquisa desenvolvida por Karin Von Smigay (1992),

detendo-se na perspectiva psicanalítica, observa que uma nova

representação da paternidade estaria surgindo com o impacto de

descobertas psicanalíticas acerca da importância emocional da

paternidade, além de redefinições culturais da masculinidade. Para

alguns homens a gravidez estaria associada a sentimentos de medo por

ter que assumir filhos e mulher, envolvendo crises e conflitos conjugais;

para outros o sentimento seria de realização por se tornarem pais e

chefes de família e, por fim, alguns homens tendem a negar ativamente

qualquer transformação da identidade a partir da gravidez. Em geral, a

literatura psicanalítica mostra que o tornar-se pai envolve um processo

em direção à maturidade, permeado por ambigüidades, diante dos

desejos que conflitariam com a repressão das expressões de afetividade

e ternura em relação ao filho, repressão respaldada por uma cultura

machista (Smigay, 1992).

Minha intenção não é desconsiderar a importância que a mulher,

de fato, tem nos primeiros anos de vida de um bebê, mas refletir sobre

as implicações que certas idéias (muito veiculadas na mídia, na área

médica, que acabam tornando-se senso comum e naturalizando a

maternagem) têm para a conformação da assimetria nas relações de

gênero, a partir das concepções que os homens entrevistados

apresentam sobre a gravidez, por exemplo.

Segundo o relato dos entrevistados, o casal estava sempre

utilizando algum tipo de método contraceptivo e quase sempre métodos

combinados. Nenhum deles “casou grávido”, mas para alguns a gravidez

aconteceu sem planejamento. Como já viviam maritalmente, e amigos já

tinham filhos, a relação se mostrava estável, e assumir a gravidez

parecia algo “natural”:

— Quanto tempo depois de casados vocês engravidaram?

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— Acho que um ano, um ano e meio. Ela engravidou sem querer, foina tabela (...) foi meio sem querer, mas muitos amigos da genteestavam tendo filhos, veio de bom grado, foi um sem quererquerendo. Agora, fatalmente, se a gente conseguisse não ter tido oprimeiro filho ali, num ano e meio, por aí, não lembro quanto, a genteteria demorado bastante, a gente ia juntar uma grana, ir paraEuropa, dar uma curtida, viajar...(Benício, músico, 2 filhos)

— Acho que... a gente não estava assim, não falamos sobre. Masachamos que já estava no momento. A gente já estava sentindo,fizemos uma tabelinha meio errada e deu um gol! (Leonel,engenheiro de produção, 1 filha)

As falas de Benício e de Leonel revelam que uma gravidez não planejada

não é necessariamente indesejada, ainda que possa implicar em

mudanças de projetos pessoais e profissionais. Fatores como o

casamento estar indo bem, o tempo de relacionamento, amigos

próximos com filhos pequenos, acabam contribuindo para que o casal

assuma a gravidez. Benício reconhece que não tinha planos de ter filhos

logo, queria viajar, melhorar as condições da família. No entanto,

quando a gravidez ocorre, ele a assume e se envolve sensivelmente.

— Você participava, ia no médico com ela?

— A gente esteve muito junto, foi uma época que a gente estavamuito junto, ia no ultra-som, ia no médico...Por acaso, a médicaera minha tia, irmã da minha mãe, a que fez o parto da minhamãe, fez todos os partos da família. Então, a gente tinha essaboiada de médico, a gente ia na tia e tal, ultra-som íamos juntos,essas coisas, foi bem junto. Eu estava bem à disposição, porcausa do meu trabalho ser, ter folgas. Até nos desejos demadrugada, eu fiz na boa, sabe como é querer chocolate, jaca,essas bobagens. E nós transamos muito na gravidez. Ela ficougrávida numa época que a gente estava sexualmente muito legal,do primeiro e na segunda gravidez também, nós transamos muito,até quando deu. E foi legal cara, eu não sabia que a mulher ficavatão bonita grávida, assim, barriga de grávida, você tem um... Atéhoje, eu acho grávida um tesão, assim, coisa que eu não achavaantes da gravidez dela. Então, foi uma gravidez sossegada, curtimuito... (Benício, músico, 2 filhos)

— A gente estava super... eu estava assim, pai bobo antes delaengravidar, né. Estava muito a fim. não sei, bateu, não seiexplicar a razão, objetiva, mas o fato é que me pegou nesse

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período da minha vida, me senti com uma vontade ferrenha de serpai.

— Como foi o período de gravidez?

— Foi ótimo. Tânia passou bem, que eu me lembre não teve...aproximidade é muito grande, né. Eu nunca fui tão preocupado coma Tânia como eu fui... com certeza.

— Você acompanhava a Tânia no pré natal?

— Sempre.

— Você participou do parto?

— Participei dos dois. No da Tati eu tive uma participação maisefetiva, estava um pouquinho mais complicado. O Dudu elenasceu prematuro. Parto normal, os dois. Mas o da Tati, eu lembroque estava um pouquinho mais trabalhoso. Eu lembro que no daTati eu tive uma participação assim mínima, de segurar no braço,segurar um tubo lá de soro que tinham colocado na Tânia, masfora isso era só estar do lado... lembro que nas contrações doDudu várias vezes a gente ia no banheiro tomar uma ducha, eu iacom ela, coisas desse tipo. Ah, eu que cortei os dois cordões.(Carlos, professor universitário, 2 filhos)

Se Benício e Carlos sentiram-se à vontade com a gravidez de suas

mulheres, inclusive sexualmente, o mesmo não aconteceu com Renato.

A gravidez do casal também não foi planejada, mas havia por parte dele

um imenso desejo de ter filhos, maior até do que o próprio desejo do

casamento. Ainda assim, Renato manifesta dificuldade para lidar com

sua sexualidade durante a gravidez:

— Como foi a gravidez para o casamento, a relação de vocês?

— Olha, para mim foi tudo ótimo, para ela não deve ter sido muitoótimo, pelo seguinte, a partir do momento que ela estava com dois,três meses de gravidez, foi só pintar uma barriga, o sexo parou. Eutinha problemas com isso, ela não. Mas eu tinha, punha a mão,ficava esquisito, me arrepiava aquilo...

— Não era uma coisa dela, não querer transar?

— Não, não. Uma coisa minha. Eu via ela com aquele negócio, falava“meu Deus, meu filhinho aqui, como vou fazer isso com ela, com meufilho.” Aquelas coisas, de cabeça de homem, que às vezes pinta um

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negócio que não tem jeito e foi toda gravidez, assim, a primeira e asegunda. (Renato, gerente de correio, 2 filhas)

A gravidez do primeiro filho e a expectativa com sua chegada cria um

redemoinho de sentimentos e sensações, não só no homem, mas

também na mulher que atinge o relacionamento do casal. Essa visão é

exemplificada no depoimento de Mauro. A explicação é fundamentada

em pressupostos essencialistas, que reforçam a idéia da existência de

uma natureza feminina. O corpo da mulher muda com a gravidez, sua

forma de ser muda em função dos hormônios. A explicação é biológica.

A mulher deixa de ser a companheira exclusiva para preparar-se

fisicamente para receber o bebê, esta mudança, mesmo que passageira

segundo os próprios entrevistados, é entremeada por conflitos:

— Como é que foi esse período da gravidez, da primeira gravidez?Como é que você lembra dessa questão?

— Olha, eu lembro assim, eu lembro de um grande conflito, umconflito muito grande, de um lado eu senti uma sensação poéticamuito grande,” Nossa vamos ter um filho!”. Só voltando um pouco,é uma coisa que desde os 18, 20 anos, desde que eu me conheçopor gente, que eu tenho atração pela idéia de ter um filho, eusempre quis ter um filho. Então, assim, veio essa coisa, “Puxa!Estou realizando um sonho”, legal. Por outro lado, ela mudoumuito do que ela era, mudou organicamente mudou, os hormôniosdela mudaram, o humor dela mudou, o jeito dela me ver mudou. Agente começou a remexer muito com traumas de infância, comcomplexos de coisas que a gente não tinha mexido até então. Hojeem dia, eu vejo que um pouco que preparando o terreno para essefilho que ia vir. Então, é gozado, eu lembro muito da primeiragravidez, de como que a situação era de conflito, que oscilavaentre a poesia, que legal, o carinho da barriga, que a gente estavaescutando e não sei o quê e ao mesmo tempo muito ajuste, coisaque na segunda gravidez não aconteceu, a segunda gravidez foimais, só bonita porque a gente já sabia o que ia acontecer, eu jásabia que ela estava alterada, os humores, que era só deixarpassar que tudo voltaria.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos)

Renato ao ver o corpo da mulher que se transformava trazendo-lhe o

filho que tanto desejava (...o que eu mais queria era filho, não queria nem

casar, entendeu?)sente-se bloqueado. O corpo feminino naquela

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situação não era mais um corpo sexual, e por isso não devia ser

profanado. Para Mauro, os conflitos foram de outra ordem. Há uma

mistura de insegurança com a nova situação e de expectativa, mas há a

mudança feminina e neste caso não é só física. Mauro sente-se

incomodado com a situação, mas entende e atribui o conflito em parte à

falta de experiência, tanto que na segunda gravidez as dificuldades

foram superadas. Saulo (produtor de vídeo, 1 filha) também menciona

um certo esfriamento da relação, e sua fala indica uma tentativa de

compreensão em relação àquele momento:

— Você acha que a gravidez afetou o seu relacionamento?

— Ah, essa é uma pergunta óbvia, né...Nossa, é o equilíbrio da casadeslocado. Mudou... ao mesmo tempo que mudou...obviamente, asimples presença de uma outra pessoa altera uma série decoisas. Mas entre eu e a Carla sempre houve uma atenção muitogrande nas coisas do casal. Então, durante a gravidez houve umperíodo de esfriamento de desejo dela absurdo. Eu até brincava,vou pegar uma espiriteira para ver se esquento isso aí, porquenão é possível. E... eu fiquei meio ressentido assim... nos quatroúltimos meses não teve relação sexual, não havia possibilidade.Não havia lubrificação, não havia... ela não se dispunha.

— Ela estava voltada para a gravidez...

— Para a gravidez. Apesar de tudo isso, havia muito carinho, haviaaté uma masturbação, assim para... ela me atender mesmo, umacoisa assim de atenção. Eu com muita atenção a ela, ela commuita atenção a mim. Na hora que nasceu a Lara, a gentemanteve essa atenção não só na cama mas no dia a dia (...)(Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

PPrréé--NNaattaall ee PPaarrttoo

A participação do homem durante o pré-natal e mesmo durante o

parto é uma tendência desde os anos oitenta, quando esse

comportamento começou a ser estimulado particularmente entre casais

de camadas médias, que tinham acesso a serviços de saúde privados

(Salém, 1985).

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— Você acompanhava a Tânia no pré natal?

— Sempre.

— Você participou do parto?

— Participei dos dois. No da Tati eu tive uma participação maisefetiva, estava um pouquinho mais complicado. O Dudu, elenasceu prematuro. Parto normal, os dois. Mas o da Tati, eu lembroque estava um pouquinho mais trabalhoso. Eu lembro que no daTati eu tive uma participação assim mínima, de segurar no braço,segurar um tubo lá de soro que tinham colocado na Tânia, masfora isso era só estar do lado... ia com ela tomar... lembro que nascontrações do Dudu, várias vezes a gente ia no banheiro tomaruma ducha, eu ia com ela, coisas desse tipo. Ah, eu que cortei osdois cordões.(Carlos, professor universitário, 2 filhos)

— Participei, dos dois filhos, eu participei. Do primeiro eu estava maiscom medo, assim... os dois normais, mas a gente fazia um grupode eutonia que a professora tinha um curso de parto para omarido e para mulher. É o cara ajudando ela a respirar, falando“olha vai acontecer isto, se estourar a bolsa não fique histérico,porque dá tempo de chegar na maternidade”. Então foi bomporque eu não imaginava como era, eu achava “pô, a mulhercomeça a ter contração, nasce em dez minuto, então, ela explicouisto, foi legal. No dia que estourou a bolsa da Luiza, foi demadrugada, assim, a Luiza foi muito tranqüila, começou acantar...Aí eu fiquei histérico, levantei, pulei, fui, ela começou acantar, aí eu fique tranqüilo, sabe. Ela estava contente, estavaafim de ter.(...) (Benício, músico, 2 filhos)

A presença na hora do parto insere o pai no processo de constituição da

paternidade, de sua concretização. O homem não engravida, não

carrega o bebê na barriga, mas pode ajudá-lo a nascer. A presença do

pai na hora do parto não é um procedimento comum nos hospitais e

maternidades. Trata-se de um procedimento adotado em hospitais

conveniados ou particulares e depende muito da filosofia adotada pelo

médico. Deve-se ter em mente que o fato desses homens pertencerem a

um certo segmento social , facilitou esse tipo de participação.

