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Universidade de Lisboa Faculdade de Belas‐Artes Arte e Alteridade. Confluências da Arte Cristã na Índia, na China e no Japão, séc. XVI a XVIII Rui Oliveira Lopes Doutoramento em Belas‐Artes (Especialidade em Ciências da Arte) 2011

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UniversidadedeLisboa

FaculdadedeBelas‐Artes

ArteeAlteridade.

ConfluênciasdaArteCristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

RuiOliveiraLopes

DoutoramentoemBelas‐Artes

(EspecialidadeemCiênciasdaArte)

2011

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UniversidadedeLisboa

FaculdadedeBelas‐Artes

ArteeAlteridade.

ConfluênciasdaArteCristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

RuiOliveiraLopes

DoutoramentoemBelas‐Artes

(EspecialidadeemCiênciasdaArte)

TeseorientadapeloProfessorDoutorFernandoAntónioBaptistaPereira

2011

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Resumo

Os Descobrimentos Marítimos Portugueses, a partir da primeira metade do

século XV, deram lugar a uma nova Era e proporcionaram um diálogo cultural e

religioso com diferentes povos em África, na Ásia e na América. A diversidade

cultural e religiosa na Índia, na China e no Japão, com as quais osmissionários e

mercadores europeus tiveram contacto, resultou numa tomada de consciência do

outrocivilizacionalenapartilhadeexperiência.

Neste diálogo intercultural e interreligioso, a representação visual das

narrativassagradastornou‐seumaponteparaumentendimentomútuoepermitiuo

reconhecimentodeumimagináriocomum.Osmissionárioseuropeususaramaarte

para explicar as Escrituras Sagradas, o significado da iconografia cristã e para

descrever as vidas dos santos aos soberanos locais e também aos seus súbditos,

esperando,assim,convertê‐losaoCristianismo.

Nestatesededoutoramentoiremosfocaronossoestudosobreosprocessos

deconfluênciaentreaartecristãeaartereligiosadaÍndia,daChinaedoJapão;de

que forma os missionários europeus e os artistas locais fundiram elementos

iconográficosdaartecristãedasarteslocais;dequeformaosmissionárioseuropeus

procuraram compreender a arte religiosa da Ásia de modo a estabelecerem

paraleloscomo imaginário cristãoe, finalmente,dequemodoasrelaçõesentrea

artecristãeaartereligiosadaÁsiaderamlugaranovasformasartísticas.

Palavras‐Chave: arte religiosa; confluência; alteridade; arquétipos; acomodação;

miscigenação

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Abstract

ThePortuguesemaritimediscoveries,sincemid‐fifthteencentury,gaveriseto

a newEra and prompted cultural and religious dialoguewith different civilizations

throughout Africa, Asia and America. The cultural and religious diversity in India,

ChinaandJapan,withwhichEuropeanmissionariesandmerchandsbecameaware,

resultsintheconsciousnessoftheotherandthesharingexperience.

Inthisinterculturalandinterreligiousdialogue,visualrepresentationofsacred

narratives became a bridge to mutual understanding and to recognition of a

commonimaginary.Europeanmissionariesusedarttoexplainsacredscriptures,the

meaningofChristian iconographyanddescribe saint’s lives to local sovereignsand

theirssubjects,hopefultoconvertthemtoChristianity.

InthisthesisIwillfocustheprocessesofartisticconfluencebetweenChristian

and Asian religious art; how European missionaries and local artists assemble

ChristianandAsianreligiousiconography;howdidEuropeanmissionariesattempted

to understand local religious iconography to establish a parallel with Christian

imageryand,finally,howalltheserelationsbetweenChristianandAsianreligiousart

gavebirthtonewartisticforms.

Keywords: religious art; confluence; alterity; archetypes; accommodation;

miscigenation

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Agradecimentos

Oresultadodeumtrabalhodeinvestigação,quedecorreuao longodevários

anos,nãoseapresentaaquicomoaconcretizaçãodeumobjectivoindividual.Aideia

que tenhosobrea investigação,emparticular sobrea investigaçãoemarte,éque

todooconhecimentoquedaíadvémconstituiumpatrimónioinalienáveldodomínio

público.Qualquersupostaverdadehistóricaqueseresgatedaespumadotempoé

imediatamente restituída ao domínio público, sendo que a investigação é sempre

um trabalho contínuo, que se constrói colectivamente através de várias

contribuiçõeseperspectivasmetodológicas.

Porestemotivo,estetrabalhoéresultadodeumesforçocolectivo,paraoqual

contribuíram várias pessoas e instituições, directa e indirectamente, através de

apoiosinstitucionaisoudeorientaçõesdetrabalho.

AoProfessorDoutorFernandoAntónioBaptistaPereira,orientadordestatese,

devo o despertar para uma ideia de investigação emarte que se situa no eixo de

uma relação intrínseca entre o objecto artístico e a sua normativa conceptual e

transcultural.Agradeçoaindaaconfiançaquedepositounesteprojecto,sobretudo

considerandoasuaamplitudetemporal,geográfica,culturaleartística.Oseusaber,

entendimento, cultura visual e experiência foram determinantes para todo este

trabalhochegasseabomporto.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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À Fundação Oriente que, pela confiança depositada no projecto, através da

concessão de uma bolsa de investigação de três anos, tornou possível todas as

viagensdepesquisadocumentaledeacervosmuseológicosemváriospaíses,bem

comooacessoavastabibliografia quenão seencontra nasbibliotecasearquivos

nacionais.

Aos docentes, investigadores e colegas do Centro de Investigação e Estudos

emBelas‐Artes,SecçãodeCiênciasdaArteedoPatrimónio“FranciscodeHolanda”,

da Faculdade de Belas‐Artes da Universidade de Lisboa, pelo interesse e apoio

constantesparaodesenvolvimentodainvestigação.Agradeçoemparticularoapoio

doCIEBA,quepermitiuapresentar,parcialmente,otrabalhodeinvestigaçãona22ª

ReuniãoInternacionaldoICOM,quedecorreuemNovembrode2010,emShanghai.

Ao Ricci Institute ‐ University of San Francisco, em particular ao Director

XiaoxinWu,pormeterrecebidoedisponibilizadotodososmateriaisbibliográficos,

documentais e iconográficos, fundamentais para esta tese, e por ter dado a

possibilidade de apresentar o projecto aos investigadores residentes. Um

agradecimentoespecialaMarkStephenMir,MayLee, JanVaeth,LauraArnoldea

MellisaDalepelasorientaçõessobreasrelaçõesEuropa/China.

UmagradecimentoaoProfessorPauloVarelaGomes,queenquandoDelegado

da FundaçãoOriente emPangim,me recebeu noBairro das Fontaínhas emedeu

preciosasorientaçõesdetrabalhoedemetodologiadetrabalhoemGoa,nasvisitas

àsinúmerasigrejas,conventosetemplos.AostécnicosdosArquivoHistóricodeGoa

que, no seu ritmo, me foram disponibilizando a imensa documentação que aí se

conserva.AoManuelMachado,quetiveaoportunidadedeconhecereconversarno

Ernesto’ssobreosrituaisetemploshindusdePonda.

AoDr.RuiRocha,naalturaDelegadodaFundaçãoOrienteemMacau,queme

recebeunaCasaGarden.AoFranciscoChaneaoRoySit,doMuseudeMacau,que

foramincansáveisnoapoioduranteaminhaestadiaemMacaueGuangzhou.Foram

determinantesparaquepudessevisitarespaçosqueseencontravamencerradosao

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Agradecimentos

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público, acompanhando‐memuitas vezes durante as visitas e disponibilizando‐me

informaçõesessenciaisparaesteestudo.

AosconservadoresdepinturaecaligrafiaedasRelíquiasCulturaisdoNational

PalaceMuseum,emTaipé,pelotempodispendido,pelasorientaçõesbibliográficas

acercadospintoreseuropeusdacorteimperial.AgradeçoprofundamenteaShihhwa

Chiu, conservadora de pintura e caligrafia, pelo interesse que demonstrou no

projecto,nametodologiadeabordagemepelaoportunidadedepublicarumtexto

noNationalPalaceMuseumMonthlyofChineseArt,numnúmeroespecialsobrea

artenotempodoImperadorYongzheng,noqualcolaboroutambémJamesCahill.

Ao Professor Vítor Serrão pela disponibilização de textos inéditos, na altura

aindaporpublicar, relativosàviagemde investigaçãoaoArquivoHistóricodeGoa.

Fico grato pela partilha de conhecimentos, pelas palavras de incentivo e pelo

entusiasmocontangiantepelahistóriadaarte.

Ao Centro Científico e Cultural deMacau, nomeadamente ao Professor Luís

FilipeBarretopelacooperaçãoemprojectosdedivulgaçãodeculturasdaÁsiaepor

manteroCCCMumespaçodeencontroeintercâmbiodeideiasfundamentaisparao

conhecimento da realidade deMacau e dos portugueses na Ásia. À Doutora Ana

CristinaAlvespelasconversasenriquecedorassobreculturachinesa,quedecorreram

no CCCM e também nos Encontros de Imagética na Faculdade de Letras da

UniversidadedeLisboa.

ÀDoutoraMariaLeonorGarciadaCruz,pela formaabertaeamplacomque

realiza o Projecto Imagética, revelando‐se num espaço de partilha e comunhão e

conhecimentosdediversasáreasdosaber.

Aos responsáveis e técnicos de vários Museus em Portugal, que me

disponibilizaram todas as informações necessárias ao estudo das colecções.

AgradeçoparticularmenteàDra.TeresaVilaça,directoradaCasa‐MuseuMedeirose

Almeida,portodooapoioe interessedemonstradopeloprojecto,disponibilizando

todasasinformaçõessobreaspeçasdaÍndiaedaChina.ÀDra.ConceiçãoBorgesde

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Sousa do MNAA pela partilha da experiência do trabalho de inventário que

desenvolveu em Goa, pelas questões que permaneciam em aberto sobre a

imagináriaindo‐portuguesaepelaspalavrasdeincentivoaoprojecto.ÀMónicaReis

gostariadeagradecerpelacedênciadealgumasfotografiasdasigrejasdeDamão.

AoestimadoPeFernandoGarciaGutiérrez,quetiveoprivilégiodereceberem

Lisboa,portodaasuadisponibilidade,pelosesclarecimentoseportodooseuvasto

conhecimentosobreasrelaçõesartísticasentreaarteeuropeiaeaartejaponesa.

Umaúltima palavra para aqueles que tiverama paciência demeouvir falar,

por vezes incessantemente, sobre a tese, sobre as pesquisas, as frustrações e

alegrias.AosmeusPais,irmãoseamigosquesempreacreditaramemmim.

À Isabel,pela suapaciênciae dedicação,eàminha filhaVioleta,que nasceu

entreaspáginasdestatese,eudedicoestetrabalho.

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Índice

RESUMO I

ABSTRACT III

AGRADECIMENTOS V

ÍNDICE IX

NOTAPRÉVIA XIII

CAPÍTULOI

INTRODUÇÃO:OTEMAEOMÉTODO 1

1. EncontrosculturaiseartísticosentreaEuropaeaÁsia:StatusQuaestionis 7

2. Adefiniçãodométodo.Paraumadialécticadosprocessosdealteridadeeconfluênciadaartereligiosa 27

CAPÍTULOII

OCRISTIANISMONAÁSIACENTRAL:DAIGREJAASSÍRIADOORIENTEAJOÃODEMONTECORVINO 43

1. OApóstoloToméeaIgrejadoOriente(52‐845) 45

1.1. AesteladeXi’aneoscristãosnestorianosnaChinaTang 51

1.2. AspinturascristãsdasGrutasdeDunhuang 57

2. OCristianismoeaPaxMongolica 61

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CAPÍTULOIII

ARTECRISTÃNAÍNDIAPORTUGUESA 73

1. NotíciaseimagensdogentilismodaÁsia 79

2. ConsideraçõessobreaconfluênciadaartecristãnaÍndiaPortuguesa 103

2.1. As fachadas e cruzeiros das Igrejas na Índia: alguns aspectos sobre a arquitecturareligiosaentreoRioKhrisnaeoCaboCamorim 121

2.2. AornamentaçãointeriordasigrejasnaÍndiaPortuguesa 133

2.3. Aimagináriacristãemmarfim 191

CAPÍTULOIV

DAGRAVURAÀPINTURADEÁLBUM.IMAGENSCRISTÃSNUMIMPÉRIOISLÂMICO 211

1. OsprimeiroscontactoscomosportugueseseasmissõesjesuítasàcorteMogolduranteosreinadosdeAkbar,JahangireShahJahan(1580‐1658) 219

2. Areprodução,produçãoerecriaçãodeiconografiacristãnasoficinasdepinturadacorteMogol 229

3. A pintura de cenas cerimoniais no tempo de Jahangir. Entre princípios universais,símbolosealegoriasdopoderespiritualetemporal 237

CAPÍTULOV

ARTECRISTÃNOIMPÉRIODOMEIO 267

1. AartenaChinaMingantesdachegadadosportugueses 277

2.Macau.UmacidadecristãàsPortasdoCerco 291

3. O novo diálogo com as velhas tradições. Reflexões sobre a arte europeia na corteimperialemPequim(1601‐1773) 329

CAPÍTULOVI

OSÉCULONAMBANEAARTEKIRISHITAN 369

1. AarteKirishitan(1549‐1639) 375

1.1. AltaresnasigrejasdoJapão 395

2. Aconveniênciaconceptualeformalentreartecristãebudistaapós1639 401

CONCLUSÃO 407

BIBLIOGRAFIA 415

ANEXOICONOGRÁFICO 453

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Abreviaturas

AN/TT‐ArquivosNacionais/TorredoTombo

AHG‐ArquivoHistóricodeGoa

CHAM‐CentrodeHistóriadeAlém‐Mar

CNCDP‐ComissãoNacionalparaaComemoraçãodosDescobrimentosPortugueses

IMC‐InstitutodosMuseusedaConservação

IN/CM‐InstitutoNacional/CasadaMoeda

MNAA‐MuseuNacionaldeArteAntiga

MNMC‐MuseuNacionaldeMachadoCastro

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Notaprévia

Considerando a diversidade cultural, linguística e geográfica que este estudo

contemplatornou‐sefundamentaldefinircritériosemrelaçãoaosistemadedatação

eàgrafiadosnomesetítulosdelivroseuropeustraduzidosparaaslínguasasiáticas.

No que respeita à cronologia optámos por seguir o calendário gregoriano,

embora, sempre que se justificasse, recorrêssemos à abreviatura ANE (Antes da

NossaEra),nolugardadesignaçãoa.C.(antesdeCristo).Apesardisso,sempreque

nos referimos à história e cultura das tradições locais respeitámos a cronologia

dinástica que nos permite situar no tempo (e.g. dinastia Ming ou Período Edo,

respectivamentenoscasosdaChinaedoJapão).

Por sua vez, em relação à grafia dos nomes chineses, optámos por utilizar o

sistemapinyin,ométodode romanizaçãomais utilizadoparaomandarimpadrão.

Semprequenosreferimosaostextoseuropeustraduzidosparamandarimdecidimos

traduzirotítuloparaportuguês,acompanhado,semprequepossível,pelotítuloem

pinyin e em caracteres chineses. Em algumas situações, mantivemo‐nos fiéis aos

nomesreferidosnadocumentaçãoportuguesa.

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1

CapítuloI

Introdução:otemaeométodo

“De facto, as minhas deduções foram feitas correctamente, parece‐me que os

chineses,queemoutrosaspectossãonotáveis,epornaturezanãosãoinferioresa

qualquer outro povo na terra, sãomuito primitivos no uso destas últimas artes,

porqueelesnuncaestiveramemcontactoíntimocomoutrasnaçõesparaalémdas

suas fronteiras. Tal encontro teria indubitavelmente sido bastante útil para os

ajudaraprogredirnesseaspecto.Elesnãosabemnadasobredaartedapinturaa

óleo ou do uso da perspectiva nas suas pinturas, que resultam parecem mais

mortasdoquevivas.Parecetambémquetambémnãotêmtidograndesucessona

produção de estatuária, na qual eles seguem regras de simetria a olho. Isto, é

claro, resulta frequentemente em ilusões e causa defeitos de luz / brilho de

grandesproporçõesnassuasobras”.1[MatteoRicci,c.1604]

Percorrendode uma forma transversal a evolução dos estilos e das técnicas

artísticasaolongodostemposedasdistintaspartesdomundo,torna‐seevidentea

influência que os contactos entre diferentes culturas e ideias exercem na

permanenteconstruçãodeumaincomensuráveldiversidadeartística.

1China. Arts and daily life as seen by Father Matteo Ricci and other Jesuit missionaries, edited byGianniGuadalupi.MilãoeParis:FrancoMariaRicci,1984,pp34‐35.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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EstaleituradeMatteoRiccisobreaartechinesarepresenta,emparte,aideia

dequeosencontrosdeculturaseointercâmbiodeconhecimentoconstituemabase

do progresso civilizacional. Por outro lado, é interessante notar queMatteo Ricci

observa as artes da China de acordo com o quadro dos princípios estéticos da

pinturaeuropeia,dotadadastécnicasdeperspectiva,dorealismoedotrompel’oeil

queviriama fascinaros imperadoresdo finaldadinastiaMinge iníciodadinastia

Qing.AquestãofundamentaléqueograndelegadodapresençaeuropeianaÁsia,

entre os séculos XVI a XVIII, definiu‐se a partir do diálogo civilizacional entre

diferentesculturasedoestabelecimentodepontesparaodespoletardeprocessos

demiscigenaçãoartística.

O tema que nos propomos desenvolver como tese de doutoramento em

CiênciasdaArte incide sobreoestudo dosprocessosdeconfluênciadaarte cristã

comasartesdosoutrospovosentreosséculosXVIeXVIII,como resultadodeum

encontrodeculturasentreaEuropaeaÁsia,comparticularincidêncianaÍndia,na

China e no Japão. Conjugamosarte e alteridade porque se trata‐se de umestudo

que se debruça sobre os objectos artísticos resultantes de uma relação de

interdependênciacomasartesdosoutrospovos,deumaconveniência,similitudee

proximidade com osmodelos e esquemas de representação das artes asiáticas. A

miscigenação artística decorrente deste encontro de culturas e do diálogo entre

religiõeséresultadodeumaconsciênciasobreooutro,a identificaçãoespontânea

da diferença e da semelhança, a partir das quais se establece o diálogo. Desta

relaçãodeinterdependênciasurgeumanovaidentidadeartísticaquesecaracteriza,

de forma transversal, por uma sistematização, combinação e miscigenação de

símbolos e elementos iconográficos das diferentes realidades artísticas. A ideia de

estudar a arte cristã emespecífico prende‐se não só coma carga proselitista com

quemuitos europeus chegaramaosNovosMundos a partir do final do século XV,

mas principalmente com a estreita relação que se verifica durante esse período

entreaarteeasrepresentaçõesdosagrado.

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Introdução.Otemaeométodo

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Cronologicamente, partimos da chegada de Vasco da Gama a Calecute, em

1498, que permitiu, nos primeiros anos do século XVI, o estabelecimento das

primeirasfeitoriasealiançascomosRajásdaCostadoMalabar,atéàsupressãoda

CompanhiadeJesusem1773,declaradapeloPapaClementeXIVnaBulaDominusac

Redemptor,nasequênciadasmedidasdoMarquêsdePombal,emPortugal,LuísXV,

emFrançaeCarlosIII,emEspanha.

DesdeagénesedaExpansãoPortuguesaedosDescobrimentosMarítimosao

longodaCostaOcidentalAfricana,D.AfonsoVviuconfirmadoodireitodeconquista

detodos“ossarracenosepagãosequaisqueroutrosincréduloseinimigosdeCristo,

ondequerqueestejam,comotambémseusreinos,ducados,condados,principadose

outraspropriedades(...)ereduzirsuaspessoasàperpétuaescravidão,eapropriare

converter em seu uso e proveito e de seus sucessores, os reis de Portugal, em

perpétuo, os supramencionados reinos, ducados, condados, principados e outras

propriedades, possessões e bens semelhantes (...)”2. A contrapartida papal a esta

concessãodetodososterritóriosconquistadosàcorteportuguesaseriaadeoRei

dePortugalgarantiroministérioespiritualdasnovasterraseaí fundaras igrejase

mosteirosparaaacçãomissionária.AbulapapalRomanusPontifex,de8deJaneiro

de1455,defineaslinhasorientadorasdoqueviriaaseroPadroadoPortuguêse,a

partirdaqui, talcomomuitoacertadamenteobservaTeotóniodeSouza,“o serviço

de Deus e o serviço da pátria eram considerados não somente compatíveis, mas

necessários”3. A presença portuguesa nos novos domínios é sustentada numa

combinaçãodeacçõesmilitares,económicase religiosas,numacorrelação impare

semprecedentes.

OsfradesqueacompanhavamasarmadasportuguesasnoÍndico,noiníciodo

séculoXVI,garantemnãosóoserviçoespiritualduranteatumultuosaviagematéà

2 Bula papalDumDiversas, publicada pelo para Nicolau V a 18 de Junho de 1452. IN:PortugaliaeMonumenta Africana, editado por Luís de Albuquerque e Maria Emília Madeira Santos. Lisboa:IN/CM,1993,pp.68ess.3TeotónioR.deSouza,“OPadroadoPortuguêsdoOrientevistodaÍndia.Instrumentalizaçãopolíticadareligião”.IN:RevistaLusófonadeCiênciadasReligiões‐AnoVII,2008/nº13/14,p.415.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Ásia,comotambém,àchegadaàsterrasdosgentios, têmaseucargoaconversão

dospovoseoministériodafénasigrejaserigidasemglóriadeDeus.Osmissionários

dediferentesOrdensReligiosasestabelecem‐seemvárioslocaisdaÁsiaelaborando

várias estratégias de missionação e conversão dos povos. O desenvolvimento de

diferentes metodologias de missionação consistiu, sobretudo, numa estratégia de

aproximaçãosocial,culturalereligiosaàscomunidades locais,sejapeloauxílioaos

enfermos, moribundos órfãos e demais necessitados, seja pela acção diplomática

junto dos Rajás hindus e dos imperadores da Índia Mogol, da China e do Japão,

actuandocomo intérpretes,emissários reais,diplomataseagentesde intercâmbio

cultural,científicoereligioso.

Particularmente,aCompanhiadeJesustornou‐senomais importanteagente

deintercâmbiocultural, funcionandocomocatalizadordeumaconfluênciaartística

naÍndia,naChinaenoJapãoduranteosséculosXVIaXVIII.Ocarácterdemilitância

espiritualassociadoaumaorganizaçãoeimplementaçãodoensinonosSemináriose

adefiniçãodeumaestratégiadeaccomodatio,quesecaracterizaporumaatitude

de abertura ao outro através de uma permeabilização cultural, possibilitou aos

missionáriosdaOrdemfundadaporInáciodeLoyolaumentendimentorigorosodas

estruturas culturais, religiosas e artísticas na Ásia. Trata‐se, em rigor, de um

reconhecimentoeaceitaçãodovalordasestruturasculturaisdosoutrospovos,que

temcomoconsequênciaumnivelamentoantropológicododiálogointercultural.

Osreligiososeuropeusrapidamenteseaperceberamdariqueza,diversidadee

expressividade visual das religiões asiáticas, bem como da importância que as

imagens sagradas têmnocontextodos rituaisena relaçãoespiritualdosdevotos.

Neste sentido, como veremos adiante, algumas cartas escritas pelos missionários

demonstram uma procura de entendimento dos diversos textos sagrados dos

gentios, bem como os significados da representação dos ídolos, nomeadamente

daqueles que, visualmente, correspondem aos modelos de representação da

iconografiacristã.Aconsequênciadestasevidênciaséopapelpreponderantequeas

imagens de devoção cristã tiveram como instrumento demissionação e instrução,

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Introdução.Otemaeométodo

5

através da representação figurativa e simbólica das narrativas sagradas ou de

princípiosmoraiseespirituaisassociadosàvida cristã.Osmissionáriosprocuraram

identificar e estabelecer pontos de confluência entre as narrativas sagradas do

Cristianismo, Hinduísmo, Budismo, Taoismo e Shintoismo, resultando, ao nível da

culturavisual,numaexpressãoartísticamiscigenada.

De acordo com as tradições cristãs da Igreja e, sobretudo, com as ideias

defendidas pelo Papa Gregório I, as imagens cristãs têm três funções específicas:

aedificatio e instructio, intendere, a suscitação do sentimento de compunctio e

tambémdeornamentaçãodaCasadeDeus4.Estafunçãoqueasimagensadquirem,

deinstruçãodashistóriassagradas,deedificaçãoeentendimentodeumaestrutura

espiritual e de estabelecimento de uma relação devota coma Igreja Triunfante, é

reabilitada, em grandemedida, coma redefinição geográfica domundo e comas

determinações Contra‐Reformistas como reacção aos movimentos da Reforma

Protestante.

Soboespíritodainstructioatravésdasimagens,defendidapeloPapaGregório

I na sua carta a Sereno, Bispo deMarselha, os missionários europeus usaram as

imagens para a representação das estoreas sagradas para que “ao contemplá‐las,

possamler,pelomenosnasparedes,aquiloquenãosãocapazesdelernoslivros”5.A

funçãodidácticadas imagenscristãsnacomunicaçãoeensinodosfundamentosda

doutrinacristã,comvistaàconversãodosgentiostornou‐senaprincipalmotivação

daproduçãode iconografiacristãnaÁsiaduranteosséculosXVIaXVIII.Poroutro

lado,o contactopermanentedosmissionários comogentilismo ebramanismo da

Ásia exigia resguardo ao nível da consolidação da sua fé, suportada emmodelos

4Cf.RuiOliveiraLopes.“Fundamentosdaimagemcristã.Emtornodeumaconceptualizaçãoeusodaimagemcristãnaarteocidental”. IN:Artis.Revistado InstitutodeHistóriadaArtedaFaculdadedeLetras de Lisboa, nº 5 (2006), pp. 207 ‐ 216. Sobre a função da imagem cristã desde a Alta IdadeMédia ao Renascimento Cf. Rui Oliveira Lopes. Imagens para edificar. Os modelos didácticos napintura portuguesa do Renascimento. Dissertação de Mestrado em Teorias da Arte apresentada àFaculdadedeBelas‐ArtesdaUniversidadedeLisboa,2006,pp.38‐57.5 Cartas de Gregório Magno ao Bispo Sereno deMarselha, em: MGH,Gregorii I Papae RegistrumEpistularumII,1,lib.IX,208,p.195eII,2, lib.XI,10,pp.270‐271;CChL.140A,lib.IX,209,p.768elib.XI,10,pp.874‐875.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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exegéticos representados em pintura e em escultura no interior das mais

importantesigrejas.

Considerando, por um lado, que a comunicação implica necessariamente

contextualização, para que haja entendimento de estruturas básicas do

conhecimentoe,por outro lado,anecessidade permanenteemrecorreraartistas

locais para a produção de iconografia e imaginária cristã, surge, deste modo,

necessariamente uma arte cristã miscigenada, permeável a técnicas, materiais e

esquemasderepresentaçãodosagrado.

Assistimos,portanto,duranteestestrêsséculosàemergênciaeconsolidação

deumprocessodealteridadedasformasesignificadosdarepresentaçãodosagrado

na arte, com base numa similitude e conveniência conceptual, assente nas

estruturas fundamentais e universais do sagrado, e numa paridade formal que

permite o entendimento de significados à imagem do conhecimento adquirido a

priori.

Volvidos cerca de cem anos após o início do interesse da historiografia

modernanotemadasrelaçõesartísticasentreaEuropaeaÁsiaedaproduçãode

vastabibliografia,nacionaleestrangeira,é fundamental investigarnaarte cristão

reflexo do contacto com as realidades religiosas asiáticas e os processos de

alteridadeartística.

Contextualizado o tema, consideramos fundamental, em primeiro lugar,

entender de que modo a historiografia tem abordado o assunto e identificar os

principais contributos,apartirdosquais iremos,posteriormente,discorrer sobrea

nossametodologiadeinvestigaçãoeconceptualizaçãoteóricasobreaquestão.

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1. EncontrosculturaiseartísticosentreaEuropaeaÁsia:StatusQuaestionis

Em Julho de 2009, durante a inauguração da exposição Encompassing the

Globe.PortugaleoMundonosséculosXVIeXVII,NunoVassalloeSilvaafirmavaque

"osespecialistasinternacionaisestãomaislibertosdealgunsconceitosnacionalistas

evisões lusocêntricasquenóssomostentadosater.Averdadeéqueo legadodos

Descobrimentos, que ainda hoje subavaliamos, não é nosso, tem uma dimensão

global, é uma questão universal. Para além da experiência visual absolutamente

extraordinária, esta exposição obriga‐nos a um confronto com o nosso próprio

legadohistóricoepermiteperceberquenãoéramossónósaolharparaosoutros,

queosoutrostambémolhavamparanós"1.

EstaafirmaçãodeNunoVassaloeSilva,comissáriodeváriasexposiçõessobre

asrelaçõesartísticasentreaEuropaeaÁsia,tantonoMuseudeS.Roquecomono

MuseuCalousteGulbenkian,éreveladoradeumanecessidade,queaindahojesefaz

sentirnahistoriografiadaarteemPortugal,deatribuiràprofusaproduçãoartística,

remanescente das ligações marítimas proporcionadas pelos portugueses, uma

dimensãouniversaldeslocadadeumaperspectivanacionalistae“luso‐oriental”.

São, na realidade, pontuais os estudos sobre a confluência artística entre a

EuropaeaÁsiasobumaperspectivainequivocamentetransversalàacçãoedomínio

geoestratégico dos portugueses na Ásia, sendo importante referir, a título de

exemplo, o clássico sketch histórico e arqueológico de Goa, elaborado por José

Nicolau da Fonseca, em 1878, para o British Imperial Gazetteer2. No seu estudo,

recorrentementeignoradopelahistoriografiamoderna,analisaaproduçãoartística

1INJornalPúblico,15/07/20092JoséNicolaudaFonseca.AnhistoricalandarchaeologicalsketchofhecityofGoa.Bombay,Thacker&Co.Limited,1878.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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em Goa durante os séculos XVI a XVIII, recorrendo aos importantes registos de

viajantes coetâneos e também à, na altura, recente edição do Archivo Portuguez

Oriental,porJoaquimHeliodorodaCunhaRivara.

O estudo das relações artísticas entre a Europa e a Ásia foi, entre nós,

abordado à luz de um conjunto de medidas de inventariação e identificação do

património Português no mundo durante o Estado Novo, conduzidas por Mário

Tavares Chicó e Carlos deAzevedo, durante a década de 1950, como subsídio da

JuntadeMissõesdoUltramare,maistarde,atravésdaprofícuaproduçãoculturale

editorial que desenvolveu a Comissão Nacional para a Comemoração dos

DescobrimentosPortuguesesentre1986e2002.

Por outro lado, é ainda importante referir que a nível internacional,

nomeadamentenaAlemanha,ReinoUnidoenosEstadosUnidosdaAmérica,existiu

uma tradição historiográfica que viria a ficar conhecida por postcolonialism. Esta

perspectiva pós‐colonialista tem em vista o quebrar de um verticalismo

antropológico da leitura de relações colonizador / colonizado e da ideia de que a

supremacia cultural da metrópole ocidental se diluía na aculturação dos povos

selvagens das colónias nosNovosMundos. É neste contexto que Anna Jackson e

Amin Jaffer, conservadores do Victoria & AlbertMuseum, na escolha do título da

exposiçãoEncounters.ThemeetingofAsiaandEurope(1500‐1800)optampor,não

sócolocaraÁsiaemprimeirolugar,comotambémpreferemutilizarotermoÁsiano

lugardeOriente,afastando‐sedeumaposiçãoEurocentristanaabordagemdotema.

Paraonossoestudotorna‐seimprescindíveldefinirecaracterizarotemaeos

conceitos em torno da produção artística que resultou de um vasto intercâmbio

culturaleartísticoentreaEuropaeaÁsiaentreosséculosXVIeXVIII.

Em Portugal, o interesse sobre as artes emergentes dos contactos entre a

Europa e a Ásia surge por influência de uma perspectiva da antropologia cultural

emergentenospaísesanglo‐saxónicosnofinaldoséculoXIX.Em1881,apresentou‐

senoSouthKensingtonMuseum,emLondres,aexposiçãoSpecialLoanExhibitionof

SpanishandPortugueseOrnamentalArt,emcujocatálogoJohnCharlesRobisonse

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Introdução.Otemaeométodo

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refere à arte indo‐portuguesa pela primeira vez. Ne sequência desta exposição

realizou‐se em Lisboa, no Museu Nacional de Bellas Artes e Archeologia (actual

Museu Nacional de Arte Antiga) a Exposição Retrospectiva de Arte Ornamental

Portugueza e Hespanhola. Nos comentários que tece ao catálogo da exposição,

SousaViterbodiscorresobreaarteindo‐portuguesa,quesedefinepeloconjuntode

objectosexecutadosna Índiaporartífices locaisouemPortugal, sob influênciade

umatradiçãoeculturaindiana3.

Nomesmo ano,MarquesGomes e JoaquimdeVasconcelos organizaramem

AveiroaexposiçãoRelíquiasdaArteNacionalondedistinguiamtrêsgruposdepeças

orientaisnascolecçõesportuguesas:1)ObjectosproduzidosemLisboaporartistas

orientais;2)PeçasrealizadasemGoaeoutrascidadesportuguesasdaÍndiaaMalaca

por artífices portugueses; 3) obras genuinamente provenientes do Oriente e

manufacturadasporartistasorientais4.

De facto, os primeiros estudos revelam uma clara preocupação de

caracterizaçãoedefiniçãodeumvocabulárioartísticobemcomoumacategorização

bem ao estilo da historiografia do final do século XIX, notando já uma evidente

evocaçãonacionalistaqueviriaaserotimbredageraçãoseguinte.

Após a exposição de 1882, apenas a partir da década de 1930 é que

historiadores como Panduronga Pissurlencar, Reynaldo dos Santos, João Couto,

Maria José deMendonça, MariaMadalena de Cagigal e Silva, Luís Keil, Bernardo

FerrãoTavareseTávora,MárioTavaresChicódesenvolveramosprimeirosestudos

sobreasrelaçõesculturaiseartísticasentreoOcidenteeoOriente.Estesestudos,

apesar de surgirem no contexto de um movimento nacionalista que pretendia

manterascolóniasindianasindianasameaçadaspelosmovimentosanti‐colonialistas

quesefizeramsentirdesdeaindependênciadaUniãoIndiana,em1948,assumem‐

3Cf.FranciscoMarquesdeSousaViterbo.Aexposiçãodearteornamental:notasaocatálogo.Lisboa:ImprensaNacional,1883.4MarquesGomese JoaquimVasconcelos.ExposiçãodistritaldeAveiroem1882 ‐RelíquiasdaArteNacional.Aveiro:GrémioModerno,1883.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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se comoum incontornável contributo ao nível da identificação e inventariação do

patrimóniocultural,artísticoearquitectónicodaÍndia.

Por isto, os estudos conduzidos pelos historiadores portugueses incidem

sobretudo na arquitectura religiosa e militar e nas artes decorativas do Estado

Português da Índia, colocando em perspectiva uma realidade extensiva à da

metrópoleeuropeiaqueprocuradarparticularênfaseàsraízesculturaisportuguesas

nocontinenteasiático.Nestecontexto, logoduranteadécadade30,Reynaldodos

Santos publica um pequeno estudo sobre a influência do império nas artes em

Portugal5.

Durante este período, num panorama dominado por uma historiografia de

carácter nacionalista, apenasMariaMadalena de Cagigal e Silva se distanciou de

umaabordagemestreitamenteligadaàsartesdoImpérioPortuguêseemparticular

do universo artístico da Índia em geral e de Goa em particular. Em 1946, Maria

Madalena de Cagigal e Silva apresentou a sua tese de licenciatura à Faculdade de

LetrasdaUniversidadedeLisboa,ondeestudouasRelaçõesartísticasentrePortugal

e a China (séculos XVI a XVIII). Este estudo incide, de uma forma geral, sobre a

influência da porcelana chinesa em Portugal e na Europa, do ponto de vista da

forma,técnicaedadecoração6.

Apartirdadécadade1950,organizaram‐seumasériedeexposiçõessobrea

ArteSacraMissionária,em1951,noMosteirodosJerónimos.Em1963organizou‐se,

noMuseuNacionalMachadoCastro,aExposiçãodearteportuguesaeultramarina,

evidenciandoaimportânciadaartecristãnocontextodasmissões.

5ReynaldodosSantos.“Ainfluênciadoimpérionasartes”.IN:AltaCulturalColonial.Lisboa:AgênciaGeraldoUltramar,1936,pp.363‐373.6MariaMadalenadeCagigal.RelaçõesartísticasentrePortugaleaChina:séculosXVI‐XVIII.Lisboa:Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Tese de Licenciatura em Ciências Históricas eFilosóficasapresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa,1946.Idem.Elementosparao estudo da influência oriental na decoração da cerâmica portuguesa: séculos XVI ‐ XVIII. Porto:SeparatadeCiênciasHistóricaseFilológicas,Nº8,1950.

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Introdução.Otemaeométodo

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No Museu Nacional de Arte Antiga desenvolveram‐se os primeiros estudos

sobre a colecção de proveniência asiática7 e realizaram‐se importantes exposições

que procuraram, de algum modo, desenvolver investigação de uma forma

transversal sobre as relações artísticas entre Portugal e a Ásia, juntando vários

investigadores.

Sob a direcção de João Couto, foi noMuseuNacional deArteAntiga que se

organizou, em1954, a exposição Portugal na Índia, na China e no Japão: relações

artísticas, comissariada por Maria José de Mendonça. Em 1957, um conjunto de

especialistas,constituídoporJoãoCouto,DiogodeMacedo,A.CardosoPinto,Mário

Tavares Chicó, Maria José de Mendonça, Abel de Moura, Carlos de Azevedo e

AntónioManuelGonçalves organizarama exposição Influências do orientenaarte

portuguesa continental: a arte nas províncias portuguesas do ultramar,

complementada com a reunião científica no III Colóquio Internacional de Estudos

Luso‐Brasileiros8.

Em1951,MárioTavaresChicópublicouumestudosobreaarteearquitectura

religiosa emGoa e do património aplicado à arquitectura das igrejas emGoa9, no

seguimento de uma viagem de dois meses que realizou a Goa, Damão e Diu,

7 JoãoCouto.Algunssubsídiosparaoestudotécnicodaspeçasdeourivesarianoestilodenominadoindo‐português : três peças de prata que pertencem ao Convento do Carmo de Vidigueira. Lisboa:SociedadeNacionaldeTipografia,1938,pp.35‐49.Publicaçãonoâmbitodoprimeirocongressodehistória da expansão portuguesa. Idem.A prataria indo‐portuguesa: elementos decorativos. Lisboa:Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar, 1956. Maria José de Mendonça.Algunstiposdecolchasindo‐portuguesasnacolecçãodoMuseudeArteAntiga.SeparatadoBoletimdoMuseuNacionaldeArteAntiga.Lisboa,Vol.II,no2,1949,pp.1‐21.SobreaactividadedoMNAAnoestudodasartesorientais, eemparticulardoestudoda colecçãodeartenamban,Cf.MariadaConceição Borges de Sousa. “The Namban collection at the Museu Nacional de Arte Antiga. ThecontributionofMariaHelenaMendesPinto”IN:TheBulletinofPortuguese/JapaneseStudies.Lisboa‐2006,nº12,UniversidadeNovadeLisboa,pp.57‐77.8AA.VV.“InfluênciasdoOrientenaarteportuguesaContinental.AartenasprovínciasportuguesasdoUltramar”.IN:IIIColóquioInternacionaldeEstudosLuso‐Brasileiros.Lisboa:MNAA,1957.9 Mário Tavares Chicó. “Aspectos da arte religiosa da Índia Portuguesa”. IN: Boletim geral doUltramar.‐Ano27º,nº318(Dezembrode1951),p.119‐140.Idem.AigrejadosAgostinhosdeGoaea arquitectura da India Portuguesa. Lisboa: SeparataGarcia de Orta: Revista da Junta dasMissõesGeográficas e de Investigações do Ultramar, (1951) vol. 2, nº 2, p. 233‐240. Idem. A esculturadecorativa e a talha dourada nas igrejas da Índia Portuguesa. Lisboa: Tip. da Emp. Nac. dePublicidade,SeparatadeBelas‐Artes,nº7,1954.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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acompanhado por Carlos de Azevedo e pelo fotógrafo Carvalho Rodrigues, com o

patrocíniodaJuntadasMissõesGeográficasedeInvestigaçõesdoUltramar.Durante

adécadade1950publicouváriostextosqueincidiram,sobretudo,nosaspectosem

torno da arquitectura religiosa e civil na Índia Portuguesa10. Carlos de Azevedo

publica, logo em 1959, um estudo sobre a arte cristã na Índia Portuguesa,

debruçando‐se, pelaprimeiravez, sobreapinturaqueaindaeravisívelemmuitas

das igrejas de Goa11. Mais tarde, traz à estampa um dos seus mais importantes

estudossobreaartedeGoa,DamãoeDiu12,ondediscorreparticularmentesobrea

influência das tradições italianizantes na construção das igrejas na Índia, focando

ainda o recurso aos desenhos de Sebastião Serlio. Sublinha ainda que osmotivos

renascentistasemaneiristassemisturamcomoutrosmotivos indianos,afirmando‐

se a fachada da Igreja de S. Paulo, em Diu, como uma fachada de concepção

perfeitamenteorientalquantoao preenchimentodoespaço,bemcomocartelase

outroselementosocidentaissãotratadosàmaneira indianaeofrisomostra,entre

ostriglifos,arosadoIrão.Identificaaindatrêsfontesdeinspiraçãoquesãopossíveis

verificar nas igrejas indianas entre o Renascimento, Barroco e Rococó: osmotivos

hindus, simples e combinados; e os motivos persas e hindo‐muçulmanos

provenientesdoGuzarateedaÍndiaMogol.

NoXXIIICongressoLuso‐Espanhol realizadoemCoimbra,em Junhode 1956,

MariaMadalenadeCagigaleSilvaapresentouumacomunicaçãoqueconsistirianum

10 Idem.AlgumasobservaçõesacercadaarquitecturadaCompanhiadeJesusnodistritodeGoa:asigrejas, fachadas,plantaeespaço interior.Lisboa:JuntadasMissõesGeográficasede InvestigaçõesdoUltramar,1956.Idem.A“cidadeideal”doRenascimentoeascidadesportuguesasdaÍndia.Lisboa:SeparataGarciadeOrta:RevistadaJuntadasMissõesGeográficasedeInvestigaçõesdoUltramar,N.especial (1956), p. 319‐328. Idem. Igrejas de Goa. Lisboa: Junta das Missões Geográficas e deInvestigaçõesdoUltramar,1956. Idem.“Aarquitecturaindo‐portuguesa”.IN:Colóquio.‐Lisboa‐17,Fev.1962,p.11‐15.11 Carlos de Azevedo.Arte cristã na Índia Portuguesa. Lisboa: Junta dasMissões Geográficas e deInvestigaçõesdoUltramar,1959. Estes estudos foram retomadosapenaspor Vitor Serrãoem1994numvolumedarevistaOceanos.VítorSerrão.“ApinturaantiganaÍndiaPortuguesanosséculosXVIeXVII”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),pp.102‐112.Maisrecentemente,em2008,Vítor Serrão, “Pintura e devoção em Goa no tempo dos Filipes: o mosteiro de Santa Mónica no“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20(2011).12CarlosdeAzevedo.AartedeGoa,DamãoeDiu.Lisboa:ComissãoExecutivado5ºCentenáriodoNascimentodeVascodaGama,1970.

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Introdução.Otemaeométodo

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dosseusprimeirosestudossobreaarteindo‐portuguesa13,que levouàpublicação,

em1965,deumestudoquecolocaemrelaçãoaarteorientaleaarteportuguesa14

e, no ano seguinte, de um extensivo estudo sobre as artes decorativas indo‐

portuguesas,desenvolvendoumaanáliseapartirdetrêsparâmetros:características

gerais; proveniência e significado; e origens e evolução15. No seguimento de uma

influência da historiografia da arte anglo‐saxónica16, que desenvolveu estudos e

exposiçõesdeartesdecorativasqueconsideravamobrasemergentesdeumgosto

europeu da confluência de estilos com arte de outras culturas, Cagigal e Silva

publicou,pelaprimeiravezemPortugal,umestudosobremobiliáriomogol17.

Durantemaisdevinteanos,entreasdécadasde1960e1980,BernardoFerrão

TavareseTávoradáinícioaumanovatendênciadoestudodasrelaçõesentreaarte

portuguesaeaarteoriental,emparticulardaesculturadepequenasdimensõesque

seriadenominadapor imagináriaemmarfim,tratando,pelaprimeiravez,aartede

tradiçãohispano‐filipina18.OsoriginaisestudosdeBernardoFerrãoTavareseTávora

trazem à historiografia da arte portuguesa uma abordagem particularmente

inovadora,sobretudoporsedistanciardosestudoscircunscritosàsartesdecorativas

13MariaMadalenadeCagigaleSilva.Umacomposiçãodaarteindo‐portuguesa.Coimbra:AssociaçãoPortuguesa para o Progresso das Ciências, 1957. Idem.Oratórios indo‐portugueses. O oratório doMuseudeÉvora.Lisboa:SeparataACidadedeÉvora,Nº16/17,1962.14 Idem. Aspectos das relações entre a arte oriental e os objectos denominados de arte popularportuguesa.Lisboa:JuntadeInvestigaçõesdoUltramar,1965.15Idem.Arteindo‐portuguesa.Lisboa:EdiçõesExcelsior,1966.16 O estudo da arte da Índia Mogol e das suas relações com os europeus teve como grandeimpulsionadorStuartCaryWelsh,curadordaexposição“TheartofMughalIndia”naAsianSocietyemNovaYork,em1964.17MariaMadalenadeCagigaleSilva.Obrasdearte indo‐portuguesadecaráctermongólico.Lisboa:SeparatadeGarciadeOrta,númeroespecial,197218BernardoFerrãoTavareseTávora.“CincoimagensdeVirgensIndo‐Portuguesasemmajestade”.IN:Colóquio. nº 43, ‐ Lisboa ‐ Abril, 1967. Idem. “Uma camilha de Menino Jesus indo‐portuguesa daépocadeD.PedroII”.IN:Colóquio.nº45,‐Lisboa‐Outubro,1967.Idem.“Umararaplacademarfimcingalo‐portuguesademotivoalegórico”. IN:GilVicente, 1971. Idem.A imaginária demarfim luso‐orientalnascolecçõesdoPorto.Porto:SeparataoPortoeasDescobertas,1972.Idem.Opresépionaarte indo‐portuguesa.Gil Vicente, 1974. Idem. Imaginária indo‐portuguesa setecentista. Braga:"Bracara Augusta", 1974. Idem. Imaginárias hispano‐filipina e indo‐portuguesa. Gil Vicente, 1974.Idem.Uma extraordinária peça de marfim da arte indo‐portuguesa. Guimarães: Oficina Gráfica daLivrariaCruz,1979.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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e à arquitectura. Caracteriza‐se, ainda, por uma tentativa de identificação da arte

luso‐oriental remanescente do contacto dos europeus com as diversas culturas

asiáticas,distinguindo,pela primeiravez,uma imaginária sino‐portuguesa, cingalo‐

portuguesa, nipo‐portuguesa, fora da atribuição tradicional da designação indo‐

portuguesa e estabelecendo paralelos com as imagens de Malines e outros

protótipos flamengos19. Em 1983, a edição póstuma da Imaginária Luso‐Oriental,

publicadasobosauspíciosdoComissariadoparaaXVIIExposiçãoeuropeiadeArte

CiênciaeCultura,constituiu,emgrandemedida,umestudodeprofundidadesobrea

imaginária emmarfim de origem asiática. Nesta obra, Bernardo Ferrão Tavares e

TávoradefineaimagináriadoOrientePortuguêscomoaquela“quefoiesculpidano

Extremo Oriente por artesãos locais, inicialmente sob a égide das missões

portuguesas,copiandoprotótiposocidentais,inspirando‐senelesourecriando‐osem

variantes próprias, mas utilizando materiais e técnicas locais e actuando sob o

influxo da etnia e dos cânones das artes e religiões ancestrais dos países

respectivos”20. Bernardo Ferrão critica quer os parcos estudos consagrados à

imagináriaindo‐portuguesa,querasuarepresentaçãonasexposiçõesdeartesacra

metropolitanarelativasàs“interdependênciasdasartesecivilizaçõesdePortugale

doOriente,queexibiamsempreosmesmosexemplaresescolhidosentreMuseuse

grandes colecçõesparticulares” 21. Ema Imaginaria Luso‐Oriental,BernardoFerrão

conduz um inventáriodemais deduasmilpeçasemmarfimqueestudaà luzdas

suas próprias características comparando‐as comoutros paralelos euro‐orientais e

agrupando por zonas de produção, cronologia e classificação iconográfica, sob o

pontodevistaestéticoehistórico,deformaaperceberasuaevoluçãoestilísticae

permeabilização cultural. Contudo, e apesar do incontornável contributo de

BernardoFerrãoTavareseTávora,ficouaindaa faltaroestudoda imaginárialuso‐

oriental à luz“dos cânonesdasartese religiõesancestraisdospaíses respectivos”,

19Idem.Umtrípticosino‐Portuguêsdemarfim.Guimarães:SeparataGilVicente,2ªSérie,Nº23,1972.Idem.Virgenssino‐portuguesasdemarfim.Guimarães:OficinaGráficadaLivrariaCruz,1979.20Idem.ImagináriaLuso‐Oriental.Lisboa:IN‐CM,ColecçãoPresençasdaImagem,1983,p.13.21Op.Cit.,p.13‐14.

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Introdução.Otemaeométodo

15

remetendo‐se a uma análise das peças de carácter formal e de tecnologia dos

materiais,tendoaindaoportunidadedeintroduzirconceitosecategoriasdeacordo

comtipologiasiconográficasecronológicas.

Entretanto,em1980,MariaHelenaMendesPintofoicomissáriadaexposição

DeGoaaLisboa,totalmentededicadaàarte indo‐portuguesaequefoiorganizada

deformacomplementarao IISeminário InternacionaldeHistória Indo‐Portuguesa.

Noanoseguinte,MariaHelenaMendesPintofoitambémacomissáriadaexposição

ArteNamban,promovidapelaFundaçãoCalousteGulbenkian,numaparceriacomo

MuseuNacionaldeArteAntiga,constituindoemlargamedidaoprimeiroestudodas

relaçõesartísticasentrePortugaleoJapão,caracterizandoatipologiadosobjectos,

adimensãocomercialdopequenomobiliárioeaemergênciadeobjectosdecarácter

utilitárioassociadoàsmissõesjesuítas.Foiaindanasequênciadestaexposiçãoque

publica,em1986,oseuestudosobreosBiombosNamban22.

OfactodeoComissariadoconstituídoparaaXVIIExposiçãoeuropeiadeArte

CiênciaeCulturaterpublicadoaobrapóstumadeBernardoFerrãoTavareseTávora

é revelador de uma clara intenção de ruptura com uma perspectiva nacionalista

procurando, pelo contrário, “retratar as repercussões profundas das descobertas

portuguesas na Europa quinhentista”23, através de uma análise transversal do

conhecimentoemergentetantoaonívelcultural,artísticoecientífico.

AComissãodaXVIIExposiçãoeuropeiadeArteCiênciaeCultura,presididapor

Pedro Canavarro, reuniu vários historiadores com vista à organização de um

conjunto de seis exposições, espalhadas por vários locais, com o tema Os

Descobrimentos portugueses e a Europa do Renascimento. A Exposição foi

estruturadaemcinconúcleosdistribuídosaolongodazonaribeirinhadacidadede

Lisboa, no Convento daMadre de Deus, na recém‐restaurada Casa dos Bicos, no

MuseuNacionaldeArteAntiga,noMosteirodosJerónimosenaTorredeBelém.

22MariaHelenaMendesPinto.BiombosNamban.Lisboa:MuseuNacionaldeArteAntiga,1986.23 Decreto‐Lei n.º 374/82 de 11 de Setembro, que constitui a criação do comissariado para a XVIIExposiçãoeuropeiadeArte,CiênciaeCultura.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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O núcleo coordenado por Luís de Albuquerque, Avelino Teixeira daMota e

Maria HelenaMendes Pinto apresentou, noMosteiro dos Jerónimos, a exposição

“Cumpriu‐se o mar. A arte na rota do Oriente”, que procurou, sobretudo, incidir

sobre a diversidade artística emergente do encontro de culturas em toda a sua

extensão geográfica, considerandoomobiliário, a joalharia, a pintura, e os têxteis

religiosos e profanos, provenientes não só das colecções dos museus nacionais,

comotambémdereconhecidosmuseusinternacionaisedecolecçõesparticulares.A

exposição iniciava‐se com um sector dedicado à cartografia, aos desenhos de

construção e arquitectura naval e ao urbanismo; seguia‐se a referência à arte

africanaeàarteindo‐portuguesa,combasenaproduçãoemmarfim,inclundouma

sala reservadaaomobiliário, abrangendo tambémaourivesaria indo‐portuguesae

osretratosdedoisdosvice‐reisdaÍndia.NoRefeitório,encontravam‐seexpostosos

objectosdearteNambanechinesa,enquanto,naSaladoCapítulo,seexpunhamos

objectos e literatura de índole missionária. Existia, ainda, uma sala dedicada à

imaginária luso‐oriental com figuras e placas emmarfim estudadas por Bernardo

FerrãoTavareseTávora.

O Heras Institute de Bombaim organizou uma série de seminários

internacionaissobreHistóriaIndo‐Portuguesa,poriniciativadoseudirectoropadre

JesuítaJ.C.Alfonso.EstessemináriosdecorreramnãosóemGoa(1978,1983,1994,

2003),comotambémemLisboa(1980,1985),Cochim(1989),Macau(1991),Angra

do Heroísmo (1996), Nova Deli (1998) e Salvador da Bahia (2000). Em 2006 foi

organizado em Lisboa, pelo CHAM, em colaboração como Centro de Estudos dos

povoseculturasdeexpressãoportuguesadaUniversidadeCatólicaPortuguesa,oXII

Seminário InternacionaldeHistória Indo‐Portuguesa,dedicandoumadas linhasde

trabalho às “representações culturais e artísticas: cidades, entrepostos e saberes”.

Apesardisso,édenotarque,noconjuntodetrintaenovecomunicaçõesnosquatro

diasdeconferência,nãohouveumúnicotemadesenvolvidonocontextodahistória

daarte.

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Introdução.Otemaeométodo

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Estes seminários internacionais revelaram avanços significativos no

conhecimentohistóriconãosódapresençaportuguesana Índia,comotambémde

missionárioseuropeus queaí chegavamnas frotasportuguesas.Os contributosde

várioshistoriadores,entreosquaisLuísdeAlbuquerque,C.R.Boxer,ArturTeodoro

deMatos, JoséWicki, Geneviève Bouchon, John Correia‐Afonso, Isaú Santos, Luís

Filipe Thomaz, Teotónio R. De Souza e Luís Filipe Barreto, constituem alguns dos

alicercesapartirdosquaisaindahojeoshistoriadoresdeartedesenvolvemosseus

estudos.Seráaindaimportantereferiroscontributosdestesseminários,aonívelda

históriadaarte,defigurascomoJoséPereiraeMariaMadalenadeCagigaleSilva.

Na sequência do sucesso do empreendimento cultural e científico resultante

da XVII Exposição europeia de Arte, Ciência e Cultura é constituída, em 1986, a

Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses com o

objectivodeorganizarascelebraçõesdealgumasdasefemérides,entreasquais“a

passagemdocabodaBoaEsperança(1487),achegadaàÍndia(1498)eadescoberta

doBrasil(1500)”24.SobacoordenaçãodaComissãoNacionalparaaComemoração

dos Descobrimentos Portugueses foi organizado um vasto conjunto de exposições

quecolocavamnovasperspectivassobreasrelações interculturaisentrePortugale

osNovosMundos,algumasdasquaisconsagradasemexclusivoàsrelaçõesartísticas

eàemergênciadenovosestilosresultantedasinfluênciasmútuasentreaEuropaea

Ásia25.Apublicaçãodecatálogosdasexposições,bemcomoapublicaçãodarevista

Oceanoscomnovosestudosdesenvolvidosporhistoriadoresdeartenaperspectiva

de umanova historiografia, caracterizada por uma sistematizaçãometodológica e

24Decreto‐Lein.º391/86,de22deNovembro25 Francisco Hipólito Raposo (coord.). A expansão portuguesa e a arte do marfim. Lisboa: FCG /CNCDP,1991; FranciscoFaria (coord.)TapeçariasdeD. JoãodeCastro. Lisboa:CNCDP/ IPM,1995;Pedro Dias (coord.). Reflexos: símbolos e imagens do Cristianismo na porcelana chinesa. Lisboa:CNCDP,1996;MafaldaSoaresCunha(coord.).Artedomarfim:Lisboa:CNCDP,1998;MariaRosaPerez(coord.). Culturas do Índico. Lisboa: CNCDP, 1998; Fernando António Baptista Pereira (coord.). Domundoantigoaos novosmundos:humanismo, classicismoenotíciasdosdescobrimentosemÉvora,1516 ‐ 1624. Lisboa: CNCDP, 1998; Jorge Manuel Flores (coord.). Os construtores do OrientePortuguês. Lisboa: CNCDP, 1998; Artur Teodoro deMatos (coord.).Espaços de um Império. Lisboa:CNCDP,2Vol.,1998;AnaMariaRodrigues(coord.).OorientalismoemPortugalséc.XVIaXX.Porto:CNCDP/Inapa,1999.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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por uma dialéctica transversal que contempla a continuidade dos estudos

conduzidosporMariaHelenaMendesPinto26.

NoâmbitodaEuropália91,umfestivalculturalquetinhaPortugalcomopaís‐

tema, foramorganizadas várias exposições ilustrativas da expansão portuguesa na

Ásia, entre as quais aVia Orientalis eDe Goa a Lisboa, ambas comissariadas por

MariaHelenaMendesPinto27.

Durante a década de 1990, Pedro Dias desenvolveu, pela primeira vez, um

estudosistemáticodaarteportuguesanomundo,procedendoaum levantamento

documentalqueserefereàcirculaçãodeobrasdearteeuropeiaemÁfrica,noBrasil

e nos diferentes países daÁsia. Por outro lado, elabora umextenso inventário do

legadoartísticodaarteportuguesana sua relaçãocomasartesdosoutrospovos,

abordando não só a pintura e a escultura, mas também a arquitectura religiosa,

militarecivil,ourbanismo,aourivesaria,ostêxteis,omarfim,etc.Osdoisvolumes

da sua História da arte portuguesa no mundo, que vai de 1415 a 1822 entre o

Atlântico e o Índico, constituem o único estudo que apresenta uma perspectiva

globaldaarte subsequenteaosDescobrimentos portugueses.Publica,emdiversos

volumes,osestudossobreaartedePortugalnoMundo,comparticular incidência

no inventário da pintura, do mobiliário, da joalharia, das artes decorativas, da

arquitecturaedourbanismo28enolevantamentodocumentalreferenteaartistase

obrasdearte.Em2009voltoua publicarumextensoestudo,emquinzevolumes,

sobre aArte de Portugal noMundo, que recebeu o reconhecimento científico da

26MariaHelenaMendes Pinto. LacasNamban emPortugal: Presença portuguesa no Japão. Lisboa:Inapa,1990;Idem.ArteNamban.OsportuguesesnoJapão.Lisboa:MNAA/FundaçãoOriente,1990;Idem.MuseudeArteSacraIndo‐PortuguesadeRachol.Lisboa:FCG:2003.27 Maria Helena Mendes Pinto (coord.). Via Orientalis. Bruxelas: Europália, 1991; Idem. De Goa aLisboa:L’ArtIndo‐PortugaisXVIe‐XVIIesiècles.Bruxelas:Europália,1991.28PedroDias.Aviagemdasformas:estudossobreasrelaçõesartísticasdePortugalcomaEuropa,aÁfrica,oOrienteeasAméricas.Lisboa:EditorialEstampa,1995.Idem.HistóriadaArtePortuguesanoMundo (1415 ‐ 1822). Lisboa: Círculo de Leitores, 2 volumes, 1998 e 1999; Idem, Arte indo‐portuguesa.CapítulosdaHistória.Coimbra:Almedina,2004 (Estevolumeconstituiumacompilaçãode vários estudos publicados anteriormente em actas de conferências e catálogos de exposições);Idem, A arquitectura e a urbanização dos portugueses emMacau (1557 ‐ 1911). Lisboa: PortugalTelecom,2005.Idem.ArtedePortugalnoMundo.Lisboa:Público,15volumes,2009.

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Introdução.Otemaeométodo

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Fundação Calouste Gulbenkian, pela atribuição do Prémio História Portuguesa no

Mundo.

Por sua vez, Vítor Serrão desenvolveu, mais recentemente, estudos sobre a

pinturaemGoaqueaindahojepermanecemnasigrejaseconventosdeGoaVelha,

na esteira dos estudos de pintura publicados por Carlos de Azevedo29. O

levantamento documental que realizou no Arquivo Histórico de Goa permitiu a

identificação de alguns mestres de pintura e de imaginária, aparentemente de

origemindiana.

Na esteira dos trabalhos de João Couto, Nuno Vassallo e Silva desenvolve

estudossobreajoalhariaeourivesariadeinfluênciaorientalnaconcepçãodealfaias

litúrgicas,comissariandováriasexposiçõesrelacionadascomapresençaportuguesa

nãosónaÍndia,comotambémemMacauenoJapão30.

Maria Antónia Pinto Matos estudou amplamente a cerâmica chinesa de

exportaçãoparaosmercadoseuropeus,asuaimportâncianascolecçõesprivadase

aindaasuaformademiscigenaçãodaporcelanadeiconografiacristã31.

29VítorSerrão.“ApinturaantiganaÍndiaPortuguesanosséculosXVIeXVII”. IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),pp.102‐112.JánesteartigoVítorSerrãoalertouparaaimportânciaemretomar os estudos da campanha Chicó / Azevedo da década de 50 e que apenas recentemente(2008)foramretomadospelopróprioaoabrigodeumabolsadecurtaduraçãodaFundaçãoOriente.Cf.VítorSerrão.“AartedapinturanoMosteirodeSantaMónicaemGoa(1611‐1640)”.IN:ActasdoColóquio InternacionalArtesDecorativaseaExpansão Portuguesa. Lisboa:EscolaSuperiordeArtesDecorativas(noprelo).30NunoVassalloeSilva(coord.).NocaminhodoJapão:arteorientalnascolecçõesdaSantaCasadaMisericórdia de Lisboa. Lisboa: SCML, 1993. Idem. A Herança de Rauluchantim. Lisboa: CNCDP /MuseudeSãoRoque/SantaCasadaMisericórdiadeLisboa,1996. Idem.Opúlpitoea imagem.OsJesuítaseaArte.Lisboa:SCML/MuseudeS.Roque,1996. Idem.“Obrasda ÍndianasMisericórdiasPortuguesas”. IN:Oceanos. ‐ Lisboa ‐nº35 (Julho ‐ Set.1998),pp.123 ‐ 132. Idem. “Missionsandmerchants: Christian art inMacao”. IN:Oriental Art. ‐ London ‐ vol. XLVI, nº 3 (2000), pp. 84 ‐ 91.HelmutTrnekeNunoVassalloeSilva(coord.).Exotica:osdescobrimentosportugueseseascâmarasdemaravilhas do Renascimento. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2001; Jorge Flores e NunoVassalloeSilva(coord.).GoaeoGrãoMogol.Lisboa:FCG,2004.Em2005apresentaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeCoimbra,soborientaçãodePedroDias,tesededoutoramentocomotítulo“Emuyricapratafina,debastiãesbemlavrados:aourivesariaentrePortugaleaÍndia,doséculoXVIaoséculoXVIII.31MariaAntóniaPintoMatos.“Porcelanasdeencomenda:históriasdeumintercâmbioculturalentrePortugaleaChina”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº14(Junho1993),pp.40‐56.MariaAntóniaPintoMatoseJoãoPedroMonteiro.AinfluênciaorientalnacerâmicaportuguesadoséculoXVII.Lisboa:Sociedade

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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FernandoAntónioBaptistaPereira,em1992,numcapítulodedicadoàs“Artes

Miscigenadas” num estudo sobre a arte portuguesa entre os séculos XVI a XVIII,

referiaque“OencontroentreoOcidenteeoOriente,entreaEuropaeaÁfrica,entre

Portugal e a Índia ou entre os Europeus e o Extremo‐Oriente materializou‐se em

realizaçõesartísticasclaramentemiscigenadas:hámestiçagemaoníveldasformase

dos materiais juntam‐se as contaminações funcionais e simbólicas. O jogo de

aculturações derivado de uma presença colonizadora e missionária ou de meros

contactoscomerciais,quedinamizaramosmercados locais,noOriente,ouasrotas

intercontinentais, produziu simbioses de formas ou de conteúdos religiosos,

adaptaçõesde funções,ou simplesmente,a criaçãodenovasnecessidadesdavida

quotidiana (...)”32. De uma forma muito sumária discorre sobre uma relação

intrínsecaentrea formaea funçãodasartesmiscigenadas, remanescentesdeum

contactoculturalereligioso,eondeosmotivoshinduseamitologiagreco‐latinase

combinam.Desenvolveu,também,osprimeirosestudossobreaarteearquitectura

jesuíta em Macau e as relações artísticas luso‐chinesas, tendo estado envolvido

como autor da programação museológica das Ruínas de S. Paulo em Macau, do

MuseudaIgrejadeS.DomingosemMacau,doMuseudeMacauedoSemináriode

S. José, também emMacau, e,mais recentemente, na concepção e programação

museológicasdoMuseudoOriente,emLisboa33.

Lisboa 94, 1994.Maria Antónia PintoMatos (coord.).A casa das porcelanas. Cerâmica chinesa daCasa‐MuseuAnastácio‐Gonçalves.Lisboa:IPM,1996.MariaAntóniaPintoMatos.“Chineseporcelaininportuguesepubliccollections”.IN:OrientalArt.‐London‐Vol.XLVI,nº3(2000),pp.2‐12.Idem.“Macaoandtheporcelainforportuguesemarket”.IN:OrientalArt.‐London‐Vol.XLVI,nº3(2000),pp. 66 ‐ 75.Maria Antónia PintoMatos (coord.).Azul e Branco da China. Porcelana ao tempo dosDescobrimentos. Lisboa: IPM, 1997. Maria Antónia Pinto Matos. Porcelana chinesa da FundaçãoCarmona e Costa. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002. Idem. Porcelana chinesa na colecção CalousteGulbenkian.Lisboa:FCG,2003.32 Fernando António Baptista Pereira.História da Arte Portuguesa. Época Moderna (1500 ‐ 1800).Lisboa:UniversidadeAberta,1992,pp.225‐226.33 Fernando António Baptista Pereira. “Ocidente e Oriente na Obra Jesuítica de S. Paulo,Macau”.Separata de CongressoHistórico sobreMissionação, Lisboa,Universidade Católica, 1993. FernandoAntónio Baptista Pereira (coord.).Macau. As Ruínas de S. Paulo. Um monumento para o futuro.Macau: Instituto Cultural de Macau / Missão de Macau em Lisboa, 1994. Idem. “A Acrópole deMacau.OComplexoReligioso,CulturaleMilitardaCompanhiadeJesus”. IN:AA.VV.UmMuseuemEspaçoHistórico.AFortalezadeS.PaulodoMonte.Macau:MuseudeMacau,1998,pp.14‐55.Idem.

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Introdução.Otemaeométodo

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Annemarie Jordan Gschwend desenvolveu os estudos sobre o interesse

europeu nasmaravilhas do Oriente, dos naturalia e artificialia que chegavam ao

kunstkammer de Catarina da Habsburgo e, através de Lisboa, às principais cortes

europeias34.Em2010,foicomissáriadaexposiçãoIvoriesfromCeylonLuxuryGoods

from the Renaissance, que apresenta em Zurique alguns dos objectos da colecção

dessarainhadePortugal,irmãdeCarlosV.

Aoníveldaarquitectura,JoséPereirapublicouem1995,emNovaDelhi,oseu

estudoBaroqueGoa:thearquitectureofportugueseÍndiae,em2001,emBombaim,

emcolaboraçãocomPratapadityaPalpublicaIndia&Portugal:Culturalinteractions,

ondedesenvolvea ideiada relação formalentrealgunselementosdaarquitectura

dasigrejascristãscomelementosdaarquitecturareligiosahindu.

HélderCaritadesenvolveuestudosnãosónoâmbitodaarquitecturacivil,mas

tambémreligiosanaconfluênciadeestilosentrePortugalea Índia, tantoemGoa

como nas zonas envolventes, resultado daí a investigação para tese de

doutoramentopublicadarecentemente35.

“Arquitectura "Chã" e Ornamentação interior nas Igrejas Portuguesas do Oriente (séculos XVII eXVIII)”.IN.AA.VV.OsConstrutoresdoOrientePortuguês.Porto:CNCDP,1998,pp.167‐193.Idem.OsFundamentos da Amizade. Cinco Séculos de Relações Culturais e Artísticas Luso‐chinesas. Lisboa:Centro Científico e Cultural de Macau / Instituto Cultural de Macau, 1999. Idem. “A conjecturalreconstruction of the church of the College ofMater Dei”. IN: J.W.Witek S.J. (org.),Religion andCulture.An InternationalSymposiumCommemoratingtheFourthCentenaryoftheUniversityCollegeofSt.Paul.Macau:InstitutoCulturaldeMacau/RicciInstitute,1999,pp.203‐243.FernandoAntónioBaptista Pereira (coord.). Presença Portuguesa na Ásia. Memórias. Testemunhos. Coleccionismo.Lisboa:FundaçãoOriente,2008.34 Annemarie Jordan Gschwend. Portuguese Royal collections, 1505 ‐ 1580. A bibliographic anddocumental survey. Washington: Dissertação de Mestrado apresentada à George WashingtonUniversity,1981.Idem.“CatarinadeÁustria:colecçãokunstkammerdeumaprincesarenascentista”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐(1993),nº16.Idem.ThedevelopmentofCatherineofAustria'scollectionintheQueen's household: Its character and cost. Michigan: Dissertação de doutoramento apresentada àBrownUniversity,1994. Idem. “Inthetraditionofprincelycollections: curiositiesandexótica inthekunstkammer of Catherine of Austria”. IN: Bulletin of the Society for Renaissance Studies, nº 13(October), 1995. Idem. “As maravilhas do Oriente: Colecções de curiosidades renascentistas emPortugal.IN:NunoVassalloSilva(coord.).AHerançadeRauluchantim.Lisboa:CNCDP/MuseudeSãoRoque/SantaCasadaMisericórdiadeLisboa,1996,pp.82‐127.35 Hélder Carita. “Arquitectura civil indo‐portuguesa: génese e primeirosmodelos”. IN:Oceanos. ‐Lisboa ‐ nº 19‐20 (Set. Dez. 1994), pp. 114 ‐ 135. Idem. Palácios de Goa:modelos e tipologias dearquitectura civil indo‐portuguesa. Lisboa: Quetzal Editores, 1995. No seguimento da investigação

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Nos últimos anos, os estudos sobre as relações artísticas entre a Europa e a

Ásia têm sido desenvolvidos no âmbito de dissertações de mestrado ou de

doutoramento, como é o caso de Cristina Osswald que, em 1997, apresentou à

FaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPortoasuadissertaçãodemestradosobrea

representação do Bom Pastor na imaginária indo‐portuguesa e tem, desde aí

continuado os estudos sobre a imaginária em marfim e da arte jesuíta em Goa.

Recentemente,apresentoutesededoutoramentonoInstitutoUniversitárioEuropeu

emFlorençasobreaartejesuítaemGoa36.

AlexandraCurvelo,que jáhaviadesenvolvidouma tesedemestrado sobreA

imagem do Oriente na cartografia portuguesa do século XVI, defendeu,

recentemente,umatesededoutoramentosobreaemergênciadaartenambanea

suadifusãonaChinaenaspossessõesespanholasdaAméricadoSul,demonstrando

queaacçãodosmissionáriosaliadaaocomércionosNovosMundosdinamizouuma

circulaçãodosobjectosartísticosaumadimensãoglobal37.

Ainda em 2008, Sofia Diniz apresentou dissertação de mestrado sobre a

arquitectura jesuíta no Japão entre 1549, com a chegada de Francisco Xavier ao

arquipélago,e1614,dataemque foipublicadooéditodeexpulsãodoscristãos38.

Nesteestudorecorreadocumentaçãoproduzidapelospadresjesuítas,ondeprocura

para tese de doutoramento em História da Arte Moderna (História da Arquitectura e Urbanismo)publicaArquitecturaindo‐portuguesanaregiãodeCochimeKerala.NewDelhi:Transbooks,2008.36 Maria Cristina Osswald. O Bom Pastor na imaginária indo‐portuguesa em marfim. Porto:DissertaçãodeMestradoemHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto, 1997. Idem. Jesuit Art inGoa between 1542 and 1655: FromModoNostro toModo Goano.Florença:TesedeDoutoramentoapresentadaaoInstitutoUniversitárioEuropeu,2003.37 Alexandra Curvelo. A imagem do Oriente na cartografia portuguesa do século XVI. Lisboa:DissertaçãodemestradoemHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboa,1995.Idem.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.AartenambaneasuacirculaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:TesededoutoramentoapresentadaaoDepartamentodeHistóriadaArtedaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008.38 Sofia Diniz. A arquitectura da Companhia de Jesus no Japão. A criação de um espaço religiosocristão no Japão dos séculos XVI e XVII. Lisboa: dissertação de mestrado em História da ArteapresentadaàFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboa,2008.

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Introdução.Otemaeométodo

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uma descrição dos espaços religiosos e da sua permeabilidade às estruturas

arquitectónicastradicionaisdoJapãodoséculoXVIeXVII.Poroutrolado,recorreà

iconografia, em particular à representação dos edifícios jesuítas presentes nos

biombos,umavezqueamaiorpartedaarquitecturajesuítapereceucomotempo.

O interesse da historiografia internacional pelas relações artísticas entre o

OcidenteeoOrientetemporbaseosentimentodeexotismoexercidopelaÁsiaque

écaracterísticodofinaldoséculoXIXefoi,sobretudo,motivadopelasimportantes

descobertas de exploradores e arqueólogos comoAurel Stein e Paul Pelliot. É, de

facto,aosinólogofrancêsqueseatribuiumdosprimeirosestudossobreaartecristã

naÁsia39.

NaesteiradasexposiçõescomissariadasporStuartCaryWelch40eporMiloC.

Beach41,aemergênciadateoriapós‐colonialistadeu lugaraumavastabibliografia

sobre a história, antropologia e arte resultante dos contactos entre a Europa e o

Mundo42.

Diversos historiadores de arte de diferentes países, comoMichael Cooper43,

Emma Devapriam44, Michael Sullivan45, Fernando Garcia Gutierrez46, Lauren

39PaulPelliot.“LapeintureetlagravureeuropéenesenChineautempsdeMathieuRicci”.IN:T’oungPao,20,series2(1921),pp.1‐18.40 The Art ofMughal India (Asia Society, 1964); Gods, Thrones, and Peacocks (Asia Society, 1965);IndianDrawingsandPaintedSketches: 16thThrough19thCenturies (AsiaSociety, 1976);Room forWonder:IndianpaintingduringtheBritishPeriod(1760‐1880)(AmericanFederationofArts,1978);India!ArtandCulture:1300‐1900(MetropolitanMuseumofNewYork,1985);TheEmperors'Album:ImagesofMughalIndia(MetropolitanMuseumofNewYork,1987).41Milo C Beach. The imperial image: paintings for the Mughal court. Washington: Freer SacklerGallery,SmithsonianInstitution,1981;Idem.TheGrandMogul:ImperialPaintinginIndia1600‐1660ClarkArtInstitute,1978.42 A teoria pós‐colonialista centra‐se na investigação da herança cultural derivada dos contactosculturais entre a Europa e oMundo, sob uma perspectiva não europeísta e antes concentrada nohibridismo, nas identidades tangenciais e nos processos de relação intercultural. Cf. Edward Said.Orientalism.NewYork:VintageBooks,1979.43 Michael Sullivan. “Some Possible Sources of European Influence on Late Ming and Early Ch’ingPainting”.IN:ProceedingsoftheInternationalSymposiumonChinesePainting.Taipei:NationalPalaceMuseum, 1970, pp. 595–625; Idem. The meeting of Eastern and Western Art. From the sixteenthcentury to the present day. New York: New York Graphic Society Ltd, 1973; Idem. “The Chinese

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Arnold47, Gauvin Alexander Bailey48, Elisabeta Corsi49, Arthur Chen50 ou Hui‐Hung

Chen51, apenas paramencionar alguns, desenvolvemestudos sobre os reflexos da

acçãoeinteracçãomissionárianaarteenousodaimagemcristãnaconversãodos

gentios. Desenvolvem os primeiros estudos sobre a arte da Índia Mogol, da

ResponsetoWesternArt”.IN:StudiesintheArtofChinaandSouth‐EastAsia,1(London,1991),311–334.44EmmaDevapriam.TheInfluenceofWesternArtonMughalPainting.Ph.D.ThesispresentedtotheCaseWesternReserveUniversity,1972.45 Michael Cooper (ed.). The Southern Barbarians: the first Europeans in Japan. Tokyo: KodanshaInternational,1971.46 Fernando Garcia Gutierrez. “Artistic Trends in the Meiji Period (1868‐1912)”. IN: MonumentaNipponica.Tokyo:SophiaUniversity,1968; Idem.ASurveyofNambanArt(ArteproducidoenJapónbajo la influencia de las obras llegadas de Occidente en los siglos XVI y XVII"). Tokyo: KodanshaInternational, 1971; Idem. Japón y Occidente: Influencias recíprocas en el arte. Sevilla: EdicionesGuadalquivir, 1990; Idem. San Francisco Javier en el arte de España y Japón. Sevilla: EdicionesGuadalquivir, 1998; Idem. La Arquitectura japonesa vista desde Occidente. Sevilla: EdicionesGuadalquivir,2001.47LaurenArnold.PrincelyGiftsandPapalTreasures:TheFranciscanMissiontoChinaanditsInfluenceon the Art of the West 1250‐1350. San Francisco: Desiderata Press, 1999; Idem. “Folk Goddess orMadonna? Early Missionary Encounters with Guanyin”. IN: Encounters and Dialogues: ChangingPerspectivesonChinese‐WesternExchangesfromtheSixteenthtoEighteenthCenturies,WuXiaoxin,ed.,MonumentaSericaMonographSeries,Vol.LI,SanktAugustin,Nettetal,Germany,2005.48 Gauvin Alexander Bailey. Counter‐Reformation symbolism and allegory inMughal Painting. Ph.D.dissertationpresentedtotheHarvardUniversity,1996;Idem.“TheJesuitsinMughalIndia:Theritualuse of Catholic art in imperialmural painting”. IN:Art Journal, 57, nº 1 (Spring 1998), pp. 24 ‐ 30;Idem.TheJesuitsandtheGreatMughal:RenaissanceartandtheImperialcourtofIndia,1580‐1630.JohnW. O'Malley, Gauvin Alexander Bailey, Steve Harris, and T. Frank Kennedy, eds., The Jesuits:Cultures, Sciences, and the Arts 1540‐1773. Toronto: University of Toronto Press, 2000; GauvinAlexander Bailey,The Jesuits and theGrandMogul: Renaissance Art at the Imperial Court of India,1580‐1630.Washington, Smithsonian Institution,1998; Idem.Arton the JesuitMissions inAsiaandLatinAmerica,1542‐1773.Toronto:UniversityofTorontoPress,2001.49ElisabetaCorsi.“JesuitPerspective inQingCourt”. IN: EncountersandDialogues:PapersfromtheInternationalSymposiumonCross‐CulturalExchangesbetweenChinaandtheWest intheLateMingand EarlyQingDynasties. ZhuoXinping (ed.).Beijing: Zongjiaowenhuachubanshe,2003,pp.418 –450; Idem. “Insegnare la Prospettiva Lineare inCina:Trattati EuropeidiProspettivanella BibliotecadeiGesuitidiBeiTang”.IN:ArchivesInternationalesd’HistoiredesSciences,52(148)(June2002),127–139.Idem.LaFabricaDeLas Ilusiones:LosJesuitasYLaDifusionDeLaPerspectivaLinealEnChina(1698‐1766).México:CentrodeEstudiosdeAsiayÁfrica,ElColégiodeMéxico,2004.50 Arthur Chen. “Macao. An historical imagination in perspective”. IN: Review of Culture ‐Macao ‐(1994),pp.185‐200.Idem.Transportingthe ideaof linearperspective.Macau: InstitutoCulturaldeMacau,col.CadernosdeInvestigação,1998.51 Hui‐Hung Chen. Encounters in peoples, religions and sciences: jesuit visual culture in seventeethcentury China. PhD dissertation, Brown University, 2004; Idem. “A EuropeanDistinction of ChineseCharacteristics:AStyleQuestioninSeventeenth‐CenturyJesuitChinaMissions”.IN:TaiwanJournalofEastAsianStudies,5:1(June2008),13–17.

