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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES FRAGMENTS OF FRAGMENTS Exploração de Possibilidades Combinatórias na Criação de um Gerador de Texto Alyona Gorbach Trabalho de Projeto Mestrado em Design de Comunicação e Novos Media Trabalho de Projeto orientado pela Prof. Doutora Luísa Ribas 2018

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

FRAGMENTS OF FRAGMENTSExploração de Possibilidades Combinatórias

na Criação de um Gerador de Texto

Alyona Gorbach

Trabalho de Projeto

Mestrado em Design de Comunicação e Novos Media

Trabalho de Projeto orientado pela Prof. Doutora Luísa Ribas

2018

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu Alyona Gorbach, declaro que a presente dissertação de mestrado intitulada “Frag-ments of Fragments: Exploração de Possibilidades Combinatórias na Criação de um Ge-rador de Texto”, é o resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia a ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

O Candidato

Lisboa, 10 de Fevereiro de 2018

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RESUMO

Este estudo aborda o conceito de Literatura Potencial com foco na exploração de pos-sibilidades combinatórias, procurando pôr em prática esses princípios mediante a sua implementação tecnológica. Visa explorar criativamente a potencialidade literária através da recombinação de unidades literárias tais como frases ou palavras. Tendo por base o pensamento do grupo OuLiPo, desenvolve-se uma forma de reescrita e leitura auxilia-da pelo computador que permite gerar combinações potencialmente inesperadas ou não completamente previsíveis, tanto pelo autor que as programa como pelo leitor.

O estudo começa por identificar termos e conceitos associados à literatura potencial. Se-guidamente, e de forma a compreender mais profundamente os procedimentos inerentes a este tipo de criação literária e sua implementação computacional, procede a uma análi-se de obras passíveis de informar o desenvolvimento do projeto prático. Adoptando um modelo para análise dos media digitais proposto por Noah Wardrip-Fruin, que evidencia o conceito de processamento expressivo (2006), e articulando este com outros enqua-dramentos adequados à análise de obras computacionais, estabelece-se uma base para a compreensão das interações entre os elementos constituintes de uma obra, evidenciando o papel expressivos dos processos que opera.

Por fim, desenvolve-se o projeto Fragments of Fragments que explora a implementação de processos de recombinação de frases por via da seleção de palavras relevantes no texto, criando assim novos sentidos e leituras. Os dados textuais baseiam-se na obra de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, dado o seu teor fragmentário que potencia a recombinação, bem como a sua temática evocativa de um dos primeiros gera-dores de texto implementados em termos computacionais, o Gerador de Cartas de Amor de Christopher Strachey.

Esta exploração prática de possibilidades combinatórias procura revelar como a expres-são e sentido da obra literária não reside apenas no resultado textual final, mas nos pro-cessos inerentes à sua construção, ou na potencial variabilidade semântica e expressiva que originam.

Palavras-chave: possibilidades combinatórias, gerador, fragmentos, literatura potencial.

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ABSTRACT

This study approaches the concept of Potential Literature focusing on the exploration of combinatorial possibilities and seeking to put these principles into practice through their technological implementation. It aims to creatively explore literary potentiality through the recombination of literary units such as phrases or words. Based on the ideas of the OuLiPo group, a computer-assisted form of rewriting and reading is developed in order to generate combinations that are potentially unexpected or not completely predictable, both by the author and the reader.

The study begins by identifying terms and concepts associated with potential literature. Subsequently, and in order to more fully understand the procedures inherent to this type of literary creation and their computational implementation, it proceeds to an analysis of works that can inform the development of the practical project. By adopting the model for digital media analysis model proposed by Noah Wardrip-Fruin, which highlights the concept of expressive processing (2006), and by articulating it with other frameworks suitable for the analysis of computational works, we establish a basis for the understand-ing of the interactions among the constituent elements of a work, evidencing the expres-sive role of the processes that it operates.

Finally, the project Fragments of Fragments is developed, which explores the implemen-tation of sentence recombination processes by selecting relevant words in the text, thus creating new meanings and readings. The textual data are based on the work of Roland Barthes, A lover’s Discourse: Fragments, given its fragmentary content that potentiates recombination as well as its evocative theme of one of the first text generators imple-mented in computational terms, the Love Letter Generator by Christopher Strachey.

This practical exploration of combinatorial possibilities seeks to reveal how the expres-sion and meaning of the literary work lies not only in the final textual result, but in the processes inherent to its construction, or in the potential semantic and expressive vari-ability that they originate.

Keywords: combinatorial possibilities, generator fragments, potencial literature.

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AGRADECIMENTOS

À Professora Luísa Ribas, agradeço a oportunidade e reconheço, com gratidão, o sentido de responsabilidade que me incutiu em todas as fases do projeto. A sua orientação foi determinante na elaboração desta Tese.

À Dra. Ana Maria Fernandes e ao Prof. Doutor António Augusto Fernandes por me terem proporcionado as condições necessárias para a elaboração da dissertação, e também pela sua tolerância e simpatia.

À Tânia Almeida, pela sua disponibilidade e colaboração e também pelo apoio fornecido ao longo do percurso.

Ao Luís Coelho, pela orientação e apoio incondicionais que muito elevaram os meus conhecimentos científicos e, sem dúvida, muito estimularam o meu desejo de querer, sempre, saber mais e a vontade constante de querer fazer melhor.

À Lucinda Alves e David Pádua pelo profissionalismo, pela sincera amizade e pela total disponibilidade que sempre revelaram para comigo.

Ao Kirill, expresso a minha gratidão pelo todo o apoio diário, pela confiança que em mim depositou, desde o início. Pela amizade, companhia e afeto, a partilha de bons momentos, ajuda e estímulos nas alturas do desânimo.

Aos meus pais, que tanto me apoiaram durante todo o percurso académico.

À memória do meu avô.

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 13

Contexto 13Objetivos e Metodologia 14Estrutura 15

1. LITERATURA POTENCIAL 17

1.1. CONCEITO 171.1.1. O grupo OuLiPo 18

1.2. RESTRIÇÕES (CONTRAINTES) 191.2.1. Literatura Combinatória 21

1.3. ERA COMPUTACIONAL 221.3.1. Literatura Gerada por Computador 22

2. ANÁLISE DE OBRAS 25

2.1. MODELO DE ANÁLISE 262.1.1. Um Modelo dos Media Digitais 262.1.2. Entender os Processos 282.1.3. Entender Comportamento 29

2.2. DIMENSÕES DE ANÁLISE 302.2.1. Dimensão Conceptual 312.2.2. Dimensão da Mecânica 332.2.3. Dimensão da Experiência (superfície e dinâmica) 34

2.3. OBRAS SELECIONADAS 372.3.1. Critérios de Seleção 372.3.2. Cent Mille Milliards de Poèmes 382.3.3. Love Letter Generator 422.3.4. Wikisonnet 44

2.4. RESULTADOS DA ANÁLISE 452.4.1. Dimensão Conceptual 462.4.2. Dimensão da Mecânica 472.4.3. Dimensão da Experiência 48

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2.5. CONCLUSÕES DA ANÁLISE 492.5.1. Princípios para o Projeto 50

3. PROJETO FRAGMENTS OF FRAGMENTS 53

3.1. VERSÃO PRÉVIA 533.2. VERSÃO ATUAL 55

3.2.1. Conceito (Tema e Conteúdo) 553.2.2. Mecânica (Dados e Processos) 563.2.3. Experiência (Superfície e Dinâmica) 59

CONCLUSÃO 61

Discussão de Resultados 61Limitações e Investigação Futura 64

OBRAS CITADAS 65

BIBLIOGRAFIA 67

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ÍNDICE DE IMAGENS

Fig. 1: Esquema da articulação de modelos de análise adaptado de Orsi et al. (2016). 31

Fig. 2: Cent mille milliards de poèmes de Queneau (1961). 38

Fig. 3: Gráfico de possibilidades de percurso de Cent Mille Milliards de Poèmes apresentado por Berge

em Oulipo, La littérature potentielle (1973). 39

Fig. 4: A versão impressa de Cent mille milliards de poèmes de Queneau (1961). 40

Fig. 5: Captura de ecrã de Cent mille milliards de poèmes programado por Tibor Papp em 1989. 41

Fig. 6: Versão online de 1997 de Magnus Bodin. 41

Fig. 7: Versão online de Cent mille milliards de poèmes por Beverley Charles Rowe (s.d.). 42

Fig. 8: Implementação em PHP do programa Loveletters por Matt Sephton em 2010. 43

Fig. 9: Gerador de Strachey reimplementado por Nick Montfort em 2014. 44

Fig. 10: Exemplo das palavras em pentâmetro iâmbico divididas em acento forte (linha) e fraco (meio

círculo). 45

Fig. 11: Wikisonnet: Procedual Poem Generator (Tarakajian et al. 2016). 45

Fig. 12: Captura de ecrã do projeto prévio. 54

Fig. 13: Opções de pesquisa por Autor (Authors) ou Assunto (figures) 55

Fig. 14: Esquema de ligações entre Autores e Assuntos a partir da análise do conteúdo da obra. 57

Fig. 15: Elementos que determinam a combinação de frases de um excerto de Werther. 58

Fig. 16: Visualização do projeto. 60

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INTRODUÇÃO

Contexto

Os conceitos de “literatura combinatória” ou “literatura potencial” são atualmente usados na crítica literária para a descrição de algumas técnicas características do processo lite-rário. Estritamente falando, o termo “literatura combinatória” não é um termo literário. Teve origem como símbolo de um estilo narrativo específico, adotado e desenvolvido (inclusive teoricamente) por alguns escritores e matemáticos, como Roland Barthes ou François le Lionnais.

De um modo geral, a principal característica de obras que são definidas como “combina-tórias”, pode ser considerada a recombinação de textos “pré-definidos”, ou seja, o texto não-linear, é definido em fragmentos relativamente independentes (em termos semânticos e narrativos), que são passíveis de combinação pelo leitor de uma forma livre, ou com-binação baseada num algoritmo desenvolvido pelo autor que permite a “passagem” de um fragmento (capítulos, frases, palavras) para o outro. Desta forma, o leitor constrói, de forma independente, o seu próprio texto (ou textos), que não necessitam de ser consti-tuídos por todos os fragmentos existentes na obra. O autor, geralmente, programa certos processos e regras associadas aos diferentes tipos de combinação.

Estas possibilidades foram exploradas no âmbito da “literatura potencial” que surge em França, em 1960, com o aparecimento do grupo OuLiPo, acrónimo de Ouvroir de Littérature Potentielle, que pode ser traduzido por “Oficina de Literatura Potencial”. Tra-

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ta-se de um movimento literário cujos membros eram escritores e autores, interessados na intersecção da literatura e matemática, estabelecendo relações entre estes domínios de conhecimento. Com a emergência do computador (1951), a literatura potencial ganha uma nova ferramenta para a sua criação que facilita o cálculo e o desdobramento de pos-sibilidades narrativas, bem como de possibilidades combinatórias. Ao nível do uso do computador como ferramenta criativa no âmbito literário há ainda que fazer menção à obra que muitos autores consideram ser o primeiro exemplo da implementação computa-cional de procedimentos literários, o gerador de cartas de amor de Christopher Strachey desenvolvido em 1952.