— Você participou dos partos?

— Dos dois. Foram partos normais, naturais e participei dos dois.

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— Isso, o fato de você ter participado, isso marcou, teve algumsignificado?

— Eu estava falando com uma amiga ontem, anteontem, não, foiontem, porque eu estava comentando que eu ia dar umaentrevista e aí eu comecei a falar de alguns aspectos dapaternidade. Uma das coisas que eu falei para ela é que eu fiqueimuito com a sensação de que por ter participado dos partos, eufiquei muito com a sensação de que eles saíram de dentro de mim,um pouco também, você entende? Tinha um pouco aquelasensação de inveja, de dizer “pó está saindo de dentro dela”, masficou um pouco a sensação de que eles saíram de dentro de mim,fui eu que aparei eles para eles nascerem, então, eu nãoconseguia cortar o cordão, eu estava muito emocionado, depois eucortei, dei banho, eu pus no seio dela para ela amamentar. Então,tem um vínculo forte com esses momentos... (Mauro, produtor devídeo, 2 filhos)

— E você participou do parto, você assistiu?

— Sim, estava na sala. Ela achou que eu fosse desmaiar, eu tambémachei, mas eu queria ver. Só olhei, só. Pôr a mão, nada. Aí édemais. Ver aquele monte de sangue... É... um pouco trêmulo,tal...a outra dopada na mesa, e eu acompanhando a nenê parafazer os primeiros... aspiração... então foi muito gostoso. Depoisbotei, ela estava ainda assim dopada, segurava na mão...Dá umacoisa assim... esplendorosa. Aquele ser vivo, que nós geramos,vindo ao mundo... sabe lá o que vai passar aí, mas naquelemomento indescritível. (Leonel, engenheiro de produção,desempregado, 1 filha)

Se para alguns a presença na hora do parto é um sentimento

indescritível, para outros não é isso o que define a participação. O pai

deve estar presente, acompanhando a mulher, filmando, mas seu

envolvimento não implica em cortar o cordão umbilical, dar o primeiro

banho, papel que pertence aos médicos e enfermeiros:

— Você só assistiu ou você teve alguma participação, embora tersido cesária, você teve alguma participação? Pegar o bebê, botarpara mamar, esse tipo de coisa?

— O pai só serve para filmar e pagar a conta do hospital.. Não,porque acho que isso é coisa para profissional. No momento, eufiquei mais com a Elena, ficava do lado dela, passando algodão,ajeitando o rosto dela, coisa assim, e quando nasceu eu vicortando, mas logo que essas coisas não gosto de ver, tanto é quea filmagem, comecei ela depois que o nenê está limpinho. Depois

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eu acompanhei, das duas, a pesagem, lavar o nenê, por aquelenitrato, soro... (Luciano, diretor comercial, 2 filhas)

Para alguns homens, a gravidez e todo o ritual que o envolve, inclusive

o pré-natal, é um momento feminino, do qual eles não sentem-se

autorizados a participar, mesmo quando o médico sugere:

— Não, porque... a Silvia, o primeiro parto foi cesárea, né. E a genteusa uma medicina que é chamada medicina antroposófica. Entãovocê participa do parto, não sei o que... quer dizer, eu não soumuito chegado a essas coisas. É uma coisa muito legal, muitointeressante, tal. Vale a pena, hoje a gente segue... não somosfiéis, mas as crianças estão numa escola antroposófica. Vocêparticipava, você vai no pré natal, quer dizer, os que eu faltei foipor extrema necessidade, assim, ou estava viajando, enfimalguma coisa assim. Mas o que eu me recordo é que eu ia emquase a todas... eu não entrava na sala de exame porquerealmente não é o meu forte. Não porque não pudesse. Eu entreialgumas vezes, quando o médico chamava. (Marcos, diretor definanças, 3 filhos)

— O médico deixava você entrar na sala para os exames?

— Sim, em tudo, sem problema, embora, nunca quisesse entrar.Nunca entrei, embora tivesse toda a liberdade de entrar, nuncaentrei.

— Por quê?

— Por que eu acho que é o momento dela, a minha presença iriaconstrangê-la de alguma maneira. Era importante para ela que euestivesse do lado de fora, perto dela. Mas, não, é um momentomuito íntimo da mulher, não sei, eu sou contra essas coisas...

— Você não assistiu o parto?

— Não, de forma nenhuma. Acho que não devia, mesmo porque nãogosto muito de ver sangue.(Péricles, juiz classista, 2 filhas)

Participar do ritual, do pré-natal pode tornar-se uma atividade pouco

prazerosa, pois em geral implica em horas no consultório médico e

imprevistos:

— E você, como que você viveu essa gravidez?

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— Eu acho que, algo que me marcou, por exemplo, eu comecei asentir a gravidez, a estar grávido junto, a partir do momento queeu ouvi o coração do nenê, de repente, eu ia todo mês...Semprenão, eu minto, eu acho que eu fui três vezes, depois eu nãoagüentei mais, por que é um saco.

— Por que é um saco?

— Porque você ia, aí, você estava no consultório, já esperava horas ehoras, porque ia chegar a sua vez, chegava uma senhora grávida,tinha que sair correndo, ele mandava esperar. Teve dia de euficar, teve uma visita que nós ficamos seis horas no consultório,nessa de ir, ter que sair, chegar mulher quase para dar luz,porque a situação é isso, engraçado e constrangedor ao mesmotempo. Mas eu ia, colocava o vídeo, depois eu ficava em casa comela vendo, nós nunca quisemos saber o sexo. Aí você ficava lá,tentando adivinhar, olha aqui, eu acho que é isso, aquilo. Então,teve essa fase de vídeo, acompanhando, ouvindo o coração.(Luciano, diretor comercial, 2 filhas)

Apesar de alguma resistência masculina, os relatos mostram que o

incentivo do médico na fase do pré-natal e do parto contribuem para

que o pai sinta-se participando do processo gestacional e essa

participação é significativa na experiência da paternagem. O estimulo

do médico mobiliza o homem a de fato acompanhar a mulher. É claro

que esse acompanhamento é movido também por um desejo pessoal, de

estar presente. :

— Na fase do pré-natal, você acompanhou a sua mulher no médico,como é que era?

— Fiz questão de ir em todas as consultas, acompanhei muito deperto, li, estudei sobre o assunto (...) Olha, o médico obstetra dagente era um médico, assim, enquanto cientista, ele era muito ferae ele fazia questão, por isso a gente escolheu ele, de que os paisentendessem muito bem o que estava acontecendo. Então, eraproposta dele, quem estava grávido era o casal, apesar de queorganicamente a mulher estava grávida, tem os hormônios, o fetocrescendo, a barriga crescendo, o corpo se deformando, tudo, maso casal é que estava engravidando. Então, ele indicava literatura,xerox de textos, ele falava muita coisa, ele tinha uma vertente umpouco mística, não religiosa, mas mística de todo umencaminhamento dessa chegada dessa criança, de como eladeveria ser recebida, mesmo antes de nascer e tal. E nós tivemosdois filhos com este mesmo médico, que eu considero um carasuper... (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos)

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Observei também que há um movimento desses homens em procurar

profissionais específicos, em geral, ligados à medicina alternativa, na

qual se destaca a vertente antroposófica. Não raro, o médico escolhido é

parente ou conhecido:

— E você participava dos exames, do pré natal, você ia junto comela...

— Todos, inseparavelmente. O dia do exame já avisava na empresa,não posso.

— Você participou do parto?

— Fazendo força. Que a gente fez, a Carla fez o parto de cócoras,então para isso ela fez ioga, fez exercício e na hora do parto. ACarla, uma das colegas de faculdade dela, seguiu obstetriz. Aí, omomento do parto foi tudo preparado, o campo, de fazer o parto,uma dessas escadinhas, para subir na maca, onde a Carla ficousentada e eu fiquei de pé atrás segurando a Carla. A Carla ficavasentada ali e eu de pé. Na hora que ela fazia força, ela fazia forçae segurava em mim, então eu digo que eu fiz a força do parto desegurar o peso dela...

— Vocês tinham ensaiado antes, tinham treinado antes?

— Não. Foi... fomos sendo orientados na hora, pela Priscila e peloRogério. E não foi assim rápido, tem todo um trabalho, e vaicontrai, contrai e na hora da expulsão inclusive ele diagnosticouque tinha o cordão, e ele ficou meio ressabiado, deu um toquepara a enfermeira, para ela ficar de olho tal, mas conseguiu darum toque no nené e saiu certinho. A Lara saiu certinha. E aí ‘éuma menina!’, Ah, foi lindo! (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

SSeennttiimmeennttooss ee ccoonnttrraaddiiççõõeess ddoo sseerr ““ppaaii””

A chegada do primeiro filho é marcada por uma certa magia, que

desperta também sentimentos de conflito, de questionamento. Esses

questionamentos revelam a pressão do ideal masculino de pai provedor,

de homem bem sucedido, que deve ser capaz de sustentar os filhos.

Este ideal está baseado na figura paterna da família de origem e a

capacidade de ajustar-se a ele é confrontada com outros ideais. Há

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também o reconhecimento de que uma outra fase de sua vida se inicia

com o nascimento do filho:

— Voltando a gravidez, especialmente na do primeiro filho, quaiseram os seus temores? Que medos você tinha?

— (...) eu tinha fantasma, “meu Deus não vou conseguir” o fantasmaque vinha muito dessa história do meu pai de ele ter prédeterminado que é assim, você só vai sustentar a sua família sevocê seguir esses passos, passos que eu não segui, quer dizer eufui para Ciências Humanas, voltei para as artes que meu paitinha sempre muito medo disso, “pô artista é vagabundo”. ‘Émiserável, vocês vão viver na miséria, não vão conseguir, o seucasamento vai dar errado, seus filhos vão ficar na miséria’. Então,tinha essa coisa cultural de imigrante mesmo, que nessa horavoltou. (...) Então, assim, eu vinha de uma situação econômicafinanceiramente instável e, eu tinha muito esse receio “puxa, vousair da produtora, vou largar uma empresa que eu fiquei oitoanos, para cair num vazio, será que eu vou conseguir sustentar etal?” E assim, na verdade, muito pouco tempo depois, eu percebique eu podia me sustentar com facilidade, vendendo meuconhecimento, meus serviços de todos esses oito anos, que era umconhecimento que eu tinha e que eu não sabia que eu tinha, doque eu aprendi e que o mercado precisava dele. Vai fazer quatroanos que eu estou assim, como free-lancer, trabalhandoabsolutamente como free-lancer e tenho conseguido sustentar todomundo.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos)

— Como é que foi, nasceu aquele menino, a partir daí os primeirosdias do bebê novinho em casa?

— (...) Fiquei junto os quatro dias no hospital, mas eu estavapraticamente sem emprego, então, eu fiquei direto, e teve muitacoisa emocional, tipo, instantaneamente eu entendi meu pai eminha mãe diferente do que eu entendia. É a coisa de pegar omoleque no colo, sem nunca ter pego uma criança, de repentepegar e a coisa, naturalmente, sem saber pegar, mexer, trocar,olhar. Então, foi super natural, para mim foi um espanto eu teristo dentro de mim e não saber, e quando eu voltei para casa foiesquisito porque eu tive uma deprê de uns dez dias, eu fiqueimuito ruim, fiquei muito deprimido. Não sei, de pensar, pensei nomeu pai, no meu avô, a coisa da morte veio muito na minhacabeça, de eu estar ficando velho, de estar cruzando ciclos epensar, bom, que tem coisa que não tem mais, que não vai termais, chances ou liberdades ou que fosse, mas teve uma caídareal da minha idade, do meu ciclo, talvez isso....(Benício,músico, 2 filhos)

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A mudança na vida do casal, gerada pelo nascimento do filho, provoca

também conflitos para a mulher. Mauro, por exemplo, sentia-se culpado

por ter que ir para o trabalho e não poder ficar em casa com o bebê, e

percebe que a mulher, antes independente, se sente incomodada com o

fato de estar dependendo do marido.