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Introdução.Otemaeométodo

25

influência da arte cristã na pintura mural dos palácios em Fathepur Sikri e da

proximidadesimbólicaentreoCristianismoeo Islão, revelandouma reciprocidade

de influências artísticas. Dão continuidade ao estudo da acção missionária dos

jesuítasnacorteimperialchinesa,comênfasenaimportânciaqueosimperadoresda

dinastiaMingeiníciodadinastiaQingatribuemàstécnicasdepinturaeuropeias,em

particularaorealismodapinturaaóleo,àperspectiva,àutilizaçãodetrompel’oeile

à tradução para mandarim de muitos dos tratados de pintura e arquitectura

europeus.Aindanocontextodosmissionários jesuítas,discorremsobreasmissões

no Japãoenaproduçãoartísticaemergentedo SemináriodoColégiodos Jesuítas,

onde a escola do pintor jesuíta italianoGiovanniNiccolò, funcionava activamente,

usandomodelosimportadosdaEuropanaformaçãodeartistaslocais.

É interessante verificar, após este levantamento de fortuna crítica, uma

complementaridadeentreosestudosdesenvolvidospelahistoriografiaportuguesa,

quefocam,emlargamedida,osaspectosmaisarreigadosàpersençaportuguesana

Índia e ao comércio na China, ao passo que a historiografia internacional se

caracterizaporumaperspectivamaisglobalizanteefocadanodiálogointercultural.

Todavia, não poderemos deixar de referir que urgia realizar um estudo de

profundidade que analise, de uma forma transversal, a extensão geográfica e

cronológica de uma problemática global, indo além de uma identificação das

relações da arte sagrada na Ásia. A partir destes estudos fundamentais tornou‐se

indispensável avançar para o entendimento dos processos de confluência e

alteridadeartísticaqueaartecristãfaztransparecernumapermanenteinteracçãoe

comunicaçãocomdiferentesrealidadesreligiosaseimagináriasdosagrado.Éoque

tentamosfazernaspáginasqueseseguem.

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27

2. Adefiniçãodométodo.Paraumadialécticadosprocessosdealteridadeeconfluênciadaartereligiosa

[A imaginária luso‐oriental éaquela] “que foi esculpidanoExtremoOrientepor

artesãos indígenas, inicialmente sob a égide dasmissões portuguesas, copiando

protótiposocidentais, inspirando‐senelesourecriando‐osemvariantespróprias,

masutilizandomateriaisetécnicaslocaiseactuandosoboinfluxodaetniaedos

cânonesdasartesereligiõesancestraisdospaísesrespectivos”1.

Oestudoquenospropomosdesenvolversobreaalteridadeeconfluênciada

artecristãna Índia,ChinaeJapãoentreosséculosXVIeXVIIIconstitui,dealguma

forma,umtrabalhodecontinuidadedainvestigaçãoqueconcluímosemdissertação

demestrado,apresentadaàFaculdadedeBelas‐ArtesdaUniversidadedeLisboaem

2006, sobreosmodelosdidácticosnapintura portuguesadoRenascimento.Nesse

estudoprocurámos,emgrandemedida, combasena literaturadeespiritualidade,

entender o espírito cultural da época, de onde emergem a idea e os significados

intrínsecos da pintura executada com o propósito específico de, em alguns casos,

serviradevoçãopessoaloucolectiva,emoutros,ainstruçãodashistóriassagradas

atravésdasnarrativas retabularese, ainda também,aencomendadepintura com

vistaàcontemplaçãoedificantedeumcleroletrado,ouemformação.

É neste sentido que falamos em continuidade, na ideia de que a arte e as

imagenssagradasencontram,apartirdo iníciodoséculoXVI,nasmissõesdaÁsia,

umcampo fértil comomecanismode formação culturalde uma tradição religiosa,

queas culturasda Índia,daChinae, sobretudo, do Japão ignoravampraticamente

porcompleto.EnquantonoJapãoocontactodirectocomaiconografiacristãapenas

1BernardoFerrãoTavareseTávora.ImagináriaLuso‐Oriental.Lisboa:IN‐CM,ColecçãoPresençasdaImagem,1983,p.13.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

28

se concretizou no final da primeirametade do século XVI, na Índia e na China os

cristãos nestorianos e osmissionários franciscanos deixaram um legado cultural e

artístico relativamente significativo. No contexto das missiões católicas que

decorrem a partir do século XVI, estas imagens têm também uma importância

fundamental enquanto suporte para uma edificação espiritual dos missionários

afastadosdeumaEuropacristãeexpostosaogentilismoeaos ídolosdas religiões

gentias.

O carácter inédito e original deste estudo concentra‐se em torno de um

entendimento dos processos de confluência e alteridade artística por via das

tradiçõesderepresentaçãodosagrado,quetêmimplícitanãosóumanecessidade

depermeabilizaçãocultural,departeaparte,mastambémdeinfluênciasrecíprocas

no que respeita às técnicas, materiais, pensamento estético e esquemas de

representação do sagrado. No contexto da arte cristã na Ásia, não houve ainda

qualquer estudo que procurasse elaborar uma análise de um conjunto de leis

universaisassentesnabasedasestruturasantropológicasrepresentadasatravésde

arquétiposdo imagináriotransversaisatodasasculturas2.Comestenossoestudo,

pretendemos perceber de que forma é que a identificação e a conveniência de

arquétipos se manifestam na evolução dos estilos artísticos e / ou dos atributos

iconográficosdosagrado.

DeacordocomGilbertDurand,aconcepçãosimbólicadaimaginaçãodefine‐se

através de um “acordo entre os reflexos dominantes e o seu prolongamento ou

confirmaçãocultural”3,oquesepoderáentendercomoumaestratificaçãoquetem

porbaseosarquétiposuniversais,da“origemprimordial”,da“imagemoriginal”,ou

“protótipo”,cujosconceitosforamdefinidosporCarlJung4.Posteriormente,avança

2GilbertDurand.Asestruturasantropológicasdoimaginário.SãoPaulo:MartinsFontes,2002,pp.51‐64.3Op.Cit.,p.51.4 Cf. Carl G. Jung. Psycological types. London: Routledge, 1989; Idem. Symbols of transformation.London:Routledge,1962. Idem.The archetypes and the collectiveunconscious. London: Routledge,1991.

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Introdução.Otemaeométodo

29

Durand, é “no prolongamento dos esquemas, arquétipos e simples símbolos que

poderemos considerar o mito”5, isto é, a formulação das imagens no contexto

históricoeepistemológico, responsáveispeladiversidade identitáriadasdiferentes

culturas. Em resumo, sobre as estruturas matriciais do pensamento, a que

chamamos imagem matricial, que são universais e colectivas, verifica‐se uma

continuidade a partir dos processos racionais do homem, como a assimilação, a

acomodação e a convergência de conhecimentos, a que chamamos imagem

dinâmica.

Finalmente, como observou Gilbert Durand, o mito é, acima de tudo, um

sistemadinâmicodesímbolos,arquétiposeesquemasquetendemacompor‐seem

narrativa,naqualossímbolospassamapalavraseosarquétipospassamaideias6.

Nestecontexto,asnarrativassagradasdomitoconstituemoeixoprimordialda

vidasocialedaculturadassociedades.ComoafirmouMirceaEliade,ovalordomito

concentra‐se numa expressão da verdade absoluta, porque se trata de uma

revelaçãotranshumanaquedecorrenaorigemdostempos7.Pornatureza,umavez

que se trata de uma representação dos arquétipos, o mito consubstancia os

princípios morais e éticos que definem a ordem social, à semelhança da ordem

cosmogónica.ComoMirceaEliadedemonstrou,adimensãoexemplardasnarrativas

sagradas, assim como a sua repetição através da imitação dos arquétipos, dos

deusesedosheróismíticos,sãoconsubstanciaisatodaacondiçãohumana8.

A dimensão universal, colectiva e exemplar dos arquétipos, que se

representamatravésdasnarrativasdomito,constituiumreflexodasnecessidades

espirituais primordiais doHomem.Os princípios damaternidade, da valentia e do

heróioudasalvaçãoperanteocaosiminente,queaculturaclássicachamouDeusEx

Machina, são arquétipos intemporais presentes em todas as civilizações, embora

5GilbertDurand.Asestruturasantropológicasdoimaginário.SãoPaulo:MartinsFontes,2002,p.62.6Op.Cit.,pp.62e63.7MirceaEliade.Mitos,sonhosemistérios.Lisboa:Edições70,2000,p.15.8Op.Cit.,p.24.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

30

muitas vezes tenham uma roupagem distinta, mas o princípio fundamental da

históriaécomum.

Omesmosepoderiaafirmarsobreaconceptualizaçãodosespaçosdosagrado.

DeacordocomGilbertDurand,oesquemadaelevaçãoeossímbolosverticalizantes

sãoporexcelênciametáforasaxiomáticas,numacorrelaçãocomo idealmoraleda

completudemetafísica9.Amontanha,enquantoespaçosagradoeenquantoespaço

decontactocomo sagrado,é transversal adiversas culturase sistemas religiosos.

FoinoMonteSinaiqueMoisésrecebeudeDeusastábuasdalei.Deacordocomos

ensinamentosdeLaoTse,fundadordoTaoismo,amontanhaéoespaçoondevivem

os espíritos ancestrais e pela sua proximidade ao céu tornam‐se portais para um

Universo celestial, onde habitam os “imortais”, figuras lendárias como o Velho

Mestre, oMestre Celeste e os Espíritos dasMontanhas. Asdongtian (grutas) nas

montanhassãooespaçoondeoqi(energiavital)selibertaeondesecriamtodasas

coisas. Esta matriz original, pela acção cíclica e espontânea do Tao, liberta a sua

energia e os ventos leves e transparentes sobem para formar o Céu enquanto os

ventospesadoseescurosdescemparasetransformaremnaterra10.Estageografia

dosagrado,naproximidadedamontanhaemrelaçãoaoCéureflectiu‐se,noAntigo

Egipto, na Mesopotâmia e nas culturas dos Andes, na edificação de estruturas

piramidaisqueserviriamdetúmulosimperiaisoudelocaisderituaisdesacrifícioaos

deuses11. A edificação e a verticalidade dos templos representam em todas as

culturasoarquétipodoaxismundi,umespaçodecontactocomouniversoceleste,

comosmodelosincorruptíveisfaceaocaosdouniversodosHomens12.

9Cf.GilbertDurand.Asestruturasantropológicasdoimaginário.SãoPaulo:MartinsFontes,2002,pp.125‐146.10KristoferSchipper.“OTaoismo”.IN:Delumeau,Jean(dir.).Asgrandesreligiõesdomundo.Lisboa:EditorialPresença,3ªed.,2002,p.511.11SobreosespaçosdosagradoeemparticulardotemploCf.MirceaEliade.Osagradoeoprofano.Aessênciadasreligiões.Lisboa:EdiçãoLivrosdoBrasil,Col.VidaeCultura,nº62,2006,pp.71‐78.12Cf.MirceaEliade.TratadodeHistóriadasReligiões.Lisboa:EdiçõesAsa,5ªedição,2004,pp.69‐167.

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Introdução.Otemaeométodo

31

OHomemtemumanecessidadepermanentedeestaremconstantecontacto

com o sagrado, neste sentido são edificadas igrejas, templos, santuários ou

pequenos oratórios. As cidades crescem em torno dos templos. Os símbolos do

sagrado tornam‐se portáteis com oratórios cilíndricos que encerram imagens de

vulto ou embaixo relevo no interior ou ainda na pintura de rolos de seda coma

imagemdeBudacomoosqueforamencontradosnasgrutasdeDunhuangnofinal

do século XIX. Não deixa de ser interessante que S. Jerónimo, quando esteve

retiradonodeserto, peranteaausênciadeespaço sagrado fazuma cruz comdois

paus e uma corda. Na China, erguem‐se os templos na encosta da montanha

concentrando‐senocentrodaevocaçãodoespaçonaturalenquanto imagodeum

espaçosagrado.

Comoreferimosanteriormente,notroncocomumdasestruturasdosagrado,

encontram‐se também as histórias sagradas que conservam um carácter moral e

exemplar13.Omitoéumanarrativa realque sepassou, comoafirmaEliade, in illo

temporeequecomportamodelosdenormalizaçãodoscomportamentossociais.A

recriaçãodestesmitosouhistóriasatravésdarepresentaçãodosdiversosepisódios

numasucessãodepinturascomestruturaretabular,característicadoRenascimento

europeu, ou numa únicamandala com a narrativa da vida de Buda em pequenas

cenas,colocaemevidênciaacriaçãodeheróisquedespertamemoções,motivando

arepetiçãodessesmodelosedificantes.

A evolução do conhecimento e a constante construção do pensamento

religioso, em particular, criaram uma série de modelos transversais às diferentes

estruturas civilizacionais. Perante a experiência damorte, da doença e da guerra,

surgemagentesdeprotecçãoe intercessão juntodos deuses.Estasmanifestações

da relação do Homem com o sagrado encontram na arte não só um veículo de

expressão figurativa das narrativas mitológicas ou a criação de uma linguagem

simbólica, como também representam uma reactualização e celebração dessas 13MirceaEliade.Mitos,SonhoseMistérios.Lisboa:Edições70,Col.PerspectivasdoHomem,nº32,2000,pp.9‐30.VertambémGilbertDurand.Asestruturasantropológicasdoimaginbário.SãoPaulo:MartinsFontes,3ºed.,2002,pp.62ess.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

32

narrativas. A arte transporta as narrativas sagradas para o presente, torna‐as, de

certaforma,partedoquotidianosocialatravésdosrituaissagrados14.

Como Claude Lévi‐Strauss afirma acerca das estruturas antropológicas do

Homem, uma das conclusões que se podem tirar é que, apesar das diferenças

culturaisexistentesnosdiversosgrupossociaisdahumanidade,amentehumanaé

em todasaspartesumaeamesmacoisa, comasmesmascapacidades15. Embora

não o afirme explicitamente, poderemos entender que a mente humana e as

capacidades do homem, referidas por Claude Lévi‐Strauss, constituem, em última

análise,abasedetodaaactividadehumanaqueobedeceàspulsõesdoconscientee

do subconsciente. Como veremos ao longo do nosso estudo, os missionários e

viajantes europeus foram tomando consciência desse princípio de igualdade, no

decorrerdaexperiênciamissionária.

Aformulaçãodasimagensnocontextohistóricoeepistemológico,sejaatravés

das narrativas textuais ou figurativas do sagrado, apresenta‐se como uma

expressividade dos códigos fundamentais de uma cultura, isto é, nas palavras de

MichelFoucault,“aquelesqueregemasualinguagem,osesquemasperceptivos,as

suaspermutas,assuastécnicas,osseusvaloreseahierarquiadassuaspráticas”16.

É este conjunto de possibilidades, determinadas em função de uma

geografia17,deumtempohistóricoedeumconjuntodesaberes,quecaracterizao

conhecimentoculturaldascivilizaçõesequediferenciaasnarrativassagradasentre

si, reportando‐se à identidade cultural dos povos. Deste modo, as narrativas

distanciam‐sedeumarepresentaçãoliteraldosarquétiposuniversais,aproximando‐

14Cf.MirceaEliade.Osagradoeoprofano.Aessênciadas religiões. Lisboa:EdiçãoLivrosdoBrasil,Col.VidaeCultura,nº62,2006,pp.71‐7815ClaudeLévi‐Strauss.Mitoysignificado.Madrid:AlianzaEditorial,6ªed.,2002,p.43. 16MichelFoucault.Aspalavraseascoisas.Umaarqueologiadas ciênciashumanas. Lisboa:Edições70,col.Signos,nº47,2002,p.51.17 Sobre a ideia de geografia da arte ver Thomas DaCosta Kaufmann. Toward a geography of art.Chicago:ChicagoUniversityPress,2004.

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Introdução.Otemaeométodo

33

se, por outro lado, de uma dimensão empírica das coisas em redor do homem18.

Assim,percebemosqueasnarrativassagradassedefinemporcontornosprópriose

que determinados arquétipos tenhammais importância no contexto sociológico e

antropológicodasdiferentesculturas.ComoafirmaMirceaEliade,“sendoareligião

umacoisahumana,é também,de facto,umacoisa social, linguísticaeeconómica,

poisnãopodemosconceberohomemparaalémdalinguagemedavidacolectiva”19.

ÉesteprincípioqueatribuiumaimportânciaritualaYamuna,SaraswatieGanga,as

trêsdeusasdopanteãohinduqueconstituempersonificaçõesdostrêsprincipaisrios

daÍndia.Namitologiaegípcia,AnuketéapersonificaçãodoRioNilo,queexerceuma

importância determinante na agricultura e, por sua vez, para a estabilidade e

prosperidade da cultura egípcia. Apesar das narrativas mitológicas de cada uma

destas divindades serem completamente distintas não deixam de representar o

arquétipodaságuasprimordiais,daságuascósmicasedaoscilaçãoentreaordeme

o caos20. O carácter cíclico e devastador das monções e de outros fenómenos

naturais está na origem da criação de personificações divinas, às quais os povos

prestamcultoparaapaziguarasua ira.NaspalavrasdeMirceaEliade,estamos“na

presençadeumamassapolimorfae,por vezes, caóticadegestos,de crençasede

teoriasconstitutivasdaquiloaquepoderemoschamarfenómenoreligioso”21.

Quandoestadimensãode lugar, degeografiaededistância sedilui, apartir

dos encontros entre diferentes culturas, desencadeia‐se um novo paradigma no

âmbito do diálogo intercultural e das confluências do conhecimento. Como refere

Thomas DaCosta Kaufmann, a própria noção de geografia se torna mais ampla,

englobandoo impactosobreageografiacultural,oestudosobrecomoasculturas,

18Cf.MichelFoucault.Aspalavraseascoisas.Umaarqueologiadasciênciashumanas.Lisboa:Edições70,col.Signos,nº47,2002,pp.52‐56.19MirceaEliade.Tratadodehistóriadasreligiões.Lisboa:EdiçõesAsa,5ªedição,2004,p.19.20 Sobre as epifanias aquáticas e divindades das águas ver Mircea Eliade. Tratado de história dasreligiões.Lisboa:EdiçõesAsa,5ªedição,2004,pp.243‐275.21Op.Cit.,p.20.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

34

com características, sistemas e complexidades próprias, se disseminaram pelo

espaço22.

O espírito proselitista do Cristianismo, mas também de outras tradições

religiosasdaÁsia,comooBudismo,constituiuumpropulsorparaumaproximidade

entreasculturase,consequentemente,tornou‐seabasedodiálogo interculturale

daconstruçãodeumconhecimentopartilhado.Nestequadro,deformaaquebraras

barreirasdalíngua,afiguraçãodasnarrativassagradastornou‐seumdosprincipais

instrumentos do diálogo intercultural, estabelecendoumaponte de entendimento

mútuo entre as religiões. No entender de Michel Foucault, a construção do

conhecimento define‐se a partir dos princípios de conveniência, de emulação, de

analogia e das relações simpáticas23. O princípio de conveniência actua sobre as

coisas que estão próximas, que “chegama confinar‐se; tocam‐se pelos bordos, as

suas fímbrias misturam‐se, a extremidade de uma designa o início da outra”24. A

conveniênciaédaordemdaconjunçãoedoajustamentodascoisasdistintas.

Recentemente,nocampoda psicologia perceptual,dapercepçãovisualeda

neuroestética, cientistas como Semir Zeki e Vilayanur SubramanianRamachandran

têmdesenvolvidoestudosaoníveldocomportamentoneurológiconarelaçãocoma

arte, no sentido de identificar e entender o funcionamento de leis universais que

definemaessênciadaarte.Umadestasleisuniversaisdefinidasporestescientistas,

equeseaproximadosgrausdesimilitudedefinidosporFoucault,éaconformidade

ou o agrupamento. Estes conceitos consistem na resolução de um problema de

percepçãodocórtexvisualaotentaratribuirumsignificadoaoobjectoobservadoe

enviar uma mensagem ao sistema límbico que, posteriormente, transmite uma

emoção.Narealidade,esteprocessocognitivodesencadeiaumasériedeprocessos

que permitemo encadeamento e comunicação entre o conhecimento empírico, a

22ThomasDacostaKaufmann.Towardageographyofart.Chicago:ChicagoUniversityPress,2004,p.2‐3.23Cf.MichelFoucault.Aspalavraseascoisas.Umaarqueologiadasciênciashumanas.Lisboa:Edições70,col.Signos,nº47,2002,pp.73‐81.24Op.Cit.,p.74.

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Introdução.Otemaeométodo

35

identificaçãoeoreconhecimentodascoisasobservadas.Noprocessoderesolução

desteproblemadepercepção,quandooscentrosvisuaisnãoconseguemidentificar

as imagens,espontaneamenteestabelecemuma identificaçãoporproximidade,ou

seja,defineumaanalogia25.

Neste contexto, ao princípio da conveniência está implícito um princípio de

alteridade,namedidaemque severifica uma relaçãode interdependênciadeum

padrãoculturalcomopadrãoculturaldooutro.Estamosperanteumaconstruçãodo

conhecimento a partir do reconhecimento dos valores identitários do outro

civilizacional,daassimilação,daacomodaçãoedaconfluênciadetodasascoisasque

permitem um enriquecimento cultural. Como veremos adiante, quando Akbar

convidaosmissionáriosdaCompanhiadeJesusparaacorteMogolassumequerer

“aprender e estudar a Lei [dos evangelhos] e o que há demelhor emais perfeito

nela”26. Os processos de assimilação e acomodação no diálogo intercultural

decorrem nos dois sentidos. Veremos também como, em Goa, os missionários

europeus procuraram nos textos maratas “descubrir muytas falsidades que nos

ajudemparaconfundirosquenelasconfião...”27.

Nonossoentender,sãoestasarticulaçõesentreas identidadesculturaisque

desencadeiam processos de alteridade artística, através da miscigenação de

elementos iconográficos das tradições religiosas locais, de modo a tornar os

princípios fundamentais mais próximos e facilitar o seu entendimento. É neste

sentidoque,anossover,aartecristãproduzidanocontextodasmissõesnaÁsiasó

poderá ser compreendida na sua relação intrínseca com as tradições religiosas e

artísticaslocais;noentendimento,naassimilação,naacomodaçãoenasrelaçõesde

25Cf.SemirZeki,“Artisticcreativityandthebrain”.IN:Science’sCompass,vol.293‐July2001‐pp.51‐52.DentrodomesmocontextoV.S.Ramachandranutilizaotermoagrupar.V.S.Ramachandran,Abrief tour to human consciousness. From imposter poodles to purple numbers. New York: Pi Press,2003,pp.40‐59.26Cit.apartirdeEdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.24.Vercap.IV.27JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.Vol.IV,pp.204‐205.Vercap.III.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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paridade que os missionários europeus estabeleceram entre o Cristianismo e as

religiõesdaÁsiae,consequentemente,nosesquemasderepresentaçãodosagrado.

Esteéocampodoconhecimento“doscânonesdasartesereligiõesancestrais”

queBernardo Ferrão Tavares e Távora enuncia no seu estudo de Imaginária Luso‐

Oriental,masque,naverdade,nãochegouaconcretizar.Emtodootexto,noque

respeita às relações entre a imaginária luso‐oriental e a arte e religiões da Ásia,

prosseguecomafirmaçõesqueevidenciamas“expressõestipicamentechinesas”das

figurassino‐portuguesas,ouda“expressãobúdica”doMeninoBomPastor,masnão

entra a fundo nos cânones das artes e religiões ancestrais para justificar a

emergência de uma arte cristã que se altera na convivência e proximidade de

estruturasreligiosaseantropológicasdistintas.

ÉimportantesublinharquedepoisdosestudosdeBernardoFerrãoTavarese

Távoraapenasestenossoestudotemoclaroobjectivodefazerumaleituradaarte

cristãnaÁsianasuaestreitarelaçãocomasartesereligiõesdaÍndia,daChinaedo

Japão.

Assim,estruturámosestainvestigaçãoconsiderandoostrêsprincipaispólosde

missionaçãonaÁsia,nomeadamente,naÍndia,naChinaenoJapão,nocontextodos

quais, os processos de confluência e alteridade da arte cristã deram lugar a uma

identidadeartísticaprópria,narelaçãocomasreligiõeseartesasiáticas.

As obras e temas abordados nesta tese são meramente ilustrativos e não

pretendemdemodoalgumserexaustivos.Nãopretendemostambémelaborarum

levantamento de inventário da arte cristã naÁsia, de identificação dos artistas ou

fazerumaanálisedescritivadasobrasdearte.Assim,optámosporanalisarasobras

deartequemelhordefinemarelaçãodaartecristãcomasarteslocais;quemelhor

espelhamodiálogoentrereligiões,aassimilação,aacomodaçãoeaconfluêncianos

esquemasderepresentaçãodosagrado.Consequentemente,considerámosforado

âmbito do nosso estudo todos os objectos do domínio profano, ainda que

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Introdução.Otemaeométodo

37

produzidosporartistasasiáticosecommotivosgreco‐latinos,comosãoocasodas

colchasindo‐portuguesas28.Excluímostambémdonossoestudoasquestõesaonível

daplantaedastipologiasdaarquitecturacatólicanaÍndia,naChinaenoJapão,por

considerarmosumaproblemáticadistintaededomíniopróprio.Contudo,noscasos

específicos de algumas igrejas em Goa e Macau, não deixaremos de analisar a

ornamentação das fachadas e de focar os aspectos que sobretudo ilustrem uma

conveniênciaentreaartecristãeaartereligiosalocal.

Numprimeirocapítulo,discorremossobreosprimeirosmomentosdapresença

do Cristianismo na Ásia, desde os mitos de S. Tomé aos primeiros missionários

franciscanosduranteoséculoXIV.Assim,poderemosestabelecerumacomparação

dos mecanismos de confluência cultural, religiosa e artística entre os diferentes

momentosdoCristianismonaÁsia.

A partir do século XVI, no contexto da arte cristã na Índia dever‐se‐ão

considerar duas realidades distintas. Em primeira análise e de uma forma global,

torna‐se pertinente discorrer sobre o contacto directo dos europeus com o

gentilismodaÍndiaeaformacomoosocidentaisolhavameprocuravamentenderas

religiõesdaÍndia.Asquestõessobreatolerânciaeentendimentodasestruturasdo

sagrado hindu geraram celeumas que mereceram discussão nos Conselhos

Provinciais e resultaram numa activa correspondência com as mais importantes

personalidades da Igreja em Portugal e na Europa. Neste sentido, chegavam à

EuropaasNotíciasdogentilismoeostratadossobreareligiãodosgentios,naforma

detraduçãodirectaecomentadadostextossagradosoudasepopeiasdoRamayana

e do Mahabarata, ou, muitas vezes, como descrições das divindades hindus

acompanhadas de ilustrações. Uma análise a esta perspectiva ocidental do

28Sobreascolchas indo‐portuguesasremetemosparaosestudos:MariaJosédeMendonça.“AlgunsTiposdeColchasIndo‐PortuguesasnaColecçãodoMuseudeArteAntiga”.IN:BoletimdoMuseu,vol.II, fasc. II, 1949, Janeiro‐Dezembro, pp. 1‐21; Teresa Pacheco Pereira e Teresa Alarcão. FábulasBordadas. Uma colcha indo‐portuguesa do séc. XVII. Lisboa:MuseuNacional de Arte Antiga, 1988;SusanaMargaridaPortasRuivoPedroso.Umacolcha indo‐portuguesadoPalácioNacionaldeSintra:entre as artes decorativas nos interiores portugueses quinhentistas e seiscentistas, dissertação demestrado em Arte, Património e Restauro apresentada à Faculdade de Letras da Universidade deLisboa,2003.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Hinduísmo dará certamente luz sobre as similitudes e pontos de contacto que se

reflectemnaartemissionária.

Na ÍndiaPortuguesa,ondeapresençaeuropeiaé impostaporumaconquista

militar,oEstadoPortuguêsdaÍndiafuncionaàimagemdametrópolenagestãodos

assuntosdecarácterpolíticoecomercial,edosassuntosdaféemtodaaÁsia.Na

costadoMalabar,deCochimaDamãoeDiu,nafronteiradoGujarat,foramerigidas

várias igrejasquecombinaramplantaseelementosarquitectónicos importadosda

Europa com as estruturas arquitectónicas, funcionais e simbólicas autóctones. É

fundamentalconsideraraimportânciadaacçãodeumcleronativoquesimplificaos

processos de confluência cultural e religiosa, que se reflecte não só na

ornamentaçãodasfachadasdasigrejas,mastambémnaornamentaçãointeriordas

mesmas.Aevidênciadeumaartemiscigenadaaindahojevisívelnaornamentação

interior das igrejas, nas suas diferentes dependências, pressupõe uma actividade

recorrenteaartistaslocaisparaasdemaistécnicasartísticas,desdeapinturasobre

tábua e a fresco, à talha aplicada aos púlpitos e às estruturas retabulares, ao

mobiliárioeàourivesaria.Énecessárioentenderaorganizaçãooficinaldaprodução

de arte cristã na ornamentação das igrejas e na produção de uma arte portátil

vocacionadaparaamobilidadedosmissionários,nãosó identificandoosartistas,a

suanaturalidadeeproveniênciamas,acimadetudo,entenderosparalelosculturais

ereligiososdoCristianismoedoHinduísmoquederamformaaumanovaexpressão

artística.

O espírito proselitista dosmissionários europeus, em particular dos jesuítas,

que na Índia ganharam fôlego com a acção pioneira de Francisco Xavier, resultou

numaproximidadeestreitacomascomunidadeslocais,aconversõesmassificadase

exaltaçõesdaféemprocissõeseoutrorituaisespectaculares,à imagemdosrituais

hindus.Nestadimensão,aimagináriaemmarfimemadeiraexóticarepresentauma

portabilidade necessária a um contacto permanente com o sagrado e à criação

imediata de um espaço sagrado. Sobre o trabalho brilhante de inventariação e

caracterização estilística conduzido por Bernardo Ferrão Tavares e Távora é

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Introdução.Otemaeométodo

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imprescindívelentenderossignificados intrínsecoseaadaptabilidadedosmodelos

europeus a formas e linguagens simbólicas indianas. É, ainda, fundamental

consideraraornamentaçãodasfachadasdealgumasdasigrejasdaÍndiajuntamente

comasestruturasdoscruzeirosquesereportamàrelaçãoestreitaentreaescultura

earquitecturahindus.

Existe ainda uma outra realidade, que deriva da presença dos missionários

europeus na corte Mogol. Sabe‐se que os jesuítas Rudolfo Aquaviva, António

MonserrateeFranciscoHenriqueschegaramàcortedo imperadorAkbarem1580,

comointuitodeconverteroGrão‐Mogol.DapresençajesuítanacorteMogolsurge

a produção de pintura cristã que era oferecida a Akbar como resultado de uma

história comparada das religiões resultante das discussões no palácio imperial em

FathepurSikri.Ocontactodosmissionáriosjesuítascomatradiçãopictóricaislâmica,

com uma produção artística secular e fortemente concentrada na figura do

imperador,associadoaumaacomodaçãocaracterísticadosmétodosdemissionação

jesuíta, teve implicações profundas na arte cristã noNorte da Índia.Um conjunto

vastodeartistasdecortereproduzemostemascristãoseaplicamtécnicasdaarte

europeiacomoapinturaderetratoeapinturaalegóricanumaestreitarelaçãocom

osesquemasderepresentaçãodapinturademiniaturamogol,resultando,emlarga

escala, numa reprodução de princípios fundamentais que servem o próprio

imperadorenãopropriamenteaacçãomissionárianaconversãodasmassas.

Na China, existem igualmente duas realidades a considerar. Por um lado, o

estabelecimentodosportuguesesemMacaucriou,noSuldaChina,umaplataforma

de circulação de mercadores, missionários e outros viajantes que transportavam

consigo mercadorias exóticas de outros portos asiáticos, da Índia ao Japão. A

realidadeartísticadaChina,comumaelevadatendênciaparaocerimonial,reflecte‐

seconcretamentenumgostorequintadopelasartesdecorativas,nomeadamentena

produçãodeporcelana,nostecidosemsedaenaescultura.Aestecenárioassocia‐

seaprofícuacapacidadeprodutivadasoficinasimperiaisque,naturalmente,resulta

numalargamento domercado de exportação da arte chinesa a partir da abertura

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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dos portos aos europeus. Múltiplos factores levaram a que os missionários

recorressemaosmercadoslocaisdeformaadotaremdeiconografiacristã,nãosóa

missãodaChina,mastambémasmissõesnoJapão.Nestecontexto,éfundamental

entenderodiálogoentreastradiçõesmilenaresdaartechinesaeaartemissionária,

particularmente na assimilação de elementos ornamentais e simbólicos do

imaginárioreligiosochinês.Poroutrolado,éfundamentalperceberaimportânciado

culto da deusa A‐Ma, como reflexo de princípios universais da maternidade,

intercessão e protecção, e de outras figuras do imaginário sagrado chinês para a

tradução dos princípios fundamentais do Cristianismo. Finalmente, Macau foi o

porto de abrigo de centenas de missionários expulsos do Japão na sequência da

publicaçãodoÉditodeproibiçãodoCristianismo.Entreestescristãosencontravam‐

se vários artistas japoneses que haviamaprendido a pintar ao estiloOcidental no

Seminário dos Jesuítas, sob orientação deGiovanni Niccolò, e que desenvolveram

actividadeao serviçodamissãodaChina,não sóaoníveldapinturaaóleo, como

tambémao nível da escultura, de que é exemplo a fachada da Igreja de S. Paulo.

Nestesentido,édeterminanteperceberdequeformaasobrasremanescentesdeste

períodoevidenciamumarelaçãoentrediferentesperspectivasculturais.

Desde a chegada dos primeiros missionários a território chinês que se

acreditavaqueosucessodamissãoestarianaobtençãodeautorizaçãoimperialpara

a disseminação do Cristianismo no Império doMeio. Naturalmente que, tal como

haviasidoexperimentadoemoutrasmissões,essesucessopassariapelaconversão

do próprio imperador. Durante o final da dinastiaMing e início da dinastia Qing,

váriosmissionáriosjesuítaspermaneceramjuntodacorteimperial,resultandodaqui

umintercâmbioculturaleartísticodamaior importância,comparticular incidência

sobreatraduçãoediscussãodeevangeliáriosilustradosedetratadosdepinturae

arquitecturaeuropeus,que introduziramosprincípiosdaperspectivaerealismoda

pinturaeuropeiaaóleo.Nestecapítulo,procuraremoscompreenderdequeformaa

artecristãprocurouganharespaçonumuniversoondeapinturaearelaçãocomo

sagradodiferemdeumaformatãonotóriadatradiçãoculturaleartísticaeuropeia.

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Introdução.Otemaeométodo

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Pretendemosentenderaimportânciadaliteraturadeespiritualidadeeaintrodução

paulatinadasimagenscristãsatravésdegravurasqueilustravamostextossagrados

reproduzidos em larga escala para a biblioteca imperial. Será interessante

compreenderareceptividadedaartecristãnacorte imperialea influênciadaarte

chinesa, em particular da pintura, nos artistas europeus. Por fim, procuraremos

analisarovastoconjuntodeobrasdospintoresjesuítasaoserviçodosimperadores

dadinastiaQingequeaindahojeseconservamnoMuseudoPalácio Imperial,em

Taipé.

Finalmente,numaúltimapartededicadaàartecristãnoJapão,procuraremos

entenderosprocessosdeconfluênciadaartecristãnoJapãoconsiderandoocurto

períododapresençadosmissionárioseuropeusdesdeachegadadeFranciscoXavier

em1549atéàexpulsãodoscristãosduranteaprimeirametadedoséculoXVII.Este

período ficaria conhecido pelo “século Namban” marcado pela acção dos

missionários jesuítas e pelas perseguições intermitentes que dificultaram à

afirmação da arte cristã e do culto cristão no Japão.Neste capítulo procuraremos

entenderdequeformaestasperseguiçõesaoscristãosdeterminaramasformasde

representação da arte cristã; as relações de proximidade e adaptação com as

estruturas sagradas locais remanescentes de uma influência da cultura chinesa. É

ainda essencial caracterizar a organização dos colégios jesuítas e a estrutura de

ensino da arte ocidental, em particular da oficina de Giovanni Niccolò. E, em

conclusão, iremos discorrer sobre as influências recíprocas da arte cristã e das

tradições artísticas japonesas na China, na sequência da expulsão dos cristãos do

Japão.

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CapítuloII

OCristianismonaÁsiaCentral:daIgreja

AssíriadoOrienteaJoãodeMontecorvino

Os primeiros contactos comerciais e culturais entre a Europa e a Ásia

remontamao século IIANE,na sequênciaàacçãodo ImperadorWudi,dadinastia

Han doOcidente, na tentativa de estabelecer relações comas civilizações daÁsia

CentralemFergana(Uzbequistão),Báctria(Afeganistão)ePártia(Irão).

Aestescontactosseguiu‐searelaçãocomoImpérioRomano,apósoinsucesso

daembaixadadeBanChaonasuatentativadechegaraRomanoano97danossa

Era.Plínio,oVelho,nasuaNaturalisHistoriae refere‐seaocomérciodasedavinda

da China e de outros produtos vindos da Índia, “transportados pelo Mar Cáspio,

através do Rio Ciro, poderão ser levados por terra em cinco dias, a distâncias tão

longínquasquantoPhasisePontus”1.

DuranteoséculoIdanossaEra,aRotadaSedatornou‐seoprincipalmeiode

intercâmbiocomercial,culturaleartísticoentreaEuropaeaÁsia,fazendoaligação

entre Louyang, capital da dinastia Han do Ocidente (206 ANE ‐ 24), Dunhuang,

1NaturalisHistoriae,LivroVI,cap.XVII e LivroXII,cap.XVIII.Madrid:Gredos,1995‐1998.PhasiséonomegregodePoti,umacidadeportuárianaactualGeórgia.PontuséadesignaçãolatinadePonto,umaprovínciaromananaÁsiaMenor,aSuldoMarNegro.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Mathura, Bactra, Hecatompylos, junto ao Mar Cáspio, e Damasco, Antióquia,

Alexandria,ConstantinoplaeRoma,apartirdoMediterrâneo.

NoImpérioKuchan,entreoséculoIeIII,assiste‐seaosurgimentodeumestilo

próprio da arte budista, caracterizado pela confluência artística entre a arte

helenística,síria,persaeindiana.NascidadesdeGandhara,MathuraeBactra,actual

PaquistãoeAfeganistão,ainfluênciahelenísticaéparticularmentenotávelnãosóao

níveldohimation2nasesculturasdebodhisattva,comopeitodescobertoejóiasao

estilo indiano, mas também ao nível da arquitectura, com a presença de capitéis

indo‐coríntios,decoradoscomfolhasdeacantoeaimagemdeBuda.Poroutrolado,

verifica‐sea introduçãodeumconjuntodedivindadesdopanteãogrego,entreos

quais, oDeus doVento, Atlas e os cupidos, que também se poderão entender ao

nível do sincretismo cristão, persa (islâmico) e indiano (hindu), que encontram

similitudesformaisesimbólicasnosanjosenasapsaras3.

DuranteoséculoIdanossaEra,asrotascomerciaistornaram‐seummeiode

confluênciaepermeabilizaçãoculturaleartística, atravésdasquaisoCristianismo,

emváriosmomentos,sefundecomasreligiõeseartesasiáticas,emparticularcomo

Budismo,TaoismoeHinduísmo4.

2Trajetípicogrego.3 É importante considerar a eventual herança artística deixada pelas campanhas militares deAlexandre,oGrande,entre327e325ANE,naregiãodeGandharaeBactra.4 Para além da rota terrestre supra mencionada a ligação entre a Europa e o Médio Oriente éintensificadapelarotamarítimaapartirdoano50quandoHippalus,umnavegadorgrego,descobreoventodamonçãoeestabelecearotapeloMarVermelhocomaCostadoMalabar.Cf.GeorgeSmith.TheconversionofIndia.FromPantaenustothepresenttime(198‐1893).NewJersey:GeorgiasPress,2004,p.9.

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1. OApóstoloToméeaIgrejadoOriente(52‐845)

A presença do Cristianismo e, consequentemente, da arte cristã na Ásia

remonta,tradicionalmente,àmissãodosApóstolosToméeBartolomeu,nofinalda

primeirametade do século I. De acordo comEusébio de Cesareia, na suaHistoria

Ecclesiae1,escritaduranteoiníciodoséculoIV,oApóstoloTomépartiudeJerusalém

rumo à Ásia para difundir o evangelho, tendo passado pela Pártia, actual Irão, e

chegado à Índia, levando o Cristianismo à Costa do Malabar, onde ainda hoje

encontramosreminiscênciasdos“cristãosdeS.Tomé”2ouNasranideKerala,istoé,

seguidoresdeJesusdeNazaré.

OApostolo Tomé terá passado dezasseteanosna Índia a pregar, tendo sido

ainda registados alguns milagres na cura de cegueira. No capítulo dedicado ao

ApóstoloToménaLegendaAurea,Jesuspede‐lhequeváàÍndiaparaconverteràfé

osseushabitanteseconstruirumpalácio,aoqueToméacedeu3.Enquantoesteve

naÍndia,Tomépredicou,convertendováriaspessoas.Acertaaltura,estavaToméa

predicar num lugar destinado a todos os pobres do reino da Índia e orou pelos

enfermos.DepoisdetodosteremditoÁmen,brilhounocéuumrelâmpagodeonde

emanouumaluzintensailuminando‐osatodosdurantemeiahora.Quasetodosos

presentes pensavam que estavam mortos, mas Tomé pôs‐se de pé, no meio de

todos,edisse:“Levantai‐vos.OSenhor,emformadecentelha,veioemvossoauxílio

1HistoriaEcclesiastica,LivroIII,Cap.I,translationbyKirsoppLake.London:WilliamHeinemann,1964‐1965.2Estadenominaçãosurge,pelaprimeiravez,noSynododiocesanodaIgrejaeBispadodeAngamaledosantigos christaõsdeSamThomedasserrasdoMalauardaspartesda IndiaOriental.Celebradopello... SenhorDom FreyAleixoMenezesArcebispoMetropolitanodeGoa... aos20.dias domesdeJunho da era de 1599... no lugar, & reyno do Diamper...EmCoimbra: na officina deDiogoGomezLoureyro,impressordaVniuersidade,1606.3JacoboVoragine.Laleyendadorada.Madrid:AlianzaEditorial,11ªed.,2002,p.47.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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e curou‐vos”4. Todos se levantaram de imediato e ao comprovar que estavam

curados glorificaram a Deus e ao Santo apóstolo. Depois Tomé doutrinou‐os e

instruiu‐os nas coisas da Fé em Deus. Para conseguir o Amor de Deus teriam de

receberobaptismo;abster‐sedafornicação;nãosedeixarlevarpelaavarezaepela

gula;fazerpenitencia;preservaroexercíciodasboasobras;praticarahospitalidade;

procurar fazer sempre a vontade de Deus; ter caridade com os amigos e com os

inimigos;exercersobresimesmosumavigilânciaafimdeviverdeacordocomestas

normas. Terminou a sua catequese e baptizou novemil pessoas, sem contar com

mulheresecrianças5.AntesdesermartirizadoemMylapore,noano72,naregiãode

Chennai do Estado de Tamil Nadu, o Apóstolo Tomé fundou, na Índia, uma das

primeirasIgrejasCristãs,queficariaconhecidaporIgrejaSiro‐Malabar.

Por volta do final do século II, Panteno, fundador da Escola Teológica de

Alexandria,foiindicadoporDemétrio,BispodeAlexandria,paraumamissãoàÍndia6

“parapregar[aPalavrade]CristoaosBrâmanesefilósofos”7,sendoconsideradoo

primeiro missionário cristão na Ásia. Na Índia, encontrou pessoas que tinham

conhecimento de Cristo e encontrou um Evangelho de Mateus em Hebraico,

preservado desde os tempos de Bartolomeu, o Apóstolo8. A Igreja Siro‐Malabar

estrutura‐se com base numa relação religiosa entre a herança judaico‐cristã,

remanescente dasmissões apostólicas na Índia, da tradição ancestral do Jainismo

indiano,doHinduísmoedacrescenteinfluênciadoBudismonazonaCentraleNorte

daÍndiaduranteosprimeirosséculosdanossaEra.

As denominadas cruzes de S. Tomé, também conhecidas como cruzes de

Kerala, foramencontradasemvários locaisdoSulda ÍndiaenoSriLanka,ondese

4Op.Cit.,p.49.5Op.Cit.,p.50.6HistoriaEcclesiastica,LivroV,cap.X,translationbyKirsoppLake.London:WilliamHeinemann,1964‐1965..7Cartas,LXX.CartadeS.JerónimodirigidaaMagno,OradordeRoma.IN:CartasEspirituais.Lisboa:EdiçõesPaulistas,1960.8HistoriaEcclesiastica,LivroV,cap.X,translationbyKirsoppLake.London:WilliamHeinemann,1964‐1965..

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OCristianismonaÁsia:daIgrejaAssíriadoOrienteaJoãodeMontecorvino

47

pensa terem sido bastante populares, particularmente ao nível da decoração

tumularenosaltaresdasigrejas.Em1992,nacidadedeAnuradhapura,noSriLanka,

foi encontrada uma pedra tumular com uma cruz no tampo, datada do início do

séculoVI,sendoamaisantigaidentificadaatéhoje(Fig.1eFig.2).

As cruzes de S. Tomé tradicionalmente não ostentam a imagem de Cristo

crucificado e são decoradas com as extremidades em forma de flor. Na parte

inferior, normalmente a cruz emerge de uma flor de lótus que por sua vez se

encontra sobre uma estrutura de três oumais degraus. Em alguns exemplos está

representado o EspíritoSanto,na formada pombasobrea cruz.Comoafirmámos

anteriormente,muitas vezes estas cruzes, cuidadosamente entalhadas emgranito,

eram em rigor altares de devoção, acompanhados com inscrições em siríaco,

semelhantes,naforma,aosaltareshindus9.

Datadas do século VI até ao século X, estas cruzes representam uma

combinação de linguagens simbólicas ao fundir namesma composição a cruz e o

lótus, flor que na tradição hindu é indissociável aos Deuses. Por outro lado, não

deixadeserinteressanterelacionaraparticularidadedeolótusflutuarsobreaágua,

tal como Jesus caminhou sobre as águas, uma passagem do Evangelho segundo

Mateus10que,deacordocomPantenodeAlexandria,eraconhecidona Índia jáno

século II.Contudo,anossover, a justaposiçãodacruzeo lótus temporbaseum

princípio de equidade e de correspondência na representação do símbolo do

sagrado e da divindade máxima. O lótus, tal como a cruz cristã, representa o

recomeçodeDeusparaumanovaexistência.

A execução de altares em granito com a cruz de Cristo segue de perto os

modelosdasnarrativassagradashindussobreestelasdegranitoembaixooualto‐

relevo com o topo curvilíneo. Muito provavelmente, a ausência de imagens e

9SobreinscriçõesemsiríaconaÍndiaCf.JacobThekeparampil.“VestigesofEastSyriacChristianityinIndia”. IN:Jingjiao.TheChurchoftheEast inChinaandCentralAsia, editedbyRomanMalek.SanktAugustin:InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.485‐497.10Mateus14,22:36.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

48

iconografiacristãtransformaosímbolodacruznaimagemdoCristianismonaÍndia,

colocando‐onosaltares.Umdestesexemplos,datadodoséculoVI,encontra‐sena

Igreja de Nossa Senhora da Expectação, em Mylapore, encontrado pelos

missionáriosportuguesesquandoconstruíramaigrejaem1547(Fig.3)11.

ApartirdoséculoV,apresençadoCristianismonaÁsia,emparticularnaChina

eÁsiaCentralporviadasincursõesdaIgrejaAssíriadoOriente,surgenasequência

dasdiscussõesemtornodadoutrinadasduasnaturezasdeCristo(humanaedivina).

A génese deste dogma remonta a Apollinaire de Laodicée, no Concílio de

Constantinopla de 381, que reconhece o símbolo de Niceia (325) e assume a

Trindadecomoumasóessência(ousia)etrêshipóstases.Oprimeirotermodesigna

a natureza da divindade, enquanto o segundo se refere às propriedades das três

pessoasdivinas12.TeodorodeMopsueste,BispodaEscoladaAntióquiaefundador

da Igreja Assíria do Oriente, propõe um novo esquema para a união das duas

naturezasdeCristo.AssumequeapalavraSenhorJesusCristosereportaànatureza

divina,enquantoonomeJesusserefereàsuanaturezahumana.

Maistarde,Nestor,PatriarcadeConstantinopla,assumequeCristorepresenta

a união do prosôpon, reunindo, com efeito, as propriedades humanas com as

divinas. A Igreja Assíria do Oriente entra em litígio com o Patriarca Cirilo de

AlexandriaecomoPapaCelestino,levandoàconvocatóriadoConcíliodeÉfeso,que

contou apenas com o pars Orientis e com alguns representantes de Roma. As

declarações de Éfeso acusaram Nestor de heresia, sendo deposto por blasfémia

11AntónioGouvea,duranteoSínododeDiamper,em1599,afirmaqueasantigasigrejasdeMylaporeestão repletas de cruzes de S. Tomé. Cf. Synodo diocesano da Igreja e Bispado de Angamale dosantigoschristaõsdeSamThomedasserrasdoMalauardaspartesdaIndiaOriental.Celebradopello...SenhorDomFreyAleixoMenezesArcebispoMetropolitanodeGoa...aos20.diasdomesdeJunhodaera de 1599... no lugar,& reyno doDiamper...EmCoimbra: na officina de DiogoGomez Loureyro,impressor da Vniuersidade, 1606. Sobre a datação desta estela veja‐se Pius Malekandhathil."St.Thomas Christians and the Indian Ocean: 52 A.D. to 1500 A.D." Ephrem's Theological Journal(InternationalJournal),October2001,vol.5,no.2,pp.175‐202.12ChristianeFraisse‐Coué.“LedébatthéologiqueautempsdeThéodoseII:Nestorius”.IN:HistoireduChristianismedesoriginesànos jours.DirectiondeCharlesJean‐MarieMayeuretAndréLucePietriVauchez,MarcVenard.Tome II ‐Naissanced’uneChrétienté(250‐430). s.l.Desclée,1995,pp.499‐550.

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OCristianismonaÁsia:daIgrejaAssíriadoOrienteaJoãodeMontecorvino

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contra Cristo, e determinou a excomungação todos os seus seguidores e daqueles

quenãoaceitaremosdecretosdoConcílio13.

Nasequênciadestesacontecimentos,oscristãosnestorianosda IgrejaAssíria

doOrienteestabelecem‐seemNisibis (Nusaybin), actualTurquia, juntoà fronteira

com o Irão e o Iraque14. Daí, as suas actividades missionárias espalharam‐se um

pouco por toda a Ásia Central, Arábia, Índia e China, onde surgem inicialmente

documentados como Bosijiao (Religião Persa)15. Isto significa que o Cristianismo

entra na China, ainda durante o séculoVII,muito provavelmente na sequência da

quedadoImpérioSassânida,peranteasrevoltasdosÁrabes.

13Op.Cit.p.530.14Adescobertadeummosteiro cristão,onde se encontraram fragmentos coma cruzdeCristo,nailhaSir Bani Yas,emAbuDhabi, aliadoà existênciade inscriçõesemsiríacogravadasnosaltares ecruzes provam que, ainda durante os séculos VI a XII, o Cristianismo na Índia mantinha a rotamarítima iniciada por Hippalus, no século I. É também na sequência desta ligação que emerge aimportânciadoCristianismona Etiópia, sobretudoapartirdo século XII, coma construçãodasdezigrejasescavadasna rochaemLalibela.OflorescimentodoReinodaEtiópiatornar‐se‐ia célebrenaEuropamedieval através das notícias demercadores e peregrinos, chamando a atenção do Rei dePortugalD.JoãoII.Cf.JamesHough.ThehistoryofChristianityinIndia.FromthecommencementoftheChristianEra.London:SeeleyandBurnside,vol.1,1839,p.24.15NicolasStandaert(editedby).HandbookofChristianityinChina.Vol.1:635‐1800.Leiden,Boston,Koln:Brill,2001,p.6.

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1.1. AesteladeXi’aneoscristãosnestorianosnaChinaTang

Em1623foiencontradaumaestelapertodeXi’an,nolocaldaantigacapitalda

dinastia Tang (Fig. 4 e Fig. 5). Três anos depois, no seguimento do interesse do

jesuítaPortuguêsÁlvaroSemedo1,eventualmentedespertadopelacruzgravadano

topo da estela, as inscrições foram traduzidas e publicadas na Europa pelo padre

NicolasTrigault.

A estela foi composta a 4 de Fevereiro de 781 por um monge chamado o

Jingjing (Adão), que se descreve como padre doMosteiro Da Qin (do Ocidente)2.

Comcercadeduastoneladas,doismetrosemeiodealturaeummetrodelargura,

contém uma inscrição com trinta e duas linhas verticais, num total de mil e

oitocentoscaractereschineses.Namargeminferior,encontram‐seaindavinteetrês

linhas em siríaco antigo e mais setenta linhas em chinês e siríaco nas margens

laterais.Notopodaestela, ladeadoporduasfiguras, temuma inscriçãocomnove

caracteres que se poderá traduzir porOmonumento que comemora a difusão da

Ocidental Religião da Luz na China. O texto apresenta primeiro uma perspectiva

doutrinal descrevendo alguns episódios dos evangelhos referindo‐se ao Messias

como o Deus que aparece como Homem; à Virgem que deu à luz O Salvador no

Ocidenteequeumaestrelaanunciouomomentodoseunascimento3.

1OjesuítaPortuguêsfoioprimeiroocidentalaobservaraesteladepoisdasuadescobertaentre1625e 1628, e o responsável pela sua divulgação pela Europa conforme relata no seu volume sobre aactividademissionáriados jesuítasnaChina,publicadoemMadridporManueldeFariaeSousaem1642.Cf.RelaçãodaGrandeMonarquiadaChina,escritapeloJesuítaÁlvaroSemedo,comtraduçãoitalianade1643.2GlenThompson.ChristianMissionariesin7thand8thCenturyChina.ComunicaçãoapresentadanaETS AnnualMeeting, Atlanta a 20 de Novembro de 2003. [Citado em 26‐12‐2009]. Disponível em<http://www.ttpstudents.com/papers/ets/2006/Thompson/Thompson.pdf>3Op.Cit.,p.2

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Para além de uma narrativa doutrinal, que recorre a um vocabulário e

linguagemcomunsaoTaoismoeBudismo,contaaindaahistóriada introduçãodo

CristianismonaChina.Otextorefere‐seaAlopencomosendooprimeiromissionário

do reino de Da Qin e à sua chegada a Xi’an em 635. Alopen foi recebido pelo

imperador Taizong e na biblioteca imperial foram traduzidos os primeiros textos

cristãosqueAlopentraziaconsigo.Opróprio imperador interessou‐sepeloJingjiao

(Religião da Luz) estudando os textos traduzidos, dando ordem para que fossem

difundidospelo Império.NotextoJingjingrefere‐seaumdecreto imperial,de638,

ondeoimperadorassumeque“estesensinamentossãoúteisatodasascriaturase

benéficasparatodososhomens;porissovamosensiná‐losportodooimpério”4.

Foi permitido aos missionários que construíssem um mosteiro na capital e,

após a morte do imperador Taizong, o seu sucessor, Gaozong, autorizou que a

construçãodemosteirossealargasseaoutrascidadesdoimpério.Otextoprossegue

comadescriçãocomo,duranteosprimeirosanosdoséculoVIII,primeiroosbudistas

e depois os taoistas caluniaram o Cristianismo, mas que apesar de tudo isso

conseguiramoapoiodossucessivosimperadores,apartirde705.ApesardeJingjing

nãodarqualquerdetalhesobreestemomentoemqueoJingjiao sofreuumrevês,

sabemos hoje que se prende com o momento da regência, entre 665 e 705, da

ImperatrizWu,consortedosImperadoresTaizong,Gaozongedoseuprópriofilhoo

ImperadorZhongzong5.

Porfim,Jingjingteceumelogioaocomitentedaestela,Yisi(Yazdbozed),queé

descritocomosendoumdosmais importantesoficiais imperais,generalduranteo

reinado de Taizong e que doouumaparte dos seus bens para a reconstrução dos

mosteirosdoJingjiaonaChina6.Ainscriçãoterminacomumacelebraçãodaverdade

4Op.Cit.,p.25JürgenTubach.“DeuteronomistictheologyinthetextofthesteleofXi’an”.IN:Jingjiao.TheChurchoftheEast inChinaandCentralAsia, editedbyRomanMalek.SanktAugustin: InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.181‐196.6Michael Keevak. The story of a stele: China’s NestorianMonument and its reception in theWest(1625‐1916).HongKong:HongKongUniversityPress,2008,p.9.

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da religião luminosa e com uma glorificação à prosperidade dos imperadores da

dinastiaTangqueaadoptaram.Emsiríaco,naslateraisdaestela,constamosnomes

dos Bispos, padres emonges que difundiramo Cristianismona China entre 635 e

781.

Odiscursodaestelaaoníveldovocabuláriopermiteperceberqueexisteuma

permeabilização cultural e religiosa profundamente acentuada, notável, de forma

particularnacombinaçãodeconceitosteológicosconfucionistasetaoistas.Alopen,

cujonomesepoderátraduzirporAbraãoésugeridoporWilhelmBaumeDietmar

WinklercomosendoSogdiano,umpovopersaquevivianaregiãodaBáctria7,numa

das mais importantes passagens da Rota da Seda, que servia de mediação do

comércioentreaChinaeaÁsiaCentral.ARotadaSeda foi igualmenteomeiode

difusão do Budismo durante o século II, com grande concentração emDunhuang,

onde, no final do século IV, um monge budista teve uma visão que inspirou a

escavação de templos na rocha. As Grutas de Mogao tornaram‐se num local de

peregrinação, reclusão emeditação, conservando‐se aí durante cerca demil anos

milharesde sutras,pinturasemrolode seda,pinturamural, textos confucionistas,

taoistas e um conjunto de textos cristãos, que ficariam conhecidos por Sutras de

Jesus.Poroutrolado,aquedaadinastiaHan,duranteoséculoIIdanossaErateve

como consequência a falência do Confucionismo, que funcionava como o suporte

ideológico de uma elite de eruditos e conselheiros imperais. Perante o cenário de

instabilidadepolítica,ossúbditosdoimperadorencontramesperançanaalternativa

populardoTaoismoenanovidadedareligiãobudista.

O facto é que Jingjing, na inscrição da estela de Xi’an, estabelece um

paralelismoconceptualeteológicoaoreferir‐seaoTaoparaintroduziroJingjiao(a

religiãodaLuzdoOcidente)ouaindaaSutrasquandoserefereaostextoscristãos

queAlopentraziaconsigoequeforamtraduzidosnabibliotecaimperial8.Apesarde

7WilhelmBaumeDietmarWinkler.TheChurchof theEast.A concisehistory. London /NewYork:RoutledgeCurzon,2003.8Cf.PaulPelliot,L’inscriptionnestoriennedeSi‐ngan‐fou(editedbyAntoninoForte).Kyoto:Scuoladistudisull’AsiaOrientale&Paris:CollégedeFrance/institutedesHautesEtudesChinoises,1996.

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severificarautilizaçãodeconceitosteológicos comunsaoCristianismo,Taoismoe

Budismo, tantonaesteladeXi’ancomonos textos cristãosencontradosporAurel

Stein e Paul Pelliot nas Grutas de Mogao no início do século XX, não existe um

sincretismo religioso9.No nosso entender, o que se verifica é que osmissionários

cristãosdosséculosVIaIXusamparalelismosconceptuaisesimbólicosparafacilitar

oentendimentodoCristianismoàsemelhançadoTaoismoedoBudismo.Perantea

ausência de uma relação directa, que exige por si só um conhecimento das

estruturas culturas e religiosas da China para transmitir determinado conteúdo, é

necessáriocriaressepontodepartidacombasenumarelaçãodeproximidade,isto

é,apartirdeumprincípiodeanalogia.

Omesmoníveldeparalelismoétambémvisíveldopontodevistaartísticoda

esteladeXi’an,emparticular,nadecoraçãosuperior,juntodosnovecaracteresdo

título (Fig. 5 e 5.1).No topo da estela os noves caracteres encontram‐se sob uma

cruzassentesobreumaflordelótuseoutroselementosflorais(açucenas)gravados

napedra, ladeadosporduasfigurasgrotescasaparentementealadas,apoiadasnas

patastraseirasenumadaspatasdianteiras.Comaoutrapataambasseguram,sobre

a inscrição e a cruz, um globo flamejante. É interessante notar que a própria cruz

temumapequenachamanapartesuperiorquepoderáserrelacionadacomachama

deBudaequerepresentaoseuconhecimentoeIluminação,damesmaformaquea

cruz de Cristo representa a suaMorte e Ressurreição e a sua condiçãoDivina.No

mesmosentido,oglobo sobrea cruz, suportadopelas figurasaladas tambémestá

envolto com uma chama que representa a difusão da luz e conhecimento pelo o

mundo.

Relativamenteàsfigurasaladasqueseguramoglobo,anossapropostaéque

se trate da representação de um tema da tradição chinesa que remonta, tanto

quantotemosconhecimento,aoPeríododosEstadosCombatentes.Arepresentação

9 Sobre as relações entre os textos cristãos, budistas e taoistas encontrados em Dunhuang verStephen Eskildsen. “Parallel themes in Chinese Nestorianism and Medieval Daoist Religion”. IN:Jingjiao.TheChurchof theEast inChinaandCentralAsia, editedbyRomanMalek. SanktAugustin:InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.57‐91.

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dedoisdragõesbrincandocomoulutandoporumapérolaflamejantefazpartedo

imaginário simbólico da tradição taoista, no qual o dragão representa o cume da

hierarquia celestial. É precisamente do dragão que emana o mítico Imperador

Amarelo,Huangdi.Porpor suavez, apérola flamejante representao universoeo

conhecimentodetodasascoisas.Defacto,arepresentaçãododragãoremontaàs

esculturas em jade da cultura Hongshan (4600 ‐ 2900 ANE) do período Neolítico,

provavelmentecomosímbolodopodercelestial.Estasesculturas,deformacircular,

eramusadascomopendentesoupeitorais,provavelmente,pelolíderdoclã.

A mais antiga representação do dragão com uma pérola de que temos

conhecimento encontra‐se na ornamentação do cabo de uma colher, datada do

PeríododosTrêsReinos(221‐80ANE),provavelmenteusadaemrituaisdedicados

aosespíritosancestrais(Fig.6).Todavia,autilizaçãodotemaemoutroscontextose

variantesformaispermiteperceberumaoutradimensãosimbólicadarepresentação

dodragãocomapérola.Umaespada,datadaporvoltade600equeseconservano

MetropolitanMuseumofArt,foiencontradanumtúmuloimperialpertodeLuoyang,

na Província de Henan. O cabo da espada é detalhadamente decorado com dois

dragões em confronto, com uma pérola flamejante entre ambos, formando um

círculo.Nestecaso,osdoisdragõeslutandoporumapérolaflamejanterepresentam

aforçanecessáriaparaconquistar,controlaregovernar,sendoporissoosímbolodo

Imperador.ApérolaflamejanteéosímbolodoSoledaLua,daLuzedaEscuridão,

doYinedoYang,doequilíbriodoCosmos.Éprovávelquearepresentaçãodosdois

dragões lutandopelapérola flamejantenocabodaespadarepresenteoconfronto

entre o seu proprietário contra o seu inimigo e a unificação de duas forças sob a

governaçãodomesmosoberano.

NaesteladeXi’anosdragõesestãorepresentadosnumaposiçãoharmoniosa,

entrelaçadosumnooutroeambossegurandoapérolaflamejante.Nonossoponto

devista,esteesquemaderepresentaçãosignificaoencontroentreduasrealidades

culturais e religiosas distintas que partilhamamesma fontemística e caminhoda

virtude.Aornamentaçãodaestelademonstraodiálogoaoníveldossignificadose

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conceptualizaçãoteológicadopensamentoreligiosoexistenteentreoCristianismo,

oTaoismoeoBudismoduranteoreinadodeTaizong,dadinastiaTang.Éimportante

referiraindaqueestetemafoiamplamenterepresentadonaartebudistaapartirda

dinastiaHan,nasequênciadaintroduçãodoBudismonaChina.Queristodizerque

foi também no contexto de uma confluência e harmonização religiosa entre o

Budismo e o Taoismo que o tema dos dois dragões e a pérola flamejante se

disseminou na China. Com a introdução do Cristianismo na China é pelo mesmo

temaiconográficoqueaaproximaçãodasestruturasreligiosassedesencadeia.

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1.2. AspinturascristãsdasGrutasdeDunhuang

Comoreferimosanteriormente,noiníciodoséculoXX,WangYuanludescobriu

o vasto conjunto documental e iconográfico nasGrutas deMogao, emDunhuang,

datados do século V ao século XI. Wang Yuanlu vendeu a maior parte destes

documentos ao arqueólogo húngaro Aurel Stein, que já desenvolvia algumas

expedições na Ásia Central. A partir de 1910 realizaram‐se várias expedições

conduzidasporAurelStein,PaulPelliot,OtaniKozuieSergeiOldenburg,oquelevou

àdispersãodosdocumentoseeventualmenteàfalsificaçãodedocumentos.

Entreosmaisdequatromildocumentos,foramencontradospelomenosnove

textoscristãosdecarácterdoutrinal.Quatrodessestextospoderãoserdaautoriade

Alopen,omissionárioqueintroduziuoCristianismonaChinaequefoirecebidopelo

imperador. Omais antigo destes textos é o Sutra de Jesus oMessias, datado por

Saeki entre 635 e 6381. Outros textos que poderão ser atribuídos a Alopen são o

Discurso sobre oMonoteísmo; a Parábola e o Sutra sobre o único governador do

Universo, eventualmente escritos em 641. Em 1908, Paul Pelliot descobriu um

conjunto de cinco textos nas grutas de Dunhuang, quatro dos quais datados do

século VIII e, presumivelmente, da autoria do Bispo Ciríaco (Hino DaQin Religião

LuminosaemAdoraçãodaSantíssimaTrindade;HinodaTransfiguração;Sutradas

Origens das Origens e Sutra para atingir Paz e Descanso). O Livro da Honra,

provavelmentedoséculoX,fazreferênciaaoautordaesteladeXi’an,Jingjing,eterá

sidoumdosúltimostextoselaboradosantesdeasgrutasteremsidoseladaspelos

Tibetanos, em 1036, na sequência da conquista de Dunhuang por Li Yuanhao do

1PeterYoshiroSaeki.TheNestorianDocumentsandRelicsinChina.Tokyo:TheAcademyofOrientalCulture,TokyoInstitute,1951.

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Império Tangut (Xia Ocidental)2. Este último texto prova que, mesmo após a

publicação do édito imperial que proíbe o Cristianismo, o Maniqueísmo e o

ZoroastrianismonaChina,em845,asgrutasdeDunhuangaindaserviamdecentro

religiosodebudistasecristãosduranteoiníciodoséculoXI.

NasgrutasdeDunhuangnãosóforamencontradosestesdocumentos,como

também foramencontradasalgumas imagens, dequeéexemplo um rolode seda

verticalquerepresentaumafiguradandoabênçãocomamãodireitaesegurando

uma vara com a mão esquerda. A figura enverga as roupas tradicionais de um

bodhisattvaeestárepresentadacomumhalodourado,umacruzsobreumaflorde

lótusnumaespéciede tiaraeumaoutranumcolarao peito (Fig.7).O fragmento

não permite contemplar a pintura completa; contudo, Aurel Stein executou um

desenhosupondoaexistênciadeumacruznaextremidadedavaracrucífera(Fig.8).

Esta imagemé de facto, na nossa opinião, uma representação de Cristo e não de

uma qualquer figura cristã, elaborada a partir dos modelos da arte budista,

relacionando a figura de bodhisattva ou de Avalokitesvara como guias das almas

com Cristo Salvador do Mundo (Fig. 9, Fig. 10 e Fig. 11). Gostariamos ainda de

acrescentar,quealinguagemcorporal,emparticulardabênçãocomamãodireita,a

presença da cruz no lugar do Buda Iluminado, que caracteriza Avalokitesvara, e

aindaasubstituiçãodabandeirapelavaracrucíferarepresentamumaequiparação

dosagradoquepermiteestabelecerumarelaçãoentreomodeloderepresentação

dobodhisattva e omodelo Bizantino de representação de Cristo Ressuscitado na

DescidaaoInferno,talcomoencontramosnomosteirodeHosiosLoukas,naBeócia

(Fig.12).

Em1999,MartinPalmeriniciouumacampanhadeestudosobreoPagodeDa

Qin, localizado em LouGuan Tai, na Província de Xi’an, onde em tempos Laozi se

fixoueescreveuoTaoTeChing.EmFevereirode2001,numacomunicaçãonaAsian

Society,emHongKong,apresentouasconclusõesdeinvestigação,defendendoque

o PagodeDaQin é a única emais antiga estrutura arquitectónica cristã na China,

2 Cf. Nicolas Standaert (edited by). Handbook of Christianity in China. Vol. 1: 635‐1800. Leiden,Boston,Koln:Brill,2001,p.8.

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OCristianismonaÁsia:daIgrejaAssíriadoOrienteaJoãodeMontecorvino

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datada do século VII / VIII, tendo sido posteriormente transformada em templo

taoista e depois budista, até ter sido completamente abandonado após um

terramotoem15563.

Desde aí, apenas em1932 é que foi redescoberto por Peter Yoshiro Saeki a

partir de um mapa que recebeu de um grupo de japoneses que identificou um

pagode de Da Qin, sem nunca o reconhecer como tendo sido uma igreja cristã4.

MartinPalmerpropõequeestepagodesetratadeumaantigaigrejacristãcombase

num conjunto de argumentos relacionados com a orientação Este / Oeste do

pagode, à imagem das igrejas Cristãs e ao contrário da orientação Norte / Sul

normalmentevisívelnasestruturastaoistas,Confucionistasebudistas.

Nos pisos superiores do pagode, que se pensa estarem inacessíveis desde o

terramoto em 1556, encontram‐se dois relevos em estuque que Martin Palmer

identifica como sendo uma Natividade (Fig. 13) e Jonas sob a árvore em Nínive,

numaproximidadecomosestilosBizantinos,devidonão sóaoposicionamentoda

figuraque identificacomosendoMaria,mastambémpelodrapejado“helenístico”

dasroupas5.

Todavia, tal comoKen Parry sugere, de facto a posição da figura é bastante

comum na arte budista da dinastia Tang e, mais tarde, durante a dinastia Song,

caracterizadacomoaposturaderelaxamentoreal(rajalilasanaoumaharajalilasana)

3MartinPalmer.TheDaQinproject: EarlyChristianity inChina.ComunicaçãoapresentadanaAsianSociety, Hong Kong a 23 de Fevereiro de 2001. [Citado em 29‐12‐2009]. Disponível emhttp://www.asiansociety.org/speeches/palmer.htmlNomesmoano,publicouumestudomaisvastocomtraduçõesdeoitotextos,aosquaischamaSutrasdeJesuseatraduçãodainscriçãodaesteladeXi’an.Cf.MartinPalmer. JesusSutras:Rediscoveringthe lostscrollsofTaoistChristianity.NewYork:Ballantine,2001.4PeterYoshiroSaeki.TheNestorianDocumentsandRelicsinChina.Tokyo:TheAcademyofOrientalCulture,TokyoInstitute,1951.5 Martin Palmer. Jesus Sutras: Rediscovering the lost scrolls of Taoist Christianity. New York:Ballantine,2001.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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queapresentaafigura,normalmenteManjusrieAvalokitesvara(Guanyin),comuma

daspernasdobradas(Fig.14)6.

Apesardasambíguase frágeispropostasdeMartinPalmer,nosúltimosanos

tem sido desenvolvida vasta investigação para um melhor entendimento desta

herançaartísticaepatrimonialdaIgrejaAssíriadoOrienteduranteadinastiaTang,

particularmenteentre635e845.

Em845, o imperador taoistaWuzong reage ao crescimento da influência do

BudismonaChinapublicandouméditoqueproíbeocultodereligiõesestrangeiras,

em particular o Budismo, o Cristianismo, o Maniqueísmo, o Zoroastrianismo e o

Islamismo, procedendo à ocupação de mosteiros e obrigando à deslocação de

mongesemuçulmanosparaasregiõesdosUyghureparaasestepesdaMongólia.

Deste primeiro momento de introdução do Cristianismo na Ásia Central,

sobretudoduranteadinastiaTang,enoSuldaÁsia,desdeapregaçãodeS.Tomé,

subsiste uma herança cultural e artística reveladora de uma permeabilidade e

alteridade, resultantes de um contacto permanente com outras religiões e

formalismosconceptuaisdarelaçãocomosagrado.Éperceptívelque,desdeasua

génese,aartecristãcriouasualinguagemsimbólicaapartirdocontactodesistemas

derepresentaçãoecomunicaçãovisualancestrais.

6KenParry.“TheartoftheChurchoftheEastinChina”.IN:Jingjiao.TheChurchoftheEastinChinaandCentralAsia,editedbyRomanMalek.SanktAugustin: InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.321‐339.

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2. OCristianismoeaPaxMongolica

Na sequência da perseguição religiosa do imperador Wuzong durante o

declínio da dinastia Tang, osmonges budistas e cristãos fixaram‐se na região dos

Uyghur,deXinjiangenaBaciadeTarim.

PertodeTurfan,umapinturamuralnasgrutasemQocorepresentatrêsfiguras

quecarregamumramofrenteaumdiáconoqueseguraumcálicenamão(Fig.15).

As três figuras vestem um traje tradicional chinês Uyghur observável em outras

pinturasdasgrutasdeBezeklikemTurfan(Fig.16).Poroutrolado,afiguraqueParry

identificacomosendoumdiáconoévisivelmenteumafiguraocidental,nãosópelas

roupas,comotambémpelodesenhodorostoepelocabelo.

Apresençadestaspinturas,queaguardamestudosdeprofundidade,provam

umacontinuidadedapresençadoCristianismonaChinae,maisinteressanteainda,

que foram os cristãos autóctones que durante a dinastia Yuan difundem o

Cristianismo em Quanzhou, no Sul da China, ainda antes da chegada dos

missionáriosfranciscanos1.

DepoisdaunificaçãodaMongólia,GenghisKhanavançaparasulemdirecção

aoestadodeUyghur,comoqualestabeleceumaaliançaem1209.Osoberanode

UyghurmantémoseupodersobodomíniodoImpérioMongol.Abasedestaaliança

está certamente relacionada com as rivalidades entre os Uyghur e o Khanato de

Kara‐Khitan,umavezque, logoem1219,viramasuacapital,Kashgar,conquistada

porGenghisKhan2.Em1273,MarcoPolopassouporKashgarerelatouapresençade

1Cf.ZhouLiangxiao.“ChinesenestorianismintheJinandYuanDynasties”.IN:Jingjiao.TheChurchofthe East in China and Central Asia, edited by Roman Malek. Sankt Augustin: Institut MonumentaSerica,s.d.,pp.197‐207.2PatriciaBuckleyEbrey.TheCambridgeillustratedHistoryofChina.Cambridge:CambridgeUniversityPress,10thedition,2008,pp.169‐179.

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umelevadonúmerodecristãosedeigrejas.

GenghisKhanfoiounificadordaMongóliaeoprimeiro imperadorMongole,

apósas suas conquistasnoCáucaso,ChinaeÁsiaCentral, abriu caminhoaqueos

seusdescendentesdessemcontinuidadeaomaiorimpérioterritorialdahistóriaeà

implementaçãodadinastiaYuannaChina,entre1271e1368,fundadaporKhubilai

Khan. O impérioMongol aglomerou uma vasta diversidade cultural, adoptando e

incorporando as estruturas culturais existentes. Tanto Genghis Khan, como o seu

filhoOgödei e o seu neto, Khubilai Khan,mantiverameruditos chineses,Uyghur e

conselheirosdaÁsiaCentralnasuacorte,deformaagarantir,atravésdeumsistema

devassalagem,auniãodoImpério.

Peranteestecenáriodetolerânciaculturalereligiosa,oCristianismodifundiua

suaáreade influênciapelaposiçãoprivilegiada dosUyghur juntodos imperadores

mongóis ao longo do séc. XIII e XIV. Desde o final do século XIX que têm sido

descobertos túmulos com a cruz e o lótus desde Almaliq, Província de Xinjiang,

passandopelaMongóliaInterior3,eaEstedePequimatéàcidadedeQuanzhou,na

Província de Fujian, onde foram encontradas mais de trinta túmulos, juntamente

comtúmulosislâmicos,maniqueístasehindus4.

Particularmente, Quanzhou tornou‐se, ainda durante a dinastia Tang, um

entreposto comercial, continental e marítimo que servia o comércio dos persas,

árabes e hindus. Contudo, os indícios de presença do Cristianismo em Quanzhou

datam da dinastia Yuan. De acordo com Xie Bizhen, o Cristianismo chegou a

QuanzhouaindaduranteadinastiaTang,talcomooIslamismo,oManiqueísmoeo

Hinduísmo,mas,duranteapolíticadeintolerânciareligiosadeWuzong,asreligiões

estrangeiras perderam a sua influência que, voltaria mais tarde, com o

3 Tjalling Halbertsma. “Some notes on past and present field research on gravestones and relatedstonematerialsof theChurchof theEast in InnerMongolia,China”. IN: Jingjiao.The Church of theEast inChinaandCentralAsia,editedbyRomanMalek.SanktAugustin: InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.303‐3194Cf.NiuRuji.“NestorianinscriptionsfromChina(13th‐14thCenturies).IN:Jingjiao.TheChurchoftheEast inChinaandCentralAsia,editedbyRomanMalek.SanktAugustin: InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.209‐242.

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estabelecimentodadinastiaYuan5.

DuranteoséculoXVII,oJesuítaManuelDiazdescobriuostúmuloscristãosde

Quanzhou e publicou na Europa gravuras das inscrições e decoração destes

túmulos6. As estelas funerárias e os túmulos cristãos encontrados em Quanzhou

contêm inscrições em chinês e em turco‐siríaco, o que revela que estes cristãos

descendiamcertamentedascomunidadescristãosdeTurfanenativoschineses.

As decorações das estelas funerárias deQuanzhou, para alémda tradicional

cruzsobreaflordelótus,tornam‐semaiscomplexascomaintroduçãodeanjosque

seguramacruz,comosímbolodavitóriadeCristosobreamorte(Fig.17,Fig.18,Fig.

19eFig.20)7.Arepresentaçãodeanjosnaiconografiacristãtemorigemnaherança

Greco‐RomanaePersa.Noentanto,apresençadeanjosnostúmulosdeQuanzhou

poderáestar relacionadacomocontactopróximocomoutras realidades religiosas

durante os séculos XIII e XIV. No Budismo e no Hinduísmo, as apsaras são seres

celestiais que transportam os mortos para uma nova existência. O templo de

Kuaiyuan, o maior templo budista em Quanzhou, datado de 686, faz convergir o

estilo da arquitectura religiosa da China e da Índia. No interior, a sala principal

contémseisfigurasdeBudadouradase,notecto,sãovisíveisapsarasquerevelama

iluminaçãodeBuda.NoIslamismo,osHamalatal‐'Arshsãoosanjosquecarregamo

tronodeDeus.Emtodososcasos,oprincípioaxiológicodosanjos,dasapsarasedos

Hamalat al‐'Arsh, na ligação entre o contexto celeste e o contexto mundano são

comunsetransversaisatodasastradiçõesreligiosas.Poroutro lado,orecortedas

estelas tumulares denota uma influência islâmica no delinear de arcos que são

igualmentevisíveisnaMesquitadeQuanzhou,datadado séculoXIII (Fig.21eFig.