De acordo com estas ideias, este estudo procura reconhecer e pôr em prática conceitos e teorias da Literatura Potencial, com foco em Possibilidades Combinatórias.

Desta forma, torna-se necessário identificar os conceitos e teorias em estudo, nomeada-mente situando a noção de literatura potencial no seu contexto histórico e teórico, de for-ma a permitir uma análise de obras de literatura combinatória desenvolvidas nesse âmbito e passíveis de informar o desenvolvimento de um projeto prático.

Objetivos e Metodologia

Este projeto tem como propósito o estudo e exploração prática da literatura potencial, incidindo, em particular, sobre possibilidades combinatórias que possam ser implementa-das a nível computacional.

Para este fim pretende-se, primeiramente, abordar a noção de literatura potencial e os conceitos e métodos que lhe são inerentes, para, de seguida, analisar este campo criativo e identificar processos utilizados em obras literárias que exploram a combinação de uni-dades textuais.

A nível prático, este projeto pretende explorar o conceito de literatura potencial utilizando as possibilidades do computador como máquina criativa e visando o desenvolvimento de estruturas textuais com resultados variáveis e potencialmente infinitos. Tais estruturas serão resultantes de uma combinação, permutação ou variação de um conjunto finito de elementos. Estes elementos ou unidades literárias, podem ser definidos como parágrafos, frases ou palavras passíveis de recombinação.

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De acordo com estes objetivos, será necessário proceder à reunião de conhecimento sobre o campo das possibilidades combinatórias, tal como as exploradas no âmbito da literatura potencial. Visa-se a identificação de técnicas e condicionantes (contraintes) implementa-das, tanto a nível pré-computacional como computacional, para sua posterior exploração prática.

A investigação teórica é construída a partir de literatura proveniente de áreas de estudo relacionadas com literatura potencial, com ênfase em possibilidades combinatórias “com potencialidade implícita”, tal como evidenciado nas palavras de Italo Calvino (2006, 149).

A nível da componente analítica que procura informar o projeto, será desenvolvido um modelo de análise com base em enquadramentos teóricos existentes que visam a descri-ção de obras computacionais, com foco nos processos que estas operam, tal como propos-to por Wardrip-Fruin (2009).

Desta forma, a partir da análise das unidades literárias e processos combinatórios ine-rentes às obras estudadas definem-se orientações para a componente prática do trabalho. Procurar-se-á explorar a implementação computacional destes princípios através da cria-ção de um gerador de texto que permita evidenciar o seu carácter permutável.

Estrutura

O primeiro capítulo, dedica-se à definição de conceitos e terminologias relacionados com o tema, seguido de autores e tipos de obras referentes às possibilidades combinatórias não-computacionais. De seguida, aborda-se a evolução da literatura potencial e criação de métodos e condicionantes focando a sua implementação computacional e mencionando os novos termos associados a esta forma de criação literária.

O segundo capítulo, primeiramente debruça-se sobre um conjunto de modelos de análise que permitem a exploração das obras computacionais e que informa a análise de obras. De seguida expõe-se os critérios de seleção das obras a analisar e passa-se à descrição sumária desses objetos. Por fim, focam-se as conclusões da análise procurando ilustrar a diversidade de abordagens que implicam os processos explorados nas obras.

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A partir da discussão de conceitos inerentes à investigação teórica, desenvolve-se a com-ponente prática da investigação através da criação de um gerador de texto que explora possibilidades combinatórias.

Desta forma, procura-se ilustrar o uso criativo de possibilidades combinatórias e, simul-taneamente, reavivar uma reflexão sobre o potencial destes métodos literários e da sua implementação computacional, precisamente, usando e evidenciando a tecnologia digital como dispositivo que não só é passível de armazenar mas, sobretudo, de transformar o texto.

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1. LITERATURA POTENCIAL

1.1. CONCEITO

O conceito da literatura potencial surgiu com o aparecimento do grupo OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potentielle), quando um dos cofundadores, François Le Lionnais, apresen-tou a definição do conceito nos seus três manifestos. A referência ao termo esteve também muito presente em artigos de outros oulipistas, como Raymond Queneau, Italo Calvino, Jacques Roubaud, Claude Berge e Georges Perec.

Os criadores do conceito insistem em salientar que a oficina potencial não é nem um mo-vimento literário, nem um seminário científico, nem literatura aleatória. É provavelmente, o grupo literário-matemático, que trabalha obras de literatura potencial. Potencial, porque é ainda não-existente, mas cuja existência é provável. Queneau propõe uma definição: “a palavra ‘potencial’ refere-se à natureza da literatura, ou seja, de um modo geral trata--se, provavelmente, não tanto da literatura no seu sentido literal, como de proporcionar formas que, usadas, podem criar literatura” (apud Lescure [1973] 2003, 176).1 Podemos chamar de literatura potencial a procura de novas formas e estruturas.

1 Tradução livre do original: “The word ‘potential’ concerns the very nature of literature; that is, fundamentally it’s less a question of literature strictly speaking than of supplying forms for the good use one can make of literature. We call potential literature the search for new forms and structures that may be used by writers in any way they see fit” (Queneau apud Lescure [1973] 2003, 176).

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1.1.1. O grupo OuLiPo

Os objetivos das atividades do OuLiPo foram definidos por Lionnais nos seus três mani-festos: “O objetivo do OuLiPo é descobrir novas estruturas e fornecer para cada estrutura uma pequeno número de exemplos” (apud Lescure [1973] 2003, 176).2 No seu primeiro manifesto, determina a direção das obras “sistemáticas” com “base científica” (Lionnais [1973a] 1998) para a criação da literatura potencial. Tendo em conta que, qualquer obra é criada com o uso das restrições (vocabulário, gramática, regra de três unidades, etc.), não existe inspiração.

O autor explica as duas linhas de pesquisa do grupo, atribuindo-lhes os nomes de anouli-pisme e synthoulipisme, indicativos das perspetivas analíticas e sintéticas de produção do grupo. Assim, podemos distinguir, nas pesquisas que pretende começar o OuLiPo, duas tendências principais acerca da Análise e da Síntese. A tendência analítica investiga as obras do passado a fim de encontrar possibilidades além da própria antecipação dos auto-res. A tendência sintética é mais ambiciosa; ela constitui a vocação essencial do OuLiPo. Trata-se de propor novas vias desconhecidas dos nossos predecessores de que serve como exemplo a obra Cent mille milliards de poèmes (1961).

O segundo manifesto questiona a viabilidade da estrutura artificial: “Será que ela tem alguma hipótese de se enraizar no solo cultural de qualquer sociedade e produzir folhas, frutos?” (Lionnais [1973b] 1998).3 A pergunta é retórica, pois Lionnais acredita que é precisamente através desse tipo de questões que a disputa entre o novo e o antigo é eterna.

Este segundo manifesto aborda também o Instituto de Prótese Literária (Institut de Pro-thèse Littéraire) recém criado, que tem como objetivo o enriquecimento de novos signifi-cados das obras dos clássicos. O uso dos textos e ideias pré existentes levanta então ques-tões de plágio para as quais o manifesto propõe um novo termo – plágio por antecipação (plagiats par anticipation).

2 No original: “The Oulipo’s goal is to discover new structures and to furnish for each structure a small number of examples” (Lionnais apud Lescure [1973] 2003, 176).

3 Tradução livre do original “But can an artificial structure be viable? Does it have the slightest chance to take root in the cultural tissue of a society and to produce leaf, flower, and fruit?” (Lionnais [1973b] 1998).

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O manifesto termina com uma questão sobre o sentido da atividade oulipista: “Podemos perguntar-nos, o que acontecia, se não existisse ou se de repente desaparecesse o OuLiPo. A curto prazo seria lamentável. A longo prazo tudo ficaria em ordem, eventualmente, a humanidade encontraria aquilo que o OuLiPo tenta promover. No entanto, o resultado teria alcançado a civilização com algum atraso, que consideramos, como nosso dever, reduzir” (Lionnais [1973b] 1998).4

O terceiro manifesto, Prolégomènes à toute littérature future, foi encontrado após a morte de Lionnais e publicado em 2010. Este salienta as três fases relativas ao programa de cria-ção de várias estruturas literárias: duas teóricas que se referem ao estudo da herança lite-rária, bem como todos os tipos de teoremas matemáticos e fórmulas, seguidas de seleção de estruturas eficazes, e uma fase prática relativa à criação de obras com uso de restrições.

Desta forma, podemos distinguir três áreas das atividades do grupo OuLiPo. Em primeiro lugar, existe a procura das novas restrições que, ao lado das já existentes (e.g. sonetos), podem ser usadas em obras literárias. Em segundo lugar, a criação e utilização de méto-dos de transformação de textos automática (e.g. S+7 que veremos adiante). Por fim, e em terceiro lugar, encontra-se a literatura combinatória enquanto uma das atividades mais emblemáticas do grupo.

1.2. RESTRIÇÕES (CONTRAINTES)

Segundo Jacques Derrida “um texto só é um texto se ele oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre impercetível. A lei e a regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosa-mente na percepção” (Derrida [1972] 2005, 7).

4 Tradução livre do original: “One may ask what would happen if the Oulipo suddenly ceased to exist. In the short run, people might regret it. In the long run, everything would return to normal, humanity eventually discovering, after much groping and fumbling about, that which the Oulipo has endeavored to promote consciously. There would result however in the fate of civilization a certain delay which we feel it our duty to attenuate” (Lionnais [1973] 1998).

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O grupo OuLiPo seguiu a ideia de Derrida através da criação de textos que usam métodos de transformação que se denominam por “restrições” 5 ou “contraintes”. Em artigos sobre lipogramas Georges Perec, um dos autores mais talentosos e prolíficos, um dos membros do OuLiPo, escreve:

“Essa ignorância lexicográfica acompanha um desconhecimento crítico também tenaz e negligenciado. Unicamente preocupado por suas grandes maiúsculas (a Obra, o Estilo, a Inspiração, a Visão do Mundo, as Opções fundamentais, a Genia-lidade, a Criação, etc.). [...] Os contraintes são tratados como aberrações, mons-truosidades patológicas da linguagem e da escritura; as obras que suscitam não tem o direito do status de obra: doentes, de uma vez por todas, em sua proeza e sua habilidade, tornam-se monstros para-literários justificados somente por uma se-miologia onde a enumeração e a fadiga ordena um dicionário da loucura literária. [...] Não pretendemos que os artifícios sistemáticos se confundam com a escritura, mas somente que eles se constituam como uma dimensão não negligenciável” (Perec 1973 apud Fux 2010, 96).