— Você trabalhava, você saía de casa, mas você também procuravaestar envolvido. Ela ficou nesse período um ano em casa, emfunção do filho. Você acha que isso, de uma certa forma,interferiu no fato dela estar mais voltada para criança, haviauma cobrança, como que era isso?

— Acho que era um conflito pró dois, o fato de, por exemplo, se eusaía para trabalhar, eu saía culpado, eu me sentia culpado porestar saindo para trabalhar, mas tinha que trabalhar, porquealguém tinha que trazer grana, ela estava de licença. Se eu ficavaem casa, eu me sentia culpado porque não estava trabalhando.Então, esse conflito super grande, o tempo inteiro. E ela foi umapessoa que trabalhou desde muito cedo, desde os quinze anos,ela tinha essa coisa de trabalhar como prazer e como sentido deindependência e de repente pela primeira vez na vida, não tinhamais sentido de independência, ela dependia efetivamente de queeu saísse para trabalhar, para trazer dinheiro para ela comer.Então, na cabeça dela ficava muito esse conflito.(Mauro,produtor de vídeo, 2 filhos)

Os conflitos atingem o relacionamento do casal, na medida em que se

conscientizam de que a relação, antes de dedicação exclusiva de um

para o outro, será alterada. Além disso, um deles estará menos

disponível e, mais do que isso, terá alguém dependente de sua atenção

por um longo período. O relacionamento ganha um outro status, que

nem sempre é conquistado com tranqüilidade.

— Olha, existia sempre a sensação de estar sendo preterido, emdetrimento de outro ser, apesar de ser amado, ser super desejadoe tal, eu acho que tinha sempre essa pontinha, esse fantasma, de“pó de repente ela vai se dedicar a ele”, coisas que efetivamenteacontece e que tem que ser trabalhado, e coisa que no primeirofilho foi difícil para mim e para ela. Quer dizer, ela se sentia umpouco culpada de não me dar tanta atenção como ela me dava eeu me sentia também abandonado. Eu acho que acaba, se vocêviver isso com atenção, eu acho que acaba sendo uma terapia

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quase, quer dizer, você é obrigado a se rever e dizer “pô”, né, alidava essa sensação de abandono, “pô”, eu estou sendoabandonado, mas espera aí, que está acontecendo?” e você sesitua melhor. E também, eu te digo que na segunda gravidez e nosegundo filho tudo isso soou muito mais tranqüilo, porque vocêsabe que tem um cuidado X, mas que existe um momento ondeacaba isso e volta e não volta como era, não, Sandra. A gente nãovolta a ser namorado ou um casal sem filho, a gente tem quevoltar a se relacionar de uma maneira legal, dar atenção, a genteé obrigado a investir na qualidade, porque a quantidade diminuimuito, quantidade eu estou dizendo de tempo, a quantidade detempo que se fica junto, você consegue olhar um para cara dooutro e se relacionar de verdade, você está no meio de uma transao neném chora e tal, não é a mesma coisa. Então, eu vejo muitoisso, eu vejo muito ter filho, um dos aspectos é o processoterapêutico. Mesmo se você não souber viver isso com atenção,não é fácil ter um filho.(Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos)

Se antes da chegada do filho o casal mantinha um relacionamento no

qual a autonomia e a individualidade de cada um podia ser preservada

mediante uma negociação equânime, nesta nova fase é possível

perceber que as regras do acordo conjugal são forçosamente alteradas

em função das necessidades de uma terceira pessoa, sem nenhuma

autonomia. Os depoimentos deixam transparecer que as mulheres são

particularmente afetadas por essas alterações. As necessidades do bebê

alteram a rotina do casal, mas afetam sobretudo a vida profissional das

mulheres.

OO ppaaii aajjuuddaannddoo aa ccuuiiddaarr ddoo bbeebbêê:: oo ddeessaaffiioo ddee ddiivviiddiirr aass ttaarreeffaass

O tipo de atividade profissional que o homem exerce determina,

de certa maneira, uma maior ou menor disponibilidade para participar

do cuidado com os filhos. Benício, por exemplo, é músico, tinha uma

banda, e o fim dela justamente durante o nascimento do primeiro filho

permitiu que ele pudesse estar mais presente para cuidar do bebê.

Favoreceu inclusive o ritual antroposófico para o desmame da criança:

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— Mas você participava também depois dessa época que ela voltoua trabalhar, você tinha uma rotina com o bebê? Ele estava comum ano, um ano e pouco, como é que vocês faziam?

— (...) Quer ver, isso que eu digo, o meu trabalho não é de eu estar odia inteiro fora e tem a coisa, também, de eu chegar sempre demadrugada, eu acabo, porque estou acordado (...) muitas vezes eucuidava e também que o antroposófico na hora de desmamar onenê, a mamada da madrugada é trocada por um chá e quemdeve dar o chá é o pai , por conta da criança não sentir o cheiro doleite da mãe, desmamar mesmo e dormir, tipo das oito às oito.Essa mamada das cinco, quatro, cinco, seis da manhã era eu quedava o chá. (Benício, músico, 2 filhos)

De maneira geral, os entrevistados se mostram interessados e

disponíveis para ajudar a cuidar do bebê. Porém, o fato do homem em

geral não poder contar com a flexibilidade de horário de trabalho, em

particular durante os primeiros meses do bebê, limita a sua

participação na divisão das tarefas. A licença maternidade torna a

mulher mais disponível do que o homem para a rotina estafante dos

primeiros dias com o bebê:

— Quem costumava levantar à noite?

— No início os dois, depois só ela mesmo. Porque ela teve um períodomais longo, os quarenta e cinco dias, quarenta dias da licença,depois, estava dando leite, mais seis meses pela frente. Eu comonão tinha isso, voltei a minha, aí eu não acordava de madrugadapara nada. (Péricles, juiz classista, 2 filhas)

— Quem costumava levantar durante a noite, a Lara chorava ànoite, tinha aquela rotina de mamar durante a noite? Comovocês se ajeitavam?

— Na primeira fase, bem no começo, eu acabava acordando também,levantando, tal, mas a Lara mamava exclusivamente no peito.Pouco tinha para fazer. Nem precisava trocar a fralda ou outra,não era rotina. Era mais um apoio logístico da coisa. E eu tinha ahistória que devia acordar cedo para trabalhar. Aí a Carla, bemou mal, podia fazer o sono junto com a Lara, então tinha meio queum acordo, que à noite se houvesse algum tipo de intervenção, aCarla daria conta. A menos que precisasse. Se ela falava ‘Saulo’,aí eu levantava. E a Lara sempre teve um sono muito bom, muitotranqüilo. Então nos primeiros dias ela acordava para mamar, erabem espaçado, mas rapidamente ela entrou assim na última

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mamada às onze e depois de manhã.(Saulo, produtor de vídeo,1 filha)

A divisão das tarefas e do cuidado com os filhos pode seguir uma

racionalidade determinada pela disponibilidade de cada um dos

cônjuges e pela função de cada um naquele momento, no grupo

familiar. A mulher de Luciano, deixou de trabalhar fora logo que se

casaram, pois planejava ter filhos assim que o apartamento estivesse

montado. Para Luciano era, então, natural e esperado que ele fosse

poupado da rotina com a filha, pois necessitava de várias horas de sono

para poder trabalhar no dia seguinte. A racionalidade de Luciano

surpreende:

— Quem é que levantava a noite quando tua filha chorava?

— Sempre foi a Elena, eu nunca levantei. As vezes eu não acordava,as vezes eu acordava, mas fingia que estava dormindo.

— Virava para o lado?

— É, porque eu sempre fui de precisar dormir bem para acordar nooutro dia, acordar bem para trabalhar, então, 8 horas de sono,sempre foi assim, independente da ...é uma coisa de dormir cedo.Como a Elena não trabalhava aí, virou regra geral, aqui nessacasa. A Elena ela fez cesária, a operação dela foi super boa, eunão dei moleza, não.(Luciano, diretor comercial, 2 filhas)

Esta postura de Luciano se mantinha no momento da entrevista, já que

Elena não voltara a trabalhar. Para ele, a divisão das tarefas segue a

seguinte lógica: ele cuida do sustento da casa e ela das tarefas

domésticas. Elena cuida inclusive de administrar o dinheiro, faz o

imposto de renda do marido e cuida de toda a rotina com as meninas.

Mas ele amplia o exercício de sua paternagem para além do provimento

material, ao se atribuir outras funções como pai, como por exemplo

“educar para a vida”. Por estar mais presente no mundo externo,

considera que está melhor habilitado para orientar as filhas quanto às

questões do mundo da rua. Luciano se atribui também a tarefa de

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“corrigir” atitudes da mãe em relação às filhas e que considera

equivocadas:

— Olha, o meu papel é ser um gerenciador, eu acho que eu até, émeio machista ser gerenciador...

— O que significa ser gerenciador?

— Ah, como eu estou mais de fora, eu consigo ver coisas que a Elenano dia-a-dia não consegue ver. Por exemplo, eu acho que sabertirar a manha de uma criança é fundamental. A mãe, que está nodia-a-dia, que é o caso da Elena, não sabe mais o que é manha eo que é uma dor mesmo. Eu acho que consigo distinguir, e aíencaminhar as coisas, eu acho que isso é ser gerenciador,conseguir encaminhar as coisas, sem estar no dia-a-dia. A Elena,acho que está fazendo o trabalho mais braçal, o negócio mais dodia-a-dia. Eu consigo colocar, eu não preciso estar levando otempo todo na escola, indo em reuniões com a professora parasaber se a Carina vai bem, sabe ler, se ela sabe qual que é a letradela, coisa dessa forma, eu não preciso estar no dia-a-dia. (...)Então, são momentos, assim, que não é a educação do dia-a-dia,é educação de vida, uma experiência de vida, e essa parte acabapuxando para o meu lado: por que tem bêbado, por que temhomem mal? Essas coisas... por que os carros se batem? Essapercepção que ela tem no dia-a-dia, essa percepção do dia-a-diafica comigo, na minha percepção do dia-a-dia, e as questõeseducacionais, da escola... (Luciano, diretor comercial, 2 filhas)

OO ppaappeell ddaa aavvóó

Embora os casais tendam a organizar sua rotina doméstica e a

enfrentar eventuais dificuldades, a rede de parentesco e de amigos

ainda é um recurso acionado pelas famílias. A avó, em particular, é

uma presença constante nos relatos, sobretudo nos primeiros dias com

o bebê. O papel da avó, em geral mãe da cônjuge, é dar alguma ajuda,

orientação, acompanhar a filha nos primeiros dias com o recém

nascido:

— Como é que foram os primeiros dias com a chegada da Lara emcasa, vocês tinham alguém para ajudar a Carla, a mãe dela veio,tinha empregada, como é que foi?

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— A gente tinha uma empregada duas vezes por semana. Naquelaépoca não tinha fralda descartável barata como tem hoje, entãotinha aquela coisa de ficar lavando fralda uma atrás da outra. E...a minha sogra vinha durante os primeiros quarenta dias, aquelacoisa da quarentena, cinco horas da tarde, com uma cesta comfrutas e uma sopa. Era assim, a função dela nos primeiros diasfoi essa. E eu adorava, porque eu adoro sopa, então ‘oba! hojetem a sopinha da sogra’. Todo dia chegava a sopinha da sogra,tal, que era para a Carla eu acabava com a sopa. Noquadragésimo dia, a sogra chegou e falou ‘olha, hoje é o últimodia da sopa, e acaba com essa história’. Todo o tempo, quemcuidou de tudo foi a Carla. Ela é especialista na história, nãotinha porque alguém...(Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

A presença da avó não dispensa a empregada, também presente para

auxiliar nos afazeres da casa. No caso de Luciano, optaram por

contratar uma enfermeira que pudesse orientar Elena no cuidado com a

filha e paralelamente ela ia à casa da mãe, onde podia contar com sua

ajuda, já que não dispunha de empregada, naquele momento e nem da

presença do marido:

— Quando a Carina veio para casa, tinha alguém para ajudar aElena? Vocês tinham empregada, como é que funcionou, comovocês organizaram essa rotina? Você estava trabalhando?