22). Estes aspectos da imaginária cristã em Quanzhou têm ainda uma inspiração

budistanãosónapresençadeumdosselsobreacruz,característicodaiconografia

5Xie Bizhen. “TheHistoryofQuanzhouNestorianism”. IN: Jingjiao.The Churchof theEast in ChinaandCentralAsia,editedbyRomanMalek.SanktAugustin:InstitutMonumentaSerica,s.d.,pp.273.6KenParry.“TheartoftheChurchoftheEastinChina”.IN:Jingjiao.TheChurchoftheEastinChinaandCentralAsia,editedbyRomanMalek.SanktAugustin:InstitutMonumentaSerica,s.d.,p.326.7Op.Cit.,p.331.

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budista,mastambémnaposiçãodeumafiguraalada,coroada,sentadanaposição

demeditaçãosobreumasnuvensecomumacruzentreasmãos(Fig.23).

Entre1250e1350,osmissionáriosFranciscanoschegaramàChinaduranteum

próspero momento de intercâmbio comercial e cultural da Pax Mongolica. Os

confradesdeFranciscodeAssisestabeleceramumaponteentreaEuropaeovasto

ImpériodosYuan,trazendoparaumladoeparaooutro,ofertasque,porumlado,

procuravam apoio para as missões na Ásia e, por outro, a permissão para a

continuaçãodasmissõesdentrodoImpérionasPartesOrientales.

Aindaduranteadécadade40doséculoXIII,oFranciscanoGiovannidiPian del

Carmine foi enviado pelo Papa Inocêncio IV ao Império do Grande Khan, com o

objectivodeconverterGuyuk,filhodeOgodei.Passadosdoisanos,Carmineregressa

a Roma com a resposta indicando que o Papa teria primeiro de se submeter ao

ImpérioMongol.Apósoseuregresso,deixouo registodasuaviagemcomotítulo

HistoriaMongolorum.

EmMaiode1253,omissionáriofranciscanoGuilhermedeRubruckpartiude

Constantinopla,soboespíritodeCruzadadoReideFrança,LuísIX,comoobjectivo

de converter os Tártaros e obter a aliança do Imperador Mongol contra os

Sarracenos.Noseuregresso,em1255,entregouaoReiLuís IXoregistodaviagem

como título Itinerarium fratrisWillielmide Rubruquisdeordine fratrumMinorum,

Galli,Annogratia1253.adpartesOrientales.Noseurelato,GuilhermedeRubruck

refere a existência de cristãos nestorianos, relatando que estes eram respeitados

acima de todos os outros8. Afirma ainda que estes nestorianos convivem com

Sarracenos em toda a parte da China, em mais de quinze cidades. Têm sede

episcopalemSegin,masexceptuandoesse factoconsideraqueosnestorianos são

8 Itinerarium fratrisWillielmi de Rubruquis de ordine fratrumMinorum,Galli, Anno gratia 1253. adpartesOrientales,Cap.X.IN:W.W.Rockhill(trad.).TheJourneyofWilliamofRubrucktotheEasternPartsoftheWorld1253‐1255withtwoaccountsoftheearlier journeyofJohnofPiandeCarpine.NewDelhi:AsianEducationalServices,1998,p.108‐116.

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idólatras.Usamtextossagradosemsiríaco,noentantodesconhecemnãosóalíngua

comotambémaverdadeirafécristã.SãopolígamostalcomoosTártaroseexecutam

diversosrituaisidênticosaosSarracenos.

Quando visitou a corte do Imperador Rubruck, foi recebido por um oficial

nestorianoeviuumaltar.JuntoaestehaviaumparamentocomaimagemdeCristo,

daVirgem,deS.JoãoBaptistaedoisanjos.Conversoucomosnestorianosdacorte

sobre as suas intenções e refere a existência de uma imagem da Natividade à

entrada dos aposentos imperais9. O registo de Rubruck permite‐nos perceber a

importânciaqueoCristianismonestoriamotinhadentrodacortedadinastiaYuan,

considerandoparticularmentequeSorghagahtaniBeki,mãedeMongkeKhanedo

seuirmãoesucessor,KhubilaiKhan,eracristã10.Muitoprovavelmenteteráexercido

influência ao nível da tolerância religiosa e da presença de taoistas, budistas,

nestorianos,muçulmanosecristãosjuntodacorteimperial.

DuranteoreinadodeKhubilaiKhan,oprimeiroimperadordadinastiaYuan,as

missõesromanasnaChinaÁsiaCentralcontinuaram,dinamizadaspeloPapaNicolau

IV.OFranciscanoJoãodeMontecorvinochegouaoportomarítimodeQuanzhouno

final de 1293 e daí partiu para a capital, em Pequim, onde, eventualmente, terá

chegadopoucodepoisdamortedeKhubilaiKhan,emFevereirode1294.Apesardas

hostilidades por parte dos cristãos nestorianos, que o acusaram de espionagem,

João deMontecorvino conseguiu, em 1298, autorização para construir a primeira

igreja católica emPequim.A partir das cartas doBispo de Pequim, sabe‐se que a

Igrejadeveriatersidodecoradacombasenas ilustraçõesdaBíbliaPauperumede

outros livros iluminados que haviam sido trazidos em1294 para Pequim11. Lauren

ArnoldavançacomumapropostaconjecturalsobreadecoraçãodaigrejadePequim

combasenosregistosdeMatteoRicci,doiníciodoséculoXVII,sobreaaversãodos

9Op.Cit.,Cap.XIVeXV.,p.157‐206.10LaurenArnold.PrincelygiftsandPapaltreasures.TheFranciscanMissiontoChinaanditsinfluenceontheartoftheWest,1250‐1350.SanFrancisco:DesideratePress,1999,p.19.11Op.Cit.,pp.43‐53.

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chinesesàrepresentaçãodaCrucificação,sendo,porisso,necessáriocontornaresta

colisãoculturalereligiosa.NolugardaCrucificação,teriasidocolocadaumaÁrvore

da Vida, retirada da meditação de S. Boaventura, na qual Cristo está ao centro,

envolto pelos Profetas do Antigo Testamento e pelos Apóstolos do Novo

Testamento12.Contudo,nãoexistehojequalquerevidênciaquenospermitateruma

ideiasobreadecoraçãodasigrejascatólicasnaChinaduranteadinastiaYuan.

ApartirdoBispadodePequim,JoãodeMontecorvinocoordenouasmissões

católicasnaszonascosteirasaSul,emparticularemGuangzhou(Cantão),Quanzhou,

HangzhoueYuangzhou.NestascidadesportuáriasnoSuldaChinaestabeleceram‐se

missionários emercadores europeus que faziam chegar notícias sobre as gentese

coisasqueaíacorriamdetodaaÁsia.Ébastanteprovávelquetrouxessemconsigo

objectosportáteisdedevoçãopessoal,particularmentecomunsnaEuropaMedieval,

tais como breviários, trípticos portáteis em marfim, evangeliários e legendas dos

santosilustradasououtrotipodeiconografiacristã.

O crescimento do Cristianismo católico em Quanzhou levou João de

MontecorvinoaestabelecerSéEpiscopaleanomearAndreasdePerugiaBispode

Quanzhou,em1322.Noentanto,nãodeixade ser interessantenotarqueapedra

tumular de Andreas de Perugia é decorada com iconografia nestoriana, com dois

anjosqueseguramumacruzsobreolótus(Fig.24).

Porém, foi em Yuangzhou que foram encontradas as únicas duas pedras

tumularescomiconografiacatólica,datadasde1342e1344.Aspedrastumularesde

Katerina Vilionis e Antonio Vilionis, filhos de um mercador genovês, Dominico

Vilionis,estão,respectivamente,decoradascomcenasdavidadeSantaCatarinade

Alexandria e Santo António. As estelas poderão ter sido executadas pelo mesmo

artista e seguem um programa iconográfico similar. A pedra tumular de Antonio

Vilionis está gravada com temas alusivos ao Juízo Final, com a representação, no

topo ao centro, de Cristo em Majestade, ladeado por dois anjos ao estilo das

12Op.Cit.,pp.50‐52.

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ilustrações do flos sanctorum, de breviários e outros livros populares na Europa

durante os séculos XII a XV (Fig. 25). Por baixo, à direita, as almas erguem‐se dos

túmulos para o peso das almas, no Dia do Juízo Final. À esquerda, vê‐se uma

representaçãodeSantoAntão sentadonochãoeapoiadonacruzem tau, juntoa

umapequenafiguraquepareceserumdemónioeque,emconjunto,simbolizama

tentaçãoeconsolidaçãodafé.FrenteaSantoAntão,estáumafigurafemininacom

uma criança no colo que LauraArnold aponta como sendoumerro interpretativo

sobre o episódio daAparição daVirgeme oMenino a SantoAntónio de Lisboa13.

Contudo, parece‐nos que não se trata de um “erro” iconográfico, ou de qualquer

combinaçãodaslegendasdeSantoAntãoedeSantoAntónio,massimdeumúnico

registodalegendadeSantoAntão,representandoaVirgemeoMeninocomSanto

Antão.Este temaéparticularmentepopularduranteo finalda IdadeMédia, tanto

emItáliacomonaFlandres14.

ApedratumulardeKaterinadeVilionisapresentanotopo,aocentro,aVirgem

eoMenino,envoltosnummanto,sobreumbancochinês(Fig.26).Sobreainscrição,

numazonacentral,estãorepresentadososmartíriosdeSantaCatarina,àesquerdao

martíriodaroda,aocentroadecapitação,e,sobreesta,adeposiçãonotúmulono

MonteSinai.Àdireita,encontra‐seumafiguramasculinacomumacriançanocolo,

queLauraArnold identifica comosendoaentregadaalma,enquantocriança, por

umfradefranciscano15.

No seguimento do estudo sobre esta pedra tumular, Lauren Arnold elabora

uma interessante tese relacionando a lenta transformação do bodhisattva

AvalokitesvaranadeusapopularGuanyincomadevoçãomarianadosmissionários

Franciscanos16. Refere que nas grutas de Dunhuang, Guanyin é representada

conduzindoasalmasaoParaísodeAmitabhaequeaVirgemrepresentadanapedra

13Op.Cit.,pp.139.14Cf. LouisRéau. IconografiadelarteCristiano: iconografiade los santos.Madrid:EdicionesSerbal,vol.4,1997.15Op.Cit.,pp.138‐141.16Op.Cit.,pp.140‐152.

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tumular de Katerina de Vilionis é claramente uma Virgem da Humildade, que se

assemelha profundamente com a representação formal de Guanyin nos séculos

subsequentes, em particular nas figuras popularizadas emmarfim e nos Blanc de

ChineapreciadosnãosónaChinaenoJapãocomotambémnaEuropa17.

De acordo com Lauren Arnold, as primeiras referências a Guanshiyin

encontram‐senasGrutasdeMogaoemDunhuang,referindo‐seaobodhisattvaque

“olhapelosfilhosdomundo”enquantointercessordetodasasalmas,tendooculto

de Guanyin chegado ao Sul da China durante o século XII. Afirma, por fim, que

durante o final do século XIII a religião popular chinesa adopta uma divindade

budista, transformando‐a numa deusa que simboliza a protecçãomaterna. Com a

chegada dos Franciscanos durante o século XIII e XIV, são aindamais estreitos os

valoresdapiedadeedacastidadeque,tantoGuanyincomoaVirgemdaHumildade,

representam.DuranteoséculoXIV,Guanyinpassaaserrepresentada,àimagemda

Virgem da Humildade, com uma criança no colo, certamente pela influência da

devoçãomariana e das imagens portáteis dosmissionários Franciscanos no Sul da

China18.

Para alémdestas propostas pertinentes, existemainda dois aspectos que na

nossa opinião são fundamentais, por um lado, para perceber a génese da

transformaçãodobodhisattvaAvalokitesvara naDeusaGuanyine,por outro lado,

paraperceberapopularidadedeGuanyinnoSuldaChina,aindaantesdachegada

de João de Montecorvino e dos missionários Franciscanos, a partir da segunda

metadedoséculoXIII.

No vasto espólio arqueológico das Grutas de Mogao, em Dunhuang, foram

encontradosoitocentasesessentacópiasdoSutradoLótus,datadosentreoséculo

17 LaurenArnold. “Guadalupe andGuanyin: Images of theMadonna inMexico and China”. IN:TheRicci Institute. Public Lecture Series. ‐ Feb, 2005 ‐ San Francisco, pp. 1 ‐ 6. [Citado em 05‐01‐2010]Disponívelemhttp://www.usfca.edu/ricci/events/lauren.pdf18LaurenArnold.PrincelygiftsandPapaltreasures.TheFranciscanMissiontoChinaanditsinfluenceontheartoftheWest,1250‐1350.SanFrancisco:DesideratePress,1999,p.142.

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IXeX19.EsteconjuntodeensinamentosdoBudismoMahayana(oGrandeVeículo)

foi traduzido pela primeiraveznaChinaduranteo século IVe tornou‐senumdos

maisimportantestextossagradosapartirdoséculoVI,difundindoadoutrinaatravés

de um conjunto de parábolas e de acontecimentos fantásticos. Uma das

particularidades do culto do BudismoMahayana é a introdução na China de um

panteãodeBudasebodhisattva,quesetornouevidenteatravésdeumaprofusãode

imagensdoBudaAmitabha(BudadoOcidente),BudaMaitreya(BudadoFuturo)e

Avalokitesvara (Buda da Compaixão)20, este último conhecido na China por

Guanshiyin ouGuanyin.OSutra do Lótus temum capítulo totalmente dedicado a

Avalokitesvara,quesetornoudetal formapopularquefoidifundido isoladamente

logoduranteo iníciodoséculoV,sobadenominaçãoSutradeGuanshiyin (Pumen

pin)21. Só em Dunhuang foram encontrados cento e vinte e oito exemplares do

capítuloXXVdoSutradoLótus,oquedemonstraapopularidadedeAvalokitesvara

duranteasdinastiasSuieTang.Estetextofoicertamenteumadasmaisimportantes

fontes para a representação do bodhisattva Avalokitesvara, nas suas diferentes

manifestaçõesenarrativasdidácticas.

Nessetextoháumareferênciaaospoderesde intercessãodeAvalokitesvara,

naqualpoderemosler"Ifawomanwishestogivebirthtoamalechild,sheshould

offer obeisanceand alms to bodhisattva Perceiver of theWorld's Sounds and then

shewillbearasonblessedwithmerit,virtue,andwisdom.Andifshewishestobeara

daughter, shewill bear onewith al themarks of comeliness, onewho in the past

plantedtherootsofvirtueandislovedandrespectedbymanypersons”22.Numdos

manuscritosdestesutraencontradosemDunhuang,datadodoséculoIXouX,sobre

estapassagem,háuma ilustraçãoquerepresenta,numadaspáginas,umcasalem

19 Jacques Pimpaneau.Mémoires de la cour céleste. Mythologie populaire chinoise. Paris: ÉditionsKwokOn,1997,p.203.20 Personal Salvation and Filial Piety. Two precious scroll narratives of Guanyin and her Acolytes,traduçãoeintroduçãodeWiltIdemaS.l.KurodaInstitute,pp.5e6.21ChristineMollier.BuddhismandTaoismfacetoface:scripture,ritual,andiconographicExchangeinMedievalChina.Honolulu:UniversityofHawaiiPress,2008,p.175.22TheLotusSutra,traduçãodeBurtonWatson.NewYork:ColumbiaUniversityPress,1993,pp.300.

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oraçãofrenteaAvalokitesvarae,napáginaseguinte,vemosaconcretizaçãodassuas

preces,comonascimentodofilhodeambos(Fig.27)23.

OspoderesdeintercessãodeGuanshiyinpermitemumarelaçãoimediatacom

aVirgemMaria,nãosóaoníveldacompaixãomastambémaoníveldamaternidade.

É interessante notar que Guanshiyin significa, literalmente, “olha pelos filhos do

Mundo” atribuindo‐lhe um estatuto de mãe e em simultâneo de criadora da

humanidade.OSutradoLótuséclaroemrelaçãoàmanifestaçãodeAvalokitesvara,

que está acima de qualquer forma, não tem criação ou destruição, pureza ou

impureza,sentimentooupercepção.

Durante os breves momentos de intolerância religiosa e rivalidade com o

Taoismo, como já referimos atrás, não poderemos deixar de considerar que a

naturezafemininadeGuanyinestaráestreitamenteligadacomXiWangMu(Rainha

MãedoOcidente),umadasprincipaisdivindades taoistasque salvouoshomense

mulheresdosseusinfortúnios24.XiWangMutornou‐sebastantepopulardurantea

dinastia Tang, através da poesia onde é enaltecida a sua protecção, emparticular

como guardiã das mulheres. Esta compaixão e relação de proximidade com as

mulheresserviramdebaseaesteprocessodealteridadeedesincretismoreligioso

entre duas divindades de sistemas religiosos distintos. Durante a dinastia Song, e

comatolerânciareligiosaprotagonizadapelosimperadoresdadinastiaYuan,abre‐

se caminhoaumaproliferaçãoda representaçãodeGuanyin comoumadivindade

feminina. Importaaindaacrescentarque,Kariteimo,umadasprincipaisdivindades

doBudismo japonês e que apresenta uma iconografia idêntica à daVirgemMaria

comomenino ao colo, foi introduzida no arquipélago nipónico durante o Período

NaraeporinfluênciadoBudismochinês25.

Comoafirmámosanteriormente,ocultodeGuanyinébastantepopularnoSul

23SusanWitfield.TheSilkRoad:trade,travel,warandfaith.London:BritishLibrary,2004,p.245.24JacquesPimpaneau.Mémoirsdelacourcéleste.Mythologiepopulairechinoise.Paris:ÉditionsKwokOn,1997,pp.205e206.25SobreaimportânciadeKariteimonoJapãoveja‐seocapítuloVIdesteestudo.

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da China, nomeadamente nas províncias de Zhejiang, de Jiangsu, do Fujian e de

Guangdong.NestazonacosteiradoSuldaChinaéconhecidacomoGuanyindoMar

do Sul, muito provavelmente pela influência da devoção de Mazu, uma deusa

taoista,protectoradospescadoresedasmulheresdospescadores.LinMoniangera

filha de Lin Yuan, umpescador que vivia na ilha deMeizhou, no Fujian durante o

finaldoséculoX.Deacordocomalendaumdiaumtufãoaolargodailhaameaçava

ospescadoresqueestavamnomare LinMoniangentrounumaespéciede transe

enquantorezavaparaquetodosfossemsalvos.Quandoacordaasuamãeconta‐lhe

queopaimorreunomar.DesesperadaMazusainumbarcoparaprocuraroseupai

eatira‐seaomarondepermanecedurantetrêsdias,infrutuosamente,àprocurado

corpodoseupai.Perantetantatristezapartiuparaumacolinaeaíficarsozinhapara

sempre,ondeficariacélebrepelasuaprotecçãosobreoshomensdomare,talcomo

Guanyin, seria ummodelo de compaixão e piedade26.Mazu ficaria conhecida em

MacauporA‐MaeestarianaorigemdatoponímiadopróprioistmoAmagao.

A simbiose entre Guanyin e Mazu é evidente em vários templos budistas,

surgindo inclusivamente a lenda de que os pais deMazu rezaramaGuanyin para

teremmais um filho e que Guanyin lhes concedeu uma filha, que seria a própria

reencarnaçãodeGuanyinnaTerra27.

Emsíntese,apesardeconsiderarmosfundamentaleincontornávelainfluência

doCristianismoedosmissionários franciscanosnoSuldaChinaduranteadinastia

Yuan,pensamosqueseráredutorrestringirmo‐nosaessaperspectiva, ignorandoa

força das religiões e culturas populares, com as quais não só o Budismo, mas

também o Cristianismo se fundem, dando origem a uma nova linguagem e

imagináriareligiosa.

Como poderemos perceber, os primeiros contactos do Cristianismo na Ásia,

logoduranteoprimeiroséculodanossaEra,resultaramnoestabelecimentodeuma

ponteculturalentreaEuropaeaÁsiaqueseprolongouatéàafirmaçãodadinastia

26Op.Cit.,p.223.27LeeIrwin,"TheGreatGoddessesofChina",AsianFolkloreStudies,Vol.49,No.1(1990),pp.53‐68.

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Ming,em1368.AosuplantaroImpériodosYuan,umadinastiaestrangeira,osMing

sentiram a necessidade que se fechar sobre si mesmos, de forma a restaurar os

valores ancestrais da cultura e história da China. Desta forma, o Cristianismo na

Chinaperdeuasua influênciaduranteoséculoXIV,queapenasseriarestabelecida

depoisdosDescobrimentosportuguesesedasmissõesdoJesuítas.

ÀimagemdosacontecimentosduranteofinaldadinastiaTang,queditarama

mobilizaçãodoscristãosparaTurfaneparaasestepesdaMongóliaInterior,como

GovernonacionalistadadinastiaMingoCristianismoteráencontradonovasformas

demanifestaçãodafé,deformaclandestina,equepoderájustificarapopularidade

do culto deGuanyin coma criança no colo,muito ao gosto do cultomariano dos

missionáriosfranciscanos.

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CapítuloIII

ArteCristãnaÍndiaPortuguesa

“Aquy [EmCalecute] nos levarama huagrande Igrejaema quall estavamestas

cousasseguintes.Primeiramentehocorpoda Igrejahedagranduraduumosteiro

toda lavrada de quantaria, telhada de ladrilho, e tinha a porta principall hu

padramderamedalturadehumastoeemcimadestepadramestahuaaveque

parecegallo,eoutropadramdalturadehuuomememuitogroso.Eemomeodo

corpoda Igrejaestahuucorocheotododequanto,etinhahuaportaquantohuu

homemcabia,ehuaescadadepedraperquesobiamhaestaporta,aquallporta

heraderame,edentroestavahuuaymagempequenaaquallellesdiziamqueera

nosaSenhora,ediantedaportaprincipallda Igrejaao longodaparedeestavam

setecampãaspequenas.Aquyfezocapitammororaçamenosoutroscomele,e

nos nom emtramos dentro em esta capella porque seu costume he nom emtrar

nella senam homens certos que servem as Igrejas, aos quaees eles chamam

Quafees. Estes quafes trazem huas linhas per çima do onbro lançadas e por

debaixo do onbro do braço direito asy como trazem os creligos davangelhos a

estola. (...) Eoutrosmujtos santosestavampintadospellasparredesda Igrejaos

quaes tinham diademoas, e a sua pimtura hera em diversa maneira porque os

denteseram tamgrandesque sayamdabocahua polegada,e cada santo tinha

quatroe çinquobraços, eabaixodesta Igrejaestava hugram tanque lavradode

quantariaasycomooutrosmujtosquepellocamjnhotínhamosvisto”.1

1Álvaro Velho.Roteirodaviagemqueemdescobrimentoda Indiapelo CabodaBoaEsperança fezDomVascodaGamaem1497.(EdiçãodeDiogoKopkeeAntóniodaCostaPaiva).Porto:TypografiaCommercialPortuense,1838,pp.55‐57.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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AchegadadeVascodaGamaaCalecuteem1498representa,acimadetudo,o

estabelecimento de uma nova ponte entre a Europa e a Ásia através da qual se

entreviu, por um lado, a concessão exclusiva do comércio das especiarias, e, por

outro lado, a confirmação da existência de reinos cristãos na Ásia. Este duplo

propósito é manifestado pelo degredado anónimo que desembarcou da Nau de

Vasco daGama, quando responde a doismouros dizendo “vimos buscar xrstãos e

especiaria”2.AípensouVascodaGamaterencontradoevidênciasvivasdecristãos

devotosaNossaSenhoraeIgrejasquemantinhamacesaachamadoCristianismo.

O relato deÁlvaroVelho reflecte a imagemerrada queVasco daGama tem

sobre os cristãos e o Cristianismo na Índia, através de referências consecutivas à

presençadecristãos,desdequeatingemacostaoriental africana, nomeadamente

emMelinde3.PoderátersidoopróprioReideMelindeque,eventualmente,deua

ideiadequeaÍndiaseriamaioritariamentepovoadaporcristãos,deformaapoder

assegurarocomérciocomosportugueses4.

A viagem de Pedro Álvares Cabral, dois anosmais tarde, traz uma nova luz

sobre os equívocos de Vasco da Gama em relação ao Cristianismo da Índia,

mostrando que os cristãos não são tantos como se pensava, não têm expressão

política, detida pelos hindus, nem económica, uma vez que eram osmuçulmanos

quedetinhamomonopóliocomercial.

EstescristãosdaÍndiamantiveram‐seisolados,nãosópeloenclaveislâmicono

Médio Oriente, mas também pela política intolerante dos Ming, do cisma do

OcidenteedosurtodePesteNegranaEuropa,quecrioulimitesàcontinuidadedas

2Apesarda importânciadanarrativaéfundamentalconsiderarqueaexpressãoprocuraenaltecerosucesso das campanhas dos navegadores portugueses e, naturalmente, a própria figura do Rei dePortugalD.Manuel I.Aevidênciaencontra‐senoprópriodiálogoentreodegredadoeosmourosnodesembarqueemCalecute,ondeestesperguntamaodegredado“porquenommandaquaElReydeCastellaeElReydeFrançaeaSenhoriadeVeneza?”,aoqueodegredado,orgulhosamente,responde:“ElReydePortugalnomqueiraconsentirqueellesquamandasem”.Op.Cit.,p.51.3Op.Cit.,p.25.4 Luís Filipe Thomaz. “A Carta quemandaramos padres da Índia, da China e daMagna China: umrelatosiríacodachegadadosportuguesesaoMalabareseuprimeiroencontrocomahierarquiacristãlocal”.IN:SeparatadaRevistadaUniversidadedeCoimbra,VolXXXVI(1991),pp.119‐181.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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missões na Ásia. Para além deste afastamento, com contactos esporádicos com o

CristianismoCatólico, os cristãos de S. Tomémantinhama tradição da Igreja Siro‐

MalabarcomumaforteligaçãoàEtiópia.Daíencontrarmos,datáveisdoséculoXIII,

importantes estruturas arquitectónicas de mosteiros e igrejas e outros objectos

litúrgicos,quepensamosseremreveladoresdeumcontactopróximocomacostado

Malabar. Em Naakuto Laab e Lalibela, na Etiópia, persistem ainda igrejas desse

período, nas quais ainda se conservam alguns exemplos da chamada cruz de S.

Tomé.

AconfirmaçãosobreaverdadeiranaturezadoscristãosdaÍndiachegaaoreino

coma notícia de dois padres locais que embarcaramna armada de PedroÁlvares

Cabral, em Cranganor, com o objectivo de regressar a Roma, Jerusalém e

Mesopotâmia,ondeviviamosseusPatriarcas.OspadresJoséeMatiastrouxerama

D. Manuel um punhado de terra recolhida do próprio túmulo de S. Tomé em

Mylapore e informações sobre o Cristianismo na Índia que o Rei de Portugal se

apressaatransmitiraosReisdeCastela5.

Haviaficadoclaro,comasbulaspapaisRomanusPontifexeInterCaetera,que

oReidePortugalgarantiaasoberaniaterritorial,políticaeespiritualdasconquistas

ultramarinasdentrodos limitesgeográficosdefinidoseconfirmadoscomabulaEa

quæprobonopacis.

Contudo,osportuguesesencontraramaíashostilidadesdosmuçulmanosque

detinhamomonopólio do trato da pimenta e do qual não pretendiamprescindir.

ExpulsosdeCalecute,osportuguesesencontraramnoreideCochimaaliançapara

estabelecer uma plataforma de operações não só para a edificação de fortalezas,

feitoriasedeigrejas,mastambémparaaconstruçãodeumimpério6.

Fundada a primeira feitoria em Cochim, por Afonso e Francisco de

5Cf.CartadeD.ManuelaosReisCatólicos(1501).EugéniodoCanto(ed.).TreladodacartaqueElReinossoSenhorescreveoaElReieàRainhadeCastelaseuspadresdanovaÍndia.Lisboa1906.6História dos portuguesesnoMalabarporZinadim, introduçãoenotasdeDavid. Lisboa:Antígona,1998,pp.52‐68.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Albuquerque, com vista a proteger aí o comércio das hostilidades do Samorim de

Calecute,odomínioPortuguêsnoÍndicoconduziuàcriaçãodoEstadoPortuguêsda

ÍndiaeànomeaçãodeFranciscodeAlmeidacomoVice‐ReidaÍndia,comindicações

claras de D. Manuel em relação ao comércio e à soberania territorial do Rei de

Portugal7.AspreocupaçõesgeopolíticasdeD.Manuelconcentram‐seclaramentena

manutençãodasfeitoriasenoalargamentodaszonasdeinfluênciaportuguesatanto

aNortecomoaSuldeCochim.

QuantoaosassuntosdaféedasmissõesnaÍndia,D.Manuelescreveuaopapa

LeãoX,em1513,umacartadandonotíciasobreapropagaçãodaféverdadeirade

Deus: “Óbem‐aventuradopai, por sufrágio da divina Potestade, inúmeras pessoas

emtodaaÍndia,porgraçadoEspíritoSantoeinspiradaspeloseufogo,abandonam

os erros pagãos e, todos os dias, convertidos à nossa religião, abraçam a fé

verdadeiradeDeus”8.É,noentanto,excessivaestaperspectivadeD.Manuelsobre

asmissõesnaÁsia,considerandoque,aindaem1514,FreiDomingosdeSousa,que

havia entretanto sido nomeado Vigário Geral da Índia, escreveu a D. Manuel

indicando que tinha recebido quinhentos cruzados para a construção da Igreja

consagrada a Santa Catarina, que substituiria a capela de taipa, erigida em 1510,

aquandodaconquistadeGoa9.Maisreveladordoestadodascoisasdoespíritono

Estadoda Índiaduranteasprimeirasdécadasdo séculoXVIéa recomendação do

GovernadorLopoSoaresdeAlbergariaaoCapitãodeMalaca,em1515:“Ascousas

da Jgrejavos Lembro,que façaesRezareses crerigos todos Juntosporque tegora

queomandeyfazerandarammuydesanranjadose faziacadahumoquequerjae

agorapareçeomebemmetellosemRegrasaomenospêrapareçermoscristãosInda

7CartadeD.ManuelaD.FranciscodeAlmeida.IN.Pato,RaymundoAntóniodeBulhãoeMendonça,HenriqueLopes (ed.).Cartas deAffonso deAlbuquerque seguidasde documentos que aselucidam.Lisboa:AcademiaRealdasSciencias,1884‐1935,Vol.III,pp.268.8Epístoladomuitopoderoso invencívelManuel,ReidePortugaledosAlgarves,etc.Dasvitóriasqueobteve na Índia e emMalaca. Reprodução fac‐simile, com tradução e notas deNair Nazaré CastroSoares.Coimbra:BibliotecaGeraldaUniversidade,1979,p.21.9 António da Silva Rego. Documentação para a história das missões do Padroado Português doOriente.Vol.I,p.217.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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queonomsejamosemobra”10.

Paulatinamente,duranteaprimeirametadedo séculoXVI, afluíramàsnovas

possessões territoriais portuguesas no Índico as Ordens Religiosas com vista à

“conquista espiritual” dos gentios. Entre conversões massivas e a política de

casamentosentreportugueseseasmulhereslocais,convertendo‐asnaturalmenteà

verdadeira fé de Deus, o Padroado e o Estado Português da Índia lançaram as

primeiraspedrasparaumaorganizaçãoeestratégiaespiritualdasMissões.

Construíram‐se igrejas,mosteirose conventosnumapermanente redefinição

dapaisagemnaturalearquitectónicadacidadeque ficariapara sempreconhecida

por“GoaDourada”e“RomadoOriente”.

EmergenaÍndiaPortuguesaumanovalinguagemartísticaquefundeasnovas

tendências doManuelino, doManeirismo e do Barroco europeus com estruturas

lógicaseconceptuaisdaestéticaesimbólicahindu.Estaartemiscigenadareflecte‐se

aoníveldaarquitectura,resgatandodostemploshindusumalógicadeespaçoeuma

dialéctica ritual coma relaçãodo homemcomoespaço.Reflecte‐se sobretudoao

nível da ornamentação interior numa combinação de simbólicas e de “seduções”

formaisecognitivasàsexigênciasvisuaisecromáticasdosgentios.Acresceaindao

factodeseremosprópriosgentiosque,namaiorpartedasvezes,eramincumbidos

darealizaçãodostrabalhosdetalha,douramento,ourivesariaeváriasvezesatéda

pintura. A pluralização da acçãomissionária através da difusão das imagens como

instrumentodeaproximaçãoindividualizadadascomunidadesresultounumaprolixa

produçãodeimagináriaportátilemmarfim.

Da Roma do Oriente, os missionários europeus partiram para outros

territórios,noGujarat,comoobjectivodeestenderograndeimpériodaCristandade

atravésdassucessivastentativasdeconversãodoGrãoMogolAkbar.EmFathepur

10AN/TT,Lisboa.CartasdosVice‐Reis,n.13‐2.LopoSoaresdeAlbergariaaJorgedeBrito[Cochim?,Dez.1515].Cit.apartirdeJorgeManueldosSantosAlves.“Cristianizaçãoeorganizaçãoeclesiástica”.IN:HistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques.1ºVol.TomoI‐EmtornodeMacau.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,pp.301‐347.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Sikri,AgraeDeli,peranteagrandetolerânciareligiosadeAkbaredoseusucessor

Jahangir, os missionários participaram em acesos debates sobre as diferentes

religiões e viram grande interesse pela arte cristã no seio da corteMogol. Destes

contactos com uma realidade islâmica tolerante confluíram estilos artísticos que

resultaramnumaproduçãodeexportaçãoparaomercadoeuropeu,massobretudo

numaproduçãodeartecristãparaopróprioimperador.

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1. NotíciaseimagensdogentilismodaÁsia

A ideia de gentio e de gentilismo teve diferentes significados ao longo do

tempo. Nos textos veterotestamentários apenas os judeus não eram gentios. No

entanto,noevangelhodeS.Mateus,otermotorna‐semaisabrangentereferindo‐se

às culturas pagãs contemporâneas. É esta a ideia de gentio e de gentilismo que

persistiu através dos tempos e através das epístolas de S. Paulo, o Apóstolo dos

Gentios.As referênciasaosgentios eaogentilismo, comoa religiãodoshindusda

Índia, são reforçadas pelas pressupostas missões evangélicas de S. Paulo e de S.

ToménaÁsiae,emparticular,naÍndia.

Neste capítulo, pretendemos perceber os mecanismos de interesse sobre o

gentilismo da Índia e os processos através dosquais o conhecimento sobre novas

estruturas religiosas foi, durante os séculos XVI a XVIII, chegando à Europa.

Recolhendo informação na documentação coetânea e na expressão artística que

representavaosdeusesdaÁsia,tentaremosperceberosmodelosdeentendimento

deestruturasreligiosas,culturaiseartísticasaparentementetãodistantesentresi,a

queRuiManuelLoureirodenominouinquéritoantropológico1.

LogoduranteasprimeirasdécadasdoséculoXVI,várioshomenscomoDuarte

Barbosa, no seu Livro, ou Tomé Pires, na Suma Oriental, davam conta das coisas

exóticas e das práticas sociais, culturais e religiosas das gentes da Índia. Os

conhecimentosdenavegação,cartografiaegeografia,dabotânicaedafaunaedos

costumes das gentes da Ásia ocupavam, em grande medida, os interesses das

1RuiManuelLoureiro.“OdescobrimentodacivilizaçãoIndiananascartasdosjesuítas(séculoXVI)”.IN:Encontro sobrePortugalea Índia. Lisboa: LivrosHorizonte / FundaçãoOriente,2000,pp.107 ‐125.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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esferas culturais europeias, através das narrativas dos viajantes e cronistas. A

literaturadeviagensprocurasintetizarumavastatipologia literáriaquesurgepara

dar notícia dos feitos dos portugueses por terras remotas ou atémesmopara dar

notíciadasmundividênciashistóricaseculturaisdooutro2.

Encontrando reminiscência no Livro deMarco Polo, curiosamente publicado

em Lisboa por Valentim Fernandes em1502, todo omanancial literário composto

por itinerários, roteiros, tratados e relações chegaram a Portugal e às mais

importantescorteseuropeias,descrevendoascuriosidadesdosNovosMundos.

A reformulação de uma geografia cultural ganha uma nova dinâmica,muito

alémdoMediterrâneooufocalizadanoRenascimentogreco‐latino.Oconhecimento

no século XVI edifica as suas estruturas na experiência espontânea com o outro

civilizacional.Adiversidadeliterária,apartirdoséculoXVI,emergentedasrelações

entre a Europa e a Ásia, é resultante da confluência de saberes que suscita um

interessemútuosobretodasascoisasdomundo.

AdescriçãodachegadadeVascodaGamaaCalecute,em1498,demonstraa

importância das notícias sobre as religiões e devoções das gentes da Índia. À

chegada,VascodaGamavisitouumtemplohindue,peranteumadivindade,pensou

que os indianos adoravamaVirgemMaria. As descrições deÁlvaroVelho sobre o

templo hindu são feitas à imagem de uma descição de uma “igreja”, com a

referênciaaumaestrutura centralencimadaporumaave“quepareceumgalo” e

que,no interiordessaestrutura,“estavauma imagempequena,aqualelesdiziam

queeraNossaSenhora”.

2SobreasnarrativasdeviagensnocontextodosdescobrimentosportuguesesCf. JoaquimBarradasdeCarvalho. L'historiographieportugaise contemporaineet la littérature devoyagesà l'époquedesgrandes découvertes. Rio de Janeiro: Livraria S. José, 1960; Idem.O Renascimento português: embusca da sua especificidade. Lisboa: IN/CM, 1980; Luís Filipe Barreto. Caminhos do saber noRenascimento português: estudos de história e teoria da cultura. Lisboa: IN/CM, 1986; Luís FilipeBarreto e Francisco Contente Domingues (org.). A abertura ao mundo: estudos de história dosdescobrimentoseuropeus.Lisboa:Presença,1986;Idem.Osdescobrimentoseaordemdosaber:umaanálisesociocultural.Lisboa:Gradiva,1987;RuiManuelLoureiro.“OencontrodePortugalcomaÁsianoséculoXVI”.IN:Oconfrontodoolhar‐Oencontrodospovosnaépocadasnavegaçõesportuguesas(séculosXVeXVI),ediçãodeAntónioLuísFerronha,Lisboa:,1991,pp.155‐211.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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A Suma Oriental, eventualmente redigida entre 1512 e 1515, e o Livro de

Duarte Barbosa, presumivelmente escrito em 1516, não só constituem uma

descrição geográfica das terras da Ásia, como também fazem uma descrição dos

costumesedasgentes.Existenestasobrasumparticular interessena religiãodos

gentios, nomeadamente dos costumes devocionais e rituais dos brâmanes. Tomé

Piresdáaconhecerosaspectoscomerciais,militareseantropológicosdasgentesda

Ásia,organizadosporregião,dequeéexemploocapítuloXXXV,quefaladagemte

deste reino (Goa) e de seu sofrimento, e no capítulo XLII, Tomé Pires descreve os

brâmanesdoMalabar,osseushábitosecoisasqueconsideramsagradasnareligião

dos gentios. À semelhança de Tomé Pires, Duarte Barbosa, complementa as

descrições geográficas com apontamentos relativos ao comércio, principalmente

comaligaçãoaMoçambique,etambémreferênciasaoscostumesdosmourosedos

gentios. É talvez no Livro de Duarte Barbosa que surge a indicação do mito dos

cristãos descendentes de S. Tomé, quando se refere ao reino dos Prestes João3.

DuarteBarbosadescrevetambémastradiçõesdasgentesdaÍndia,nomeadamente

dos brâmanes, considerandoque tantos estes como todos os outros gentios “têm

muitoporsemelhasaSantaTrindade(...)efazemsempresuaoraçãoaDeus,oqual

confessameadoramserDeusverdadeiro,criadorefazedordetodasascoisas,queé

trêseumsóDeus(...).Estesbrâmanesegentiosondequerqueseacham,entramem

as nossas igrejas e fazem oração e adoração às nossas imagens, perguntando

sempre por Santa Maria, como homens que disso têm algum conhecimento ou

notícia,e,comoànossamaneira,honramaigreja,dizendoqueentreelesenóshá

muitopoucadiferença”4.

Ambasasobrasganharamumadimensãointernacionaleuminteresseenorme

entre a esfera erudita europeia, através de edição latina, italiana, castelhana e

3DuarteBarbosa.LivroemquedárelaçãodoqueviueouviunoOriente,comintroduçãoenotasdeAugustoReisMachado.Lisboa:AgênciaGeraldasColónias,1946,p.33‐34.4Op.Cit.,p.66.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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alemã5. As notícias do gentilismo da Ásia que traziam à Europa as mais

desconcertantesnovidadesdareligiãodosgentios,tantoatravésdoseuabundante

panteão de divindades, como através dos resquícios de devoção cristã que aí

encontravam, atraíam a elite de eruditos europeus, viajantes e homens de fé ao

entendimentoeestudodasestruturasreligiosasdaÍndia.

Ao longo do tempo, vários homens viajaram até à Índia e enviavam para a

Europa Notícias do Gentilismo da Ásia. Nos seus roteiros, D. João de Castro,

GovernadoreVice‐ReidaÍndiaentre1545e1548,fazváriasdescriçõesdostemplos

e divindades hindus, nomeadamente do templo de Elefanta, ao largo da costa de

Bombaim. D. João de Castro era um homem erudito, conhecedor das artes,

relacionando‐se com o Infante D. Luís, filho de D. Manuel, com Pedro Nunes, o

famoso autor do Tratado da Sphera, com André de Resende e com Francisco de

Holanda6.

NoRoteirodeGoaaDiu,escritoem1539,D.JoãodeCastroreporta‐seauma

escultura hindu num templo em Elefanta utilizando terminologias europeias,

estruturadasnumsistemaculturalcristão.Peranteuma imagemdeumadivindade

hindu, representada com uma roda e quatro leões, estabelece uma comparação

natural com Santa Catarina. Falando das gentes do reino de Cambaia, D. João de

Castrofala,especialmente,deumgrupocomparávela“philosofosereligiososquese

chamãoBramenes,osquaiscremnasantissimatrindade,padre,filho,spiritosancto,

5ASumaOrientalfoiporpublicadaGiovanniBattistaRamusionoseuprimeirovolumedecolectâneasdeviagenscomotítuloNavigationeeViaggi,impressoemVenezaem1550.Cf.RuiManuelLoureiro.O manuscrito da “Suma Oriental” de Tomé Pires. Macau: Instituto Português do Oriente, Col.MemóriadoOriente,1996,p.32.OLivrodeDuarteBarbosa,foiinicialmentemantidoemsegredoeapenaspublicado,naversãocastelhanadeMartinCenturion,em1524,comoauxiliaràsnegociaçõessobre a posse das Molucas. Em 1530 surgiu a versão alemã de Jerónimo Zeitz e a tradução paraitalianoem1550porJoãoBaptistaRamúsio.Cf.DuarteBarbosa.Livroemquedárelaçãodoqueviueouviu no Oriente, com introdução e notas de Augusto Reis Machado. Lisboa: Agência Geral dasColónias,1946,p.13.6 Frederica Chichorro. “D. João de Castro e o universalismo da cultura portuguesa”. IN: OsDescobrimentosportuguesesnasrotasdamemória,coordenaçãodeMaríliadosSantosLopes.Viseu:UniversidadeCatólicaPortuguesa,2002,pp.87‐103.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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e em muitas cousas de nossa sacratisima ley”7. Certamente, D. João de Castro

confundeaSantíssimaTrindadecomaTrimurtihinducompostaporShiva,Vishnue

Brahma.OtemplodeElephanta,dedicadoaShiva,contémnoseu interiormaisde

dez enormes esculturas escavadas na rocha alusivas à lenda de Shiva. Entre essas

esculturasencontra‐seumagigantescarepresentaçãodaTrindadeShivaísta, coma

forma Suprema de ShivaMahadeva como a principal das três caras, ladeada pela

cabeça coroada de Aghora‐Bhairava, Shiva destruidor e por Uma, a consorte da

TrindadeBramânica8.

Esta relação espontânea entre a Trimurti hindu e a Santíssima Trindade dos

cristãosérecorrentenadocumentaçãocoeva,sobretudoporpartedosmissionários

europeusque procuravamentender ogentilismo como formadeaproximaçãoaos

povoslocais.ToméPires,naSumaOriental,quandoserefereàfédomalabar,afirma

quetodoomalabarcrê,comooseuropeus,naTrindadedoPai,doFilhoedoEspírito

Santo, trêspessoas,umsóDeusverdadeiro.ToméPiresvaimais longe,afirmando

queosgentiosnão sócrêemnaSantíssimaTrindade, como tambémacreditamna

NossaSenhora,não restandoqualquerdúvidaquena Índiaexistiramcristãosque,

gradualmente, foram perdendo a sua fé por causa dos maometanos9. Duarte

Barbosa,noLivroemquedárelaçãodoqueviueouviunoOriente,refereque“estes

brâmaneshonrammuitoocontodetrês,têmqueéDeusemtrêspessoasquenãoé

maisdeuma,todaasuaoraçãoécerimóniaehonramaTrindade,querendo‐aquase

figurar.OnomequelhepõeméBermabesmaMaçeru,quesãotrêspessoasnumsó

Deus,oqualconfessamserdêsocomeçodomundo”10.

7 Armando Cortesão e Luís de Albuquerque. Obras completas de D. João de Castro. Coimbra:AcademiaInternacionaldaCulturaPortuguesa,Vol.II,1968‐1976,pp.67‐90.8 Benjamin Rowland.The art and architecture of India. Buddhist, Hindu and Jain. London: PenguinBooks,1953,p.188.9 A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, leitura e notas de ArmandoCortesão.Coimbra:PorOrdemdaUniversidade,1978.10 Duarte Barbosa. Livro em que dá relação do que viu e ouviu no Oriente, introdução e notas deAugustoReisMachado.Lisboa:AgênciaGeraldasColónias,1946,p.138.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Ao visitar umpagode sumptuoso, emBaçaim, o jesuítaGonçalves Rodrigues

escreveu,emSetembrode1558,quesetratavado“maisalavoradodeobraromana

que nestas partes hei visto, em o qual se adorava a falsa trindade dos gentios,

scilicet:Visnuu,Maesuebrammã,oqualtinhampintadoenhumaeffigiaquetinha

tresrostosemhumcorpo”11.Maistarde,éopadreMelchiorGonçalvesque,refere

comestranheza,numpagodehindusevenereumatrindadecompostapor“Jspere

outro Brahma e outro Vismaa”12. O autor desconhecido do denominado Códice

Casanatense,datadodemeadosdoséculoXVI,incluiuumdesenhodaTrimurtihindu

comalegenda“Hispar.Visno.Brama.EstessãodeosesdosGentios,aquechamam

pagodes,demonstrandoaproximidadequeoseuropeusreconheceramemrelaçãoà

SantíssimaTrindade13.

Noséculoseguinte,oviajantefrancêsFrançoisBernier,umfísicofrancêsque

estevedozeanosaoserviçodoImperadorMogolAurangzeb,numadassuascartas,

dirigidaaumcorrespondenteparisiense,explicaasanalogiasentreoHinduísmoeo

Cristianismo,colocadasemevidênciapelosmissionáriosestabelecidosnaÍndia14.Na

suaVoyagedanslesEtatsduGrandMogol,FrançoisBernierreferecomoospadres

jesuítas consideravam a Trimurti uma transposição da trindade cristã:

“Relativamente a estes três seres vimissionários europeus que pretendem que os

hindus têm alguma ideia do mistério da Trindade, e que dizem que está

expressamenteescritonosseuslivrosquesãotrêspessoasnumsóDeus...Alémdisso,

vioreverendopadreRoth,jesuítaealemãodenaçãoemissionárioemAgra,quese

dedicaraaosânscritoequeencontraraaímuitasreferências,esustentavaquenão

11JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.vol.IV,pp.10012Op.Cit.,vol.II,pp.184.13Cf.LuísdeMatos.ImagensdoOrientenoséculoXVI.ReproduçãodocódiceportuguêsdaBibliotecaCasanatense.Lisboa:IN/CM,1985.14CartaaoMonsieurChapelain,enviadadeChiras,naPérsia,a4deOutubrode1667.Descriçãodassuperstições, estranhos costumes e Doutrinas dos Hindus ou gentios do Hindustão. IN: FrançoisBernier.Travels in theMughalEmpire,AD1656 ‐1668. Índia:AsianEducational Services,1996,pp.300‐349.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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só estava escrito nos livros dos hindus que havia um Deus em três pessoas, mas

tambémqueasegundapessoadasuatrindadetinhaencarnadonovevezes”15.

OpadreHeinrichRothS.J.juntou‐seàMissãojesuítanaÍndiaMogolem1653,

tornando‐se Reitor do Colégio jesuíta três anos depois da sua chegada a Agra.

EnquantoSuperiordaMissãotornou‐senumdosprimeirosaentenderoscostumes

dos hindus, a literatura indiana e a aprender sânscrito. Tornou‐se célebre não

apenasportodooseutrabalhoe legadoculturalnamissão jesuíta,massobretudo

pela sua gramática de sânscrito16. Naturalmente, o padre Heinrich Roth era um

conhecedordostextossagradoshindus,procurandoneleselementosdeconfluência

edesimilitudecomoCristianismopara,atravésdaaccomodatio,conduzirosgentios

à conversão. François Bernier estabeleceu uma relação próxima com os padres

jesuítas, o que lhe permitiu obter informações importantes sobre ogentilismo da

Ásia.

Ointeressepelaliteraturasagradahindudespertouaatençãodosmissionários

portuguesesaindano séc.XVI. ExistenaBibliotecaPúblicadeBragauma tradução

portuguesa de umexcerto da epopeiaMahâbhârata, oBhagavad‐Gîtâ (Cód. 773),

feita a partir de uma versãomarata do poeta goês Crisnadás‐Xamá, composta em

Salsete, em152617. Ainda na Biblioteca Pública de Braga existemdois textos que,

segundoMarianoSaldanha,constituemtraduçãolivreemprosaconcanidospoemas

em sânscrito do Ramayana e Mahâbhârata. Estes textos foram impressos em

caracteresromanos,comanotaçõesemlatimeportuguêsdoséculoXVIouXVII18.

15FrancoisBernier.VoyagedanslesEtatsduGrandMogol,introduçãodeFranceBhattacharya.Paris:ArthèmeFayard,1981,pp.250‐251.Cit.apartirdeOkada,Amina.“Asdeusas‐mãesnaartedaÍndiaantigaemedieval”.IN:CulturasdoÍndico,catálogodaexposiçãocomissariadaporRosaMariaPerez.Lisboa:CNCDP/IPM,1998,pp.161‐168.16EdwardMacLagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.109‐110.17 Panduronga Pissurlencar. “A propósito dos primeiros livros maratas impressos em Goa”. IN:SeparatadoBoletimdoInstitutoVascodaGama,nº73.Bastorá/Goa:TipografiaRangel,1956,p.3.18PêroPaes.HistóriadaEtiópia:reproduçãodocódicecoevoinéditodaBibliotecaPúblicadeBraga,leiturapaleográficadeLopesTeixeira.Porto:TipografiaAPortuguense,vol.I,1946,p.29.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Existem outros livros maratas que despertaram a atenção dos missionários

portuguesesemGoa.NomeadamenteoAnadi‐Purana,dequeháregistonumacarta

queopadrePedrodeAlmeidaescreveuem26deDezembrode1558noColégiode

S.PaulodeGoa:

“...Namesmanoiteseacharão,emcasadeoutrogentiohonradoentreelles,

dous livros demais de cem folhas, a que elles chamão Anadipurana, emque tem

escritoasmaisdascousasdesuasfalsidadesefabulasdeseosdoeses;estesfizemos

quesetresladassemperaternoticiadesuascegueiras,eemhumpouquoqueheja

tresladado conta do principio e criação de seus deuses, e de como vierão a este

mundoemdiversasfigurasdecágado,porco,peixe,jacintoeoutrasparvoices;conta

tambem a diversidade dos deoses, e seus nomes, e os principais são Ramaa,

Guindaa,Hai, Vitila,Ganaesso,Mangisso, Santeu eMalssa‐deve... Tambemoutros

que chamão Ravolnaique, Çapatonato, Betalo, Beiron, Cameleisor, Negulatu,

Betulatu, Chamaquia, Vishnu, Maessu, Irgão, Punesso... No mais que está por

tresladaresperamosdedescubrirmuytasfalsidadesquenosajudemparaconfundir

os que nelas confião; o que tinha esta biblia foy preso, assim por ela, como por

feitissimosquetraziaconsigo,eparacastigodesemelhantesefavordachristandade

foycombaraçoepregãonoslugarespublicosdacidade;foydegredadoparaacasa

doscaptivosdeSuaaltezaporquatromeses...”19.

Durante os séculos XVII e XVIII, com a emergência do racionalismo e do

pensamentomoderno,surgeumanovaperspectivasobreosaberantropológicoeo

diálogocivilizacional.

O interesse generalizado pela ciência, ainda durante o séc. XVI, é suscitado

pelachegadadenovosprodutosdescobertosnoNovoMundo. Juntamentecomas

especiarias,nasnausportuguesaschegavaàEuropaumvastoconjuntodeprodutos

exóticos para figurarem nas Kunskammern das cortes europeias. D. Catarina de

Áustria não só reuniu uma grande colecção de curiosidades, cujo inventário se

19JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.Vol.IV,pp.204‐205.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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conserva hoje no Museu Nacional de Arte Antiga, como também teve um papel

determinantenoenviodeobjectosprovenientesdaÁsiaparaascortesdeBruxelas,

Viena, Innsbruck e Praga. As Câmaras deMaravilhas difundiram‐se no século XVI,

justapondoascoisasdomundonatural(naturalia)comascoisasfabricadaspelamão

humana (artificialia), em grande medida devido à curiosidade que as notícias da

Ásia,edeoutroslocaisdomundo,suscitavamnaEuropa20.

Naturalmente,oColóquiodossimplesedrogasecoisasmedicinaisdaÍndia,de

GarciadaOrta,impressoemGoaem1563,tornou‐senumadasmaisimportantese

populares obras científicas do séc. XVI, com tradução em latina (1567), italiana

(1576),castelhana(1578)efrancesa(1602).Trata‐sedeumaobracomumcarácter

informativo (notícia das coisas medicinais orientais), mas também formativo

(relativamenteàsteoriasepráticasdosaber)21.

DuranteoSéculodasLuzesosaberfoiestruturadoemdoisnúcleosanalíticos:

aantropologiafísicaoubiológicaeaantropologiacultural,classificadacomociência

social. É no âmbito da antropologia cultural relacionada comas ciências humanas

que,tantoostextossagradoshinduscomoasnotíciasdogentilismodaÁsiaouainda

umabreverelaçamdasescriturasdosgentiosnaÍndiaoriental,eseuscostumes,se

tornampopularesnaEuropa.

Existem em várias bibliotecas alguns documentos que ilustram o interesse

globalizado,tantoporhomensletradospertencentesàAcademiaRealdasCiências,

20SobreascolecçõesdecuriosidadesnoRenascimentoeuropeuveja‐seAnnemarieJordanGschwend.PortugueseRoyalcollections (1505‐1580).Abibliographicanddocumentarysurvey.DissertaçãodemestradoapresentadaàGeorgeWashingtonUniversity,1981; Idem, “CatarinadeÁustria:ColecçãoKunstkammerdeumaprincesarenascentista”.Oceanos.Nº16(Dezembro1993)pp.62‐70;Idem“Asmaravilhas do Oriente: Colecções de curiosidades renascentistas em Portugal”. IN: A herança deRauluchantim, coordenação de António Camões Gouveia, comissão científica de Nuno Vassallo eSilva. Lisboa: Museu de S. Roque / Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentosportugueses,1996,pp.83‐127.21Sobreo impactoculturalecientíficodaobradeGarciadeOrtaverBarreto,LuísFilipe.“GarciadeOrta e o diálogo civilizacional” IN: Estudos de História e Cartografia Antiga. Actas do II SeminárioInternacional deHistória Indo‐Portuguesa, organizado por Luís de Albuquerque e InácioGuerreiro.Lisboa:InstitutodeInvestigaçãoCientíficaTropical,1985,pp.541‐569.

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fundadaporD.MariaIa24deDezembrode1779,comoporhomensligadosàIgreja

equenuncaforamalvodeestudominucioso.

BIBLIOTECANACIONAL

∗ FigurasdamitologiadosBramanesdaAzia:ParaahistóriadestesidolatrasprincipalmentedosdeGoa,1788(F.8316)

∗ FigurasdamitologiadosBramanesdaAzia:paraahistóriadestesidolatrasprincipalmentedosdeGoaextrahidadehumexemplaranonimofeitonoannode1778,eaugmentadacommaishumaestampa,porJoséConstâncioMartins.Salsete.NoOzuródaFreguesiadaRaia,1844(DA,1V)

∗ NotiçiasummariadogentilismodaAzia,17‐‐(F.R.350)

∗ NoticiasummariadogentilismodaAzia,depoisde1759(F.3622)

BIBLIOTECAMUNICIPALDOPORTO

∗ FigurasdamitologiadosBramanesdaAzia:ParaahistóriadestesidolatrasprincipalmentedosdeGoa,1787(Ms.1234)

BIBLIOTECAPÚBLICADEÉVORA

∗ NoticiasummariadogentilismodaAzia,s.d.(CXVI1‐17)

∗ Traduçãoemsummadolivro,queosgentioschamavamBagavotaGuitá,s.d.(CXVI‐1‐27)

FUNDAÇÃOORIENTE

∗ NoticiasummariadogentilismodaAzia,s.d.(FO/1100)

ACADEMIADASCIÊNCIASDELISBOA

∗ NoticiasummariadogentilismodaAzia,s.d.

∗ Breve relação das Escrituras dos gentios na Índia Oriental, e seuscostumes,s.d.

BIBLIOTECAPÚBLICADEBRAGA

∗ Bhagavad‐Gîtâ,s.d.(códice773)

Em 1812, a Academia Real das Ciências publicou, no primeiro tomo da

Colecçãodenotíciasparaahistóriaegeografiadasnaçõesultramarinas,quevivem

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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nosdomíniosportugueses,doistratados,deautoresanónimos,comostítulos:Breve

relaçãodasEscriturasdosgentiosna ÍndiaOriental,e seuscostumes (pp.1 ‐59)e

NoticiasummariadogentilismodaÁsia(pp.61‐126)22.

OstextosoriginaisforamenviadosàAcademiaRealdasCiênciasporFrancisco

Luiz de Meneses, “que lhos remetteo de Goa juntamente com 28 estampas

suberbamenteilluminadas,querepresentaoalgunsdosIdolosIndianos,eentreelles

as10.principaesEncarnaçõesdeVisnú”23.Noprefáciodaediçãode1812existenota

de que os manuscritos terão sido feitos por alguns missionários portugueses,

provavelmente no princípio do século XVII e que estes manuscritos são cópia de

outros que se guardavam, segundo Francisco Luiz de Meneses, no Cartório dos

padresdaCompanhia,depoisdaexpulsãodosJesuítasdeGoaem1759.

FranciscoLuísdeMenesesfoiummilitarPortuguêsquesetornouCapitãode

OrdenançasemGoa,em1786.DesdeasuachegadaaGoa,porvoltade1770,que

fazia remessas de produtos naturais para Lisboa. Em 1771, enviou uma vasta

colecçãodeprodutosnaturaisparaacolecçãodeJosephvanDeck,juntamentecom

umarelaçãobastantedetalhadasobreGoa24.EmAgostode1780foinomeadosócio

correspondente da Academia Real das Ciências, sendo ainda consideravelmente

conhecidaasuaobranocontextododesenhocientífico,nomeadamentedefaunae

flora,noexemplarqueseconservanaBibliotecaNacional25.

Estas informações, para além colocarem em proximidade a relação entre o

conhecimento da fauna e flora e o conhecimento das religiões e costumes das

gentesdaÁsia, colocamtambémapossibilidadede seremdaautoriadeFrancisco

22Colecção de notícias para a história e geografia das nações ultramarinas, que vive nos domíniosportuguezes,ouquelhessãovizinhas.Lisboa:AcademiaRealdasSciencias,TomoI,nºI,IIeIII,1812.23Op.Cit.,p.III.24RelaçãodasproduçõesdanaturezaqueFranciscoLuizdeMenezesajuntoudeGoa,eremeteparaLisboaparaoMuseudosenhorJozeRolandvanDek.Goa,12deFevereirode1771.ArquivoHistóricoMuseuduBocage‐Rem.382.25FranciscoLuísdeMeneses.Memoriasedescriçoensdasproduçoensdanatureza/apresentadasàRealAcademiadasScienciasdeLisboapeloSocioCorrespondenteFranciscoLuisdeMenezesMestredeCampodeAuxiliarescomezercicionasOrdenançasdeGoa,1786.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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LuísdeMenesesasvinteeoitoestampasiluminadasqueilustramocódiceremetido

porsiàAcademiadasCiências.

Posteriormenteaestaediçãodo iníciodoséc.XIX,apenasem1926,équeos

textosforamestudados,peloorientalistaF.M.EstevesPereira26.Nesteestudo,F.M.

Esteves Pereira estabelece uma relação entre o Bhagavad‐Gîtâ, numa tradução

portuguesa pertencente à Biblioteca Pública de Évora (cód. CXVI‐1‐27) e os dois

tratados publicados pela Academia Real das Ciências. Para o orientalista, o

Bhagavad‐Gîtâ é o seguimento destes tratados que discorrem sobre o gentilismo.

Seria,naperspectivadeF.M.EstevesPereira,umarelaçãodecomplementaridade

entreotextosagradoeasuaanálise,sejaeladopontodevistaexegético,sejado

pontodevistacientífico‐antropológico.Faceaoanonimatodaautoriadestestextos,

F.M.EstevesPereiraavançacomapossibilidadedeteremsidoredigidospelopadre

Fernão Queiroz, jesuíta da Companhia de Jesus e autor da Conquista temporal e

espiritualdeCeilão,datadade1687.

O texto hindu que narra a história do bem‐aventurado Krisna é parte

integrante do épico Mahâbhârata e, segundo Cunha Rivara, é uma tradução

manuscritadoséc.XVIII,apesardenãoconterqualquernotaquepermitaidentificar

o local e a data27. Com o título “Tradução em summa do livro, que os gentios

chamavam Bagavota Guitá, que se compoem de dezouto capitulos, dando nelles

preceytosemque trata respectivéaoutavaEncarnaçãodoCrusna filhodeDeos,e

sobreospreceytos,queimpozaoPondovoArzún,comoseuestimadoservo,humdos

sincoirmaonsditosPondovos,dequeatrasfalamos”,otextonãoconstituiqualquer

tipo de perspectiva sobre o gentilismo. Ao contrário dos textos publicados pela

Academia Real das Ciências, o documento da Biblioteca Pública de Évora é uma

traduçãopuradeumtextosagradohindu.

26F.M.EstevesPereira.“ABhagavad‐Gîtâ.TraduçãosumáriaemPortuguêsdeumautoranónimodoséculoXVII. IN:BoletimdaClassede Letras.Coimbra: ImprensadaUniversidade,Vol.XV,1926,pp.78‐110.27 Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara, Catálogo dos Manuscritos da Biblioteca Pública de Évora.Évora:BibliotecaPúblicadeÉvora,TomoI,p.346.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Trinta anos mais tarde, em 1956, é Panduronga Pissurlencar que retoma o

interessepelos textosantigos indianosepela curiosidadequeoseuropeus tinham

durante os séculos XVI a XIX pelo gentilismo da Ásia. No seu estudo sobre os

primeiroslivrosmaratasimpressosemGoa,Pissurlencardiscorresobreadimensão

política, religiosa e cultural em torno dos textos sagrados hindus28. Através de

citaçõesdedocumentosdoséc.XVIeXVII,algunsdosquaisfazempartedachamada

“narrativadeviagens”,relacionaaimportânciadoestabelecimentodaInquisiçãoem

Goa, em 1560, com o conhecimento dos textos hindus entre os europeus,

nomeadamenteentreosmissionáriosportugueses.

Neste estudo dá ainda notícia das traduções dos textos sânscritos do

RamayanaedoMahâbhârata,queseencontramnaBibliotecaPúblicadeBragaeda

influência que os puranas hindus tiveram sobre os missionários cristãos, levando

algunsdelesaescreveremtextoscristãosaomodohindu.

Maistarde,PandurongaPissurlencarfezumestudosobreostextosqueforam

divulgadospelaAcademiaRealdasCiências29.Oestudo,deummodogeral,consiste

numapropostadedatação,atravésdeumaanálisecronológicadosacontecimentos

narradosnotexto.

Relativamente à Breve relação, no seguimento de F. M. Esteves Pereira,

Pissurlencar coloca a possibilidade de o texto ser da autoria do padre Fernão

Queiroz. Segundo Pissurlencar, aBreve relação terá sido composta em1672, uma

vezqueexistereferêncianotextoindicandoquefoiescritodezasseisanosapósorei

dosMaratas, Shivaji, termortoChandraRauMorê, senhordas terrasdeZauli, em

1656.Acrescentaareferênciaaoautor,indicandoqueotextofoiescritonoanoem

queShivajiconquistouasterrasdeChotiá,ColleeMarmanagara,tambémem1672.

É, portanto, presumível que esta obra possa ter sido composta pelo padre Fernão

28PandurongaPissurlencar.“OsprimeiroslivrosmaratasimpressosemGoa”.IN:SeparatadoBoletimdoInstitutoVascodaGama,nº73.Bastorá/Goa:TipografiaRangel,1956.29 Panduronga Pissurlencar. “Um Hindu, autor desconhecido de duas publicações portuguesas” IN:Separatadas“Memórias”,ClassedeLetras,TomoVII.Lisboa:AcademiadasCiênciasdeLisboa,1959.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Queiroz, acrescentandoo factode opróprioafirmar,na suaConquista, terescrito

umaoutraobrasobreastransformações(avatar)deVishnu,oquesecoadunacom

oscapítulosXIaXVIdaBreveRelação30.

SegundoPissurlencar,tantoaNoticiasumaria,comoatraduçãodoBhagavad‐

Gîtâ,pertencenteàBibliotecaPúblicadeÉvora,nãopoderãoserdaautoriadopadre

FernãoQueiroz(1617‐1688).AmbosostextosaludemàderrotaqueoMaratasofreu

doMogolnabatalhadePanipat.Napágina108daNoticiasummariadogentilismoe

napágina35daTraducçãoSummaambosfazemreferênciaaomassacredoexército

mogol sobreomarata (sodobá),emCruxetra.ABatalha dePanipat teve lugarem

1761 e portanto ambos os textos terão de ser posteriores a esta data. ANoticia

summariafazreferênciaaindaaosinglesescomosenhoresdosterritóriosquevãode

AllahabadatéBengala,apósabatalhadeBuxar,em1764.

NaBreverelaçãoháreferênciasdepreciativasàsdivindadeshindus,enquanto

nos outros dois livros, pelo contrário, se revela um profundo conhecimento da

religiãoedoscostumesdeGoa,descritoscomvisívelsimpatia,nãoseencontrando

frases como “falsa trindade”, “abominável superstição”, “falsidades da idolatria”

comoselênaBreverelação,atribuídaaopadreFernãodeQueiroz.

Portanto,concluiPissurlencar,ostextosapenaspoderãoserdaautoriadeum

gentio, claramente familiarizado e identificado com o panteão hindu. Pissurlencar

apoia‐seaindanumtextodaBibliotecaPúblicadeÉvora,nomeadamentenumacarta

do Secretário de Estado da Índia, Feliciano Ramos Nobre deMourão, dirigida ao

bispo de Beja, Fr.Manuel do Cenáculo, datada de 10 deMaio de 1776, emGoa:

“Sabendo q V. Ex.ª estima ver as notícias raras, e seitas das Nações do mundo,

prevenihámuitosmezesahumdosmaisentendidosGeîtiosdoPaiz,om’escrevesse

aSeitadoGentilismo,epostoqellesnisto temgrandedificuldade,pôdeconseguir

essetomo,qremetoaV.Ex.ªpeloComand.teAntónioJoséd’Oliv.raquevainaNaode

30Op.Cit.,p.4.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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ViagempªenregaraV.Ex.ª,eemoutroannoremetereiacontinuaçãodestafalsa

historia,eSeita”31.

A autoria dos manuscritos seria, naturalmente, de um hindu versado no

Português, de que se supõe que fosse o Língua do Estado, Ananta Camotim Vaga

(1752‐1793)que,querpelasuasituaçãooficial,querpelacompetêncianoassunto,

eraomaisindicado.

Posteriormenteaestesestudos,apenasem2008,oanálisedestesdocumentos

foi retomadapornósnasequênciadoestudoquefizemosdeumexemplar inédito

da Notícia sumaria do gentilismo da Azia e que foi publicado no catálogo da

exposiçãopermanentedoMuseudoOriente32.

OexemplardaNoticiasumaria,pertencenteaoMuseudoOriente,vemjuntar‐

se a um conjunto de outros três exemplares já conhecidos por Panduronga

Pissurlencar33. A sobrevivência ao tempo de todos estes exemplares mostram

claramente a popularidade que estes textos tinham para as elites culturais

portuguesas, embora não exista um profundo conhecimento sobre a sua

proveniência.

AinformaçãoqueexisterelativamenteaosexemplaresdaBibliotecaNacional

émuitosumária,sugerindoaautoriapropostaporPandurongaPissurlencareuma

data posterior a 1759, sustentada no prefácio da edição da Academia Real das

Ciências.

31Op.Cit.,p.6.32RuiOliveiraLopeseSofiaCamposLopes.“NoticiaSummariadoGentilismodaÍndia”.IN:PresençaPortuguesa na Ásia, coordenação de FernandoAntónio Baptista Pereira. Lisboa: FundaçãoOriente,2008,pp.86‐87.33Na realidade,odocumentodaBibliotecaMunicipaldoPorto,quePissurlencarrefere,trata‐sedeumoutro exemplar que reproduz asmesmas ilustrações, mas comum texto distinto, como títuloFigurasdamitologiadosbrâmanesdaAzia:parahistóriadestesidolatras,principalmentedosdeGoa.Panduronga Pissurlencar. “Um Hindu, autor desconhecido de duas publicações portuguesas” IN:Separatadas“Memórias”,ClassedeLetras,TomoVII.Lisboa:AcademiadasCiênciasdeLisboa,1959,p.5.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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DoexemplardaAcademiaRealdasCiênciassabemosqueforamenviadosdois

textos,porvoltade1773,pelosóciocorrespondenteFranciscoLuizdeMeneses,que

indicouqueostextosteriamsidoelaboradosnoséc.XVIIporpadresdaCompanhia

deJesus.

Quanto ao exemplar do Museu do Oriente sabe‐se que pertenceu a José

Câncio Freire de Lima, elemento do Conselho de Governo do Estado da Índia em

1840 e Deputado às Cortes em 1846. A partir da dedicatória na primeira página

sabemos que o exemplar foi oferecido ao “Exmo. Sr. Conselheiro” no dia 26 de

Fevereiro de 190734. Todavia, esta dedicatória não prova que o exemplar seja do

iníciodoséc.XX,umavezqueotipodeletradocódiceécaracterísticodoséc.XVIII

ouiníciodoséc.XIX.

Éefectivamentedoexemplar daBibliotecaPúblicadeÉvoraque temosmais

informação,reunidaporPandurongaPissurlencarquesededicoupelaprimeiravez

ao seuestudo.Como jávimos,Pissurlencar, recorrendoà correspondênciadeFrei

ManueldoCenáculo,mostraqueoexemplardaNoticiasumaria terásidoenviado

aoBispodeBejaporvoltade1776porFelicianoRamosNobreMourão,Chancelere

SecretáriodeEstadodaÍndia.

Encontrámos na vasta correspondência de Frei Manuel do Cenáculo outras

cartas que poderão acrescentar alguma novidade, não apenas a este tema, mas

tambémnoquerespeitaaocarácterhumanistadeFreiManueldoCenáculo.Numa

cartadatadade17deJunhode1771,oBarãodeHupschdeLoutzendirigiu‐seaFrei

Manuel do Cenáculo com o intuito estabelecer um intercâmbio de trocas de

curiosidadesnaturais,comoeracostumenaqueletempoentreapreciadores35.Elogia

o Bispo de Beja como amador de História Natural e das curiosidades naturais e

propõeenviaremtrocacuriosidadesnaturaisprovenientesdaBaixaAlemanhaede

34RuiOliveiraLopeseSofiaCamposLopes.“NoticiaSummariadoGentilismodaÍndia”.IN:PresençaPortuguesa na Ásia, coordenação de FernandoAntónio Baptista Pereira. Lisboa: FundaçãoOriente,2008,pp.86‐87.35BPE,CXXVII1‐4,nº566.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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outros países, nomeadamente, Coquilhas petrificadas, corais fossilizados da

Alemanha,minério(“fer,plomb,cuivre,cristal,polígonosdequartzo,jaspe,mármore

colorido,ágatasalabastroemtabletespolidas”)eantiguidadescomomedalhísticae

antiguidadesromanasemgeral.

OBarãodeColóniagostariadereceberalgumascuriosidadesnaturais,entreas

quais,oiseauxeanimaisquadrúpedesdaÍndiaedaAmérica,peixesdomardaÍndia

eAmérica empalhados e preparados, plantasmarinhas, coral vermelho, crabbes e

outrascoisasdomar.Gemasoupedraspreciosasorientais,comotopázio,ametista,

rubi,opala,cristal,granadas,esmeraldas.Ouroeprata,eoutrastantascuriosidades

dos indianos, árabes, chineses, turcos, egípcios, americanos, e de outros povos

estrangeiros,comoporexemploídolos,figuras,estátuas,souliers,armas,medalhas,

moedas (rupias),escrituras, obrase outras curiosidadesdosbrasileiros, indianose

americanos. Por fim, sugere ainda a rota para troca destes produtos seja feita

atravésdeAmesterdãoedaqui,pormar,atéLisboa.

ÉinteressantenotarqueoBarãopareceserconhecedordosinteressesdeFrei

Manuel do Cenáculo pelasantiqualhas de Roma e pelamedalhística e, por outro

lado,oseuinteressepelascoisasdaÍndiaedasAméricasconfirmaque,noséc.XVIII,

aindasemantinhavivoointeressepelocoleccionismodasnaturaliaeartificialiada

Ásia,queteveinícionoséc.XVI.

Por outro lado, há um interesse focalizado nas naturalia, tais como as que

eram enviadas por Francisco Luiz deMeneses para a Academia das Ciências,mas

tambémtinhainteressenosídolos,figuraseestátuasdogentilismo,bemcomonas

suas escrituras. Esta carta não nos permite confirmar que os textos que hoje se

conservamnaBiblioteca Pública de Évora, constituída pelo espólio documental de

FreiManueldoCenáculo,foramremetidosaesteBispoparaposteriormenteserem

enviados,numapermutadecuriosidades,aoBarãodeHupschdeLoutzen.Contudo,

é clara a relação estreita, do ponto de vista de um conhecimento universal

sustentadosobreosfrescosalicercesdasciênciasnaturaisedaantropologiacultural,

atravésdasnaturaliaedasnotíciasdogentilismoedoscostumesdasgentesdaÁsia.

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Numaoutracarta,de28deAbrilde1976,D.FranciscodeAssunção,Arcebispo

deGoa, Primaz doOriente, queixa‐se a FreiManuel do Cenáculo da circulação de

livrosemlínguaMaraztha,quecirculampor“teimadabarbaridadefomentadapela

emolução”36.OArcebispo envia ao Bispo de Bejaalguns dos exemplares para que

ponderesobreaproibiçãodestesexemplaresnaÍndia.

NovastoespóliobibliográficodeFreiManueldoCenáculoépossívelidentificar

alguns textos que se reportam ao gentilismo da Ásia, nomeadamente da Índia37.

Embora possamos considerar que estes textos poderão ter sido enviados a Frei

Manuel do Cenáculo com o intuito de exercer algum tipo de influência na

organização institucional da Igreja em Goa ou em qualquer outra região da Índia

Portuguesa,ofactoéqueoseuinteressepelasnotíciasdogentilismosecoadunam

com uma visão humanista, tal como o testemunha a carta de Feliciano Nobre de

Gusmão.

Por outro lado, é já bastante conhecido o interesse de Frei Manuel do

Cenáculoporlivros,aoqualsedevemosacervosbibliográficosquehojeconstituem

a Biblioteca Pública de Évora e também a Biblioteca da Academia das Ciências38.

Mais,nãodeixade ser interessantesublinharqueambasasbibliotecas contêmno

seuespólioumexemplardaNoticiasumariadogentilismodaÁsia.

Assim,verifica‐sequeaculturahumanistadeFreiManueldoCenáculonãose

limitava a um interesse profundo pela história clássica, pela arqueologia, pela

36BPE,CXXVII1‐3nº488.37Cf. JoaquimHeliodorodaCunhaRivara.CatálogodemanuscritosdaBibliothecaPúblicaEborense.Lisboa:ImprensaNacional,TomoI,1850,p.346.Nestevolumeestão indexadososseguintestextos,sobo títulogeralPaganismo Indiano: Lei dosGentios, e substânciasdoqelles crem,een queestatoda sua saluação (BPE, CXV 2‐7 a fl. 42);Notícia sumaria do gentilismo da Ásia (BPE, CXVI 1‐17);Traducção em suma do Livro, que os gentios chamão de Bagavoia Guita, que se compõe de 18capítulos,dandonellespreceitos,emquetratarespetivèa8ªEncarnaçãodoCrusná,filhodeDeos,esobreospreceitos,que impozaoPandovoArzum,comoseuestimadoservo,humdos5 IrmãosditosPandovos, deqatraz fallamos (BPE, CXVI1‐27);DecretodoSantoOfício deGoa, de14deAbril de1736. Condemna os ritos gentílicos dos casamentos, nascimentos, óbitos, e outras acções de queusavamosnaturaisdaÍndia.Écuriosoparaahistóriadaquellesritos(BPE,CXV1‐38).38NunoDaupiasD’Alcochete.Humanismoediplomacia. Correspondência literáriadeFrancisco JoséMariadeBritocomDomFreiManueldoCenáculo(1789‐1804).Paris:FundaçãoCalousteGulbenkian/CentroCulturalPortuguês,1976,pp.7‐9.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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numismática e pela exegese. Revelou tambémo seu interesse pelo conhecimento

dasculturasdoNovoMundo, tantodoBrasil,comomembrodaAcademiaLiterária

doBrasil, comodaÁsia, atravésdoenviode livros sobreas religiõesda Índiaede

naturalia que eventualmente fez chegar a outras colecções europeias. Porém, o

interessedeFreiManueldoCenáculopelaÁsiavaimuitomaisalémdogentilismoda

Índia,debruçando‐seaindapeloCristianismonaChina,atravésdacorrespondência

comoBispodePequim,D.AlexandredeGouveia39.

O texto da Noticia sumaria torna‐se particularmente interessante, tanto ao

níveldo conteúdo, como tambémpelas ilustraçõesqueoacompanham.O textoé

compostoporcentoesetecapítulosrelativosàreligião,rituaisedeusesdaÍndiae

com ilustrações que representam as divindades hindus. É especialmente

interessante analisar o conjunto de ilustrações que acompanham o texto quando

comparadocomumoutrotexto,maissucinto,quedescreveasdivindadeshindus.

OtextocomotítuloFigurasdamitologiadaAziaétambém,dealgummodo,

vulgar no séc. XVIII ou início do séc. XIX, a julgar pelos exemplares que ainda se

conservam tanto na Biblioteca Pública do Porto, como na Biblioteca Nacional.

Observandoasilustraçõesdeambosostextospoderíamosafirmarqueomodelono

qual se baseiam é o mesmo, existindo inclusivamente reprodução mimética de

algumasdasilustrações.Contudo,aoanalisartodososvolumesdeambosostextos

não se verifica qualquer coerência no número de ilustrações. Apesar de aNoticia

sumariadoMuseudoOrienteeadaBibliotecaMunicipaldeÉvoraseencontrarem

aparentemente completos e em excelente estado de conservação, o número e

ordemdeilustraçõesévariávelenãonecessariamenteidênticos.