Perec justifica a importância e a utilização de restrições criticando aqueles que ignoram a escrita como prática, como trabalho e como jogo (que é exatamente o que faz em toda sua obra). Ele deseja que esta dimensão seja respeitada e que a utilização de regras seja con-siderada, já que a própria linguagem é uma restrição ou condicionante (contrainte). Desta forma, os oulipistas começaram a construir textos com restrições formais e rigorosas, de-finidas por fórmulas matemáticas. Dentro dessas restrições salientamos as que se seguem.

S+7 trata de substituir os substantivos de um texto por aqueles encontrados sete definições abaixo num dicionário qualquer (essa restrição dá origem a outras que começam a criar complexos cálculos matemáticos para a substituição de palavras em textos pré-existentes);

O lipograma, que consiste em escrever um texto sem uma letra em toda obra. Na “litté-rature définitionnelle” ou literatura definicional, cada palavra significativa de um texto (substantivos, verbos, adjetivos, etc.) é substituída pela sua descrição encontrada num di-cionário (utilizando depois o texto resultante e aplicando novamente esse processo quan-tas vezes quiser);

5 Tradução livre do francês “contraintes” que pode significar restrições ou condicionantes.

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O oblíque é um método para definir uma palavra, em que esta é desmembrada e colocada mais ou menos como uma charada dentro da própria definição.

Foram igualmente definidas restrições complexas para a criação de romances específicos, como é o caso da obra La Vie mode d’emploi de Georges Perec (1978), na qual existem, supostamente, listas de tipos e categorias de elementos que aparecerão em cada divisão do apartamento onde ocorre o romance. Outro exemplo é “Se una notte d’inverno un viaggiatore ” de Italo Calvino (1979), obra na qual os diferentes inícios de romance que fazem parte do livro seguem na sua temática e estilo de composição a forma da dialética negativa platónica.

1.2.1. Literatura Combinatória

Dentro dessas restrições temos a “literatura combinatória”, termo que foi usado, pela pri-meira vez, por Liebniz na sua Dissertação de Arte Combinatória, originalmente publicada em 1666. Para uma definição mais precisa, trata-se de procurar uma combinação cada vez que se dispõe de um número finito de objetos e se deseja descartá-los de acordo com cer-tas restrições postuladas antecipadamente. Por exemplo, a disposição de pacotes de tama-nhos diferentes numa gaveta que é muito pequena, ou a disposição de palavras ou frases dadas antecipadamente são combinações possíveis, pois há várias formas de o fazer.

A obra literária Cent Mille Milliards de Poèmes de Raymond Queneau (1961), é por muitos mencionada como uma das mais relevantes obras de literatura combinatória da era moderna. Esta obra apresenta diversas possibilidades na sua leitura, portanto exige a interação do leitor para a criação de sentido, através da manipulação dos excertos, tendo sido desenvolvida numa era pré-computacional. Esta obra consiste em dez sonetos, cada um de 14 linhas. O leitor pode construir poemas alternativos ao ler a primeira linha de qualquer soneto original, seguindo pela segunda linha, e terceira linha e perceber que toda a obra é artisticamente construída de modo a que qualquer leitura deste tipo produz sonetos que funcionam sintaticamente, metricamente, e no seu esquema de rima.

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Obras Associadas

Os oulipianos utilizaram muito o princípio da combinação em várias obras. No livro Exercices de Style (1947), por exemplo, Queneau conta uma história simples de noventa e nove maneiras diferentes, mostrando a enorme variedade de estilos que podem existir na construção de um texto e as várias interpretações que podem suscitar por parte do leitor.

O romance La disparition de Georges Perec (1969) baseia-se num liprograma que define que letra “e”, que é a vogal mais frequente na língua francesa, não aparece. Italo Calvino, que também é um praticante deste tipo de literatura, aplica o mesmo tipo de princípio em obras como Se una notte d’inverno un viaggiatore (1979) e Il Castello dei destini Incrociati (1973), sendo que neste último se utilizam cartas de Tarot como dispositivo narrativo.

1.3. ERA COMPUTACIONAL

A história da literatura potencial não termina no OuLiPo. Em junho de 1981, os oulipistas Paul Braffort e Jacques Roubaud anunciaram a criação de uma nova associação, ALAMO (Atelier de Littérature Assistée par la Mathématique et les Ordinateurs), uma oficina de literatura criada com ajuda da matemática e computadores. ALAMO apareceu numa era informática em que o “potencial” podia ser explorado através do computador, que estava à disposição para atualizar e concretizar uma multiplicidade de tais ideias.

Enquanto que o OuLiPo deu apenas alguns passos no sentido da implementação computacional de restrições, o grupo ALAMO deu continuidade a essas ideias se-gundo a relação que definia entre os elementos constituintes de uma obra literária: autor-computador-programa-computador-leitor.

1.3.1. Literatura Gerada por Computador

Com a democratização da tecnologia informática, a literatura potencial passou a ser criada através do computador passando a fazer parte do que se poderia ser chamada de Literatura Gerada por Computador (LGC), termo proposto por Pedro Barbosa (2003), investigador

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e escritor. Na LGC o computador é utilizado, de forma criativa, como “manipulador de signos verbais e não apenas como simples armazenador e transmissor de informação”, que é o seu uso corrente.

Segundo o autor, tal uso criativo do computador, extensível de forma geral à Arte Assis-tida por Computador e à Ciberarte, e varia consoante as potencialidades generativas do algoritmo introduzido nos programas. Tais programas assentam normalmente num algo-ritmo de base combinatória, aleatória, estrutural, interativa ou mista, combinando uma ou várias destas modalidades.

Barbosa (2003) refere as três linhas, géneros ou tendências de criação textual através do computador:

A Poesia Animada por Computador que, na continuidade da poesia visual, in-troduz a temporalidade na textura frequentemente multimediática da escrita em movimento no ecrã;

A Literatura Generativa que mediante “geradores automáticos” apresenta ao leitor um campo de leitura virtual, constituído por infinitas possibilidades combinató-rias em torno de um modelo;

A Hiperficção ou narrativa desenvolvida segundo uma estrutura em labirinto, as-sente na noção de hipertexto, ou texto a três dimensões no hiperespaço, em que a intervenção do leitor vai determinar um percurso de leitura único que não esgota a totalidade dos percursos possíveis no campo de leitura.

O autor explorou as potencialidades hipermédia da geração textual e criou a aplicação Sintext-Web (2000) que define como um instrumento potenciador da criatividade. Enqua-dra assim este instrumento no campo da Literatura Generativa, funcionando como um precioso instrumento potenciador da criação literária.

A aplicação Sintext, surge como um “sorteador recursivo de elementos de texto” (Barbosa 1996), sendo baseado na intersecção entre dois eixos da linguagem: o eixo paradigmático e o eixo sintagmático, tal como sugerido por Roland Barthes em Elements de sémiologie

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(1965). O eixo paradigmático refere-se a elementos lexicais (ou “Variantes”, segundo Barbosa) que podem ser substituídos, a todo o momento, ao longo do eixo sintagmático.

Este eixo representa a “sequência parentetizada” ou um conjunto de “Constantes” (Barbosa 2001) que assegura a continuidade ou a geração do texto. As obras criadas pelo Sintext são intituladas “textos generativos” e são parte da Literatura Gerada por Computador (LGC). As suas obras partilham características com a literatura potencial do grupo OuLiPo, nomeadamente a exploração da aleatoriedade, o uso de técnicas de escrita dominadas por constrangimentos formais, e a criação de processos combinatórios que produzem resultados inesperados.

O texto, ou antes o “texto virtual” produzido pelo Sintext, é definido como um “motor de uma pluralidade de realizações textuais por materializar signicamente” (Barbosa 1996, 14). Por sua vez, o computador torna-se num “telescópio de complexidade” responsável por expandir o texto e o espectro de significado.

Na sequência destas possibilidades e de forma a demonstrar a diversidade da literatura potencial e as suas possibilidades combinatórias, iremos de seguida debruçar-nos sobre um modelo que permita a análise de obras computacionais. Pretende-se com esta análise evidenciar o tipo de dados ou unidade literárias e processos ou métodos poéticos impli-cados nestas obras. Foca-se igualmente a forma como estes dados e processos correspon-dem aos conceitos por elas explorados, bem como o tipo de experiência que proporcio-nam ao leitor.

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2. ANÁLISE DE OBRAS

John Cayley, poeta, programador e teórico, escreveu que os processos inovadores que estão a ser desenvolvidos por praticantes literários introduzem “um novo elemento na compreensão crítica e na avaliação de novos objetos literários. Devemos começar a fazer julgamentos sobre a composição da sua estrutura — para avaliar, por exemplo, o projeto estrutural ou composição dos procedimentos que geram objetos literários — não apenas os próprios objetos” (Cayley 1996, 168 apud Wardrip-Fruin 2006, 1).6

Ainda hoje podemos dizer que continuamos a interpretar as obras computacionais se-gundo um foco nos resultados e não tanto nos processos que envolvem e executam. Esta ideia é sublinhada por Wardrip-Fruin, que desenvolveu um estudo com foco na noção de “Processamento Expressivo”, primeiramente enquanto investigação doutoral, Expressi-ve Processing: On Process-Intensive Literature and Digital Media (2006), e mais tarde convertida em Livro (2009) sobre os processos computacionais, nomeadamente em obras literárias. A sua intenção é a de contribuir na compreensão e reflexão sobre os diferentes tipos de produção criativa e expressiva no meio digital. Na sequência desta ideia passa-mos à discussão do modelo proposto pelo autor como elemento de base para a definição de dimensões de análise de obras computacionais literárias.

6 Tradução livre do original “a new element into the critical understanding and assessment of new liter-ary objects. We must begin to make judgements about the composition of their structure — to assess, for example, the structural design or composition of the procedures which generate literary objects — not only the objects themselves” (Cayley 1996, 168 apud Wardrip-Fruin 2006, 1).

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2.1. MODELO DE ANÁLISE

2.1.1. Um Modelo dos Media Digitais

Noah Wardrip-Fruin aborda o papel da computação ao nível dos artefactos digitais, pro-pondo uma distinção entre os “media fixos” e “media digitais”. Neste sentido, os média fixos são, por exemplo, um livro, que podemos ler várias vezes mas em que o texto não muda. Os “média digitais” são definidos pelas “novas configurações dos processos com-putacionais”, que abriram novas possibilidades para ficção. Isto abrange desde “experi-ências de inteligência artificial até o simples uso do e-mail e blog”, ilustrando como os autores de obras literárias criam “ficção digital com ampla variedade de complexidade tecnológica” (Wardrip-Fruin 2006).

O autor evidencia o facto de estarmos cada vez mais a experienciar formas de media que “não só mostram e dizem algo mas também operam” (Wardrip-Fruin 2006, 2). Portanto, é a execução de processos que separa esses media digitais dos media fixos. Grande parte dessas obras digitais são “conduzidas por processos” definidos internamente (i.e. dentro das próprias obras) através da criação das regras (por humanos) que são executadas com-putacionalmente (em qualquer dispositivo computacional).