— Nos primeiros dias a mãe da Elena veio ajudá-la. Não tinhamempregada, mas contrataram uma enfermeira para as primeirasorientações. (...) Era uma senhora que tinha muita experiência comnenê, mas não era uma enfermeira, uma pessoa com experiênciaem nenê. Ela ficou uma semana, quinze dias, aqui. Só paraencaminhar a Elena, mas ela é que sempre deu banho, trocoufraldas, sempre foi a Elena, ela só ficava para dar apoio e fazerencaminhamento. Vinha com freqüência aqui em casa a mãe daElena, morava próximo daqui, então, as vezes, eu saia, a Elenapassava o dia todo na mãe dela, depois eu pegava as duas evinha para casa. Mas, a mãe da Elena, quase 100%, 90% doperíodo, ficava com a Elena, mais na casa dela do que aqui. AElena sempre se deslocava, mas era isso...(Luciano, diretorcomercial, 2 filhas)

A participação da família de origem nos primeiros dias com o bebê pode

apresentar também efeitos perversos. Quando o casal se encontra

sozinho para lidar com as primeiras dificuldades na arte de cuidar de

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uma criança, a possibilidade de troca e participação do casal pode ser

maior. Essa é a opinião de Luiz, que sentiu-se excluído de qualquer

participação no relacionamento com a filha, durante as três semanas

que passou na casa dos sogros:

— E vocês tinham empregada, nessa época? Teve alguém paraajudar a Débora?

— Não, a gente saiu do hospital, foi para a casa da mãe dela eficamos lá durante um tempo. (...) sempre foi uma coisa não muitobem...não conseguia tratar essa questão, de estar na casa dospais dela.

— Você preferia ter ido para a sua casa...

— É que para ela... para a Débora foi meio... pela vida que a gentetinha, quer dizer, como eu tinha que voltar para trabalhar,trabalhava muito, chegava tarde... ela não queria ficar sozinha, eacho que é justo, então... quando saiu [do hospital] foi para a casada mãe...

— E aí você nesse período, você pôde participar assim, dar banhona Isadora, trocar fraldas, a Isadora era um bebê que choravamuito, quem acordava à noite... como foi essa fase?

— Aí já começou a não ser tão tranqüilo. Quer dizer, para a gente,tem esse marco da, desse primeiro ano da Isadora, que foi, eudiria que foi muito difícil. Estava até conversando sobre osegundo, eu falei que topava desde que ela não me esquecessecompletamente. Até entendo que por um lado... tem uma coisafísica, hormonal, da mulher, em relação... da mãe em relação aofilho, que não dá. Ela vai ficar hiper protetora... então para mimfoi uma situação... claro que era legal ter uma filha, legal ummonte de coisas, mas principalmente esse primeiro ano, toda aminha imagem é de estar fora do processo. Primeiro porque a ...própria criança não te identifica como pai até, sei lá, uns meses.Então ela tem a mãe, que é uma coisa muito clara, identificada e oresto do mundo. O pai, a avó, a cadeira, porta, quer dizer, estátudo na mesma categoria. Você não se sente identificado, aocontrário da mãe. Então tem uma coisa que é... natural, biológica,sei lá. Então já tem essa certa... exclusão dessa maneira.Segundo que a atenção da mãe, estou falando sempre da Débora,mas vai lá conversar com as outras pessoas vai ver que temsentimentos parecidos, né... a atenção da mãe fica 220% nacriança, a prioridade é só essa daí, e qualquer outra coisa passaa não ter nenhuma importância.

— Você acha que o fato de terem ficado esse tempo na casa dos paisdela potencializou um pouco essa exclusão?

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— Acho que sim. Acho que sim porque... se você está num lugar quesó estou eu, pelo menos você tem que participar um pouco mais.Então, o fato de ter a minha sogra, meu sogro, com certezareforçou... Ficamos lá e quando a gente voltou para cá, depois debastante tempo, aí já tinha uma dinâmica da qual eu não estavaparticipando. Por exemplo, eu nunca, raramente eu acordavaquando a Isadora chorava à noite. Por causa disso, porque...entendeu, essa situação toda me deixou meio excluído, de umamaneira acabei também não... não lembro de acordar à noite,pegar a Isadora... (Luiz, diretor de sistemas, 1 filha)

Uma exceção no grupo de entrevistados, Mauro conta que tirou um mês

de licença paternidade por conta própria, já que era autônomo. Sócio de

uma empresa produtora de vídeos, simplesmente avisou aos sócios que

iria tirar licença. Conta ainda que os amigos que não tinham filhos

reagiram à atitude dele.

— Como é que foram os primeiros dias depois de que a teu filhonasceu?

— A gente era, eu e a Renata. a gente era muito criança, assim,olhando hoje. Então, a gente tratou aquela coisinha, assim, agente não conseguiu, por exemplo, fazer com que ele dormissenum berço separado da gente. Ele ficava no mesmo quarto e namesma cama, nos primeiros dias. A gente tinha muito medo, seilá, morresse dormindo, tivesse um troço, que todo mundo dizia,tinha uma médica pediatra falava “olha, todo mundo sente isso”,tudo bem, mas a gente sentia. A gente não dormia porque ficavacom medo de rolar para cima dele. E também tem as histórias deterror de mães que sufocam o filho dormindo em cima . Tem tudoisso, por a mão no coração, escuta para ver se está vivo e tal. E agente dormia muito mal e ele também. A gente não deixava eledormir porque ficava lá porque queria que ele reagisse como servivo. Então, tinha essa coisa, ele acordava muito para mamar anoite deixava a gente exausto, tinha hora que, eu lembro muito desituação que a Renata., por ter acabado de ter filho e tal, estavadebilitada fisicamente, ela sentava na cama e ela cochilava, elanão conseguia ficar acordada e eu segurava ele para mamar,porque ela não agüentava. Ela dizia “meu, segura porque eutenho medo de deixar cair”. Um ano sem dormir oito horascontínuas na noite, porque a gente não tinha a simples idéia dedizer: “vamos revezar”, era uma avidez muito grande com aquelefilho, os dois queriam participar muito. Se ele acordava à noitequando ele já dormia no quarto dele, se acordava à noite eu queia buscar e ela dava de mamar, entendeu? E no fim nenhum dosdois dormia, nenhum descansava, porque eu ia buscar, daí nãoconseguia voltar a dormir, dali a pouco leva de volta por eu já

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estar dormindo de novo, então ficava aquele clima de função anoite inteira.

— E com o segundo filho foi diferente?

— Foi, muito diferente, muito diferente. Com o primeiro filho depoisdo primeiro ano, já foi meio diferente. Porque daí a gente teve abrilhante idéia de que você dorme uma noite eu durmo outra,porque aí ele já não mamava mais no peito, ou mamava, elemamou até um ano e dois meses, por aí (...) (Mauro, produtor devídeo, 2 filhos)

A experiência do primeiro filho é quase sempre mais traumática do que

no segundo. Os erros da primeira vez podem ser evitados, os fantasmas

já estão exorcizados. No caso de Mauro, a experiência de dividir tudo,

ou melhor, de não dividir, mas estar presente junto com a mulher,

fazendo as coisas ao mesmo tempo, na mesma hora, mostrou-se

infrutífera, quase levando o casal à separação. No segundo filho, o

discernimento permitiu que dividissem as atividades, alternando os

tempos e o envolvimento de cada um. Curiosamente, no segundo filho e

já em outra situação econômica, Mauro não pôde tirar sua própria

licença paternidade de 30 dias. Ainda assim, por exercer uma atividade

profissional que permite uma relativa flexibilidade, Mauro procurou

estar sempre presente na rotina das crianças.

O relacionamento do casal e a rotina da casa

A chegada de uma criança muda o status do relacionamento do

casal, como vimos acima. Administrar essa mudança e seu impacto no

relacionamento é um dos maiores desafios enfrentados pelo casal. Para

alguns, trata-se de uma mudança esperada, exigida pela presença de

um terceiro que requer cuidados. O tempo ocupado pela criança pode

ser um tempo compartilhado pelo casal, como mostram Benício e

Leonel:

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— A gravidez foi super legal, foi uma lua de mel, e agora, tinha umterceiro, tinha um bebê, que demandava uma rotina, certoscuidados. Como é que foi esse primeiro ano, isso alterou?

— Eu acho que não muito porque quando o bebê é pequenininho,você ainda leva muito uma vida a dois, porque ele está lá, eledorme, ele mama, mas ele fica lá. Eu acho que, tanto quanto ela,tirava uma parte do tempo, que antes era meu, para cuidar donenê. Então, eu acho que o tempo que a gente tirou entre a gente,foi o tempo que a gente tirou junto para cuidar do nenê, a gentecurtiu muito. (Benício, músico, 2 filhos)

— E... você acha que a gravidez afetou o relacionamento de vocês?

— A gravidez assim em si acho que não, até aproximou mais. Masdepois que a criança nasceu, os cuidados foram centralizados nacriança. Depois que ela nasceu. Durante a gravidez propriamentedita houve uma troca de carinho muito grande, uma curtição muitoforte da gestação. Mas depois que ela nasceu acho que houveuma canalização dos dois para a criança, que eu acho que étradicional. (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha)

Por outro lado, a criança pequena mesmo demandando cuidados, não

necessariamente é o centro exclusivo das atenções da família. O casal

sabe que deve dar atenção ao bebê ao mesmo tempo que se permite

partilhar atenção entre si, às necessidades mútuas. Saulo relata como

uma aspecto positivo em seu relacionamento o fato de não terem

deixado de manter uma vida de casal, mesmo depois do nascimento de

Lara:

— (...) Amamentou seis meses, e assim que começamos a sair decasa, a primeira vez que a gente saiu foi para ir à casa da minhasogra. Jantamos, almoçamos lá no domingo, e acabamos dejantar, saímos os dois para o cinema. Então assim, foi a primeiraoportunidade que a gente teve de estar junto, eu e ela, voltamos aestar juntos. Apesar da Lara ter um mês. E... era assim, o tempode uma mamada, duas horas, saímos e voltamos. Então essaatenção do casal não mudou com a presença da Lara, a gentemantém essa atenção viva até hoje. Mas o que mudou é que é umserzinho novo. Então a geladeira era vazia, a gente almoçava devez em quando em casa, tal. Passou a ter uma geladeira cheia decoisas, para manter. (Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

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RRoottiinnaa DDoommééssttiiccaa ee FFaammiilliiaarr

Como foi observado no início do capítulo, a presença da

empregada tem uma significativa importância na forma como o casal

estabelece a rotina da casa. A empregada doméstica tem a função de

cuidar do serviço mais pesado da casa, em geral é ela quem cozinha e

pode regularmente buscar ou levar as crianças até a escola, se esta for

próxima à casa. Contudo, há uma certa divisão das atribuições entre o

casal. A mulher ainda é a maior responsável por administrar a rotina da

casa. O homem até pode dar algumas ordens para a empregada, mas é

mais provável que ele se reporte à mulher, para que esta fale com a

empregada. Os filhos são acompanhados pelo casal, o que determina

quem faz o quê é a rotina profissional e a disponibilidade do trabalho.

No caso daqueles que trabalham próximo à residência ou têm uma

atividade profissional com horário mais flexível, a possibilidade do pai

acompanhar mais de perto os filhos é maior.

Há um claro desejo de estar mais presente, mais atuante do que

foram os próprios pais. Essa participação pode não se concretizar se o

trabalho profissional envolver viagens e horas extras.