Por sua vez, umdos exemplares daNoticia sumaria da BibliotecaNacional40

contémapenasonzeilustrações.Enquantonestecódiceasdivindadeshindusestão

39 Cf. J.Marcadé. Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas. Êvêque de Beja, Archevêque d’Évora. Paris:FundaçãoCalousteGulbenkian/CentroCulturalPortuguês,1978,pp.215‐221.40BNL,F.3622.Estecódice,segundoaBibliotecaNacionaléposteriora1759,datapropostasegundooprefáciodaediçãodaAcademiadasCiências.Noentanto,cremosque seráumacópiade1777‐9,uma vez que está encadernado com um outro texto da mesma mão e datado de 1778: Relação

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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representadas de uma forma icónica, ou seja, a divindade isolada de qualquer

contexto e representada apenas com os seus atributos, no códice do Museu do

Orienteasilustraçõesrepresentamasdivindadescircunstancializadasnumcontexto

narrativo de ummomento da sua estórea. O outro volume da BNL contémmais

ilustrações, conjugandoumaespéciedecompilaçãode ilustraçõesrepresentadoas

divindades de ummodo icónico e também os episódios narrativos, num total de

vinteeduasilustrações41.

Detodososvolumes,tantodaNoticiasumariacomodaFigurasdamitologia

daÁsia,oquecontémmaisilustraçõeséumacópiadesteúltimoqueseencontrana

BNL,datadade1844.Esta cópia foi“extrahidadehumexemplaranonimo feitono

annode1778,eaugmentadacommaishumaestampa,porJoséConstâncioMartins.

Salsete. No Ozuró da Freguesia da Raia”42. Curiosamente, na BNL existe um

exemplar idêntico, de 1778, presumivelmente a partir do qual foi feita esta cópia,

faltando apenas a ilustração acrescentada em 184443. Apesar das ilustrações se

repetirem em ambos os volumes, o texto é completamente distinto, seguindo

propósitos bastante diferentes. A Noticia sumaria é composta por cento e sete

capítulosquetratamareligião,osrituaiseasdivindadesquecompõemopanteão

hindu.Cadaumdoscapítulosprocuraexplicardeumaformasumáriaosprincípios

fundamentais da religião hindu, com particular interesse nas relações de

proximidadecomoCristianismo.Porisso,oprimeirocapítuloprocuradaraideiade

quepormuitodistintasque sejam todasas religiões, tantooHinduísmocomoaté

mesmo o islamismo “hum só Deos é verdadeiro”, ainda que tenha, por todo o

mundo, diferentes nomes. E esta comparação continua de forma claramente

propositada nos capítulos seguintes, nomeadamente no capítulo III, onde o autor

histórica em que se refere o motivo porque se eregio a estátua equestre de El Rei D. José I daformalidade com que se modelou, fundio, reparou, e festivou no tempo final da sua inauguração,escriptaporhumcuriosoimparcialemLisboanaoficinaem(sic)annode1778=.OtextoquesesegueaesteéaProfeciapolíticaquesurgedatadode1777.41BNL,FR.350.42BNL,DA1V.43BNL,F.8316.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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discorre sobre a Trimurti hindu, fazendo crer que os hindus acreditavam na

Santíssima Trindade. No capítulo X, refere‐se a Vishnu e a Lakshmi à imagem de

AdãoeEva.LakshminascedamentedeVishnuparaqueasseguremacontinuidade

da geração humana, sem que neles existisse qualquer tipo demácula. É também

interessante referir o capítulo XXVII, que fala “dos homens, quedepois demortos,

vãoparaessesReinossegundosuasobras”.Nestecapítulo,dizque“hunspassaõa

Vaicuntá,outrosaSate Locó,eoutrosaCailás (...) emerecemagraçado filhodo

Omnipotente,pelassuaspurasobras,e(sic)tudosequalqueràúltimahoradamorte

com arrependimento das suas más obras, se lembrar de Deos, e lle supplicar o

perdão”.OscapítulosseguintessãodedicadosàexplicaçãodosavataresdeVishnue

outrosrelatammomentosdahistóriadosgentios.

ANoticiasumaria,tantopelasconstantesrelaçõesentreogentilismodaÍndia

eoCristianismo,comopelaestruturadaobra,éumtextoescritoporalguémcom

umprofundoconhecimentodaculturahindu,mas,maisdoque isso,énotávelum

conhecimentoaindamaiordasestruturasreligiosasque,anossover,nãopoderiam

tersidoescritasporumlínguadeEstado,comopropõePandurongaPissurlencar.

O texto que acompanha as Figuras daMitologia da Azia é um texto que se

situamaisnoâmbitodarepresentaçãoartehinduedasestruturasdarepresentação

sagrada indiana. Portanto, ao objectivo de reunir os deuses dos gentios da Índia,

parauma“HistoriadasuaMithologia”,háaindaumatentativadecaracterizaçãoda

suaexpressãoartística.Estapreocupação,deanáliseteóricasobreapinturahindu,é

aindareforçadaporConstâncioJoséMartins,noexemplardaBNL,de1844.

Na advertência, que é folha de rosto em todas as edições, o autor fala da

pintura indiana e um pouco da arte sagrada da Índia em geral, seguindo‐se uma

pequenaexplicaçãometodológicanaorganizaçãodovolume.“Todasaspinturasdos

Asiaticos, feitas de seu proprio genio, não sãomais que riscosmal traçados, sem

dimensões,comochapascheiasdetintadedifferentescores;poisignorãoaartede

sombrear,ededarosrealcesquefazemabellezadocolorido:istofazadeformidade

dellas;assimcomoasuaesculturaquenãoapresentamaisquemonstroshorrendos

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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edesproporcionados.AsfigurasdosIdolos,isoladosdosseusPagodes,sãodemetal

comoouro,prata, cobre, latão.Muitopoucosdemadeira:amaiorpartedepedra

preta.Osquadrosdas fabulas sãodeesculturademeio relevodemadeira,ouem

papel que lhes serve como de registos, ou seja nos Pagodes ou nas casas de

habitação.NestacollecçãoseapresentamsomenteosIdolosdaprimeiraordemque

fazemoprincipalobjectodasuaMythologia.Sequizessefazerocompendiodetodas

as suas deidades, dos semideoses, genios, e das “furias” seria huma obra muito

fastidiosa e volumosa. Contão estes Gentios entre os seus Deoses trinta e tres

milhões a que chamão= Tetis Cotti =. As estampas se dobrão, porque humas

representãoafabuladosquadros:outrasasfigurassóisoladasdosIdolos”.

Em 1844, Constâncio José Martins faz uma breve introdução à sua edição,

explicandoque,apóstrêsanospassadosentreosgentios,visitandoosseuspagodes,

assistindoàssuaspráticasreligiosaseexaminandoosseusídolos,resolveuelaborar

uma “collecção de diferentes deidades, com compõem a sua Mythologia, para

illustrar aosmeus patrícios, quando regressasse á Casa Pátria”. Informa que para

isso procurou, entre os gentios, o mais hábil artista para copiar as ilustrações.

Contudo, “depois de receber algum salario adiantado, e gasto quasi hummez de

composiçõeseensaiosdetintas,mostrouquenãopassavad’humsimplesborrador”,

tendoConstâncioMartinsdefazerdesuamão.

AexistênciadeváriosvolumesdaNoticiasumariaedaFigurasdamitologiada

Azia,duranteosséc.XVIIIeXIX,temquevercomumabrandamentonaintolerância

religiosaemergentedapolíticainquisitóriaedaesferadeinfluênciadaPropaganda

Fide. Por outro lado, durante a segunda metade do séc. XVIII verificou‐se,

especialmente em Goa, uma tolerância em relação aos ídolos e às práticas dos

gentios, garantindo‐se a conservação dos usos e costumes locais. O Tribunal do

Santo Ofício chegou mesmo a ser extinto em Goa em 1774, retomando‐se, por

algum tempo, a política que Afonso Albuquerque implementou enquanto

GovernadoreVice‐Rei.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Emsíntese,desdeachegadadosportuguesesaoÍndico,nofinaldoséc.XVaté

ao início do séc. XIX, existem diversos factores que fomentaram o interesse dos

europeuspelastradições,pelosrituaisepelaspráticasreligiosasdoHinduísmo.Um

primeiro momento está relacionado com a política de tolerância religiosa

implementada por Afonso de Albuquerque, apesar de os portugueses terem

chegado à Índia, imbuídos de um espírito proselitista. Esta permeabilização dos

costumesdeuaberturaaumaculturasimbióticacomumaconvivêncianaturalentre

cristãosegentios,dandoorigemaumanovageraçãodecristãos.

ComocrescentepoderdosportuguesesnaÍndiaecomachegadadasOrdens

Religiosas,deummodogeral,estatolerânciavaidando lugaraumaredefiniçãoda

estratégiamissionária que passou pela destruição de templos hindus e demuitos

dos textos sagrados hindus. Contudo, ainda assim, chegaram à Europa, durante a

primeira metade do séc. XVI, desenhos e relatos sobre os costumes e tradições

religiosasdaÍndia,contidasnasLendasdaÍndia,nosRoteirosdeD.JoãodeCastro,

noLivrodoSegundoCercodeDiu,noCódiceCasanatense44e tambémasgravuras

queilustramoItineráriodeJanHuygenvanLinschoten.

Em1560,oestabelecimentodoTribunaldoSantoOfíciodeGoaveio,porum

lado,reafirmarapolíticadeintolerânciareligiosaatravésdaperseguiçãoacristãos‐

novos45 e, por outro lado, controlar a ortodoxia, garantindo a inexistência de

apóstatas.Apesardisso,ainstitucionalizaçãodaInquisiçãoemGoaestevelongede

ser pacífica e de ser apoiada de forma unânime, existindo mesmo alguns

representantesdaadministraçãodoEstado da Índia que seopunhamàactividade

inquisitória em Goa, receando pelo tratamento que teriam os gentios recém‐

convertidos46.Aindaassim,éinteressantesublinharquenuma,cartaremetidapelo

44 Sobre o códice 1889 da Biblioteca Casanatense veja‐se José Manuel Garcia. “O encontro dereligiõesnocódice1889daBibliotecaCasanatense”. IN:Actasdo colóquioO sagradoeas culturas,Lisboa,1992,pp.105‐115eLuísdeMatos.ImagensdoOrientenoséculoXVI.ReproduçãodocódiceportuguêsdabibliotecaCasanatense.Lisboa:IN/CM,1985.45 Ana Canas da Cunha. A Inquisição no Estado da Índia: Origens (1539‐1560). Lisboa: ArquivosNacionais/TorredoTombo,1995,pp.18‐19.46Op.Cit.,p.127.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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padre Jesuíta Gonçalo da Silveira ao Cardeal D. Henrique, solicitando urgência na

criaçãoda InquisiçãoemGoa,oobjectivoera incidirnoscasosdos“judeusemaus

cristãos”47,nãofazendosequerqualquermençãoaosgentioshindus.

Umsegundomomentoépautadoporumarelaçãointrínsecaentreosrelatose

costumeslocaiseocoleccionismoqueganhavacadavezmaiorimportânciaatravés

do envio dosartificialia enaturalia da Índia. As raridades da Ásia eram dosmais

cobiçados objectos para fazer parte dos kuntskammern das cortes europeias.

Juntamentecomestesobjectossãoigualmenteenviadosdesenhosrepresentandoo

quotidianodasgentesdaÍndia,bemcomoosseusídolosedeuses.

Duranteosséc.XVIIeXVIII,apósosprimeirossintomasdecriseda Igrejade

GoacomosconflitosPadroadoPortuguês/PropagandaFideeaemergênciadeuma

nova mentalidade europeia que abalou os alicerces da Igreja, surge uma nova

perspectiva sobre o outro civilizacional e sobre as suas estruturas culturais e

antropológicas. A antropologia cultural, como estrutura do saber, nasce de um

iluminismo do conhecimento das coisas do universo. No seio desta, os sistemas

mitológicosereligiososconstituemuma linguagemuniversalatodaahumanidade,

assistindo‐se, através das notícias dos gentilismo e da representação dos seus

deuses,àgénesedasciênciassociais.

Tudosetornamaisinteressantequandoconstatamosqueasdescriçõessobre

ogentilismo sãoconstantementefeitasapartirdeumprincípiodeanalogiaecom

base no reconhecimento do valor cultural do outro. O paradigma da diferença é

colocado numa perspectiva que, de certa forma, coloca emevidência a similitude

dasestruturasculturaisecivilizacionais.Istoverifica‐setantonascrónicas,comona

memória descritiva, nas narrativas fantásticas, onde se enaltece a novidade, o

desconhecido e a estranheza das coisas, ou até mesmo nas expressões artísticas

sagradasdascivilizações.

47JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.Vol.IV,pp.2‐3.

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2. ConsideraçõessobreaconfluênciadaartecristãnaÍndiaPortuguesa

“Declarando aos christãos os mistérios da fe, desde o principio do mundo,

concertarãoentre side fazerpintar todosempanose,para isto,mandarãohum

homemportuguesaGoa,oqualestevealgunsmesesemGoa,fazendopintarestas

imagens, desde oprincípiodomundoaté ao diado juízo, osmistériosqueentre

meiopassarão;dispoisdetrazidosacosta,recebemosgrandeconsolaçãocomas

tais imagens,porquehehumlivroperaosquepoucosabempoderaprendermais

facilmenteascousasdenossasantafe”1.

Em 1498, quando foi recebido pelo Samorim de Calecute, Vasco da Gama

levavaconsigointençõescomerciaisediplomáticascomoobjectivoclarodefirmar

umtratadocomercialeoestabelecimentodaprimeirafeitoriaportuguesanaÁsia.

Contudo, foram vários os entraves queVasco daGamaencontrou, desde o pouco

interesse do Samorim pelo comércio com os portugueses, até ao controlo do

comérciodetidopelosmuçulmanos.

Nestecontexto,oespíritodiplomáticoecomercialdapresençaportuguesano

Malabar tomou, gradualmente, um carácter militar recordando as campanhas no

NortedeÁfricaduranteoséculoXV,revitalizandooconceitomedievaldeRespublica

Christiana2.Apartirde1505, sobo comandodeD. FranciscodeAlmeidaedo seu

sucessor Afonso de Albuquerque, foram erigidas as primeiras fortalezas que

procuraramassegurarapresençaedomíniodosportuguesesnosprincipaisportos

comerciais em Cananor, Cochim e Chaul, estabelecendo uma ligação ao Golfo de 1Carta do padreHenriqueHenriques aos seus confrades de Coimbra, Cochim, 17 de Novembro de1552.AntóniodaSilvaRego.DocumentaçãoparaaHistóriadasMissõesedoPadroadoPortuguêsnoOriente.Lisboa:FundaçãoOriente/CNCDP,Vol.IV,pp.230‐231.2 Luís Filipe Thomaz. “Estrutura Política e Administrativa do Estado da Índia no século XVI”. IN:OsconstrutoresdoOrientePortuguês,comissariadoporJorgeManuelFlores.Porto:CNCDP,1998,pp.56‐57.

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Cambaia,apósatomadadeOrmuzem1507eavitóriadaBatalhadeDiu,em1509.

Entretanto,AfonsodeAlbuquerqueconquistaailhadeGoaaosultãodeBijapurem

1510,tornando‐seassimnoprincipalportoentreCambaiaeoCaboCamorim3.No

anoseguinte,enfraqueceodomínioárabenocomércionoSudesteAsiáticoatravés

daconquistadeMalaca,controlandoocomérciodasespeciariasvindasdaIndonésia

eestabelecendoumaplataformadeligaçãoentreoÍndico,oMardeJavaeoMarda

China.Estasucessãodecampanhasmilitares,comvistaaocontrolodocomérciodas

especiarias, idealizada por umcorsáriohindue deacordocomas instruçõesdeD.

Manuel, culminaramcomaconquistadeOrmuz,em1515, fechandoaentrada no

MarVermelhoepondofimaocomérciocomosárabes.Ficaramassimdefinidostrês

pontos chave que permitiram não só omonopólio do comércio das especiarias e

riquezas da Ásia através dos portos de Ormuz, Goa e Malaca, mas também o

estabelecimentodaEstadoPortuguêsdaÍndiasediadoemGoa,juntoàsmargensdo

RioMandovi.

Depoisdeconstruídasasprimeirasfortalezaseabertasasfeitoriasaofluxodo

comércio foram levantadas as primeiras igrejas. Estabeleceu‐se em Goa a sede

administrativa do Estado Português da Índia, governado pelo Vice‐Rei ou por

Governadoraquemfoiconfiadoopodercivilecriminal.Paralelamente,aVedoriada

FazendaeaCasadosContoseramresponsáveispelagestãoefiscalizaçãofinanceira

e a Relação actuava como um tribunal de segunda instância. Nas fortalezas os

capitãeseramresponsáveisporgarantirasalvaguardamilitardoterritório,enquanto

nas feitorias se procedia ao controlo da actividade mercantil e encarregados da

compra,armazenamentoedistribuiçãodemantimentosaosnavioseàstropas4.

Aorganizaçãoeclesiásticanosterritóriosconquistadoseaconquistarpelosreis

dePortugalestava,poréditopapaldeCalisto III, entregueaoVigáriodeTomar.A

3CharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.61.4 Luís Filipe Thomaz. “Estrutura Política e Administrativa do Estado da Índia no século XVI”. IN:OsconstrutoresdoOrientePortuguês,comissariadoporJorgeManuelFlores.Porto:CNCDP,1998,p.71.Cf.SusanaMünchMirandaeCristinaSeuanesSerafim.“Organizaçãopolíticaeadministrativa”.IN:AHistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques.1ºVol.TomoI‐EmtornodeMacau.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,pp.249‐297.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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bula InterCoetera dava jurisdiçãoespiritualexclusivaàOrdemdeCristo.Contudo,

durante a expansão ultramarina no continente africano, na segunda metade do

séculoXV,aacçãomissionáriadaOrdemdeCristofoipraticamentenula.

AnotíciadaexistênciadecristãosnaÍndiaincutiuumnovofulgornasmissões

na Ásia com o claro objectivo de resgatar os cristãos locais do paganismo e da

heresia.Apesardas intençõesmissionáriasdeD.Manuel,osprimeirospadresque

chegaram à Índia eram incumbidos de confessar a tripulação dos navios, dar

assistênciamédicaaosdoentes,dizeramissajuntodosaglomeradospopulacionais

que se concentravamnosportos comerciaiseabsolverosmilitaresdos seusactos

maiscruéisaoserviçodoreino.

Nas primeiras décadas da presença portuguesa na Índia, os missionários

começaram por converter as mulheres com que os portugueses casavam por

incentivo de Afonso de Albuquerque. Durante os primeiros anos as missas eram

confinadasaoperímetrodafortalezadeGoa,apartirdasvarandasdaresidênciade

AfonsodeAlbuquerque,porqueaIgrejadeS.Catarinaerapequena,comumúnico

altar,construídaemtaipaecomtectoempalha5.

Perante este estado letárgico da acção missionária na Ásia e de forma a

corresponderàdescriçãoqueD.ManuelfezaoPapaLeãoX,em1513,relativamente

ao estado da propagação da fé cristã entre os gentios, Frei Paolo Giustiniani,

fundadordaCongregaçãodosErmitasCamalducensesdeMontecorvinodelineouo

planoparaasmissõesnaÁsia:“Envie[El‐ReidePortugal]pregadoresqueedifiquem

coma palavrae convertamà fé. Enviemongesque, coma [sua] vida e costumes,

confessem Cristo. Trate de dedicar os jovens à aprendizagem das línguas dessas

nações [...]. Tenha junto de si alguns de todas essas regiões que, recolhidos nos

sagradosmosteiros,aprendamalínguaportuguesa,alatinaeaitalianae,aomesmo

5Manoel JoséGabriel Saldanha.História deGoa (Política e Arqueológica). Delhi: Asian EducationalServices,1990p.3.

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tempo,ossacramentosdanossaféedanossaverdade[...].Façaconstruirtemplos,

mosteiros,efaçaordenarbisposbastantesnaqueleslugares”6.

Para além de nunca ter sido enviada a carta a D. Manuel, este documento

deixa prova que durante as primeiras décadas do século XVI as missões estavam

longe de ter um plano definido e organizado. Os missionários franciscanos, que

haviam chegado aGoa em1510, andavampelas possessões portuguesas emGoa,

em Cochim e em Cananor a converter as comunidades de pescadorespáravas da

CostadaPescariaeemMylapore, imbuídospeloespíritodeS.Tomée crentesde

queaíaindaexistiamcristãos.Asconversõesmassificadaspelospadresfranciscanos

nasprimeirasdécadasdoséculoXVIsãoevidênciasdeuma inexistênciadepolítica

missionáriaedaformadesregradacomoactuavaocleronaÁsia.

A partir do segundo quartel do século XVI, com a edificação em pedra das

primeirasigrejas,deconventos,dehospitais,afundaçãodaMisericórdiadeGoae,

sobretudo,comacriaçãodaDiocesedeGoa,em1534,aorganizaçãoeclesiásticado

Padroado Português começou a ganhar contornos mais definidos. A acção de

caridade da Misericórdia de Goa, responsável pelo cuidado dos enfermos, dos

órfãos, das mulheres e dos mais desfavorecidos, estreitou relações entre os

portugueses e as comunidades locais. Contudo, a nosso ver, foi apenas em 1541,

através da criação da confraria daSanta Fé pelos franciscanos, comum seminário

destinadoanão‐cristãosparaaeducaçãoeformaçãodeclerolocal,queasmissões

católicas na Índia começaram a definir uma estratégia para a disseminação do

Cristianismo.ASantaFéerafinanciadaporimpostoscobradosanão‐cristãos,pelos

rendimentos das terras confiscadas aos hindus depois de destruídos os seus

templos7 e a comerciantesmuçulmanos, que eram obrigados a converter os seus

escravosparapoderemcomercializar8.

6 Cit. a partir de José Manuel dos Santos Alves. “Cristianização e organização eclesiástica”. IN: AHistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques.1ºVol.TomoI‐EmtornodeMacau.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,p.305.7CartadoVice‐ReiD.JoãodeCastrode8deMarçode1542‐TombodosbensdospagodasdasilhasdeGoadoadosaocolégiodeS.Paulo(3026),HistoricalArchivesofGoa,fl.4r.AntóniodaSilvaRego.

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A destruição dos templos hindus era acompanhada por um conjunto de leis

queproibiamo cultopúblicodas religiõeshindu,budistae islâmica nos territórios

controlados pelos portugueses9. Em 1542, a chegada da Companhia de Jesus,

fundadaparaodesenvolvimentodetrabalhomissionárioedeauxíliohospitalar,traz

aGoaoespíritodeumaIgrejamilitantecapaz,segundopensouD.JoãoIII,deservir

naEvangelizaçãodaÁsia.

Com a chegada dos jesuítas, as missões do Padroado Português ganharam

novo fulgor, tendo o Vigário‐Geral da Índia, o franciscano Miguel Vaz, requerido

juntodeD. João IIImaisapoioparaamissionação.Em1548chegaramaGoadoze

dominicanoscomordensdeD.JoãoIIIparaaconstruçãodeumconvento.

O seminário daCongregação daSantaFépassoua ser dirigidoporFrancisco

Xavier que, antes de partir de Goa, entregou as suas responsabilidades a outros

confrades jesuítas.Em1546, foram instituídosnovosestatutose,noano seguinte,

apósamortedosfundadoresdacongregação,adirecçãodocolégioSantaFépassou

definitivamente para a Companhia de Jesus, nascendo a partir daí o Colégio de S.

Paulo.EmtornodoColégio,asestruturasdeapoioàsactividadesdaCompanhiade

Jesus iamcrescendo,tendosidodadaordem,em1560,paraaconstruçãodanova

IgrejadeS.Pauloquesubstituíaaoriginal,levantadaem1543.

Adécadade1560écaracterizadapelasconversõesemmassaoudepessoas

individuaisque,deumaformaoudeoutra,seriamforçadasàconversãopelasrígidas

leis implementadaspelosportugueses,comonosrelataoProvincialdaCompanhia

deJesus,AntóniodeQuadros10.

DocumentaçãoparaaHistóriadasMissõesedo PadroadoPortuguêsnoOriente. Lisboa: FundaçãoOriente/CNCDP,Vol.II,1991,pp.293‐305.8 Ines Zupanov.História da Expansão Portuguesa.O império oriental (1458 ‐ 1665). A religião e asreligiões. Inédito [Citado em 02/05/2010]. Disponível emhttp://www.ineszupanov.com/publications/HIST%D3RIA%20DA%20EXPANS%C3O%20PORTUGUESA%202001.pdf.9CharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.78.10“Faz‐seadoutrinaemdezoitoouvinte lugares,comaquecontinuamentesefazaoscatecuminosnestecolégio:destamaneiravemamorpartedestagentilidadeaoconhecimentodanossasantafé;

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Finalmente,em1567,reúneoPrimeiroConcílioProvincialdeondesurgiuum

conjuntodedeterminaçõesqueprocuravaintroduzirnaÍndiaPortuguesaoespírito

pós‐tridentino. Foi, em larga medida, a primeira tentativa de atribuir alguma

organizaçãoao funcionamentodasmissõesno Índicoconsiderandoaproibição de

todas as religiões que não o Cristianismo, a proibição de conversão a qualquer

religiãoquenãooCristianismo,aproibiçãodetodosequaisquerrituais,bemcomoa

destruição dos pagodes e dos livros sagrados do gentilismo. No nosso entender,

passamos a um segundo momento, no qual se constata que as evidências da

presença do Cristianismo na Índia não passam de um equívoco, tornando‐se

necessário proceder a uma formatação das estruturas espirituais na e da Índia e

implementação de uma nova ordem no sentido de uma hegemonia cultural

europeia.

Contudo, como se pode verificar na vasta documentação subsequente, da

promulgaçãodaleiàsuapráticavaiumgrandepasso,principalmenteàmedidaque

nosafastamosdoscentrosdopoderadministrativoemGoaeBaçaim.EmOrmuz,a

tolerância para comosmuçulmanos era vital para assegurar o comércio, alémdo

facto de, muitas vezes, os portugueses chegarem a emprestar as suas jóias para

ornamentarasdivindadeshindusnasfestividadespúblicasouoferecerembalaspara

assalvasdecanhão11.

No mesmo sentido, no que respeita à destruição dos livros sagrados dos

hindus,comovimosanteriormente,váriosexemplaresouexcertosdoRamayanae

do Mahâbhârata chegaram posteriormente a Lisboa e foram conservados nas

bibliotecasportuguesasduranteosséculosXVIIeXVIII. Jádesdeadécadade1550

outrapartevempoloNossoSenhortrazersemserempersuadidosdeninguém;outrosvêmporserempersuadidosaissodeseusparentescristãos[...];outros,sãomenos,vemconstrangidosdasleisqueV.A.nestasterrastempostas,emquedefendequenãohajaaípagodes,nemseconsintamcerimónias,porque,achando‐osculpadosnelas,sãologopresose,depoisdepresos,comomedodepena,pedemosantobaptismo,eassisãotrazidosaestecolégiodeSãoPauloenelesão catequizadosquandoépossível e,depoisde saberemoquedeixam [e]oque tomam, lhedãoáguado santobaptismo”.P.Antonius deQuadrosS. I., Prov. Indiae,Regi Lusitaniae,Cochim,14de Janeirode1561, DocumentaIndica,ed.cit.,V,p.64.11CharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.81.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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que os livrosmaratas haviam despertado o interesse dosmissionários jesuítas no

sentidodeumentendimentodasculturas,religiõesetradiçõesrituaisdoshindus.

A25deDezembrode1558opadrePedrodeAlmeidadescreve,noColégiode

S.Paulo,oconfiscodedoislivrosmaratasqueseacharamnacasadeumgentio:“...

Namesmanoiteseacharão,emcasadeoutrogentiohonradoentreelles,douslivros

demaisdecemfolhas,aqueelleschamãoAnadipurana,emquetemescritoasmais

das cousas de suas falsidades e fabulas de seos doeses; estes fizemos que se

tresladassem pera ter noticia de suas cegueiras, e em hum pouquo que he ja

tresladado conta do principio e criação de seus deuses, e de como vierão a este

mundoemdiversasfigurasdecágado,porco,peixe,jacintoeoutrasparvoices;conta

tambem a diversidade dos deoses, e seus nomes, e os principais são Ramaa,

Guindaa,Hai, Vitila,Ganaesso,Mangisso, Santeu eMalssa‐deve... Tambemoutros

que chamão Ravolnaique, Çapatonato, Betalo, Beiron, Cameleisor, Negulatu,

Betulatu, Chamaquia, Vishnu, Maessu, Irgão, Punesso... No mais que está por

tresladar esperamos de descubrir muytas falsidades que nos ajudem para

confundirosquenelasconfião;oquetinhaestabibliafoypreso,assimporela,como

por feitissimos que trazia consigo, e para castigo de semelhantes e favor da

christandadefoycombaraçoepregãonoslugarespublicosdacidade;foydegredado

paraacasadoscaptivosdeSuaaltezaporquatromeses...”12.

Noanoseguinte,umbrâmaneconvertidoaoCristianismofoiatéGoa,coma

permissão do Vice‐Rei, fazendo‐se acompanhar por dois ou três homens, para a

apreensãodabibliotecadeumbrâmanequecompilavaecopiava,hájáoitoanos,os

textos sagrados hindus, entre os quais oMahabarata13. Depois de apreendidos,

estes textos eram traduzidos pelos padres jesuítas no Colégio de S. Paulo. Desta

forma,osmissionários jesuítasesperavamencontrarnostextosdosgentiospontos

de confluência entre o Cristianismo e oHinduísmo, procurando “descubrirmuytas

12JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.Vol.IV,pp.204‐205.13DonaldF.Lach.AsiainthemakingofEurope:Thecenturyofdiscovery,Chicago:ChicagoUniversityPress,BookI,Vol.I,1994,pp.438‐439.

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falsidadesquenosajudemparaconfundirosquenelasconfião”,conduzindo‐osaum

reconhecimentodafécristã.

A destruição dos templos hindus, aliada a todo o conjunto de proibições,

pretendia apertar o cerco e condicionar ao Cristianismo à expressão religiosa

dominantenosterritóriosgovernadospelosportugueses.Poroutrolado,pensamos

queteria igualmentequever comaeliminaçãodagrandiosidadeesumptuosidade

da imaginária hindu e ornamentação dos templos, substituindo‐os pelo

levantamento de igrejas nesses locais. Exactamente no ano do Primeiro Concílio

Provincial, o jesuíta Gomes Vaz refere‐se aos pagodes destruídos como sendo

“algunsdellesmuisumptuososedeobrasmuitoacabadas”.

Os missionários europeus, principalmente os jesuítas, perceberam que o

sucessodasmissõesdependianãosódeumacatequizaçãoefectivadaspopulações

locais com recurso à edificação e ornamentação interior das igrejas e a uma

produçãoiconográficacapazdesuperarasumptuosidadedadecoraçãodostemplos

hindusearelaçãodevocionalqueoshindustinhamcomasimagensdosseusídolos.

Em resumo, na nossa perspectiva, existiram três momentos completamente

distintos que caracterizam a reacção dos missionários europeus às estruturas

culturaise religiosasdas Índia.Numprimeiromomento,osmissionáriosacreditam

quenaÍndiaaindaexistemcristãosporqueadoramaSantíssimaTrindadeeaNossa

Senhora,paraalémdascruzesdeS.Toméqueencontramemalguns lugares.Num

segundomomento, osmissionários reconhecema falsidade espiritual dos ídolos e

dogentilismo,optandopeladestruiçãodostemplos,das imagensdos ídolosepela

proibição dos rituais hindus. Finalmente, à medida que os padres se vão

embrenhandonas estruturas culturais e religiosas da Índia, apercebem‐se que, na

realidade, existem pontos de confluência e proximidade entre o Cristianismo, o

HinduísmoetambémoBudismoquemerecemserentendidosdemodoatornaro

diálogo intercultural e inter‐religiosomais acessível. É neste contexto, da imagem

enquanto instrumento didáctico e de linguagem simbólica universal, que a arte

religiosadesempenhouumpapelfundamental.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Nãopretendemosnestecapítulotecerumateoriaparaapermeabilidadedos

planos arquitectónicos das igrejas da Índia face aos templos sumptuosos hindus.

Para esses assuntos remetemos para uma vasta bibliografia publicada por José

Nicolau da Fonseca, Mário Tavares Chicó, Carlos de Azevedo, José Pereira, Pedro

Dias, Rafael Moreira, Hélder Carita, Paulo Varela Gomes, Paulo Pereira, José

LourençoeAntónioNunesPereira,citadaatrás.

PartindodosdecretosdoprimeiroConcílioProvincialdeGoa,em1567,onde

se ordena que “...nenhum Christão mande pintar imagens, nem cousa alguma

pertencenteaocultodivinoapintorinfiel,nemfazeraourives,fundidores,latoeiros

infiéis, calices, cruzes, castiçaes, nem cousa outra alguma que aja de servir em

Igrejas...”14,pretendemos, neste capítulo,percebera relaçãoentrea influênciade

umléxicodaartehindueaproduçãodeiconografiacristãqueornamentaointerior

e as fachadas das igrejas. Procuraremos entender de que forma a herança da

imagináriahindufoiapropriadapelosmissionárioseuropeusdemodoa“traduzir”os

significados intrínsecos da fé católica, numa clara catequização pelas imagens.

Pretendemos identificar as pontes de entendimento entre o Cristianismo e o

Hinduísmoaoníveldassimilitudesformaisouconceptuaisquepudessem,comodiz

ojesuítaPedrodeAlmeida,“confundir”osgentios.

ComodemonstrouFernandoAntónioBaptistaPereira,naesteiradosestudos

deMárioTavaresChicóePaisdaSilva,existeumarelaçãoestreitaentrea“abertura”

eadaptabilidadeplanimétricadoespaçointeriordasigrejasdoOrientePortuguêse

a ornamentação interior das mesma, através da talha dourada e da escultura

decorativadosretábulos,púlpitosemobiliáriolitúrgico,daourivesariaedapinturaa

óleoeafresco15.

14 Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Archivo Portuguez‐Oriental. New Delhi: Asian EducationalServices,1992,Fasc.IV,pp.214‐215.15Cf.FernandoAntónioBaptistaPereira.“Aarquitecturadoestilo“Chão”eaornamentaçãointeriordas igrejas do Oriente”. IN:Os construtores do Oriente Português. Coordenação de Jorge ManuelFlores,Lisboa:CNCDP,1998,pp.167‐193.

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Aconsequênciaevidencia‐senapossibilidadedepermanentereformulaçãoda

disposiçãoeornamentaçãodoespaçointeriordasigrejas,resultando,naturalmente,

numa produção artística significativa, tendo os missionários europeus de recorrer

necessariamenteamão‐de‐obralocal.OLivrodecontasdaCapeladeSantoAntónio,

que encontramos noArquivoHistórico deGoa, demonstra exactamente esta ideia

depermanentereformulação interiordas igrejasdeGoaeo recursoconsecutivoa

artistas locais para execução de trabalhos de pintura, escultura, talha ao longo da

primeirametadedoséculoXVIII.

Em Julho de 1734, Inácio de Santa Teresa, enquanto Arcebispo de Goa,

ordenouopagamentopelasobrasnaCapeladeSantoAntónio.Entreospagamentos

encontram‐se as “Despesas com o Mestre Pedreiro Ventura Pereira e seus

companheirospelaempreitadaque fez comellespara fazeroarcodacapellamor

dous altares colateraes de pedra e cal e o degrao de pedra preta do cruzeiro.

Despesacomosmesmospedreirosporempreitamentoparaabrirhumajanellanova

na capella mor, huma porta junto o altar colateral e hua portinha paramudar o

pulpitotapandoaantiga.Despesacomosbegarinsparamandarentalharocruzeiro

da capela commate de fora. Despesa com João Fernandes em quatro taboas de

sinco maos cada hua para a porta nova junto o altares colateraes Despesa com

Mestre Luis carpinteiro da Raya e seu companheiro em sinco dias e meyo que

trabalharamemfazerhuaportanovajuntooaltarcolateraleparamudarepregaro

púlpito (fl. 155r.) Despesa com os pintores de Margão para pintarem ambos os

altares colateraes e reformar os degraus. Despesa com os mesmos pintores para

pintaremasfasquiasdasjanellasdocorpodacapella.Despesaemduasimagenshua

de S. Jose e outra de Santa Rita para deixar nos nichos de cima dos altares

colateraes.Despesacomosdouradoresparadouraremasditasduasimagens”16.

Passadosnoveanos,em1743,omesmoMestre,carpinteirodeRaia,recebeo

pagamentopelodouramentodeumatravequeatravessavaotectodacapelaeaos

16LivrodecontasdaCapeladeSantoAntónio.Manuscritonº8013dosHistoricalArchivesofGoa,fl.155ve155.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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begarins,homensassalariadosquetrabalhavamàjorna17,forampagosdoisxerafins,

pelapinturadatraveepelaajudaaospedreiros18.Finalmente,entreJulhode1748e

Julhode1749,“omestrepintorrecebeu18xerafinsparapintardousretabolosdos

altares colateraes, frontaes dos tres altares com seos degraos, grades do cruzeiro

comseosconfiçionarios,arcosdocruzeiro,comladosdoretabolodoaltarmore6

xerafinsparapintaropúlpito”19.

Este documento, que agora se publica pela primeira vez, para além de

demonstrarqueaCapelafoitotalmenteesucessivamentereformulada,tendoatéo

púlpitomudadodelugar,demonstraaprofusaactividadedeartistasindianosquese

ocuparam da ornamentação interior da capela, com particular destaque para os

pintoresdeMargãoedeumcarpinteiro,naturaldeRaia,umapequenaaldeiajunto

aMargão.

Numafase inicial,osretábuloseasdemaisalfaias litúrgicaseramexecutadas

emPortugalounosmercadoshabituaisdaFlandresedeItália,partindodacapitaldo

reinoparaasmissõesdaÁsia.A9deSetembrode1511,a capelada fortalezade

Cochim recebeu,deDiogoPereira,umconjunto dealfaias litúrgicasentreasquais

“tresretauolos,asaber,huumdeDeuspadre,edousdeNossoSenhorCrucificado”20.

Meses antes, depois da conquista de Malaca e dada a exuberância dos templos

hindus, Afonso de Albuquerque pediu em carta a D. Manuel “hum retauollo da

AnunciaçamdeNossaSenhoraesejarico,poquehahymaisouroeazullemMalaca

que nos paços de Simtra”21. A 2 de Dezembro de 1521, o feitor Lançarote Froez

17Cf.SebastiãoRodolfoDalgado.GlossárioLuso‐Asiático.Glückstadt:HelmutBuskeVerlagHamburg,1982,p.111‐112.

18Op.Cit.fl.56.19Op.Cit.fl.63.20 António da Silva Rego.Documentação para aHistória dasMissões e do Padroado Português noOriente.Lisboa:FundaçãoOriente/CNCDP,Vol.I,1991,p.126.21Op.Cit.,p.149.

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mandouentregaraovigáriodaIgrejadeSantaCatarina“quatroretauolosdeSanta

Catarina(...)ehumaimagemdeSantaCatarinadourada,comsuaspynturas”22.

Na documentação publicada pelo padre Silva Rego avultam‐se as cartas

dirigidasaoreidePortugalasolicitaroenviodealfaiaseoutrosinstrumentosparaa

conduçãodamissaeornamentaçãodas igrejas.Se,emalgunscasos,sedizqueas

igrejas estavam em bom estado, bem ornamentadas e com boas vestimentas

oferecidasporD.Manuel23, emoutros casos sedavacontada faltadedalmáticas,

pedras de ara, de cálices e navetas, porque as cortinas, frontais, capas e outros

ornamentosjáashaviammandadofazernaÍndia24.Em1516,ovigáriodeCalecute,

DiogodeMorais,escreveuaD.ManuelinformandoqueD.JoãodaCruz25tinhapago

oitocentoscruzadosaumpintorparalhefazerumretábulocomaPaixãodeCristo.

Este é omais antigo documento conhecido até hoje que se refere a umaobra de

pintura feita na Índia sem, no entanto, fazer referência directa à naturalidade do

artista.

Comovimos,nãosãorarasascartascompedidosdeenviodeobrasparaservir

asmissõeseparaornamentarasigrejasqueseachammuitodespojadas,sobretudo

quandocomparadascomasumptuosidadedostemplosquesemandavamdestruir.

Poroutrolado,asreferênciasàencomendalocaldeobrasdepinturaedacomprade

têxteiseoutrosornamentosparaasigrejaspermitempensarqueoenviodealfaias

litúrgicas não supria as necessidades das paróquias na Índia Portuguesa. Em

contrapartida,ovolumedeliteraturadeespiritualidadeedemanuaiscatequéticos,

bemcomodecartilhasparaensinaraler,seguiamdoreinoemgrandequantidade.

22Op.Cit.,pp.432‐433.23Op.Cit.,p.372.24CartadeD.FranciscodeSousaaEl‐Reide22deSetembrode1514.Op.Cit.,p.248.25D.JoãodaCruzeraumchettyqueosamorimdeCalecuteenviouaLisboaem1514paraaprenderalíngua portuguesa, que se converteu ao Cristianismo e que recebeu de D. Manuel o hábito decavaleiro da Ordem de Cristo. Panduronga Pissurlencar. “Os primeiros goeses em Portugal”. IN:BoletimdoInstitutoVascodaGama,nº21,Goa,1936,pp.59‐60.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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EntreestaliteraturadeespiritualidadechegavamàÍndiaPortuguesa,em1514,

mais de cem Livros de Horas de Nossa Senhora, cem livros da Destruição de

Jerusalém, cem confessionários, doze catecismos, vinte Flos Sanctorum e cento e

trintalivrosdaVidadosMártires26.Verifica‐se,peloelevadonúmeroetipologiados

livrosdecarácterreligiosoetambémpelascentenasdecartilhasparaensinara ler

enviadas de Lisboa, que as políticas de missionação e evangelização dos gentios

passava,duranteaprimeirametadedoséculoXVI,pelapregaçãodapalavra. Esta

literaturadeespiritualidadedestinava‐seàpopulaçãocristãlocal,portuguesa,indo‐

portuguesae tambémaos indianos convertidos aoCristianismo.Pensou‐se, talvez,

que a conversão dos gentios passasse pelo ensino da língua portuguesa, já que a

maior parte desses livros eram em Português, e pela leitura e memorização das

narrativasdeedificaçãoespiritualdasvidasexemplaresdosmártiresedossantos.

AspinturaseretábulosenviadosdametrópoleparaaÍndiaduranteaprimeira

metadedoséculoXVI,entreosquaisossetepainéisdoprimitivoretábulodoaltar‐

mordaCatedraldeGoa,comcenasdaVidaeMartíriosdeSantaCatarina,pintados

porGarciaFernandesporvoltade153927,demonstramqueasimagenssefocavam

numespíritodeedificaçãoespiritualdeenaltecimentodotriunfodafé.

As pinturas representam os principais passos da vida (Santa Catarina

discutindocomosdoutores;SantaCatarinaConvertendoaImperatriz)edomartírio

deCatarinadeAlexandria (Adestruiçãodamáquinadomartírio;oaçoitamentode

Santa Catarina; a decapitação de Santa Catarina, a elevação de Santa Catarina e

Santa Catarina esmagando o paganismo). Depois da elevação da Igreja de Santa

Catarina a Sé Catedral de Goa, D. João III encomendara a Garcia Fernandes a

execução de um retábulo consagrado a Santa Catarina como símbolo do triunfo e

supremaciadafécatólicasobreopaganismoeogentilismodaÁsia.

26AidaFernandaDias. “Umpresente régio”,pp.689 e ss. cit. apartirdePedroDias.A viagemdasformas.EstudossobreasrelaçõesartísticascomaEuropa,aÁfrica,oOrienteeasAméricas.Lisboa:EditorialEstampa,Col.TeoriadaArte,1995,p.208.27LuísReis‐Santos.GarciaFernandes.Lisboa:Artis,1960,pp.3‐4.

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AhistóriadeSantaCatarinaestáligadaàrecusadaidolatriapagã,àconstrução

de um ideal de espiritualidade que se mantém fidedigno ao seu amor a Deus. A

pintura que representaSanta Catarina esmagando o Paganismo assume, segundo

nosparece,otriunfodafécatólicaedaIgrejaMilitantesobreogentilismo,apartir

da Sé Catedral de Goa. Em Lisboa, noMuseu Nacional de Arte Antiga, persistem

quatro painéis de um retábulo coetâneo28 à empreitada de Goa, que Joaquim

Oliveira Caetano atribui a Garcia Fernandes29 e que Fernando António Baptista

Pereira atribui a Cristóvão de Utreque30. O retábulo de Lisboa apresenta

exactamenteosmesmostemasdoretábulodeGoa,comexcepçãodosepisódiosde

SantaCatarinaconvertendoaImperatrizeSantaCatarinaesmagandooPaganismo,

quenosparecem,pela suaespecificidade, temasdirectamentealusivosàsmissões

naÍndia.

NaDisputacomosdoutoresestárepresentadaaconsagraçãodamártiraDeus

eàFéCristãenaDestruiçãodamáquinadomartírioencontra‐seaideiademeritatio

pelaincorruptibilidadedasuafé,damesmaformaqueosmissionáriosteriamdeser

incorruptíveis ao gentilismo. Por fim, aDecapitação e Elevação de Santa Catarina

representaarecompensadeumavidadedevoçãoeféatravésdaglorificaçãojunto

deDeus.Énestetriunfoeelevaçãoespiritualqueosmissionárioscristãosserevêem.

A Legenda Áurea descreve o episódio em que Catarina de Alexandria foi até ao

paláciodo ImperadorMaximilianocomopropósitodepôr fimàsperseguiçõesaos

cristãos e de os obrigar a adorar os ídolos. Na sua discussão com o Imperador

apresentouváriosargumentossobreaEncarnaçãodeJesuseoutrosdesígniosdafé

cristã, deixandoo imperador perplexo perante a sabedoria e oratória de Catarina.

28JoãoCouto.“QuatropainéisdaVidadeSantaCatarina”.Lisboa:BoletimdaAcademiaNacionaldeBelasArtes,vol.VIII,1941,pp.54‐60.QuandoàautoriaJoãoCoutoapenasassumetratar‐sedeumconjuntodaoficinadeLisboa.29JoaquimOliveiraCaetano.GarciaFernandes.UmpintordoRenascimentoeleitordaMisericórdiadeLisboa.Lisboa:SCML/MuseudeS.Roque,1998,p.72.30FernandoAntónioBaptistaPereira. Imagensehistóriasdedevoção:espaço,tempoenarrativanapintura portuguesa do Renascimento. Lisboa: Tese de doutoramento apresentada à Faculdade deBelas‐ArtesdaUniversidadedeLisboa,2001,p.421.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Durante a sua discussão com o imperador e com os doutores convocados pelo

imperadorparaforçarCatarinaaadorarosídolos,amártirconverteu,atravésdasua

eloquência e sabedoria,muitos dos filósofos que tentavam refutar os argumentos

que apresentava na sua pregação da fé católica. O imperador mandou queimar

todososfilósofosque,duranteadiscussão,sehaviamconvertidoaoCristianismoe

mandouprenderCatarina.Aimperatriz,quetambémseconverteuaoCristianismo,

aoouvirsecretamenteapregaçãodeCatarinatentou,juntodoimperador,impediro

martíriodasanta31.

A nosso ver, o painel de Goa, de Santa Catarina convertendo a imperatriz,

representa omomento da LegendaÁurea emque amártir diz à imperatriz: “Não

temas,minhasenhoraeamadadeDeus!Hojemesmoastuasdignidadesterrenase

perecíveis títulos da grandeza temporal são substituídos por dignidades e títulos

eternos.Oteureinadoefémeronaterraconverter‐se‐ánumeternoreinadonocéu.

Emtrocadeummaridomortalquetetratatãocruelmente,obteráspeloteumartírio

umesposodivinodoqualnuncatesepararás”32.

Oprograma iconográficosegueumanarrativaedificantequeserviaàs igrejas

emPortugal, aoqual sãoacrescentadosaeloquência, a sabedoriaea fortalezada

pregaçãodeCatarinadeAlexandriaentreosgentioseotriunfodaféCatólicasobre

o paganismo. Teve a sabedoria de distinguir e reconhecer o Deus verdadeiro por

entreos ídolosdopaganismo. Esteprogramaobedeceauma imagemdedevoção

exemplarede intercepçãocontraosmalesdoespírito, tratando‐sedeummodelo

inspiradoràexercitaçãoespiritualdosmissionários,quepretendemsolidificarasua

féemanter‐seincorruptíveisàsuapurezacorpóreaeespiritual33.Assim,pensamos

queosmissionárioscristãosviamnarepresentaçãodosepisódiosdavidaemartírios

31 JacoboVoragine.La leyendadorada.Madrid:AlianzaEditorial,12ªedição,vol. II,2004,pp.770‐771.32Op.Cit.,p.771.33 Cf. Rui Oliveira Lopes. Imagens para edificar. Modelos didácticos na pintura portuguesa doRenascimento. Lisboa: Dissertação de mestrado apresentada à Faculdade de Belas‐Artes daUniversidadedeLisboa,2005,pp.111‐128.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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de Santa Catarina um reflexo da sua condição de pregadores da fé católica na

conquistaespiritualeprocuravamnassuasoraçõesfrenteaoretábuloinspirar‐sena

sabedoria, eloquência, fortaleza, puríssima castidade e nosmuitos privilégios com

queDeushonrouamártir.

Neste sentido, é possível assumir que as imagens cristãs importadas da

metrópole durante a primeira metade do século XVI, aliadas a uma política de

opressão sobre osgentiosedestruiçãomassivada imagináriahindu, serviram,em

larga medida, a uma igreja militante e à protecção espiritual dos cristãos

catequizados.

Apartirdadécadade1540,comachegadadaCompanhiadeJesusaGoaeo

estabelecimento do Colégio e do Seminário de S. Paulo, o uso da imagem na

evangelizaçãoe catequizaçãodosgentios tomououtrasproporções.Esteprocesso

de alteridade poder‐se‐á explicar à luz de um entendimento que os jesuítas

procuram encontrar nos textos sagrados hindus e numa aproximação entre a

imagética cristã e hindu. Cláudio Acquaviva resume de forma clara o espírito da

CompanhiadeJesusrelativamenteàornamentaçãodasigrejas,afirmandoque“não

énecessárioqueasigrejassejamtodasconstruídasedecoradasdeumaformaúnica.

Poderão ser construídas de uma forma e de outra, damelhormaneira, de acordo

comacomodidadeeacircunstância”34.Osbrâmanesconvertidosconstituírampeças

fundamentaisnoquepropomosquesechametraduçãoespontâneadasimagense

dos significados cristãos, na criação e uma linguagem conceptual e formal que

estabelecesseumapontedeentendimentoentreculturas.

Jáovimosnocasodatraduçãodostextoshinduse,noquerespeitaàpintura

ficamosasaber,por cartadopadreMiguelVazaoreiD. João IIIemNovembrode

1545, que “... emGoa acustumavamos pimtores jemtios pimtar imagens deNoso

Senhor,NosaSenhoraedosoutrossantosevemde‐lospelasportas.Defemdi‐lheysto

34Cit.apartirdeCristinaOsswald.FromModoNostrotoModoGoano:JesuitartinGoabetween1542and1655.Florence:ThesissubmittedformassessmentwithaviewtoobtainingthedegreeofDoctorofPhilosophyattheEuropeanUniversityInstitute,2003,p.132.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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omãesquepudecomprovisões tambémdosgovernadores.Amtreestesaviahum

queeradosoutrosmocadam,homemprimcipaldellesequeolhapeloquefazem,de

gramdeabilidadenestemesterdepimtareomylhorofficialdetodos.Este,porque

tinhadadopalavradesevircomygoaesteReinover‐secomosboonsofficiaisque

qua ha e acabar de apremder e fazer‐se também christão, pimtava nas igrejas e

casasdepurtuguesesretavulos.FezemGoamuytosemqueganhoubemsuavida.

Comoaminhavyndafoytardando,foytambémodemoneofazemdoasuaobra,de

maneiraquesabendoosparemtesatemçamquetinha,destalharam‐naefizeram‐no

fugirdeGoa”35.

Estacartademonstraqueaemergênciadeumageraçãodepintoreseoutros

artistasnaÍndiaPortuguesa,apartirdoséculoXVI,prende‐secomacriaçãodeum

vastolequedeoficinaslocaisdeproduçãodeiconografiacristã,quefuncionavamde

umaformamaisoumenosautónoma,comoobjectivodeserviràsnecessidadesde

ornamentaçãodas igrejas,colégioseseminárioseaindadascasasparticulares.Em

algunscasos,assumia‐seumaespéciedeacordosubentendidoondeacondiçãopara

a realização de trabalho para as igrejas tinha como contrapartida a conversão ao

Cristianismo.Ao padreMiguel Vaz, que relata a situação aD. João III, preocupa‐o

queosgentiosganhemodinheiroapintarimagenscristãsequedepoisogastemem

ídolos,porissoseriapreferívelqueestespintoresseconvertessemeatéacabassem

deaprendernoReinoaartedepintarouesculpir.Éaindainteressantenotarque,ao

receber estas notícias, o Rei D. João III não deu importância ao facto de serem

gentiosaproduzirartecristã,direccionandoasua indignaçãoparaoseucomércio,

dandoordensparaquenãosepintar,fundiroulavraremimagensdeNossoSenhor

nemdossantosparasevenderem36.

35 António da Silva Rego.Documentação para aHistória dasMissões e do Padroado Português noOriente.Lisboa:FundaçãoOriente/CNCDP,Vol.III,pp.223‐224.36MárioBeirãoReis.Ourivesariacivilindo‐portuguesa,p.12.Cit.apartirdeDias,Pedro.Aviagemdasformas.EstudossobreasrelaçõesartísticascomaEuropa,aÁfrica,oOrienteeasAméricas.Lisboa:EditorialEstampa,Col.TeoriadaArte,1995,p.213.

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2.1. AsfachadasecruzeirosdasIgrejasnaÍndia:algunsaspectossobrea

arquitecturareligiosaentreoRioKhrisnaeoCaboCamorim

Depois do estabelecimento dos Franciscanos, em 1511, e da Companhia de

Jesus na Índia Portuguesa, em 1542, seguiram‐se‐lhes os Dominicanos (1548), os

Agostinhos (1572) e os Carmelitas Descalços (1609), que elevaram os seus

conventos,mosteiroseigrejasaolongodasegundametadedoséculoXVIeiníciodo

séculoXVII.Acolaboraçãodeartistashindusaoníveldaconstrução,massobretudo,

aonível daornamentação interiordas igrejaspermitiu odesenvolvimentodeuma

maturidadeartísticacapazderesponderaogostoeuropeu,imprimindo,aindaassim,

um cunho de inspiração local. Por outro lado, permitiu também que se

desenvolvesseemGoaumcentrodeproduçãoartísticaqueatraiuartistasdeoutras

zonasda Índia, tal comoseverificounaCorteMogolnoNorteda Índiaduranteo

segundoquarteldoséculoXVI1.

É impossível hoje poder avaliar concretamente a dimensão da produção de

arte cristã na Índia durante a primeirametade do século XVI, namedida em que

restam poucos exemplares deste período, tendo perecido na passagem do tempo

nãosópelascondiçõesclimatéricas,mastambémpelamáqualidadedosmateriais2.

É,efectivamente,duranteofinaldoséculoXVIetodooséculoXVIIqueaarte

cristã na Índia tevemaior expressividade,motivada pelas grandes empreitadas de

reformulaçãodasigrejas,dosmosteirosedosconventos,mastambémporqueerajá

significativoonúmerodeindianosconvertidosaoCristianismooudeoutrosartistas

não convertidos que também trabalhavam na ornamentação das igrejas. Como

1VideCap.IV2CarlosAzevedo.ArtecristãnaÍndiaPortuguesa.Lisboa:JuntadeInvestigaçõesdoUltramar,1959,p.96.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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muito bem notou Charles Boxer, depois do abandono de uma atitude de

conquistadores,dadestruiçãodetemplos,deconversõesemmassa,oCristianismo

criouraízesfirmesnoterritórioPortuguêsàvoltadeGoaeBaçaim3.

NaspalavrasdeMárioTavaresChicó,“entrefinsdoséculoXVIeosprimeiros

decénios do século XVII, Goa torna‐se numa explêndida cidade e passa a ser o

principalfocodaarteocidentalnoOriente”4.Nesteperíodo,foramelevadasalgumas

das principais igrejas, nomeadamente a nova Sé Catedral que, apesar das obras

terem iniciado em 1562, prolongaram‐se até 1631; a Igreja de Nossa Senhora da

DivinaProvidência,daOrdemdosTeatinos;aIgrejadoBomJesus,comobrainiciada

em1594 para substituir a primeira casa da Companhia de Jesus, abandonada por

motivosdeinsalubridade;aIgrejadeNossaSenhoradaGraçaeoConventodeSanta

Mónica,queacolheuaOrdemdeSantoAgostinho.AoredordeGoaforamtambém

levantadasaIgrejadeAssagão(Bardez),a IgrejadeMacasana(Salsete),aIgrejade

Curtorim (Salsete), a Igreja de Orlim (Salsete), a Igreja de Varcá (Salsete), entre

outras.

Estas igrejas denunciam uma notável permeabilidade a elementos da

arquitecturareligiosadaÍndianãosónaincorporaçãodeornamentosnafachadae,

em largamedida nos cruzeiros,mas tambémao nível das formas e desenhos dos

níveis superiores da fachada. Mário Tavares Chicó já havia notado que a parte

superior da fachada é a que primeiramente se desprende do Renascimento e do

Maneirismo, ficandoaparte inferior ligadaaumarigidezclássicaeobedecendoàs

linhasrígidasdaplanta5.

Em Goa Velha, a Igreja do Convento de S. Francisco combina o estilo

Manuelino do portal, numa fachada Maneirista em quatro andares com frontão

3CharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.83.4 Mário Tavares Chicó. Igrejas de Goa. Lisboa: Separata de Garcia da Orta, Revista da Junta dasMissõesGeográficasedeInvestigaçõesdoUltramar,1956,p.331.5Op.Cit.,p.333.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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mistilíneo, ladeadoporduastorresoctogonais inspiradasnaarquitectura local (Fig.

28).

DasigrejasdeGoaVelha,aoníveldafachada,éaIgrejadoBomJesus(Fig.29)

querevelaummaiorpreenchimentodoespaçoornamentado,comatransformação

das aletas demeia‐concha contracurvadas de inspiração italiana, que serviriamde

modelosparamuitasoutrasigrejaslevantadasaoredordeGoa,dequesãoexemplo

a Igreja de Santana de Talaulim6 (Fig. 30), a Igreja deVarcá (Fig. 31) e a Igreja de

Orlim (Fig. 32). A razão poderá estar, eventualmente, no envolvimento de Júlio

SimãonaconstruçãodaIgrejadoBomJesus.SabemoshojequeJúlioSimãonãosó

era,presumivelmente,naturaldaÍndiacomotambémjáhaviasidomestredasobras

dacasanovadaCompanhiadeJesus7,aindaantesdeterestadoresponsávelcomo

Engenheiro‐MordaSéCatedraldeGoaedoArcodosVice‐Reis,depoisderegressar

deLisboanacompanhiadeD.FranciscodaGama8.

DeacordocomVítorSerrão,nasequênciadoestudoqueconduziunoArquivo

HistóricodeGoa,em2008, conclui‐seque Júlio Simão fora,enquanto Engenheiro‐

MordoEstadodaÍndia,responsávelnasobrassupracitadas,mastambémédasua

autoria o risco de sacrários e obra retabular, nomeadamente na Igreja de Nossa

6SegundoJoséPereiraesta igrejaetambéma IgrejadeNossaSenhoradaPiedadeemDivarforamdesenhadas,respectivamente,porFranciscodoRêgo,umpadregoêseporAntónioJoãodeFrias,umarquitecto local. Cf. José Pereira. Baroque Goa. The architecture of Portuguese India. New Delhi:Books&Books,1995,p.14.7“EtambémpedeoditoArcebisposelheenvied’estereinohummestredeobrasdepedrariaparaseacabaraSédeGoa,oquesepodeescusarporserinformadoquenessaspartesandahummestredeobrasquesechamaAntónioArgueirosquehamuitosannosqueresidenellas,ehummestreSimãolánascidoquefoimestredasobrasdacasanovadaCompanhia,peloquevosencomendoqueparaseacabar a dita See lhe ordeneis hum dos sobreditos mestres ou outra pessoa sufficiente naarquitectura,quepossa correr comaobradelaeaponhanaperfeiçãoque convem,poisha tantosannos que duram”. Carta de E‐Rei ao Vice‐ReiMathias de Albuquerque de 8 de Fevereiro de 1591.Joaquim Heliodoro da Cunha Rivara. Archivo Portuguez‐Oriental. New Delhi: Asian EducationalServices,1992,vol. III,p.303.RafaelMoreirapropõequeJúlioSimãoserianetodoescultorJoãodeRuãoefilhomestiçodoarquitectoSimãodeRuão.RafaelMoreira.«AprimeiraComemoração:oArcodosVice‐Reis»,Oceanos,nº19‐20,1994,pp.156‐159.8 Luís Gonçalves. Telas e esculpturas da cidade de Goa. Memória histórico‐archeologica. Bastorá:Typographia “Rangel”,1898,p.22 e ss.PedroDias.História daArte Portuguesa noMundo (1415 ‐1822)‐OEspaçodoÍndico.Lisboa:CírculodeLeitores,1999,p.84.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Senhora daGraça, sobmecenato de Frei Aleixo deMenezes9. É exactamente este

caráctermultifacetadodeJúlioSimão,quevaideencontroàpertinentepropostade

MariaMadalenadeCagigaleSilva,de queapluralidadeartísticanopanoramada

arteindianaresultadeumtrabalhocorporativocomorganizaçãosemelhanteàquela

que se verifica na EuropaMedieval, onde o sistema de trabalho está imbuído de

religiosidade10.

Em1587,peranteamortedeGiovannideManolistambémconhecidoporJoão

Manuel, o padre Martins lamentava‐se a Cláudio Acquaviva pelo atraso que isso

implicaria nas obras da Igreja do Bom Jesus. Contudo, o Geral da Companhia

respondeuqueopadreMartins terianecessariamentequeprocurarumsubstituto

naÍndiaumavezqueosmelhoresmestresdaCompanhiahaviammorrido.Em1596,

nos registos da Companhia de Jesus, o irmão Luís Castanho, natural de Goa, é

referido como responsável pelos pedreiros e demais trabalhadores das obras da

Igreja11.

O desenho Serliano da Igreja do Bom Jesus é levado, com algumas

modificações,paraa IgrejadeSantanadeTalaulim,àqual foramacrescentadasas

duas torres levantadas em cinco níveis que têm por modelo os minaretes dos

templos hindus. As aletas em meia‐concha do Bom Jesus servem igualmente de

modeloàIgrejaParoquialdeS.LourençodeAgaçaim,tambémelevadapelosjesuítas

na primeira metade de seiscentos. Esta igreja, de verticalidade mais modesta,

comporta uma torre octogonal do lado direito, que encontra paralelo nas duas

torresoctogonaisda IgrejadeCurtorimena IgrejadeMacasana.Defronteà igreja

9 Vítor Serrão. “Pintura e devoção em Goa no tempo dos Filipes: omosteiro de SantaMónica no“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20,(2011),pp.11‐50.10MariaMadalenadeCagigalSilva.Aarteindo‐portuguesa.Lisboa:EdiçõesExcelsior,1966,p.176.11PedroDias.HistóriadaArtePortuguesanoMundo(1415‐1822)‐OEspaçodoÍndico,VolII.Lisboa:CírculodeLeitores,1999,p.85.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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encontra‐se um cruzeiro com base quadrangular, no qual Pedro Dias reconhece

“umainfluênciadaarquitecturareligiosahindu”12.

As torres quadrangulares ou octogonais, elevadas em sucessivos andares,

replicaram‐se,sobretudo,nasigrejaselevadaspelaCompanhiadeJesusemChorão,

naIgrejadoSemináriodeRachol,naIgrejadoEspíritoSantodeMargão,naIgrejade

NossaSenhoradasNevesemRachol,naIgrejaParoquialdeOrlim,e,comojávimos,

na Igreja de Varcá, em Salsete. Por outro lado, são também visíveis nas igrejas

franciscanas em Bardez, nomeadamente na Igreja dos Reis Magos e na Igreja de

SantoAleixodeCalangute,naqualsedestacaafalsacúpulaentreastorresequese

repete em outras igrejas da região, vigariadas pelos padres franciscanos13. Uns

dessesexemploséa IgrejaMatrizdeAssagãoea IgrejaMatrizdeAnjunáemque,

paraalémdafalsacúpula,tambémafachadaéprofusamentedecoradaeastorres

quadrangularessãoencimadasporcincopináculos.Ascúpulasdestasigrejasseguem

umatendênciaverticalizanteconstituídapordoisníveis,queseassemelham,muitas

vezes,àbasedoscruzeirosquevemosnolargofronteirodemuitasigrejas.

O modelo da Igreja do Bom Jesus de Goa Velha, com as aletas em meia‐

concha,teverepercussãoemCochim,nomeadamente,naIgrejadeSantaMariade

Kothamangalam (Fig. 33) no distrito de Kottayame na Igreja de Kadamattom (Fig.

34),nodistritodeErnakulam.Asfachadasdestasigrejasrevelamumarigorosíssima

proximidadeaosmodelostratadísticosdeSérlioeVignola,queterãosidoenviados

paraaÍndiaPortuguesa.Numaexpressãomaislivreéigualmentevisívelestetipode

aletas na fachada principal da Igreja Velha de Santo Agostinho de Ramapuram,

igualmente no distrito de Kottayam. Em todas estas fachadas as aletas são

ornamentadas,emtodaavolta,porelementosemformadegota,quesedistinguem

dasquevemosemoutrasigrejas.

Éimportantereferirque,oiníciodoséculoXVII,apósoSínododeDiamperem

1599,marcaumapaziguamentonarelaçãoentreosportugueseseoscristãosdeS.

12Op.Cit.,p.117.13Op.Cit.,p.129.

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ToméqueaívivamsoboArcebispadodeMarAbraão,criadopeloPapaem1565,e

comsedeemAngamaly14.AIgrejadeHormisdas,emAngamaly,foiconstruída,por

iniciativadoArcebispodeCochim,comoobjectivodeaíedificarumaSéCatedral.O

risco da igreja é atribuído a Martim Ochoa que esteve, entre 1568 / 1569,

responsável pelas obras da Igreja de S. Paulo emGoa15. A fachada denota grande

rigor tratadístico na esteira das tendências estilísticas dos arquitectos jesuítas,

manifestando,poroutrolado,umaforteinfluênciadaornamentaçãohinduatravés

da presença de dezenas de flores de lótus, de aletas em meia‐concha no corpo

centraldafachada,sobofrontão,edeoutroselementosvegetalistas.

As torres quadrangulares ou octogonais coroadas por pináculos, as falsas

cúpulas levantadasemdoisníveiseasaletasemmeia‐concha constituemasmais

significativas influências da arquitectura local presente nas igrejas cristãs na Índia

Portuguesa. A nosso ver, para entender a fusão de elementos da arquitectura

religiosa da Índia com a ornamentação exterior das igrejas cristãs é fundamental

perceber o panorama artístico deGoa e do Sul da Índia ao longo dos tempos, na

cumplicidadepermanenteentreaesculturaeaarquitecturareligiosa.

O Renascimento da arte hindu consiste no período artístico subsequente ao

período da arteGupta, que teve o seu declínio por volta do séculoVI. Sobre esta

herança clássica, o grande Império Chalukya fundou, no Sudoeste da Índia, uma

longa tradição arquitectónica e escultórica através da elevação de centenas de

templosquecombinariamatradiçãoreligiosahindu,jainaebudista,soboprincípio

fundamentaldequeotemploouvimanaconsistenocorpoesubstânciadaprópria

divindade16.Aplantadostemploséquadrangular,numareplicaçãodaconcepçãodo

mundoedarepresentaçãosimbólicadamandala.Asestruturasquedãoacessoao

exteriorestendem‐senasquatrodirecçõesdandouma ilusória ideiadeumaplanta

14HélderCarita.Aarquitecturaindo‐portuguesadeCochimeKerala.NewDelhi:Transbooks,2008,p.167.15Op.Cit.,p.171.16BenjaminRowland.The art andarchitectureof India.Buddhist,Hinduand Jain. London: PenguinBooks,1953,p.164.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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cruciforme. Nestes templos, a shikara (pico da montanha) tem um funcionalismo

axiológiconaligaçãoentreaTerra(plantaquadrangulardotemplo)eoCéu,quese

eleva e afunila ao longo de cada um dos patamares, simbolizando a união e a

convergênciaentreouniversomundanoeoespaçocelestial.Trata‐seclaramentede

uma imago mundi alusiva ao poder sagrado da montanha de Shiva, tão bem

estudadoporMirceaEliade17.

A arquitectura religiosa na Índia desenvolveu‐se com base em três estilos

distintosdivididosemtrêszonasgeográficas.ANorte,oestilonagaradesenvolveu‐

se desde os Himalaias até às montanhas Vindhaya, no Gujarat. O estilo dravida

afirmou‐se no sul da Índia, desde o Rio Khrisna até ao Cabo Camorim. Por fim, o

estilovesara criou tradição na zonacentral, entreasmontanhasVindhayaeo Rio

Khrisna.

DuranteoImpérioChalukya,sensivelmenteentreosséculosVIeVIII,oestilo

dravidiano funde‐se com o estilo nagara, denotando uma assimilação da

arquitectura hindu comelementos da arquitectura jaina e budista.Os templos na

zonadeKarnatakarevelamestafusão,sobretudoaoníveldaassimilaçãodochatya

(Fig.35),umaltaremformadestupa,comovemosnotemplodeMallikarjunaem

Pattadakal (Fig. 36)18. As shikara dos templos de arquitectura dravidiana eram

normalmente elevadas a partir da base quadrangular do templo, em sucessivos

níveis, correspondendo, cada umdeles, à devoção de umadivindade específica. A

adopção dos chatyas da arquitectura nagara, normalmente em forma de vaso em

coneinvertido,confereàsshikaraumaformacilíndricadesignadaporstupika19.

17MirceaEliade.TratadodeHistóriadasReligiões.Lisboa:EdiçõesAsa,5ªedição,2004,pp.69‐167.18 Adam Hardy. Indian Temple Architecture: Form and Transformation. New Delhi: AbhinavPublications,1995,pp.65‐110.19BenjaminRowland.The art andarchitectureof India.Buddhist,Hinduand Jain. London: PenguinBooks,1953,p.166.Cf.JoséPereira.“TheevolutionoftheGoanHindutemple”.IN:India&Portugal.Cultural Interactions,editedbyJoséPereiraandPratapadityaPal.Mumbai:MarqPublications,1995,pp.89‐97.

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NaarquitecturareligiosanaÍndia,osprincipaismonumentoseramagrupados

emcincotemplosdenominadosrathas,quesãonarealidadepequenasréplicasde

estruturasdeedifíciosreligiososdetalhadamenteesculpidos.Rathasignificacarroça

esão,nofundo,umareferênciadirectaàmontadadivinaetêmtambémumafunção

axiológicaaplicadaaoritualcomlongatradiçãoemVijayanagar.

Nos séculos XIII e XIV, a invasão maometana estabeleceu‐se no Decão,

dividindooseudomínioemcincoreinosislâmicos,sendoazonadeGoagovernada

pelosBahmanis(1248‐1369)epeladinastiaAdilshahis,deBijapur,desde1472atéà

chegada dos portugueses em 149820. Esta longa ocupação islâmica resultou num

legadoartístico,sobretudoatravésdaelevaçãodemesquitascomlongosminaretes

emsucessivospatamares,posteriormentedestruídospelosportuguesesaolongodo

séculoXVI,aomesmotempoqueforamdestruídosostemploshindus.

Ao contrário do queMário Tavares Chicó21 e Carlos de Azevedo22 sugerem,

aproximandoastorresdas igrejasdeS.Francisco,deCurtorimedeMacasana,dos

minaretesdostemplosdePondá,anossover,trata‐sedeumaconfluênciaestilística

ecombinaçãoformalesimbólicadastorresbarrocas,dosminaretesislâmicosedos

temploshindus.Estacombinaçãoparte,efectivamente,daverticalidadeeformados

minaretes das mesquitas maometanas de Goa, que serviram de base para a

construçãodasigrejascristãsereconstruçãodostemploshindusqueseencontram

hoje em Pondá, elevados durante os século XVII, XVIII e XIX. Como refere José

Pereira,ostemploshindusdePondáforambuscarassuasinfluênciasaosminaretes

de Bijapur e as abóbadas aos pavilhões Mogóis de Bengala23, que se reflectem

20JoséPereira.BaroqueGoa.ThearchitectureofPortugueseIndia.NewDelhi:Books&Books,1995,p.9.21MárioTavaresChicó. IgrejasdeGoa.Lisboa:JuntadasMissõesGeográficasede InvestigaçõesdoUltramar,1956.22 Carlos de Azevedo. Arte cristã na Índia Portuguesa. Lisboa: Junta dasMissões Geográficas e deInvestigaçõesdoUltramar,1959.23JoséPereira.BaroqueGoa.ThearchitectureofPortugueseIndia.NewDelhi:Books&Books,1995,p.100. Idem.“TheevolutionoftheGoanHindutemple”. IN: India&Portugal.Cultural Interactions,editedbyJoséPereiraandPratapadityaPal.Mumbai:MarqPublications,1995,pp.89‐97.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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igualmentenaigrejadeSantoAleixodeCurtorim,emSalsete.Édereferiraindaque

nesta igreja foram inporporados nos pináculos oamalaka, umoutro elemento da

arquitecturahindudravidianaenagaraqueseassemelhaaumaesferaachatadaem

gomos.

Poroutro lado,os ratha dostemplosdravidianosdeVijayanagarserviramde

modeloparaodesenhodocoroamentocentral,entreastorres,especialmentenas

IgrejasdeNossaSenhoradaGraçaemGoaVelhaenaIgrejadeSantanadeTalaulim,

comovimos,eventualmentedesenhadaporumarquitectogoês24.Umdossímbolos

iconográficos dos ratha é aAshoka Chakra, a representação da Roda da Vida, no

ciclodas reencarnações.Nanossaopinião,aAshokaChakraéadaptadaaoespaço

dasaletasnasfachadas,ladeandoocoroamentocentral,quejávimosserinspirado

nos ratha hindus. A fonte hindu para a decoração das aletas das igrejas é ainda

notávelnasigrejasdeOrlimeVarcá,nasquaisoartistadesenhouumlótusnoeixo,

quesimbolizaprecisamenteorenascimentoparaumanovavida.Reforçaaindamais

estaideiaofactodeduasapsaras,serescelestiaisdareligiãohinduequiparadosaos

anjoscristãos,queseguramacruzdeCristonotopodafachadadaIgrejadeVarcá.

NocasodaIgrejadeHormisdas,sededoArcebispadodeCochim,afachadaé

decorada com floresde lótuse coma representação integraldaAshokaChakra.É

tambémemCochim,enaregiãodoKerala,queapermeabilidadedasigrejascristãs

àinfluênciadaarquitecturahindusefazsentircommaiorintensidade,sobretudoao

níveldaelevaçãodoscruzeiros.Anossover,estefactodeve‐seaodistanciamento

dopoderde influênciadaIgrejadeGoaeaumaproximidadenaturalàsestruturas

culturaisereligiosascaracterísticasdaregião.

Os cruzeiros são entendidos não só como uma representação simbólica de

Cristo,mas também como a sua própria presença, à semelhança dos ratha e das

estruturas que dentro dos templos hindus sustentam o lingam de Shiva.

Efectivamentetrata‐sedeumasacralizaçãodo lugaredacriaçãodeumaestrutura

24Op.Cit.,pp.44‐45.

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axialquepermiteadescidadadivindade,cujapermanênciaégarantidapeloritual.

Nesta ordem de pensamento, os cruzeiros simulam a estrutura de um pequeno

templo hindu, com um ou mais andares, sendo normalmente encimada por um

lótus.Umdosmais interessantes cruzeiros, construídonaúltimadécadado século

XVI, foi inauguradoporFreiAleixodeMenesesem1599,durantea suapassagem

pela IgrejadeSantaMariadeKaduthuruthy(Fig.37),nasredondezasdeCochim25.

AleixodeMenesesfoi,enquantoArcebispodeGoaentre1595e1610,responsável

pelalatinizaçãodaIgrejaNestorianadoKerala.Aelevaçãoeinauguraçãodocruzeiro

da Igreja de Santa Maria de Kaduthuruthy representam o símbolo do triunfo do

CristianismoCatólico sobre a heresia nestoriana, depois de o Bispo de Cochim ter

reconhecido a autoridade do Papa de Roma durante o Sínodo de Diamper, em

159926.

AindaemKerala,abasedocruzeirodaIgrejadoEspíritoSantodeMuttachira,

consistenaadaptaçãodeumbalikkal,umgénerodealtarhindu,comumagrande

flordelótusnotopo,ondeassentaacruz,edecoradoaoredorcomelefantes,flores

delótuseanjosnasextremidades.

ANorte,otemplodeElefanta,visitadoporD. JoãodeCastroeparcialmente

destruídopelosportuguesesàsuapassagem,éumdosmais significativos templos

da arquitectura hindu dedicados a Shiva, presumivelmente mandado erigir por

Krishnaraja I da dinastia Kalachuri, um fervoroso devoto de Shiva27. Se olharmos

atentamenteparaaplantadotemploverificamosqueéabertadeformacruciforme,

com trêsportaiseo interiordensamentepreenchidopor colunas.Osacessoseos

doisaltaresconferemumadualidadeàplantadotemploquetem,noseu interior,

25HélderCarita.A arquitectura indo‐portuguesa de Cochim eKerala. NewDelhi: Transbooks,2008,pp.179‐186.26 Jayaram Poduval. “Kochi. Beginnings of European architecture in India”. IN: India & Portugal.Cultural Interactions,editedbyJoséPereiraandPratapadityaPal.Mumbai:MarqPublications,1995,p.1927VidyaDehejia.IndianArt.London:Phaidon,2000,p.125.

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umaestruturaquadrangular,comescadasemcadaumdos lados,ondeseergueo

lingam,símbolodeShivaerepresentaçãodanãoformadeShiva.

Anossoveré,efectivamente,nasestruturasqueservemdebaseaoscruzeiros

queaconfluênciadosestilosdaarquitecturadravidianaenagaraedaarquitectura

islâmica dosMaratas semanifesta commaior intensidade. Estaminiaturização do

templo,doespaçoqueidentificaoespaçodadivindadeeafunçãoaxiológicarevela

a mesma perspectiva da representação de Deus através do símbolo, da sua

dimensãosobrehumanadanãoforma.Nestesentido,verifica‐se,paraalémdeuma

conveniência formal um claro sincretismo religioso, na medida em que estas

estruturas evidenciam um anúncio de identificação do espaço religioso, no qual

decorreoritualdecomunhãocomDeus.

Estando, como é de supor, vários arquitectos goeses responsáveis pelo

desenhodealgumas igrejas,bemcomoa crescente influênciadeumclerogoês,é

naturalquetantonaelevaçãodeigrejascristãscomodetemploshindusexistauma

linguagem comum que resulta, não numa arquitectura indo‐portuguesa, mas sim

numa arquitectura religiosa goesa que semanifesta tanto nas igrejas cristãs como

nostemploshindus.

Por fim, pensamos ter ficado claro que a dispersão geográfica determina o

grau de confluência de estilos ao nível da configuração visual das igrejas cristãs,

notando‐se uma estreita relação e permeabilidade à arquitectura hindu e islâmica

naszonasmaisafastadasdeGoaVelha,comoemSalsete,Baçaim,BardezeCochim,

ao passo que emGoa Velha e nas Ilhas circundantes, as igrejas cristãs obedecem

maisaorigortratadísticoeàsupervisãodeumcleroocidental.

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2.2. AornamentaçãointeriordasigrejasnaÍndiaPortuguesa

Aelevaçãodecercadequatrocentasde igrejasna ÍndiaPortuguesa,entreos

séculosXVIeXVIII, comas suas sucessivas construçõese reconstruções,estevena

baseda formaçãodeumaescoladeartistas locaisque,aparda suaconversãoao

Cristianismo ou mantendo‐se fiéis à idolatria hindu, foram responsáveis pela

emergênciadoquemuitoshistoriadoreschamamarteindo‐portuguesa.