Wardrip-Fruin acredita que não vamos conseguir “compreender totalmente uma obra, se não considerarmos como ela opera”, algo que, segundo o autor tem sido negligenciado nos livros sobre os media digitais: “o verdadeiro processo que faz media digital funcionar, as máquinas computacionais que tornam media digital possível” (2006, 3).

Desta forma, o autor propõe um modelo de análise dos media digitais, com o foco nos processos (operações) através da identificação dos elementos constituintes de uma obra, segundo os quais os media digitais podem ser analisados:

Autor(es) – aqueles que selecionam e criam os dados e processos da obra;

Dados – texto, imagens, tabelas e outros elementos não processuais da obra (sejam cria-dos para a obra ou selecionados de fontes especificadas pelo autor;

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Processos – operações da obra, incluindo aquelas que suportam a interação, organizam dados, produzem simulações, etc. Alguns podem ser criados para a obra, outros podem ter sido escolhidos a partir de um conjunto de opções num sistema de criação. Mesmo os processos especificamente criados para a obra pelo autor usam materiais pré-existentes (e.g. Linguagens de programação).

Superfície – como se acede à obra por fora. Isso inclui o que é disponibilizado ao público para interpretação e interação, como instruções ou interfaces físicas entre outros meios.

Interação – mudanças ao estado da obra, para as quais a obra foi concebida, que advém de fora da obra. É também qualquer mudança operada pela obra em relação a processos ou dados externos. Normalmente, a interação do público envolve alguma ação relativa à superfície (escrever no teclado, tocar no monitor) em alguns casos produz imediatamente uma mudança no estado da obra (o texto escrito aparece no monitor).

Processos e dados externos – a obra pode incorporar dados de fontes externas que, em vez de serem inseridos pelos autores, são solicitados automaticamente pelos processos da obra (dados meteorológicos, notícias). Da mesma forma, a obra pode ser projetada para fazer alterações em fontes de dados externas (um banco de dados de transação alimentado por muitas obras).

Audiência – a obra pode ser apresentada a uma ou mais pessoas, em um ou vários locais, uma vez ou repetidamente.

É possível dividir estes elementos em grupos distintos, sendo um correspondente à con-cepção do sistema (autor), outro aos elementos internos do sistema (dados e processos) e o outro correspondente aos elementos externos (superfície, audiência e interação).

Outra distinção importante é, por exemplo, a distinção entre obras que são digitais apenas ao nível da sua autoria, pois apenas requerem computação antes da experiência da audiên-cia (“digitally-authored”) e aquelas em que o suporte computacional também é necessário para a sua exibição e experienciação e não apenas o seu armazenamento e transmissão de informação (que designa por “digital media”).

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O modelo dos media digitais focado nos processos que estes operam, liga-se ao conceito de “processamento expressivo” proposto pelo autor para evidenciar o papel da computa-ção na construção de sentido e expressão da obra (além da superfície como resultado dos processos). Estas noções tornam-se assim úteis para compreender as interações entre os processos internos e externos da literatura digital, e a expressão que resulta das múltiplas relações entre superfície, dados, processos e interação, nomeadamente com a audiência.

2.1.2. Entender os Processos

Wardrip-Fruin menciona como, segundo um foco nos processos que estas obras operam, Espen Aarseth propôs conceitos relativos a um modelo de comunicação textual passível de ser aplicado a qualquer texto (Wardrip-Fruin 2006, 36). Forneceu assim um conjunto de instrumentos para distinguir superfície, dados e processos que, desta forma, se cruzam com o modelo dos media digitais proposto por Wardrip-Fruin.

Na obra Cybertext de 1997, Aarseth propõe uma distinção entre escritões e textões. Os es-critões, explica, são os encadeamentos tal como são percebidos pelos leitores, isto é, eles dependem da interação do utilizador e estão do lado da recepção. Os textões, por sua vez, referem-se aos encadeamentos existentes no texto, isto é, ao modo como os textos são concebidos e pensados pelo autor. Cruzando estes termos com os propostos por Wardrip--Fruin, aquilo que se designa como “traversal function”, ou função de travessia, seriam então os processos que geram (a apresentam) textos de superfície (escritões) a partir dos dados (textões). Segundo Wardrip-Fruin (2006), esta distinção é importante para com-preender os processos combinatórios da literatura. Menciona ainda a obra de Raymond Queneau, Cent mille milliards de poèmes, em que o utilizador pode combinar os versos de sonetos para compor a sua variação. Neste sentido, a partir de um número reduzido de textões, podem combinar-se 100,000,000,000,000 de escritões possíveis.

A este nível, é útil referir a variável que Aarseth define relativamente à determinabili-dade de uma obra, que descreve se os processos da obra operam de forma previsível na produção textual ou se esses processos são influenciados por fatores imprevisíveis (por exemplo, aleatoriedade) e assim produzem resultados diferentes para as mesmas ações da audiência.

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Para um entendimento mais profundo dos processos, podemos mencionar a forma como Dorin et al. (2012) os discutem, definindo os processos como “mecanismos de mudança” que ocorrem dentro de um sistema. Os autores propõem um enquadramento para o enten-dimento do obras orientadas por processos, como foco em “sistemas de arte generativos” enquanto objecto da sua investigação. Este enquadramento é dividido em quatro compo-nentes principais comuns a esses sistemas, independentemente da tecnologia em causa: as “entidades” (e seus estados); os “processos”; as “interações ambientais” e os “resultados sensoriais “(Dorin et al. 2012, 244).

Desta forma, os processos, enquanto mecanismos de mudança da obra, operam sobre as entidades, que embora enunciem algo distinto estão ao mesmo nível que os dados men-cionados por Wardrip-Fruin. As interações são relativas à influência exterior e os resulta-dos sensoriais estão ao nível da superfície que a obra apresenta ao exterior.

2.1.3. Entender Comportamento

Como argumentado por Hunickle, LeBlanc e Zubek (2004), o conteúdo das obras com-putacionais é “o seu comportamento” e não apenas o resultado. Os autores definem uma forma de analisar os elementos de “sistemas dinâmicos” (tais como os jogos que são o foco da sua proposta) segundo um enquadramento que designam por MDA (Mechanics, Dynamics, Aesthetics). Assim, a Mecânica, Dinâmica e Estética serão diferentes dimen-sões ou “formas de olhar” para um mesmo sistema dinâmico baseado em processos.

A Mecânica, refere-se aos componentes do sistema, ao nível da representação dos dados e algoritmos. A Dinâmica, é definida pelo comportamento da mecânica em execução, agin-do sobre os inputs (dados de entrada) do utilizador e os outputs (dados de saída) gerados por cada um (utilizador e sistema) ao longo do tempo. E, por fim, a Estética, traduz-se nas respostas emocionais desejáveis evocadas no utilizador, quando este interage com o sistema (Hunickle et al. 2004, 2).

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2.2. DIMENSÕES DE ANÁLISE

Ao cruzar os diferentes modelos e enquadramentos previamente mencionados, é possível definir diferentes perspectivas “adequadas à análise e descrição de sistemas dinâmicos, orientados por processos”, que correspondem à “dimensão conceptual” relativa à ideias que o autor incute na obra, à “dimensão mecânica” relativa à sua implementação ao nível do sistema e na “dimensão da experiência” que inclui a superfície e dinâmica da obra enquanto sistema (Ribas 2014).

Tomando como ponto de partida uma proposta de análise de sistemas digitais computa-cionais enquanto artefactos estéticos (Ribas 2014) baseada no cruzamento do “MDA” de Hunickle et al. (2004), do Modelo de Wardrip-Fruin (2006) e do enquadramento proposto por Dorin et al. (2012) define-se um quadro (Fig. 1) que procura igualmente articular as dimensões temporais em jogo na criação de uma obra, mencionadas Hayles (2006) tal como proposto por Orsi et al. (2016).

Partindo dos contributos dos autores previamente mencionados e com base numa análise prévia de obras literárias computacionais, descrevem-se de seguida as categorias relativas a cada dimensão, que nos permitem descrever essas obras.

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ModelofDigitalMedia(Wardrip-Fruin2012;2006)

Frameworkforgenerativeartworks(Dorinetal.2012)

Time(Hayles2006)

Framework(Properties)

Perspectives,Dimensions(Ribas2014)

MDA(Hunickeetal.20014,2012)

Author Themesand

principlesConceptualdimension

Data Entities Timeof

writing

Dataunits Mechanicsdimension

Mechanics

Process Processes Timeofcode Structuresof

processes

Timeof

performanceProcessasperformance

Experiencedimension

Dynamics

Surface Sensory

outcomes Surface

Outsideprocessesand

Interaction Environmentalinteraction

Interaction

Audience(s) Timeof

reading Aesthetics

Fig. 1: Esquema da articulação de modelos de análise adaptado de Orsi et al. (2016).

2.2.1. Dimensão Conceptual

A dimensão conceptual é a dimensão que diz respeito às motivações, princípios ou te-mas da obra, ou o que a obra aborda como assunto (Ribas 2014). Dimensão na qual o autor, segundo Wardrip-Fruin, é “aquele que seleciona e cria os dados e os processos da obra” (2006, 9)7, ou seja, estabelece o conceito e princípios da obra assumindo opções relativas aos dados e processos relevantes para construção do sentido da obra.

7 Tradução livre do original “Those who select and create the work’s data and processes” (Wardrip-Fruin 2006, 9).

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Definimos como relevantes as seguintes categorias para esta dimensão:

Relevância dos dados (para a construção de sentido)

Origem poética ou outra – Os dados constituintes do sistema desde a sua origem inicial pode ter um caráter poético (ou outro), como quando existe um texto de carácter poético ou autoral que vai ser sujeito a uma transformação ou, por oposição, a autoria e signifi-cado do texto de origem é irrelevante para o resultado final ou expressão e significação da obra.

Relevância dos processos (para a construção de sentido)

Transformação de sentido – quando uma obra combinatória procura criar um sentido completamente novo a partir de um texto de base cujo sentido original não é particular-mente revelante a significação da obra. Neste caso o que está em evidência (i.e. se torna relevante) é o processo de construção de sentido, por exemplo quando palavras aleatórias criam sentido após o processo de recombinação.

Variabilidade de sentido – quando o texto de base possui sentido mas o resultado da sua combinação goza de um novo sentido (potencialmente variável em cada ocorrência). Neste caso a intenção semântica salienta a variabilidade mais do que uma transformação que gera algo completamente distinto do original.

Expressão e Significação (do texto gerado ou processo combinatório)

Sentido no processo – quando não é de tanta importância o resultado ou output, como frisa Wardrip-Fruin (2006) mas sim as operações da obra, que organizam dados ou su-portam a interação, i.e. mais do que o texto em si, são os processos que constituem o principal elemento de criação de sentido e expressão.

Sentido no texto gerado – quando a expressão e significação da obra reside no resultado ao nível da superfície que a audiência experiencia (Wardrip-Fruin 2006), ou seja, o que ganha mas expressão é o resultado do processo e não processo em si.