De todo modo, os homens tendem a cuidar de coisas masculinas

tais como levar o carro à oficina, providenciar o conserto de algum

objeto em casa. Não é uma regra, porém. Embora sejam os homens que

cuidam do dinheiro, das contas, não há uma clara divisão de quem

paga o quê. Ou mesmo que haja uma divisão para organizar o cotidiano

doméstico, os entrevistados investem na idéia de que não há divisão, a

conta conjunta é um exemplo. Um fundo comum para pagar as

despesas que são comuns. Estaria aí presente, de certo modo, uma

concepção de igualdade: uma vez que não há o dinheiro meu ou

dinheiro seu. A repartição das contas é aleatória e são pagas conforme o

dinheiro entra. Mesmo tratando-se de famílias de camadas médias, o

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que pressupõe poder aquisitivo melhor do que nos segmentos

populares, o salário da mulher aparece como claramente importante

para manter o status familiar, especialmente se ela é assalariada e ele

não.

— Quem cuida das contas?

— Tem uma certa divisão, eu acho que a Luiza fica com umpouquinho mais. Ela acaba levando as crianças no clube, eu achoque ela fica um pouquinho mais com as crianças, eu fico umpouquinho mais com as burocracias. As contas, praticamente,95% eu cuido. Isso não tem jeito, eu acho que é por eu estar narua, eu lidar com burocracia minha também. Eu me produzo, eutenho a minha microempresa, então eu acabo tendo que estar embanco. Eu organizei para que tudo que for débito automático, ouseja, o que puder sabe; o imposto de renda vai para o contador,as contas da minha empresa vão para o contador, então, atégasto um pouco mais para tentar me livrar disso aí.

— Quem paga a empregada?

— É rachado, que nem, tem mês, por exemplo janeiro, janeiro é ummês que tradicionalmente o músico não ganha. Esse mês, esseano eu até ganhei, teve um trampo legal em janeiro. Mas que eusó fui receber em fevereiro. Então, é variável, mas o dinheirodaqui a gente não reparte, entra, a gente bota na conta conjunta.Aliás, nunca passou pela minha cabeça, em pensar “quem paga aempregada?” É a gente que paga, aqui, realmente é a comunhãode bens. Tem época de crise, assim, que um cobre o outro e cobramais que o outro. Por ela ser assalariada é mais difícil para elaentender que tem mês que eu não ganho e tem coisas que a gentenão consegue fazer. Às vezes, às vezes, pesa nela essainstabilidade minha, então, às vezes, dá uns, acho que é um ladoque dá uns arranca turco, no cara. Mas de modo geral, o dinheiroé coletivo. (Benício, músico, 2 filhos)

— Então, tem contas que ela paga e outras você paga?

— Na verdade, o que acontece é assim, ela... é gozado a gente nuncaconversou sobre isso. Porque as coisas ficam funcionando assim,como as minhas entradas de dinheiro são completamentemalucas, ela recebe no quinto dia útil do mês, então ela paga aempregada, ela recebe e paga a empregada e o que sobra eladeposita numa conta nossa conjunta, que é a mesma conta queela usa para fazer as compras de casa. Então, acaba servindopara cobrir os pré-datados, na época que a gente comprava

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fraldas, era nessa conta que caía, só que ela não controla, nãotem nenhum controle sobre o dinheiro.

— Você é quem controla?

— Ela me diz “olha, depositei tanto”. (Mauro, produtor de vídeo, 2filhos)

O que se pode apreender dos depoimentos é que o assunto “

dinheiro” é delicado, mexe com as fronteiras do que é individual e

coletivo e quando se está “ em família” o interesse deve ser coletivo.

Quando os questionei sobre quem paga o quê? a reação geral era de um

certo incômodo com a pergunta e a saída foram respostas que

começavam com “nunca falamos disso...”; “ é tudo misturado”, “Não, lá

em casa não tem divisão assim de despesas. Orçamento único!” . Ainda

assim, ao final quem cuida das contas são eles. Elas em geral pagam a

empregada, a comida, coisas relacionadas ao dia a dia da casa. Nada de

novo. Pesquisas como a de Cristina Bruschini (1990) e Danielle

Ardaillon (1997) indicam comportamentos semelhantes. Ardaillon

observou que a parte formal da questão da contas, inclusive a que se

refere à aplicação financeira e declaração de imposto de renda é

entregue para o cônjuge. Deve-se ressaltar que o trabalho remunerado

da mulher proporciona um espaço de negociação. O dinheiro ganho com

o próprio trabalho tem um efeito individualizador , garantindo relativa

autonomia, porém, concordo com Ardaillon, quando diz que a divisão de

tarefas pode ser utilizada muitas vezes de maneira bastante

conveniente, tanto para eles como para elas. Cuidar da burocracia do

dinheiro pode ser uma tarefa mais fácil para eles (da mesma forma

como levar o carro para a oficina) e cuidar de delegar as tarefas para a

empregada, demití-la etc.pode ser mais fácil para as mulheres (já faz

parte de seu universo) e assim o ciclo que separa tarefas femininas das

masculinas se mantém, agora, talvez mais do que antes, de maneira

consensual.

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TTaarreeffaass ddee hhoommeemm,, ttaarreeffaass ddee mmuullhheerr

Em função da ausência durante o dia, da rotina familiar, a noite

reserva um momento de maior possibilidade de participação ao pai. Os

homens que entrevistei relataram que costumam colocar as crianças

para dormir, são responsáveis pela escovação dos dentes dos filhos etc.

Há algumas tarefas para as quais os homens se sentem mais

habilitados ou mais a vontade e em alguns casos há uma clara

distinção de gênero:

— (...) Minha especialidade é banho. Eu também dou bastantequando dá. Agora, tem sido mais a moça aqui, porque a genteestá chegado mais tarde para o banho. Mas banho é um troço queeu faço bastante, especialmente no Marlon, porque menino temessa coisa que tem que lavar o pinto direito e a mulher não sabelavar o pinto do homem, porque o cara tem que arregaçar acabecinha, senão gruda, essas coisas...

— Você acha que mulher não sabe fazer isso?

— Até sabe, mas como ela não tem pinto, então, pô, você sabe dequando você era pequeno, o que você passou para arregaçar a talda cabecinha. Se você não operou de fimose, logo que vocênasceu, se não fez... então, o Marlon é vagabundo para lavarpinto, bunda e cabeça. Então, essas três coisas, eu fico em cimado cara.

— E com a Manuela você não se preocupa?

— A Manuela não, porque, eu, assim, lavar mulher é mais difícil,lavar a xoxota é mais difícil, e ela é menos, menos malandra doque o Marlon para tomar o banho dela. O Marlon para lavar acabeça desde sempre foi um problema tal, o cara chorava quandoia água na cabeça; agora, que ele perdeu o medo de água comquatro, cinco anos. E a Manuela sempre foi mais sossegada nobanho. Então, o banho do Marlon era um banho mais rude, assim,era um banho de homem mesmo, um pouco mais truculento. Eletem banheira, então, eles tomam banho de banheira, vai e brincatal, mas na hora do cabelo, o pente gruda no cara... (Benício,músico, 2 filhos)

Ajudar a cuidar dos filhos, acompanhar o desenvolvimento na

escola, levá-los ao médico sozinho ou acompanhado da mulher, dar

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banho etc. são tarefas prazerosas e que em geral esses homens

gostam de fazer. Em todos os depoimentos há um forte desejo de

estar mais presente na vida doméstica, diferentemente do que seus

pais foram. Mas quando o assunto é a divisão das tarefas

domésticas, o humor é outro. E de fato, o conflito (se é que chega a

haver um conflito) ele é resolvido pela empregada. Os entrevistados

podem fazer o supermercado, arrumar as camas, ajudar a por a

mesa para o jantar (como os seus pais já faziam), a cozinhar, mas

não se trata de uma obrigação, não é visto como parte de sua

rotina diária:

— Bom, fora ligar a televisão, porque as vezes, nem desligar, eudesligo. Eu vou comprar o pão, enquanto ela faz o café. Aas vezes,eu faço o café...Supermercado e feira, você não vai me ver nunca,dentro de supermercado e feira. As vezes, eu ponho a roupa namáquina de lavar; as vezes, eu penduro uma roupa no varal,coisa de por mesa da cozinha, as vezes, mesa, os pratos ...por ospratos sou eu quem faço. Coisas de eletrônica, por exemplo, decolocar uma caixa de som, isso eu faço, não coisas de chuveiro,quebrou chuveiro, torneira elétrica, isso não, mas coisas voltadasa equipamentos ou instalar um telefone, isso eu faço Arrumar asaleta, coisas assim, organizar a gaveta do computador, dosjogos, sou eu que faço, poucas coisas, na verdade. (Luciano,diretor comercial, 2 filhas)

— Adoro cozinhar e cozinho, e teve uma época nossa de casado quea gente brigava para ver quem é que ia cozinhar. Cozinho todahora, todo dia, toda...

— Aí quem cozinha não arruma a bagunça depois, como é isso?Tem uma divisão? Por exemplo, você cozinha a bagunça é daCarla?

— Não, é que eu tenho que assumir uma coisa que eu não concordocomigo mesmo. Eu não arrumo a cozinha. Assim, se eu fizer, euvou fazer como um fardo pesado e ‘não quero fazer isso, quedroga’. E quando eu faço, capricho para caramba. Então aquelapanela que está eu limpo... então, acho... eu não sei passar umaaguinha, então não faço. Acabo não fazendo. (Saulo, produtor devídeo, 1 filha)

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O fato de não assumirem a divisão das tarefas como parte dos

acordos que envolvem o relacionamento, do arranjo familiar é um

obstáculo para se pensar a igualdade de gênero na vida privada.

Esses homens colocam o assunto como uma questão de opção:

posso escolher não arrumar as camas, não lavar a louça, não ir ao

supermercado. Caberá então a alguém assumir essas tarefas ou

não. E neste sentido não há uma divisão das tarefas. Os afazeres

domésticos acabam sobrando para a mulher, que tanto pode ser a

cônjuge, como pode ser a empregada, a diarista. A explicação para

este tipo de arranjo e a resistência a uma mudança efetiva,

especialmente num tempo em que muito se fala sobre “relações

igualitárias” pode ser encontrada no depoimento de Mauro

(curiosamente um dos pais mais participativos entre os

entrevistados):

— Tem uma questão que é séria, que a gente não falou até agora,que é a situação financeira. Quer dizer, a Renata ganha um X ,ganha um quarto do que a gente precisa enquanto orçamentofamiliar, eu ganho os outros três quatro, sendo que um quartodela é salário, é um salário fixo, que não vai ser mexido. O meutrês quartos é maleável, quer dizer, existem, às vezes, situações,onde eu possa ganhar um pouco mais, tem meses bons,especialmente bons, em que eu ganho um pouco mais, tem mesesespecialmente ruins, onde eu ganho um pouco menos. O que euestou querendo te dizer, que é assim, por eu ser um profissionalsempre o potencial é de estar ganhando mais, e esse um poucomais é o que toda família quer e precisa. Quer dizer, se você quer,esses quatro quartos que eu te falei, é o dinheiro que a genteprecisa para manter ali, pagar contas, escola, material, roupas,não sei o que. Agora, se você quiser trocar de carro, se você quiseruma reforminha na casa, precisa desse a mais, que eu tenho empotencial, entende? Por isso, que eu tenho que ficar mais livre queela. E outra , ela tem aquele horário dela, ela está da uma a cincona escola, da uma a cinco e meia. Eu posso ser solicitado àsquatro da manhã, eu posso ser solicitado para viajar, como eu játe disse, domingo a tarde estou indo viajar para fazer um trabalhode quatro dias que é considerado um bom trabalho, bem pago e,portanto, não posso me dar ao luxo de dizer “Não, preciso dedividir as tarefas”. Então, acaba assim, acontece uma vez,acontece outra....A mulher, eu estou falando da mulher, mas éassim, a Renata acaba tomando mais as rédeas da casa. Eu viajoquatro dias, ela não pode ficar esperando os quatro dias para eu

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voltar e resolver fazer supermercado com ela, ela tem que ir lá efazer sozinha. Então, ela fez sozinha uma semana, na outratambém fez, acaba virando tarefa dela. É sacanagem! Eu só façosupermercado hoje em dia, quando, assim, “olha, não está dando,não tenho como fazer, tá ”, então, tudo bem, eu largo meupotencial de estar ganhando dinheiro. Então, ela acaba fazendosozinha. (Mauro, produtor de vídeo, 2 filhos)

Mauro reconhece que o salário fixo da mulher é fundamental para

o orçamento doméstico. No entanto, ele “é profissional” e por isso

tem maior potencial para incrementar a renda familiar. Esse

incremento não é possível com o salário fixo da mulher (ela é

professora em escola privada). Dentro desta lógica ele não pode se

“dar ao luxo” de recusar uma oferta de trabalho para dividir as

tarefas domésticas. Essa mesma lógica orientou Luciano a não

preocupar-se em levantar durante a noite para atender o bebê, já

que a mulher, em licença, não estaria “trabalhando”, como ele, na

manhã seguinte. Há uma divisão de tarefas que não é nem mesmo

negociada, ela é determinada pela lógica de uma estrutura social

mais ampla, estendida para a vida privada.