A ideiadeumaarteearquitectura indo‐portuguesaparece‐nos limitadorano

sentidoemque,emprimeirolugar,apesardasmissõescristãsseremadministradas

peloPadroadoPortuguês,queobedeciaaoRei dePortugaleaoVice‐Rei da Índia,

estas eram constituídas não só por portugueses, mas também por italianos,

franceses, alemães, espanhóis e até polacos, já para não falar da forte presença

holandesaebritânicana Índia,apartirdoséculoXVII.Emsegundo lugar,apolítica

decasamentosdehomenseuropeuscommulheresindianas,asconversõesforçadas

eemmassadoshomensemulhereshindusemaometanos,assimcomoaformação

de um clero nativo criou, durante o século XVI, as bases para uma redefinição da

culturaedopensamentodasociedadegoesa.Porúltimo,aarteeaarquitecturade

Goa constitui uma evidência de que a cultura goesa respira por pulmão próprio,

tecidoapartirdeumamulticulturalidadequevaimuitoparaalémdouniversoeda

gramáticaartísticaeculturalportuguesa.

Destevasto espólio artístico interessam‐nos as obras que, de alguma forma,

evidenciem a confluência da arte religiosa no diálogo entre o Cristianismo e as

religiõesdaÍndia,nomeadamenteoHinduísmoeoBudismo.Emalgunscasos,como

na pintura, essa simbiose artística se manifeste ao nível do estilo, tratamento

pictórico e representação de referência que alguns autores denominam de

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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“tipicamente indiano” ou “indianizado”1. Contudo, a pintura cristã produzida na

Índiareflecteumasimbioseconceptualqueserveospreceitosdamissionaçãoeque

estánabasedaconfusãodesignificados lançadaporVascodaGamaeporD.João

deCastro.

Esta simbiose conceptual tempor base um conjunto de princípios universais

com raiz nas estruturas antropológicas das civilizações. Partindo da descrição que

ÁlvaroVelhofazdomomentoemqueVascodaGamapensouveruma imagemde

NossaSenhoranuma“igreja”,bemcomoogalosobreopadrãoqueseencontrava

noexterior,percebemosqueosportuguesespartemdeumasimilitudeformalpara

umaidentificaçãoconceptual.

DeacordocomadescriçãodeÁlvaroVelho2,aúnicadivindadeidentificávelno

interiordotemplohinduvisitadoporVascodaGamaéadeusaKali,aconsortede

Shiva, com os seus quatro braços e com os terríficos dentes, que a caracterizam

durante a fúria da batalha contra Raktabija. Quanto às restantes divindades,

descritascomotendoquatroecincobraços,nãoépossíveldeterminarumavezque

naiconografiadopanteãohinduéumacaracterísticacomumetransversalavárias

divindades. Amina Okada sugere que a imagem reconhecida pelos portugueses

1CarlosAzevedo.AartedeGoa,DamãoeDiu.Lisboa:PedrodeAzevedo,2ªedição,1992,p.109.2“Aquy[EmCalecute] nos levaramahuagrande Igrejaemaquallestavamestascousasseguintes.PrimeiramentehocorpodaIgrejahedagranduraduumosteirotodalavradadequantaria,telhadadeladrilho,etinhaaportaprincipallhupadramderamedalturadehumastoeemcimadestepadramestahuaavequeparecegallo,eoutropadramdalturadehuuomememuitogroso.EemomeodocorpodaIgrejaestahuucorocheotododequanto,etinhahuaportaquantohuuhomemcabia,ehuaescada de pedra perque sobiam ha esta porta, a quall porta hera derame, e dentro estava huuaymagempequenaaquallellesdiziamqueeranosaSenhora,ediantedaportaprincipalldaIgrejaaolongodaparedeestavamsetecampãaspequenas.Aquyfezocapitammororaçamenosoutroscomele, e nos nom emtramos dentro em esta capella porque seu costume he nom emtrar nella senamhomens certos que servemas Igrejas, aos quaees eles chamamQuafees. Estes quafes trazemhuaslinhas per çima do onbro lançadas e por debaixo do onbro do braço direito asy como trazem oscreligosdavangelhosaestola.(...)EoutrosmujtossantosestavampintadospellasparredesdaIgrejaosquaes tinhamdiademoas,ea suapimturaheraemdiversamaneiraporqueosdenteseram tamgrandesquesayamdabocahuapolegada,ecadasantotinhaquatroeçinquobraços,eabaixodestaIgreja estava hu gram tanque lavrado de quantaria asy como outros mujtos que pello camjnhotínhamosvisto”.Velho,Álvaro.RoteirodaviagemqueemdescobrimentodaIndiapeloCabodaBoaEsperança fez Dom Vasco da Gama em 1497. (edição de Diogo Kopke e António da Costa Paiva).Porto:TypografiaCommercialPortuense,1838,pp.55‐57.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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como sendo umaNossa Senhora, poderá ter sido uma imagem de Parvati, Gauri,

LakshmiouatémesmoDevi,agrandeDeusa3.

O panteão hindu é vasto no contexto das deusas‐mãe que afiguram uma

representação simbólica dos ciclos regeneradores da vida, como arquétipos da

fecundidade,damaternidadeeda destruição regeneradora.Esta realidadeé fruto

de uma religião que emerge de uma relação estreita com a natureza cíclica do

cosmosecomumaimagemantropomórficaeteriomórficadavida,aoinvésdeuma

religião criada a partir do pensamento de um homem. Esta religiosidade popular

identifica, naturalmente, um manancial de seres associados aos ciclos de

nascimento, destruição e renascimento, oscilando entre a criação, preservação e

destruição. Em simultâneo, as múltiplas entidades fundem‐se ou transformam‐se

dandolugaraoutrosavataresemanifestaçõesdamesmadivindade.Nestesentido,

o Hinduísmo é uma torrente de dualidades entre a representação bissexuada do

divino, a consumação doDeus Supremopela união domasculino como feminino

(ShivaeParvati;VishnueLakshmi;RamaeSita)eoprincípiofundamentaldaordem

cósmicaquesucedeàdestruiçãodouniverso.

Enquanto que Vishnu simboliza a harmonia do universo e é considerado o

guardiãodaordemcósmica(dharma)contraasforçasdomal,Shivaincarnaasforças

obscuras da destruição para depois regenerar o universo a partir das águas

primordiais.Deviéaterceiraprincipaldivindadedopanteãohinduque,dealguma

formaestabeleceoequilíbrioentreapreservaçãodeVishnueadestruiçãodeShiva.

É a representação feminina do Uno encerrando em si uma multiplicidade de

avatares de acordo com a sua acção, ora protectora das comunidades,

especialmente das crianças, ora destruidora, na luta incansável contra o mal

polimorfo4.AsgrandesDeusas‐Mãedopanteãohinduconstituemumamanifestação

ou avatar de Devi, que pretendem corresponder a um culto individual como

3AminaOkada. “Asdeusas‐mãenaarteda Índiaantigaemedieval”. IN:Culturasdo Índico. Lisboa:CNCDP/InstitutoPortuguêsdeMuseus,1998,p.161.4MichelHulineLakshmiKapani.“OHinduísmo”.IN:Asgrandesreligiõesdomundo,direcçãodeJeanDelumeau.Lisboa:EditorialPresença,3ªed,2002,p.349.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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protectoras de comunidades rurais, demodo a garantiremuma prosperidade que

dependedasforçasdanaturezaouaindaassegurarasuadescendência.Asdeusas

são igualmenteadoradas comosímbolodeum idealdematernidadeedeesposas

perfeitas, através de uma representação da união matrimonial com deuses

popularescomoVishnu,KrishnaouShiva5.

ApopularidadedocultoadeusascomoDurga,Kali,Parvati,Chandi,Lakshmi,

enquantomãesdosseusdevotosemanifestaçõesdaGrandeDeusaDevi,encontra

bases na estrutura social indiana, onde amulher ocupa um lugar de dedicação à

harmonia conjugal e familiar e de responsabilização na concepção e criação da

descendência.Quandoaparentementesepensaqueamulherindianapoderáestar

sujeitaàsubordinaçãodohomem,embomrigor,elaéaordememtornodaqual

tudo se rege. É ela que olha pelo bem‐estar diurno e nocturno do marido e dos

filhos. Assegurando a descendência da família permite ao marido o cumprimento

paracomosantepassados.É,efectivamente,amaternidadequeelevaamulherao

maisaltoprestígioegraude realização, conferindo‐lhe,emcertamedida, opoder

divino6.Diríamos,portanto,queexisteumavontadeintrínsecadoimaginárioindiano

que criou este manancial de divindades que representam a protecção, a

prosperidade e fertilidade. Será prudente referir que este culto não se restringe à

vontadedasmulheresprotegeremosseuslaresoudesejaremqueasdivindadeslhes

concedam descendência. A devoção à Grande Mãe estende‐se aos homens que

desejam para si o apaziguamento das deusas, uma vez que estas são igualmente

destruidoras.Acresceaindaaideiadequesemamulhernãoháacontemplaçãodo

absoluto(Brahman),daíaprofusãodeimagensquerepresentamoDeuseaDeusa

noactodeuniãoemperfeitaserenidadeeharmoniaintemporal.

É este princípio universal de pureza, protecção, amor maternal e de união

espiritual a Deus que os hindus reconhecem na Virgem, colocando‐a ao nível de

5 Francis Xavier Clooney. Divine Mother, Blessed Mother: Hindu goddesses and the Virgin Mary.Cambridge:CambridgeUniversityPress,2005,p.6.6MichelHulineLakshmiKapani.“OHinduísmo”.IN:Asgrandesreligiõesdomundo,direcçãodeJeanDelumeau.Lisboa:EditorialPresença,3ªed,2002,p.391.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Yashoda, enquantoMãe de Deus. Omodelo daVirgem e oMenino, amplamente

difundido pelosmissionários cristãos na Ásia, coincide com amesma necessidade

espiritualecontemplativaqueoshindusencontramnasmaisdiversasmanifestações

deDevi(Fig.38,Fig.39,Fig.40eFig.41).

Por outro lado, no Shrimad Bhagavata Purana, Yashoda surge como mãe

adoptivadopequenoKrishna,nasequênciadaprofecia,quepreviaamortedoRei

Kansapelasmãosdooitavofilhodasuairmã.Tendoconhecimentodestaprofecia,o

Rei Kansa mandou prender a sua irmã, Devaki, e o seu marido, Vasudev, e deu

ordemparaquetodososfilhosfossemmortos.NodiaemqueKrisnanasceu,Vishnu

apareceuaVasudevdizendo‐lhequedeveria fugircomKrishnaparaquenãofosse

mortopeloshomenscontratadosporKansa.Miraculosamente,asportasdaprisão

abriram‐seeosguardasadormeceram,permitindoafugadeVasudeveKrishnaque,

depoisdeatravessaroRioYamuna,entregouoseufilhoaYashodaeNand7.

Estesincretismoestende‐seaindaaofactodeKrishnatersidoconcebidosem

contactosexual,atravésdeuma“transmissãomental”dopensamentodeVasudev

paraoúterodeDevaki8.ÉdefactoprolíferaaiconografiadeKrishna,representado

na fase de criança e acompanhadopor Yashoda que, por vezes, até o amamenta,

comopoderemos ver na escultura embronze do século XII, proveniente de Tamil

Nadu (Fig. 42). Repare‐se que até a iconografia de Krishna na pintura Rajput

corresponde ao gosto do Barroco europeu ao nível dos puttii e das cenas que

representam a Virgem ou a Sagrada Família olhando o Menino enquanto brinca.

Parece‐nosindissociávelosincretismodahistóriadeKrishnacomostemascristãos

daImaculadaConcepçãodeMaria,comoMassacredosinocenteseaperspectivado

HomemcomoDeusEncarnadooudaperseguiçãoefugadoheróidivinoqueretorna

ao mundo para restabelecer a Ordem e a Justiça. Essa relação estreita,

fundamentada nas estruturas antropológicas das civilizações e nos arquétipos

7SureshChandra.EncyclopediaofHinduGodsandGoddesses.NewDelhi:Sarup&Sons,pp.180‐181.8EdwinBryant(ed.).Krishna:theBeautifulLegendofGod: (SrimadBhagavataPuranaBookX),BookX.London:PenguinBooks,2003,p.16.

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universais9, foi sublinhada pelo abade Perrin na sua Voyage dans l’Indostan, por

voltade1780,afirmandoque“Uneautredivinitédontlecultesttrèssolennel,etque

l’oninvoquepourlapetite‐vérole,c’estladéesseMaria.Rienn’estplusfrappantque

l’identité du mot avec celui qui caractérise la Vierge, mère de Jésus‐Christ. Cette

expressionn’estpoint indienne;elle vientde la langue sanscourdam,dans laquelle

elleaété inséréed’une idiômeétranger, commebeaucoupd’autresmots: telsque

paterha,pére,materha,mère,deosha,dieu,quiviennentévidentemmentdulatin,à

moinsqu’onn’aimemieuxdirequelelatinl’adérobé,ausanscourdam:maisàquel

proposlesIndiensont‐ilsétéchercheruneMariapourenfaireunedivinité?Ilfaloit

qu’onleureûtfaitdécouvrirdesqualitéseminentes,etqu’ilsontjugéadorables,dans

une femmequiavoitportécenom:or,quellepeut‐être cette femme, si cen’est la

mère de Brama ou du Desiré? Rien ne devoit leur paroître plus conséquent que

d’élever des autels à lamère, puisqu’ils jugeoient que son fils étoit digne de leurs

adorations; ilsne soupçonnoientpasque lamèred’unedieupûtêtred’unenature

différentedeceluiqu’elleavoitledroitd’appelersonfils.Cequidonneunnoveaude

probabilité à cette conjunture, c’est que les Idolâtres les plus entêtés de leurs

superstitions, ont une vénération irréfléchie pour la Vierge des Chrétiens: ils se

prosternent devant ses statues, ils accurent en foule aux processions qu’on fait en

sonhonneur,ilsluiadressentdesvoeux,ilsjettentdesfleursaupieddesonimage,ils

luiprésententde l’en‐cens,et lui lèguentuneportionde leursbiens.Cependant les

Chrétiens ne se comportent pas de la même manière à l’égard de la Maria des

9 Desde o Neolítico que os símbolos de fertilidade, maternidade e protecção se associam àrepresentação de figuras femininas de ancas e seios pronunciados, evidenciando o princípio dehipérbole,comovemosnaDeusaMãeencontradaemWillendorfouafiguradeDolníVěstonice.Aolongo do tempo, a criança torna‐se um atributo da fertilidade, principalmente através daamamentação,pelarelaçãodafecundidadecomofontedealimentooucomosímbolodosoloarável.Cf.Mircea Eliade.TratadodaHistóriadasReligiões. Lisboa:EdiçõesAsa,5ª edição,2004,pp.305 ‐334. Neste contexto surge a representação de Isis amamentando Horus, a Virgem amamentandoJesus,YashodaamamentandoKrisna.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Gentils: et ils font sagement; car son culte est devenu idolatrique chez peuples

ignorants”10.

EstapassagemdotextodoabadePerrindemonstraaevidênciadosincretismo

entre o Cristianismo e o Hinduísmo mas, mais importante que tudo isso, é

demonstrativodapropensãoqueaculturaindianatemparaadevoçãodasimagens

poraquiloqueelasverdadeiramenterepresentamparasi.Parece‐nosclaroquenão

háumadevoçãodaVirgem,massimumcultoeumaharmonizaçãocomadivindade,

que representa os princípios da maternidade, fertilidade e protecção contra a

doença ou outros males. A equidade entre religiões e a coexistência de cultos,

sobretudo aos olhos dos missionários jesuítas, é perceptível nas proposições do

TratadodopadreGonçaloFernandesTrancososobreoHinduísmoapresentadasao

padreRobertoNobili, em1616.Semperder tempo“naequivocaçãodaspalavras”

diz que “Ai tresmodos de professores de varias leis, e comos que professamos o

Cristianismo,quatro,ecadahumtrasosinaldaceitaqueprofessa”11.Ao longodo

seudiscurso,queconcluiumtratadosobreosbrâmanesda Índiaeosseusrituais,

identificaosShivaístas,osVishnuistas,osbrâmanesdaseitaMadhvae,por fimos

cristãos.PoderíamosquasepensarqueseviveemMadurai,noiníciodoséculoXVII,

umatranquilaeecuménicavidaespiritual.

De facto, tal como afirma Perrin, os cristãos não erammuito dados a uma

espiritualidadequesemanifestacomformastãodiversase,consequentemente,não

adoramaMariadosgentios.Aindaassim,nãodeixadeserinteressanteofactodeo

jesuíta Roberto deNobili ter sido acusado de práticas gentílicas, três anos depois,

porGonçaloFernandesTrancoso,emaudiênciadoTribunaldaSantaInquisição12.O

10M.Perrin.Voyagedans L’Indostan. Paris:1807,Vol. II,pp.56e57.Oexcertoque se citaaqui foipublicadoemPortuguêsemAminaOkada.“Asdeusas‐mãenaarteda Índiaantigaemedieval”. IN:CulturasdoÍndico.Lisboa:CNCDP/InstitutoPortuguêsdeMuseus,1998,p.162‐163.11TratadodopadreGonçaloFernandesTrancososobreoHinduísmo, ediçãocríticaanotadadeJoséWickiS.J.,Lisboa:CentrodeEstudosHistóricosUltramarinos,1973,p.315.12 Teotónio R. Souza. “A arte cristã de Goa: uma introdução histórica para a dialéctica da suaevolução. IN:Oceanos. ‐ Lisboa ‐ nº 19/20 (Set. / Dez. 1994), p. 9. Célia Cristina da Silva Tavares.“Inquisiçãoaoavesso:atrajetóriadeuminquisidorapartirdosregistrosdaVisitaçãoaoTribunaldeGoa”.IN:Topoi,Vol.10,nº19(Jul./Dez.2009),pp.17‐30.

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seuprocessodeadaptatioaoscostumesdosgentios,comoformadeaproximação,

tornoudemasiado ténueadistanciaçãoentreo Cristianismoeogentilismo,oque

lhevaleuoprocessoinquisitorial.

Outrosjesuítaslhesucederam,comoopadreEstêvãoque,depoisdequarenta

anos em missão em Salsete, publicou, em 1616 no Colégio de Rachol, o Purana

cristão, que também ficaria conhecido pelo títuloDiscurso sobre a vinda de Jesus

CristoNossoSenhorSalvadordoMundo13.SucedendoaopadreEstêvão,nocargode

ReitordoColégiodeRachol,opadreEstêvãodaCruz,naturaldeFrança,veioàÍndia

em1622 e tambémele, talvez inspirado pelo seu antecessor, compôs umPurana

cristão, com o título Discursos sobre a vida do Apostolo Sam Pedro em que se

refutamosprincipaiserrosdogentilismodesteOriente:esedeclarãovariosmisterios

denossa sancta fee: comvariadoutrinautil&necessáriaaestanovacristandade.

CompostoemversosemLingoaBramanaMarastrapellopadreEstevãodaCruzda

CompanhiadeJesus.ApesardeoexemplardaBibliotecaNacionaltersidoimpresso

em1629,aslicençasdepublicaçãodatamde1632‐163414.

A partir deste cenário, torna‐se evidente que os missionários europeus,

fundamentalmente os da Companhia de Jesus, se aperceberam da existência de

pontes de entendimento. A riqueza da cultura e da imagética espiritual hindu

permitiuqueosmissionárioscriassemumaplataformadereconhecimentodeleise

princípios universais que estão na base de uma tradução espontânea dos

significadosedosesquemasderepresentaçãodosagrado.

DuranteoséculoXVI,apinturafoi,emPortugalenaEuropa,ograndeveículo

deexpressividadeartísticaereligiosadoCristianismo,servindodamesmamaneira

13PandurongaPissurlencar.“OsprimeiroslivrosmaratasimpressosemGoa”.IN:SeparatadoBoletimdoInstitutoVascodaGama,nº73.Bastorá/Goa:TipografiaRangel,1956.SelmadeVieiraVelho.Ainfluênciadamitologiahindunaliteraturaportuguesadosséc.XVIeXVII.Macau:InstitutoCulturaldeMacau,1988,Vol.II,p.882.14PandurongaPissurlencar.“OsprimeiroslivrosmaratasimpressosemGoa”.IN:SeparatadoBoletimdoInstitutoVascodaGama,nº73.Bastorá/Goa:TipografiaRangel,1956,pp.11‐12.

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asintençõesmissionáriaseevangélicasnacatequizaçãoeconversãodosgentiosda

Ásia.AsdescriçõesquePyrald deLaval fazna suavisitaaGoadurante o iníciodo

século XVII, bem como a extensa documentação publicada por Silva Rêgo e por

Cunha Rivara, permitem afirmar que as igrejas estavam bem dotadas de pintura.

Sabemostambémquemuitadessapinturafoiexecutadaporpintoreslocais,alguns

atéfiéisaobramanismoeàidolatriadosgentios.

Contudo, tal como aconteceu com a arquitectura de Goa Velha, a pintura

goesaseguiuosrígidosmodeloseuropeus,mantendo‐sefielaogostoeuropeueao

cânone dos modelos narrativos da pintura tardo‐renascentista. A razão desta

circunstânciapoderáeventualmenteencontrar‐se,porumlado,nagrandeafluência

degravuraeuropeia,queserviademodeloàpinturanãosóemGoamasemtodaa

Ásia ‐ e aqui também não poderemos esquecer a importância da fundação da

imprensaemGoapelos jesuítasem1556.Por outro lado,aescultura foi,na Índia

anterior à chegada dos portugueses, a arte commaior expressividade, resultando

numa grande influência da arte hindu sobre a talha das igrejas goesas e numa

profícuaoficinadeesculturadevultoebaixo‐relevoempedra,mas sobretudoem

madeira.

Desta pintura, do final do século XVI e alvores do século XVII, o painel deS.

Pedro e o deS. Paulo, actualmente na Sacristia da Sé deGoa e o painel dasTrês

SantasVirgensnaIgrejadoBomJesus,persistemcomoobrasdeartistasreinóisou

indianos que seguiram a tradição estilística dos Mestres de Ferreirim15, embora

sejamnotáveisas“mãos”dosmestreslocais,sobretudoaoníveldotratamentodos

corposedosrostosdasfiguras.NaigrejadeS.PaulodeDiu,mantêm‐sepinturasda

15VítorSerrão.“ApinturanaantigaÍndiaPortuguesanosséculosXVIeXVII”. IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),pp.102‐112.

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AdoraçãodosPastoreseCircuncisão,provavelmenteenviadasdoreino16enaesteira

dospressupostosestéticosdasoficinasdeDiogoTeixeiraeSimãoRodrigues17.

Como nota Carlos de Azevedo, é nas decorações da pintura mural que se

verificauma influênciada imagináriahindu,nomeadamentena IgrejadoRosárioe

tambémnocomplexodeSantaMónica18.

ORealConventodeSantaMónica,mesmoemfrenteàsruínasdoconventoe

da igreja de Nossa Senhora da Graça, foi mandado levantar por Filipe II, sob a

supervisão do Arcebispo de Goa, D. Aleixo de Meneses, com a primeira pedra

lançadaem Julhode 160619.Construídoe sucessivamenteaumentadonodecorrer

dos vinte anos seguintes, o complexo de Santa Mónica foi devastado por um

incêndioem1636.FreiDiogodeSantaAnna,Capelão,ConfessoreAdministradordo

Convento de Santa Mónica, ficou responsável pelas obras de reconstrução nesse

mesmo ano20. De acordo com Pedro Dias, trabalhavam nas obras de construção

aproximadamente cento e cinquenta trabalhadores21muitos dos quais, pensamos

nós,seriamgentiosconvertidosououtrosquesemantinhamfiéisàdevoçãohindu.

Sabemo‐lopelaHistóriadeFreiAgostinhodeSantaMaria,queacaridadedaMadre

SororPhilippada Trindade“seestendia tambémparaosde fora,desejandomuito

quetodossesalvassem,&conhecessemocaminhodoCeo.TinhaaquelleConvento

humMestrecarpinteiro,queeraGentio:assimaMadreSororPhilippa,tinhamhua

16 Adriano Gusmão. “A pinturamaneirista em Portugal”. IN:Actas do III Colóquio Internacional deEstudosLuso‐Brasileiros.Lisboa,1960,pp.71‐74.17VítorSerrão.“ApinturanaantigaÍndiaPortuguesanosséculosXVIeXVII”. IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),pp.102‐112.18CarlosAzevedo.ArtecristãnaÍndiaportuguesa.Lisboa:Lisboa:JuntadasMissõesGeográficasedeInvestigações do Ultramar, 1959, p. 109. Idem. A arte de Goa, Damão e Diu. Lisboa: Pedro deAzevedo,2ªedição,1992,p.23.19História da fundação do Real Convento de SantaMónica da Cidade de Goa, corte do estado daÍndia,&do Império LusitanodoOriente, fundado pelo ilustríssimoe reverendíssimo senhorDomFr.AleixodeMeneses,PrimazdasHespanhas,&daÍndia,Vice‐ReydePortugal,&presidentedoConselhodomesmoreinoemacortedeMadrid,porFr.AgostinhodeSantaMaria.Lisboa:OfficinadeAntónioPedozoGalram,1699,p.105.20Op.Cit.,p.455.21PedroDias.ArtedePortugalnoMundo,vol.10,p.41.

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grandedesconsolaçãodequeellenãoseconvertesse,&sefizesseChristão;noquese

mostravamuitoduro,&confianteemsuacegueira”22.A2deJunhode1613,noDia

daSantíssimaTrindade,aMadresolicitouaoConfessordoConventoquefalassecom

aquelegentioparaqueseconvertesse,“&comoodiaeradaSantíssimaTrindade,

fiadoemoSenhor,&navirtudedeste soberanomysterio,opersuadio commuitas

razõesrecebesseobautismo,EsefizesseChristão”23.Nãosóseconverteuogentioe

“mestredasobrasdecarpintariadomesmoconvento”,comotambémseconverteu

asuamulhereosseusfilhos.

AdocumentaçãorecentementelevantadaporVítorSerrão,noiníciode2008,e

por nós próprios, no início do ano seguinte, nos Arquivos Históricos de Pangim,

permiteperceberaimportânciadealgunsdosmestresdepedraria,depinturaede

carpintaria que formaram escola nas empreitadas agostinhas em Goa. Na nossa

opinião, o Mestre carpinteiro gentio, que supostamente se converteu ao

Cristianismo no dia da Santíssima Trindade do ano de 1613, e que recebeu um

pagamentode20xerafinsno finalde161224,poderá serManuelRoiz (Rodrigues).

EstemestredecarpintariaterásidotambémoautordoretábulodeSantaAna,com

o qual se gastaram 200 xerafins para a madeira e para a feitura do cadeiral da

frontaria25. Numa segunda fase das obras de Santa Mónica foram identificados

outrosmestresdecarpintariagentios,entreosquaisomestreBabuxa,responsável

pelo “feitio do retabolo mor”26. De acordo com Vítor Serrão, este seria o mestre

principal, atribuindo‐lhe a feitura das esculturas do retábulo da igreja de Santa

Maria,adjacenteaoMosteirodeSantaMónica27.

22HistóriadafundaçãodoRealConventodeSantaMónica…,p.529.23Op.Cit.,p.794.24LivrodeContasdoConventodeS.Agostinho,de1612a1825,fl.119r.25Op.Cit.,fl.202v.26Op.Cit.,fl.207v.27 Vítor Serrão. “Pintura e devoção em Goa no tempo dos Filipes: omosteiro de SantaMónica no“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20,(2011),pp.11‐50.

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Parece‐nos particularmente interessante a descrição de Frei Agostinho de

SantaMaria,aoestabelecerumarelaçãoentreomistériodaSantíssimaTrindadeea

conversãodogentioedasuafamília.Éprovávelque,jáem1613,existisseaCapela

daSantíssimaTrindade,naqualaindasubsistempinturasa frescoetêmperasobre

madeira.Nessacapela,deacordocomFreiDiogodeSantaAnanasuaapologiade

1633, encontravam‐se “hum retabolo de alabastro de Veneza deste Divino

misterio”28.Esteretábulo,emalabastroitalianocomarepresentaçãodomistérioda

Trindade,encontra‐seactualmentenoMuseumofChristianArt,quepartilhaespaço

comoConventodeSantaMónica(Fig.43).

OMestredaCapeladaTrindade,comoodenominamMariaAdelinaAmorime

VítorSerrão29,decorouotectoeasparedesaltasdaCapeladaSantíssimaTrindade

noandarnobre,deixandoaindadasuamãooutrasobrasnorefeitóriodocenóbio.

Maisrecentemente,VítorSerrãosugerequeestepintorpoderáserAleixoGodinho,

mestreactivoemGoasemobra remanescente identificadaeque fora identificado

por Diogo do Couto em 1616, como sendo o “pintor Godinho” que executou as

destruídaspinturasdagaleriadasArmadasnoPaláciodoVice‐Rei30.

Desse acervo destaca‐se um fresco com a representação da Trindade

Triândrica, onde o Pai, o Filho e o Espírito Santo surgem de fisionomia idêntica,

distinguindo‐sepelosatributosdoSol (Pai),doCordeiroMístico(Filho)edaPomba

(Espírito Santo) inseridos num disco dourado (Fig. 44). Esta tipologia de

representaçãodaSantíssimaTrindadeédesignadaporFaustoMartinsporTrindade

Triândrica, tendo sido reprimida pela Contra‐Reforma por gerar alguma confusão

28 Apologia do insigne mosteiro de Sta Mónica de goa… Cit. a partir de Serrão, Vítor. “Pintura edevoçãoemGoanotempodosFilipes:omosteirodeSantaMónicano“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20,(2011),pp.11‐50.29MariaAdelinaAmorimeVítorSerão.“ArteeHistóriadoConventodeSantaMónicadeGoa,àluzda“Apologia” de Frei Diogo de Santa Ana, Crónica inédita de 1633”. IN: Problematizar a história ‐EstudosdeHistóriaModernaemhomenagemaMariadoRosárioThemudoBarata coordenadoporAnaLealdeFariaeIsabelDrumondBraga.Lisboa:Caleidoscópio,2007,pp.677‐713.30 Vítor Serrão. “Pintura e devoção em Goa no tempo dos Filipes: omosteiro de SantaMónica no“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20,(2011),pp.11‐50.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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entreosfiéis31.DeacordocomMariaAdelinaAmorimeVítorSerrão,aconfiguração

rara deste tema obedece a “razões de fidelidade e de manutenção a códigos

imagéticos arcaizantes, àmargemdo controlo rígido de uma iconografia oficial, e

não a fuga à ortodoxia, através de temas e representações proibidas ou não

toleradas,oquenocasodoconventodasagostinhasdeGoaeracoisasimplesmente

impensável”32. Segundoosautores, aexistênciadeoutrasobrasqueconstituemo

programa da ornamentação interior de Santa Mónica denuncia um desvio das

recomendações tridentinas.ComonotouFlávioGonçalves,osmissionários cristãos

usaram a Trimurti hindu na estratégia de conversão e explicação da Santíssima

Trindade aos gentios33. No caso concreto da Capela da Santíssima Trindade, Vítor

Serrãoconsidera,pertinentemente,que“opesodeSantaMónicana instruçãodas

mulheres indo‐portuguesas e fortalecimento do dogma foi gigantesco e, por isso,

houverecursoa“simbologiasdeaproximação”comoesta”34.

Segundopensamos,estapintura,claramenteexecutadaporumartistagentio,

deve ser entendida à luz do reconhecimento de significados e de uma cultura

artística de um artista local extremamente familiarizado com a representação da

Trimurti hindu. A composição segue o modelo da Trimurti hindu composta por

Brahma, o criador, Vishnu o preservador e Shiva o destruidor, apresentados

normalmentepelasuaformahumanaeidentificadospelosseusatributos.Cadauma

dasdivindadesé,porvezes, identificadaatravésda respectiva consorte (Brahmae

Saraswati; Vishnu e Lakshmi; Shiva e Parvati). Em outros casos são identificados

31FaustoMartins.IconografiadoMistériodasSantíssimaTrindade.ProvasdeagregaçãoapresentadaàFaculdadedeLetrasdoPorto,Junhode2005 (apublicar). cit.apartirdeMariaAdelinaAmorimeVítorSerão.“ArteeHistóriadoConventodeSantaMónicadeGoa,àluzda“Apologia”deFreiDiogodeSantaAna,Crónicainéditade1633”.IN:Problematizarahistória‐EstudosdeHistóriaModernaemhomenagemaMariadoRosárioThemudoBaratacoordenadoporAnaLealdeFariaeIsabelDrumondBraga.Lisboa:Caleidoscópio,2007,pp.677‐71332Op.Cit.,pp.677‐713.33Cf.FlávioGonçalves.“AiconografiadaartehinduestudadaporumportuguêsdoséculoXVIII”.IN:Colóquio,nº32,Fevereirode1965,pp.9‐13.34 Vítor Serrão. “Pintura e devoção em Goa no tempo dos Filipes: omosteiro de SantaMónica no“MonteSanto”(1606‐1639)eosseusartistas”.IN:RevistaOriente‐Lisboa‐nº20,(2011),pp.11‐50.

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pelosseusatributossimbólicose instrumentosdasuaacção:Brahmacomostextos

védicos,Vishnucomomaço,olótuseSheshnag,acobracomsetecabeças,eShiva

com o seu tridente. A Trimurti hindu é também representada, em alguns casos,

sobreosseusveículoscelestes,ondeBrahmaserepresentacomoCisne,Vishnucom

GarudaeShivacomNandi.

O fresco da Capela da Santíssima Trindade segue osmodelos tradicionais de

representaçãodaTrimurtihindu,atribuindoumadimensãofísicaaoPai,aoFilhoe

aoEspíritoSanto,identificáveispelosinstrumentosdasuaacção.DeusPai,oCriador

doUniversoidentifica‐sepeloSolqueatravésdosseusraiosfecundaaTerraecriaa

Vida.DeusFilhocarregaaosombrosocordeiromísticoquesimbolizaoseusacrifício

pelamanutençãodaOrdemDivinaepelasalvaçãodaHumanidade.OEspíritoSanto

é o Ser da Não Forma, consubstancial à essência de Deus Pai e Deus Filho, é o

consoladordaregeneraçãoparaumaNovaVida.Acresceaindaaevidênciadaordem

naqualoPai,FilhoeEspíritoSantocorrespondeàmesmaordemdesignificadoda

Trimurti,comBrahma,VishnueShiva.Parece‐nosqueaideiaintrínsecadaTrindade,

quedecertaformaétransversalaváriascivilizações35,éamanifestaçãodoAbsoluto

atravésdetrêsprincípiosfundamentais:odaCriação,fonte,essênciaefimdetodas

as coisas; o daManutenção, guardião damoralidade e herói divino que resgata o

homemdaqueda;eodaDestruiçãoeRegeneraçãodaOrdemCósmica.

Nestesentido,pensamosqueoartistaseteráfundamentadonosmodelosde

representação da Trimurti e é evidente que a Trindade se apresenta como uma

plataformadeentendimentoesincretismoquerevelaprincípioseleisuniversaisque

trespassamasfronteirasdaculturalidadeeascamadassuperficiaisquecaracterizam

as diferentes culturas. À semelhança do princípio de maternidade, fecundidade e

protecçãodaVirgemedasmanifestaçõesdeDevi,aTrindadeconstituiumalicerce

35 Veja‐se a Trindade Zoroastra (Khshathra Vairya, Haurvatat e Ameretat). No Budismo a DoutrinaTrikayaassumequeBudatemtrêscorpos(kayas).NaChinataoistaFu,LueShourepresentamostrêsprincípiosfundamentaisdaBoaFortuna,ProsperidadeedaLongevidade.Outrossistemasmitológicosbasearam‐senahierarquiadoPai,daMãeedoFilho,comoéocasodatrindadecompostaporOsíris,ÍsiseHorus;Júpiter,JunoeMinervaeZeus,LetoeApolo.

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da espiritualidade humana que desperta um sentimento confuso da consciência

entre encontro e confronto de culturas. Se, por um lado, vimos que D. João de

Castro pensou que os gentios acreditavam na Santíssima Trindade, durante a sua

visita aos templos hindus emElefanta, por outro lado, Francisco de Sousa, no seu

OrienteconquistadoaJesuChristopelospadresdaCompanhiadeJesusdaProvíncia

de Goa, descreve a forma como o padre Gonçalo Rodrigues ao chegar à Ilha de

Salsete no ano de 1557 “derrubou o famoso pagode da fabulosa trindade dos

gentios, & levantou a Igreja da Santíssima Trindade”36, demonstrando que os

missionários procuraram substituir os significados a partir de um princípio de

equidadesimbólica.

Emformadesíntese,concluiremoscomumapassagemdeDiogodoCoutoque

faz uma elucidativa leitura, ao estilo de Gilbert Durant e Mircea Eliade, sobre a

Trimurtihindu,enquantoestruturacivilizacional,easconfusõeslançadasporD.João

deCastro,JoãodeBarros,DamiãodeGóiseoutroseuropeus.“Etornandoànossa

ordem dos Regentes, que hiamos tratando. Trazem os gentios, em memoria

daquellestres,outrostantosfiosdealgodão,quelhespendedehumhombro,evai

por baixo do outro braço a tiracolo; e quando se lhes dam seus juramentos, he

naquella linha.Disto tomáramalguns religiosos doutosmotivopara cuidarem,que

tiveramestesgentiosconhecimentodaSantíssimaTrindade;eassimseenganáram

João de Barros, e Damião de Goes, porque não tiveram a prática dos Theologos

gentios como nós. E ainda hoje se enganam muitas pessoas praticando com os

Bragmanes,ouvindo‐lhesdizer,queassimcomoosChristãosadoramtrespessoasem

humasó,assimofazemellesaoutrastresdebaixodehumsó,queheoMahamurte,

queassimadissemos.Esta idolatriaparecequeseestendeoportodooOrientedos

antigosEgypcios,queadoramosmesmoselementos;porqueestesnãotendoemseu

princípioconhecimentoalgumdeDeos,considerandoomovimento,eformosuradas

luminariascelestes,começáramahonrallaspordeoses,chamandoaoSolOsíris,eá

36 Oriente conquistado a Jesu Christo pelos padres da Companhia de Jesus da Província de Goa.Segundaparte.Naqualsecontemoqueseobroudesdoannode1564atéaoannode1585,ordenadapeloP.FranciscodeSousa.Lisboa:OfficinadeValentimdaCostaDeslandes,1710,p.8.

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LuaÍsis.Evendoquãonecessárioseramoselementosávidahumana,atribuindo‐lhes

divindade,osvieramavenerardebaixodosnomesquelhesderam,chamandoaoar

Júpiter, ao fogoVulcano, à águaNeptuno, e à terra Ceres. Estes nomesmudáram

estes gentios de que tratamos, em outros com a mesma significação da terceira

parte destes originaes, que he de doutrina Moral, de que trataremos algumas

cousas”37.

Se,porumlado,rareavamosartistaseuropeusquepudessemcorresponderàs

necessidades de ornamentação interior das igrejas na Índia e dos objectos de

devoção,poroutrolado,conformejávimos,oclimaásperodilaceravaaspinturasa

óleo, executadas por artistas europeus e locais ou até mesmo as que vinham da

Europa.

Peranteestecenário,acresceaindaanecessidadederecorreraumamão‐de‐

obra local com uma cultura artística formada a partir de uma longa tradição do

entalhe e da escultura de espaços e imagens de devoção.Os templos hindus são,

antes da chegada dos portugueses, profusamente lavrados e entalhados com

elementosvegetalistas,animaissagrados,símbolos,serescelestiaisedivindades.A

vocaçãoornamentaldaartehindunãoinduzumadistinçãoentreoespaçoexteriore

oespaçointeriordotemplo.

Aproduçãodaartecristãna Índia,como refereMariaHelenaMendesPinto,

encontrounacombinaçãodetécnicasemateriaisumadistribuiçãodeornamentação

maispróximaàformaçãoartísticadosartistaseartífices locais38.Nestesentido,os

trabalhosemmadeira,sejaomobiliárioouatalhaderetábulos,painéisembaixo‐

relevoepúlpitos,ouemoutrasmatériascomoaimagináriaemmarfimeosobjectos

37DaAsiadeDiogodoCouto,dosfeitos,queosportuguesesfizeramnaconquista,edescubrimentodasterras,emaresdoOriente.DécadaV,Partesegunda.Lisboa:Régiaofficinatypografiica,1780,pp.38e39.38 Maria Helena Mendes Pinto. Os descobrimentos e a Europa do Renascimento. XVII ExposiçãoeuropeiadeArte,CiênciaeCultura.Lisboa:PresidênciadoConselhodeMinistros/CNCDP,JerónimosII,“Cumpriu‐seomar”.AarteeamissionaçãonarotadoOriente,1983,p.69.

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deourivesaria,combinamasformaseuropeiascomelementosdaimagináriaindiana

atravésdatécnicadoentalhe.É,sobretudo,aquiqueseabreespaçoàtendênciae

exuberânciadecorativadaartehinduequetransformaaartedatalhaedaescultura

emmadeiranumaplataformadediálogoentreasformasesignificadosdaartecristã

comaarteindiana.

Énocontextodaourivesariaqueaproduçãoartísticadosgentiosaoserviçoda

corte portuguesa faz cair o preconceito antropológico que relegava as gentes da

Índiaaumnívelinferioremrelaçãoàcivilizaçãoeuropeia.Ogostopeloexóticopelas

maravilhasdoOrienteepelaabundânciadasformastãorarasquantodelicadasdas

jóias e da ourivesaria indiana, construiu uma ponte no diálogo civilizacional e

artístico. Entre 1518 e 1520 esteve em Lisboa, na Corte de D.Manuel, o ourives

indianoRauluchatimparaexecutarpeçasaoestilodaÍndia39.

Estes artistas indianos, que dirigiam verdadeiras oficinas de lavra de ouro e

prata, introduziram a originalidade das diversas técnicas, desde o relevado, o

gravado, o cinzelado, a filigrana e o esmalte. Considerando que trabalhavam

directamenteparaosmaisaltosdignitáriosdaIgrejaedoEstadoPortuguêsdaÍndia,

numafaseemqueorigordaproduçãoartísticalocalobedeciacaprichosamenteaos

modelos tradicionais europeus, não se vislumbra na ourivesaria uma simbiose das

formas ou dos símbolos sagrados ao nível, por exemplo, da que encontramos na

talhaounomobiliário.Apartirdocofre‐relicáriodeSãoVicenteproduzidoemGoa

entreofinaldoséculoXVIeoiníciodoséculoXVIIequeseconservanoMuseudo

TesourodaSédeLisboa,parece‐nosqueosourivesindianostinhampormodeloas

gravuras e imagens de livros de horas e evangeliários para a ornamentação das

alfaias litúrgicas. À semelhança das marginalia que emolduram a pintura de

miniaturamogol, as imagens gravadas no cofre‐relicário sugerem uma espécie de

39 Panduronga Pissurlencar. “Os primeiros goeses em Portugal”. IN: Boletim do Instituto Vasco daGama,nº21,1936,pp.59‐78.NunoVassalloeSilva.“TesourosdaTerradePromissam.AourivesariaentrePortugalea Índia”. IN:Oceanos. ‐Lisboa‐nº19/20 (Set./Dez.1994),pp.88‐101. Idem.“Aartedaourivesariana ÍndiaPortuguesa”. IN:AHerançadeRauluchantim, coordenaçãocientíficadeNunoVassalloeSilva.Lisboa:MuseudeS.Roque/CNCDP,1996,pp.16‐29.

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“corta e cola” das ilustrações demissais, evangeliários, flos sanctorum e livros de

horas que chegaram a Goa na bagagem dos missionários europeus. Outros

exemplares revelam uma decoração que segue de perto frontispícios e cartelas

ornamentadas com elementos vegetalistas que encontramos em algumas obras

impressas. Um excelente exemplar das peças de ourivesaria de produção local

executadasapartirdemodelosimpressoséaSacraprovenientedaextintaIgrejade

TetedaPrelaziadeMoçambiqueequeseencontraactualmentenoMuseuNacional

deArteAntiga(Fig.45).Nofrontão,umCalvário,aoestiloRenascentistadoespírito

deDevotioModerna, é ladeadopelas figuras de Pedro e Paulo apresentados, nos

extremos,poranjos.Amolduraqueenvolveacartelacomainscriçãoégravadacom

cenasdaVidadeCristoeosinstrumentosdaPaixão,quesesucedemnumanarrativa

através de pequenas imagens, certamente retiradas de livros de literatura

devocional.

ApesardaabundanteproduçãoemourivesarianaÍndiaPortuguesaduranteos

séculosXVIaXVIII,osregistoscontinuamareferir importaçãodeartigosvindosdo

reino, nomeadamente “figuras de christo em latão, vários relicários, estampas em

papel”.NanaudeNossaSenhoradaConceição,quechegouaGoa namonçãode

Setembro de 1710, vieram do reino “doze corações com suas relíquias, dezoito

cruzes com reliquias, dezoito relicários demilão, cem christos de latão”40. Dada a

elevada quantidade de ouro e prata e o estabelecimento de amplas oficinas de

ourivesaria,épossíveladmitirquemuitasdestaspeças,bemcomoasestampasem

papel,serviamparaosourivesindianosexecutaremréplicasemmetaisnobresque

substituiriamosdelatãoe/ouseriameventualmenteenviadosparaaEuropa.

Comojávimos,entretodaaproduçãodeartecristãnaÍndia,énaourivesaria

que os modelos europeus mais resistem à influência da imaginária das religiões

locais, muito provavelmente por serem instrumentos do ministério da fé e dos

rituaiscristãosenãosuportesaoentendimentoedevoçãodashistóriassagradas.

40LivrodalembrançadosartigosrecebidosdoreinopelosJesuítas,1702‐1742,ArquivoHistóricodeGoa,fl.57ess.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Aextensivaproduçãodealfaiaslitúrgicasparaservirnascerimóniasreligiosas

tem continuidade durante os séculos XVII e XVIII. Em Agosto de 1755 o Mestre

Camanaéreferenciadocomoourivesdeprataparafazerasponteirasdecruzese,

em Março de 1756, António de Bastos, antes da sua partida para Chorão,

determinouquefosseentregueaoMestreCamanaumaquantiaavultadaemprata,

813 xerafins, “pera satistação, pezo e rtoque dos sanctuarios” 41. Das contas

registadas, sabemos que o ourives Camana executou seis santuários e cinco

relicários, todos em prata, com alguns apontamentos em ouro42. O mestre de

ourivesaria indiano volta a ser referido, em Julho de 1759, por contas feitas a um

resplendordeprata.

A partir de umoutro documento, que encontrámos noArquivoHistórico de

Goaenuncacitadopelahistorigrafiaportuguesa,épossívelterumaideiaclarasobre

aproduçãodeourivesarianaÍndiaPortuguesaduranteosséculosXVIIIeXIX.OLivro

de registo de marcas de ourives de 1777 reúne as marcas de 142 ourives, numa

cronologiaquevaide1778a1834.ApesarderemeterjáparaoiníciodoséculoXIX,

nãodeixadeserinteressanteperceberqueesteregistoéfeitoatéàdatadaextinção

dasOrdens Religiosas levada a cabo em todoo Reino de Portugal, o que permite

pensarqueexistiaumaproximidademuitograndeentreaproduçãodeourivesariae

a Igreja. Entre os ourives registados percebemos que existem duas castas

predominantes e que, de alguma forma, detêm o monopólio da produção de

trabalhosemouroeprata.A castaChatimconstaentreos registosdeourivesem

períodosmais recuados até ao final do século XVIII, sendo que a casta Chetty se

tornamaispredominanteduranteosprimeirosdecéniosdoséculoXIX.Certamente

os ourives Chatim terão sido os sucessores do famoso ourives Rauluchatim, que

41Livroda receitaedespesa feitaparaváriosbenspelospadres JesuítasdesdeFevereirode1753aSetembrode1759.ArquivoHistóricodeGoa,fl.33v.42 Op. Cit., fl. 40. Devemos ter em consideração que neste relatório de contas existem váriasreferências à execução de obras de pintura de imagens de S. João Baptista, ou ainda de NossaSenhora,bemcomoaodouramentoepinturade imagensdeescultura,ondeosnomesdosartistasnãosãoreferidos,oquepoderásignificar,porumlado,oelevadoestatutodoourivesCamana,bemcomoumacontinuidadeeafirmaçãodasoficinaslocaisparaaproduçãodeimagenscristãsnasigrejasjesuítas.

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esteveaoserviçodeAfonsodeAlbuquerqueedeD.Manuelduranteasuaestadia

em Lisboa.Demonstra‐se assim, que o ofício da lavra de ouro e prata semantém

entre hindus da casta Chatim pormais de trezentos anos, produzindo uma parte

substancial das peças que chegaram aos nossos dias. O estatuto de Rauluchatim

conferiu aos seus sucessores a afirmação de várias oficinas que terão acolhido a

preferência dos encomendadores da Igreja e da corte portuguesa. Neste livro de

registos encontrámos um facto que o comprova. O mestre ourives Camana que

referenciámos atrás é o “Camana Chatim [que] morreu em C ou Basselem

caracterizadopeloestilodeGoa,a6deSetembrode1781”43.

De facto, a importância dos ourives indianos para uma longa tradição de

produção de trabalhos emouro e prata prolonga‐se até ao século XX, perceptível

atravésdorelatóriodoúltimoGovernadordoEstadoPortuguêsda Índiaem1961:

“Havia famílias de artistas e também aldeias que eram verdadeiros alfobres de

artistas de ourivesaria, especialmente hindus, que naquelas terras tinham os seus

desusesconsagradosàartequecomtantoesmerocultivavam.Nasvisitasquealifiz

senibemavibraçãointensadodesejodemanteremparaaposteridadequaliudades

artísticas que os seus avós lhes legarame têm sidomantidas emalto nível como

maiorcarinho”44.

Se, por um lado, na ourivesaria predominam as decorações vegetalistas e

ornamentosdetradiçãolocalexecutadosporartistasindianos,poroutrolado,énos

retábulos,púlpitos,mobiliáriolitúrgico,altaresepiasbaptismais,queseverificauma

inclusãodeelementosvegetalistas,comoolótuseocaju,eatémesmodeentidades

celestes como asnagas enagini, asapsaras e outras divindades do panteão e do

43Livroderegistodemarcasdeourivesde1777,ArquivoHistóricodeGoa,fl.34.AmarcadeCamanaChatiméumAcomotraçoemcircunflexoinvertidosobreoC.44Manuel António Vassallo Silva. Elementos para o relatório doGoverno‐Geral do Estado da ÍndiaPortuguesa no período entre 30 de Dezembro de 1958 e 19 de Dezembro de 1961. (exemplarpolicopiado). Lisboa, 1963. cit. a partir de Nuno Vassallo e Silva. “A arte da ourivesaria na ÍndiaPortuguesa”.IN:AHerançadeRauluchantim,coordenaçãocientíficadeNunoVassalloeSilva.Lisboa:MuseudeS.Roque/CNCDP,1996,pp.28.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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imagináriohindu,paraalémdofabriconumavastatipologiademateriaisexóticos,

queserviamosmercadosnaEuropa.

Atalhatranspiraumaforte influênciadeuma iconografia localaplicadaaum

conjuntodesignificaçõescristãs.OinteriordaIgrejadeRachol,atalhadaIgrejadeS.

FranciscodeAssis,dosaltaresdaIgrejadeMadredeDeusdeDamãoedosaltares

laterais com dosséis de formas derivadas dos dosséis de cabeças de serpente, de

VishnuNarayana,sãoalgunsdosexemplosmais significativos.Nopúlpitoda Igreja

daNuvem,emSalsete,opedestalrepresentafigurascomcaudasdeserpentesque

se assemelham às nagas que se vêem recorrentemente no mobiliário indo‐

português45.Emoutrosexemplos,nomeadamentenopúlpitodaIgrejadeVarcá,as

figuras combustohumanoe caudasde serpente têmopapeldecariátides, sendo

essepapelacentuadopelaausênciadebraços46.

Atalhadouradaoupolicromadaé,porexcelência,apontenodiálogoestético

dasrepresentaçõesdosagradoqueserve,porumlado,aoespíritoproselitistados

missionárioseuropeuse,poroutrolado,correspondeàsedequeaculturaartística

indiana tem de um imaginário repleto de formas e de um acentuado gosto

ornamentalfundamentadonumapaletaberranteenavolumetriaacentuada.

AprojecçãodatalhanopanoramaartísticodeGoa,quelheconfereacélebre

designação deGoaDourada, prende‐se comumalinhamento de factores que vão

desde o clima rigoroso que determinou a perda de muita da pintura enviada de

Lisboa, a falta de artistas que produzissem pintura a óleo para responder às

necessidadesdasigrejas,afaltadequalidadedosmateriaisparaapinturaexistentes

emGoae,poroutro lado,aabundânciadeartistas locais comumavasta tradição

artísticaaoníveldatalhaedaescultura,tantoempedracomoemmadeira.

Esta preferência pelos revestimentos em talha commúltiplas configurações,

desde os altares laterais aos retábulos principais e aos púlpitos, reflecte um

45MariaMadalenadeCagigalSilva.Arteindo‐portuguesa.Lisboa:EdiçõesExcelsior,1960,p.27.46Op.Cit.p.150.

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equilíbrioentreogostoeuropeueumaconfiguraçãodoespaçosagradoqueatraiaa

sensibilidade espiritual e visual das comunidades hindus à espiritualidade cristã.

Trata‐se,dealgumaforma,detrazeràsigrejascristãsumaexuberância,umaprofusa

ornamentaçãoeumaacentuadapaletaquecorrespondeà identificaçãodoespaço

sagrado da tradição hindu. Os artistas locais deixaram cair sobre os modelos

retabulares importados da Europa uma especificidade regional, que se caracteriza

por uma densa decoração e preenchimento dos espaços, com a adaptação das

formasaumaimagéticalocaleaintroduçãodeelementosdaimagináriaindiana.

Adocumentação remanescentedos séculosXVI eXVIIpermite perceberque

uma parte significativa das obras de talha retabular foi executada por artistas

indianos. Sabe‐se que no Colégio da Companhia de Jesus de Cochim um mestre

hindu concluiu, em1591, o entalhamento do púlpito a troco da sua conversão ao

Cristianismo.Maistarde,em1621,omestredeimaginária,Babuxa,segundosugere

VítorSerrão,terásidooprincipalresponsávelpelasobrasemesculturanoconvento

deSantaMónica, tendo recebidoumaquantiadeduzentosxerafinspelaexecução

doretábulo‐mordaigrejadeNossaSenhoradaGraça.Nadocumentaçãolevantada

percebe‐sequeomestreBabuxaeraresponsávelpelasobrasdeescultura,aopasso

que o mestre Santopa era o entalhador responsável nas obras do complexo das

monjas agostinhas. Os retábulos seriam finalizados com a execução de peças de

vulto,crucifixosdegrandesdimensõeseesculturasdebustosparaasrelíquias47.

VimosanteriormentequenasobrasdaCapeladeSantoAntónio,no iníciodo

séculoXVIIIomestreLuísCarpinteiro,naturaldeRaia,umapequenafreguesiaperto

deMargãofoiresponsávelpelamudançadopúlpitoedodouramentodastravesdo

novotectodacapela.

Oaltar‐mordaigrejadoconventodeSãoFranciscodeGoasegueaestrutura

dosretábulosmaneiristasdametrópole,adaptando‐seperfeitamenteàcabeceira,o

47LivrodecontasdoConventodeS.Agostinho,de1612a1825.ArquivoHistóricodeGoa, fl.206e207.VertambémVítorSerrão.“PinturaedevoçãoemGoanotempodosFilipes:omosteirodeSantaMónica no “Monte Santo” (1606 ‐ 1639) e os seus artistas”. IN: Revista Oriente ‐ Lisboa ‐ nº 20,(2011),pp.11‐50.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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quesugerequetenhasidoexecutadoporalturasdaconstruçãodaigrejaem166148

(Fig. 46). Toda a decoração interior da igreja revela uma actividade intensa de

artistasindianosperceptívelnadecoraçãovegetalistacomfloresdelótusnoarcoda

entrada idênticaàdo tectodacapela‐more tambémnasmoldurasdospainéisde

pintura (Fig.47).A policromia quehojepodemosencontrar noarcoe no tecto da

entrada da igreja deixa claro que as igrejas de Goa terão, de forma original e

entregues ao regionalismo local, combinado uma talha com policromia berrante,

comacaracterísticatalhadouradaaogostoeuropeu.

AigrejadeS.FranciscodeAssisécompostaporseisaltaresnocorpodaigreja

e dois no cruzeiro, coroados pelo altar‐mor, todos eles finamente executados em

talha, sendo que alguns dos quais já não se encontram no local por terem sido

levados para outras igrejas durante a extinção das ordens religiosas, em 1834. O

retábulo‐mor segue o traço das estruturas comuns emPortugal comuma enorme

imagemdeCristocrucificadocomS.FranciscodeAssissobreumainscriçãocomos

votos da ordem franciscana (pobreza, humildade e castidade). Tanto na parte

superior,ondetambémseencontramduasfigurasdevultodesantosdaOrdemde

SãoFrancisco,comotambémnoentablamento,foramentalhadasenormesfloresde

lótussobospedestaisdasesculturas(Fig.48).Apresençadolótussobasesculturas

dapartesuperiordoretábulotemquevercomoprincípiohindudequeolótuséo

trono da divindade. O lótus flutua sobre as águas primordiais sustento da leveza

divina do Deus que não é matéria mas essência pura49. Na tradição hindu, a

representaçãodeumDeussobreaflordelótussignificaaindaodivinorenascimento

eaimortalidadecomosímbolosdapurezaedaperfeiçãoespiritual.Arepresentação

do lótus aberto simboliza também a libertação espiritual da consciência e da

matéria50.

48PedroDias.Arteindo‐portuguesa.CapítulosdaHistória.Coimbra:Almedina,2004,pp.319.49 Titus Burckhardt, et alli. Foundations ofOriental Art& Symbolism.WorldWisdom: Bloomington,2009,p.129.50Op.Cit.,p.132.

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Nocorpocentraldoretábuloencontra‐seumtabernáculooctogonalesculpido

esustentadoporquatroimagensdosquatroevangelistasqueserviuparaconservar

o cibório e o Santíssimo Sacramento. O tabernáculo era o espaço consagrado à

devoçãodoSantíssimoSacramentoedaEucaristia,numacelebraçãodosacrifícioe

Ressurreição de Cristo e da libertação de Cristo do sofrimento permanente do

UniversomundanoemdirecçãoaomundoCeleste.

Nonossoentender,otabernáculodaIgrejadeS.FranciscodeAssisedaCapela

doConventodeNossaSenhoradoCabo sãocertamente inspiradosnosRathas da

arquitectura hindu, não só pela similitude formal através de um entalhamento

excessivo das superfícies, mas também por uma paridade simbólica enquanto

receptáculo do símbolo sagrado e da verticalidade axiológica ligada ao ritual de

devoção. Os Rathas hindus, que etimologicamente significam carroça, são altares

quenoseuinteriorconservamumsímbolodadivindadeoubaixos‐relevoscomuma

ouváriasdivindadesàsquaisosdevotosdedicamassuasorações(Fig.49).Aideiade

carroça como montada celeste atribuiu alguma portabilidade e mobilidade à

estrutura,servindomuitasvezescomoaltarportátilparaasfestividadeshindus(Fig.

50).DuranteasfestividadesnotemplodeSriDalsaDevi,oRathaaindahojesaiaos

Domingos, transportandoadivindadeno interior,acompanhadaporumritual com

entoaçãodemantras,hinosepormúsicareligiosabhajan.Parece‐nosclaroque,tal

comootabernáculo,oRathatemumafunçãofundamentalnoritualdevocionalena

comunhãocomodivinoatravésdarepresentaçãodonãoseroudaessênciadivina.

Na igreja de Nossa Senhora da Divina Providência da Ordem dos Teatinos,

elevada entre 1656 e 1661 a partir de desenhos dos arquitectos italianos Carlo

FerrarinieFrancescoMariaMilazzo,encontra‐seumretábuloquedenotaamesma

relaçãoformalcomosaltareserathashindusquevimosnotabernáculodaIgrejade

S. Francisco de Assis (Fig. 51). Acresce ainda, para além de uma proximidade

cronológica entre a construção das duas igrejas, outras similitudes estilísticas na

ornamentação interior da talha, que apontam para a possibilidade de terem

partilhadoumaculturaetradiçãoartísticadeentalhadoreslocais.

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JoséPereirajáhaviasugeridoumacitaçãoformaldoretábulo‐mordaigrejade

S.Caetanoaosrathas indianos,atravésdeumaleituraqueestendeestaadaptação

das formas aos cruzeiros e frontões das igrejas jesuítas, nomeadamente do Bom

Jesus de Goaembora se reporte apenas ao delineamento dos contornos das

estruturas51.Agora,nestenossoestudo,propomosacrescentaroutrosaspectosque

nosparecempertinentesparaumentendimentodafusãodasformasesignificados

hinduscomossignificadosefigurasdedevoçãocristã.

AestruturaretabulardaigrejadeS.Caetanoécompostaportrêsníveis,numa

elevaçãopiramidalrematadacomumacoroasobreumresplendoremtalha.Onível

inferior é composto por uma plataforma de elevação, sobre a qual assenta uma

segundafiadafinamentetalhadaqueapresenta,aocentro,otabernáculoemforma

deretábulominiaturizado.Otabernáculoétambémconstituídoporumelevamento

quesustentaoconjuntodecolunashelicoidaiseumaportinholaaocentro,ondese

guarda o Santíssimo Sacramento (Fig. 52). Sobre o entablamento assenta um

segundo nível composto por colunas helicoidais, mas de escala inferior, e quatro

meninosque sustentamacúpula.Aproximidadeestilísticaentreo tabernáculoda

igrejadeS.FranciscodeAssiseda igrejadaS.Caetanopermitepensarqueexistia

em Goa uma oficina ou um conjunto de oficinas que de uma forma transversal

correspondiam às encomendas das diversas ordens religiosas e congregações que

operavamnaregião.

OsegundoníveldoretábulodaIgrejadeS.Caetanoécompostoporumnicho

centralquerecebeumaimagemdevultodeNossaSenhoraacompanhadaporduas

figuras de joelhos. A sustentação do entablamento é garantida por colunas

helicoidais, entre as quais se representam quatro anjos, dois dos quais seguram

cartelasquedenunciamuma inspiração nobarrocoeuropeu.As colunas terminam

com numerosos capitéis em forma de vaso, dando corpo a um robusto

51JoséPereira.BaroqueGoa.ThearchitectureofPortugueseIndia.NewDelhi:Books&Books,1995,p.50.

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entablamento,sobreoqualassentaoterceironíveldoretábulo,compostoporuma

espéciedecúpulacomcortelongitudinalequerevelaoresplendorcoroado.

É interessante verificar como esta estrutura retabular corresponde

precisamente àmesma estrutura convencional de alguns dos templos hindus, nos

quaisaindahojesemantémocultoàsrespectivasdivindades.Afusãodosestilosda

arquitecturahindudravidianaenagaradeixouumalongatradiçãonaconstruçãodos

templos, sobretudo no sul da Índia. De uma forma geral, os templos hindus são

constituídos por seis partes: a shikhara, uma cúpula que representa o monte

sagrado; a garbhagriha, a câmara interior onde se conserva a divindade ou, nos

casos de devoção a Shiva, é o local onde se encontra o lingam e que está

normalmente interdito aos devotos; o hara e o harantara são uma espécie de

parapeito onde se sentam algumas figuras celestes, divindades ou veículos como

Nandi e Garuda; o prastara é o entablamento composto por vários capitéis em

formadevasoqueassentamsobreas colunas, entreasquais seabreoacessoao

garbhagriha; finalmente, toda a estrutura do templo assenta sobre o adhisthana

(Fig.53).

Os complexos da arquitectura hindu na Índia Meridional, sobretudo nas

regiõesdoAndhraPradesh,Karnataka,KeralaeTamilNadudefinem‐senumestilo

original sobre as heranças culturais e artísticas dos Pallavas (Tamil Nadu), dos

Chalukya (Karnataka) e, mais tarde, os Chola e os Nayaka que, a partir do Tamil

Nadu,estendemainfluênciadaarteedaarquitecturahinduaoSriLanka.

É claramente nesta fusão dos templos nagara e dravida e nesta evolução

estilísticaquefazpartedaculturaartísticadosentalhadoresgoesesedeoutrosque

tenhamvindodeoutrasregiões,aquealgumasdasestruturasretabularesemtalha

das igrejas cristãsvão buscar as suas influências. Seria fundamental perceber se a

verdadeiramotivação temque ver comuma abertura ao gosto e originalidade da

arquitectura hindu ou se tem que ver com um objectivo claro de criar uma

aproximaçãopropositadaentreaidentificaçãodoespaçosagradohinduecristãode

modoafacilitaraconversãodascomunidadeslocais.

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Os retábulosdas igrejasna Índia

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umadisposiçãoquelembraadascobra‐capeloqueprotegemasestátuasdeVishnu

eadosdóceisestilizadosdasnagas54(Fig.54).

Pedro Dias faz uma leitura completamente distinta, afirmando que este

modeloseaproximadascaudasdepavãocomunsemalgumasdasobrasdearteda

Índia Mogol. Acrescenta ainda que, apesar de os dosséis surgirem em outros

retábulosnaregiãodeGoa,sãoapenasosdasProvínciasdoNortequeapresentam

estascaracterísticas,sugerindoquesemanifestamsobumainfluênciaclaradaarte

Mogol55.

Apesar da forte influência islâmica da corteMogol no Golfo de Cambaia e,

naturalmente,nosportosdeDamãoeDiu,éfundamentalteremconsideraçãoqueo

estabelecimentodaCorteMogolnaPenínsulaHindustânica,associadaaumapolítica

detolerânciareligiosaeaumaperspectivaecuménicadeAkbar,resultounumaforte

afluência de artistas hindus provenientes de várias regiões da Índia. Estes artistas

hindusestabeleceramnaCorteMogol,eao redordasmais significativas cidadese

portos comerciais importantes oficinas, importantes oficinas de produção de

pintura,mobiliário,ourivesaria,esculturaearquitecturaqueprocuravacorresponder

aos gostos de todas as comunidades que aí afluíam. Daqui nasce uma simbiose

estilísticaentreastradiçõeshindus,islâmicasecristãs,semquesesintanestasobras

umaintransigêncianosesquemasderepresentação,nastécnicasdeexecuçãoouna

significação dos temas. Não obstante a invasão muçulmana em domínios

maioritariamentehindusatéao séculoXIedapresençacristãapartirdo iníciodo

século XVI, o Gujaratmanteve uma vigorosa tradição hindu com destaque para o

Movimento Bhakti, para além da região ter permanecido como a principal

concentração jaina da Índia. No Norte, o Movimento Bhakti desenvolveu‐se em

torno da devoção a Rama e Khrisna, duas das encarnações de Vishnu. É

precisamenteoMovimentoBahkti,atravésdadifusãodoHinduísmobramânicoedo

54Mário Tavares Chicó.A escultura decorativa e a talha dourada nas igrejas da Índia Portuguesa.Lisboa:SeparatadeBelasArtes,nº7,1954,p.9.55 Pedro Dias. A arte de Portugal no Mundo. A Índia. Artes Decorativas e iconográficas. Lisboa:Público,vol.11,2008,p.23.

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cultoaRamaeKhrisna,queéresponsávelporumsincretismoentreoHinduísmoeo

Islamismo56.

OresultadodestaaproximaçãoentreoHinduísmoeoIslamismotraduz‐sena

popularidadedosépicoshindus,comooRamayana,quecontaahistóriadeRama,e

doMahâbhârata,dentrodoqual seencontrao livro doBhagavadGītā,quenarra

alguns episódios da vida de Krishna. Naturalmente, o Bhagavata Purana atingiu

igualmente grande popularidade na região do Gujarat, resultando numa ampla

reprodução de iconografia relacionada com Krishna. Um dos episódios mais

populareséahistóriadeKrishnaedeKaliya,aserpentequevivenorioYamuna.De

acordocomasdiversaslendas,Krishnasurgesemprecomoosalvadoreasforçasdo

mal são representadas por Kaliya57. Ainda hoje, sobretudo na região doGujarat e

Maharashtra,aNagulaPanchamiéumadasprincipaisfestividadeshindus,durante

as quais se presta culto às sete principais Cobras‐Deusas (Ananta, Vasuki,

Padmanabha,Sesha,Kambala,Shankhapala,Dhruthrashtra,TakshakaeKaliya).

Peranteestecontextoculturaleartístico,aliadoaumamaioraberturareligiosa

dosmissionárioseuropeusnoGolfodeCambaia,de formaaasseguraro comércio

local58,assistimosaumaadaptaçãodomodeloeuropeudaconchaaummodelode

forte devoção local na tradição hindu. A nosso ver, confirma‐se portanto, ao

contráriodoquesugerePedroDias,quesetratadeumainfluênciadirectadoculto

hindu das Cobras‐Deusas com grande popularidade nas regiões do Gujarat e

Maharashtra,queserviuigualmentedefonteiconográficaparaapinturaMogol.

AindasobreosretábulosdasigrejasdoGolfodeCambaia,MónicaReis,noseu

estudosobreaarteretabulardasigrejasdeDamãoeDiu,estabeleceumarelaçãode

influência da iconografia hindu e de um tratamento estilístico das figuras que se

aproxima do estilo da pintura mogol, nomeadamente nos retábulos da ousia da

56EleanorZelliot.“TheMedievalBahktimovementinHistory”.IN:Hinduism:newessaysinthehistoryofreligions,editedbyBardwellL.Smith.Leiden:Brill,1976,p.143.57SureshChandra.EncyclopediaofHinduGodsandGoddesses.NewDelhi:Sarup&Sons,pp.165.58CharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.81.

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IgrejadeNossaSenhoradosRemédiosedaIgrejadeNossaSenhoradasAngústias.

Nesse estudo reconhece ainda uma clara miscigenação iconográfica com a

introdução de elementos fitomórficos, homens ervados e asapsaras, que assume

seremumainfluênciamogolsobreaiconografiahindu59.

NoembasamentodoretábulodeNossaSenhoradosRemédiosemDamão(Fig.

55), asmonjas são representadas sobre flores de lótus. Esta composição, a nosso

ver,segueporumladoumacaracterísticamanifestamentecomumnasestruturasde

altar hindus dedicados às principais divindades, sob as quais, numa espécie de

predelaouaoredordadivindade,serepresentamoutrasdivindadesouavaratares

sobre o lótus, denunciando a sua natureza divina (Fig. 56). Este esquema de

representação, que corresponde a uma clara necessidade narrativa das principais

cenasdavidadadivindade,éigualmenteumadasprincipaiscaracterísticasdaarte

budistaejaina,quejáhaviacriadoassuasraízesnoGujaratdesdeoséculoII.Sendo

a região do Rajastão uma área fortemente marcada pelos cultos do Jainismo,

Budismo, Hinduísmo e Islamismo pensamos que seja de considerar uma forte

influência da imaginária remanescente nos retábulos das igrejas levantadas pelos

missionárioseuropeusnosportosdeDamãoeDiu.

Diversos elementos iconográficos identificados porMónica Reis, tais comoo

monstromarinhomakaraeasapsaras,sãocomunstantonaimagináriahinducomo

budista, jaina ou até islâmica. As apsaras partem de um princípio axiológico de

ligaçãoentreaterraeouniversocelestecomumalargatradiçãonouniversohindue

recorrentemente representado nos viirakkal, uma pedra tumular de carácter

memorialecomemorativadamortehonradadeumheróiembatalha.Estasestelas

sãoparticularmentepopularessobretudonoTamilNaduedaregiãodeKarnataka,

embora também em Goa, no Museu Arqueológico, existam vários exemplares

datadosentreosséculosVIeXIV.Otemamaiscomumnosviirakkaléoheróiisolado

segurandoumespadaeumescudoouarcoeflecha,emboratambémsejacomumo

59MónicaReis. “Oretábulo indo‐portuguêsdeDamãoeDiu”. IN:Promontoria.Ano5‐nº5 (2007),pp.285ess.

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heróirepresentadoacavalo.Maisraroéotemadoheróirepresentadoemcimade

umelefante, talvez pela possível associação a Indra, e ao seu elefanteAiravata, o

elefantedoqualdescendemtodososelefantes60.NoMuseuArqueológicodoCarmo

conserva‐seumadestasestelas,quesepensatersidotrazidaporMartimAfonsode

Sousa61 e que representa a narrativa em três níveis distintos. No nível inferior, o

heróibrandeumaespadaeumescudocontraváriosinimigosqueseguemacavalo;

no nível intermédio o herói é amparado por apsaras (ninfas celestiais) e

transportado para o domínio divino; finalmente, no nível superior o herói, em

posiçãodemeditaçãoérepresentadoemdevoçãoaShiva,representadaatravésdo

lingam.

A morte heróica é um acto sacrificial. Assim, ao guerreiro é‐lhe permitido

aceder aSvarga, no topo doMonteMeru, o paraíso celestial presidido por Indra,

onde o herói irá aguardar pela próxima reencarnação, rodeado por apsaras

dançarinasepormúsicos(gandharvas).Apresençadasapsarasdeterminaoatingir

domoksha, isto é, a libertação do ciclo do renascimento e da morte. Todo este

universo simbólico, tanto ao nível exegético como imagético, é partilhado pelo

Jainismo,HinduísmoeBudismoefortementeenraizadonaregiãodoRajastãoedo

Gujarat,muitoanterioràinfluênciaislâmica.

OmakaraidentificadonaornamentaçãodoretábulodeNossaSenhoracomo

MeninonasacristiadaIgrejadeNossaSenhoradosRemédios62éomonstromarinho

e vahana (veículo) da Deusa Ganges. Ganges e Yamuna, personificações dos dois

mais importantesriosda Índia,são representadas juntassobreomonstromarinho

makara a ladear a porta principal de vários templos hindus (Fig. 57 e Fig. 58). A

60 Harihar Routray. “Hero stones of Jajpur”. IN: Orissa Historical Research Journal. Bhubaneswar:OrissaStateMuseum,Vol.XLVII,nº3,(2004)pp.78‐82.61PaolaRossi.“Baixo‐relevoHindu”.IN:Construindoamemória.AscolecçõesdoMuseuArqueológicodo Carmo, coordenação de José Morais Arnoud e Carla Varela Fernandes. Lisboa: Associação dosArqueólogosportugueses,2005,pp.546‐551.62MónicaReis. “AArteRetabulardaCompanhiadeJesusemDamão:focandooRetábulodeNossaSenhoracomoMeninonasacristiadaIgrejadeNossaSenhoradosRemédios”.IN:RevistadeHistóriadaArteeArqueologia,nº11(Jan./Jun.2008),pp.37‐54.

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presença da Deusa Ganges, de Yamuna, do makara ou de outros elementos

marítimosàentradadostemploshindus,temquevercomoprincípiouniversaldas

águaspurificadoras.Osbanhosnosrios,emparticularnoGangesenoYamuna,são

um ritual de purificação da alma, de libertação do ciclo da vida e damorte e da

entradanouniversoceleste.Natradiçãobudistaosmakarassãorepresentadosem

quatro estandartes em volta da base da stupa, como símbolo do triunfo de Buda

sobre as quatro divisões de Mara, o demónio personificado da morte e da vida

espiritual63.Poroutrolado,nostemplosjainasdoRajastãoomakaraéumsímbolo

alusivo ao ídolo Jaina Tirthankara Puspadanta, representado em nichos ou em

painéisnasparedesdostemplos(Fig.59)64.SeráimportantereferirqueTirthankara

é um ser humano que está a atingir a iluminação através do ascetismo e que se

tornou num modelo espiritual. Atendendo ainda à configuração dos Tirthankara

representados numa estela do British Museum (Fig. 60) torna‐se inevitável uma

relaçãodirectadaiconografiajainacomoretábulodeNossaSenhoracomoMenino

nasacristiada IgrejadeNossaSenhoradosRemédios,emparticularnodetalheda

representação das monjas sobre as flores de lótus. As monjas são representadas

precisamentecomomodelosdeascetismoeconsagraçãoàvidaespiritualeque,no

fimdassuasvidasterrenas,ascendemaouniversodivino.

Na igreja de Nossa Senhora das Angústias em Damão é particularmente

interessante e original o retábulo amplamente coberto por serafins, com uma

abóbada de quatro níveis circulares que envolvem uma imagem da Santíssima

Trindade.Aabóbadaérematadanasextremidadescomseisanjosmúsicosdecada

um dos lados da capela (Fig. 61). Pensamos que é também na iconografia e

arquitectura JainadoRajastãoquevamosencontraras referências formaisqueos

artistasindianosseguiriamparaoentalhamentodoretábuloedaabóbadadaigreja

deNossaSenhoradasAngústias.

63Robert Beer.ThehandbookofTibetan Buddhist symbols. Chicago: SerindiaPublications,2003,p.173.64 Sehdev Kumar.The Jain TemplesofRajasthan. NewDelhi: IndiraGandhiNational Centre for theArtsJanpath,2001,p.156.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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No museu do Art Institute of Chicago encontra‐se um altar do vigésimo‐

segundoTirthankaraJainarodeadopelosoutrosvinteetrêsTirthankaras(Fig.62).A

estruturadoaltarcompostaporumembasamento,umcorpocentralcomumnicho

deremateabobadadoondeseencontraoTirthankaraeumcoroamentotrilobado

preenchidoporváriosTirthankaras remeteparaamesmaestruturadoretábuloda

igrejadeNossaSenhoradasAngústias.Tantoonichoondeseencontraaimagemde

Nossa Senhora como a densidade de anjos que coroam o retábulo encontram

referênciasnumesquemaderepresentaçãodosTirthankara,numaclarareferência

àconsagraçãodavidaedaglorificaçãoespiritual.

Finalmente, as características formais do entalhe da abóbada da capela da

igreja de Nossa Senhora das Angústias nunca foram verdadeiramente entendidas

precisamente porque os estudos anteriores nunca focaram a relação entre a

ornamentação interior das igrejas e a decoração dos templos jainas. Segundo

pensamos,oentalhedaabóbadadacapeladaigrejadeNossaSenhoradasAngústias

é claramente inspirado nos tectos da arquitectura jaina do Rajastão. Nos templos

Jainas,aflordelótusfoiamplaedetalhadamenteentalhadanostectosdemármore

comgrandemagnificênciaesubtileza.Emtornodestasabóbadas,comolótusdemil

pétalas,centenasdefiguras,comoapsaras,yaksas,vidyadevis,dançarinosemúsicos

sãorepresentadosemmeditaçãoeacelebrarasabedoriaeaclarividênciaespiritual

queo lótusrepresenta(Fig.63)65.Opadmasila,quesurgeoriginalmenteduranteo

século VIII na região do Gujarat, está intrinsecamente relacionado com a praxis

espiritual Tântrica de que o devoto passa por vários níveis ou processos

cosmogónicosatéaovortexceleste,denominadosahsrarapadmanatradiçãohindu

e jaina. O lótus ocupa o espaço central deste vortex celeste como símbolo da

essênciadouniversoedaexistênciadetodasascoisas.

Oentalhedaabóbadadacapelada igrejadeNossaSenhoradasAngústiasé

totalmente executado com base na configuração simbólica dos templos Jainas

conjugando com a iconografia cristã, onde o lótus é substituído pela Santíssima

65Op.Cit.pp.45ess.

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Trindade,numaclaraanalogiaàverdadeiraessênciaespiritual,àqualcorrespondeà

representação simbólica do lótus. A execução técnica, estética e simbólica é

conduzida à imagem e referências culturais, artísticas e religiosas do universo

indiano, resultando, em bom rigor, numa obra de inspiração jaina à qual formam

acrescentados elementos de iconografia cristã, provavelmente, de acordo com as

orientaçõesdoencomendador.Éàluzdadefiniçãodasformasdaesculturajaina,em

particulardarepresentaçãodosTirthankaras,quesedeveentenderohieratismoe

representação frontal das imagens deNossa Senhora nos retábulos das igrejas de

Damão.

Trata‐sefundamentalmentedeumarelaçãocomitente/artista, indicativade

umagrandeaberturaepermeabilidadedaIgrejaàsrealidadesculturais,religiosase

artísticaslocais,porumlado,edeumaprobidadenotáveldoartistaàrepresentação

deumespaçosagradodeumareligiãodistintacomosesetratassedeumtemploda

suavocaçãoreligiosa.

Anossover,aocontráriodoquesetempensado,éfundamentalentenderos

processosdeconfluênciaealteridadedaartecristãnasigrejasdeDamãonãoapenas

à luz do Hinduísmo, mas num diálogo exegético remanescente de uma

transculturalidadeesimbiosedasformasesignificados intrínsecosdoCristianismo,

doHinduísmo,doBudismo,doIslamismoe,talvezacimadetudo,doJainismo.Uma

vezmaissecomprovaqueumafastamentogeográficodasededoEstadoPortuguês

daÍndiasereflectenumamaiorpermeabilidadeaosesquemasderepresentaçãodo

sagrado e de uma gramática de expressividade espiritual que combina o carácter

devocionaldoCristianismocomocaráctermeditativodasculturasasiáticas.