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2.2.2. Dimensão da Mecânica

Esta dimensão aborda a forma como os conceitos inerentes à obra são computacional-mente implementados ao nível da mecânica, i.e., ao nível dos dados e processos (Ribas 2014, 61). Foca os elementos constituintes do sistemas, ou seja, os dados enquanto ele-mentos não processuais e os tipos de processos que o sistema executa e que operam sobre os dados.

Definimos as seguintes categorias relativamente aos dados de uma obra que envolve pos-sibilidades combinatórias:

Escala (dos dados)

Escala dos dados (de input ), que neste caso são unidades textuais, pode variar entre pala-vra a parágrafo, ou como no caso de Cent Mille Milhards de Poèmes, por versos (como unidades de input) que constituem estrofes (output).

Origem ou fontes (de dados)

Origem externa – a obra pode incorporar dados de fontes externas; podem ser inseridos pelo leitor, ou solicitados automaticamente pelos processos da obra a outras fontes;

Origem interna – uma vez inseridos na obra, são conjuntos de dados limitados e definidos pelo autor.

Entrada (Input)

Input fixo – a forma de entrada dos dados pode ser fixa, sendo estes dados que já estão contidos na base de dados da obra.

Input variável – quando o sistema ou o leitor podem selecionar o texto de origem que vai ser transformado além do previamente incorporado na obra.

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Ao nível dos processos podemos distinguir:

Método combinatório (ou outro)

Os processos para gerar resultados podem ser vários, sendo que no contexto deste traba-lho interessa salientar o seu carácter combinatório, mencionando-se outro quando estão implicados outros tipos de métodos para criação de sentido (e.g. variação estilística).

Processo fechado (sistema autónomo) e aberto (sistema interativo)

Fechado (à influência externa) – quando o sistema é autónomo e não necessita de influên-cia externa para gerar resultados. Portanto, a combinação de dados é feita essencialmente pela computação inerente a obra, ou seja, quando o leitor não interage com a obra e ape-nas fica a observar o resultado final.

Aberto (à influência externa) – sendo que no contexto deste trabalho interessa destacar, em particular, o papel do leitor nesse processo, nomeadamente quando o leitor é convi-dado a interagir com a obra, seja pela manipulação de parâmetros ou inserção de dados. Assim, o processo pode ser especificamente aberto à influência da audiência, sendo inte-rativo para a audiência ou “audience interactive” (Wardrip-Fruin 2006).

2.2.3. Dimensão da Experiência (superfície e dinâmica)

Esta dimensão aborda os elementos da experiência, considerando não apenas a superfície do sistema, mas também a sua dinâmica, ou seja, o comportamento variável ligado às suas qualidades processuais e performativas (Ribas 2014, 61). Diz respeito ao compor-tamento da mecânica (unidades e processos) em tempo-real (Hunicke et al. 2004, 2). Portanto, refere-se a mudanças que ocorrem durante o funcionamento [da mecânica em ação], ou alterações ao estado da obra, inclusivamente aquelas que envolvem interação.

A Superfície designa o que a obra vira para o exterior e torna disponível para interpreta-ção e interação da audiência, incluindo os outputs dos processos que agem sobre os dados e os interfaces de interação (Wardrip-Fruin 2006, 106).

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Wardrip-Fruin divide os processos em três categorias: processos realizados pelo autor (ações de autoria), processos realizados pela audiência (interações da audiência) e proces-sos realizados pela obra (computacionais), sendo estes últimos os processos que estamos a considerar nesta dimensão (e cujas estruturas são algoritmos).

O autor também distingue os “processos implementados” (ao nível da mecânica), en-quanto realizações concretas de “processos abstratos” (sem implementação específica), que suportam uma “lógica operacional”,8 ou seja, incorporam um comportamento ade-quado desse sistema para um determinado fim (Wardrip-Fruin 2006, 214) e que é obser-vável enquanto dinâmica.

Categorias relativas à superfície (output observável ou instâncias de superfície)

Modo de expressão

Sendo a incidência deste trabalho em obras de base textual que exploram possibilida-des combinatórias, os modos de expressão das instâncias de superfície ou resultados sensoriais cingem-se essencialmente ao modo de expressão visual, essencialmente sob a forma de texto. Admite-se, no entanto, a possibilidade de um modo audiovisual quando o resultado visual é acompanhado por output sonoro, ou puramente sonoro embora este trabalho não foque obras com essa característica.

Estrutura (dos resultados textuais)

Fixa – quando os resultados textuais, as instâncias do texto que emergem na superfície da obra enquanto output, correspondem a um modelo pré-definido (e.g. soneto). Ou seja, as unidades literárias de saída aparecem organizadas segundo uma estrutura pré-existente ou correspondem a espaços pré-definidos pelo autor.

Variável – quando os resultados textuais correspondem a uma combinação ou organiza-ção independente de uma estrutura prévia.

8 Tradução livre a partir do original: “A logic is an element of a system, supported by an abstract process or lower-level logics, that is understood to embody an appropriate behavior of that system toward a particular end” (Wardrip-Fruin 2006, 214).

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Pedro Barbosa (1996) define essa separação da estrutura em formas fechadas quando os elementos são introduzidos em espaços previamente definidos. As formas abertas verifi-cam-se quando o poema é composto pela junção de elementos numa cadeia de compri-mento indeterminado.

Categorias relativas à dinâmica:

Comportamento das unidades de superfície (dinâmica da superfície)

As unidades da superfície apresentadas ao leitor podem variar o seu comportamento entre estático (em que o output é fixo em cada ocorrência), dinâmico animado (i.e. transiente ou animado no tempo) ou ainda dinâmico variável.

Este último verifica-se quando as instâncias de superfície variam em cada execução por-que a obra varia o seu comportamento, seja devido à influencia de regras internas (e.g. aleatoriedade), dados ou processos externos ou ainda, interação da audiência. Este com-portamento observável das instâncias de superfície ou output prende-se com o comporta-mento do sistema que descrevemos de seguida.

Comportamento do sistema (variabilidade):

O comportamento do sistema pode ser uniforme, quando se comporta sempre da mesma maneira em cada ocorrência, ou variável tendo em conta diferentes fatores de variação (regras internas; dados ou processo externos; input da audiência) que podem incluir:

Regras internas, que correspondem a um sistema fechado, Dados ou processo externos que correspondem a um sistema aberto a influência externa, sendo que os dados especi-ficamente da audiência correspondem a uma sistema aberto à interação da audiência — que designamos por interativo.

Neste último, a audiência tem a possibilidade de manobrar a obra e intervir diretamen-te na construção do resultado.

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Podemos sintetizar estas dimensões e categorias da seguinte forma.

DIMENSÃO CONCEPTUAL Relevância dos dados (origem poética ou outra) Relevância dos processos (transformação ou variabilidade de sentido) Expressão e significação (texto ou processos)DIMENSÃO MECÂNICA Dados Escala (letra, palavra, frase, excerto) Origem ou fonte (interna, externa) Input (fixo, variável) Processos Método (combinatório, outro) Processo (aberto, fechado à influência externa)DIMENSÃO DA EXPERIÊNCIA Superfície Modo de expressão (visual, audiovisual, sonoro) Estrutura (fixa, variável) Dinâmica Comportamento das unidades de superfície (estático, animado, variável) Comportamento do sistema (variável ou não)

2.3. OBRAS SELECIONADAS

2.3.1. Critérios de Seleção

Os critérios de seleção das obras a analisar prendem-se com a identificação de processos implementados para combinar o texto e assim gerar novos significados ou variações de significado. Pretendemos com a sua análise informar as opções relativas ao projeto de um gerador de texto a desenvolver. As seguintes obras, nas suas versões computacionais e impressas, foram selecionadas a partir da revisão bibliográfica e da pesquisa de obras lite-rárias relacionadas ou relacionáveis com os conceitos explorados na literatura potencial.

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2.3.2. Cent Mille Milliards de Poèmes

Queneau apresenta dez sonetos, de catorze versos cada um, de tal forma que o leitor possa substituir como quiser cada verso por um dos outros. Portanto, existem 100 combinações possíveis para os dois primeiros versos, sendo que com o terceiro surgem mais 100, ou seja, considerando o primeiro soneto completo de 14 versos teremos 100,000,000,000,000 de sonetos.

O próprio leitor pode assim compor 1014 = 100.000.000.000.000 de poemas diferentes, sendo que todos respeitam todas as regras imutáveis do soneto. Segundo Claude Berge, esse tipo de poesia poderia ser chamado de “exponencial”, pois o número de poemas de n versos que se pode obter com o método de Queneau é dado pela “função exponencial, 10n” (Berge [1973] 2003, 180).

No entanto, cada um dos cem mil milhares de milhões de poemas9 também pode ser considerado como uma linha traçada num gráfico (Fig.3). De acordo com este ponto de vista, deve notar-se que o leitor avança num gráfico sem circuitos; Isto é, ele nunca pode encontrar o mesmo verso duas vezes numa leitura respeitando a direção das setas.

Fig. 2: Cent mille milliards de poèmes de Queneau (1961).

9 Tradução livre de “Cent mille milliards de poèmes”, sendo que em francês “milliard” corresponde a 1 000 000 000 ou seja, 9 zeros, portanto mil milhões em português. Havendo um total de 14 zeros teremos cem mil milhares de milhões de poemas.

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Fig. 3: Gráfico de possibilidades de percurso de Cent Mille Milliards de Poèmes apresentado por Berge em

Oulipo, La littérature potentielle (1973).

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Este processo, realizado pelo leitor, cria um número significativo de possibilidades combi-natórias. Quando se escolhe qual das primeiras dez linhas se quer ler, existem 10 possibi-lidades, o que significa que existe cem (10x10) possibilidades de leitura para as primeiras duas linhas. Depois da segunda linha, é escolhida a terceira, o que significa que existem mil (100x10) possibilidades para ler as primeiras três linhas, e assim sucessivamente.

Fig. 4: A versão impressa de Cent mille milliards de poèmes de Queneau (1961).

Uma das primeiras versões computacionais da obra foi realizada por Paul Braffort em 1975 seguindo-se outras versões, como por exemplo a que Tibor Papp programou em 1989 (Bootz 2006), existindo ainda versões online, como a de 1997 de Magnus Bodin,10 Beverley Charles Rowe (s.d.)11 ou Matt Sephton (2010).12

10 Disponível em http://x42.com/active/queneau.html11 Disponível em: http://www.bevrowe.info/Queneau/QueneauRandom_v5.html12 Implementação do programa Loveletters (1952) de Christopher Strachey por Matt Sephton em 2010, disponível

em http://www.gingerbeardman.com/loveletter/.

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Fig. 5: Captura de ecrã de Cent mille milliards de poèmes programado por Tibor Papp em 1989.

Fig. 6: Versão online de 1997 de Magnus Bodin.