Afinal, o que é ser pai?

Uma pergunta simples, apenas para fechar a entrevista e

sintetizar as idéias após quase duas horas de conversa sobre família,

filhos, divisão de tarefas, paternidade. Aquilo que parecia simples, no

entanto, não foi. Quase todos manifestaram algum tipo de interjeição,

recorreram de pronto a chavões para só depois desenvolver suas

próprias impressões sobre o que resume a paternidade.

Ser pai é então bonito, gostoso, importante; é também

perpetuação, mas uma continuidade que permite avançar, ser melhor.

É chance de ser melhor do que os avós foram e do que o próprio pai foi.

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O significado de paternidade está associado fundamentalmente à

responsabilidade73:

— O que significa ser pai?

— Puta vida!, isso aí é a coisa mais linda que existe para mim queera um ambicioso em ter um filho e era uma coisa que eu queria eera certa na minha cabeça, desde que eu me conheci por gente. Émaravilhoso, é muito importante, é bonito, é gostoso, não sei teexplicar o que é ser pai assim, mas é tudo isso, é bom demais, ébom demais! (Renato, gerente de correio, 2 filhas)

— Que é ser pai... Mãe é fácil, é padecer no paraíso! Isso a minhamãe que fala. Eu não sei não, eu vejo assim que ser pai é umahonra, na verdade. Ser pai assim. Eu me sinto, enquanto pai, umdesafio... para tentar fazer dos meus filhos uma coisa com umaqualidade a mais do que eu mesmo tenho. Eu sempre penso, coma qualidade, um avançar na espécie, sair uma coisa melhor doque eu sou. Eu me acho um cara legal, e acho que o meu filho temchance de ser melhor ainda. Coisa de aprimorar a raça, por aí.Aprimorar essa espécie humana que é muito... você assistiu ‘aestrada perdida’? (Carlos, professor universitário, 2 filhos)

— Basicamente você passa a entender uma série de coisas queantes você imaginava, que você nem sabia que existia, achavaque estava errado, que era besteira ou que o cara era um idiota.Você fala, bom, não é bem assim. Eu acho, na minha visão, voufalar no meu mundinho lá que é mais fácil, não sei se dá parageneralizar. Mas... como você passou a ser responsável poralguma coisa, então você tem que fazer essa coisa chegar a bomtermo, né (...) (Marcos, diretor de finanças, 3 filhos)

A função paterna ganha significados diferentes conforme a idade da

criança e suas necessidades específicas. Mauro, por exemplo, destaca

que a filha, de 3 anos, necessita de muita atenção física e emocional, é

mais dependente, e o papel do pai é ser acolhedor. Com o filho mais

velho, de 5 anos de idade, a demanda é outra, é “dar parâmetros”. Isto

representa para o pai ser o vínculo entre o filho e o mundo lá fora; é

enfrentar os questionamentos do filho:

— Você falou que a paternidade muda de significado. Então quesignificado é esse, qual a sua função agora? Teve umenvolvimento de participar ali desde o nascimento, de ir ao

73 Ver Silva, 1999.

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médico, aquela coisa bem física, assim. Que paternidade é essaagora, como é que você se vê como pai, daqui para frente nesseprocesso de mudança?

— A Sabrina ainda requer cuidados de uma criança pequenina,assim, a relação com ela ainda é muito mais física, ainda é muitomais emocional, ela tira conclusões muito mais do que ela estásentido do que em torno daquilo que ela está ouvindo, então, achoque o papel de pai aí é meio acolher um pouco isso, responder asdúvidas de uma forma emocional e não chegar para ela e dizer“Sabrina é assim, assim”, ela não vai entender. Apesar de eufazer isso também, para ela já ir se acostumando. Mas, o Tiagome parece uma coisa mais mental e muito mais, ele estáaprendendo coisas, ele está trazendo o mundo para dentro decasa ele que saber, ele quer saber muito como é que eu vejo estascoisas, as coisas que ele está vendo agora, ele tem muitoparâmetro, parâmetro, ele quer parâmetro o tempo inteiro. Então,acho que me parece dar parâmetros, se fosse resumir assim,muito rápido, porque antes eles eram bebezinhos, era muito maisaquela coisa física, de dependência total, quer dizer, quer fazerxixi, umas necessidades fisiológicas que você tem que estaracompanhado, no começo tem que estar acompanhando, chorou,sabe? (...) mas, pô o cara já vai lá faz xixi sozinho, asnecessidades são outras, elas são mais mentais, eles estão serelacionando mais com o mundo, do que com eles mesmos.Quando eu digo o mundo, digo o mundo fora da família, então darparâmetros, quando eu digo dar parâmetros, não é dar normas.Eu já te falei sobre isso, eu me sinto muito aprendendo, eu nãotenho uma, eu não tenho um ideal pré-estabelecido que digaassim “olha, eu vou educar meus filhos assim”. Esse é um jeito,porque não? Sabe, isso não ia funcionar muito, isso já é umacaracterística minha, meio rebelde sobre essas coisas, mas euprefiro me colocar numa postura aberta e maleável para ir vendo oque vem e me colocar da maneira mais saudável possível, querdizer eu não tenho um modelo já para educação. Mas eu estoucom dificuldades de dizer assim, como é que fica a paternidade,porque eu te falo o seguinte, a cada dia você resignifica apaternidade, hoje é diferente de ontem, amanhã vai ser diferente,eu não vejo a coisa como uma coisa modulada, sabe, do zero a umano o pai significa isso, de um ao dois significa aquilo, eu nãoconsigo ver dessa maneira, entendeu?...(Mauro, produtor devídeo, 2 filhos)

Para esses homens não há formula. Mas há uma relativa clareza de que

o pai deve preparar os filhos para o mundo, para ingressarem na vida

social e aprenderem a caminhar com as próprias pernas. O pai seria

aquele que orienta o filho até um certo ponto da trajetória.

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— Como pai, como é que você se define?

— Eu tenho a consciência de estar criando os filhos para o mundo,não para mim, um pouco diferente do como meus pais me criaram.Eu só saí de casa quando eu me casei, eu tive todo o apoioeconômico e cultural dos meus pais, até no momento que eu quis,então, eu colocava as minhas imposições, as minhas regras. Euacho que comigo vai ser diferente, eu não me vejo sustentando osmeus filhos até que eles cheguem aos 26, 28 anos, eu vejo até 16,17, dessa maneira, eu tenho que caminhá-los até aí. Então, euvejo que meus pais me criaram para eles mesmos, até na formaquando eu fui escolher minha profissão, houveram questões, atéhoje eu não sei se fiz a coisa que eu queria fazer, e para os meusfilhos, eu tenho certeza de que não vai ser assim. Eu tenhocerteza de que eu estou criando meus filhos para o mundo e tê-losperto de mim, nessa fase de criança, onde eles possam decidir sevão querer fumar cigarro ou não fumar cigarro... na minha épocaeu tinha que fazer isso escondido...É desse tipo, protegê-los umpouco, em relação ao tráfico é o que me assusta, porque o que eumais tenho...a questão das drogas, porque isso me tiraria o poder,a conscientização, é isso.

— Tiraria poder em relação?

— À criação, a poder levá-los de mãos dadas, até certo ponto, daliem diante seria sozinhos. Eu acho que eu não vou levá-los até 28anos, como minha mãe me levou, ou...irem sozinhos, bem antes doque eu, antes do que eu porque o mundo muda muito mais rápido,então, as crianças são mais precoces. Eu fui até 28 e as criançasvão chegar a 20, 16, não sei. Então, assim, eu tenho que pelomenos prepará-los para isso. (Luciano, diretor comercial, duasfilhas)

— Para você, o que significa ser pai?

— Ser pai... amor. Tentar direcionar uma forma de educação para osfilhos, pode estar errada para uns, errada para outros, mas acharque está certa para o seu filho, né. E... tentar acompanhar ocrescimento dos filhos, né.... posso dizer assim, os vínculos dosfilhos com as pessoas, se é uma criança que está ficando maisafastada dos colegas de escola, por exemplo, se ela está bem...Eu como sempre fui mais tímido, meu jeito de ser é esse, então meretraí mais. Me liberava com poucas crianças, poucos colegas daescola, e tal. O relacionamento era muito pequeno. Então isso émuito importante. (Leonel, engenheiro de produção, 1 filha)

Na fala de Leonel e de Luciano é possível perceber que há uma

preocupação em ser diferente do que os pais foram em sua educação e

de estar atento para evitar que o filho passe por determinadas

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experiências que ele considera prejudicial, como, por exemplo, não

conseguir se relacionar com as pessoas. É interessante observar que há

uma preocupação maior com o desenvolvimento pessoal e emocional do

que profissional, ao contrário das expectativas da geração anterior. Para

o pai desses entrevistados, fundamental era que o filho tivesse uma

carreira, uma profissão com a qual pudesse sustentar a família. Para os

entrevistados é importante a presença, o envolvimento com os

interesses do filhos, é menos ser provedor e mais ser amigo. Até porque

a função de provedor é dividida com a cônjuge, o que lhe permite estar

mais presente:

— Você poderia comparar a relação sua com a Lara com a suarelação com seu pai,?

— Tá. Ah... eu vejo a minha relação com o meu pai... essa relação dehomem com homem. Uma relação masculina, é uma relaçãomasculina, o provedor, o protetor, o super homem, o alicerce.Então desde pequeno, essa é a relação que ele trouxe, que ele mepassou. Com a Lara, além da segurança, do alicerce...O provedorestá muito dividido, eu e a Carla a gente racha tudo... mas assim,essa figura que a sustenta... e às vezes eu sinto falta de não tertido isso como um sentimento... eu proporciono isso para a Lara.Certa vez, eu cobrei amizade do meu pai, e ele falou ‘eu não souseu amigo, sou seu pai’, e eu não concordo com isso. Eu sou o paida Lara, mas tão pai que quero ser tanto amigo quanto pai. Queroestar junto com ela, quero estar presente o tempo inteiro (...)(Saulo, produtor de vídeo, 1 filha)

O projeto de ser pai, constituir família, é visto com encantamento, mas

também como uma tarefa árdua, que impõe dedicação. Trata-se de uma

experiência que envolve a renúncia de projetos pessoais ou ao menos

sua readequação aos interesses do grupo familiar. O casamento é visto

como um resquício tradicional, até incompatível com a vida moderna,

mas ao mesmo tempo um desafio. Benício, com seu jeito espontâneo de

colocar as idéias, vai tecendo essas ambigüidades:

— O que para você significa ser pai?

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— Não sei, essa pergunta é engraçada. É aquilo que eu falei, eu achoque ser pai, ser marido, casar, a coisa do casamento em si, eunão acho fácil, nada fácil, as pessoas detonam o casamento. Ah,de modo geral, não é moderno, é mesmo uma coisa arcaica, nãotem um glamour, pô, mesmo na coisa sexual, você está com amesma mulher, ela vai ficando velha, ela começa a ter umasmanias, sabe, putz! Mas eu penso, eu acho um negócio muito legalse você tiver na sua cabeça, que você envelhecer junto com umapessoa, criar filhos, todas essas são coisas muito maravilhosas,você ver uma pessoa mudar, tal, você tem filhos com ela, você vaicriando o filho, então, mas eu acho que a minoria pára parapensar nisso aí, por isso que as pessoas só se queixam docasamento, parece que é uma coisa que mata a liberdade, eu achoo contrário, é uma puta de uma viagem, só que é uma viagem queexige exercício e disciplina, é um tipo de meditação o casamento, étrabalhoso para cassete, mas pô, tem um monte de coisatrabalhosa que dá prazer, mas não é um prazer de graça, é umprazer que você tem que lutar muito para ele vir, então, ser pai, euacho que é um pouco isso, para mim. ...(Benício, músico, 2filhos)

Benício mostra também a ansiedade com a mudança dos valores. A

forma com que foi educado —teve o privilegio de fazer parte de uma

família relativamente aberta às mudanças — já não se enquadra com a

forma com que deve educar seus filhos. Não há regra. E para ele a

paternagem se tornou mais difícil:

— Você acha que hoje é mais fácil do que no tempo do seu pai?