Atalharetabulareosremanescentespainéisembaixo‐relevoqueaolongodo

século XVII substituíramos retábulos empintura eram, namaior parte, inspirados

nosmodelosimportadosdametrópoleouemgravurasqueseguiamavulsoouque

ilustravam a diversa literatura de espiritualidade. Como vimos, a influência da

imagéticaindianaestárelegadasobretudoaoníveldasestruturasretabularesoudos

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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elementosdecorativosaoníveldosfrisos,colunasoudospreenchimentosfloraise

vegetalistas. As cenas principais em baixo‐relevo, embora denunciando um

tratamento demarcadamente local e a inclusão de flora característica da Índia,

mantêm‐sefiéisaosmodeloseuropeus,talcomopoderemosatestarnoretábuloda

SéCatedraldeGoa,parcialmenteexecutadoà imagemdo retábulo congénereem

pintura,atribuídoaGarciaFernandes.

Contudo,épossíveltambémquenascomposiçõesdosdiversostemascristãos

tenha existido uma deliberada aproximação formal na composição das cenas aos

modelos e narrativas sagradas hindus. Por outro lado, também os mestres de

imaginária indiana poderão ter lavrado imagens de temas cristãos com base em

composiçõesdaiconografiahinduoubudista.

O painel em madeira da colecção da Fundação Medeiros e Almeida com a

representaçãodaSagradaFamília (Fig.64) segueosmodelosdosaltaresportáteis

com as narrativas da vida de Buda ou, por outro lado, como sugere Teotónio de

Souza, nos viirakkal, dos quais subsistem ainda vários exemplos no Museu

ArqueológicoemGoaVelha66.Contudo,parece‐nosqueacomposiçãofrontalnum

primeiro plano e de uma sequência narrativa em segundo plano, com a

representação da fuga para o Egipto, se aproxime particularmente dos altares

portáteiscomasnarrativasdavidadeBuda.Estesaltaresportáteisterãosurgidona

regiãodeGandhara,noscentrosbudistasdeMathuraeSarnath,compostosalgumas

vezes em dípticos o que demonstra que derivam dos protótipos europeus dos

retábulos portáteis emmadeira e marfim populares em Roma e que voltariam a

encontrareconaEuropamedieval67.Apardestesaltaresportáteis,particularmente

comuns durante os primeiros séculos da nossa Era, no trânsito da Rota da Seda,

chegaramaténósbaixos‐relevoscomarepresentaçãodecenasdavidadeBudaque

se apresentam algumas similitudes formais com os baixos‐relevos com temas

66 Teotónio R. Souza. “A arte cristã de Goa: uma introdução histórica para a dialéctica da suaevolução.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),p.12.67MartinLernerandStevenKossak.The lotustranscendent. IndianandsoutheastasianartfromtheSamuelEilenbergcollection.NewYork:MetropolitanMuseumofArt,1991,p.109.

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cristãos. Estes baixos‐relevos constituíam elementos fundamentais de estruturas

arquitectónicasdetemplosbudistas,nosquaisestáimplícitaumafortecomponente

didáctica equiparável às dasmissões cristãs naÁsia. Será importante lembrar que

também o Budismo atravessou durante os primeiros séculos da nossa Era um

períododediásporareligiosa,difundindo‐seatravésdaRotadaSedaportodaaÁsia.

UmoutroexemploéoTrânsitodeS.FranciscoXavierprovenientedoConvento

doBomJesusdaRibeiraequeseencontrahojenoMuseudeArteSacradoFunchal

(Fig.65).CristinaOsswaldassociaeste tipode iconografiadeS. FranciscoXavierà

literatura, nomeadamente a um paralelismo com os Sermões do padre António

Vieira68. O tema iconográfico surge na Índia, nomeadamente emGoa, sustentado

numaprofundadevoção localaS.FranciscoXavier,estendendo‐senãosóaoutras

regiõesdaÁsia, comoaChina,mas tambémparaaEuropa,onde se conheceuma

gravuraflamengadeBouttatsdatadade166269.

Contudo,anossover,estapeçaparece‐nosseguiromodeloderepresentação

doDescansodeVishnu,umdosfundamentaismomentosdacosmogoniahindu(Fig.

66). A cada fim de ciclo de uma grande temporada, depois da destruição do

Universo,oOceanoCósmicoretomaoseulugar.VishnudescansasobreesteOceano

aguardando pelo momento em que irá recriar o Universo. Vishnu é suavemente

despertadoporLakshmiacompanhada,porvezes,porapsaras,serescelestiaisque

transportamospurosatéaoCéu.FranciscoXavierérepresentadoreclinadocomos

olhosabertos,sugerindooseudespertarcelesteapósumgrandeciclodedevoçãoe

consagração à obra divina, em particular durante as missões na Ásia. A sua vida

exemplar,enquantoApóstolodasÍndias,confere‐lheumlugarnoUniversoCeleste.

Nesta peça, Sheshnag, a cobra de sete cabeças que protege Vishnu, é

68 Cristina Osswald refere‐se ao sermão Xavier Dormindo, Xavier Acordado. Cf. Cristina Osswald.“Cultos y iconografias jesuíticas enGoa durante los siglos XVI y XVII: El culto y iconografia de SanFrancisco Javier”. IN: Catálogo da exposição San Francisco en las artes; el poder de la imagen.Pamplona:GobiernodeNavarra,2006,248e250.69 Cristina Osswald. “S. Francisco Xavier no Oriente: aspectos de devoção e iconografia”. IN: SãoFranciscoXavier:nos500anosdonascimentodeSãoFranciscoXavier:daEuropaparaomundo1506‐2006.Porto:CentroInteruniversitáriodeHistóriadaEspiritualidade,2007,pp.119‐142.

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deliberadamentesubstituídaporsetefolhasdepalmeiraqueprotegemigualmenteo

santocristãoeque,simbolicamente,oidentificamosacrifíciodasuavidadedicadaà

evangelização.Lakshmi,aconsortedeVishnu,easapsarassãotambémsubstituídas

pelosanjosaospésdeFranciscoXavierequeoelevarãoatéaoCéu.

EmboradopontodevistasimbólicoehagiográficoafiguradeFranciscoXavier

em nada se aproxime da figura de Vishnu, ambos os temas, para além de uma

incontornávelsimilitudeformal,partilhamumsignificado intrínsecoalusivoaociclo

regenerativodavidaatravésdapurificaçãodeumaexistênciamundana.Enquanto

queFranciscoXavier,apósumavidaconsagradaàdevoçãoespiritual, renascepara

uma libertação espiritual através da suamorte, Vishnu, por outro lado, recriará o

Mundo a partir das águas purificadoras da existência primordial. Francisco Xavier

tornou‐se namais exemplar figura da cristandade indiana, alvo de uma fervorosa

devoção local, nomeadamente entre os indianos convertidos, resultando numa

profusa iconografia e justificando uma equiparação a uma das mais importantes

divindadeshindus.

NoMuseudeSãoJoãodeAlporão,emSantarém,conservam‐seduaspredelas

de um retábulo provenientes de uma igreja de Chaúl, com uma imagemde Santa

MariaMadalenaeaoutra,comaimagemdeSantoAleixo(Fig.67eFig.68).Santa

MariaMadalenaestárepresentadadeitadaemmeditação,comamãoesquerdasob

orosto,acabeçaassentesobrepedraseamãodireitaasegurarumlivroaberto.O

entalhe que emoldura a cena sugere uma gruta que serve de abrigo à Santa

enquantomedita,olhandosobreocrucifixo.Naparteinferior,estárepresentadoo

chicotedoseumartírioe,juntoaocrucifixo,umacobra,alusivaàPaixãodeCristo.A

lendadeSantaMariaMadalenarefereque,noperíodoseguinteàmortedeCristo,a

Santaserecolheunoermo,no interiordeumagrutadurantemaisdetrintaanosa

meditar sobre a morte redentora de Cristo. Passado esse tempo, o seu corpo,

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purificado e liberto das vestes que se debelaram com o tempo, ia sendo coberto

pelosseuslongoscabelos70.

Este tema, apesar de ser igualmente comum na Europa, é extremamente

popularentrea iconografia cristãproduzidana Índia, comparticularevidêncianas

peanhasdasesculturasemmarfimdoBomPastor,alusivoigualmenteaumcarácter

meditativoda imagemassociadaao sonobúdico71. Estemodeloencontra na Índia

uma ressonância formal nos modelos da meditação de Buda que antecedem a

iluminação. Trata‐se, efectivamente, de uma equiparação formal e conceptual da

representaçãodapurificação,libertaçãoterrenaeascensãoespiritual.

Pensamosqueestesexemplosdaesculturaembaixo‐relevopermitemconcluir

que é se trata de um reconhecimento entre o carácter contemplativo da religião

CristãeocaráctermeditativodoHinduísmoedoBudismoqueservedesustentação

aumdiálogodasformasedossignificados,deixandoaindaadescobertoumaligação

estreitadeprincípiosuniversaiseprimordiais.

Ainda dentro do contexto da talha na Índia Portuguesa e da ornamentação

interior das igrejas, devem ser considerados os oratórios que combinam os mais

diversos materiais entre o ébano, com embrechados em marfim, ou a teca

policromada e dourada, à semelhança dos muitos retábulos em talha das igrejas

indianas.Adiversidademorfológicadosoratóriosquechegaramaténóspermite‐nos

ter um vislumbre da riqueza estilística e técnica para a execução de variadíssimas

combinações, numa liberdade relativamente acentuada. Estes objectos estariam

dispostosnosváriosaltareslateraisdascapelasconsagradasàsmesmasfiguras,mas

fariamtambémpartedeumprincípiodedevoçãopessoalconfinadoaosaposentos

privados.

70 FernandoAntónio Baptista Pereira. “Frontal de Altar”. IN:Os construtores doOriente Português,comissariadoporJorgeManuelFlores.Porto:CNCDP,1998,312‐313.71Vercapítuloseguinte.

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Poroutro lado,épossívelentenderaprolixaproduçãodeoratóriosà luzdos

rituais indianos e da devoção de um vasto panteão de deuses e deusas nas suas

diversasmanifestações.Aindahoje,naregiãodeGoa,épossívelencontrarmos,nas

bermas das estradas, oratórios consagradados àsmais diversas divindades hindus,

nosquaissãodeixadascoroasdeflores,óleoseoutrasimagens(Fig.69).

NoMuseudeÉvoraencontra‐seumdosmaisinteressantesoratóriosemteca

entalhada, policromada e dourada sobre um fundo vermelho, encerrando no seu

interior uma imagem de Nossa Senhora com o Menino esculpidos em marfim e

madeira(Fig.70).Comestruturapoligonal,sustentadaporcolunascomnagas,abre‐

se com duas portas com três volantes cada, onde se representam, em três filas,

figurascoroadassobrefloresdelótus.DeacordocomBernardoFerrãodeTavarese

Távora, trata‐se de uma representação dos “Reis de Judá”, numa alusão aos

antepassados de Nossa Senhora. A imagem de Nossa Senhora com o Menino

evidenciaumaclaraexecuçãolocaltantoaoníveldosmateriais,sendoesculpidaem

madeira e aplicações emmarfimpara as carnações, como ao nível da iconografia,

comumapeanhaemformadeflordelótuseascolunascomnagas.

NoMuseu Nacional de Arte Antiga encontra‐se outro oratório de estrutura

semelhante, embora de dimensões mais reduzidas e de ornamentação mais

modesta,paraalémdenãoseterconservadoaesculturadevulto(Fig.71).Dadaa

vastidão de esculturas avulsas de pequenas dimensões de Nossa Senhora da

Conceição,daVirgemcomoMeninoouatémesmodeCristo,épossíveldeduzirque

poderãoterpertencidoaoratórioscujasestruturasnãochegaramaosnossosdias.

Do ponto de vista formal, estes oratórios apresentam características únicas

distinguindo‐se não só dos modelos europeus, como também dos exemplares

remanescentes das missões no Japão e em Macau. Tomando como exemplo os

oratóriosou“maquinetasde sacristia” quepertencemà IgrejaParoquialdeNossa

Senhora das Neves, Rachol, Teotónio de Souza defende uma semelhança muito

próximacomospalkioupalanquinsutilizadosparaotransportedasdivindadesnas

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cerimóniashindus72.Nanossaopinião,omodeloestruturaldosoratóriosproduzidos

naÍndiadeveráserentendidoapartirdeummodeloresgatadodaarquitecturados

temploshindusdravidianos,nomeadamentenospanjara,edículasqueseencontram

nasparedesdessestemplosnoSuldaÍndia73.Panjarasignifica,literalmente,gaiola,

no contexto de uma gaiola de pássaro, servindo como uma edícula na qual é

colocadaadivindade74.Naarquitecturahindudravidiana,opanjaraé,normalmente,

coroadoporumarcoemferradura, transformando‐semuitasvezesnumaabóbada

ou numa falsa cúpula sustentada por colunas, entre as quais era colocada a

divindade(Fig.72).

É interessante notar que esta adaptação e miniaturização das formas

arquitectónicas dos templos hindus, do templo dentro do templo, corresponde ao

mesmoprincípioquevemosemalgumasigrejas,nomeadamentenaSéCatedralde

Goa,ondealgumasdascapelas,comosseusoratórios,sãoautenticasigrejasdentro

daigreja.Esteprincípio,partilhadonãosópeloCristianismoepeloHinduísmo,mas

tambémporoutrasreligiões,nascedoreflexodeumaespiritualidadequeespelhaa

necessidadepermanentedecomunhãocomosagrado,comumafortecomponente

ritualeumadevoçãoqueseestendeaumvastolequedefiguras.

Contudo, o inédito oratório pertencente à Colecção João e Graça Lencastre

permite‐nos alargar a perspectiva em torno do entendimento e relação da

Cristandade indiana sobre estes objectos de devoção e contemplação.O oratório,

que segue os mesmos modelos formais dos exemplares de Évora e do MNAA, é

octogonal e constituído por um embasamento, a partir do qual se elevam seis

colunas,coroadasporumaabóbada(Fig.73).Todaaestrutura, incluindoasportas

com dois volantes, é profusamente entalhada e dourada com elementos

vegetalistas.Nointerior,portrásdafiguradeCristocrucificadoemmarfimassente

72 Teotónio R. Souza. “A arte cristã de Goa: uma introdução histórica para a dialéctica da suaevolução.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),p.12.73VidyaDehejia.IndianArt.London:Phaidon,2000,p.146‐147.74 Adam Hardy. Indian Temple Architecture: Form and Transformation. New Delhi: AbhinavPublications,1995,pp.42.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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numacruzdeébano,ooratóriotemumrelevodaÁrvoredoConhecimento,ladeada

porAdãoeEvaquerecolhemofrutodopecado.AcenaéadaTentaçãodeEvaea

queda do Homem, onde a serpente, que se enrola à Árvore, seduz Eva para que

coma o fruto proibido, resultando na queda do Homem. Na frente da cena,

encontra‐se a imagem de Cristo crucificado como símbolo do seu sacrifício pela

Humanidade,representandoainda,emconjuntocomacenaveterotestamentária,o

PrincípioeoFimdetodasascoisas.TalcomoédescritonoLivrodaRevelação,Cristo

éo“AlfaeoÓmega,oPrincípioeoFim,oPrimeiroeoDerradeiro”75.

No embasamento do oratório encontra‐se uma pequena gaveta com a

representaçãodopurnaghata,osímbolobudistadaAbundânciaeprosperidadeda

vidaplena.ÉoreceptáculodoTodoedorenascimentoparaumanovavida.Anosso

ver,trata‐seclaramentedeumaadopçãodeumsímbolobudistaedoRenascimento

do Iluminado, para a representação de Cristo crucificado e Ressuscitado para a

EternidadeCelestial,paraoseuretornojuntodeDeusPai.

No universo iconográfico budista poderemos encontrar a representação do

PurnaghatanostemplosbudistasescavadosnasGrutasdeEllora,entreosséculosV

e VIII, emparticular nos capitéis das colunas, resultando numa espécie de voluta,

estandoigualmenteassociadaaumaideiadeelevação.

Poderemos encontrar outras configurações do purnaghata num dos mais

importantestemplosbudistasnoSudesteIndiano,nacidadedeAmaravati,pertode

Chennai(Madras).OStupadeAmaravati,construídoentreoséculoIIANEeoséculo

IIIdanossaErapeloImperadorAshoka,écompostoporumaabóbadaeporquatro

plataformasqueseestendempelosquatroquadrantes.Aabóbadaéextensivamente

lavrada com baixo‐relevo ilustrando a vida de Buda, encontrados por Sir Walter

Elliot,RobertSewell, JamesBurgessandAlexanderRea,arqueólogoseuropeusque

desenvolveram escavações no local durante o século XIX. Entre os vários relevos

encontra‐se no BritishMuseum uma réplica do Stupa de Amaravati, coetânea do

75Apocalipse,22‐13.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

174

própriotemplo.Naoutraface,estárepresentadaaIluminaçãodeBuda,numaclara

alusão à sacralidade do templo. Outros relevos provenientes de Amaravati

demonstram que a importância do Stupa faz parte do programa iconográfico do

próprio templo, notável através de um relevo que representa a devoção de um

relicáriodeBuda.

Aornamentaçãodecadaumdoscincopilares,emcadaumdosquadrantesde

acessoaoStupa,comosdiferentessímbolosdeBuda,entreosquaisopurnaghata,

demonstramqueoprogramaiconográficotemoclaroobjectivodefundirafigurade

Budacomoseurelicário,procurandotraduziradevoçãodotemplonadevoçãodo

próprio Iluminado.Ou seja, tal comooPurnaghata é o receptáculo do Todo e da

Essênciadetodasascoisas,tambémoTemploéoÚteroaoqualretornaoIluminado

paraRenascernumanovaExistência(Fig.74).

NestesentidopoderemosconcluirqueesteoratóriodaColecçãoJoãoeGraça

Lencastre,éentendido no seu tempoeà luz douniverso simbólico indiano, como

uma analogia dos Stupa budistas, nos quais Buda é representado simbolicamente

comooSalvadordoMundo,oIluminadoeaverdadeiraEssênciadetodasascoisas.

ÉoAlphaeoÓmega.Ousodosímbolotornaaindamais intensaasacralizaçãodo

espaço de devoção, criando uma tensão espiritual entre o relicário e o devoto e

tornandoaindamaisautênticaacomunhãocomosHomens.

Consideramos ainda importante referir que esta peça demonstra um

entendimentoereconhecimentodeprincípiosuniversaisaoníveldasarquétiposdo

imaginário e das configurações do sagrado através dos símbolos da serpente e da

árvoredoconhecimento,comunsnãosóaoCristianismo,comoaoHinduísmoeao

Budismo,comotambém,emoutrostempos,aoutrosespaçoscivilizacionais.

Estesmitos e a confluência dos seus significados reflectem‐se, sobretudo ao

nível dos nagas e nagini, amplamente representados nos contadores indo‐

portugueses.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Ao nível do mobiliário, os contadores subsistem hoje como uma marca

determinante de um legado artístico que combina a dimensão funcional com a

função ornamental do objecto. Executado, na sua maioria, em teca, ébano, pau‐

santoepau‐rosa,omobiliário indo‐portuguêssegueosmodelosformaiseuropeus,

verificando‐se diferenças em alguns aspectos no processo de construção76. Estes

materiais conjugam‐se, entre si, num jogo de tonalidades, combinando‐se nas

decoraçõesemmarfimemadrepérolacomferragensemlatãoecobre77.

DeacordocomumdocumentoencontradoporMariaHelenaMendesPinto,os

escritóriosdemarfimepau‐pretodemelhorqualidadeedurabilidadeeram feitos

em Taná, numa ilha a Norte de Baçaim78. Outras fontes indicam Cambaia e Surat

comooutros centros de produção, equiparáveis até comasmais distintas cidades

comoFlorençaouMilão79.CambaiaeSurat,naturalmente,fazempartedosgrandes

centros de produção que serviam a Corte Mogol e dos quais existem belos

exemplares noMNAA, em Lisboa, e no Vitoria & Albert, em Londres80. Por outro

lado, existe também opinião de quemuitas das peças teriam sido produzidas por

artistas indianos em Portugal, o que facilitaria o transporte e baixaria os custos

associadosàimportaçãodestemobiliário81.

76 Maria Helena Mendes Pinto. Os descobrimentos e a Europa do Renascimento. XVII ExposiçãoeuropeiadeArte,CiênciaeCultura.Lisboa:PresidênciadoConselhodeMinistros/CNCDP,JerónimosII, “Cumpriu‐se omar”.Aarteeamissionaçãona rotadoOriente, 1983,p.179. Dopontodevistaformalos contadoresseguemosprotótiposdosescritóriosecontadoresenviadosdaEuropaparaoOriente.Cf.FranciscoHipólitoRaposo.“Oencantodoscontadores indo‐portugueses”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20(Set./Dez.1994),p.16.77MariaMadalenadeCagigalSilva,Aarteindo‐portuguesa.Lisboa:EdiçõesExcelsior,1966,p.16.78MariaHelenaMendes Pinto. “A Arte da Rota doOriente”. IN:Os descobrimentos e a Europa doRenascimento.XVIIExposiçãoeuropeiadeArte,CiênciaeCultura.Lisboa:PresidênciadoConselhodeMinistros/CNCDP,JerónimosII,“Cumpriu‐seomar”.AarteeamissionaçãonarotadoOriente,1983,p.71‐72.79PedroDias.Ocontadordascenasfamiliares.Coimbra,2002,p.35.80SobreoscentrosdeproduçãonoGujaratveja‐seJoséJordãoFelgueiras.“UmafamíliadeobjectospreciososdoGuzarate”. IN:AHerançadeRauluchantim, coordenaçãocientíficadeNunoVassalloeSilva.Lisboa:MuseudeS.Roque/CNCDP,1996,pp.128‐153.81FranciscoHipólitoRaposo.“Oencantodoscontadoresindo‐portugueses”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19/20 (Set. / Dez. 1994), p. 16. Esta tese foi inicialmente levantada por Joaquim Vasconcelos eMarquesGomesduranteaexposiçãodeAveiroondesereferemaosobjectosproduzidosemLisboa

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Uma parte significativa do mobiliário produzido na Índia ou por artistas

indianos destinava‐se, sobretudo, à exportação para o Reino e daqui para as

restantescorteseuropeias,umpoucoàsemelhançadetodasascoisasexóticasque

faziamasdelíciasdasdecoraçõesdepaláciosedosfamososkunstkammern.Daíque,

comasdevidasexcepções,omobiliárioque seencontraemGoanão sejade todo

semelhanteaosexemplaresqueseencontramnosmuseusdeLisboa.

Sendoconsideradocomoumprodutodemobiliárioexótico,aimagináriahindu

preencheosespaçosvaziosousubstituiaornamentaçãodaspernasdoscontadores,

nos braços e cachaços das cadeiras, um lugar apropriado ao entalhe de uma

imagética que correspondia ao desejo europeu dasnotícias dogentilismodaÁsia,

associadasàgénesedeumaantropologiacultural.

É neste contexto que a imaginária hindu encontra nomobiliário um espaço

próprioondenãosónãosefundecomaiconografiacristã,comotambémocupao

seulugarjustificadoporumasimilitudesimbólicaeformal.

Nas largas dezenas de contadores, mesas e cadeiras foram já identificados

vários elementos decorativos e figuras mitológicas da imaginária hindu, entre os

quaisGaruda,NagaseNagini,Matsya,Kinaras eJatayus,paraalémdatradicional

flordelótusabertaouembotãoedopurnaghata,ovasodaabundânciadatradição

hinduebudista.

Os contadores produzidos na Índia, sobretudo durante o século XVII,

constituemumdosmaissignificativosreflexosdointercâmbioeconómico,religioso,

artístico e até mesmo antropológico, resultante dos contactos entre a cultura

europeiaeoimagináriodasculturasasiáticas.

O saque durante as campanhas militares e o comércio das especiarias e de

outrosprodutosexóticos,tornarampossívelaumavastidãodepessoasumestatuto

político, privilégios e um enriquecimento desmesurado. Em outro contexto, na

por artistas indianos. Cf.Marques Gomes e Joaquim Vasconcelos.Exposição distrital de Aveiro em1882‐RelíquiasdaArteNacional.Aveiro:GrémioModerno,1883.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Europa,asnarrativassobreasmaravilhasdaÁsiadespertaramosentidoparauma

diversidade de produtos de elevada qualidade e raridade, em detrimento do

interessepelascuriosidadesafricanas,queseencontravamemfortedeclíniodesdea

aberturaaNovosMundoscomooBrasileaÁsia.Destaforma,luxuososcontadores

numavibrantecombinaçãocromática comovermelhoda tecaa servirde fundoa

marchetados,aopretodoébanoouaobrancodomarfim.Acorrespondênciaaesta

expectativaemaravilhadoexóticoévisívelnassurpreendentes falsasgavetasque

caracterizamestetipodemobiliário.Éfrequentequeoscontadoresaparentemter

umnúmeromaiordegavetasàquelequenarealidadetem,combinandoocarácter

utilitário,asimetriaestéticaeumdeslumbramentoatravésdasurpresa.

Ostamposdasmesasouostoposdasportasegavetasostentamossímbolos

das Ordens Religiosas ou as armas e brasões de família. Em 1998, no Porto, a

exposiçãoOsConstrutoresdoOrientePortuguêsexpôsumamesa,de tipo“banca”

comas armas dos Silveiras (Fig. 75). Tal como amaior parte dasmesas de banca

produzidasna ÍndiaPortuguesa,estamesaapresentapernasdireitas, compésem

formadeJatayus,filhodeGaruda,oveículodeVishnu82.Esteelementoiconográfico

évisívelaindaemalgunscontadores,umdosquaispertenceaoMuseuNacionalde

Arte Antiga (Fig. 76), apresentando uma configuração atípica, com pernas altas a

sustentar um conjunto de nove pequenas gavetas.Umoutro exemplar, doMuseu

NacionaldeMachadodeCastro,éconstituídoportrêsníveisassentesemquatropés

emformadeJatayusecomazonafrontaldecoradacommarchetadosdeébanoem

formadelótuseoutroselementosflorais(Fig.77).

NoMuseuNacionaldeArteAntiga,encontra‐seumcontadorconstituídopor

caixa, trempe e uma base com dois gavetões (Fig. 78). Toda a estrutura,

profusamente decorada commotivos vegetalistas e animalistas, é sustentada por

quatropernasentalhadascomafiguradeGaruda,claramenteadaptadoaoespaço

onde foi inserido, perdendo, por isso, algumas das características iconográficas, 82Cf.SureshChandra.EncyclopediaofHinduGodsandGoddesses.NewDelhi:Sarup&Sons,p.101.,W.J.Wilkins.HinduMythology,VedicandPuranic.ElibronClassics,s.d.Ediçãofac‐similedaediçãode1882emCalcutta:Thacker,Spink&Co.,p.379.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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nomeadamenteasuaformahíbridadeasas,cabeçadepássaroecorpodehomem

ou com corpo de pássaro e cabeça de homem (Fig. 79). De ummodo geral, estas

peçasrevelamumareformulaçãoformalnecessáriaaumaharmonizaçãodoespaço

ornamentaledasimetriadoconjunto,perdendo,dealgummodo,oseusignificado

simbólico e narrativo a que estão associadas na iconografia hindu, num claro

processodereversibilidadeparaaabstracção.Queristodizerquesepartedeuma

formulaçãofigurativaparaumaquaseabstracçãoornamental,nosentidocontrárioà

figuração a partir das formas abstractas, por umanecessidade de entendimento e

reconhecimento das formas a partir das referências ao mundo real. Este facto é

ainda mais notável ao nível da representação da figura de Jayatus, tanto na

ornamentaçãodospésdediferentesmóveis,quernosmarchetadosemébanoque

vemosnamesadebancadacolecçãoGuilhermeRiccaGonçalves(Fig.80).

Ainda assim, persiste um princípio de sustentação, elevação e veículo

associado à representação de Garuda e Jatayus e à sua condição isomórfica no

contexto de uma função axiológica equiparada aos anjos do imaginário cristão.

Particularmente interessante é o contador, pertencente à colecção Pádua Ramos,

composto por caixa emesa, que apresenta quatro pelicanos a sustentar omóvel,

sendo impossível não nos lembrarmos do relicário do antigo Convento de Santa

Mónica,quehojeseencontranoMuseudeArteCristãemGoaVelha(Fig.81).

Poderemospensarque seriaesta condiçãopteropsicológica,partilhadaentre

as aves do imaginário indiano e os anjos da tradição europeia, que serviram

igualmente de sustentação e elevação de SantosMártires e de outras figuras do

Cristianismo, a fonte formal e simbólica para uma característica tão própria do

mobiliário indo‐português.Mais, poderemos ainda concluir que a condição feérica

dasavesestánabasedeumarepresentaçãodeumgostopeloexótico,nosentido

deuma imagemmitográfica criadapelo imaginárioeuropeuemrelaçãoaosNovos

Mundos,nãosódaÁsia,mastambémdaÁfricae,sobretudo,doBrasil.Aexposição

Encompassing the Globe transporta essa imagem para o catálogo da edição de

Washington,apartirdomagníficoexemplarpertencenteàcolecçãoetnográficado

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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The National Museum of Denmark. A Adoração dos Magos atribuída a Vasco

Fernandes ou o papagaio oferecido a Albrecht Dürer pelo feitor Português Ruy

Fernandes de Almada e Damião de Goes, secretário da Feitoria de Antuérpia em

1523,sãoclarosexemplosondeapenarepresentaestegostopelasmaravilhasdos

NovosMundos.

Contudo,aspresençadenagasenagininaornamentaçãodemobiliárioindo‐

português,emparticulardoscontadores(Fig.82,Fig.83,Fig.84,Fig.85eFig.86),

permite‐nosirmaislonge,nãosóporsetratardeumarepresentaçãoornitológicae

deumsímboloformalmenteascensionalpelapropriedadedaasa,masporsetratar

de uma representação antitética em relação a Garuda e Jayatus83. Na estrutura

imaginária hindu,Garuda é o devorador, o arqui‐inimigo dasNagas84.O nomede

Garudaderivadaraizgr,quesignificaengolir,representandooseupodermísticode

destruidor de serpentes e protegendoos seus devotos dos efeitos do veneno85. É

efectivamentecomumaimagemdeGaruda,notopodeumpilar,queÁlvaroVelho

confundecomumGaloquando,comVascodaGamaeoutrosportugueses,visitou

umtemplohindu.AcolocaçãodeGarudanoaltopretendetornarasuafiguravisível

alongasdistâncias,mantendoasserpenteslongedoseuraiodevisão.

Osnagasenaginicorrespondem,àprimeiravista,aumanecessidadeformale

espacial para a ornamentação das pernas de algumas peças demobiliário, onde o

carácter esguio e longitudinal serve perfeitamente nas pernas de contadores.

Contudo, a presença em outras estruturas em talha, como nos púlpitos, é

perfeitamentenotávela sua funçãoaxiológicaeascensional (Fig.87, Fig.88eFig.

89). Trata‐se de uma sustentação e elevação do pregador que usa o púlpito para

difundiroevangelho,detalformaqueosartistasIndianosqueexecutaramopúlpito

daigrejadeS.Caetanosubstituíramastradicionaisnagasounaginipelotetramorfo,

83 Sobre a representação ornitológica como símbolo ascensional ver Durand,Gilbert.As estruturasantropológicasdoimaginário.SãoPaulo:MartinsFontes,2002,pp.125‐146.84SureshChandra.EncyclopediaofHinduGodsandGoddesses.NewDelhi:Sarup&Sons,p.99‐101.85HeinrichZimmer.Mitosesímbolosnaartee civilização indianas. Lisboa:AssírioeAlvim,1997,p.85.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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colocandonasextremidadesfrontaisoanjoeaáguia(Fig.90).Opúlpitodaigrejade

S.Caetano tornaevidentea correlaçãodeum imperativopteropsicológicoa partir

doqualaavesagradaeosanjosconstituemumaxismundinoeixoentreouniverso

mundanoeaelevaçãoespiritual.Tornaaindaevidenteumaequiparaçãosimbólica

comasnagas enagini, representadas sob uma formahíbrida,metade homemou

mulhercomumacaudacobertadeescamas.

É fundamental considerarmos e entendermos a colocação tetramorfo nas

quatroextremidades,tantodopúlpitocomodotabernáculodaIgrejadeS.Caetano,

àluzdosquatroprincipaisveículosdasprincipaisdivindadesdareligiãohindu,onde

é possível entender uma correspondência directa entreNandi, o veículo de Shiva,

Garuda, o veículo de Vishnu, Hamsa, o veículo de Brahma e o Leão, o veículo de

Parvati e Durga. Estes correspondem directamente ao Tetramorfo conforme

designado por Ezequiel, quando se refere ao antropomorfismo dos quatro

evangelistas,ondeLucaséoTouro,MateuséoAnjo, JoãoéaÁguiaeMarcoséo

Leão. É evidente a correspondência formal entreNandi e o Touro e entre o Leão.

EmboraHamsaseja,normalmenteeemrigor,umgansoouumcisne,poderáaqui

corresponder ao princípio da representação da Ave divina, se bem que não

poderemos esquecer que a Águia é também o veículo de Ketu, uma espécie de

divindadecósmicaquerepresentaomistériodoSoledaLua86.Finalmente,apartir

do período Gupta, entre os séculos IV e VI, Garuda assumiu uma forma muito

semelhante à de um anjo, surgindo frequentemente na iconografia com forma

humanaeajoelhadodeasasabertas(Fig.91).

Asnagasenaginisãoumarepresentaçãoantropomórficadaserpentecósmica

que encontra, namitografia hindu e budista, um espaço vital na correspondência

simbólicaentreoBemeoMal.Aserpentecósmica,talcomomuitasdasprincipais

divindadesnoimaginárioIndiano,representaumadualidadeentreastrevas,omal,

a destruição e a protecção, a elevação servindo inclusivamente de guardiãs dos

86SureshChandra.EncyclopediaofHinduGodsandGoddesses.NewDelhi:Sarup&Sons,p.332.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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templos e dos espaços sagrados87. Na colecção do Forte de S. Julião da Barra

encontra‐seumavigadeumtemploqueeventualmenteteráservidodelintelsobre

aportaprincipaldeacesso,naqualestãoentalhadas,paraalémdasfloresdelótus,

duas nagas nas extremidades como guardiãs da energia vital que brota do lótus

radianteaocentro88(Fig.92).

Comovimos,no relevodoDescançodeVishnu, emDeogarh,Vishnudormita

sobreosanéisdeSheshnag,aserpentecósmicaqueemergedaságuasprimordiais

com o seu poder vivificador, para servir de veículo de Vishnu durante o

restabelecimento da ordem do Cosmos. Nesse instante, do umbigo de Vishnu

desabrocha um lótus sobre o qual emergirá Brahma, o demiurgo criador do

Universo. Vishnu representa exactamente oAbsoluto de todas as coisas, reunindo

em si todas as dualidades domundo, incluindo a dicotomia simbólica da serpente

cósmica.Note‐sequeosveículosdeVishnusãoprecisamenteGarudaeaSerpente

Cósmica Sheshnag. Vemos, desta forma, que a serpente cósmica, anaga sagrada,

cumpretambémfunçõesdeveículoeelevaçãodograndeDeus,talcomoGarudae

NandiemrelaçãoaVishnueShiva,respectivamente.

Relativamente à representação dasnagas nos púlpitos das igrejas da Índia é

possível encontrarmos uma contextualização que vai além desta ideia de veículo,

elevação de sustentação. No Budismo não há um antagonismo entre o Buda e o

naga, verificando‐se,pelo contrário,uma relaçãode concordânciae reverência da

serpente perante a sabedoria e conhecimento do Absoluto que Buda representa.

Buda sentou‐se durante sete dias junto aoBodhi, a Árvore do Conhecimento, nas

margens do rio Nairañjana, meditando sobre a compreensão da existência e da

87Op.cit,p.73.88 Rui Oliveira Lopes. “Viga hindu”. IN:A presença portuguesa na Ásia, coordenação de FernandoAntónio Baptista Pereira, Lisboa: FundaçãoMuseu do Oriente, 2008, pp. 34 ‐35. Na igreja deMarThomaemKottarakaraencontramos, insitu,vigasemtecaemtodaavoltada igrejasobreasquaisassentaotelhadodeduaságuas.Estasvigas,certamente inspiradasemarquétiposhindus idênticosaos que se conservam no Museu do Oriente, substituem os nagas por uma Anunciação e umaimagemdoArcanjoMiguelpisandoodemónioe pesando asalmas, que lembraapinturade temaanálogo que se encontra noMNAA e é atribuída aGarcia Fernandes. A flor de lótus é igualmentesubstituídapelaCruzdeS.Tomé.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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ignorância inata que lança os seus malefícios sobre todos os seres vivos. Depois

levantou‐se para se colocar na sombra de uma figueira‐da‐índia, a Árvore do

Cabreiro,ondeficouemmeditaçãopormaissetedias.Aofimdessetempovoltoua

levantar‐see,durantemaissetedias,meditoudebaixodaÁrvoredoRei‐Serpente,

Muchalinda.Repentinamente,aproximou‐seumagrandetempestadesemqueBuda

quebrasse o seu estado de beatitude. Muchalinda, que vivia entre as raízes da

árvore,saiudasuatocadandosetevoltasemtornodocorpodoIluminadoeabriuo

capelosobreasuacabeça,protegendo‐odaintempérie.Aosétimodiaatempestade

dissipou‐seeMuchalindadesfezosseusanéis,transformando‐senumjovemdevoto

doreveladordaVerdadeedoAbsoluto89.

De acordo com Zimmer, quando Buda começou a ensinar a sua doutrina

percebeu que os Homens não estavam preparados para aceitar a sua

conceptualidade e abstracção, recusando as implicações doVazioUniversal. Desta

forma, dirigiu os seus ensinamentos do Grande Veículo aos nagas até que a

Humanidade estivesse preparada para entender o Sunyata. Foram precisos sete

séculosatéqueNagarjuna,oArjunadosNagas,pudessecompreenderoAbsoluto,

trazendo,porsuavez,aosHomensoensinamentobudistadaMahayana90.

Pensamosqueestemitotornaclaroopapelfundamentaldosnagasassociado

à pregação e à difusão da palavra sagrada que, no contexto da realidade cristã,

ocupaum importante lugarnospúlpitosdas igrejas91. Já tínhamosvisto,na leitura

que fazemos do baixo‐relevo do Trânsito de S. Francisco Xavier, que há uma

associaçãoda serpentecósmicacomoveículoe elementodeelevaçãocelestialdo

pregadoreApóstolodasÍndias.

89HeinrichZimmer.Mitosesímbolosnaarteecivilização indianas.Lisboa:AssírioeAlvim,1997,pp.76‐77.90Op.Cit.,p.78.91 Sobrea importânciadospúlpitosna ÍndiaPortuguesa,queraonívelda sua funçãocatequéticaeexpressão daModernidade, da composição formal e técnica, quer ao nível do exaustivo inventáriorealizado, vide Hilda Frias. Púlpitos Luso‐Orientais: Origens e difusão. Dissertação deMestrado emHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa,2002.Estetrabalhofoiposteriormentepublicadopela LivrosHorizonte.HildaFrias.Goa.Aartedospúlpitos. Lisboa: LivrosHorizonte,2006.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

183

Para além dos púlpitos, dos contadores e das mesas, também as cadeiras

demonstram uma enorme influência da iconografia indiana na ornamentação de

espaços tradicionalmente reservados à imaginária cristã. Naturalmente, chegaram

até nós vários exemplares de cadeiras executadas, muito provavelmente, para as

dependências de apoio à missa nas igrejas, muito ricamente decoradas com

iconografia cristã. Contudo, da mesma forma que os contadores e as mesas, as

cadeirasinserem‐senumquadroartísticodotadodecaracterísticasdeumgostopor

umaornamentaçãoexóticasobremateriaisexóticos.

No Museu de Goa, Damão e Diu, em Pangim, conserva‐se uma cadeira de

braçoscomcostaseassentoempalhinhadecorada,nocachaço,com“doisdragões

aladoscomocorpocobertoporescamasecaudaretorcidaàmaneirachinesa”ede

umlótusaberto,nolugardos“meninos”edeumadensafolhagem92.Esteesquema

repete‐se na testeira, tendo os dragões sido substituídos por leões.Maria Helena

MendesPintoreconheceovalorsimbólicodosdragõesassociadoàboaemáfortuna

equeseconfundemcomomakara,monstroaquático,oucomoelefantejáqueas

figurasevidenciamumatromba.

Tratando‐se de uma figura mitológica, makara, o veículo de Ganges e de

Varuna,habitaaságuasprimordiaisgeradorasdavidaassumindoclaramenteuma

posiçãohíbridanoCosmos.Nacosmogoniahindu,osanimaisquehabitamaságuas

sagradas estão igualmente associados às escamas, como sendo essa a “pele” dos

seres aquáticos. A serpente, o crocodilo e o golfinho são os seres marinhos que

habitamtambématerra,sãooeloentreoselementosdaáguaedaterra.Decerta

forma, os elefantes, pela necessidade constante de contacto coma água, revelam

igualmente essa dualidade entre a água e a terra. Por isso, omakara, enquanto

veículo doRioSagrado (Ganges)edoOceanoCósmico (Varuna), assumemúltiplas

92MariaHelenaMendesPinto. “Sentando‐seemGoa”. IN:Oceanos. ‐Lisboa‐nº19/20 (Set./Dez.1994),p.46.

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formas,assemelhando‐seporvezescomocrocodilo,oelefante,umpeixeeatéum

golfinho.

No Seminário de Rachol as cadeiras da sala de visitas foram decoradas com

naginasnaparteinferiordosquatropés,conjugadascomacaracterísticadecoração

deestiloeuropeuaoníveldasprumadastorsas.Aflorde lótusencontrou lugarno

enrolamento finaldosbraços substituindoa tradicionalespiralouacabamentoem

volutaquevemosemalgumasdascadeirasdefabricoeuropeu.

AcadeiradasacristiadeNossaSenhoradaEsperança,emCandolim,apresenta

nocachaço,“rodeandoomotivocentral‐olótusdemilpétalas‐sustentadopordois

meninos reduzidos a tronco ataviado com folhagens”93. Trata‐se, a nosso ver, de

uma clara substituição do modelo comum de dois anjos a segurar o monograma

jesuíta, por duas apsaras que seguram a flor de lótus. Na testeira desta cadeira

poderemosencontrarumarepresentaçãodopurnaghata,ovasodaabundância.

Emsíntese,percebemosqueomobiliário,aindaqueusualmenteornamentado

comiconografiacristã,serve,sobretudo,umafunçãoutilitáriaseguindorigidamente,

na forma, os modelos europeus. Contudo, como já referimos, um apurado gosto

peloexóticoprovocadonãosópelosmateriaisraros,mastambémporumaprocura

deentendimento daespiritualidade indiana resultamemprocessosdeconfluência

artística que,muitas vezes, se estendemalémda sua função utilitária. Alguns dos

exemplares de mobiliário produzido no contexto deste encontro de culturas são

reflexos de uma profunda reflexão espiritual e do reconhecimento de uma

amplitudeuniversaldasrepresentaçõesdosagradoedosmitoscivilizacionais.

Emformadeconclusão,discorreremosemtornodeumdosmaisimportantes

rituaisdamissionaçãonaÁsiacomoritualdepurificaçãoereiniciação.Obaptismo

foi o pilar de uma política de angariação de almas, pela qual as distintas Ordens

Religiosas competiamescrupulosamente. A importância do sacramento e do ritual

93Op.Cit.,p.47.

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encontrouna ÍndiaumcampofecundopelavastatradiçãodasreligiõesVédicasao

mito das águas primordiais e do ciclo purificador da água associadas ao Oceano

Cósmico e ao culto de três divindades principais,Ganges, Yamuna e Saraswati, as

trêsprincipaisartériashídricasqueadubamefertilizamaMãeÍndia.

Osmissionárioscristãosdeveriam,muitoprovavelmente,conduzirosrituaisde

baptismo colectivo nas margens dos rios, de forma até a facilitar um ritual

massificadoqueassinalavaaconversãodecentenasdealmasemsimultâneo.Esteé

umritualdepassagem,noqualossímbolosdapurificaçãodoespírito,daimersãoe

ressurgimentoparaumanovavidacolocamemevidênciaumadimensãocíclicada

existência,deumaforçaedeumanaturezaregeneradoraconcentradanafigurade

Cristo94.Obaptismocorrespondeaumamorte ritual seguidadeumrenascimento

espiritual.

A força regeneradora das águas primordiais constitui uma das bases

estruturais do pensamento religioso de diferentes culturas e civilizações,

estreitamente relacionada com o mito do eterno retorno. Nas distintas

configuraçõesdo sagrado,aOrdemsucedeaoCaosnuma regeneraçãodoCosmos

precipitada pelas Águas Primordiais que se abatem sobre a Terra. A energia

fertilizadora das Águas fecunda a Terra durante a união entre o Céu e a Terra.

Repare‐seque,emdiversastradiçõesculturais,oPrimeiroHomemécriadoapartir

dobarro,damatériaresultantedauniãoentreaÁguaeaTerra.

O babilónio Épico de Gilgamesh, o Dilúvio do Livro do Génesis ou ainda o

Dilúvio ao qual escapam Fuxi e Nuwa, constituem manifestações transversais do

princípio universal do Ciclo Cósmico de destruição e restauração da Ordem. Na

tradiçãohindu,estemitoestánabase da identidadeantropológicado imaginário,

concentrada não só na força destruidora de Shiva, Preservadora de Vishnu e

Criadora de Brahma, mas também numa vasta plêiade de divindades. Ganga é a

deusa‐mãequeconcedeprosperidade,quegaranteasalvação,quelavaospecados

94MirceaEliade.OSagradoeoProfano.Aessênciadasreligiões.Lisboa:EdiçãoLivrosdoBrasil,2006,pp.140‐141.

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detodosaquelescujascinzassejamdeitadasàssuaságuas,transportando‐osparaa

beatitudecelestialeparaumRenascimento95.NoBrahmavaivarta,Shivacantaum

hinoemlouvordeGanga,reconhecendo‐acomofontederedenção:“...Talcomoo

fogoconsomeocombustível,assimeste rio consomeospecadosdosperversos.Os

SábiossobemosdegrausdoterraçosobreoGanges;neletranscendemoaltocéudo

próprio Brahma: livres de perigo, conduzindo carros celestiais, dirigem‐se à

residência de Shiva. Os pecadores que expiram perto das águas do Ganges são

libertadosde todosos seuspecados: convertem‐seemservidoresdeShivaevivem

juntodele.Tornam‐seidênticosaele,emforma;nuncamorrem‐nemmesmonodia

dadissoluçãototaldouniverso”96.

NoRamayanaencontra‐seanarrativadaDescidadoGanges,queseprecipita

sobre a cabeça de Shiva, gerando o dilúvio cósmico, devolvendo à terra as Águas

Primordiaisegarantidoabênçãodavida.GangadesceàTerraparapôrtermoàseca

extremaque seviviadepoisdeAgastya terengolido ooceanoeos demóniosque

atormentavam os brâmanes. O rei Bhagiratha, descentende de Manu, pretendia

deitarnomarsagradoascinzasdosseusantepassadosquemorreramheroicamente

numacatástrofemítica.Deslocou‐seaumgrandecentrodeperegrinaçãoedevoção

aShiva,ondeesteveemmeditaçãodurantemaisdemilanos.Adevoçãodoasceta

foiatendidaporBrahmaquelheconcedeuumdesejo.Bhagirathapediuquefizesse

descer o Ganges para pôr termo à seca. Contudo, Brahma retorquiu que apenas

Shivateriaaforçaparadeteratorrentedoriocelestesemqueestedespedaçassea

terra. Assim, o rei foi até aos Himalaias onde Shiva se encontrava absorvido pelo

Vazio supremo. Bhagiratha meditou durante um ano, alimentando‐se apenas de

folhassecas,apoiadoapenasnumpéecomasmãosunidassobreacabeça,atéque

Shivaaceitouereconheceuadevoçãoevontadedoasceta,amparandoaquedado

95HeinrichZimmer.Mitosesímbolosnaartee civilização indianas. Lisboa:AssírioeAlvim,1997,p.118.96 Brahmavaivarta Purana, Krsna‐Jamna Khanda, 34, pp. 13 e ss. Cit. a partir de Heinrich Zimmer.Mitosesímbolosnaarteecivilizaçãoindianas.Lisboa:AssírioeAlvim,1997,pp.118‐119.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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Rio Celeste, que perdia intensidade àmedida que descia pelos longos cabelos do

DeusSupremo97.

Também Vrtra, o dragão marinho, engoliu e manteve cativas as águas do

mundo,atéqueIndradestruiuosanéisdeVrtraelibertouosRiosSagrados.Indra,

tal como Bhagiratha é o herói que está na origem da precipitação do Oceano

Cósmico, que é entendido, não no seu sentido destruidor, mas no princípio de

renascimentoe recomeçopara umanova condição.Nomesmosentido,Noé,pela

sua devoção espiritual, é o preservador do Homem permitindo o renascimento

depois da queda das águas e o restabelecimento da Ordem Universal. O Dilúvio

pretendeupurificaroHomemdasuacorrupçãoeoBaptismonãoénadamaissenão

arepetiçãoecelebraçãodoDilúvioatravésdoritual.Jesus,aoserbaptizadonoRio

Jordão,assume‐secomoonovoNoé,nosegundomomentoemqueéfundamental

salvaraHumanidadedaperdiçãoedacorrupção.

Nestesentido,pensamostertornadoclaroquetantonouniversocristãocomo

indiano, os rituais de purificação através da água estão culturalmente enraizados

como uma repetição e actualização da génese de uma nova Era, de um

Renascimento para uma nova forma. Esta universalidade do mito resulta numa

concomitância de símbolos na celebração de um ritual que partilha

substancialmenteomesmosignificado.

Nasigrejasgoesaspredominamaspiasbaptismaisdefacturaitaliana,algumas

vezesemmármoresdeCarraraouprovenientesdeoficinasdeLisboa98.Pensamos

queeventualmentepoderãoterchegadoaGoanasnausportuguesasumavezque

duranteosséculosXVIaXVIIIcontinuavamaenviaralfaias litúrgicasepedraspara

serviremdearasdealtar.Muitoprovavelmente,seriampiasbaptismaisealgunsdos

lavabosqueaindahojeseencontramnasigrejasdeGoa.

97JohnCampbellOman.GreatIndianEpics:TheStoriesoftheRamayanaandtheMahabharata.NewDelhi:AsianEducationalServices,1994,pp.78‐81.98 Pedro Dias. “Pias de água benta e lavabos europeus de mármore em igrejas goesas”. IN: ArteIbérica.‐Lisboa‐n.30(Dez.1999),p.54‐57

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Contudo,TeotóniodeSouza identificouna IgrejaParoquialdeMoiraumapia

deáguabentasuportadanumshivalingam,pertencenteaoantigotemplohinduque

estava erigido no local99. Pensamos que a reutilização do shivalingam adaptado

comosuportedapiadeáguabentaseestendaparaalémdoseucarácterfuncional,

comopedestal.Existecertamenteumarelaçãocomomitodaorigemdoshivalingam

(lingodbhava), num tempo em que não há universo, apenas água e a noite sem

estrelas no momento entre a dissolução e a criação. Vishnu descansa sobre

Sheshnagqueemergiudaságuasprimordiais. Interrompendoesteestado letárgico

do Oceano Cósmico, a luz radiante de Brahma invade o espaço e dá‐se início à

discussãosobrequemé,narealidade,ograndeCriador.EnquantoVishnueBrahma

discutiamentresi,emergedoOceanoCósmicooaltíssimoshivalingamcoroadopor

umachama,crescendoemambosossentidosemdirecçãoaoCéueàsprofundezas

dooceano.Brahmaassumiuaformadegansoevoouparaoalto,enquantoVishnu

assumiu a forma de javali, mergulhando nas profundezas do Oceano. Ambos

procuravamoslimitesopostosdo lingam,massemqualquerefeitoporque,quanto

mais Brahma subia e Vishnu descia, mais o lingam crescia. Em seguida, Shiva

manifestou‐se a partir do flanco do lingam, revelando‐se a Brahma e Vishnu e

assumindo‐secomoaformasupremadoUniverso.

Nas Igrejasda regiãodoKerala,HélderCarita reconheceunapiabaptismala

representação do Dragão Vrtra, o demónio que engole o oceano, representado

atravésdacolunadesustentação,demonstrandoumarelaçãoentreopanteãohindu

eosrituaisdepurificaçãoatravésdaáguanocontextodoCristianismo100.Deacordo

99 Teotónio R. Souza. “A arte cristã de Goa: uma introdução histórica para a dialéctica da suaevolução. IN: Oceanos. ‐ Lisboa ‐ nº 19/20 (Set. / Dez. 1994), p. 9. Segundo Teotónio de Souza,actualmente,o linga encontra‐se conservadonoMuseudeArqueologiapor intervençãodeGritli v.Mitterwalner.100HélderCarita.Aarquitecturaindo‐portuguesadeCochimeKerala.NewDelhi:Transbooks,2008,p.186‐188.

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comoRigveda,Vrtrareteveaságuasdouniversoatéquefoimortopor Indraque

restabeleceaordemnaturaldascoisasegarantindoasalvaçãodosHomens101.

A identificação ou a sobrevivência de raros exemplares que demonstrem o

reconhecimento recíproco dos mitos de purificação através da água, poderia

significar que esse paralelismo não teve a dimensão evidente à crítica de um

pensamento moderno. Contudo, uma vez mais, é Diogo do Couto que nos

surpreendeatravésdeumregisto,arriscamosafirmar,dodomíniodaantropologia,

descrevendoosrituaishindusnoGujarat,nomeadamentequandorecolhemaurina

frescadavacasagradaeadeitamsobreascabeças,“comonósfazemoscomaágua

benta”102.Existe,claramente,emDiogodoCoutoumamanifestacompreensãodos

rituais e da imagética indiana à luz do seu próprio conhecimento, encontrando

reflexos de paridade entre o Cristianismo e as religiões da Índia. É, portanto,

perfeitamentenaturalqueesteentendimentoseespelhenumasimbiosedasformas

artísticascomoumaformadeexpressãodomitoedeumprincípiouniversal.

101HeinrichZimmer.Mitosesímbolosnaarteecivilizaçãoindianas.Lisboa:AssírioeAlvim,1997,pp.135‐136.102DaAsiadeDiogodoCouto,dosfeitos,queosportuguesesfizeramnaconquista,edescubrimentodasterras,emaresdoOriente.DécadaV,LivroVI,Cap.III.Lisboa:Régiaofficinatypografiica,1780,p.27.Cf.SanjaySubrahmanyam.“Ogentioindianovistopelosportuguesesdoséc.XVI”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº19‐20(Set./Dez.1994),pp.190‐196.

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2.3. Aimagináriacristãemmarfim

Apesardeterfeitopartedosprimeirosestudoseexposiçõesnocontextodas

artes decorativas, da arte portuguesa e ultramarina e das relações artísticas entre

PortugaleoseuImpérioColonial,foiapenasapartirdadécadade1970/1980quea

imaginária em marfim ganhou um lugar próprio na historiografia da arte em

Portugal.

As primeiras pedras foram na altura lançadas pelos estudos publicados por

BernardoFerrãoTavareseTávoraduranteadécadade1960,culminandonoseujá

clássico estudo, empublicação póstuma, de 1983, sob o títuloA Imaginária Luso‐

Oriental.Consequênciadosseusestudosfoiolugardedestaqueconcedidonopólo

expositivodoMosteirodos Jerónimosaosmarfinsdenominados indo‐portugueses,

durante a XVII Exposição europeia de Arte, Ciência e Cultura. Outra das

consequências terá sido um crescente interesse de coleccionadores privados por

esta tipologia de peças, dando lugar a uma larga comercialização garantida pelas

principaisleiloeirasdeLisboaePorto,equeaindahojeserepercute.

Aimagináriaindo‐portuguesaemmarfiméconstituída,emgrandemedida,por

esculturasdevultoperfeito,isoladaseavulsas,depequenaestaturaexecutadasem

presas de elefante ou rinoceronte provenientes da costa oriental africana ou do

Ceilão1. São ainda relativamente comuns as placas com baixo‐relevo em marfim,

seguindodealgumamaneiraosmodelosmedievaisderetábuloportátil.Maisraras

sãoasestruturascompósitascomooscalvárioseasárvoresdeJessé,remanescentes

das Árvores sagradas da Índia2. Normalmente, estas peças eram cobertas por

1 Cristina Osswald. “Marfins: formas e técnicas, com especial incidência na imaginária indo‐portuguesa”.IN:Oceanos‐Lisboa‐nº19‐20(Set./Dez.1994),pp.60‐70.2BernardoFerrãoTavareseTávora.ImagináriaLuso‐Oriental.Lisboa:IN‐CM,1983,p.27.

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douramento e policromia, embora já poucos exemplares apresentem vestígios

dessasintervenções,nomeadamenteaoníveldaindumentária.

Aesculturaemmarfimapresenta‐secomooresultadodeumaconfluênciade

materiais,técnicasetemasqueresultaramdascampanhasmissionáriasnaÍndia.Os

missionárioseuropeusrecorriamaartistaslocaisparaaexecuçãodeimagenscristãs,

a partir de modelos em madeira ou de gravuras importadas da Europa. Daqui

resultou uma profusa produção de imagens emmarfim que procurava responder

tantoaumapolíticaproselitistadeconversãodaspopulaçõeslocais,comoaogosto

pelo exotismo que tinha lugar nas kunstkammern das cortes europeias, ou até

mesmonosaposentosconventuais,paradevoçãoprivada.

BernardoFerrãodeTavareseTávoraclassificouaartedomarfimluso‐oriental

emdiferentestipologiasdeacordocomaiconografiaMariana,Cristológica(infância

deJesusePaixãodeCristo)eHagiográfica,dandoaindadestaqueaotemadoBom

Pastor,particularmentepopularnaÍndiaPortuguesa.BernardoTávorafoiaindaalém

de um critério simplista que incorporava todas as esculturas em marfim de

iconografia cristãnumaprodução indo‐portuguesa, identificando tambémaoficina

regional cíngalo‐portuguesa, sino‐portuguesa e nipo‐portuguesa3. Elaborou um

criterioso inventárioque,em1980, contava já commaisdeduasmil fotografiase

que lhe permitiu realizar uma rigorosa caracterização tipológica e material da

imagináriacristãemmarfimproduzidanaÁsiaentreosséculosXVIeXIX.

Ostemasiconográficosdaestatuáriaebúrneatêmumarelaçãodirectacoma

actividade missionária e um consequente encontro de culturas e de diferentes

sistemas religiososonde,apesarde tudo,osmissionáriosencontraramsimilitudes,

usadasparafacilitareincentivaraconversãodaspopulaçõeslocaisaoCristianismo.

Destaforma,trata‐sedeumaartemiscigenadafocadanãosónousodemateriaise

3Op.Cit.,pp.13ess.

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técnicas de entalhamento do marfim mas também nas similitudes formais e

conceptuais4.

Aesteextensocampoda imagináriaemmarfim,compostoporesculturasde

vulto, retábulosminiaturizadoseestruturas compósitas comoosdoCalvário, eda

Sacra Parentela, juntam‐se ainda os célebres cofres do Ceilão, que combinam

motivospagãoseimagináriocristão5.

O domínio próprio que a imaginária em marfim garantiu no quadro da

iconografiacristãnaÍndia,duranteosséculosXVIeXVII,deveserentendidoàluzde

uma produção local, de carácter oficinal e com certo grau de autonomia,

representandoostemasda iconografiacristãapartirdosmodelosdagravuraeda

esculturaeuropeias.

Já durante o final da década de 1990, Rafael Moreira e Alexandra Curvelo

identificarammodelosemgravuraintegralmentereproduzidosemmarfim,dequeé

exemplo a placa doMuseu Nacional de Arte Antiga, representando aNatividade,

executadacombasenumagravuradeAlbrechtDürer,datadade1511,eemoutras

gravurasdeMartinSchongauer6.Maisrecentemente,ConceiçãoBorgesdeSousa,no

âmbitodoColóquiodeArtesDecorativasdaFundaçãoRicardoEspíritoSantoSilva,

apresentou uma comunicação na qual alargou este leque de identificações de

gravurasqueserviramdemodeloaumaproduçãodearteemmarfim.

Aextensareproduçãodeimagináriaemmarfim,demodoparticulardasplacas

emalto‐relevo,apartirdemodelosretiradosdagravuraeuropeiaprende‐senãosó

com o carácter bidimencional mas também pela sua portabilidade, útil aos

missionários e a todos aqueles que eram obrigados a ceder às movimentações

comerciais,diplomáticasouevangélicas.Em1979,BernardoFerrãoTavareseTávora

4 Rui Oliveira Lopes. “Imaginária indo‐portuguesa emmarfim”. IN:Museu Ibérico de Arqueologia eArte.AntevisãoI.Abrantes:CâmaraMunicipaldeAbrantes/MIAA,2009,pp.146‐149.5 Rafael Moreira e Alexandra Curvelo. “A circulação das formas. Artes portáteis, arquitectura eurbanismo”. IN: História da Expansão Portuguesa, coordenada por Francisco Bettencourt e KirtiChaudhuri.Lisboa:CírculodeLeitores,Vol.II,1998,pp.550‐551.6Op.Cit.,pp.550.

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publicouumestudoemtornode“Umaextraordináriapeçademarfimdaarteindo‐

portuguesa”pertencente,naaltura,aFranciscoHipólitoRaposo7.Talcomoobservou

BernardoTávora,estapeçaé,na realidade, umretábulominiaturizadoconstituído

por peças soltas montadas e pregadas numa prancheta de casquinha,

eventualmentedestinadoaumoratórioque,porsuavez,simulariaoaltar‐morde

uma igreja. A peça é composta por três fiadas, de três placas cada, separadas

verticalmenteporcolunasdaordemcoríntiaeacomumcabeçadeanjoaocentro.

Coroando a estrutura, envolta numa mandorla sustentada por anjos ajoelhados,

encontra‐se uma custódia, ladeada pelo Sol e pela Lua. A iconografia do retábulo,

comastrêsplacasverticaisaocentroconsagradasatemasmarianos,ladeadasporS.

Agostinho, S. Pedro, S. Domingos, S. Francisco, S. João Baptista e pelo Arcanjo

Miguel,demonstraaausênciadeumprogramanarrativoedevocionalvoltando‐se,

até,paraumaamplitudedetemasdaespiritualidadecristãnaÍndia.

Existem outros retábulos em marfim com diferentes configurações e temas

iconográficos que repetem algumas das cenas do exemplar que vimos

anteriormente. Como poderemos verificar, num outro exemplar, a imagem da

Sagrada Família repete‐se, tendo partido certamente do mesmo reportório

iconográfico, talvez o mesmo modelo, ou terá eventualmente sido produzido na

mesma oficina. Assistimos à utilização deste modelo na porta de um oratório

pertencente a uma colecção privada, embora nesta peça aSagrada Família esteja

contextualizadanumasequêncianarrativadetemasalusivosàInfânciadeJesus(Fig.

93).Éparticularmenteinteressantenotarque,nacenadoMeninoentreosdoutores,

Jesus é representado sentado com as pernas cruzadas, exactamente do mesmo

modocomovemosemmuitasesculturasemmarfimdoMenino JesusBomPastor

(Fig.94).

Estas placas emmarfim representam, em larga escala, cenas narrativas das

vidas de santos, sobretudo dos santos mártires e, em outros casos, episódios

7BernardoFerrãoTavareseTávora.“Umaextraordináriapeçademarfimdaarte indo‐portuguesa”.IN:BoletimdeEstudosHistóricos,vol.XXX,1979,pp.49‐76.

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narrativosalusivosáVidadaVirgem,InfânciadeJesusouPaixãodeCristo.Emoutras

circunstâncias, constituemapenas imagens icónicas evocativas do vasto reportório

de intercessores da Igreja Católica, entalhadas sob umespírito enciclopédico e de

reconhecimento dos Santos e da sua legenda, à semelhança do Flos Sanctorum.

Parece‐nos possível concluir que estas placas em marfim seriam produzidas

individualmenteeposteriormentemontadasnumaestruturaretabulardepequenas

dimensões, de acordo com um determinado programa iconográfico ou

simplesmente como uma imagem de devoção portátil individual, à imagem das

gravurasqueacompanhavamosmissionários.

Tratando‐se de peças de pequeno porte e de características amplamente

portáteis,estasimagenscircularamatravésdosfluxoscomerciaisqueunemaÍndia,

oCeilão,aChina,oJapão,aIndonésia,asFilipinas,oMéxicoetambémoBrasil8.A

circulação destas peças corresponde não só a uma rápida difusão de iconografia

cristã, mas também a uma determinada sedução pelo exótico, uma vez que esta

expressãoartísticaganhaimpulsoapartirdapresençaeuropeianaÁsia.Recordem‐

seosrelatosdeFreiGaspardaCruz9edeLinschoten10quesereferemàsesculturas

emmarfim,feitasnaÍndiaenoCeilão,queopríncipeSalimdacorteMogol,futuro

Jahangir, encomendou aos seus artistas. Este facto demonstra claramente que a

produçãodestasimagensreúnemotivaçõesdedevoçãoespiritual,mastambémsão

mandadasexecutarcomoobjectosdeornamentaçãooupreciosidadesexóticas.

Àsemelhançadoqueverificámosemrelaçãoàproduçãodeiconografiacristã

naÍndia,apartirdeoutrastécnicasemateriaiscomoapintura,atalharetabulareo

mobiliário,aesculturaebúrneaemmarfimdesencadeouamobilidadeefixaçãode

centros de produção de forma a dar resposta a uma grande procura pelos

8Op. Cit., p. 551. Cf. Pedro Dias.A arte de Portugal no Mundo, vol. 11, p. 107. Blas Sierra Calle.“MuseoOriental:ArtedeChina,JapónYFilipinasenValladolid”. IN:Artigrama,núm.18,2003,171‐190.9Tratadodas coisasda ChinaporFreiGasparda Cruz. IntroduçãoenotasdeRuiManuel Loureiro.Lisboa:Cotovia/CNCDP,1997.10 Itinerátio, viagem ou navegação para as Índias Orientais ou Portuguesas por Jan Huygen vanLinschoten,ediçãodePosArieeRuiManuelLoureiro.Lisboa:CNCDP,1998.

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missionários e mercadores europeus. Pensamos que inúmeras oficinas

estabeleceram‐se em redor das principais igrejas, mosteiros, conventos e portos

comerciais servindo‐se, muito provavelmente numa fase inicial, de modelos em

esculturaedasgravuras,sendoque,gradualmente,criaramoseupróprioreportório

iconográfico que permitia até uma configuração relativamente personalizada. Se,

por um lado, muitas das peças eram entalhadas a partir de uma presa única,

denunciandoumaligeiracurvaturaqueobedeceànaturezadessesuporte,poroutro

lado, outras demonstram uma clara conjunção e montagem de pequenas peças

entalhadas individualmente.Exemplosdoprimeirogruposãoasesculturas icónicas

da Virgem ou dos Santos, ao passo que a representação doMenino Jesus Bom

Pastor, Calvário e das Árvores de Jessé se caracteriza de acordo com o segundo

grupo que referenciámos. No Museu de Alberto Sampaio, encontram‐se diversas

figuras de Maria Madalena deitada com o livro aberto, de Santos e de Nossa

Senhora,dedimensões inferioresaosdoze centímetrosdealtura,que certamente

fizerampartedestascomposições.

No fundo documental do Arquivo Histórico de Goa encontrámos em vários

documentosinéditos,entreosquais,noLivrodecontasdosJesuítasde1684a1692,

registos de pagamento para a aquisição de estatuetas emmarfim, demonstrando

que estas peças eram adquiridas e não propriamente encomendadas. Na leitura

destes documentos, percebemos que os registos de despesas dos fundos

conventuais e das ordens religiosas descriminam o montante pago, referindo‐se

sempreaotrabalhodoartista“peraofeitio...”,“perasatistação,pezoertoque...”ou

ainda“pelaobraquefez...”.Emlargamedida,nadocumentaçãoqueencontrámos

emrelaçãoàsdespesasrelativasàimagináriaemmarfim,tudoapontaparanotasde

despesa à semelhança do pagamento destinado à aquisição de outros bens de

consumo,sejamalimentaresoudeusoquotidiano.EmJunhode1702gastaram‐se

39 xerafins em “seis meninos de marfim, hua iimagem de Nossa Senhora da

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ConceiçãodemarfimqlevouoPeVisitador”11.EmDezembrode1706,gastaram‐se2

xerafins“DehuaimagemdeNossaSenhoradeMarfimnoseutronodourado”12.

Assim, pensamos que, comparativamente com outras despesas encontradas

nomesmodocumento,épossível considerarqueovalorpago pela imagináriaem

marfim é consideravelmente baixo, o que vai de encontro à ideia de ummercado

amplo,noqualaofertaabundaemrelaçãoàprocura.Vimosanteriormentequea

existência de ummercado de iconografia cristãmantido por artistas indianos que

sustentavaumaeconomiabaseadanocomérciodeiconografiacristãporpartedos

gentiosfoifortementecondenadaporD.JoãoIII,nasuacartaaopadreMiguelVaz13.

Destaforma,anossaideia,combasenestesdados,équeseriamuitomaiscomum

adquirirpeçasemmarfim,previamenteproduzidasedepois comercializadas junto

às igrejas, conventos e outros espaços frequentados pelos europeus, do que

procederàencomendaoficinal,talcomocertamenteaconteciacomapintura.

Atravésdeumaobservaçãometiculosadascentenasdeesculturasemmarfim

que se conservam em inúmeras colecções privadas e museológicas é possível

identificarsériesdeproduçãoemergentesdegruposoficinais.

Depoisdograndedestaquedadoà imagináriaindo‐portuguesaemmarfimna

XVIIExposiçãoeuropeiadeArteCiênciaeCulturarealizaram‐se,sobosauspíciosda

Fundação Calouste Gulbenkian e da Comissão Nacional para a Comemoração dos

DescobrimentosPortugueses,duasexposiçõesexclusivamentededicadasàarte do

marfim14. Nestas exposições, dezenas de peças, de colecções públicas e privadas,

foramdispostas ladoa lado,deixandoperceber tremendas similitudes formaisnão

11LivrodecontasdosJesuítasde1684a1692,ArquivoHistóricodeGoa,fl.6.12LivrodecontasdosJesuítasde1684a1692,ArquivoHistóricodeGoa,fl.11.13MárioBeirãoReis.Ourivesariacivilindo‐portuguesa,p.12.cit.apartirdePedroDias.Aviagemdasformas.EstudossobreasrelaçõesartísticascomaEuropa,aÁfrica,oOrienteeasAméricas.Lisboa:EditorialEstampa,Col.TeoriadaArte,1995,p.213.14FranciscoFariaPaulino(coord.).Aexpansãoportuguesaeaartedomarfim.Lisboa:CNCDP,1991.AA.VV.Aartedomarfim.Porto:CNCDP,1998.

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sóaoníveldoentalhedasfigurascomotambémaoníveldaspeanhas.Algumasdas

estatuetasexpostasdiferemapenasnogesto,numounoutromotivo iconográfico,

ounotratamentodorosto.Outrasapresentammodelosexactamente idênticosdo

ponto de vista formal, nomeadamente os conjuntos doMenino Jesus Bom Pastor

que, apesar de alguma complexidade iconográfica ao longo de cada um dos

escalonamentosdomonte rochoso, indiciamumaprodução seriada fundamentada

numarepetiçãoconsecutivadosmesmosmodelos.

Na colecção Miguel Pinto encontram‐se algumas esculturas de vulto da

Imaculada Conceição, eventualmente provenientes do Ceilão, que apresentam

exactamenteamesmapostura,tratamentodosrostosecabeloslongos,nasquaisos

mantosseenrolamigualmentenobraçoesquerdo.Poroutro lado,noquerespeita

às peanhas, é frequente encontrarmos esculturas de figuras completamente

distintas,deNossaSenhoradeConceição,daVirgemeoMenino,ouatédeSantos

queapresentampeanhasexactamente iguais, comosesetratassedeumestiloou

característica oficinal. A título de exemplo, vejam‐se as figuras em marfim

representandoS. Ináciode LoyolaeS. FranciscoXavier, certamenteexecutadasna

mesmaoficinaequeapresentampeanhasexactamenteidênticas(Fig.95eFig.96).É

exactamente este tipo de peanha, ornamentada com elementos vegetalistas que

encontramosemoutrasesculturas,nomeadamentedeSta.RitadeCássia (Fig.97),

doMenino Jesus de vara crucífera (Fig. 98, Fig. 99, Fig. 100) e ainda em outras

esculturas que fazem parte da colecção do Museu Histórico Nacional do Rio de

Janeiro(Fig.101).Estacolecção,reunidaporJoséLuízdeSouzaLima,entre1919e

1930, constituída por cerca de 572 esculturas em marfim, e que actualmente se

conserva no Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro, permite identificar

conjuntosdepeçasentalhadaspordiferentesoficinas15.Estesnúcleosoficinaissão

identificáveis, por um lado, através do tratamento estilístico impresso na figura e,

emoutroscasos,pelaornamentaçãodapeanha,quesecoadunacomaproximidade

estilísticaentreas figuras.Contudo, tambémnas colecçõesexistentesemPortugal

15VeraLúciaBottrelTostes.Artedomarfim.Porto:CNCDP,1998,pp.18.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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poderemos identificar estes núcleos de produção oficinal, de que são exemplo as

esculturasdeS.FranciscodeAssis,S.FranciscoXaviereumaoutradoApóstolodas

Índias, reproduzidas na Imaginária Luso‐Oriental de Bernardo Ferrão Tavares e

Távora(Fig.102,Fig.103eFig.104).Odramatismoemocionalexpressonãosóno

rostodossantos,mastambémnaexpressãocorporaléumacaracterísticacomuma

todasestasesculturas,comotambémécomumapeanhacomumapluma frontal.

Neste sentido, torna‐se fundamental correr testes de ADN aos elementos em

marfim,deformaapermitirdefinirummapageográficodaproveniênciadomarfim.

Estes testes, através do padrão de ADN, permitirão ainda confirmar os

agrupamentosestilísticoseque formalmente identificamaspeçasproduzidaspela

mesmaoficinaouesculpidasapartirdamesmapresa.

Aquestãoquesecolocaemrelaçãoàimagináriaemmarfimprende‐secomo

elevadonúmero deesculturasdoMenino JesusBomPastor, sobretudoapartirdo

iníciodoséculoXVII.FoinadocumentaçãoqueencontrámosnoArquivoHistóricode

Goaquepensamosterencontradouma resposta.NadocumentaçãodosJesuítasé

recorrente a referência de avultadas quantias dispendida para compra de “figuras

emmarfim para os prémios de Santo Inácio de Loyola”, nunca antesmencionada

pelahistoriografiaportuguesaouestrangeira.Emprimeirolugar,estadocumentação

coloca a Companhia de Jesus num dos principais utilizadores da imaginária em

marfim,certamentecomoconsequênciadaestratégiamissionáriaedasinovadoras

metodologiasdeensino.

ABulaRegiminiMilitantisEcclesiae,doPapaPauloIII,confirmaaconstituição

jurídicaereconhecimentodaCompanhiadeJesus.Constituiu‐se,sobocomandode

InáciodeLoyola,umaOrdemReligiosafocadanumamilitânciaespiritualquereuniu

umverdadeiroexércitodehomensdereligiãodotadodenovasmetodologiasparaa

missionaçãoeconversãodaspopulaçõesdoNovoMundo.Estecaráctermilitanteda

Companhiade Jesuse,especialmente,de InáciodeLoyola,encontra‐seespelhado

no retrato que se encontra noMuseu de S. Roque, no qual o primeiro Geral da

Companhiaéretratadocomumaarmaduraeainsígniajesuítaafervernopeito.

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A militância espiritual da Companhia de Jesus tornou‐se fundamental na

estratégiamissionária,atravésdapropagaçãodafépeladapregaçãopública,pelos

exercícios espirituais, pelas obras de caridade ou pelo ensino nos colégios e

seminários levantados por toda a Ásia. O Colégio de Goa tornou‐se uma pedra

basilar para uma estrutura de ensino e de formação evangélica, sobretudo dos

órfãosqueeramentreguesàtuteladoPaidosCristãos.Auniformizaçãodoensino

nos Colégios dos Jesuítas, por todas as províncias, atribuiu ao Ratio Studiorum,

constituído em 1599 com base nasConstitutiones de Inácio de Loyola, o eixo em

tornodoqualgravitaaorganizaçãodoensinoJesuíta,nãosónaformaçãomorale

religiosa,mastambémparaumaformaçãointelectualnas“artesliberais”16.

Emlargamedida,oRatioStudiorumcaracteriza‐seporumconjuntodeRegras

do bom ensino, resultante da prática no terreno, de forma a garantir o maior

sucessonoensino.Entreeste conjuntode regras, finalmentepublicadasem1599,

encontram‐se as Normas para os Prémios, determinando que a “cada ano pode

haver uma distribuição pública de prémios, contanto que corram as despesas por

contadehomensilustressejammoderadas,emproporçãocomonúmerodeaulase

a natureza do colégio. “Na distribuiçãodeprémios far‐se‐ámençãohonorífica dos

quecobriramasdespesas.Cumprezelarcommuitocuidadoparaqueosalunos,com

apreparaçãoparasemelhantesfestas,nãovenhamasofreralgumdetrimentomoral

eintelectual”17.Entreestesprémiosdistinguem‐seosPrémiosPúblicoseosPrémios

Particulares,atribuídosdeacordocomnormasespecíficasqueimportaaquireferir.

Eramatribuídos, em cada ano, um total aproximadode vinte prémios distribuídos

porclasses:“ParaaclassedeRetóricahaveráoitoprémios:doisparaprova latina,

doisparapoesia;doisparaprosagregaeoutrostantosparapoesia.Paraaclassede

Humanidades e a primeira classe de Gramática haverá seis prémios, na mesma

ordem, omitindo‐se a poesia grega que, de regra, não ocorre abaixo da Retórica.

Para todas as outras classes inferiores, quatro prémios, omitindo‐se também a 16JesusMariaSousa.“OsJesuítaseaRatioStudiorum”.IN:Islenha,Funchal,nº32(2003),pp.26‐46.17 Cit a partir de Margarida Miranda (ed.). Código pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum daCompanhiadeJesus.Coimbra:EsferadoCaos,col.CiênciasdaCultura,2009.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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poesialatina.Alémdisso,dê‐setambém,emtodasasclasses,umprémioaoalunoou

aos dois alunos que melhor houverem aprendido a doutrina cristã. Conforme o

número, grande ou pequeno dos estudantes, poderão distribuir‐semais oumenos

prémios,contantoqueseconsideresempremaisimportanteodeprosalatina”18.

Parece‐nosclaroqueoobjectivoeraclaramenteodesuscitarumsentimento

deemulaçãofortementesustentadonadualidadedoreconhecimentoecastigo.De

acordocomoRatioStudiorum,“Nadamantémtantoadisciplinacomoaobservância

de regras. Portanto, a principal preocupação do professor deve ser a de que os

alunos observem tudo o que está prescrito nas Regras e cumpram todas as suas

prescrições respeitantes aos estudos: trabalharão melhor com a esperança de

receberhonrariaseprémiosereceiodevergonhadoquecomcastigosfísicos”.Nas

Constitutiones, Inácio de Loyola refere‐se a uma “santa emulação do bem”, em

oposiçãoauma invejaodiosa,ondeoespíritoque imperaéodaglorificação,oda

dignificaçãoedoreconhecimentodovencedorpelosvencidos19.

Nestecontexto,apesardeodocumentocitadonãooreferirexplicitamente,é

possível concluirmosqueaextensa reprodução do temadoMeninoBomPastor,e

provavelmentedeoutrasimagensapartirdoséculoXVII,correspondeexactamente

à atribuição dos Prémios de Santo Inácio de Loyola, atribuídos anualmente pelo

ReitordoColégioaosmelhoresalunosnasdiferentesclasses.ParaalémdeoRatio

Studiorumtersidopublicadooficialmenteem1599,apóssucessivasrectificações,o

tema do Menino Bom Pastor representa o princípio fundamental do reflexo do

sacerdotepregadorexemplar.