Manipular a obra impressa revela um fator de interação importante, pois permite selecio-nar, linha a linha, o seu poema, apesar de ser um “processo por vezes tedioso” (Fournel [1986] 2003, 182). Enquanto que na versão online as linhas são combinadas com ajuda de um sistema automatizado, construindo poema imediatamente, selecionando as linhas de forma aleatória.

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Fig. 7: Versão online de Cent mille milliards de poèmes por Beverley Charles Rowe (s.d.).

Nas diferentes versões computacionais de Cent mille milliards de poèmes os resultados são os mesmos, mas o sistema e o processo que este executa é fechado pois deixa de exis-tir a opção de o leitor selecionar versos, sendo que a combinação é totalmente automatiza-da e aleatória, apenas acionada pelo leitor sem qualquer tipo de controlo sobre o resultado da combinação dos versos. Este tipo de funcionamento também pode ser encontrado num dos primeiros textos generativos computacionais, embora as unidades semânticas sejam distintas.

2.3.3. Love Letter Generator

O gerador de cartas de amor foi programado por Christopher Strachey, em 1952, no com-putador Manchester Mark I com ajuda do seu amigo na altura, Alan Turing. Para Stra-chey, a parte mais interessante é como uma configuração simples, usando apenas cerca de setenta palavras, poderia produzir na ordem de trezentos mil milhões de frases diferentes.

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Fig. 8: Implementação em PHP do programa Loveletters por Matt Sephton em 2010.

Neste gerador existem apenas duas possíveis construções frásicas: O primeiro é “Meu - (adjetivo) - (substantivo) - (advérbio) - (verbo) - (adjetivo) – (substantivo). Existem, no código, listas de adjetivos, substantivos, advérbios e verbos que enchem, aleatoriamente, espaços em branco devidamente preparados. Existe também uma escolha adicional se adjetivos e advérbios são incluídos ou não. O segundo tipo é simplesmente “Você é meu (adjetivo) (substantivo)”. Neste caso o adjetivo é sempre presente. A carta termina sempre com a assinatura: “ O seu (advérbio) M.U.C.” O vocabulário do gerador, por sua vez, foi amplamente baseado no Thesaurus Roget, um dicionário de sinónimos em inglês criado em 1805. A assinatura M.U.C. significa Universidade de Manchester, sem romantismos, como indicação onde foi criado o gerador.

Nick Montfort reimplementou o gerador, excluindo completamente a possibilidade de interação do leitor. Em vez de gerarmos o texto com um clique como na versão anterior,

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na versão de Montfort (2014)13 vemos apenas poemas a serem gerados automaticamente, por um tempo indeterminado, que aparecem a cair em cascata.

Fig. 9: Gerador de Strachey reimplementado por Nick Montfort em 2014.

2.3.4. Wikisonnet

O Wikisonnet é um gerador de poemas que usa como texto de origem excertos de textos de páginas da Wikipédia ao extrair palavras que correspondem à estrutura do pentâmetro iâmbico. Os poemas resultantes são, por vezes “sem sentido, às vezes, cheios de justa-posição surpreendente”. Segundo os autores, um poema Wikisonnet é uma “colaboração entre humanos e máquinas”, onde o leitor, de certa forma, cria um sentido ao “resultado final através da interpretação” (Tarakajian et al. 2016).14

Wikisonnet organiza texto da Wikipédia num soneto de catorze estrofes, cada estrofe em conformidade com pentâmetro iâmbico,15 composto por dez sílabas que se combinam.

13 Versão de Nick Montfort disponível em: https://nickm.com/memslam/love_letters.html14 O Wikisonnet atualmente está offline, tendo sido apresentado na Conferência xCoAx 2016, a descrição está dispo-

nível em http://2016.xcoax.org/pdf/xcoax2016-Tarakajian.pdf, e o código fonte disponível em https://github.com/starakaj/wikisonnet.

15 O pentâmetro iâmbico é um tipo de métrica que descreve um determinado ritmo que as palavras estabelecem em cada verso. O ritmo é medido em grupos de sílabas ou “pé”. A palavra iâmbico descreve o tipo de pé utilizado. A palavra pentâmetro indica que um verso tem cinco pés.

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O leitor é convidado a digital uma palavra e obter o poema como resultado, como é de-monstrado na imagem. O poema gerado pode ser impresso ou partilhado através das redes sociais.

Fig. 10: Exemplo das palavras em pentâmetro iâmbico divididas em acento forte (linha) e fraco (meio círculo).

Fig. 11: Wikisonnet: Procedual Poem Generator (Tarakajian et al. 2016).

2.4. RESULTADOS DA ANÁLISE

A partir do modelo de análise proposto foi possível distinguir as obras segundo as três dimensões e respectivas categorias. Segundo Aarseth, “um texto não pode funcionar in-

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dependentemente de um qualquer meio material”16, o qual “influencia o seu comporta-mento” e assunto, ainda que “um texto não é igual à informação que transmite” (apud Wardrip-Fruin 2006, 107). A análise das obras procura atender a esta ideia de Aarseth, dando ênfase aos processos combinatórios a fim de informar o projeto que se pretende implementar a seguir.

2.4.1. Dimensão Conceptual

Relativamente à relevância dos dados e dos processos para a criação de sentido e expres-são da obra, verificamos que em Cent mille milliards de poèmes o texto de origem já tem sentido poético, sendo que os processos assentam essencialmente na variação de sentido, pondo em evidência o resultado poético dos sonetos constituintes da obra. Portanto, na sua origem os dados possuem sentido poético e a intenção semântica desta obra é variar esse sentido.

Por contraste, em Love Letter Generator não existe nenhum sentido específico do texto de origem, apenas um conjunto de palavras de categorias lexicais distintas a serem re-combinadas entre si mediante uma estrutura frásica pré-definida. As intenções semânticas deste gerador, por sua vez, consistem em transformar totalmente o sentido dos dados de origem. Dessa forma, o resultado é semanticamente diferente e a ênfase reside no proces-so de transformação de sentido que define a expressão da obra.

Relativamente ao Wikisonnet, o texto de origem é automaticamente retirado da Wiki-pédia, ou seja, retiram-se grupos de palavras que inicialmente não tem um sentido ou expressão poética. A intenção a nível da semântica é igualmente transformar o sentido do texto de origem, expondo à audiência uma nova construção a partir desses excertos. O resultado é semanticamente bastante diferente do texto original.

Portanto, a nível de expressão e significação do texto ou dos processos inerentes às obras, na versão computacional de Cent mille milliards de poèmes a ênfase está tanto no texto como no processo de combinação. Quanto ao gerador Love Letter, o foco semântico está essencialmente no processo, que imprime ao texto gerado o tom amoroso das cartas. Este

16 Tradução livre do original: “a text cannot operate independently of some material medium, and this influences its behavior, and a text is not equal to the information it transmits” (Aarseth 1997 apud Wardrip-Fruin 2006, 107)

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exemplo salienta a multiplicidade semântica e elasticidade do texto sendo um gerador de cartas de amor em que a palavra “amor” é ausente. Os textos do gerador não parecem uma tentativa de expressar amor, mas como algo que não é expressão, algo que não está feito para os “prazeres tradicionalmente encontrados na leitura” (Wardrip-Fruin, 2006).

Jeremy Douglas escreve em Machine Writing and the Turing Test (2000) que “a verdadei-ra mensagem desta carta de amor é ‘esta é uma carta de amor’”, ou seja, o processo pelo qual esta mensagem foi construída e transmitida é de maior interesse do que o conteúdo da própria mensagem.

À semelhança do exemplo anterior, em Wikisonnet, a expressão e significação da obra é percebida pelo output que assume um carácter poético que não tinha na origem. No en-tanto são os processos de recombinação do texto que lhe imprimem esse carácter pelo que ganham relevância na construção de sentido e expressão da obra.

2.4.2. Dimensão da Mecânica

Dados

Relativamente à escala das unidades semânticas podemos identificar que em Cent mille milliards de poèmes se geram sonetos tendo como unidade de base a frase ou verso. As unidades do gerador de cartas de amor são a palavra (adjetivos, substantivos, advérbios e verbos) enquanto que em Wikisonnet, a unidade são os grupos de palavras corresponden-tes ao pentâmetro iâmbico.

Em relação à fonte de dados (interna ou externa), apenas no Wikisonnet os dados são de origem externa; são incorporados a partir da Wikipédia quando solicitados automatica-mente pelos processos da obra a partir da seleção da audiência.

Nos outros dois exemplos existe uma base de dados inerente à obra. Desta forma, e re-lativamente à variabilidade do input, é fixo tanto em Love Letter Generator de Strachey como em Cent mille milliards de poèmes, sendo que no Wikisonnet é variável, pois o leitor pode selecionar a fonte ou origem do texto que vai ser transformado (uma página wikipédia).

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Processos

Os processos do gerador de Strachey são realizados automaticamente pelo computador portanto a obra é fechada à influência externa e portanto autónoma. Existem 31 possíveis adjetivos que podem aparecer, de forma aleatória, no espaço branco depois do “Meu” e 29 possíveis substantivos para aparecer no espaço a seguir, criando assim 899 possibilidades para, apenas, as 3 primeiras palavras de cada frase (424,305,525 para a frase completa).

Nas versões computacionais de Cent mille milliards de poèmes o processo também é fechado à influência externa pois, embora em alguns casos o leitor possa ativar a seleção automática de excertos, os versos são combinados automaticamente, tal como acontece com o Wikisonnet.

2.4.3. Dimensão da Experiência

Superfície

As três obras selecionadas para análise têm todas o modo de expressão visual. Mas po-demos encontrar exemplos de obras combinatórias, nomeadamente Amor de Clarisse, de Rui Torres, que tem o modo de expressão audiovisual.

Relativamente à estrutura dos resultados textuais de superfície, em todas as obras as uni-dades semânticas de origem são inseridas em espaços previamente definidos pelo autor a nível do resultado. Correspondem assim a uma estrutura fixa, porque corresponde ao soneto ou estrutura frásica pré-definida (no gerador de cartas de amor).

Dinâmica

Já a nível do comportamento das unidades de superfície (estático, animado, variável), encontramos, nestes exemplos, essencialmente resultados estáticos pois o texto não é animado e não varia em tempo real; a dinâmica observável a nível do comportamento das unidades de superfície corresponde ao texto estático. No entanto, a versão de Nick Mon-tfort introduz alguma dinâmica com os poemas em “cascata”, com resultados dinâmicos e variáveis.

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Portanto, a nível do comportamento do sistema (variável ou não), podemos dizer que as versões computacionais de Cent mille milliards de poèmes ou Love Letter Genera-tor foram programadas para correr um processo e produzir resultados com algum grau de autonomia, ou seja, sem grande intervenção do leitor, que apenas ativa o processo mas não controla o resultado. Produzem assim resultados variáveis mas devido às suas regras internas e não à interação externa. Já em Wikisonnet se os resultados variam segundo regras internas, também dependem da seleção feita pelo utilizador do texto que gera o soneto. No entanto, o processo apenas é ativado a partir da seleção de input, correndo automaticamente.