— Acho mais difícil. Por que antes era permitido você ser um ditadorqualquer, dar um monte de ordem e o cara te temia e pronto, eainda isso era, era cômodo porque não tinha tanto lance. Hoje,tem mil lances, você sabe que mesmo um moleque de cinco anos,tem argumento suficiente que você tem que levar em conta, nãoadianta você dar uma chinelada no cara, não existe mais isso,quer dizer, existe, para um monte de gente, mas eu acho que comotem mais detalhes e lances, como tem mais variáveis, as criançassão mais informadas, desde cedo, nossos pais estão mais abertospara reconhecer que não estão sempre certos, então, acho que éuma atitude, é uma atividade muito mais difícil, e eu acho quedentro desse rolo todo, que eu estou falando, que é racional, deinformação, tem uma coisa que dificulta, que é o afetivo, você temque achar espaço para ele, porque tem tanta coisa racional,ideológica, educação, coisas comerciais entre pai e filho, que pô,chega uma hora que simplesmente sem querer ficar o tempointeiro beijando o seu filho, é uma.... sabe, acho que rola atémenos espaço, não sei se eu estou falando bobagem...Agora, você

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tem que dividir o lado afetivo com muito mais preocupação, é, euacho muito mais difícil. Eu vejo as pessoas menos resolvidas hoje,isso também dificulta. .

As técnicas anticoncepcionais permitiram a autonomia das mulheres

em relação à sexualidade, desvinculando-a da reprodução. Persiste,

entretanto, o conflito básico entre, de um lado, a livre expressão da

individualidade tanto na carreira profissional como na vida amorosa,

tanto para os homens como para as mulheres, e de outro, a

responsabilidade conjunta em relação aos filhos comuns, que exige

renúncia a certos pressupostos do individualismo modernista.

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CCoonnssiiddeerraaççõõeess FFiinnaaiiss

Quando ingressei no mestrado, em 1995, os estudos de gênero,

particularmente aqueles situados nas Ciências Sociais, pouco

focalizavam os homens como objeto de pesquisa, ainda que eles

fizessem parte das pesquisas sobre família (Salém, 19980; Bruschini,

1990; Sarti, 1996, entre outros). O tema da paternidade não ocupava o

mesmo espaço e interesse que temas como maternidade, articulação

trabalho/família provocavam entre os estudiosos das relações de

gênero. Nos anos seguintes, vi emergir pesquisas, seminários e outros

eventos voltados especialmente para o tema da masculinidade. Grupos

de estudos se formaram74, programas de pós-graduação dedicaram

cursos para o tema; livros e artigos de autores anglo-americanos e

europeus circularam e foram debatidos em diferentes fóruns. De 1995

para cá vários artigos de pesquisadores brasileiros foram publicados em

coletâneas e revistas científicas75.

A partir de 1994, pós Encontro do Cairo é possível localizar uma

mudança no enfoque nos estudos de gênero. Evidenciou-se que, de um

lado, as mulheres saíram da invisibilidade, mas de outro lado a maioria

dos problemas apontados pelas feministas, em especial com a saúde

reprodutiva, não haviam sido solucionados. Um aspecto fundamental,

deixado de escanteio precisava ser resgatado: a sensibilização

masculina para os problemas femininos e mais do que isso a

necessidade de envolver os homens em questões como a saúde

reprodutiva e a vida familiar. Saber mais sobre os homens e tê-los

74 Eu mesma passei a integrar o Grupo de Estudos sobre Sexualidade Masculina e

Paternidade/GESMAP, organizado pela ECOS – Estudos e Comunicação em Sexualidade eReprodução Humana, que reúne pesquisadores e profissionais que atuam em projetos deintervenção.

75 Ver Arilha, Ridenti-Unbehaum, Medrado (1998); Revista Estudos Feministas(IFCS/UFRJ,vol.6 n.2/98); Cadernos Pagu (11, 1998), entre outros.

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pesquisando conjuntamente com as mulheres tornou-se uma estratégia

política e teórica. Este é um ponto que nos ajuda a compreender o

crescente interesse pelo tema.

Outro ponto é o interesse de homens em rever sua posição e papel

na sociedade contemporânea, até mesmo questionando os significados

atribuídos para o masculino, para a paternidade. Daí o crescente

número de homens pesquisando as relações de gênero

Apesar do significativo interesse pelo assunto, não me parece que

um campo de estudos sobre os homens, delimitado e semelhante ao que

se denominava na década de 70 e 80 de estudos sobre as mulheres

esteja se constituindo no Brasil, nos moldes dos chamados Men´sStudies, das universidades anglo-americanas. O mais provável é que

com a consolidação dos estudos de gênero, processo iniciado

principalmente a partir de 1985, o interesse pelos homens como objeto

de estudo surge como decorrência do processo de amadurecimento e de

compreensão do significado do conceito de gênero.

A evidência das diferenças de sexo e de como esta diferença

constrói as desigualdades de gênero e as relações de subordinação

constitui a base para o surgimento de pesquisas que enfocam os

homens. E da mesma forma como aconteceu com o campo de estudos

sobre mulheres (já apontado por Costa; Barroso e Sarti, em 1985), em

parte desses trabalhos, no Brasil, é a teoria feminista quem legitima o

tema como objeto de investigação.

Assim sendo, as inquietações que fomentaram meu interesse pelo

tema da paternidade se constituíram ao longo de uma trajetória que foi

também de constituição de um interesse específico dos estudos das

relações de gênero: os homens e as masculinidades. Minha pesquisa se

beneficiou deste momento, do qual pude usufruir de muitas

interlocuções.

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Minhas inquietações iniciais — compreender como as sociedades

representam o gênero e o utilizam para articular regras que conformam

a divisão sexual do trabalho e que, por sua vez, definem atribuições

para homens e mulheres, como no caso da paternagem e da

maternagem — não foram totalmente apaziguadas durante o desenrolar

da pesquisa. Muitas outras questões foram se estabelecendo e não me

furtei a deixá-las explícitas no decorrer do texto.

Procurei apreender a concepção de paternidade socialmente

construída, expressa no discurso de homens de camadas médias;

observei se os indícios de mudanças nas relações familiares, apontados

pela literatura, se confirmam; e até que ponto as relações de gênero na

esfera privada têm se alterado.

O percurso da pesquisa envolveu um cuidadoso levantamento

bibliográfico sobre paternidade, maternidade, famílias e gênero, que

pudesse subsidiar-me na elaboração da proposta de pesquisa. Definidos

os critérios de seleção do universo empírico e elaborado o roteiro de

entrevistas foi possível obter informações preciosas para avaliar como

homens, de um segmento social específico, e de uma determinada

geração têm pensado a paternidade e as relações familiares e como a

expressam.

A pesquisa centrou-se em sujeitos, de camadas médias,

residentes na Capital, segundo uma classificação que levou em conta a

escolaridade, a presença de filhos, o estado conjugal. Foram 10

entrevistados, que resultou num grupo relativamente homogêneo

quanto aos critérios de seleção, mas diverso quanto à forma de

conceber a paternidade e na maneira de vivenciá-la, ainda que alguns

aspectos comuns possam ser identificados: um desejo muito presente

de ser diferente do que o próprio pai foi em relação ao envolvimento com

os filhos. Estar mais presente no cotidiano família e, mais do que isso,

ser mais afetivo.

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Outro aspecto a ser destacado é uma maior participação na rotina

doméstica, ainda que esta esteja diretamente relacionada à

disponibilidade de tempo, e ao tipo de ocupação profissional. Neste

sentido, não há igualdade, nem maior, nem menor, entre homens e

mulheres. Há uma divisão de tarefa clara e explicita e que,

supostamente, é coerente com o arranjo familiar.

Estar inserido num mundo masculinamente dominante faz a

diferença. E faz porque a estrutura social mais ampla favorece e reforça

esta diferença. Mulheres ganham menos do que os homens, a licença-

maternidade favorece que sejam elas a cuidarem durante mais tempo

dos filhos e a optarem por atividades profissionais que permitam

conciliar trabalho e família, não há uma política para as famílias que

forneça condições para que homens e mulheres possam dedicar-se em

condições iguais aos seus projetos profissionais.

Mesmo quando há políticas públicas favoráveis à participação

masculina no cuidado com os filhos, como na Suécia, que desde 1974

disponibiliza para os pais a licença parental, essa participação esbarra

na própria organização social, que nem sempre apresenta mudanças

significativas na estrutura de gênero (Näsman, 1990). Um exemplo é a

dificuldade enfrentada por muitos homens pais diante da reação de

seus colegas de trabalho, com filhos ou não, que não compartilham da

idéia de que os homens devam dividir com suas mulheres a licença

parental e a responsabilidade pelo cuidado com os filhos. Em um

mercado profissional competitivo, a ausência do posto de trabalho por

um certo período de tempo pode significar perda de espaço e de poder.

Desde os anos 70 pais e mães contam com a licença parental e

com a opção por trabalho de meio expediente, além de serviços de

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creches subsidiados pelo Estado76. Segundo Elisabet Näsman (1990),

estudos realizados nos anos 80 demonstraram que em 1984 o tempo

dedicado aos filhos pequenos aumentou tanto entre homens quanto

entre mulheres e o tempo gasto com trabalho assalariado diminuiu.

Contudo, a divisão das tarefas domésticas ainda é determinada pelo

gênero, a maior parte da rotina doméstica é executada pelas mulheres.

Uma prova é que a maioria das mulheres passa a optar pela jornada de

meio expediente após o parto. Além disso, os homens recorrem em

número sensivelmente menor do que as mulheres à licença parental.

Näsman cita um estudo com casais suecos, conduzido durante os dois

primeiros anos da licença parental. Os dados revelaram que 29% dos

homens receberam o seguro parental por aproximadamente um mês e

meio, contra dez meses das mulheres.

Mesmo havendo possibilidades jurídicas e sociais para os homens

ampliarem seu envolvimento com os filhos e com os afazeres

domésticos, há muita resistência por parte das empresas, que não vêem

com bons olhos o afastamento masculino pela licença parental77.

Há ainda aqueles que temem que um maior envolvimento

masculino com as crianças possa conduzir ao crescimento do abuso

sexual, da violência contra as crianças e da homossexualidade78.

De certa maneira, esses estudos indicam que a saída das

mulheres para o mercado de trabalho foi acompanhada por mudanças

muito lentas em relação às demandas da vida privada. O mundo do

76 A licença parental é de 12 meses, sendo 9 meses com uma cobertura de 90% do salário e

para os 3 meses restantes um adicional de 300 dólares por mês. Pai e mãe podem dividir otempo de licença entre si. Além disso, os pais das crianças até oito anos usufruem de umalicença remunerada para acompanhar os filhos ao médico ou quando estão doentes e nasreuniões escolares.

77 Vale lembrar a reação irônica e de escárnio de vários segmentos sociais no Brasil, em 1988,ocasião da elaboração da atual Constituição Federal, à proposta de licença-paternidade, hojeestabelecida em cinco dias úteis.

78 Sobre a construção social do processo de erotização das relações entre adultos e crianças ver:BAUMAN, Zygmut. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro : Zahar, 1998,particularmente o cap. XI – Sobre a redistribuição pós-moderna do sexo: a História daSexualidade, de Foucault, revisitada (p. 177)

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trabalho permaneceu inflexível diante das mudanças e das

necessidades dos trabalhadores com suas famílias. O fato de, ao longo

das últimas décadas, as mulheres terem alcançado vários direitos,

especialmente na área do trabalho, entre os quais a licença-

maternidade, a regulamentação do trabalho doméstico e a proteção do

mercado de trabalho mediante incentivos específicos, não diminuiu,

porém, a desigualdade entre homens e mulheres em relação às

oportunidades no mercado de trabalho, à ocupação de cargos de

comando e políticos e à igualdade salarial.