O tema do Bom Pastor constitui uma citação directa da parábola do Bom

PastoreumaalegoriaaDeus.“EusouoBomPastor;conheçoasminhasovelhase

elasmeconhecemassimcomooPaimeconheceeeuconheçooPai;edouavida

18 Cit a partir de Margarida Miranda (ed.). Código pedagógico dos Jesuítas. Ratio Studiorum daCompanhiadeJesus.Coimbra:EsferadoCaos,col.CiênciasdaCultura,2009.19JesusMariaSousa.“OsJesuítaseaRatioStudiorum”.IN:Islenha,Funchal,nº32(2003),pp.26‐46.

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pelasminhasovelhas”20.Otema,recuperadodatradiçãopagãmantémoprincípio

simbólicodefilantropiaehumanitas.DeacordocomAndréGrabar,constrói‐seum

tema cristão a partir de um princípio de filosofia moral clássico uma alegoria de

Cristo, ahumanitas de Cristo.“Au Christ en Bon Pasteur faitpendant le défunt en

orant.Or,lesymbolismepaïendesRomainss’estservidecemêmemotifdel’orant

commed’une imageallégoriquede la “pietas”. Ici encore, l’art chrétiencommença

parreprésenterdesabstractions,nonseulementpourdesigner leChrist,maisaussi

pour évoquer le chrétien ordinaire”21. Tal como já afirmámos em outro estudo, o

BomPastoréumtemahumanistaereflexivoparaopúblicoaquesedestinava.O

princípio moral que está subjacente ao ícone é a humanitas de Cristo que, no

contexto dadevotiomoderna, o clérigo deveria imitar, guiando o seu rebanho. A

Igreja militante, que procura a santificação, usa este modelo numa clarividente

ImitatioChristi,comoformaexemplardevidaterrena.Éumtemaqueteminerente

uma função didáctica reflexiva através de uma ligação intensa entre o significado

espiritualqueoobjectoencerraesieaglorificaçãoexemplardoaluno22.Éumtema

que efectivamente se coaduna com o espírito de emulação das Constitutionis de

LoyolaecomoRatioStudiorum,queserviramdebaseorganizacionaldosistemade

ensinodaCompanhiadeJesus,explicandodestaformaaprolíferaaproduçãodeste

temaentalhadoemmarfim,apartirdoséculoXVII.Serátambémdeconcluirqueos

exemplares mariores e mais completos, de que é exemplo oMenino Jesus Bom

PastorpertencenteàcolecçãodaFundaçãoCasadeBragança,seriamdestinadosàs

maisaltasfigurasdoclero.

Embora seja possível considerar que a produção de imaginária cristã em

marfimcorrespondaaummercadoondeaofertaésuperioràprocura,seriaredutor

20João10:14‐15.21AndréGrabar.Lesvoiesdelacréationen iconographiechrétienne.Paris:Flammarion,col. IdeesetRecherches, 1979, p.15. Cf. Maria de Fátima Eusébio. “A apropriação cristã da iconografia greco‐latina:otemadoBomPastor”.IN:Mathésis.‐Lisboa‐,nº14(2005),pp.9‐28.22 Rui Oliveira Lopes. Imagens para edificar. Modelos didácticos da pintura Portuguesa doRenascimento,dissertaçãodemestradoemTeoriasdaArteapresentadaàFaculdadedeBelas‐ArtesdaUniversidadedeLisboa,2006,p.35‐36.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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descartarmos a ideia da existência de obras resultantes de encomenda e que

obedecem a critérios específicos de um programa iconográfico para a devoção

particular ou colectiva. Mesmo no final do séc. XVIII, os padres da Companhia

continuavam a recorrer aos serviços dos artistas indianos, não apenas no que

respeitaaoentalhedefigurasemmarfimoupedraria,mastambémnapolicromiade

imagensemescultura.EmNovembrode1758padres jesuítaspagaram25xerafins

desepintarasimagensparaopresépioe2xerafins“dofeitiodehuaimagemdeS.

António emmarfim”23, demonstrando que alguns artistas indianos continuavam a

colaboraractivamentesobempreitadaeorientaçãoiconográfica.

Relativamente aos temas iconográficos mais frequentes, a imaginária em

marfimremanescentedosséculosXVIaXVIIIreflecteumapreferência,emprimeira

circunstância,pelostemasdedevoçãomarianaatravésdasmúltiplasinvocaçõesde

Nossa Senhora24. A diversidade de representação iconográfica desdobra‐se pelos

modelosmetropolitanoseportendênciasvincadamenteeuropeiasdas imagensda

ImaculadaConceição (Franciscanos),NossaSenhoracomoMenino,NossaSenhora

do Rosário (Dominicanos) ou ainda pelos conjuntos alusivos à Infância de Jesus,

entreosquaisaAnunciação,Presépios,SagradaFamíliaeSacraParentela25.

Embora seja importante reconhecera importânciadas tendênciaseuropeias,

devocionaiseartísticas,queserviamdemodelo,sobreoqualoartistaindianodeixa

cairumaplasticidadecaracteristicamenteindianaéigualmentepertinenteentender

adifusãodestesmodelosnocontextodaespiritualidadequesevivenaÍndia,apartir

do séculoXVI.Parece‐nos claroqueasdiferentes invocaçõesdeNossaSenhora se

coadunam com a espiritualidade indiana, fortemente concentrada numa devoção

das diferentes manifestações de Devi, a Deusa Mãe, que vimos já constituir um

arquétipocorrespondenteàVirgem.

23LivrodecontasdosJesuítasde1684a1692,ArquivoHistóricodeGoa,fl.118.24Cf.BernardoFerrãoTavareseTávora.ImagináriaLuso‐Oriental.Lisboa:IN‐CM,ColecçãoPresençasda Imagem, 1983, p. 35. Idem. Imaginária indo‐portuguesa setecentista. Separata da "BracaraAugusta",Braga,27,fasc.63(75),1973.25Op.Cit.,p.36ess.

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É interessante notar que as imagens em marfim da Imaculada Conceição

raramente são representadas sem o menino. Antes da chegada dos missionários

europeusàÍndiaerabastantepopularocultoemtornodosepisódiosdainfânciade

Krishnaeda suamãeadoptiva,Yashoda, consortedeNanda.Confrontadoscoma

imaginária hindu e o culto dos princípios da maternidade e da figura de Krishna

comocriançadivinaeavatardeVishnu,osmissionárioseuropeusencontraramum

paralelismo e similitudes formais e conceptuais que poderiam facilitar a tradução

simbólicadaiconografiacristã26.DeacordocomRafaelMoreiraeAlexandraCurvelo,

a imaginária em marfim corresponde a uma preocupação Contra‐Reformista em

relação à representação das cenas da Infância de Jesus, de uma “espiritualidade

refrescante e amorosa”27, que vemos sobretudo nas representações de Nossa

SenhoracomoMeninoenasimagensdoMeninoJesus.

Note‐se ainda que o modelo da Imaculada Conceição, sobre o Quarto

Crescente,estárelacionadacomumarepresentaçãosimbólicadoprincípioedofim

dostempos,aMãedeCristoSalvadordoMundoe,emsimultâneo,éaRevelaçãoda

MulherApocalípticaque,naemergênciadoAbismoedaRenovaçãodoUniverso,se

revela aosHomens. Esta é a dualidade da Imaculada Conceição, entre a criação e

origem da vida e a dimensão destruidora e renovadora, com raízes profundas na

espiritualidade indiana,atravésdocultodeDurgaouKali,queservedeplataforma

deentendimentoedeidentificação.AcresceaindaofactodeaImaculadaConceição

ter sido frequentemente representada sobrea hidra de sete cabeçasassociadaao

fimdos tempos. Como já vimos, depois de destruído oUniverso, Vishnu descansa

sobreodorsodeSheshnag,aserpentecósmicadesetecabeças.Naturalmentenão

poderemos entender uma relação directa entre a Imaculada Conceição e as

divindades indianas. Contudo, é fundamental reconhecer uma identificação das

26RuiOliveira Lopes. “Imaginária indo‐portuguesaemmarfim”. IN:Museu IbéricodeArqueologiaeArte.AntevisãoI.Abrantes:CâmaraMunicipaldeAbrantes/MIAA,2009,pp.146‐149.27 Rafael Moreira e Alexandra Curvelo. “A circulação das formas. Artes portáteis, arquitectura eurbanismo”. IN: História da Expansão Portuguesa, coordenada por Francisco Bettencourt e KirtiChaudhuri.Lisboa:CírculodeLeitores,Vol.II,1998,pp.550.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

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imagenscristãsà imagemdarealidadeeconhecimentodacultura indiana,apartir

de um conjunto de leis universais. É este princípio universal, que está na base do

reconhecimento por parte dos europeus acerca daquilo que pensavam ser uma

devoção dos gentios pela Santíssima Trindade ou até do culto de Nossa Senhora.

Inversamente,seriaperfeitamentecompreensívelqueosindianosreconhecessemas

similitudes formais e conceptuais da imaginária cristã à imagem da sua realidade

espiritual,precisamentecomovimosnorelatodoabadePerrin28.

EstemesmoprincípioseobservanapopularidadequeasÁrvoresdeJessétêm

naÍndiaenoCeilão.AplacaemmarfimcomarepresentaçãodotemadaÁrvorede

Jessé,pertencenteaumacolecçãoprivadaedatadadoséc.XVII,denotavestígiosde

policromiaecumpreasnormastradicionaisdestemodeloiconográfico.Doflancode

Jessé,dormindo,nasceotroncoqueseramificaeservedesuporteaosReisdeJudá,

identificadospelacoroaeoceptroepelonomequecertamenteestariaescritona

tarjeta.No topodacomposição,a Virgemcoroadacom Jesusaocolo,encontra‐se

separadadasoutrasgeraçõesporumacercaduradecontas29(Fig.105).

UmoutroexemplardaÁrvoredeJessé,tambémdeumacolecçãoparticulare

domesmoperíodoqueaanterior,encontra‐seinseridonumoratóriodesuspender

em formade capela (Fig. 106).Nos séculos XVI e XVII, a Virgemocupou um lugar

fulcral no culto religioso em Portugal e, consequentemente, nos territórios

portugueses dispersos pelo mundo, o que justifica o lugar de proeminência que

encontranestasestruturas. Jessé tem feiçõesdeclaradamenteorientais.Nocentro

dacomposiçãoencontra‐seaVirgemsobreoQuartoCrescente,NossaSenhorada

Conceição.SobreasuacabeçaDeusPai,fazendoosinaldabênção,e,sobreeste,a

PombadoEspíritoSanto,conjuntohabitualmentepresentenoBomPastor.Muitas

28Videnesteestudop.138‐139.29MariaHelenaMendesPinto (coord.).DeGoaa Lisboa.Aarte indo‐portuguesados séculos XVI aXVIII.Coimbra:InstitutoPortuguêsdeMuseus,1992,p.46.

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vezes,comoacontecenumadasCapelasdaSédeGoa,ocarvalhodaÁrvoredeJessé

ésubstituídoporumapalmeira,deformaacorresponderàrealidadelocal30.

A Árvore de Jessé é a representação da árvore genealógica de Jesus desde

Jessé, antepassado do Rei David, a partir de uma passagem de Isaías que diz:

“Porque brotará um rebento do tronco de Jessé, e das suas raízes um renovo

frutificará.E repousará sobreeleoespíritodoSenhor,oespíritode sabedoriaede

inteligência,oespíritode conselhoede fortaleza,oespíritode conhecimentoede

temor ao Senhor”31. É interessante notar que o mesmo modelo da Árvore

propriamenteditaécombinadocomaimagináriaemmarfimdoMeninoBomPastor,

naqualosramosseabrempordetrásdoMenino(Fig.107eFig.108).Anossover,

trata‐sedeumacombinaçãoentreaÁrvoredeJesséeoMeninoBomPastor,apartir

dapassagemdeIsaías.Dizemosversículosseguintessobreorenovoquefrutificará

que“Deletar‐se‐ánotemordoSenhor;enãojulgarásegundoavistadosseusolhos,

nemdecidirásegundooouvirdosseusouvidos;masjulgarácomjustiçaospobres,e

decidirácomequidadeemdefesadosmansosdaterra;eferiráaterracomavarade

suaboca,ecomosoprodos lábiosmataráo ímpio.A justiçaseráocintodosseus

ombros, e a fidelidade o cinto dos seus rins. Morará o lobo com o cordeiro, e o

leopardo com o cabrito se deitará; e o bezerro e o leão novo e o animal cevado

viverãojuntos;eummeninopequenoosconduzirá”32.Parece‐nostambémqueesta

passagemveterotestamentáriaseencontra integralmenterepresentadanoMenino

BomPastor,quehojepertenceàFundaçãodaCasadeBragança(Fig.109).Naparte

posterior,aÁrvoredeJesséabreosseusmúltiplosramoscomoqueprotegendoo

MeninoBomPastor,umpoucoàimagemdafigueiradeBuda,quandoesteatingea

iluminação.Representa,ainda,agenealogiaterrenadeJesus.Notopodaestrutura,

DeusPaieoEspíritoSantosimbolizamagenealogiacelestedoSalvador,queencarna

nasuaduplanatureza.Nesteexemplar,aolongodecadaumdosescalonamentosdo

30Op.Cit.,p.48.31Isaías,11:1‐2.32Isaías11:3‐6.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

207

montesagrado,reinaajustiça,afidelidadeeaharmoniaentretodososanimaisque

partilhamaáguadomesmobebedouro.Estãoaindarepresentados,emcadaumdos

níveis,osprincipaismomentosda infânciadeJesus,atéquechegaomomentoem

queummeninopequenoosconduziráparaaSalvação.

AproliferaçãodasÁrvoresdeJessé,naÍndiaenoCeilão,temquevercomum

paralelofulcralaoníveldo imagináriohinduebudistaque,talcomomuitasoutras

tradições religiosas, encontram uma estrutura sustentada no mito das árvores

sagradas.Aárvore,enquantoelementonatural,fecundoegeradordofrutoque,por

suavez,deitaráasuasementeàterradesencadeandosucessivasgerações,constitui

um dos principais arquétipos mitológicos de várias civilizações. É a metáfora

civilizacional da ordem da descendência e da sucessão geracional. A similitude

formal e conceptual entre a Árvore de Jessé, que culmina com o advento do

Salvador, é claramente reconhecida na imaginária hindu, a partir do mito do

nascimento de Brahma. Tal como do lombo de Jessé nasce a Árvore que dará

dimensãohumanaaJesus,étambémdoumbigodeVishnuquenasceolótusapartir

doqualBrahmairásurgircomoaterceirapessoadaTrimuti,opaideManudoqual

descendemtodososhindus.BrahmaéoDeusdasTrês faces,oquecorrespondeà

Santíssima Trindade. Por outro lado, a Árvore do Bom Pastor está associada à

iluminação de Buda que, depois de sete dias em meditação debaixo da figueira,

atingiuailuminação.

Como já vimos, a tema do Menino Jesus Bom Pastor surge amplamente

representadoatravésdaesculturaebúrneanaÍndiaPortuguesacomoreflexodeum

exemplo demissionação e de propagação da fé entre os Homens, como exemplo

daquele que reconhece os seus seguidores, como estes o reconhecem a Ele. É o

modelo espiritual de uma Igreja Militante que actua numa primeira linha,

convertendo e baptizando os gentios de todo o mundo. Contudo, é interessante

notarqueestemodelonãoétransversalatodasasmissõesnaÁsia,restringindo‐se

integralmente ao universo da Índia Portuguesa e do Ceilão. Enquanto que os

modelosdeinvocaçãodeNossaSenhora,deSantosedaVidaePaixãodeCristosão

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

208

produzidos em marfim, tanto na China como no Japão, o tema doMenino Bom

Pastor circunscreve‐se à Índia e ao Ceilão, certamente como o resultado de um

hibridismoentreoCristianismo,oBudismoeoHinduísmo.

Rafael Moreira e Alexandra Curvelo referem, na esteira de Bernardo Ferrão

TavareseTávora33,queotemadoBomPastordemonstraumcarácterhíbrido,numa

combinaçãoformal,deolhossemi‐cerradoseamãonaface,àimagemdeBudana

PrimeiraMeditação,comosmodelosimportadosdeMalines,queencontraramem

Portugalummercadopróspero,edaquiforamlevadosparaasmissõesdaÁsia.Estas

imagens sofreram algumas transformações que os artistas indianos foram

paulatinamente introduzindo, numa correspondência com as representações mais

comuns de Buda, designadamente ao nível do baixo‐ventre e do tratamento dos

cabelos34.Algunsexemplaresdemonstramatéuma repetiçãoda figura doMenino

napeanha,sentadocomaspernascruzadasemmeditação,sobreoqualseerguem

ramosquesedobramsobreoSalvador.Pensamosqueestaspeçasconstituemum

reconhecimentoe identificaçãode Jesusà imagemdeBuda.Ambos reúnememsi

uma dupla natureza ‐ humana e divina ‐, foram os pregadores da salvação e dos

ensinamentosdeumanovaespiritualidadeeascenderamaouniversocelestepelo

caminhodadevoçãoedameditação.

ÀsemelhançadotemadoBomPastor,as imagensdoMeninoJesusSalvador

do Mundo ou da Vara Crucífera foram amplamente reproduzidas na Índia,

alargando‐seatéaoutrosmateriaisetécnicasparaalémdomarfim,nomeadamente

em cristal de rocha, madeira e outras matérias preciosas, combinadas em alguns

casos com ourivesaria. Seguindo igualmente os modelos importados de Malines,

amplamente conhecidos em várias colecções públicas e privadas, estas imagens

reflectemumaespiritualidaderenovadadadevotiomoderna,que incidesobretudo

33BernardoFerrãoTavareseTávora.ImagináriaLuso‐Oriental.Lisboa:IN‐CM,ColecçãoPresençasdaImagem,1983,p.47.34 Rafael Moreira e Alexandra Curvelo. “A circulação das formas. Artes portáteis, arquitectura eurbanismo”. IN: História da Expansão Portuguesa, coordenada por Francisco Bettencourt e KirtiChaudhuri.Lisboa:CírculodeLeitores,Vol.II,1998,pp.550.

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ArtecristãnaÍndiaPortuguesa

209

numa devoção meditativa e contemplativa suscitando sentimentos de compaixão

pelahumanidadedeDeus.Sãoimagensprópriasdeuma“espiritualidaderefrescante

e amorosa”35 concentradas na humanidade e poder salvífico de Deus. É um tema

particularmente popular no contexto das missões, não só em Portugal como em

Espanha,sendoprofusamentereproduzidonaÍndiaeChinaenasFilipinaseMéxico,

difundindoumsentimentodepiedade36.Trata‐sedeummodeloclássicodaContra‐

Reforma,popularizadopelaDoutrinaPhilosophicadeLudovicoDiasFranco,impressa

emLisboaem1618,naqualagravuradofrontespícioédeDomingosUrbino,pintor

edecoradorespanholquetrabalhouemBadajoz.

Nãopoderemosnegaraforteinfluênciadeumaespiritualidadecontemplativa

ereflexivadadevotiomodernaemergentenaEuropadoséculoXVI,tornando‐se,de

certaforma,numíconedasmissõesedoespíritoproselitistadoexércitoespiritual,

responsável pela propagação da fé no mundo. A iconografia jesuíta elege como

estandarte uma imagem do Menino Jesus Salvador do Mundo na popa de uma

embarcação,queostentaumabandeiracomomonogramadaCompanhiadeJesus.

Contudo, na nossa opinião não podem ser ignoradas as similitudes formais e o

reflexoqueestemodeloencontranaespiritualidadehindu,emparticularnocultoda

infância de Krishna, um dos avatares ou manifestações de Vishnu. Encarnado na

figuradeKrishna,Vishnudesceaomundodoshomensparasetornarnoheróidivino

concedendoalibertaçãodoshomenscontraasforçasdomal.Asnarrativasdavida

deKrishna reportam‐seà fecundaçãovirginalda suamãe, seguidasdaprofeciade

quemataria o Rei Kansa e da fuga que Vasudev teve de prosseguir com Krishna,

atravessando o rio Yamuna, para o entregar aos pais adoptivos. Para além dos

evidentesparalelismosentreonascimentoeinfânciadeJesusedeKrishna,ambos

representam manifestações humanas de um Deus Supremo que procura, desta

35 Rafael Moreira e Alexandra Curvelo. “A circulação das formas. Artes portáteis, arquitectura eurbanismo”. IN: História da Expansão Portuguesa, coordenada por Francisco Bettencourt e KirtiChaudhuri.Lisboa:CírculodeLeitores,Vol.II,1998,pp.550.36MariaHelenaMendesPinto (coord.).DeGoaa Lisboa.Aarte indo‐portuguesados séculos XVI aXVIII.Coimbra:InstitutoPortuguêsdeMuseus,1992,p.64.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

210

forma, restabelecer a ordem do mundo. Este reconhecimento mútuo do Deus

InfanteresultanumareproduçãofértildeimagensdoMeninoJesusBomPastoredo

Menino Jesus Salvador do Mundo como uma plataforma de entendimento e de

sincretismo,naqualasdiscrepânciasculturaissedissipamnoprincípiofundamental

doMeninosalvadordahumanidade.

Em síntese, é interessante notar que a imaginária em marfim produzida

sobretudonaÍndiaenoCeilão,mastambémemoutrasregiõesdaÁsia,constitui,à

luzdahistoriografiamoderna,umatributodohibridismoculturaleartístico,apesar

deseguir,nasuamaioria,modelosimportadosdaEuropa,sejaatravésdagravuraou

de esculturas de vulto. Ao contrário de outras expressões artísticas como o

mobiliário,a imagináriaemmarfimnãodemonstraumapermeabilidadeà inclusão

de figuras da imaginária indiana. Estaremos, talvez, perante a única expressão

artísticaquerepresentaaamplitudeglobaldasrelaçõesculturaiseartísticasentrea

Europa e a Ásia, atendendo, como temos visto neste capítulo, à emergência de

oficinas, centros de produção artística constituída por artistas locais e ao

estabelecimento de mercados artísticos que, em simultâneo, dão resposta às

necessidades dasmissões conduzidas em vários locais da Índia e daÁsia e a uma

procura por parte das elites culturais europeias por estes produtos exóticos. Por

outro lado, representa também uma posição clara dos missionários europeus em

“descubrir [nos textos sagrados hindus] muytas falsidades que nos ajudem para

confundir os que nelas confião”37, levando a cabo, desta forma, uma simbiose

conceptual e formal da iconografia, que resulta numa natural identificação e

reconhecimentodaimagemsagradaporpartedosgentios.

37JosephWicki.DocumentaIndica.Roma:MonumentaHistoricaSocietatisIesu,1956.Vol.IV,pp.204‐205.

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CapítuloIV

Dagravuraàpinturadeálbum.

ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

“Poisladentroemvariassalas[Jahangir]fezpintarnasparedeseforrodellavarias

pinturas dos misterios de Christo Nosso Senhor e d’alguns passos dos Actos dos

Apóstolostiradosdolivrodavidadellesque lhedemos,deS.Anna,deSusannae

outras varias historias, e todo isto he traça do mismo rey sem que ningem lhe

tenhafaladonisso.Temmandadoqueaospadresperguntemquecoreshãodedar

a suas vestituras e que não saião do dito dos padres que por isto tomão por

escritto quando lhes dizemos, e el reymismo escolhe dos registros que tem que

figurassehãodepintareemque lugar,eprimeiromandadebuxarempapelem

figura grande por seus pontores todos os registros que se hão de pintar, e os

padres emtão dizem como se hão de pintar, e tudo isto das pinturas he muito

contrarioa todososmourosquenãopermittem figuras nemaindados seusque

temper santos, quantomaisdosoutros que tem ley contraria, e comquem tem

tanta inimizade.Eoquemaishe,a imagemdeChristoNossoSenhoracolumna,

quehecousaaindamaiscontrariaaosmouros(quenegãotudoquantopertencea

PaixãodeChristoNossoSenhor)”1.

1CartadopadreJerónimoXavierparaopadreProvincialdaCompanhiadeJesusnaÍndia(Agra,24deSetembrode1608). IN:A.daSilva Rego.DocumentaçãoUltramarina Portuguesa. Lisboa:CentrodeEstudosHistóricosUltramarinos,Vol.III,1963,p.126.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Enquanto na região deGoa se consolidava o Estado Português da Índia e se

delineavamas estratégias demissionação naÁsia, Zahir ud‐dinMuhammadBabur

obtinhaocontrolonaÍndiaSetentrional,porvoltadadécadade1520.Descendente

dolendárioconquistadordaÁsiaCentral,AmirTimur,etambémdeGenghisKhan2,

Babur inicia na Índia, durante o início do século XVI, a longa e próspera dinastia

Mogol.ApesardosimperadoresMogóislançaremsobreaÍndiaaherançaislâmicae

turco‐mongol das dinastias Timúrida e safávida, é notável a sua tolerância e

permeabilidade na proximidade com outras realidades culturais e religiosas. Da

mesma forma que Genghis Khan e o seu filho Ogodei receberam na sua corte os

missionáriosfranciscanos,tambémHumayuneosseussucessores,AkbareJahangir,

viriam,duranteoasegundametadedoséculoXVIeiníciodoséculoXVII,areceber

osmissionáriosjesuítaseoutrosemissáriosparadiscussõessobrereligiãonoIbādat

Khāna(CasadeDevoção),nopalácioimperialemFathepurSikri.

A documentação coetânea ao reinado de Humayun é reveladora de uma

relação próxima entre o Ocidente e a corteMogol, fazendo referência de têxteis

europeus que aí chegavam através de rotas comerciais3, muito provavelmente,

pensamosnós,atravésdoLevante.GauvinAlexanderBailey reforçaa ideiadeque

Humayunpoderátercoleccionadopinturaeuropeia,atravésdeumtextodojesuíta

FernãoGuerreiro, traduzidoporEdwardMacLagan.O textodescrevea reacçãode

Akbar quando os jesuítas destapam uma pintura da Virgem, afirmando “meu pay

estimavamuytohuacousacomoesta,queaquem lhadera fizeramercede tudoo

que lhe pedira”4. Todavia, a nosso ver, parece‐nos mais provável que Akbar se

2HumayunamaporGul‐Badan Begam, editedbyAnnette Beveridge. London:RoyalAsiatic Society,1902,p.1.3MiloClevelandBeach.TheNewCambridgeHistoryofIndia.MughalandRajputpainting,Cambridge:Cambridge University Press, 1992, pp. 55. Mais tarde, Gauvin Alexander Bailey vai mais longe aosugerir,combasenoestudodeBeach,quealémdastapeçariasteriamchegadogravuras impressascom temas bíblicos. Gauvin Alexander Bailey.Art on the Jesuit missions in Asia and Latin America,1542‐1773.Toronto:UniversityofTorontoPress,1999,p.114.4 Relaçam annal das covsas que fezeram os padres da Companhia de Iesvs nas partes da ÍndiaOriental, & em alguas outras da conquista deste reyno no anno de 606. & 607. & do processo deconuersão,& Christandadedaquelaspartes, tiradadas cartasdosmesmospadresque de lá vierão:

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

213

estivesseareferiràpinturaenquantoexpressãoartísticaenãoàpinturaenquanto

iconografia cristã, uma vez que sabemos que Humayun era um apreciador de

pintura, tendo trazido da corte safávida de Shah Tahmasp, onde esteve no exílio,

váriosartistas,entreosquaisospintoresMirSayyidAlieAbdas‐Samad.Foramestes

pintores que deram seguimento à tradição da pintura safávida Iraniana na Índia e

quemarcamopontodepartidaeconfluênciadeondeemergiuoestiloMogol5.

DiogodoCouto,nasDécadas, fazumadescriçãodeumpresumívelencontro

de Humayun com a imaginária cristã, ainda antes da presença dos missionários

jesuítasnacortedeAkbar.Descrevecomoumportuguês,chamadoCosmoCorrea,

peranteoimperadorHumayun,seapercebeuqueesteReidasterrasdeMogorera

conhecedordasestóreassagradasquandolhemostrouumlivrodehorasdeNossa

Senhora.“NestajornadaseachouumportguêschamadoCosmoCorrea,casadoem

Chaul,commulherefilhos,queaindavivem,queporespancardehumFeitor,fugio

para Cambaya, e dali se passou para a corte doMogor: este homem dava desta

jornadamuitoboa razão, por ser homemavisado, e de quemoMogor foi grande

amigo. Contava delle muitas cousas, antre ellas dizia: “que estando hum dia

praticandocomelle,lhepedioquelhemostrasseolivroporonderezava,quelheelle

mandouvir,queeramumasHorasdeNossaSenhora,daquellasantigasdequarto,

illuminadas todas: abriu‐as El‐Rey, deo logo no começo dos sete Psalmos, onde

estavaahistóriadeDavidcomBersabeth,illuminada,egrande,quetomavatodoo

quarto.EestandoEl‐Reyvendo,disseaCosmoCorrea:Quemedarás,seteadivinhar

estahistória?CosmoCorrea lherespondeu,quetinhaellequedarahumtamanho

monarca.Dá‐meatualança,disseoMogor,(queerahumadePortugal,)senãoeute

darei uma cabeça de humporcoMontez, que diante de timatarei; e com isto lhe

contouahistória,assimcomoatemosnaEscritura.”Edando‐lheo livro, lhedisse:

“que lhemostrasse os quatro homens, que escreveram a lei dos cristãos.” Cosmo

Correa lhe mostrou os Evangelistas que estavam iluminados nos começos das pelopadreFernãoGuerreirodaCompanhiadeIesvsnaturaldeAlmodovardePortugal.LivroIII,Cap.III.ImpressoemLisboaem1609,p.226.5MiloClevelandBeach.EarlyMughalPainting.Cambridge:HarvardUniversityPress,1987,pp.8e9.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Paixões,queEl‐Reyestevevendodevagar;edepoislhedisse:“Orasabehumacousa,

que muitas vezes ouvi dizer a meu pai Babur Paxá, que se a lei de Mafamede

padecessedetrimento,quenãorecebessenenhumaoutra,senãoaquella,queforam

escritaporquatrohomens”6.

Todavia, a narrativa de Diogo do Couto deve ser entendida com algumas

reservas. Sendo presumível a possibilidade de Humayun ter visto o livro de horas

iluminado,parecem‐nosexageradasaspalavrasdeBabur,aoseufilhoHumayun,em

relaçãoaoCristianismo.Poroutrolado,anossover,estadescriçãocontémachave

para o entendimento do interesse especial dos imperadores mogóis pelo

Cristianismo.OfactodeHumayunconhecerahistóriadeDavideBersabethprende‐

secomofactodeestaserumahistóriacomumàsreligiõesabrahamicas, istoé,ao

Cristianismo, ao Judaísmo e ao Islamismo. A nosso ver, é o reconhecimento de

algumasdasnarrativasedaspersonagensquesãoentendidascomoderivaçõesda

tradiçãoislâmicaqueactuacomoumaespéciedeespelhoinvertido.

As políticas expansionistas de Humayun, logo após ter subido ao trono em

1530,concentravampretensõesnasprovínciasmarítimasnoGujarateemBengala,

ondeenfrentouocrescentepoderdoSultanatodoGujaratlideradosporSherShah

Suri, no Norte da Índia7. Sher Shah Suri era apoiado pelos portugueses que aí

pretendiamestabelecerumentrepostomilitarecomercial,naligaçãocomOrmuz,e

controlarasrotascomerciaisqueseguiampeloMarRoxoepeloMarVermelho.Por

outro lado,osportuguesesnegociavamapaze faziamaguerracontraoSamorim,

erguendo fortalezas sobre os escombros das mesquitas destruídas. Numa das

investidas militares de Humayun no Gujarat, em 1534, o Sultão Bahadur Shah

recorre ao apoio militar dos portugueses, entregando em troca Baçaim e outros

territórioseilhasadjacentesdeBombaimatéDamãoeaindadáautorizaçãoparase

6DaAsiadeDiogodoCouto,dos feitos,queosportugueses fizeramnaconquista, edescubrimentodasterras,emaresdoOriente.DécadaIV,LivroVIII,Cap.IXLisboa:Narégiaoficinatypográfica,1780,260‐262.7MuzaffarAlam eSanjaySubrahmanyam. “AexpansãomogolnoDecão,1570 ‐1605:perspectivescontemporâneas”. IN:Goa e o Grão‐Mogol, coordenação de NunoVassallo e Silva e JorgeManuelFlores.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,2004,p.16.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

215

estabeleceremeelevarem fortalezaemDiu8.A regiãodoGujaraté,de facto,uma

plataformadealiançasvoláteiseavançoserecuosentreoapoiodosportuguesesa

SherShahSurieBahadurShah,astentativasdeNunodaCunhaeDiogodaSilveira

paracontrolarosportosdeDiueBaçaimeasintençõesexpansionistasdeHumayun.

Osportuguesesoscilavamentreosacordosde paz comoSamorimnoapoio

contraoImperadorMogol,atrocodocontrolodealgunsdosportoscomerciaisdo

Gujarateassucessivastraições,assassinatosedestruiçãodemesquitasemterrasdo

Samorim. No ano seguinte à assinatura do tratado e dissipada a ameaça mogol,

Bahadur Shah volta as suas hostilidades contra os portugueses e pretende reaver

Diu. Na sequência destes acontecimentos os portugueses são acusados de ter

assassinado Bahadur Shah, largando‐o no Mar Arábico9, conforme ilustra uma

pinturamogoldoiníciodoséculoXVII.

Em1545,Humayun,queseviraobrigadoaprocurarrefúgiono Irãosafávida,

regressaaKabul,apósamortedeSherShahSuri,tirandopartidodofracogoverno

de Islam Shah Suri e do declínio da influência do Sultanato do Gujarat. Impõe a

derrota sobre todos os seus irmãos em 1555, conseguindo conquistar Deli e os

territóriosaNortedaÍndia,consolidandooImpérioMogoldeforteinfluênciapersa.

Pouco tempo depois, em 1556, Akbar sucede a Humayun com apenas treze

anos segurando uma herança imperial subitamente interrompida com a morte

acidental deHumayun. Iniciou campanhasmilitares subjugandoos reis Rajputes e

estendeu o Império a Ocidente, no Gujarat, entre 1572 e 1573, capturando os

importantesportosdeCambaiaeSurat10,assegurandoocomércionoMarArábico

8DaAsiadeDiogodoCouto,dos feitos,queosportugueses fizeramnaconquista, edescubrimentodas terras, emaresdoOriente. Década IV, Parte II, Livro IX,Cap. II, V, VII, X. Lisboa; RégiaOfficinaTypografica, 1778;História dos portugueses noMalabar por Zinadim, introdução e notas de DavidLopes. Lisboa:Antígona,1998,p.81;Cf. Luís FilipeThomaz. “OExtremoOrienteeoOcidente”. IN:HistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques.1ºVol.TomoI‐EmtornodeMacau.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,p.96.9 História dos portugueses no Malabar por Zinadim, introdução e notas de David Lopes. Lisboa:Antígona,1998,pp.80‐81.10AkbarnamaporAbu’l‐Fazl,editedbyH.BeveridgeCalcutta:RoyalAsiaticSociety,1897,VolII,pp.58‐75.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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comosOtomanos.

DepoisdeconsolidaroseuImpério,Akbardedicou‐seaumareafirmaçãodos

valoresculturaisprofundamentepermeáveisàdiversidadeétnica,religiosaecultural

doHindustãoSetentrional.AconstruçãodopalácioemFathepurSikri,apartir1571,

revela uma intenção clara de formar uma elite cultural com dependências que

permitiam terporpertomembros importantesdacorte,o funcionamentodeuma

escola de pintores e outros artistas11 e o Ibādat Khāna, destinado ao debate de

temasreligiosos12.Aíreuniurepresentantessunitas,sufi,hindus,cristãosarménios,

zoroastras e jainistas, aos quais se juntaram, a partir de 1578 ‐ 1580, brâmanes e

cristãoscatólicos13.

AkbaréconsideradooverdadeirofundadordoImpérioMogol,namedidaem

que define não só os limites do território,mas, sobretudo, por ter dado origema

uma arte e a uma identidade cultural mogol, que resultou igualmente de uma

simbiose entre a arte do livro e da miniatura persa, a arte europeia e a pintura

Rajput.

A arte europeia, introduzida pelosmissionários jesuítas na última década do

séculoXVI,foifundamentalparaaconstruçãodeumaidentidadeartísticadapintura

mogol, com consequências não só ao nível da técnica, ou da representação de

determinadostemasmastambémaoníveldeumarecontextualizaçãodesímbolos

associadosaopoderdecomunicaçãodasimagens.

Nestecontexto,distinguimostrêsníveisdeconfluênciaartísticaentreapintura

europeia e a pintura mogol. Primeiro, ao nível da técnica, com a introdução da

perspectiva, embora intuitiva, provocou uma forte alteração dos espaços de

representação, dando‐lhe profundidade na criação de diferentes planos onde

11SusanStronge.“ATerradoMogor”.IN:GoaeoGrão‐Mogol,coordenaçãodeNunoVassalloeSilvaeJorgeManuelFlores.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,2004,p.137.12Milo Cleveland Beach.The imperial image. Paintings from theMughal Court.Washington: FreerGalleryofArt,1981,p.16.13 SobreosdebatesverEdwardMaclagan.The Jesuits& theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.29‐32.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

217

decorre a narrativa. A utilização das técnicas de sfumato e a importância que o

retrato teve a partir do reinado de Akbar, mas, sobretudo, durante o tempo de

Jahangir, introduziramumanovadinâmicaemtermosdepoderda imagematravés

de uma ilusão do real. Este gosto pela ilusão do real reflecte‐se num conjunto de

pinturasdoDurbar(audiênciareal)deJahangirondeserepresentaumapinturade

paisagemparcialmentecobertaporumacortina.Tantoapinturadentrodapintura,

como a ilusão do real e a noção de narrativa numa categoria demomento14 são

adoptadasdeformaacriarumaemoçãodeespanto,êxtaseedeslumbramentoque

oimperadorpodeproporcionaraosseuscortesãos.

Num segundo nível, o interesse que Akbar e Jahangir demonstraram pela

pintura europeia e pelas verdades da lei do Cristianismo resultou numa prolífera

produçãoereproduçãodeálbunsdepinturaapartirdemodelosdepinturaaóleo

oudegravurasimportadasdaEuropapelosmissionáriosjesuítas.Umextensocorpo

de artistas ao serviço do imperador reproduziram mimeticamente gravuras

europeias que serviam para ilustrar as traduções em Persa dos evangelhos e de

outraliteraturasagradadabibliotecarealou,poroutrolado,eramrepresentadasde

formaavulsaemcercadurasdefólioscompoemasdelendáriosascetassufis.

Finalmente,numterceironível,pintorescomoAgaRiza,Abu’l‐HasaneBichitr

desenvolvem,duranteo reinadode Jahangir,umapinturade retratosdinásticose

alegóricosapartirdeumléxicosimbólicointroduzidopelapinturaeuropeia.

No nosso estudo interessa‐nos, de forma particular, discorrer sobre a

reprodução, produção e recriação de temas cristãos e da correlação com outros

temasanálogosno islamismoe tambémsobrea recontextualizaçãode símbolose

princípiosuniversaiscomvistaàexaltaçãodoimperador.

14Sobreasquestõesrelacionadascomascategoriasdeespaço‐tempofigurativoedanarratividadenapinturado renascimentoveja‐se LewisAndrews.StoryandSpace in Renaissanceart. The rebirthofcontinuous narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 1995 e Fernando António BaptistaPereira. Imagens e Histórias de Devoção ‐ Espaço, Tempo e Narrativa na Pintura Portuguesa doRenascimento (1450‐1550). Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Belas Artes daUniversidadedeLisboa,2001.

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1. OsprimeiroscontactoscomosportugueseseasmissõesjesuítasàcorteMogol

duranteosreinadosdeAkbar,JahangireShahJahan(1580‐1658)

DuranteocercoaSurat,em1572,Akbarteveoprimeiroencontrodirectocom

osportugueses1,enquantotentavammanterosportosdeDiueCambaiaperanteas

investidasmilitaresdosOtomanos,quesehaviamaliadoaosSenhoresdeCambaia2.

Em1573,chegouaSuratumgrandenúmerodecristãosdoportodeGoa,que

entregou curiosidades e coisas raras para oferecer ao imperador3. Esta embaixada

dos portugueses, liderada por António Cabral, procurou estabelecer relações

diplomáticas com o ImpérioMogol, por um lado, num estreitamento de relações

com vista à continuidade da manutenção dos entrepostos comerciais em Diu e

Ormuz e, por outro lado, por se acreditar que Akbar poderia dar continuidade à

herançacristãdeGenghisKhan.DiogodoCoutoteceumainteressantehistóriados

“Mogores”que remontaaGenghisKhancomo fundadordeumadinastia cristãna

ÁsiaCentral,queaindaencontravaassuasreminiscênciasnoHindustão4.

Aindaantesdaprimeiramissãojesuítaem1580,osportuguesesvisitavamcom

frequência a corte imperial onde eram recebidos com apreço por Akbar, que se

interessoude imediatopelareligiãodos firangis.Por intermédiodePedroTavares,

1EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.23‐25;SusanStronge.“ATerradoMogor”.IN:GoaeoGrão‐Mogol,coordenaçãodeNunoVassalloeSilvaeJorgeManuelFlores.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,2004,p.136.2DaAsiadeDiogodoCouto,dos feitos,queosportugueses fizeramnaconquista, edescubrimentodasterras,emaresdoOriente.DécadaIV,ParteII,LivroVII,Cap.II,IV,V,XIII.Lisboa;RégiaOfficinaTypografica,1778.3AkbarnamaporAbu’l‐Fazl.,editedbyH.Beveridge.Calcutta:RoyalAsiaticSociety,1897,VolIII,pp.37.4DaAsiadeDiogodoCouto,dos feitos,queosportugueses fizeramnaconquista, edescubrimentodas terras, e mares do Oriente. Década IV, Parte II, Livro X, Cap. I e II. Lisboa; Régia OfficinaTypografica,1778.

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GilEanesPereirafoioprimeiropadrecristãoachegaràcorteemFathepurSikri,em

1578. Vindo de Bengala, Gil Eanes Pereira dedicou‐se a demonstrar a Akbar as

falsidades do Islamismo e falou ao imperador sobre os missionários jesuítas do

ColégiodeS.PauloemGoa, oquedeverá termotivado o interessedo imperador

sobreoCristianismo5.

Em1579,chegouaGoaumaembaixadaquetinhaDominguesPires,umcristão

arménio,comointérprete,comumacartadirigidaaoVice‐ReidaÍndiaeaospadres

daCompanhiade Jesus, solicitandoque fossemenviadosdoispadreseruditosque

deveriamlevarconsigoosmaisimportanteslivrosdaLeiedosEvangelhosparaque

Akbarpudesse“aprendereestudaraLeieoquehádemelhoremaisperfeitonela”6.

Noanoseguinte,chegouaFathepurSikriaprimeiramissãojesuíta,constituída

pelo padre jesuíta italiano Rudolfo Acquaviva, o espanhol António Monserrate e

FranciscoHenriquez,esteúltimodeorigempersanaturaldeOrmuzequeintegroua

embaixada com o propósito de ser intérprete damissão. Osmissionários jesuítas

levavamconsigooobjectivodeconverterAkbaredeespalharoCristianismoentre

os seus súbditos, juntamente com livros, alguns dos quais ilustrados7, gravuras de

PhilippGallyeversõesdofinaldoséculoXVIdaPequenaPaixãoedaVidadaVirgem

deAlbrechtDürer. Levaramainda um retábulo daVirgema óleo, umapintura de

Cristo e cópia de uma pintura da Virgem e o Menino pintada pelo pintor jesuíta

Manuel Godinho, que havia copiado do original enviado de Roma para Goa em

15788.Aochegaremàcortemogol,em1580,ofereceramao imperadorumacópia

5 Edward Maclagan. The Jesuits & the Great Mogul. Haryana: Vintage Books, 1990, pp. 23 ‐ 24.Maclagan identifica o padre vindo da missão em Bengala como sendo Julian Pereira, muitoprovavelmenterecorrendoaorelatodoJesuítaPierreDuJarric.AkbarandtheJesuits:anaccountoftheJesuitMissionstotheCourtofAkbar,translatedwith introductionandnotesByC.H.Payne.NewDelhi:AsianEducationalServices,1996,pp.14‐23.6Cit.apartirdeEdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.24.7ThecommentaryofFatherMonserrate,S.J.onhisjourneytothecourtofAkbar,translatedfromtheoriginal latin by J. S. Hoyland; annotated by S. N. Banerjee. Reprint. New Delhi: Asian EducationalServices,1992.8ApinturaquechegouaGoa, levadaporRudolfoAcquaviva,éumacópiadapinturaatribuídaaS.LucasqueseconservanaCapeladaIgrejadeSantaMariaMaggioreemRoma.Essacópiafoimandada

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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daBíbliaPoliglota,impressaporChristophePlantyn,entre1569‐1572,quecontinha

ilustraçõesdegravurasdepintoresflamengosdaescoladeQuentinMetsys9.

Se, por um lado, Akbar se deixou fascinar pelas imagens e pinturas cristãs

vindasdeGoaedaEuropa,revelandosempregrandereverênciaeseriedadeperante

a componente sagrada e ritual que essas imagens representam, por outro lado, o

imperadormogolnuncacedeuàstentativasdeconversãodosmissionáriosjesuítas.

Apesarderetiraroturbanteperanteumapinturadavirgemebeijá‐la10,pedirque

estas imagensdevocionais cristãs fossemcolocadasnos seusaposentosprivadose

ordenar aos seus pintores que executassem reproduções destas imagens, Akbar

nuncamostrousinaisdeumverdadeirocomportamentocristão,mantendotodasas

suasconsorteserejeitandosempreasdoutrinasdaTrindadeedaEncarnação.Por

outro lado, a rebelião popular que despoletou em Bengala e em Kabul e ainda a

oposição dos muçulmanos relativamente à acção dos missionários jesuítas em

FathepurSikriditouaruínadamissãoedasaspiraçõesdeconversãodoimperador.

Peranteestecenário,enquantoRudolfoAcquavivaficouemAgraaté1583,opadre

Francisco Henriquez partiu para Goa nos primeiros meses de 1581, o padre

MonserrateregressouaGoaem1582,comoobjectivodeconduzirumembaixador

mogolparafelicitarFilipeII,masnoentantoficaramretidosdevidoàmonção11.

Em 1590, Akbar voltaria a escrever ao Provincial de Goa e aos padres da

Companhia de Jesus solicitando que fossem enviados missionários à sua corte. A

carta chegouaGoapelasmãosdeLeoGrimon, umsub‐diáconogregoquepassou

pela corte de Akbar no regresso à Europa através de Goa12. No ano seguinte,

executarporFranciscodeBorgia,compermissãoexplícitadoPapaPioV.Cf.EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp227‐228.9Op.Cit.,pp225‐226.10ThecommentaryofFatherMonserrate,S.J.onhisjourneytothecourtofAkbar,translatedfromtheoriginal latin by J. S. Hoyland; annotated by S. N. Banerjee. Reprint. New Delhi: Asian EducationalServices,1992.11EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.51‐52.12 Richard Burn (ed.). The Cambridge history of India ‐ TheMughul Period, Cambridge: CambridgeUniversityPress,Vol.4,1937,p.139.VeroframandeAkbarpublicadoemportuguêsporJorgeFlores

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partiramdeGoaparaLahore,ospadresDuarteLeitão,ChristovaldeVegaeoirmão

leigoEstêvãoRibeiro.

Noentanto,estamissãoencontrouumaforteoposiçãodentrodaprópriacorte

imperialpercebendo logoàpartidaqueAkbarnãotinha intençõesdeseconverter

ao Cristianismo, tendo a missão terminado logo no ano seguinte, depois de

estabeleceraprimeiraescoladeensinojesuíta.

Em 1594, Akbar voltou a enviar um emissário a solicitar a presença de

missionáriosjesuítasnasuacorte.Peranteossucessivosfracassosnaconversãode

Akbar ao Cristianismo, o Vice‐Rei Matias de Albuquerque entregou a decisão ao

ProvincialdeGoaquenomeouJerónimoXavier,sobrinho‐netodeFranciscoXavier,o

padreManuelPinheiroeoIrmãoBentodeGoes,ambosnascidosnaIlhadosAçores.

Comelespartiu,emDezembrode1594,deGoaparaDamãoeCambaiaumpintor

portuguêscomoobjectivodeexecutarpinturaparaoferecerao imperadormogol.

Osmissionários jesuítas chegaramà cortemogol emMaio de 1595 onde, durante

cerca de vinte anos, afluíram outrosmissionários com o objectivo de converter o

Imperador.

Nestamissãodestaca‐seaacçãodopadreManuelPinheiroque,pelaprimeira

vez, volta a sua atenção para os súbditos, saindo da esfera da corte imperial e

aproximando‐sedascomunidades locaistalcomosefaziaemGoa,sendo,por isso,

apelidado, entre os seus pares, de “OMogol”. A sua acçãomissionária junto das

comunidades locais tornou‐semais evidente, sobretudo, após a partida de Akbar,

em 1598, para invadir o Decão, tendo o padreManuel Pinheiro sido deixado em

Lahore,onderecebeuapoiodosūbadārlocal,umaespéciedegovernador.Contudo,

apósamortedosūbadār,opadrePinheirofoiforçadoaabandonarosterrenosque

haviam sido concedidos por Akbar e foram confiscados todos os bens dos

missionários.

No final do ano de 1600, uma vez que Jerónimo Xavier e Bento de Goes

eAntónioVasconcelosSaldanha.OsfirangisnachacelariaMogol.CópiasportuguesasdedocumentosdeAkbar(1572‐1604).Lisboa:EmbaixadadePortugal,NovaDeli,2003,p.73.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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acompanhavamoImperador,chegouaLahoreopadreFrancescoCorsiparaapoiara

missão.OclimaemLahoreeracadavezmaisadversoperanteaausênciadeAkbar,

sendo a antipatia do novo sūbadār alimentada pelos hindus que acusavam os

cristãosdecanibalismoedelevaremascriançasparaseremvendidasemGoaeem

outras possessões portuguesas na Ásia. Estas intrigas com os hindus surgiram na

sequênciadeos jesuítas teremocupadoas suas casasedenunciarema práticade

infanticídioconduzidapeloshindus13.Muitoprovavelmente,osmissionáriossónão

terão sido assassinados pelo sūbadār por receio deste a Akbar, que tinha os

europeusemelevadaconsideraçãoeprotecção.

Éinteressantereferirqueapresençadosmissionáriosjesuítasnacortemogol,

em particular durante a terceira missão, oscilou permanentemente entre a

protecção Imperial e a perseguição, apropriação de propriedades e bens e a

cativação de missionários14. Apesar da protecção aos missionários cristãos, o

ImperadorMogol continuava a não revelar qualquer intenção de se converter ao

Cristianismo.

Porumlado,osdebatessobrereligiãojáhaviamperdidoasuaintensidadeeo

próprioimperadorevitavafalarsobreassuntosdereligião,argumentandoqueafalta

de domínio da língua Parsi por parte dos missionários poderia resultar num

desentendimento teológico. Akbar tinha certamente outros interesses de carácter

estratégicoparamantervivaaesperançadosjesuítasedeFilipeInaconversãodo

Imperador.

Em1598,duranteainvasãodoDecão,paraSuldaPenínsulaHindustânica,na

conquista dos Sultanatos de Ahmadnagar e Khandesh, Akbar solicitou a Jerónimo

XaviereaBentodeGoesqueescrevessemumacartaaosportuguesesquehaviam

13EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.60‐61.14 Relaçam annal das covsas que fezeram os padres da Companhia de Iesvs nas partes da ÍndiaOriental, & em alguas outras da conquista deste reyno no anno de 606. & 607. & do processo deconuersão,& Christandadedaquelaspartes, tiradadas cartasdosmesmospadresque de lá vierão:pelopadreFernãoGuerreirodaCompanhiadeIesvsnaturaldeAlmodovardePortugal.LivroIII,Cap.III.ImpressoemLisboaem1609,pp.139‐143.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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conquistadoChaul, pedindo armas e apoiomilitar. Dois anosmais tarde, ordenou

umaembaixadaaGoaacompanhadaporBentoGoescomoobjectivodereforçara

presençademissionáriosnacortedeAkbar,mastambémcomumpedidodealiança

política.

Por outro lado, em 1598‐1599, após os missionários terem recebido

autorizaçãoimperial,foiconstruídaumaigrejaque,rapidamente,setornoupequena

pararecebertodososcristãosdaquelacongregação,tendosidoampliada,em1604,

comoapoiodopríncipeSalim, futuro imperador Jahangir. Todavia, logoem1635,

frutodeumasucessãodeacusações,perseguiçõesaos cristãoseguerradeclarada

deShahJahanaosportugueses,aigrejafoidemolida.

O príncipe Salim, no seguimento de Akbar, desenvolveu a partilha de

conhecimentoeointeressepeloCristianismo,fazendo‐seacompanharpelospadres

daCompanhiadeJesuseassumindo‐se,juntodeJerónimoXavier,comoumdevoto

deJesusCristoedaVirgemMaria.Em1592,duranteoperíodoemqueserevoltou

contraAkbar chegouapediraoVice‐Reida Índiaqueenviasseumamissão jesuíta

exclusivamenteparasi.Recebeudosmissionáriosváriaspinturaselivrostraduzidos

para Persa com iconografia cristã, motivo pelo qual não só apoiou as obras de

ampliaçãoda igrejadeAgra, como também fezquestãoqueo seupróprio retrato

fosse colocado no seu interior para ser recordado enquanto os devotos rezam a

Deus15.Jahangircrioutodasascondiçõesparaaconstruçãodeumaoutraigrejaem

Ahmedabad e de um cemitério em Lahore, dando ainda consideráveis somas em

dinheiro aos missionários jesuítas para manutenção da missão, permitindo,

claramente,queaproduçãodeimagenscristãssetornassemaisevidente.

Durante os primeiros anos do reinado de Jahangir, os avanços e recuos da

missão jesuíta emAgra persistem. Por um lado, o Imperador concede autorização

quealgunsdosseussobrinhosrecebameducaçãocristãdopadreCorsie,maistarde,

15 Carta de Jerónimo Xavier. British Museum, Marsden MSS. Assl., 9854, fol. 165. Cit a partir deEdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,pp.70.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

225

quefossempublicamentebaptizadosporJerónimoXavier16.Poroutrolado,opadre

Fernão Guerreiro, na sua Relaçam, dá conta das perseguições dos Vice‐reis de

Lahoreeàsduascriançascristãsqueforamforçadasa“fazerem‐semouros”17,mas

que assimque Jahangir teve conhecimento dasperseguições aos cristãos ordenou

queosūbadārdesse50rupias,emcadamês,adoispadreseaindamais30rupias

paraaIgreja18.Apesardesteclimainstável,énotáveloregistodeFernãoGuerreiro

sobreacelebraçãodaPáscoade1607referindoqueJahangirantesdasuapartida

para Kabul recebeu um Evangelho escrito em Parsi e “ficaramos padres com sua

licença,&emtantaquietaçamatendendoaseuaproveitospiritualcomonumquieto

collegio,recolhendosetodosafazerosexercícioshuasomana,&festejandocõseus

Christãos a seus tempos as festas da Igreja, &memoria da paixam de Christo N.

Senhor, como tem por costume acrescentando de nouo este anno quinta feira de

endoeçashuaprocissamdedisciplinantespollarua(...).Outroquenuncaforaaterra

dos Christaõs, sahio sem se saber quem o ensinara com hua traue amarrados os

braçosemfiguradecruz,sahiopoispostaemordemaprocissamcomhumcrucifixo,

& junto os meninos cantando as Ladainhas, estava a rua cheia de gentios que

pasmavam de ver aquelle tam nouo spectaculo, tremiam vendo correr o sangue

voluntariamentetirado,&desejososdeveremqueaquiloparauasehiamtambem

apos a procissam que com muyta devoçam, & consolaçam dos Christaõs, & dos

padresdeusuavolta,&serecolheoficandoosChristaõsmuyaluoraçadosperanos

seguintesannosmuytomaisseesmerarem”19.Nodiaseguinte,realizou‐seumanova

procissão saindo uma imagem do Menino Jesus vinda de Portugal perante

“innumerauel gente que a ver tal nouidade se ajuntou, entre a quoal tam

16Op.Cit.,pp.72.17 Relaçam annal das covsas que fezeram os padres da Companhia de Iesvs nas partes da ÍndiaOriental, & em alguas outras da conquista deste reyno no anno de 606. & 607. & do processo deconuersão,& Christandadedaquelaspartes, tiradadas cartasdosmesmospadresque de lá vierão:pelopadreFernãoGuerreirodaCompanhiadeIesvsnaturaldeAlmodovardePortugal.LivroIII,Cap.III.ImpressoemLisboaem1609,pp.151.LogodeseguidaFernãoGuerreironarraalgunsepisódiosdepessoasqueseconverteramaoCristianismo.18Op.Cit.,p.159.19Op.Cit.,p.157.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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seguramente continuauamaquelles poucos Christaõs sua deuoçam,&memoriade

TriumphodeChristo,comoseviveramemterrasdeReysmuyCatolicos,&namentre

tantosMouros,&Gentiosquetantodesejauamdeosvercõsumidos”20.

AprosperidadedoCristianismonaÍndiaMogol,duranteotempodeJahangir,

reflecte‐se na ampliação da igreja, na conversão dos príncipes mogóis, no

crescimentosignificativodemissionáriosenumamaiorproduçãodeimagenscristã

emAgra,FathepurSikrieemLahore.

Todavia, entre 1613 e 1615, a influência que os ingleses vinham ganhando

dentrodacortedeJahangir,pelaacçãodeSirThomasRoe,somando‐seàinimizade

com os jesuítas e com os portugueses, resultou em tensões e conflitos entre os

portugueses e Jahangir, com o embargo ao comércio no porto de Damão, o

encerramentodasigrejasdeAgraeLahoreeaexpropriaçãodosmissionários21.Após

Jahangirassumirquenãopretendiafazercomérciocomosingleseseholandesesfoi

celebradaapazcomosportugueses,voltandotudoànormalidade,sendorestituídos

osbensdosjesuítasereabertasasigrejas.OverdadeirocrescimentodoCristianismo

naÍndiaMogolduranteoreinadodeJahangircontrastabrutalmentecomoperíodo

subsequente,comasubidaaotronodeShahJahanem1627.

ShahJahanassumiuumaatitudedeortodoxiamuçulmana,nãodemonstrando

qualquertolerânciacomosjesuítasouatécomosportuguesesdeBengala,iniciando

uma série de ataques que culminaram com a captura de Hughli e a expulsão dos

portugueses deste porto em1632, tal comoé descrito por umpintor anónimoda

corte imperial, numa pintura que se conserva na Biblioteca Real em Londres. É

notável o detalhe desta pintura que ilustra a forma como os portugueses foram

cercados, por terra e pormar, na representação de uma igreja e dos portugueses

que carregam uma embarcação com os seus bens dentro de caixas, enquanto o

edifício é consumido pelas chamas. Esta pintura, inserida no álbumPadshahnama

(CrónicadoReidoMundo), referenteao reinadodo imperadorShah Jahan, ladeia

20Op.Cit.,p.158.21EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,p.82.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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uma outra pintura que representa os portugueses na condição de emissários a

prestar vassalagem, trazendo ofertas durante o Durbar (audiência real). A

representaçãodosportuguesesnaparteinferiordacomposição,emcontraposiçãoà

zonasuperiorecentraldapintura,ocupadaporShahJahan,evidenciaasubjugação

dograndeimpériodoOcidenteperanteoImpérioMogol.

AsmissõesjesuítasnaÍndiaMogoltiveramcontinuidade,peseemboraoédito

publicadoporShah Jahan,queproibiaos jesuítasdeconverteremas comunidades

muçulmanas. De forma natural, a influência dos jesuítas na corte mogol perdeu

intensidade, circunscrevendo‐se ao funcionamento do Colégio e à esperança de

poderpermaneceremAgra.

Durante o reinado deAurangzeb, foi publicada uma lei que proibia todos os

gentios de se converterem a qualquer outra religião que não fosse o Islão. A

intolerânciareligiosaeaortodoxiamuçulmanadeShahJahaneAurangzebapertouo

cerco à missão jesuíta, acrescendo ainda o facto de a utilização de imagens, em

particular de estatuária, se tornar uma ofensa e ainda da implementação de um

imposto(jazia)atodososhomensadultosquenãoprofessassemo islamismo,sob

penadeseremforçadosaconverterem‐se22.Apesardetodasestascircunstâncias,as

missões jesuítas na Índia Mogol persistiram até 1759, mantendo as igrejas em

Narwar, Jaipur,AgraeDelhi atéàpublicaçãododecretodoReiD. Joséqueditaa

expulsãodosjesuítasdosdomíniosportugueses.

22Op.Cit.,p122‐123.

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2. Areprodução,produçãoerecriaçãodeiconografiacristãnasoficinasdepintura

dacorteMogol

Osmissionárioscristãoschegaramàcortemogol,apedidoexpressodeAkbar,

com o objectivo de ensinar ao GrãoMogol o que de melhor há no Cristianismo.

Desde as primeirasmissões na Índia, no Japão e,mais tarde, na corte imperial da

China,ospadresdaCompanhiadeJesususaramas imagenscristãscomoumadas

ferramentas fundamentais para a difusão do Cristianismo. A ideia da imagem

enquantolinguagemuniversal,quecontornaasbarreirasdacomunicação,associada

ao interessenaturalpeloexotismoqueas técnicasartísticaseuropeias suscitaram,

sobretudojuntodaselitesculturaisepolíticasnaÁsia,resultaramnumaprofusãode

iconografiacristãcomotestemunhodahistóriadasmissões.

ÀchegadaaAgra,osmissionáriosofereceramaAkbar,entreváriaspinturasa

óleo,setedosoitovolumesdaversãodaBíbliaPoliglota,impressaemAntuérpiapor

ChristophePlantin,entre1568e1573.Asgravurasdeartistas flamengos,entreos

quaisPietervanderHeyden,PieterHuys,GerardvanKampenedosirmãosWierix,

ilustravam muitos dos evangeliários e outra literatura de espiritualidade utilizada

pelosjesuítascomvistaàconversão.AideiadeofereceraAkbarumlivroilustradoé

revelador não só de uma estratégia clara de explicação do texto através das

imagens, mas parece‐nos claro o conhecimento prévio que Rudolfo Acquaviva e

António Monserrate tinham sobre a importância do livro ilustrado na cultura e

tradição Mogol. Todavia, Akbar não ficou indiferente às pinturas a óleo,

especialmente à cópia da Virgem e o Menino executada pelo pintor português

Manuel Godinho, não sabemos se pelo tema e significado da pintura, se pelo

realismo, escala e proporcionalidade ou até pelas características de retrato da

pinturaocidental,tãodistintodapinturaMogol.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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O ambiente cultural e artístico da corte de Akbar, quer pela política de

tolerânciareligiosa,mastambémpelaprotecçãoepatronatoartístico,permitiunão

sóaintroduçãodeartecristã,comotambémareproduçãodeiconografiacristãpor

importantesartistasdecortecomoDaswanth,Basawan,KesuDaseManohar,que

sebasearamnosmodeloseuropeusdasgravuras levadaspelos jesuítas.Osartistas

do kitah‐khana (oficina de pintura da corte mogol) reproduziram as gravuras e

pinturas cristãs integralmente ou, em outros casos, parcialmente combinando os

temas e técnicas da pintura europeia com o estilo da pinturamogol que, à data,

teciaasuaprópriaidentidadeartísticasobcoordenaçãodospintoressafávidas,Mīr

Sayyīd`Alīe`Abdal‐‹amad.

Éevidentequeoambientedemulticulturalismoquesevivianoimpériomogol,

desdea segundametadedo séculoXVI,está relacionadocoma formação deuma

identidadecultural,religiosaepolíticacomvistaaumaunificaçãocoesadoimpério.

Aconvergênciadeestruturasidentitáriasdasquaisfazemparteosrituaissagrados,a

história,astradições,concentram‐senafiguradoimperadoredoimpério,deforma

queaforçacentrífugadotempodissipaasfronteirasdadiferença,sobreasquaisse

ergueumaidentidadecultural,religiosaeartísticacomum.

A génese desta idade do ouro da arte Mogol remonta a 1540, quando

Humayunfoi forçadoaexilar‐senacortesafávidadeShahTahmasp,no Irão,onde

permaneceuaté1549areunirforçasparaprepararainvasãodeDelhiereconquistar

osseusterritórios.Duranteesteperíodo,esteveemcontactocomapinturadecorte

safávida que havia atingido um período de maturação e esplendor mas que, no

entanto,começavaaserafectadapelafaltadeatençãodabibliotecareal1.Humayun

tornou‐se um importante patrono dos artistas da corte safávida, oferecendo

elevadas somas para queMīrMuśavvir pudesse ser seu pintor. Uma vez que era

impróprio solicitar um funcionário de corte que ainda estivesse activo, quando

Humayun regressa a Delhi em 1555, leva consigo dois dos mais proeminentes

1 Milo Cleveland Beach. Early Mughal Painting. Cambridge: Harvard University Press, 1987, p. 8.Abolala Soudavar. “Between the Safavids and theMughals: Art and artists in transition”. IN: IRANXXXVII,1999,pp.49‐66.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

231

artistasdacortesafávidaquehaviamsidodispensadospeloShah,MīrSayyīd `Alīe

`Abdal‐‹amad.Estesartistasviriamaserfundamentaisparaodesenvolvimentodas

oficinasimperiais,determinanteparaaconstruçãodaidentidadeimperialdeAkbar.

A movimentação de artistas entre as cortes safávida e Mogol foi

particularmente acentuada durante os quarenta anos (1544 e 1585) que

antecederamasprimeirasmissões jesuítas.Estesprimeiros contactosdeHumayun

comaminiaturapersaemterritóriosafávidageraramuminteresseimediatodasua

consorte, Hamida Bānū, pelos livros iluminados da biblioteca de tesouros dos

príncipes timúridas. Estes exemplares de pintura safávida combinam uma síntese

dosestilosdepinturadeHerat(Afeganistão)eTurkaman(Irão),quesedesenvolvem

apartirdosmodelosdapinturamongoletimúrida2.AescoladeHerat foi fundada

por Shāh Rokh, um dos filhos do lendário Timur, a partir da herança artística e

cultural mongol que introduziu no Irão os motivos da pintura chinesa, uma nova

preocupação de espaço e composição, a sensibilidade da pincelada e uma nova

perspectiva sobre a diluição da cor3. Estes princípios estéticos e as técnicas da

pintura chinesa são introduzidos na Índia Mogol através da miniatura persa,

passandoporumprocessode simplificação decomposição.A sensibilidadeparao

mundonaturaleaimportânciasimbólicadanaturezareflecte‐senapinturadefauna

e flora, especialmente de pássaros na natureza, com longa tradição na cultura

chinesa,sobretudoduranteadinastiaSong4.Estegénerodepinturadesenvolveu‐se

no estiloMogol durante o final do reinado de Humayun e o início do reinado de

Akbar, tornando‐se num dos mais significativos géneros da pintura mogol. Os

modelosiranianosdapinturasafávidadoséculoXIVpartiramdecópiaseadaptações

deoriginais chineses como resultado decontactosentreo IrãoeaChinaentreos

2BasilWilliamRobinson.Fifteen‐centuryPersianpainting:problemsandissues.NewYork:NewYorkUniversityPress,1991,p.23.3 Richard Ettinghausen and Marie Lukens Swietochowski. "Islamic Painting". IN: The MetropolitanMuseumofArtBulletin,v.36,no.2(Autumn,1978),p.6.4Sobreaimportânciadanaturezanaculturachinesaveja‐seRuiOliveiraLopes.“Aideiadenaturezanaartechinesa:dapinturadepaisagemàarquitecturadejardins”.IN:ActasdasConferências‘ArteeNatureza’.Lisboa:FaculdadedeBelas‐ArtesdaUniversidadedeLisboa,2009,pp.248‐267.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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séculosXIVeXVI5.Ainfluênciadapinturadepaisagemchinesanapinturadeálbum

safávidareflecte‐senapinceladacaligráficadecontornosacentuados,nadiluiçãode

tintaconferindoumaprofundidadequeseacentuacomacomposiçãodosespaços

ocupadospelasrochaseárvores.Paulatinamente,napinturamogolacomplexidade

decorativa da pintura safávida e as composições de paisagens da herança chinesa

reduzem‐se à representação dos animais dispostos isoladamente, concentrando

todaasuaforçanumúnicopontodaimagem.

Num segundo momento, a herança da pintura de paisagem chinesa na

miniaturamogoltorna‐semaisevidentedevidoaoscontactosdirectoscomapintura

académicadadinastiaMing.Nestecontexto,apinturadepássarosnacortemogol

assumereferênciasclarasdapinturadeYinHungeLuChi,introduzindosignificativas

alterações ao nível da paisagem, sobretudo no desenho de rochas e montanhas,

cópiasquasedirectasdepavõesecisnesetambémnautilizaçãodesuporteemseda

no lugardepapel, comoera tradição.Osmodelosqueospintoresdacortemogol

seguiam chegaram ao Hindustão através de emissários chineses, viajantes e

missionáriosqueatravessavamonortedaÍndiaparachegaràChina6.

Desta forma, a miniatura persa representa, com particular incidência, um

universo idílico imbuídodeumaharmoniaquasepoéticaedecorativaparadissipar

da memória um período de instabilidade política e económica causada pelas

invasõeseguerrasdinásticas.Apinturaglosatemasnaturalistascomrepresentação

de animais, paisagens e, mais tarde, cenas de caça associadas a um período de

prosperidadeepaz, representadoatravésde símbolosauspiciosos.Poroutro lado,

são também registadas cenas da vida quotidiana da corte imperial, onde o

imperadorrecebeemissáriosdeváriasregiõesquevêmàcorteprestarvassalageme

reconhecerasoberania imperial,mastambémnarrativasdosépicosqueglosamos

5MiloClevelandBeach.EarlyMughalPainting.Cambridge:HarvardUniversityPress,1987,p.35.6Recorde‐seoexemplodeBentodeGoesqueno iníciodoséculoXVII fezuma incursãonoCathay(China).OsviajantesemissionárioseuropeusquechegaramàChinaatravésdonortedeÍndiafizeramchegaràEuropaváriaspinturaschinesas,conhecendo‐seoinventáriodeFernandoII,ArquiduquedaÁustria,emInnsbruck,datadode1596.Cf.HarryGarner.“ChinesepaintingsofthesixteenthcenturyatSchlossAmbras”.IN:OrientalArt.‐London‐Vol.XXII,nº3(1976),pp.262‐264.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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actosheróicosdoprofetaMaomé.DuranteofinaldoreinadodeHumayunedurante

operíododeAkbar,asnarrativasdeestóriaspalacianasdeinspiraçãohindutornam‐

separticularmentepopularescomoformadeentretenimentodoimperador.

ÉsobreestaherançaartísticaqueoestiloMogolsecomeçaadefinir,durante

o reinado de Akbar, criando uma espécie de síntese estilística e das técnicas

artísticas da pintura chinesa e da pintura timúrida e safávida, introduzida porMīr

Sayyīd`Alīe`Abdal‐‹amad,quesecombina,apartirdoséculoXVI,comatradiçãoe

vocabuláriovisualdaartehindu,jaina,rajputedapinturaeuropeia.Sobaorientação

deMīr Sayyīd `Alī e `Abd al‐‹amad formou‐se, nokitah‐khana, um vasto leque de

pintoresprovenientesdediferentesantecedentesculturaiseartísticosedediversas

zonas da Índia. Alguns destes pintores ganharam notoriedade pelas suas

competências em determinadas técnicas. Segundo Abu’l‐Fazl, o pintor Daswanth

dedicou todaa suavidaàarte, sendoparticularmenteexcelentenodesenhoe na

pinturamural,enquantoqueBasawaneraomelhorpintordefundos,nodomínioda

corenapinturaderetrato7.

Os pintores do kitah‐khana trabalhavam em exclusividade para servir as

encomendas de Akbar, que combinava o seu gosto pela arte com o objectivo de

construir uma definição identitária da culturamogol e uma imagem de soberania

unitária concentrada na figura do imperador. Neste sentido, encomendou a

produção ilustrada de literatura histórica e poética em persa, em arábico e em

sânscritodofamosoHanzanama(HistóriadeHanza),quenarraahistóriamísticade

Hanza,um tiodoprofetaMaomé.Osquinzeanosquedemoraramaproduziresta

obra,emquinzevolumesilustrados,permite‐nosperceberadimensãoeimportância

dos artistas que trabalhavamnokitah‐khana.Outras narrativas épicas da tradição

hindu,comooRamayanaetambémdaculturapersa,comooTutinama(Contosde

umPapagaio) foramencomendadosporAkbar,nãosócomoobjectivodeconfluir

heranças distintas na identidade cultural mogol, mas também como forma de

7 Amina Okada. Indianminiatures of theMughal court. New York: Harry N. Abram inc. Publishers,1992,p.14.

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entretenimentopalaciano.

Porvoltadadécadade1580,Akbarencomendaaosseuspintoresaprodução

de um tipo de narrativa histórica focada na história glorificante dos soberanos

ancestraisquederamorigemaoperíodoáureoqueseviveduranteoseu reinado.

Em1584,ospintoresdecorteilustraramoTimurnamaquenarraosfeitosgloriosos

dograndeTimure dos seusdescendentesBabur,HumayuneAkbar,numtotalde

137ilustrações.Trata‐se,naturalmente,deumaestratégiadelegitimaçãodepodere

de soberania nata de Akbar, estabelecendo uma relação histórica do seu reinado

com os reinados dos lendários Genghis Khan e Timur. Esta ligação repete‐se em

1590, quando Abu’l‐Fazl inicia a história do reinado de Akbar e que é

simultaneamente ilustradopelospintoresdecorte.Tal comoafirmaAminaOkada,

“theemperor,followedbyhisheirs,attemptedtoestablishthehistoricalsignificance

of the Mughal line by comparing his own accomplishments with the grandiose

achievementsofhisancestors”8.

Anossover,ocontactocomapinturaeuropeiaecoma linguagemsimbólica

associada à narrativa e à devoção cristã, mas também ao carácter exótico dos

esquemas de representação, introduziu profundas alterações na pintura mogol.

Pretendemosdemonstrar nesteestudocomoalgunspintoresdokitah‐khan, como

Kesu Das, Basawan, Manohar e outros fundiram na pintura mogol o realismo,

conceitosdevolumetriaeperspectivae,sobretudo,ogostopelapinturaderetrato

dapinturaeuropeia,combinadacomtodooléxicodaiconografiacristã,ondeohalo

dourado,osputtiieogloboterrestresãoalgunsexemplos9.

Entre estes pintores é Kesu Das que se especializa nos temas cristãos e na

reproduçãodasgravuraseuropeias, tendoexecutadomuitosdosseustrabalhosno

interregnoentreasegundaeaterceiramissãojesuíta.Maistarde,foioresponsável,

8Op.Cit.,p.22.9 Op. Cit., p. 24 ‐ 25. Sobre a importância do globo terrestre na cultura mogol ver SumathiRamaswamya. “Conceitof theGlobe inMughal VisualPractice”. IN:ComparativeStudies in SocietyandHistory(2007),vol.49,pp.751‐782.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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duranteoreinadodeJahangir,pelareproduçãodepinturascomtemasocidentaisda

colecção de Akbar. Numa das suas pinturas mais notáveis, que se encontra

actualmentenacolecçãodoBritishMuseum,KesuDasfazumarepresentação livre

daCrucificação (Fig.110), tendoseguido,muitoprovavelmente,comomodelo,um

crucifixoemmarfimoumadeirapararepresentaçãodeCristoquecolocasobreum

fundo em que aplicou as técnicas de sfumato da pintura europeia de forma a

conferirprofundidadeàpintura.Parece‐nosquearestantepaisagemdapinturaseja

imaginada por Kesu Das, ao passo que as personagens à esquerda foram

representadas como os europeus que, eventualmente, o pintor indiano terá

conhecido. À direita, a representação de Maria e das restantes mulheres são

interpretaçõeslivresdemodelosretiradosdediferentesgravurasdetemascristãos

e de temas clássicos de figuras alegóricas (Fig. 111). A representação do Sol em

oposição à Lua na zona superior da pintura é retirada de uma gravura de Georg

PenczquerepresentaJoséacontaroseusonhoaopaiequeKesuDasreproduziu

integralmenteporvoltade1590,colocandoasfigurassobreumfundodiferente,no

qualnãorepresentou“osol,ealua,eonzeestrelasqueseinclinam”10sobreJosé.É

aindaimportantereferirqueesteepisódiodaBíbliaéigualmentereferidonoCorão:

“Recorda‐tedequandoJosédisseaseupai:Ópai,vi,emsonho,onzeestrelas,osole

alua;vi‐osprostrando‐seantemim”11.

Origorna reproduçãomiméticadosmodelos introduzidospelosmissionários

europeus é encarado de tal forma que, algumas vezes, foram inclusivamente

copiadas inscrições e gravações dos autores originais das gravuras. Kesu Das, por

voltade1587‐1588,reproduziuumagravuradeS.MateusEvangelista,apartirde

umoriginaldePhillipGalle,inspiradaemMaartenvanHeemskerk,tendocopiadoa

inscriçãoM.emskercqueseencontranofinaldolivro.

Manohar,filhodeBasawan,iniciouasuacarreiradepintorporvoltade1580,

chegando ainda a colaborar com o seu pai na reprodução de pinturas europeias,

10Genesis37:9.11Corão,12:4.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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tornando‐se um grande apreciador e sucedendo a KesuDas comoespecialista em

pinturacristã.Estaligaçãoàarteeuropeiapermitiu‐lhedominaraprofundidadedo

espaçopictórico,orealismodapinturaocidentale,consequentemente,apinturade

retrato,servindoJahangircomoumdosseusprincipaispintoresderetrato12.

Em1602, JerónimoXavierapresentouaAkbarumahistóriadaVidadeCristo

traduzidaempersacomotítuloMiratul‐quds,numacombinaçãodetextosretirados

dosevangelhoseestruturadoemquatropartes:aNatividadeeInfânciadeJesus;os

MilagreseEnsinamentos;osMartíriosea suaMorte; aRessurreiçãoeAscensão13.

Manoharterásidooresponsávelpelacoordenaçãodeumvastoconjuntodeartistas

que ilustrou o catecismo de Jerónimo Xavier. Ao contrário do que havia sido

habitual, as ilustrações não seguem os modelos das gravuras europeias,

aproximando‐semais fielmente aosmodelos originais do estilomogol, commaior

evidênciaparaascomposiçõesverticaiscomhorizontesmaissubidos,umapincelada

denunciadaenaaplicaçãodatécnicadediluiçãodatintanaformaçãodepaisagens

(Cristo e a mulher de Samaria). Em outras pinturas, como a Natividade, a

representação dos anjos segue osmodelos da pintura safávida e timúrida com os

corposcobertosdepenas.

Estaalteridadeartística,provocadapelocontactodirectoentreaartecristãea

arte mogol surge naturalmente durante o reinado de Akbar, mas é

fundamentalmenteduranteotempodeJahangirquesesenteumaverdadeirafusão

deestilosetécnicasartísticas.

12 Gauvin Alexander Bailey. Art on the Jesuit missions in Asia and Latin America (1542 ‐ 1773).Toronto:UniversityofTorontoPress,1999,p.120.13EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,p.203‐205.

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3. A pintura de cenas cerimoniais no tempo de Jahangir. Entre princípios

universais,símbolosealegoriasdopoderespiritualetemporal

Ainda durante o reinado de Akbar, a terceira missão beneficia do interesse

emergente do príncipe Salim para o qual o pintor português, que acompanhou

JerónimoXavier,ManuelPinheiroeoirmãoBentodeGoes,trabalhouprofusamente

na reprodução das pinturas europeias da colecção de Akbar, até que regressou a

GoanoanoseguinteparaprosseguirnamissãodoJapão1.Peranteoinfortúniodas

duas primeirasmissões, o Conselho Provincial deGoa investiu na terceiramissão,

intensificandooenviodecrucifixos, imagináriaemmarfimepinturasaóleocoma

representaçãodaVirgemeoMenino,Natividade,aVidadeCristoealgunssantos.A

missão liderada por Jerónimo Xavier beneficiou ainda de muitas pinturas

provenientes da escola de pintura de Giovanni Niccolò activa no Seminário dos

JesuítasnoJapão2.

Apesar de Jahangir revelar um interesse particular pela representação de

NossaSenhora,daVirgemeoMeninooudetemasdaVidaePaixãodeCristo,foram

também copiadas gravuras com temas tão diversos como aCircuncisão,Deus Pai,

MassacredosInocentes,FugaparaoEgipto,MartíriodeS.Bartolomeu,Ressurreição

eDescidaaoLimbo,Pentecostes,NolimetangereeAdoraçãodosMagos,seguindo,

nasuamaioria,modelosdegravadoresdeAntuérpia.