2.5. CONCLUSÕES DA ANÁLISE

Podemos salientar algumas distinções que se prendem, a nível conceptual, com o sentido poético do texto de origem, que apenas é evidenciado na obra de Queneau variando o sen-tido já existente. Nas restantes, o texto de origem é utilizado para construir um novo senti-do pondo em evidência a estratégia combinatória e seu potencial semântico e expressivo.

Nestas obras (versões computacionais) os processos combinatórios responsáveis pela transformação e variabilidade de sentido são realizados automaticamente segundo parâ-metros pré-definidos pelos autores, sobre os quais o leitor não tem controlo e apenas ativa.

A expressão e sentido dos resultados depende igualmente da escala das unidades semân-ticas e da sua correspondência a uma estrutura semântica pré-definida (soneto, frase que segue um padrão). Mesmo que os resultados sejam essencialmente estáticos o comporta-mento das obras é variável em cada ocorrência, pois são obras dinâmicas, orientadas por processos que geram combinações distintas a cada ocorrência.

De acordo com esta ideia, podemos ainda, segundo modelo de Aarseth, salientar igual-mente a determinabilidade da obra bem como o tipo de funções que o utilizador pode assumir. No caso de Wikisonnet obtemos o mesmo texto quando o leitor toma as mesmas decisões na sua seleção, tornando o resultado determinável. Por sua vez, a aleatoriedade

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do gerador de Strachey e do poema de Queneau cria sempre um resultado diferente, cada vez que o programa corre, tornando-o indeterminável. O poema de Queneau atribui à audiência um papel configurativo se considerarmos a sua versão impressa. No entanto, perante a versão computacional desta obra a audiência apenas lê o output assumindo um papel interpretativo, à semelhança do que acontece nas outras obras mencionadas.

Visto que estas obras foram selecionadas de acordo com as possibilidades combinatórias que exploram, revelam assim uma certa afinidade a nível das suas estratégias de cons-trução de sentido. Apesar desta análise incidir nestas três obras, consideradas relevantes para informar o projeto prático, definimos as dimensões e categorias de análise de forma a poderem ser aplicadas a uma análise de diversas obras computacionais com caracterís-ticas distintas.

Considerando um espectro mais alargado de obras, verificamos que também podem per-mitir criação de conteúdos além das bases de dados pré-definidas de, por exemplo, o gerador de cartas de amor de Strachey, tal como é patente no Poemário (2008) de Rui Torres. Portanto, podem existir também processos abertos em que existe algum tipo de in-teração permitida ao leitor. A nível dos resultados textuais, podemos encontrar expressões audiovisuais, como por exemplo, em Amor de Clarisse (2005)17 de Rui Torres, um poema hipermédia que explora combinações com som, texto e vídeo. Verificamos ainda que o comportamento das unidades de superfície pode ser dinâmico, como na versão do gerador de Strachey realizada por Nick Montfort, ou em Taroko Gorge,18 ou até considerando os resultados animados no tempo de Poemário de Rui Torres.

2.5.1. Princípios para o Projeto

A partir da análise de obras de possibilidades combinatórias podemos extrair opções que vão guiar a implementação do projeto em que consiste a componente prática desta disser-tação. Considerando Cent mille milliards de poèmes, interessa-nos que o texto de origem tenha um significado prévio, de forma a explorar possibilidades combinatórias que permi-tam variação semântica, gerando um novo sentido através da recombinação de excertos.

17 Disponível em http://telepoesis.net/amorclarice/18 Disponível em https://nickm.com/taroko_gorge/

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Para tal, a nível de implementação destes princípios, destacamos o método de combina-ção frásica patente nesse mesmo exemplo, sendo que os dados a recombinar serão de ori-gem interna, i.e. extraídos do texto de origem. Definiremos assim regras de combinação de excertos pré-existentes por via da seleção de parâmetros.

Interessa-nos, portanto, ao nível da experiência que se pretende proporcionar ao leitor, criar processos abertos ao público, com algum grau de interação, ou seja, que permitam ao leitor influenciar as combinações geradas. Em termos de superfície, será possível obter um resultado textual estático, no entanto, com um fator de variabilidade externo associa-do às escolhas do utilizador.

Os aspetos mencionados orientaram uma série de experiências preliminares, que visaram não só a exploração e teste de processos de combinação exequíveis e considerados de interesse, como base para a criação do projeto prático.

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3. PROJETO FRAGMENTS OF FRAGMENTS

3.1. VERSÃO PRÉVIA

Neste capítulo é descrita a concepção e implementação do projeto prático, começando por apresentar o trabalho prévio que serviu como ponto de partida para o atual. No âmbito desta dissertação, procurou-se expandir e otimizar o projeto anterior, nomeadamente a ní-vel dos dados e processos, ou seja, as regras que definem as possibilidades combinatórias ao nível da mecânica. Procurou-se igualmente enriquecer a experiência de leitura a nível das opções de representação textual e, sobretudo do comportamento dinâmico da obra dando mais possibilidades de seleção ao leitor, passíveis de gerar variação semântica.

Com o objetivo de explorar o campo da literatura digital, a primeira versão do projeto, previamente desenvolvida na componente curricular do Mestrado, propõe uma releitura de Fragmentos de um discurso amoroso (1977),19 de Roland Barthes, tirando partido de possibilidades combinatórias aplicadas aos fragmentos que constituem o texto.

Roland Barthes foi um pensador francês, teórico e crítico da literatura, que organizou a obra Fragmentos de um discurso amoroso como uma coleção de excertos e citações de discursos recolhidos de vários autores e pensadores, juntando ao sofrimento do jovem

19 Tradução do título original Fragments d’un Discours Amoureux, da obra de Barthes, originalmente publicada em 1977. Para o projeto prático optou-se pela obra em inglês A Lover’s Discourse: Fragments, traduzida por Richard Howard em 1978, não só por o inglês ser considerado mais universal que o francês ou português, mas também porque desta forma tínhamos o texto editável e pesquisável, o que viabilizou a construção da base de dados.

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Werther a obra-prima de Goethe, a psicanálise de Freud, a filosofia de Platão, abrangen-do desde Shakespeare até Proust. Assim, a obra em causa estabelece um discurso sobre o amor, que não se refere meramente à sua descrição e análise, mas antes propõe a sua dramatização e recriação.

Como Barthes afirma, esta rede de “dis-cursus” implica, originalmente, a ação de correr para todo o lado; são idas e vindas. Com efeito, o “enamorado” não pára de empreender novas diligências, intrigas e questões. O seu discurso existe apenas através de lufadas de linguagem que vêm no decorrer de circunstâncias ínfimas.

Partindo deste pressuposto, o projeto Fragments of Fragments20 proporciona ao leitor a possibilidade de explorar os fragmentos do discurso, e proceder à sua recombinação, através do percurso de leitura que se define. Este percurso inicia-se com um fragmento aleatório e desenvolve-se selecionando uma “figura”, um “autor”, ou percorrendo o texto de forma aleatória. Os fragmentos que formam estes percurso podem então ser gravados e impressos, reconstituindo uma leitura e reflexão específica sobre o discurso amoroso.

Fig. 12: Captura de ecrã do projeto prévio.

20 Disponível em http://ellafrell.fbaul-dcnm.pt/fragments/index.html

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Fig. 13: Opções de pesquisa por Autor (Authors) ou Assunto (figures)

3.2. VERSÃO ATUAL

3.2.1. Conceito (Tema e Conteúdo)

Atendendo à diversidade de combinações verificada na versão anterior, e reconhecendo o potencial para expandir esse jogo de possibilidades de forma a enriquecer a experiência de leitura, decidiu-se usar novamente como fonte de dados a obra de Roland Barthes. Esta opção justifica-se pela forma como os dados de origem se tornam relevantes para a construção de sentido, que, neste caso, revelam alguma afinidade ao gerador de Stra-

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chey exprimindo sobre sentimentos relativos ao amor sem que a palavra amor ganhe predominância.

Por outro lado, a natureza fragmentária do texto, presta-se a experiências de recombina-ção textual sem perder o sentido do discurso mas potenciando uma nova interpretação. Portanto, ao nível da Intenção Semântica salientamos a variabilidade de sentido, tendo em conta que, tal como no caso de Cent mille milliards de poèmes, criar variabilidade de resultados a partir de conteúdos está presente na obra.

Assumiu-se igualmente a preocupação de proporcionar uma experiência de leitura e ex-ploração mais ativa do texto por parte do leitor, à semelhança do que acontece com Wi-kisonnet, pela seleção de assuntos ou expressões que vão determinar o resultado gerado, i.e., permitindo ao leitor influenciar as combinações geradas.

O projeto procura assim evidenciar a relevância do processo combinatório para a cons-trução de sentido e expressão. Segundo esta ideia, o conteúdo da obra de Barthes foi no-vamente analisado e categorizado de acordo com determinados parâmetros, no sentido de extrair novas possibilidades de combinação que permitam evidenciar múltiplas relações e interpretações do texto.

3.2.2. Mecânica (Dados e Processos)

A nível da definição de unidades textuais enquanto dados de origem a recombinar, come-çamos por extrair e categorizar os conteúdos segundo as categorias Autores, dada a diver-sidade que se encontra na obra; Assuntos que são os temas que organizam os fragmentos que o autor recolhe de várias fontes e integra no discurso amoroso e Fragmentos que são os excertos de texto ou frases pronunciadas por esse diversos autores.

Visto que cada autor citado aborda vários sentimentos, foi construído um esquema de liga-ções entre autor e o assunto que este aborda, que se pode explorar na página do projeto.21

21 Disponível em http://fbaul-dcnm.pt/alyona/mak/ e https://dlc.pt/equipa_dlc/ally/fbaul/fragments_of_fragments/index.html

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Fig. 14: Esquema de ligações entre Autores e Assuntos a partir da análise do conteúdo da obra.

Atendendo à temática do texto, procurou-se encontrar parâmetros de categorização que pusessem em evidência os diversos sentimentos evocados. De acordo com esta ideia, categorizam-se os excertos para a recombinação selecionando todas as frases que come-çam com “I am …” por serem frases recorrentes relativas a estados de espírito. São usadas também frases que contêm adjetivos ou substantivos que descrevam sentimentos, tais como “adorable-amorous-pure-insipid” ou “death-love-desire-anxiety-passion”. Deste modo, temos recombinação frásica sem anular completamente o sentido do texto mas evidenciando a recorrência de estados de espírito e sentimentos focados, considerando as seguintes categorias e variáveis:

Verbo ser: I am …Amor: love, desire, passion, adorable, amorousVida/Morte: life, death, died, killing, dying

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Dor/Sofrimento: painful, suffering, suffersAnsiedade: anxiety, doubst, hysteria, madnessTempo: time, today, day, hour, year, sometimes, pastime, suddenlyOutros: futile, useless, insipid, puré, gentleness, overcast

Quanto à escala, cada Fragmento de cada Autor dentro de cada Assunto é dividido em excertos categorizados de acordo com a lista anterior, e forma-se assim a possibilidade de combinação por frase (enquanto unidade combinatória de base). Portanto, os dados são de origem interna, constituindo uma base de dados limitada e pré-definida, de natureza fixa.