Uma pesquisa realizada pelo Ministério da Educação (1994)

mostra que em 1989 5,1% das crianças brasileiras de 0 a 3 anos

freqüentavam creches e 16,9% das de 0 a 6 anos estavam matriculadas

em creches ou pré-escolas. Destacando dados da Pesquisa Nacional

sobre Demografia e Saúde, realizada pela BEMFAM, Cristina Bruschini

(1998) mostra que 23% das trabalhadoras cuidam elas mesmas dos

filhos menores de 5 anos, 34% são ajudadas por parentes, 10% pelas

filhas, 12% por empregadas domésticas, 4% pelos maridos e apenas

10,2% ficam em creches. Ainda assim as mulheres casadas, em idade

entre 25 e 29 anos, com filhos, apresentavam em 1995 uma taxa de

atividade de 56% (Bruschini, 1998), sugerindo que as responsabilidades

familiares não têm constituído um obstáculo à inserção das mulheres

no mercado de trabalho, embora o cuidado com os filhos e demais

familiares ainda represente uma sobrecarga para aquelas que

trabalham fora. Para as mulheres que não podem arcar com os custos

de uma empregada doméstica, a solução encontrada é acionar a rede de

parentesco ou de vizinhança. Em muitos casos, são as filhas mais

velhas que assumem os cuidados com os irmãos menores.

Apesar das desigualdades de gênero que ainda podem ser

identificadas na sociedade contemporânea, mudanças vêm ocorrendo

nos arranjos familiares. As mulheres não mais têm guiado suas práticas

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segundo o discurso tradicional materno. E da mesma maneira também

os homens não têm mais seguido as práticas de seus pais. Há um estilo

de maternagem e paternagem e de relação com os filhos que prevê a

satisfação de outros desejos das mulheres e dos homens. Contudo,

essas mudanças parecem, de certo modo, ser mais expressivas no plano

das idéias do que na prática cotidiana. As mudanças de comportamento

expressas no discurso das pessoas (e a mídia tem um papel central em

fomentar esse discurso) soa muitas vezes contraditório com o que

observamos na prática cotidiana das relações parentais.

Refletindo sobre as mudanças na paternagem na sociedade

americana, Ralph Larossa (1994), considera que as mudanças no plano

das idéias não necessariamente remetem a transformações de conduta.

Larossa tece seu argumento a partir de duas dimensões: uma cultura

da paternagem (referente às normas, valores e crenças) e uma conduta

da paternagem (relativa às práticas, ao comportamento).

A cultura da paternagem pode ser compreendida com o mesmo

sentido que Jean-Claude Passeron (1995) define a “cultura

declarativa”79. O discurso oral ou escrito de uma cultura é o que mais

rapidamente evolui, mais depressa do que a própria ação. A “cultura

declarativa” (discurso, idéias) tem como característica insidiosa ser “um

saber absoluto da essência de qualquer cultura que distorce a descrição

do que ela é em si como prática, a fim de fazer as duas [descrição e

prática] coincidirem de maneira ideal.” (1995:364)

Passeron nos mostra que a discursividade é uma formulação que

fazemos de nós mesmos, uma definição falada (ou escrita) das relações

que estabelecemos entre os valores, o homem e o próprio mundo. E por

79 Passeron (1995) apresenta três sentidos para cultura, classificação que permite definir melhor

os fins e os meios de uma ação cultural, observáveis em graus diversos em qualquer cultura:cultura como estilo de vida (modelos de representação e prática); cultura como comportamentodeclarativo (a cultura expressada pela linguagem ou escrita) e cultura como corpus de obrasvalorizadas (particularmente as obras de artes).

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isso a distinção entre cultura e conduta não é explicita, em geral, é

presumido que a conduta dos indivíduos está em sincronia com os

valores e as crenças.

Larossa acredita que numa sociedade em acelerada mudança, o

contrabalanço das forças pode resultar em mudanças na cultura e não

necessariamente na conduta dos indivíduos. No caso da paternagem, as

mudanças apontadas pela mídia e por especialistas (psicólogos,

sociólogos, pedagogos etc.) estão restritas à cultura, ou seja, ao plano

das idéias e crenças. O próprio discurso da mídia e dos especialistas

seria responsável por inspirar no pensamento social a existência de um

“novo pai”. Se houve alguma mudança, ela responde às transformações

na conduta da maternagem (provocadas pelo declínio da taxa de

fecundidade e pelo crescimento das mulheres no mercado de trabalho);

tanto que hoje é aceitável (até esperado, como pode ser observado nos

depoimentos) que a mãe invista numa carreira profissional ou tenha

uma atividade remunerada. Tal fato estaria servindo como argumento

para estudiosos e para a mídia suporem que os pais/homens estariam,

por tabela, se envolvendo mais nas atribuições com os filhos e com a

casa.

A hipótese de Larossa é de que essas mudanças têm atuado mais

no sentido de estabilizar a cultura da paternidade, ao invés de

desestabilizá-la. A conduta da paternidade (mais tradicional) e a

conduta da maternidade (mais moderna) estariam influenciando

contraditoriamente a cultura da paternidade (modelo idealizado). As

conseqüências da não-sincronia entre uma cultura moderna da

paternidade e uma conduta menos moderna ou tradicional se

traduzem, por um lado, na emergência de uma “presença técnica do

pai, mas ausência funcional” (não há comprometimento e nem

acessibilidade), por outro, num aumento da crise conjugal no que se

refere às atribuições com os filhos e com a casa e um crescimento do

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número de pais que se sentem ambivalentes quanto a sua performance.

(Larossa, 1994).

Pensando nos depoimentos que obtive de Benício, Carlos, Leonel,

Luciano, Luiz, Marcos, Mauro, Péricles, Renato e Saulo é possível

concordar apenas com parte do argumento de Larossa. De fato,

mudanças efetivas nas práticas cotidianas relativas aos afazeres

domésticos e aos cuidados com os filhos não ocorrem facilmente. Por

outro lado, eles verbalizam interesse, indicando compreensão da

importância de estarem mais presentes na vida de seus filhos e de

participarem da rotina doméstica. Questionam o modelo paterno

herdado de seus pais e afirmam a importância de expressarem afeto e

suas próprias inseguranças. Diferentemente do que Larossa afirma, os

homens que entrevistei não me pareceram ambivalentes quanto à sua

performance como pai. De maneira geral, expressam muito claramente

suas expectativas e seus fantasmas com relação à educação de seus

filhos; vivem um intenso processo de reflexão sobre o seu lugar na

família, como pai e marido, como ilustra esta passagem e com a qual

finalizo minha reflexões sobre a experiência masculina da paternidade

na década de 1990, certa de que não foi possível esgotar o assunto:

— A educação que você dá aos seus filhos é parecida com a que recebeu doteu pai?

— É parecido porque eu sou gozado com eles, como meu pai era gozadocomigo. O que difere mesmo eu acho que é isto, eu estou mais presente. Éuma coisa que eu vi na minha educação pô que eu entendo, mas eu gostariaque fosse mais...Mesmo que seja para fazer coisa errada, acho melhor estarpor perto, sabe. Acho que também os meus pais tinham muito cuidado com agente, eles tinham quase medo da gente, eles queriam acertar muito, sabe,caprichavam demais. Hoje eu acho que muita água já correu debaixo dosusos e costumes, e dá para gente fazer mais burrada e não se sentir tãoculpado, como eles se sentiam. Eu penso, pô, educação não é acertar,educação é impossível, eu olho para essas crianças, o mundo como é, eufaço o possível, cara! Não dá, tudo é muita variável, eu não estou criado,cara, e eu tenho quase quarenta anos! O Brasil é louco, a minha profissão élouca, eu sou instável, sabe, tem um monte de valores que eu não tenhocerteza deles. (Benício, músico, 2 filhos)

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AAnneexxoo

Roteiro de entrevista

! Identificação do entrevistado e da família: idade do casal,escolaridade do casal, profissão do casal, número de filhos, idadedos filhos etc.

! A família de origem• cidade onde nasceu e passou a infância• profissão do pai?• profissão da mãe?• escolaridade de ambos?• número de irmãos? sexo dos irmãos?• ordem de nascimento em relação aos irmãos?• presença de empregados domésticos

! Da infância à adolescência:

• idade com que ingressou na escola?• a mãe trabalhava fora?• foi cuidado por babás ou avós?• além de ir a escola participava de outras atividades extra-

escolares?• quem o levava?• alguém o acompanhava nas tarefas escolares? quem?• quem costumava ir às reuniões escolares?• quem costumava leva-lo ao dentista e ao médico?• quem era responsável pela disciplina?• seu pai ou mãe contavam histórias antes de dormir?• você se lembra de brincadeiras com seu pai? Quais?• e na adolescência, faziam programas juntos? Quais?• Você recebeu orientação para a vida sexual? De quem? Como

foi?• você e seus irmãos eram responsáveis por alguma tarefa

doméstica?• você se lembra do seu pai ajudando em alguma tarefa

doméstica?• o que vocês costumavam fazer nos fins de semana?• como você descreveria seu pai?• como você descreveria sua mãe?• O que pensa da educação que recebeu de seus pais?• até que idade morou na casa dos pais? Por quê?

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! A família de procriação• como conheceu sua companheira?• utilizavam algum método anticoncepcional?• quem tomava a iniciativa em relação a isso?• quanto tempo depois de casados sua companheira engravidou?• foi uma gravidez planejada?• se não, como foi a sua reação ao saber da gravidez?• como foi o período da gravidez?• você a acompanhou ao médico durante o pré-natal?• entrava na sala de exames?• acha que a gravidez afetou o relacionamento do casal?• participou do parto

! A rotina com o bebê• como foram os primeiros dias em casa após a chegada do bebê?• Se a mulher trabalhava, teve licença maternidade?• Contou com alguém para ajudá-la?• Quem costumava levantar durante a noite?• Quem trocava as fraldas? Dava banho? Preparava as

mamadeiras? Quem o levava para tomar sol?• Acompanhava a mulher ao pediatra? Até que idade da criança

fez isso? Levou-o alguma vez sozinho?• Sua esposa deixava o bebê sozinho com você? Se deixava, como

era?• o nascimento do seu filho mudou seu comportamento?• O ritmo do seu trabalho? Você se lembra de ter faltado ao

trabalho por causa do filho?• sua esposa voltou a trabalhar? Após quanto tempo? Continuou

com o mesmo ritmo de trabalho?• Quem cuidava da criança?• Quando era preciso levá-lo ao médico, quem o levava?

! Sobre a rotina com uma criança em idade escolar:• com que idade seu filho ingressou na escola?• Quem o leva? Em qual período ele vai?• Quem vai buscá-lo na escola?• Ele tem outras atividades? Quais? Quem o leva?• Quem cuida da escovação de dentes da criança?• Alguém orienta/ajuda nas tarefas escolares? Em que horario

faz isso?• Você já foi às reuniões escolares? Por quê?

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A rotina doméstica

• Seu filho cuida de alguma tarefa doméstica?• E você?• Quem costuma chamar alguém para consertos domésticos?

Quem cuida das contas? Sua mulher tem carro? Quem foicomprar? Quem leva o carro para a oficina? Quem paga aempregada? Quem dá ordens para a empregadas? Quemdemite a empregada? Quem compra as suas roupas? Quemcompra os presentes de aniversário das crianças? E as de seufilho? Vocês tem algum animal? Quem cuida dele? Quemarruma as camas? Quem põe a mesa para as refeições? E nosfins de semana?

• O que vocês fazem nos fins de semana?• Costuma sair sozinho com seu filho? O que vocês fazem?

! Algumas reflexões sobre a paternidade:• Na sua opinião, como deve ser a educação das crianças? Por

que? Quem deve cuidar da disciplina? Por quê?• O que você pensa sobre os homens que solicitam a custódia

dos filhos?• Qual a sua opinião sobre homens solteiros adotarem crianças?• O que você pensa sobre sua mulher trabalhar fora? O que você

pensa sobre ela não trabalhar fora?• Você poderia comparar a relação dos seus filhos com você com

a sua relação com seu pai?• O que significa ser pai?