A nível dos processos combinatórios que se aplicam a essas unidades semânticas, numa primeira experiência, utilizou-se o assunto “to be engulfed” de Werther, para execu-tar a operação manualmente a fim de a testar, sendo que o processo foi posteriormente automatizado.

Fig. 15: Elementos que determinam a combinação de frases de um excerto de Werther.

O processo combinatório foi implementado computacionalmente, mas de forma a permi-tir que o leitor selecione que palavras vão ser responsáveis pela combinação que se vai gerar, portanto é convidado a interagir para recombinação do fragmento. Existe ainda a possibilidade de recombinar fragmentos aleatoriamente (botão random), no sentido de confrontar esses resultados com os que dependem de processos de seleção mais precisos

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por parte do leitor, por exemplo, ao selecionar adjetivos ou palavras que acionam a re-combinação frásica.

De acordo com estas opções, o projeto apresenta um índex de todas as ligações entre Autor-Assunto para consulta e também apresenta todos os Assuntos disponíveis para re-combinação, permitindo ainda recombinação aleatória. A nível das suas regras de funcio-namento, estas são explicitas na medida em que todas as palavras passíveis de originar uma recombinação estão ativas, podendo o leitor clicar para selecionar. O leitor pode ainda imprimir os fragmentos resultantes dessa recombinação como novas leituras e in-terpretações do texto.

3.2.3. Experiência (Superfície e Dinâmica)

De acordo com processos definidos, os resultados textuais são estáticos mas variáveis mediante ações do leitor, o que reforça o carácter mutável do texto e a sua pluralidade se-mântica. Sendo o comportamento das unidades de superfície estático, as unidades textu-ais não sofrem de qualquer animação, apenas de variabilidade como resposta à interação da audiência.

Os excertos recombinados são apresentados segundo uma estrutura fixa de cinco frases por fragmento. Este número justifica-se pelo facto de haver, em média, cinco Autores a descrever cada Assunto, desta forma associamos cada linha a cada Autor, antes de ocorrer combinação. Optou-se pelo modo de expressão puramente visual (textual), sem acom-panhamento sonoro, pois tratando-se de uma obra pré-existente considerou-se adequado não lhe associar um expressão sonora externa que a contaminasse.

Com a exploração destas possibilidades combinatórias e sua implementação computacio-nal, procurou-se assim reforçar e dar expressão a uma aspecto que já está latente na obra de Barthes — a potencial variação através de recombinação do seu conteúdo. Mais do que alterar completamente o sentido do texto ou produzir excertos sem sentido aparente, visou-se explorar as variações de sentido da pluralidade de discursos que a obra reúne.

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Fig. 16: Visualização do projeto.

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CONCLUSÃO

Discussão de Resultados

Tendo como propósito a exploração de conceitos associados à literatura potencial, com foco nas possibilidades combinatórias, este estudo procurou pôr em prática esses prin-cípios a partir da implementação de um gerador de texto. Para este fim, primeiramente, discutiu-se o conceito de “literatura potencial” de acordo com as ideias do grupo OuLiPo. Identificaram-se técnicas e condicionantes (contraintes) usadas pelo grupo, incluindo as possibilidades combinatórias enquanto foco específico deste estudo, tal como implemen-tadas numa era pré-computacional, até a sua automatização com recurso ao computador como ferramenta criativa no âmbito da literatura.

Após identificar como os autores associados ao grupo exploraram este campo de recom-binação textual, foi selecionado um conjunto circunscrito de obras relacionadas com os conceitos explorados na literatura potencial, nomeadamente possibilidades combinató-rias, de modo a que a sua análise informasse o desenvolvimento da componente prática deste estudo.

Com a intenção de compreender mais profundamente os procedimentos deste tipo de criação literária e sua implementação computacional, e com base num modelo de análise dos media digitais proposto por Noah Wardrip-Fruin que evidencia o conceito de pro-cessamento expressivo (2006), definiu-se um foco nos processos que estas obras operam como elemento significante das mesmas.

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Articulando este modelo com outros enquadramentos compatíveis e adequados à análise de obras computacionais, estabelece-se assim uma base para a compreensão das intera-ções entre os elementos constituintes de uma obra, ou seja, as múltiplas relações entre superfície, dados, processos e interação, definidas pelo autor e experienciadas pela audi-ência ou leitor.

Consequentemente, foram definidas as dimensões de análise que se prendem com as ideias e assunto da obra (a nível conceptual) e a forma como se ligam aos dados e pro-cessos inerentes à sua implementação computacional (a nível da mecânica), bem como os seus resultados expressivos, que constituem os elementos da experiência (a superfície e dinâmica). Definiram-se igualmente as categorias relativas a cada uma destas dimensões de análise adequadas à natureza das obras em causa.

Seguidamente, estas dimensões e categorias foram aplicadas à análise de um conjunto circunscrito de obras literárias a fim de extrair princípios para a conceptualização e imple-mentação do projeto prático. A análise permitiu identificar as técnicas e condicionantes implementadas e descrever diferenças e semelhanças na forma como cada obra explo-ra possibilidades combinatórias passíveis de gerar novos sentidos e expressões textuais, bem como resultados potencialmente imprevisíveis para a audiência.

De acordo com estes princípios, as opções que guiaram a implementação de um gerador de texto, enquanto projeto focado na exploração das possibilidades combinatórias de uni-dades literárias, prendem-se com os aspectos que se descrevem de seguida.

A nível conceptual considera-se a relevância semântica dos texto de origem optando-se por uma obra de Roland Barthes, Fragmentos de um Discurso Amoroso, em que o autor identifica os diversos sentimentos que vários nomes da literatura (desde Shakespeare até Proust) expressam, formando assim um discurso sobre o amor. Considerou-se pertinente o teor fragmentário da obra e assunto relativo ao discurso amoroso, igualmente evocativo do assunto do gerador de cartas de amor de Strachey. Pretendeu-se realçar a relevância dos processos combinatórios que potenciam a variabilidade de sentido do texto de ori-gem. Assim, visou-se complementar o sentido do texto por via da expressão e significa-ção dos processos de recombinação que lhe conferem variabilidade semântica e novas possibilidades de leitura.

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A nível da implementação destes princípios, e atendendo a natureza dos dados textuais de origem, procurou-se evidenciar a frase como unidade combinatória a fim de não sub-verter ou anular o assunto original do texto. Assim sendo, algumas palavras relevantes para o sentido do texto foram usadas como factor de recombinação, num processo que se pretende aberto à intervenção da audiência ou leitor por via da sua seleção. Desta forma, a nível dos resultados expressivos, aposta-se numa expressão textual cuja configuração é variável em cada ocorrência e de acordo com as interações do leitor enquanto utilizador.

A componente prática desta dissertação foi descrita começando por contextualizar o tra-balho prévio que serviu de ponto de partida para a versão atual do projeto Fragments of Fragments. Estabeleceu-se então como propósito a otimização e enriquecimento do mes-mo, de acordo com os princípios descritos acima a nível de dados, processos e regras que definem a sua mecânica e determinam os resultados expressivos.

Procurou-se minimizar a aleatoriedade como factor de recombinação, apostando em ele-mentos significantes, como a seleção de palavras relevantes, fazendo com que o processo de recombinação a que os dados textuais são submetidos proporcione novas experiências ao leitor mas de forma a não anular, mas sim explorar e evidenciar, o assunto e sentido original do texto.

Portanto, expandem-se as possibilidades exploradas na versão anterior na medida em que não só são permitidas as combinações de parágrafos através da escolha de autor ou assun-to relativo a um excerto, como foram implementadas outras possibilidades de recombina-ção consideradas coerentes e pertinentes com o sentido e assunto original do texto. Essa relevância foi aferida através de uma análise de palavras predominantes e recorrentes no texto que foram usadas para categorizar excertos de acordo com sentimentos e esta-dos abordados, desde morte (death) até amor (love). O projeto convida assim o leitor a selecionar estas palavras, recombinado automaticamente o conteúdo textual de modo a salientar a forma como esses sentimentos são tratados.

Acreditamos assim que o potencial deste projeto reside na sua capacidade de evidenciar aspectos do seu conteúdo através da implementação destas possibilidades de leitura, ao produzir combinações textuais imprevisíveis mas conceptualmente coerentes.

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Portanto, esta exploração de possibilidades combinatórias, posta em prática com o desen-volvimento do projeto, procura revelar como a expressão e sentido não reside apenas no resultado textual final, mas no processo inerente à sua construção atendendo à sua poten-cial variabilidade semântica e expressiva.

Limitações e Investigação Futura

No âmbito desta dissertação deu-se prioridade à exploração das possibilidades combina-tórias tal como propostas pelo grupo OuLiPo. No entanto, admitimos que este campo da literatura é bastante vasto e se presta a uma investigação e sistematização mais ampla. De acordo com os objetivos do trabalho prático, optou-se por circunscrever o tema a nível teórico aos aspectos essenciais para informar o seu desenvolvimento a nível prático. No entanto, um estudo mais aprofundados da exploração de possibilidades combinatórias a nível teórico poderá ser o foco de uma investigação futura.

Relativamente ao desenvolvimento da componente prática da dissertação, optou-se por circunscrever a abordagem à obra de Barthes, contemplando apenas um excerto do texto considerado necessário e suficiente para revelar o potencial dos processo combinatórios implementados. Esta opção deveu-se igualmente à falta de recursos para proceder a uma análise automatizada do texto e ao facto de este ter que ser previamente transcrito e ca-tegorizado. Consequentemente, a pesquisa de frases que contêm palavras como “death”, “love”, “anxiety” usa apenas parte do texto de Barthes. A este nível, considera-se relevan-te enquanto trabalho futuro a aplicação dos processos à totalidade da obra Fragmentos de um discurso amoroso, o que permitiria dar mais expressão à recombinação e evidenciar as particularidades do texto, ao proporcionar múltiplas leituras.

Acreditamos assim que, a partir das experiências realizadas no âmbito da implementação de possibilidades combinatórias, será possível imprimir mais intensidade aos “proces-sos expressivos” da obra tal como sugerido por Wardrip-Fruin. Atendendo igualmente às palavras de Philippe Bootz, e considerando que a literatura combinatória constitui uma longa tradição literária, este estudo procurou reavivar o interesse e experimentação em torno deste campo. Procurou assim contribuir para um melhor entendimento do papel ex-pressivo que os processos computacionais assumem no âmbito da criação literária, dada a sua relevância conceptual deste tema para designers e estudiosos interessados no uso do computador como ferramenta criativa.

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Montfort, Nick. Reimplemented Love Letter Generator (2014)

Montfort, Nick. Taroko Gorge (2009)

Papp, Tibor. Cent mille milliards de poèmes (1989)

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