Confrontado com esta profusão de imagens, Jahangir recorreu aos

missionários jesuítas, especialmente de Jerónimo Xavier, para que este lhe

explicasse as histórias sagradas e a função específica de determinados símbolos e

1GauvinAlexanderBaileyArtontheJesuitmissionsinAsiaandLatinAmerica(1542‐1773).Toronto:UniversityofTorontoPress,1999,p.124.2EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,p.226.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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significadosdaiconografiacristã3.Paraalémdoexotismodastécnicasartísticasedo

universo desconhecido das narrativas, o imperador mogol, certamente

reconhecendo o poder das imagens na transmissão de ideias e na celebração da

figuradivina,pretendiaentenderossignificadosintrínsecosdasimagensnarelação

comoespíritodevocionalqueelasinspiram.

Akbar e Jahangir reconheceram a força da arte como plataforma de

comunicação e de definição identitária da cultura Mogol, atribuindo‐lhe uma

característica inovadora através da encomenda de pintura de retrato. A sua acção

enquanto patronos de uma larga oficina de pintores incidiu, sobretudo, na

encomendade retratos individualizados,emsituaçõesdequotidiano,ouemcenas

deaudiênciareal.Parece‐nosqueaemergênciadestenovogéneronoestiloMogol

poderáestarnaorigemdo interessedeAkbarpelapinturaeuropeia,pelorealismo

comqueascenasdetemascristãoseclássicossãoretratados,pelailusãodoreale

pela linguagem simbólica e alegórica que, de alguma forma, reúnem uma força

intensa que serve os princípios da propaganda política e religiosa. Desta forma, a

pinturaderetratoganhaumadimensãotransversalnapinturamogol, tornando‐se

numdosprincipaismecanismosdecelebraçãodopoderimperial,sobretudoapartir

doreinadodeJahangir.

Em1600,aansiedadedopríncipeSalimemreinar,futuroimperadorJahangir,

tornou‐seincontrolávelperanteolongoreinadodeAkbar,quereinavajáhá44anos.

AproveitandoofactodeoseupailiderarumacampanhamilitardoDecão,Jahangir

tentouusurparopoderemAgraenoPunjab.Peranteo insucessodasuarebelião,

avançou para Allahabad autoproclamando‐se rei de um pequeno domínio.

Confrontado com esta revolta, Akbar incumbiu o seu leal conselheiro e amigo

pessoal,Abu’lFazl,dedissuadiropríncipeSalim.Noentanto,Abu’l‐Fazlacaboupor

morrer em 1602 àsmãos do Rajput Bir Singh Bundela, sob as ordens do príncipe

Salim. Só em 1604 é que o príncipe Salim regressou a Agra mostrando a sua

3 EdwardMaclagan.The Jesuits & theGreatMogul. Haryana: Vintage Books, 1990, p. 248. GauvinAlexander Bailey. Art on the Jesuit missions in Asia and Latin America (1542 ‐ 1773). Toronto:UniversityofTorontoPress,1999,p.126‐127.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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reverência ao Imperador, que o perdoou e, no leito da morte no ano seguinte,

entregouoturbanteimperialeaespadadeHumayun.

Após este episódio, Jahangir precisava de construir uma imagem que

legitimasse o seu poder e sucessão imperial, de forma a desincentivar possíveis

usurpações de poder. Através da arte e de uma elite de pintores ao seu serviço,

Jahangirdeucontinuidadeaumaideologiaimperialqueseconcentranalegitimação

do poder e na sucessão dinástica do imperador, introduzindo uma nova premissa

baseada na pintura de retrato associada a uma linguagem simbólica e alegórica,

numacombinaçãode iconografia cristãcomprincípiosuniversaisdecelebraçãodo

poder.

A representação da entrega da coroa imperial ou de um ornamento para o

turbante é, desde tempos ancestrais, um símbolo da transição de poder e da

legitimação imperial do sucessor. Por influência da iconografia cristã, Jahangir

introduz um novo conjunto de símbolos, não só de representação da sucessão e

transiçãodepoder,mastambémdeumamitificaçãodafiguradoimperador.

Um interessante fólio de umálbumde Jahangir representa, numadas faces,

umelefanteacorrentadoenoversoumacaligrafiaquesepresumeserdeMirAlial‐

Katib (Fig. 112). As margens da caligrafia são, como é normal, decoradas com

paisagensquenosremetemparaaspinturasdenaturezadeinfluênciachinesa,onde

a profusão de pinceladas densas e suaves dão textura às montanhas e árvores

retorcidas.Sobreestaspaisagensestãorepresentadasumamulhercomumacriança,

copiadadeumagravuradeGeorgPencz,aGeometriadasSeteArtesLiberaise,de

fontedesconhecida,DeusPai,SantoAntónio,MeninoSalvadordoMundonoBarco

daSalvação (comuma inscriçãoquediz: “Roma1580”)eaVirgemcom JesuseS.

JoãoBaptista4.

Neste fólio, Aga Riza, um dos mais proeminentes pintores de Jahangir,

representa um dos mais difundidos modelos de iconografia cristã na Ásia 4 Milo Cleveland Beach. The imperial image. Paintings for the Mughal Court. Washington: FreerGalleryofArt,1982,pp.163‐164.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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relacionando‐o com a missão proselitista dos padres Jesuítas. O Menino Jesus

Salvador doMundo é o símbolo das missões. Segurando a vara crucífera, com o

globonamãoourepresentadosobreoglobo,Deusdifundealuzdasalvaçãosobrea

terra,atravésdogestodebênção,assumindo‐secomooDeusdetodososhomense

osoberanodivinodahumanidade.Estaiconografiadifunde‐sepeloSuldaÁsia,Ásia

Central, SudesteAsiáticoeÁsia ExtremacomoumestandartedaCristianizaçãodo

Mundo, numa replicação de imaginária tanto em pintura como em escultura de

madeiraexótica,cristalrochae,sobretudo,emmarfim.

Aorigemdestemodeloremeteparaainfluênciaeimportaçãodeesculturado

Norte da Europa não só para Portugal, mas também para as principais cortes

europeias, de forma a dar resposta ao conceito de Devotio Moderna durante os

séculosXIV,XVeXVI.AsoficinasdeesculturadeMalinescriaramumnovoléxicoque

combina o significado intrínseco da devoção e contemplação do Salvator Mundi

centradanahumanidade,universalidadeetolerânciadeDeuscomanecessidadede

difusão massificada de uma imagem que represente esta ideia. Daqui resultou o

chamadoMeninoJesusSalvadordoMundoouMeninoJesusdeMalines,pelassuas

característicasanatómicasquepermitem identificar claramentea suaproveniência

pelaformadaspernas,dasnádegasedocortedecabelo.

Namargemdofóliomogol,oMeninoJesusSalvadordoMundoseguraoglobo,

numa mão, a vara crucífera, na outra, e é representado, a uma escala

propositadamente desproporcional, na popa de uma nau com o monograma da

Companhia de Jesus. Esta interessante pintura representa a introdução do

CristianismonaÍndiaMogolpelospadresjesuítasjuntamentecomtodaalinguagem

simbólicaquelheestáimplícitaequefoiamplamenterecebidaporJahangirepelos

artistasimperiais.Recorde‐seque,aindaduranteoreinadodeAkbar,ointeressedo

príncipeSalim(Jahangir)peloCristianismoepelaartecristãeradetalformaintenso

quenãosófinanciouaampliaçãodocolégioedaigrejadosjesuítas,comotambém

chegouapediraoVice‐ReidaÍndiaqueenviasseumamissãosóparasi.Anossover,

é perfeitamente plausível que os missionários jesuítas tivessem igualmente

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

241

introduzido esculturas em marfim e cristal rocha do Menino Jesus Salvador do

Mundo trazidasdeGoaedoSri Lankae tambémalgumasgravuras,possivelmente

dePieterVanDerBorcht5,queincorporaramacolecçãoimperial(Fig.113).

AsimilitudeformalesimbólicaentreagravuradePieterVanDerBorchtcoma

pinturadeJahangirsegurandooglobo (Fig.114)daTrusteesoftheChesterBeatty

Library em Dublin, datada entre 1614 e 1618, é admirável. Neste fólio do álbum

Minto, Jahangir é representado de perfil, voltado para a esquerda, com um halo

dourado radiante e segurandoumglobo namãodireita, enquanto que oSalvator

MundidePieterVanDerBorchtestárepresentadodamesmaforma,sóquevoltado

paraadireitaecomoglobonamãoesquerda.ÉdesalientarqueohalodeCristoda

gravura do pintor de Malines é idêntico ao halo de Jahangir em outras pinturas

mogóis.

ArelaçãoqueapresentamosentreagravuradeBorchteapinturadeBichitr

acentua‐sepelararidadedacomposiçãodafiguradeCristodepé,decorpointeiro

sobre uma paisagemminimalista e não uma representação de busto, sentado no

tronoouenquantoMeninoJesusSalvadordoMundo,comoeracomumnaEuropae

naÍndiaPortuguesa.

ApossibilidadedeomodelodagravuraatribuídaaPieterVanDerBorchtter

chegadoaserviramissãojesuítanaÁsiaéconfirmadapelasimilitudeformalcomo

PortaPazdodesignado“TesourodaVidigueira” (Fig.115).Esteconjuntodealfaias

litúrgicas, constituído porumaestantedemissal,umoratório‐relicárioeumporta

paz é assimdesignadopor provir do Convento deNossa Senhora das Relíquias da

Ordem do Carmo, na Vidigueira, tendo pertencido ao padre André Coutinho que

professounaChinaeemGoa.Nafrentedoportapaz,sobumfrontãoeentreduas

colunas, encontra‐se uma escultura em prata de Jesus como Salvator Mundi,

representadofrontalmentecomoglobonamãoesquerda,fazendoabênçãocoma

5 Note‐se que Pieter Van Der Borcht é natural de Malines, nascido por volta de 1540, tendotrabalhado com Christophe Plantin que tinha a sua oficina em Antuérpia e que imprimiu a BibliaPoliglotaqueosjesuítasofereceramaAkbarem1580.

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mão direita e com um halo semelhante ao da gravura atribuída a Pieter Van Der

Borcht.Emboraaposiçãofrontalsejadiferente,consiste,nasuaessência,numoutro

exemploderepresentaçãodeJesusSalvatorMundidepécomoglobonamão.No

reverso estão gravados motivos florais e pequenos pássaros, coelhos e gazelas,

motivosqueserepetemnastrêspeçasdoconjunto.NunoVassalloeSilva,apesarde

assumirodesconhecimentosobreaproveniênciadaspeças,relacionaadecoração

com as que podermos observar em algumas pinturas da década de 1590, em

particularnosfóliosdoBaburnama,ouaindanoTilasm,noZodíacoenasmargens

daspinturasUmelefanteacorrentadoeUmcomandantemogoleseusservidores,de

umálbumencomendadopor Jahangir6.Umapassagemde uma carta de Jerónimo

Xavier,em1604,cácontadasesmolasquesefizeramperaaygreja[deLahore]de

quesefizerãoalgumaspeçasdeprataquenellaservemcomohumturibulofermoso,

caldeirinhadeaguabentaehysopoperaasperges,galhetas como seuprato tudo

muitobemlavrado”7.

Nestecontexto,seráimportantereferirque,apósachegadadaterceiramissão

jesuítaàcortemogol,foienviadadeGoa,em1596,porAlexandreValignanooupor

NicolauPimenta,umaimagemdeJesuscomoSalvatorMundi,juntamentecomuma

outra pintura de Cristo e de Santo Inácio de Loyola, provenientes do Japão8. Na

BibliotecadeBoudleinconserva‐seumapinturamogoldeCristoentronizadocomo

globonamão9.

A nosso ver, a pintura de Jahangir segurando o globo segue o princípio de

equiparação do imperador à soberania divina da humanidade e ao universalismo

6NunoVassalloSilva.“Pedraspreciosas, jóiasecamafeus:AviagemdeJacquesdeCoutredeGoaaAgra”.IN:GoaeoGrãoMogol,coordenaçãodeNunoVassalloeSilvaeJorgeManuelFlores.Lisboa:FundaçãoCalousteGulbenkian,2004,pp.120‐124.7CartadopadreJerónimoXavierparaopadreProvincialdaCompanhiadeJesusnaÍndia(Agra,6deSetembrode1608). IN:A.daSilva Rego.DocumentaçãoUltramarina Portuguesa. Lisboa:CentrodeEstudosHistóricosUltramarinos,Vol.III,1963,p.26.8GauvinAlexanderBailey.ArtontheJesuitmissionsinAsiaandLatinAmerica(1542‐1773).Toronto:UniversityofTorontoPress,1999,p.124.9EdwardMaclagan.TheJesuits&theGreatMogul.Haryana:VintageBooks,1990,p.253.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

243

cristão pregoado pelos missionários. Acresce ainda o facto de este fólio ter sido

colocado junto à representação de Hazrat Shaikh Khwaja Syed Muhammad

Mu'īnuddīn Chishtī, o santo Sufi conhecido como o benfeitor dos pobres e que

estabeleceu na Índia a Ordem Chishti depois de ter sido abençoado pelo Profeta

Maoménum sonho. A grandiosidade do santo Sufi é sublinhada pelo princípio de

hipérbole, através da dimensão e intensidade da luz do halo, significativamente

maioremrelaçãoàdeJahangir,etambémpeladimensãodogloboqueMu'īnuddīn

Chishtīseguracomambasasmãoseque,nolugardacruzcristã,foiacrescentadaa

coroa imperial da tradição timúrida. Trata‐se de uma combinação de léxicos

simbólicos de culturas distintas, mas com o mesmo significado, resultando numa

alteridadeformalbaseadanumprincípiouniversal.

A colocação frente a frente destas figuras permite estabelecer a relação do

princípiodehipérbole,demonstrandoquemaisgrandiosoqueJahangirsómesmoo

grandeemíticoMu'īnuddīnChishtīmasque,peranteoqual,oimperadormogolvêo

seu reflexo. Logo, esta narrativa simbólica coloca Jahangir a um nível superior de

proximidadeaumahierarquiaceleste,assumindoaherançadolendárioMu'īnuddīn

ChishtīnorespeitoqueoshabitantesdeLahore lheprestavam.Jahangirassume‐se

comolídertemporaleespiritual.

Recentemente,naexposiçãoTheIndianPortrait,1560‐1860,comissariadapor

RosemaryCrilleKapilJariwalanaNationalPortraitGallery,entreMarçoeJunhode

2010,foi,pelaprimeiravez,expostaumapinturaderetratodeJahangirnumtrono

comoglobonamãodireita (Fig.116). Estapintura,deumacolecção particular,é

atribuída a Abu’l‐Hasan, que a terá executado por volta de 1617. A retrato de

Jahangir a três quartos, em tamanho natural, sentado num trono com o halo

dourado e o globo namãodireita é certamente omaior reflexo de uma simbiose

artística entre a pintura cristã europeia e a pinturamogol através da técnica, dos

símbolosdepoderespiritualetemporalque,anossover, partemdeumconjunto

de símbolosuniversaisassociadosaopoderespirituale temporal.Pensamosquea

representação do imperador num trono ao estilo europeu poderá ter seguido o

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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mesmomodelode outraspinturaseuropeiasde JesusSalvatorMundi entronizado

como aquela que se encontra na Biblioteca de Boudlein. Esta pintura, pela sua

raridade,foireproduzidaecontextualizadanaChinaIllustrata,deAthanaiusKircher

(1667) e também pelo cartógrafo francês Alain Manesson Mallet na célebre

DescriptiondeL’Universpublicadaem1683(Fig.117).

Outrafontequenospermiteperceberaimportâncianacortemogoldotema

Jesus Salvator Mundi é uma pintura que representa Jahangir oferecendo um

ornamentodeturbanteaopríncipeKhurram,futuroimperadorShahJahan(Fig.118).

Apinturaéumanotávelcomposiçãoquedenotaainfluênciadastécnicasdapintura

europeia,representandoJahangireopríncipeKhurramnumnívelsuperiorenvoltos

por umaarquitectura interiordecoradacompinturamuraleum frisoemmadeira

compinturasdefigurascristãs,comosetratassedeumagaleriade retratos.Entre

essaspinturaspoderemosidentificarumretratodaVirgemeooutrodeJesuscomo

Salvator Mundi, segurando o globo na mão esquerda10. Esta pintura dentro da

10 Todo o cerimonial, bem como o espaço no palácio onde decorre a cerimónia são descritosmeticulosamente por Jerónimo Xavier. “Quando elle veo de Lahor achou o paço muito bemconcertadoepintadocomvariaspinturasquejáerãofeitaseestavãoperasefazerassidentrocomoforaemhumavarandaondeseassentacadadiaadpopulum.Nomeiodellaestasooasentado,nasduasbandasosseusdousfilhos,edespoisdellesalgunscriadosdeserviço,quetodososcapitaensegrandeestãoembaixo,equandoadtempuschamaalgunemcima,vaielogosedece(sic).Dabandadedentroondesaedenoiteesesentaantesquandoquersairaestajanelaouvarandadeforatemhumavaranda larga,noaltodoforrodellanomeioestaapintadoChristoNossoSenhormuitobemcomalgunsanjosaoredorcomseuresplandor,enasparedesdaquellacomosalaalgunsportugesesmuito bem pintados em figura grande e alguns santos em figura piqena u. g. S. João Baptista, S.Antonio,S.BernardinodeSenaeoutrossanctosesanctasmuitobem.Dajaneladeforaquedirei?Naselhargasdolugarondeelreyseassentaquandosaeadpopulumestavaopintadosmuitobemalgunsprivados del rey ao natural. Poucosdias depois todososmandou borraremandou pintarem lugardellesunssoldadosportuguesesmuitobizarros‐armadosgrandesdeestaturadehomemdemaneiraquesevemportodooterreiro.Estãotresdecadaparte,eemcimadellesabandadamãodeireitaestapintadoChristoNossoSenhorcomoglobodomundonamãoesqerdaedaoutrabandaNossaSenhoramuitobempintada.MasdepoisqueviohuaSenhoradeS.Lucasquetemosnanossa igrejafezborraraquelaepintarestaporqueestivesseaiaonatural.Às ilhargasdeChristoNossoSenhoreNossaSenhoraestãohunssantoscomoemoração.

Nacharoladavarandacomojanelaondeelleseassentaasilhargasnamesmaparedeestãopintadosseus dos filhosmuito ricamente ao natural. Em cima de hum delles esta Christo Nosso Senhor emfigurapiqenaealyjuntohumpadrecomhumlivronamão,esobreooutroNossaSenhora;nomesmovãodacharolaestãoS.Paolo,S.GregórioeS.Ambrósio.Estesporserempiqenosedentrodacheirola(sic)poucosevemdosqueestãoembaixo,masasoutrasdetodassepodemver.(...)Realmentemaisparecevarandadehumreymuitodevotoquedereymouro.PoisladentroemvariassalasfezpintarnasparedeseforrodellasvariaspinturasdemisteriosdeChristoNossoSenhored’algunspassosdos

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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pinturaremete‐nosparaumaoutrapinturadeJahangircontemplandooretratode

Akbar (Fig. 119). Ao compararmos ambas as pinturas é perfeitamente claro que o

retrato de Akbar seguiu o modelo de uma pintura representando Jesus como

Salvator Mundi e que o imperador Jahangir entendia o significado das imagens

cristãs, usando a sua linguagem simbólica para a representação da linhagem

imperial. O pintor Abu’l‐Hasan, conhecido por Nadir az‐Zaman (Maravilha do

Tempo), colocou uma inscrição dentro do globo queAkbar apresenta ao seu filho

quediz:“RetratodoVenerávelquesesentanotronocelestial,pintadoporNadiraz‐

Zaman”.

De acordo com Amina Okada, esta pintura pretende representar uma falsa

lealdade,respeitoeadmiraçãopeloseupai.Jahangirestavadeterminadoasuprimir

da história qualquer hesitação que Akbar pudesse ter tido em relação à sua

sucessão11.Atravésdestalinguagemsimbólicadasimagenscristãs,Jahangirassume

amesmapredestinaçãoehierarquiacelestialentreDeusPaieDeusFilhodatradição

cristã.

NumarepresentaçãodeumaCenadeDurbardeJahangir,pintadaporAbu’l‐

Hasan, Jahangiréretratadosobreumglobo,sentadocomoumeuropeuecomum

baldaquino bordado com anjos segurando uma coroa sobre Jahangir (Fig. 120).

Muitopossivelmente,anossover,osanjossegurandoacoroasobreAkbarseguemo

modelodagravuradaApoteosedaVirgem,deMartinShongauerequefoiinserida

numfóliomogolduranteofinaldoséculoXVI(Fig.121).

A representação de Jahangir ao centro geométrico da composição e sobre o

globo significaa sua soberaniauniversal legitimadapela presençadeumaelitede

poderosos nobres mogóis, que gravita em torno do imperador. Junto a Jahangir

ActosdosApostolostiradosdo livrodavidadellesque lhedemos,deS.Anna,deSusanna,eoutrasvariashistorias,etodo istohetraçadomismoreysemqueningemlhetenhafaladonisso”.CartadopadreJerónimoXavierparaopadreProvincialdaCompanhiadeJesusnaÍndia(Agra,24deSetembrode 1608). IN: A. da Silva Rego. Documentação Ultramarina Portuguesa. Lisboa: Centro de EstudosHistóricosUltramarinos,Vol.III,1963,pp.125‐126.11AminaOkada. Indianminiaturesof theMughal court. NewYork:HarryN.Abram inc.Publishers,1992,pp.28‐30.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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encontra‐se, à esquerda, o príncipe Kharrum, seu sucessor, e à direita, o seu

primeirofilho,osultãoParviz.Nocírculoqueenvolveoimperadorsãoidentificadas

outrasfigurasproeminentescomoosultãoMahabatKhan,AsafKhan,MirzaRustam

Khan (sobrinho de Shah Tamasp da corte safávida) e Ibrahim Khan. Nas

extremidades, na zona superior, estão representadas duas figuras representativas

dos dois poderes estrangeiros: o rajput e o europeu12. É interessante notar que

homemeuropeusurgenaextremidadetrajandocomoummogoleoseu retratoé

executado com uma definição e qualidade tão distintas que nos parece, pela

expressividade e realismo, ter saído do pincel de um pintor europeu. A

particularidade de a figura nos olhar directamente nos olhos, como é normal na

pintura europeia, poderá sugerir a hipótese de estarmos perante um retrato do

própriopintorque,pelaqualidadedoretrato, teráexecutado igualmenteoretrato

do sultão otomano representado numoutro fólio que se encontra naWalters Art

GalleryequefazparcomapinturadaSmithsonian.

Parece‐nos clara,deacordocomanossa leitura,aexistência deuma lógica

narrativanoprolongamentodoespaço pictóricoparao fólio seguinte, denunciado

peloolharparaaesquerdadas figurasnaparte inferiorda composição, colocando

emevidênciaapresençae o reconhecimento deum terceiro poderestrangeiro:o

Otomano. Abu’l‐Hasan criou, nesta pintura, uma teia de focos de energia e poder

comvárioscentros.Atravésdaprópriacomposiçãodapinturanacolocaçãocentral

de Jahangir em relação às figuras que o envolvem e através do recurso ao olhar

directo que a figura europeia e o sultão otomano lançam sobre o observador da

pintura.

Na pintura mogol é frequente vermos representadas figuras que parecem

olhar‐nos nos olhos, como se sentissem a nossa presença. No contexto do estilo

mogol,estatécnicadeprolongamentodoespaçoderepresentaçãoparaoespaçode

12 Milo Cleveland Beach. The imperial image. Paintings for the Mughal Court. Washington: FreerGallery of Art, 1982, pp. 203 ‐ 204. Embora Milo Beach se refira concretamente aos poderesHinduísmoeCristianismo,parece‐nosmaiscorrectoopoderrajputeeuropeuenquantoidentidadesculturaisenãopoderesreligiosos.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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visualizaçãodoobservadorfoidesenvolvidasobretudoentreosreinadosdeAkbare

ShahJahan13.

Aideiadestecruzardeolharescolocaoparadigmaaoníveldapercepçãovisual

edaidentificaçãodoespaçoderepresentação,conduzindooobservadoràcondição

de observado dando origem a um vasto leque de sentimentos que prendem o

observador à pintura. Supostamente todos os intervenientes na acção deveriam

estar concentrados na própria acção e tudo muda quando uma ou mais figuras

representadas se apercebe do observador, estabelecendo uma relação directa e

privilegiadadecomunicaçãodaobra.

Na pintura europeia, estes exemplos são relativamente comuns, sendo

normalmente identificados como se se tratando de um auto‐retrato do pintor. O

artista é aquele que, por excelência, tempercepção da ligação entre o espaço de

representaçãoeoespaçodeobservação,transitando,entreumeoutro,duranteo

processo de criação da obra. Ao fazer‐se representar na pintura, olhando para o

observador, estabelece essa ligação como seabrisse uma janela através da qual o

observador consegue entrar na cena14. O conceito de festaiuolo, resgatado do

universodaexpressãodramáticaitaliana,consisteemchamaraatençãoatravésde

umgestoouolhardeformainesperada,deixandooobservadorsurpresocriandoum

segundopólodeacção15.Trata‐se,emrigor,deummestre‐de‐cerimónias16quefaz

umanarrativa introdutória ouexplicaçãodeumacenade forma interactiva como

público. Naturalmente, Alberti, no Tratado da Pintura, refere‐se a esta técnica

afirmandoque“Iliketoseesomeonewhoadmonishesandpointsouttouswhatis

happeningthere;orbeckonswithhishandtosee;ormenaceswithanangryfaceand

13GregoryMinissale.“Seeingeye‐to‐eyewithMughalminiatures:SomeobservationsontheoutwardgazingfigureinMughalart”.IN:Marg,vol.58,nº3,‐March2007,pp.40‐49.14 Michael Baxandall. Painting and experience in fifteenth century Italy. Oxford: Oxford UniversityPress,2ndEd.,1988,p.72‐73.15DouglasGordonJacobseneRhondaHustedtJacobsen.ScholarshipandChristianfaith:enlargingtheconversation.Oxford:OxfordUniversityPress,2004,p.144.16 Joseph Spencer Kennard.The Italian Theatre: From its beginning to the close of the seventeenthcentury.NewYork:B.Blom,1964,Vol.I,p.64.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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flashingeyes,sothatnooneshouldcomenear;orshowssomedangerormarvellous

thing there; or invites us toweep or laugh togetherwith them”17. De formamais

comum,napinturadoquatrocentoitalianoenapinturadoRenascimentoFlamengo

estastécnicasdecomunicaçãosãoclaramenteevidentesnasobrasdeencomenda,

ondeocomitentesedestacadacenaatravésdeumgestoouumolhar.

Apinturaeuropeia introduzidanacortemogolpelosmissionários jesuítasno

final do século XVI, muitas vezes proveniente do Norte da Europa, poderá ter

exercidoalgumainfluêncianaafirmaçãodoretratocomoumdosgénerosdepintura

preferidosdeAkbareJahangir.Apesardealgunsexemplosdapinturamogol,onde

somosobservadosporfigurasrepresentadasnapintura,seremanterioresa158018,

é sobretudo a partir da década de 1590 que se torna uma das principais

característicasdoestilomogol.

Umclaroexemplodestatécnicaévisívelnumapinturadoálbumchamadode

S.Petersburgo,querepresentaJahangiraoferecerumlivroaumDarvīsh,queMilo

Cleveland Beach e Stuart CaryWelch identificam como sendo o Shaikh Husain da

Ordem Chishti, na presença de um Sultão otomano, de um europeu (James I de

Inglaterra) e de um hindu (o pintor Bichitr) (Fig. 122). Nesta pintura, James I é

retratadocombasenumapinturadoinglêsJohndeCritzquechegouàcortemogol,

muitoprovavelmente,pelasmãosdeSirThomasRoequeaípermaneceuaté161819.

OreideInglaterraolha‐nosdefrente,criandoumatensãocomocentrogeométrico

etemáticodapintura.ParaalémdosretratosdeJahangir,ShaikhHusain,doSultão

Otomano e James I, o pintor hindu Bichitr auto‐retratou‐se denunciando a sua

condiçãoartísticaostentandoumapintura.

17 Leon Baptista Alberti.Della Pictura. (Leon Baptista AlbertiOn painting) Spencer, John R. (Trans.,introdandnotes).NewHaven:YaleUniversityPress,2ºedition,1966,p.78.18Veja‐seumdosfóliosdoHamzanama(1562‐1577),ondeumhomemolhaoobservadoratravésdeumajanela.Poroutro lado,éimportanterecordarqueapesardasprimeirasmissõesjesuítasàcortemogol ter sido em 1580, já Humayun tinha tido contacto directo com os portugueses cristãos emSurat.19 Milo Cleveland Beach. The imperial image. Paintings for the Mughal Court. Washington: FreerGalleryofArt,1982,p.168‐169. Idem.TheGrandMogul. Imperialpainting in India (1600‐1660).Massachusetts:SterlingandFrancineClarkArtInstitute,1978,p.54.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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AidentificaçãodoShaikhHusaindaOrdemChishtitemporbaseadificuldade

de Akbar em ter um herdeiro, tendo rezado no Dargah de Ajmer solicitando a

intercessão dosDarvīshes para que tivesse um filho.O ShaikhHusain responsável

peloDargah durante o tempode Jahangir era o descendente espiritual do Shaikh

KhwajaSyedMuhammadMu'īnuddīnChishtī,aquemotemploeradedicado20edo

ShaikhSalim,aquemAkbardirigiuassuaspreces21.

A nosso ver, o retrato de James I, a olhar directamente sobre o observador,

denuncia a criação de dois universos simbólicos que cria uma dicotomia entre o

universodasoberaniamundanaeouniversoda soberaniaceleste.Acriaçãodeste

centro energético provocadopelo olhar do Rei de Inglaterra pretende dar força à

identificação de Jahangir como soberano supremodomundo celeste e domundo

terrestre.

O pintor Bichitr, discípulo do grande pintor Abu’l‐Hasan, executa uma

representação simbólica no contexto dos “retratos alegóricos”, designados por

AminaOkada22.Acomposiçãoestásimbolicamentedivididaemdoisníveis:aparte

inferior com um padrão profusamente decorado com figuras antropomórficas e

elementosgeométricos,eapartesuperiorpintadacomumazulténue.Estadivisãoé

acentuada na distribuição das figuras que ocupam a parte inferior (o Sultão

Otomano,JamesIdeInglaterraeopintorBichitr),comJahangireoShaikhHusaina

ocupar a parte superior, evidenciando a separação entre o espaço celestial e o

espaçoterreal.

NoseguimentodeAbu’l‐Hasan,Bichitrrepresentasimbolicamenteapresença

dostrêspoderesestrangeirosnacorteMogolatravésdoretratodoSultãoOtomano,

deJamesIedoseuauto‐retrato.Numnívelsuperior,Jahangirérepresentadosobre

umaampulhetaoferecendoumlivro,queStuartCaryWelchsugeretratar‐sedolivro

20Op.Cit.,p.168.21StuartCaryWelch.ImperialMughalPainting.NewYork:GeorgeBraziller,1978,p.82.22AminaOkada. Indianminiaturesof theMughal court. NewYork:HarryN.Abram inc.Publishers,1992.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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dasuavida23,Tuzk‐e‐Jahangiri,aummísticolíderdaOrdemSufiveneradonocentro

religiosoMogol emAjmer24. Segundo pensamos, Jahangir transita simbolicamente

paraumadimensãoespiritual,paraouniversodeumaassembleiadeantepassados

ilustres. JahangirpareceretomaraperspectivaqueAkbartemsobreoretratoque

nos chegou pelos escritos de Abu’l‐Fazl na sua obra A’in‐i‐Akbari: “His magesty

himself sat for his likeness, and also ordered to have likenesses taken of all the

grandeesoftherealm.Animmensealbumwasthusformed‐thosewhohavepassed

away have received a new life, and those who are still alive have immortality

promisedtothem”25.

Aimportânciaqueapinturaderetrato,esobretudooolharqueJamesIlança

sobre o observador, denota, por um lado, uma citação directa a uma das mais

importantes obras domestre do pintor Bichitr (Durbar de Jahanagir) e, por outro

lado,umaclarainfluênciadalinguagemsimbólicadapinturaeuropeia.

EstadivinizaçãodeJahangiréreforçadapelohalodourado,símbolocristãoda

divindadeedopodersupremo26,quecombinaemsimultâneoarepresentaçãodos

símbolosdoSoledaLua.AjustaposiçãodoSoledaLuarepresentasimbolicamente

auniãodedoispólos,ouniversocelestecomouniversoterrestre.Poroutro lado,

estátambémimplícitaumanoçãodetempo,namedidaemqueodiasucedeànoite

numritualpermanentedepassagemdotempo,sobreoqual Jahangirsesenta.No

contexto da linguagem e simbolismo cristão no fim dos tempos, durante o

Apocalipse,háumajustaposiçãodoSoledaLuaquando“apareceuumgrandesinal

no céu:umamulher revestidadeSol, tendoa luadebaixodospéseumacoroade

dozeestrelassobreacabeça”27.Inevitavelmente,somosremetidosparaagravurade

23StuartCaryWelch.ImperialMughalPainting.NewYork:GeorgeBraziller,1978,p.82.24 Milo Cleveland Beach. The New Cambridge History of India. Mughal and Rajput painting,Cambridge:CambridgeUniversityPress,1992,p.104.25Cit.apartirdeAminaOkada.IndianminiaturesoftheMughalcourt.NewYork:HarryN.Abraminc.Publishers,1992,p.23.26GeorgeFergunson.Signs&SymbolsinChristianArt.Oxford:OxfordUniversityPress,1989,p.148.27Apocalipse,12:1.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

251

AlbrechtDürerquerepresentaMariainSolesobreaLuaemquartocrescenteecom

uma radiância de luz em círculo (Fig. 123). De acordo com Erwin Panofsky este

frontispíciodaVidadaVirgeméemrigorumafusãodeduasimagens:porumladoa

Virgem da Humildade e a Mulher Apocalíptica, que simboliza a dualidade do

realismo e da humildade em contraposição à ideia visionária e sublimada do

princípioda“coincidênciadosopostos”28.

Como poderemos observar, esta justaposição entre o Sol e a Lua também

consta da tradição islâmica numa passagem do Corão que diz: “E, entre os Seus

sinais,contam‐seanoiteeodia,osolealua.Nãovosprostreisanteosolnemante

a lua,mas prostrai‐vos ante Deus, que os criou, se realmente é a Ele que quereis

adorar29”. Numa outra passagem, a justaposição do Sol e da Lua evidencia uma

noção de tempo e de soberania universal sobre a acção dos Homens: “Não tens

reparado,acaso,emqueDeusinsereanoitenodiaeodiananoite,equesubmeteu

osolealua,equecadaum(destes)giraemsuaórbitaatéumtérminoprefixado,e

queDeusestáinteiradodetudoquantofazeis?”30.NoCorãodizaindaque,nodiaem

que“seelipsaralua;eosolealuasejuntarem(...)sedaráocomparecimentoante

oteuSenhor;Diaemqueohomemseráinteiradodetudoquantofezetudoquanto

deixou de fazer”31. Este é o dia do Juízo Final como alegoria do fim de um ciclo

temporaledepassagemaumnovocicloespiritual.

A ideia de divisão entre omundo espiritual e omundo terreno é revigorada

pelarepresentaçãodedoisputtii,quesetratamdeumarecontextualizaçãodotema

doAmorDivinoedoAmorProfano, largamenteutilizadopelosjesuítasnocontexto

dasmissõesnaÁsia.Umdosmaisnotáveisexemplosdestaiconografiaéumaplaca

emmarfimdoSriLankapertencenteaoMuseudeVianadoCastelo,executadacom

basenumagravuradeHieronymusWierix(Fig.124eFig.125),ondeserepresentao 28ErwinPanofsky.ThelifeandArtofAlbrechtDürer.NewJersey:PrincetonUniversityPress,1955,p.137.29Corão,41:3730Corão,31:2931Corão,75:9‐13.

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triunfodoamordivino sobreoamorprofano.NapinturadeBichitr,umdosanjos

seguraumasetapartida,enquantoqueooutro tapaosolhoscomasmãos,numa

clara citaçãoà setapartidaeaosolhosvendadosdeCupido dagravuradeWierix,

assinalandootriunfodivinodeJahangirnapassagemparaoUniversoCelestesobre

oUniversomundanoondereinamosHomens.

Ainscriçãodapinturadiz:“ApesardeosShahsseapresentaremperantesi,ele

fixao seuolharnoDarvīsh. Estapalavrapersa refere‐seaosSufique seguemuma

vida asceta, o Tariqah e significa, literalmente, “aquele que abre as portas” do

universocelestial.

Aproximadamentecom51anos,àdatadapinturadeBichitr,eoitoanosantes

da sua morte, Jahangir assume simbolicamente o fim do seu ciclo terreno e a

passagemparaumuniversoceleste,ofimdeumtempomensuráveleapassagema

uma eternidade, a uma imortalidade que lhe está prometida pelos seus gloriosos

feitosregistadosnolivrodasuavida.

Apesardainfluênciadosmissionáriosjesuítasterdecrescidosignificativamente

após a morte de Jahangir, tendo sido inclusivamente perseguidos e martirizados,

ShahJahaneAurangzebderamcontinuidadeàadopçãodeumalinguagemsimbólica

cristã baseada em modelos europeus de linguagem simbólica com vista à

propaganda do poder (Fig. 126 e Fig. 127), acrescentando ainda outros elementos

simbólicosdaimagemcristã.

OÁlbumtardiodeShah Jahan, compiladoentre1550e1580, contémvárias

pinturasdopintorBichitrquerepresentamoimperadorcomoumanciãodecabelo

branco.Adiversidadedaspinturas,entreretratosindividualizadosoudegruposde

figuras religiosas, soldados, músicos e figuras da literatura persa, constitui um

manancial imagéticoondeaindaseverifica,comalgumafrequência,apresençade

anjosprincipalmentenamargemsuperiordosfólios,coroandoascenas.Étambém

bastante interessante a pintura de retratos isolados do imperador a cavalo que

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

253

revelam similitudes com os modelos equestres da pintura, desenho e escultura

europeias.

Entreessaspinturasdestaca‐seo retratodeShah JahancomAsafKhan (Fig.

128).Nesta pintura, Shah Jahan é retratado como halo dourado frente ao pai de

umadassuasmulheres,MumtazMahal.AsafKhaneratambémoirmãomaisvelho

deNurJehan,umadasconsortesdeJahangir.ParaalémdeBichitrrepresentarShah

Jahan ligeiramentemaisaltoecomroupasmuitomaissumptuosasqueAsafKhan,

deformaaacentuarasuasoberania,ohalodourado,osanjosmúsicosaladearuma

representaçãodeDeusPaique,doalto dasnuvensdocéu, fazdescer sobreShah

Jahanumraiodeluzque,segundopensamos,setratadeumalegitimaçãodivinado

seupoderterrenoperanteumdoshomensmaisinfluentesdoseutempo.

Numaoutrapintura,datadaaproximadamentede1660,umraiode luzdesce

sobreAurangzebcomoumaconfirmaçãodoanúnciodivinodasuacoroaçãorealque

aconteceu em 1658 (Fig. 129). Esta é a apoteose de Aurangzeb, que celebrou

repetidamenteasuacoroação,ecujasfestividadesseprolongaramdurantemaisde

duassemanas.Osimbolismotriunfalrepresentadonestapinturaéaconfirmaçãode

uma sucessão numa já longa linhagem de imperadores, anunciando‐se como o

grande Conquistador do Mundo, nome simbólico que adoptou durante a sua

coroação.

A nosso ver, em ambos os casos, é clara a influência da iconografia cristã

nestas pinturas, remetendo‐nos para o tema da Anunciação, largamente

reproduzido durante o tempo de Akbar e Jahangir. Simbolicamente o raio de luz

representaoadventodeumanovaEra,onascimentodosalvadoredogovernador

universal. É a manifestação imaterial do divino32. A liberdade criativa de alguns

artistasdapinturaocidentalincluiuumrasgodeluzvindoporentreasnuvenseque

cai sobreMaria como símbolo da passagem de S. Lucas: “E, respondendo o anjo,

32 Juan Francisco Esteban Lorente.Tratado de Iconografia. Madrid: Istmo. Colección Fundamentos,1990,p.196.

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disse‐lhe:DescerásobretioEspíritoSanto,eaVirtudedoAltíssimotecobrirácoma

suasombra;peloqueoSanto,quedetihá‐denascer,seráchamadoFilhodeDeus”33.

O Evangelicae Historiae Imagines de Jerónimo Nadal fazia parte do vasto

espólioiconográficodeartecristãoferecidopelosmissionáriosjesuítasaAkbar,em

1595. Impresso em1593, a ilustração dos Evangelhos foi organizada por Jerónimo

Nadal de forma cronológica, obedecendo a uma narrativa sequencial da Vida e

Paixão de Cristo. Entre as gravuras que ilustram as passagens do evangelho a

Transfiguração (Fig. 130) e a Anunciação (Fig. 131) terão servido de modelo,

respectivamente, para pintura de Shah Jahan com Asaf Khan e para a pintura do

ImperadorAurangzebsobumraiodeluz.

A representaçãodeDeusPaientreasnuvensdebraçosabertos, comohalo

triangulareenvoltonumaesferadeluznaobradeJerónimoNadaléintegralmente

copiada da Transfiguração pelo pintor mogol, tendo recorrido, eventualmente à

gravura daAnunciação para a representação do raio de luz que desce sobre Shah

Jahan,talcomoofezopintorqueexecutouapinturaparaAurangzeb.

Aurangzebfoieducadosobumarigorosaortodoxiareligiosa,comumreinado

que ficou marcado por uma ansiedade de poder que resultou na prisão do seu

próprio pai, Shah Jahan, e pela perseguição dos seus três irmãos. A restituição da

ortodoxiaislâmicatevecomoconsequênciaumareacçãoiconoclasta,provocandoa

destruição de inúmeras obras de arte, cingindo‐se à edificação de mesquitas e

fortificações com decorações meramente florais. Ainda assim, o álbum de S.

Petersburgorevelaumapermeabilidadeàlinguagemsimbólicacristã,aindaquepara

servirapropaganda imperial,apresentando‐secomoodescendentedivinodeuma

longatradiçãodeilustresimperadores.

Duranteum largoperíodo,desdeachegadadosmissionários jesuítasàcorte

islâmicadeAkbarem1580atéao iníciododeclíniodapinturamogolquecoincide

33Lucas,1:35.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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com o reinado de Aurangzeb em 1658,manteve‐se sempre acesa a esperança de

converteroimpérioislâmicoaoCristianismo.SeriaumaconquistaespiritualdaIgreja

Militante sobreo infielpela forçadoevangelho edas imagens.Estaesperança foi

alimentada pelo interessequeAkbar, JahangireShah Jahanmantiverampelaarte

europeiaepelossímbolosesignificadosdashistóriasdaleidoCristianismo.

Oparadigmadaprofusãodeimagenscristãsnumreino islâmicoéconstatado

comalguma estranheza pelo padre JerónimoXavier quando refere que “tudo isto

daspinturashemuitocontrarioatodososmourosquenãopermittemfigurasnem

aindadosseusquetempersantos,quantomaisdosoutrosquetemleycontraria,e

comquemtemtantainimizade”.

Akbar reconheceu na arte cristã, tanto um ponto de partida para o

entendimento e estudo do Cristianismo, como também uma forma de

entretenimento literário, cultural e artístico, conforme o testemunha o seu Abu’l‐

Fazl num verdadeiro ensaio em torno da supremacia da caligrafia sobre a

representaçãofigurativadaarte:“Ishallfirstsaysomethingabouttheartofwriting,

asitisthemoreimportantofthetwoarts.HisMajestypaysmuchattentiontoboth,

andisanexcellentjudgeofformandthought(...)Drawingthelikenessofanythingis

calledtaçwír.HisMajesty,fromhisearliestyouth,hasshewnagreatpredilectionfor

thisart,andgives iteveryencouragement,ashe looksupon itasameans,bothof

studyandamusement”34. Estaperspectivadeentretenimento literárioeartísticoé

evidenciadapelareproduçãodetemasclássicosdealegoriasàsarteseàsciências,

quemuitasvezesocupamacercaduradepoemasdosgrandessantosSufi.

OambienteculturalnacortedeAkbaredeJahangircoincidecomumprincípio

deecletismocultural,de umacultura do saber que se constróia partirdomelhor

quehánomundo.Akbar,aofomentarosdebatesreligiososeaoquereraprendero

melhorqueháemtodasasreligiões,dequetemconhecimentoeaquetemacesso,

está a criar uma nova forma de pensamento com o melhor que há em todas as

34Aín‐AkbaribyAbu’l‐Fazl,translatedfromtheoriginalPersianbyH.Blochmann,M.A.andColonelH.S.Jarret,Vol.I,Cap.34.Calcutta:AsiaticSocietyofBengal,1873.

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religiões. Por outro lado, da mesma forma que os seus pintores e artistas

reproduzem,produzemerecriamashistóriasdosevangelhos,tambémofazemcom

asnarrativasmoraiseedificantesdatradiçãopersa,semesquecerosépicoshindus

do Ramayana e o Mahâbhârata, apesar de os hindus serem constantemente

acusados de idolatria e politeísmo. Não poderemos deixar de relacionar este

interesse dos imperadores Mogóis com o interesse de Frei Manuel do Cenáculo

pelosmesmos épicos hindus. Recordemos ainda os pedidos que Akbar e Jahangir

fazem,declaradamente,paraqueosseusemissáriostragamdeGoaascuriosidades

quelátrazemosportugueses,muitoprovavelmentenãosódaEuropa,mastambém

deoutroslocaisdaÁsia.

As notícias e informações de outras gentes, costumes, rituais, saberes e

curiosidades de outros povos interessaram aos imperadores mogóis, da mesma

formaquenaEuropaforamrecebidascomentusiasmoasnotíciasdogentilismoda

Ásia, as informações sobre as riquezas deÁfrica, das ÍndiasOrientais e das Índias

Ocidentais,reveladasemobrascomoasViagensdeMarcoPolo,oEsmeraldodeSitu

Orbis, aPeregrinação, o Tratado das Cousas da China e tantas outras. Parece‐nos

particularmente elucidativa uma descrição de Abu’l‐Fazl sobre a organização da

biblioteca imperial de Akbar, revelando uma transversalidade, interculturalidade

idênticaàdasgrandescorteseuropeias.

“HisMajesty's library isdividedintoseveralparts:someofthebooksarekept

within, and some without the Harem. Each part of the Library is subdivided,

accordingtothevalueofthebooksandtheestimationinwhichthesciencesareheld

of which the books treat. Prose books, poetical works, Hindi, Persian, Greek,

Kashmírian,Arabic,areall separatelyplaced. In thisorder theyarealso inspected.

Experiencedpeoplebringthemdailyand read thembeforeHisMajesty,whohears

everybookfromthebeginningtotheend.Atwhateverpagethereadersdailystop,

HisMajestymakeswithhisownpenasign,accordingtothenumberofthepages;

andrewardsthereaderswithpresentsofcash,eitheringoldorsilver,accordingto

thenumberofleavesreadoutbythem.Amongbooksofrenown,therearefewthat

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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arenotread inHisMajesty'sassemblyhall;andtherearenohistorical factsof the

pastages,orcuriositiesofscience,orinterestingpointsofphilosophy,withwhichHis

Majesty, a leader of impartial sages, is unacquainted. He does not get tired of

hearing abook over again, but listens to the reading of itwithmore interest. The

Akhláq i Náçirí, the Kímiyá i Sa'ádat, the Qábúsnámah, the works of Sharaf of

Munair,theGulistán,theHadíqahofHakímSanáí,theMasnawíofMa'nawí,theJám

i Jam, the Bustán, the Sháhnámah, the collectedMasnawís of Shaikh Nizámí, the

works of Khusrau andMauláná Jámí, the Díwáns of Kháqání, Anwarí, and several

worksonHistory,arecontinuallyreadouttoHisMajesty.Phiologistsareconstantly

engagedintranslatingHindi,Greek,Arabic,andPersianbooks,intootherlanguages.

ThusapartoftheZíchiJadídiMírzáíwastranslatedunderthesuperintendenceof

Amir Fathullah of Shíráz, and also the Kishnjóshí, the Gangádhar, the Mohesh

Mahánand,fromHindi(Sanskrit)intoPersian,accordingtotheinterpretationofthe

author of this book. The Mahábhárat which belongs to the ancient books of

Hindústán has likewise been translated, from Hindi into Persian, under the

superintendenceofNaqíbKhán,Mauláná'AbdulQádirofBadáon,andShaikhSultán

of T'hanésar. The book contains nearly one hundred thousand verses: HisMajesty

calls this ancient history Razmnámah, the book of Wars. The same learned men

translated also into Persian the Ramáyan, likewise a book of ancient Hindustan,

whichcontainsthelifeofRámChandra,butisfullofinterestingpointsofPhilosophy.

HájíIbráhímofSarhindtranslatedintoPersiantheAt'harbanwhich,accordingtothe

Hindus, is one of the four divine books. The Lílawatí, which is one of the most

excellentworkswrittenby IndianMathematiciansonArithmetic, lost itsHinduveil,

andreceivedaPersiangarbfromthehandofmyelderbrother,Shaikh'AbdulFaizi

Faizí. At the command of His Majesty, Mukammal Khán of Gujrát translated into

Persian the Tájak, a well known work on Astronomy. The Memoirs of Bábar, the

Conqueroroftheworld,whichmaybecalledaCodeofpracticalwisdom,havebeen

translated fromTurkish into Persian byMírzá 'AbdurrahímKhán, the present Khán

Khánán (Commander‐in‐Chief). TheHistoryofKashmír,whichextendsover the last

fourthousandyears,hasbeentranslatedfromKashmírian intoPersianbyMauláná

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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SháhMuhammadofSháhábád.TheMu'jamulBuldán,anexcellentworkontowns

and countries, has been translated from Arabic into Persian by several Arabic

scholars,asMulláAhmadofT'hat'hah,QásimBég, ShaikhMunawwar,andothers.

TheHaribans,abookcontaining the lifeofKrishna,was translated intoPersianby

MaulánáSherí.ByorderofHisMajesty,theauthorofthisvolumecomposedanew

versionoftheKalílahDamnah,andpublished itunderthetitleof 'AyárDánish.The

originalisamaster‐pieceofpracticalwisdom,butisfullofrhetoricaldifficulties;and

though Naçrullah i Mustaufí and Mauláná Husain i Wá'iz had translated it into

Persian,theirstyleaboundsinraremetaphorsanddifficultwords.TheHindistoryof

the Love of Nal and Daman, which melts the heart of feeling readers, has been

metricallytranslatedbymybrotherShaikhFaizí iFayyází, inthemasnawímetreof

theLaílíMajnún,andisnoweverywhereknownunderthetitleofNalDaman”35.

Apartirdeumaperspectivaeuropeia,poderíamosafirmarqueacortemogol

segue o modelo renascentista, pautado por uma produção artística eclética,

ecuménica,eumapartilhadeconhecimentoque,emúltimaanálise,reflecteopoder

imperial no domínio da estratégia militar, mas também no domínio do

conhecimento e erudição sobre as coisas do mundo. Este espírito de

transversalidade intelectual e artística, de consciência antropológica do outro, de

desenvolvimentocientífico,dereformulaçãosocialepolíticareflecte‐senaprodução

bibliográficadacorteimperialdeAkbar.

Numsegundonível,ointeressedeAkbareJahangirpeloCristianismoepelas

imagenscristãspoderárepousarnumaherançaculturalneoplatónicacomumentreo

Cristianismoeo Islamismo.GauvinBaileydefendeque“bothMughalandCounter‐

Reformationnotionsabouttheimagescamefromneoplatonismandancientwriters

suchasPseudo‐Dionysius.Sharedconcepts includedtheeducationalandmnemonic

powerof images, theirpotentialasanemotional stimulus topietyandmeditation,

andtheabilityofanimagetoshowtheinvisible(orspiritual)bymeansofthevisible,

35Aín‐AkbaribyAbu’l‐Fazl,translatedfromtheoriginalPersianbyH.Blochmann,M.A.andColonelH.S.Jarret,Vol.I,Cap.34.Calcutta:AsiaticSocietyofBengal,1873.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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thelatterderivingfromaneoplatonicconceptprevalentinSufism”36.

No entanto, tal como já referimos, tanto o Cristianismo como o Islamismo,

juntamentecomoJudaísmo,fazempartedachamadaReligiãoAbraâmica,quetêm

comoreferênciaafiguraPatriarcadeAbraãoou Ibrahimnatradição islâmica.Estas

diferentes vertentes religiosas partilham a mesma influência neoplatónica, em

particularnaexistênciadeumUnodivinoapartirdoqualsurgetodoummanancial

de seres menores. A proximidade de Deus ao Homem é igualmente transversal

atravésda ideia deRevelação peloArcanjoGabriel ou Jibrīl, comoéconhecidona

tradição islâmica, comomensageiro deDeus. EstamensagemdeDeus, através do

ArcanjoGabriel,estáfortementerelacionadacomaLeidoLivro.Duranteaaparição

eanúncioàVirgemestaésurpreendidanomomentoemquelêostextossagrados,

algumas vezes representado pelos pintores do Renascimento com a passagem da

profecia de Isaías ou de Moisés e a Sarça Ardente37. Ambos os episódios são

símbolosdestaproximidadeentreDeuseosHomens.

Poroutro lado,na tradição islâmica, Jibrīl apareceaMaoméenquantoorava

numamontanhanosarredoresdeMeca,aquemrevelaoCorão.OCorãoéapalavra

deDeusquedecidiumanifestar‐seeaproximar‐seaosHomensatravésdaPalavra.

Acresce,ainda,ofactodeaanunciaçãodeMariaestardescritanoCorãoonde

JibrīlapareceaMiryam (Maria)revelandooNascimentode Isa (Jesus)pordecreto

de Deus. “Quando os anjos disseram, Oh Maria, Allah dá‐te boas novas de uma

palavravindadeSi;oseunomeseráoMessias,Jesus,filhodeMaria,veneradoneste

mundoenopróximo,edaquelesaquemé concedidaaproximidadeaDeus.Eele

falaráaopovonoberçoequandodemeiaidadeelefarápartedosjustos.Eladisse,

MeuSenhor, comopoderei euterum filho,quandoeunão fui tocadapornenhum

36 Gauvin Alexander Bailey. “The Indian conquest of Catholic art: The Mughals, the Jesuits, andimperial mural painting”. IN: Art Journal, Vol. 57, nº 1, The reception of Christian devotional art(Spring,1998),p.30.37 Luís Alberto Casimiro. “Aspectos desconhecidos das pinturas portuguesas do Renascimento”. IN:RevistadaFaculdadedeLetras.CiênciasdaArteedoPatrimónio,Porto‐2005,Isérievol.IV,pp.193‐213.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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homem? Ele disse, Tal é amaneira deAllah, Ele cria o que lhe apraz.Quando Ele

decretaumacoisa,Elediz‐lhe:Sêeistocomeçaaser.EEle lheensinaráoLivroea

SabedoriaeoToraeoEvangelho”38.

DuranteumavisitaàcapeladospadresJesuítas,Akbartirouoseuturbantee

colocou‐se de joelhos a rezar e “depois sentou‐se à maneira dos Serracenos da

Pérsia”. Seguidamente, disse que a Lei dos cristãos é amelhor de todasmas que

apenas não consegue conceber de que forma é que Deus teve um filho39. Numa

outravisita,passadosoitodias,mostrougrande reverênciaperanteas imagensde

NossoSenhoredaVirgemMariaeaindadeoutrossantos.Antesdesairdisseaos

padres que se sentia muito atraído pela Lei dos cristãos mas que não consegue

compreender os fundamentos da Trindade e a Encarnação. Seguidamente, Fernão

Guerreirodá‐nos umaperspectiva sobre o reconhecimento dospadres Jesuítasde

umaherançacomumentreoCristianismoeoIslamismo:“Muitotempoauiaqueos

PadresdesejauãodeteralguaoccasiãoperaempresençadeelRey[Akbar]poderem

vir as mãos com os Mouros em disputa sobre a verdade de nossa santa Fé, &

falsidadedaleydeMafamede.EstaacharãoagoradepoisqueelReyseaquietouem

Agra,aqualduroumaisdehummês,emqpassaraãomuitas cousasdignasde se

contarem,comqueosnossosconfundiramosMouros,quepostoquenemporissose

cõnuerterãoporsuadureza,&obstinaçãoosquenãodeixarrenderàverdadedafee:

pellomenosellaseficoumanifestandocõmuitagloriadeChristoSenhornosso.Teue

onegocioprincipiodogosto,&curiosidadecomqueelReyfolgaveraspinturasdos

papeis,&registrosdecousassagradas,queosPadreslheapresentão,porsaberemo

muito q elle os estima. E assimandando vir hua noite hum golpe de registros de

nossos santos, estandoos vendo (como elle os não entendia) mandou chamar os

Padres,peraquelhosdeclarassem.AcertoudeseroprimeiropapeldeSantosquelhe

38Corão,3:46‐49.39 Relaçam annal das cousas que fezeram os padres da Companhia de Iesus nas partes da IndiaOriental,&noBrasil,Angola,CaboVerde,Guine,nosannosdeseiscentos&dous&sescentos&tres,&doprocessodaconuersam,&christandadedaquellaspartes,tiradedascartasdosmesmospadresquedelàvieram,porFernãoGuerreiro,ImpressoemLisboaperJorgeRodrigues impressordelivros,1605,p.54.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

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mostrou hum em que estaua pintado Dauid posto de giolhos diante de Natham

propheta(...)ecomençandooPadreacontarahistoria,humcapitamMourotomou

amão,&quis iradiantecomellademaneira,queseuAlcoramaconta,&vendoo

Padrequamlongehiadaverdade,pediolicençaaelReyperaelleacontarconforme

apurezadenossassantasEscrituras”40.

A incompreensão de Akbar sobre osmistérios da Trindade e da Encarnação

prendem‐secomapercepçãoquetememrelaçãoàsfigurasdeJesusedeMaria.De

acordo com o Corão, Deus é “Originador dos céus e da terra! Como poderia Ter

prole, quando nunca teve esposa, e foi Ele Que criou tudo o que existe, e é

Omnisciente?”41.ÉestaainterrogaçãoqueAkbarfazaosmissionáriosjesuítas.

Em resumo, na nossa perspectiva, mais do que uma herança neoplatónica

comumqueseevidencianoCristianismoeno IslamismoapartirdoséculoVIIIem

diante, conforme propõe Gauvin Bailey, pensamos que existe, por parte dos

imperadoresMogóis,umreconhecimentoeidentificaçãodashistóriassagradasdos

Evangelhos como uma variante do Corão. Os imperadores mogóis terão,

eventualmente,tidoperanteoCristianismoamesmapercepçãodedeturpaçãoque

osportuguesestiveramsobreoCristianismonestorianodaCostadoMalabar.

Finalmente,opodereaforçadecomunicaçãodasimagenscristãsusadaspara

a difusão do Cristianismo na corteMogol permitiram que Akbar, Jahangir e Shah

Jahanadoptassemalinguagemsimbólicadasimagenscristãsparaocultodafigura

imperial.Vimosquesímboloscomooglobo,osputtii,ohalodouradoeoraiodeluz

sobre o imperador surgem na pintura mogol dos séculos XVI e XVII, a partir de

modelos formais e significados conceptuais retirados das imagens cristãs trazidas

pelosmissionárioscristãos.Esteléxicodesímbolosealegorias,associadoporvezesa

40 Relaçam annal das covsas que fezeram os padres da Companhia de Iesvs nas partes da ÍndiaOriental, & em alguas outras da conquista deste reyno no anno de 606. & 607. & do processo deconuersão,& Christandadedaquelaspartes, tiradadas cartasdosmesmospadresque de lá vierão:pelopadreFernãoGuerreirodaCompanhiadeIesvsnaturaldeAlmodovardePortugal.LivroIII,Cap.III.ImpressoemLisboaem1609,p.8‐9.41Corão,6:101

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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umaequiparação formal do imperadoràsprincipaisdivindadesdoCristianismoou

ainda através de uma criação de espaço celeste no qual o imperador se relaciona

comfigurasdivinas,dinamizaramumadivinizaçãodoimperador.

A permeabilidade da cultura mogol a este léxico simbólico tem

necessariamentequevercomumreconhecimentodestessímbolosnocontextode

uma linguagemuniversal,sustentadaemprincípiosuniversaisde representaçãode

significados.Estauniversalidadeégarantidapeloreflexoquealinguagemsimbólica

encontranomundoquenosrodeia,naspropriedadesdanatureza42.

O símbolo do globo como representação do mundo constitui‐se a partir de

umarelaçãodeanalogiaesimilitudecomarealidadefísicadomundo,mastambém

conceptualnos termosdoespaço simbólicoqueenvolveohomem.Oprincípiode

esfericidadedoespaçodeterminaedelimitaumespaçodecontroloedomínio,onde

arelaçãodosoberanocomossúbditosémantidaexactamenteàmesmadistância.É

aideiaprimordialdopoderdocentro,ondeconfluitodaaforçaeenergiasagrada43.

Nestesentido,estamosperanteumaduplavalência,sagradaeprofana,doconceito

de esfera ou de globomas que, em qualquer dos casos, se trata sempre de uma

motivaçãosimbólicademanifestaçãodesoberaniauniversal.NatradiçãocristãJesus

CristoouDeusPai,soberanosuniversaisdahumanidadeseguramoglobonasmãos,

ascúpulaseasabsidesdasigrejasreflectemaimagomundidaabobadacelesteeo

mundo celestial. Na China taoista o Yin e o Yang, representados simbolicamente

atravésdeumcírculo,constituemoequilíbriodaordemperanteocaosnaturaldo

Universo,queciclicamentesesucedemmutuamente;oscírculosnaturaisdasgrutas

dasmontanhasassimcomooscírculosconstruídosnosjardinschinesesrepresentam

simbolicamenteosportaisdoUniversoCeleste.NoBudismo,amandalaque,sópor

si,significacírculorepresentaarelaçãodohomemcomocosmosnumadelimitação

explícitadoespaçosagrado.

42Cf.GilbertDurand.Aimaginaçãosimbólica.Lisboa:Edições70,Col.PerspectivasdoHomem,1993,p.12.43Cf.MirceaEliade.OSagradoeoprofano.Aessênciadas religiões. Lisboa:EdiçãoLivrosdoBrasil,2006,pp.55‐60.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

263

Intrinsecamente, o globo ou o círculo representam, desde as sociedades

primitivas,ociclocósmicodapassagemdotempoedoespaço,darelaçãoeposição

dohomemnocosmos,oespaçoonderesidemtodasascoisasexistentes,sendo,por

isso, simultaneamente, símbolo do conhecimento universal, de lucidez e de

clarividência.Éporestemotivoquearadiânciadouradaouohalodivinosãomuitas

vezes representadoscomoumdiscodourado,numacombinaçãoda formacircular

com o Sol. Simbolicamente, o Homem encontrou na contemplação do Céu uma

experiência religiosa, na qual o Sol e a Lua constituem o expoente máximo das

dualidadesdoUniverso,dociclodotempo.A inacessibilidadedoCéu44confere‐lhe

uma força sobre‐humana, daí a verticalidade das arquitecturas rituais como uma

imagomundidamontanha,doaltarqueelevaadivindadeouondeseposicionao

sacerdotequeconduzaligaçãoentreomundodoshomenseomundodosDeusese

espíritosancestrais.ComomuitobemafirmaMirceaEliade,“oaltíssimo,obrilhante,

océusãonoçõesqueexistirammaisoumenosmanifestamentenostermosarcaicos

pormeiodosquaisospovoscivilizadosexprimiamaideiadedivindade”45.

No contexto das hierofanias solares, foi precisamente na Europa arcaica, no

Egipto,naÁsiaenaAméricadoSulque sedesenvolveramos cultosdoSol,muito

ligados a uma organização política das culturas, deixando antever uma relação

estreita com a divinização do soberano. O Sol é o fecundador, gerador da vida, a

partirdoqualnasceo“FilhodoSol”.EstaepifaniasolardecorrequandooSoldeixa

cairsobreaterraumraiodeluzcomoumaxismundi,dequeéexemploomomento

em que um raio de luz cai sobre Maria quando o Arcanjo Gabriel anuncia o

nascimento de Jesus. É este modelo axiológico que os pintores da corte mogol

seguemnaspinturasdeShahJahaneAurangzeb.

Natradiçãohindu,ShivaéocriadoresustentodoUniversoquesemanifesta

através do lingam que se ergue da energia criadora feminina, a yoni. O mito da

44 Sobre a simbologia do Céu nas diferentes estruturas religiosas ver Mircea Eliade. Tratado deHistóriadasReligiões.Lisboa:EdiçõesAsa,5ªedição,2004,pp.69‐167.45Op.Cit.,p.72.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

264

origemcriadorado lingamestárelacionadacomomomentoprimordialdocosmos,

quandonãoháuniversoeapenasreinamaáguaeanoitesemestrelas.Vishnuéa

personificaçãoantropomórficadesteestadoletárgicodouniversoquandopressente

o surgimento de uma intensidade interminável de luz pela acção de Brahma.

Enquanto discutiram entre si qual era o verdadeiro criador do Universo ergue‐se,

entreambos,umaltíssimolingamcoroadoporumachama46.

De acordo com Gilbert Durand, o princípio axiológico como instrumento

ascensionalencontra‐seporexcelêncianaasa,oumelhor,nodesejodeverticalidade

e de ascensão sobrenatural do homem47. É Bachelard que define uma teoria em

torno da pena onde converge a asa, a elevação, a flecha, a pureza e a luz48. São

váriasasavesdouniversoceleste,entreasquaisapombadoEspíritoSanto,afénix

grega,eventualmentedeinspiraçãoegípcia,éadoptadamaistardecomosímboloda

ressurreiçãoedaimortalidadenoCristianismoenoSufismopersadoséculoXII.Os

povos antigos daMesoamérica (Maias eAstecas) prestavam culto ao quetzal, que

morrequandoéprivadadaliberdadedevoar.

Ovooéosímbolodeumtransitarsublimadodaascensãoàcondiçãodivina.

Trata‐sedeumaelevaçãoespiritualenquantovirtudemoral.Oanjoéoresultadode

umimaginárioquecombinaosímbolodovoocomohomemàsua imagem.Como

mensageirodeDeus,asasaseovoopermitemaosanjostransitarentreouniverso

dos homens e o universo celeste. Encontram‐se várias referências de entidades

celestes axiológicas que estabelecem uma ligação entre o espaço mundano e o

espaçocelestial.Sãoosanjoscristãos,asapsarashindus,osdharmapalasbudistas,

os malaikah islâmicos são isomorfismos de mensageiros de Deus e de guias na

ascensão glorificante. É neste contexto que os puttii da pintura europeia são

46HeinrichZimmer.Mitosesímbolosnaarteecivilização indianas.Lisboa:AssírioeAlvim,1997,pp.135‐136.47GilbertDurand.Asestruturasantropológicasdo imaginário.SãoPaulo:MartinsFontes,3ªedição,2002,pp.130‐133.48 Gaston Bachelard. L’air et le Songes. Esai sur l'imagination duMouvement. Paris : Librairie JoséCorti,1943,p.83.

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Dagravuraàpinturadeálbum.ImagenscristãsnumImpérioIslâmico

265

perfilhadospelaestruturasimbólicaeimagináriadospintoresmogóis.

Em resumo, poderemos concluir que apesar da importância das técnicas da

arte ocidental na formação artística dos pintores de corte mogol, o processo de

confluência artística e aceitabilidade da iconografia cristã num império islâmico é

dinamizado por um reconhecimento da imagem cristã enquanto instrumento de

propaganda. Em última instância, estamos perante uma introdução,

contextualização e instrumentalização de arquétipos do imaginário sagrado e de

símbolosuniversaisparaumaconstruçãodaidentidadeimperialdacortemogol.

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267

CapítuloV

ArteCristãnoImpériodoMeio

OrestabelecimentodasrelaçõesEuropa/ChinaeaaberturadaChinaMingao

comércio com os portugueses durante as primeiras décadas do século XVI esteve

longe de ser um passo fácil. O mapa dito de Cantino, pertencente à Biblioteca

EstenseemModenaedatadode1502,descreveMalacacomoacidadefundamental

do comércio de todas as mercadorias que vêm a Calecute, muitas das quais são

provenientes da “terra de chins”. A cartografia, certamente elaborada a partir de

uma recolha de informações junto a pilotos árabes, comerciantes Gujarats e

cartógrafos locais,permitiu identificarMalacacomoumpontoestratégicoaonível

mercantil‐marítimoentreo ÍndicoeoMardaChina.Estas informações levaramD.

Manuel a ordenar a Diogo Lopes de Sequeira que desse início a uma viagem de

exploração à penínsulamalaia, para se inteirar de todas asmercadorias que aí se

comercializametambémcolherinformaçõessobreos“chins,edequepartesvêm,e

dequão longe,edequandoemquandovêmaMalaca,oudeles vêmcadaano,e

pelas feições de suas naus, e se tornamno ano emque vême se têm feitores ou

casas emMalaca, ou emoutra alguma terra, e se sãomercadores ricos, e se são

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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homensfracos,seguerreirosesetêmarmaseartilharia...sesãocristãossegentios

ouseégrandeterraasuaesetemmaisdeumreientreeles...”1.

A ordenação de D. Manuel deixa claro, por um lado, um profundo

desconhecimento sobre o Império do Meio e, por outro lado, uma tentativa de

contacto, embora centrado numa perspectiva mercantil, também aberto a

indagações militares, religiosas, geográficas e políticas. Contudo, as questões

religiosasnãodevemserentendidasnumcontextoproselitistaoudeconquistada

fé. Trata‐se, fundamentalmente, da recolha de informações estratégicas com vista

aodomíniocomercialeterritorialnoSudesteAsiático.

As informações recolhidasporRuideAraújoe JoãoViegas,que serviramem

grande parte como fontes da Suma Oriental de Tomé Pires, davam conta do

comércioque se faziaemMalaca.Osportosmalaiosatravessavamumperíodode

grande abertura ao comércio marítimo privado e semi‐oficial, numa importante

triangulaçãocomosportoschinesesdeNanyang,GuangdongeFujianecomoutros

mercadoresdoSiãoedeJava. JádesdeoséculoXIVqueMalacafuncionavacomo

um entreposto de controlo sobre a pirataria nos Mares do Sul e como uma

afirmaçãodosistematributáriochinês.

Rapidamente floresceu em Malaca, sobretudo depois da conquista pelos

portuguesesem1511,umcomérciosemi‐oficialdominadopormercadoresprivados,

entre os quais o próprio João Viegas, que em 1512 é detido e levado para Goa,

acusado por Tomé Pires de furtar as mercadorias que vinham do Pegu. As rotas

comerciaisMalaca‐Cantãoabriramcaminhoaumestreitamentodasrelaçõessino‐

portuguesas, através das primeiras embaixadas de Jorge Álvares a Cantão,

acompanhado pelo mercador privado Rafael Perestrelo e pelo fidalgo Simão de

Andrade. O objectivo era claramente o de estabelecer uma feitoria no principal

1RegimentodeD.ManuelaDiogoLopesdeSequeira,13deFevereirode1508,CartasdeAfonsodeAlbuquerque seguidasdedocumentos queaselucidam, org, A.BulhãoPato. Lisboa:AcademiaRealdasSciencias,1898,tomoII,p.416.cit.apartirdeLuísFilipeBarreto.Macau.PodereSaber‐séculosXVIeXVII.Lisboa:EditorialPresença,2006,p.36.

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AartecristãnoImpériodoMeio

269

porto comercial do Sul da China e incluir o comércio dos portugueses no rigoroso

sistematributáriochinês.

A estas investidas comerciais seguiu‐se a célebre embaixada tributária de

Fernão Peres de Andrade, que se fazia acompanhar por Tomé Pires como

embaixadoreportadordeumacartadeD.Manuelao ImperadordaChina, como

objectivodeestabeleceruma feitoriaemCantão2.Apresençadosportuguesesno

Rio das Pérolas colocou‐os em contacto com os juncos dos “lequeos, guoros, &

japangos, hos quais ha principal mercadoria que traziam era o ouro” e com a

percepção de que o porto de Cantão constituía um ponto nevrálgico das rotas

comerciaisentreoSião,Conchichina,MalacaeJapão.

Contudo, a tentativa dos portugueses construírem uma fortaleza na

embocadura doRiodasPérolas, asqueixasque oSultãodeMalacaapresentouàs

autoridades chinesas contra os portugueses e a carta deD.Manuel ao Imperador

chinês,ondeoReidePortugalsedirigiaaoImperadornumtomigualitário,ditaram

oinsucessodaexpediçãoportuguesa,levandoàdetençãodetodososemissáriosem

Cantãoeàinterdiçãopelasautoridadeschinesasdocomérciocomosportugueses.

O profundo desconhecimento do sistema protocolar na relação com as

autoridadeschinesasea ignorânciasobreopoderegrandezado ImpériodaChina

ditaram a ruína das relações sino‐portuguesas por volta de 1520 ‐ 1521. Seria

novamenteocomérciodemercadoresprivados,portuguesesechineses,que,entre

1522 e 1529, retomaram o comércio privado da pimenta e da seda em portos

alternativos, nomeadamente no Fujian. Esta realidade comercial é detida pelos

mercadoresprivados,queenvolveosportuguesesasiatizadosecasadosdeMalaca,

2 Rui Manuel Loureiro. “Tomé Pires ‐ Boticário, tratadista e embaixador”. IN:Os fundamentos daamizade. Cinco séculos de relações culturais e artísticas Luso‐chinesas, coordenação científica deFernandoAntónio BaptistaPereira. Lisboa:CentroCientífico eCulturaldeMacau,2000,p.46. LuísFilipe Barreto.Macau.Podere Saber ‐ séculos XVIeXVII. Lisboa: EditorialPresença,2006,pp.60 esegs.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

270

em estreita parceria com as comunidades chinesas do Fujian que, por sua vez,

competiamcomofluxocomercialdeCantão3.

Desta forma, os portugueses entram nas rotas comerciais privadas tirando

partido,porumlado,dofimdasrelaçõessino‐japonesasquevigoravadesde1523e,

por outro lado, de algum controlo que naturalmente impôs sobre a pirataria nas

zonas costeiras do Sul da China. Paulatinamente, os portugueses demonstraram

constituir uma solução fundamental às necessidades da China, não só como

intermediáriosdocomérciocomosmercadores japonesesapartirde1542/1543,

trazendooambicionadoâmbarcinzento,osândalo,osapãoe,sobretudo,aprata,

comotambémexerciamcontrolosobreapiratariadosWakounaszonascosteirasdo

Sul da China. Um melhor entendimento e cuidado no relacionamento com as

autoridades chinesas, mais próximo dos governadores locais do que uma ousada

tentativa de proximidade ao Imperador, resultou na autorização, em1554, para o

estabelecimentodosportuguesesnaPenínsuladeMacau,medianteopagamentodo

forodochãoedosrespectivostributoscomerciais.Deformanatural,aimportância

de Macau cresce como plataforma geoestratégica no seguimento da Carreira do

Japão,atingindoumapogeuapartirde16124.Noseguimentodasperseguiçõesaos

cristãos decretada por Tokugawa Ieyasu, os cristãos japoneses e missionários

europeus do Japão encontraram refúgio emMacau eManila, criando umamaior

diversidadeculturaleartísticapermeávelàsinfluênciasdoJapão.

AConquista espiritual da China foi conduzida numa fase inicial por padres e

missionários que acompanhavam fidalgos emercadores nos portos dosMares do

Sul, tendo,muitos deles, ficado cativos pelas autoridades chinesas. A chegada de

FranciscoXavieraoSuldaChina,noanode1552, constituiumsímbolodagénese

3Op.Cit.,p.71.4 Importa aqui referir que, em bom rigor, se verifica uma reciprocidade na relação entre ocrescimentoda influênciadeMacaueoaumentodonúmerodeviagensdaCarreirado Japão,queduplicaem relaçãoaosanosanterioresa1557apartirde Lampacau.Cf.LuísFilipeBarreto.Macau.PodereSaber‐séculosXVIeXVII.Lisboa:EditorialPresença,2006,p.109.

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AartecristãnoImpériodoMeio

271

dasmissõescatólicasnaChina,apesarterperecidopoucosmesesdepoisnaIlhade

ShangchuanesemterchegadoàChinaContinental.

Sabemos que em 1553 ou 1554 se encontrava emMacau o padre espanhol

Gregório Gonzales, juntamente com outros sete cristãos que aí permaneceram.

Relata em carta que “no segundo ano, o Senhor começou a iluminar‐me a

inteligência,eassimconvertialgunschinesesàfédeJesusCristo,residindonaterra

firme numa capela‐palhota. Logo que chegaram os navios da Índia ou de outros

países,euvolteiaresidiraterrafirmecomoscristãos”.A forma incipientecomoé

narradoesteepisódiodemonstraquesetratadeumarealidadereportadaapadres

demissa, servindocomoumapoioespiritualaosmercadoreseviajanteseuropeus

que se movimentavam pelos principais portos asiáticos. O desconhecimento da

língua chinesa e uma política geoestratégica quase exclusivamente centrada no

comércio e nas riquezas das mercadorias relega para segundo plano a estratégia

missionária. Tal como nota Luís Filipe Barreto, é pouco provável que um padre

ocidental que desconhece a língua chinesa e abandonado num porto junto de

pessoasiletradasconvertessechineses5.

É de facto a estrutura organizada da militância espiritual da Companhia de

Jesus que irá lançar as primeiras pedras para uma proximidade às comunidades

locais, nomeadamente através de Estêvão deGóis que, em 1556, chega a Cantão

comoobjectivodeaí aprendera línguachinesa.EstêvãodeGóis ficouemCantão

depoisdeterembarcadonanaudeD.FranciscodeMascarenhas,juntamentecomo

padre jesuítaMelchiorNunes Barreto, que seguiampara o Japão. Finalmente, em

1563,ospadresFranciscoPeres,ManuelTeixeiraeo IrmãoCoadjutorAndréPinto

fundaram, no actual lugar da igreja e residência de Santo António, uma casa da

CompanhiadeJesus.JánoanoanteriorosjesuítasLuísFróiseoitalianoBautistade

Monte haviamestabelecido uma casa emMacau, junto às propriedades de Pedro

5Op.Cit.,p.104.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Quintero.FoiprecisamentePedroQuinteroqueofereceuàCompanhiadeJesus,em

1565,oedifícioqueserviuderesidênciajesuítaemMacau6.

Os missionários da Companhia de Jesus foram determinantes para a

organização espiritual, social e até administrativa de Macau, actuando por várias

vezes como mediadores entre o poder oficial e o aparelho do Estado da Índia,

conciliando os interesses e direitos da Coroa comos interesses dosmercadores e

moradores.

Esta afirmação da condição de Macau ao longo da década de sessenta

coaduna‐se comaelevaçãodasprimeiras igrejas,quecorrespondem igualmentea

um crescimento demográfico substancial. Consequentemente, em 1569, esta

consolidação urbana e populacional justifica a fundação de uma Santa Casa da

Misericórdia,quecontavacomdoishospitaisparaassistênciaaosenfermos,resgate

doscativos,enterrodospobreseajudaaórfãoseviúvas.

Em1572,aCompanhiadeJesusfundaaprimeiraescoladeestudosprimários,

quecontavacomtrêspadreseumirmão,seguindo‐sedoisanosdepoiso inícioda

edificação,emtaipa,dacélebreigrejadeS.PaulodeMacau7.

Peranteestaconsolidaçãodasestruturasdeapoioespiritualedeeducaçãoo

Papa Gregório XIII emitiu, em Janeiro de 1576, a Bula Super Militantis Ecclesiae,

criandooBispadodeMacaucomjurisdiçãoeclesiásticanaChina,JapãoeCoreia.Em

1579, chegam a Macau os Franciscanos, Pedro de Alfaro e G. Baptista Lucarelli,

vindos das Filipinas e que começam a construir o primeiro convento Franciscano,

consagradoaNossaSenhoradosAnjos,queinaugurouemFevereirode15808.

Em1578,AlessandroValignano,VisitadordaCompanhiadeJesusnoOriente,

deslocou‐seaMacauparase informaracercadasmissõesnaChina,percebendoaí

que, apesar dos esforços iniciais na aprendizagem da língua chinesa, seria esta

6Op.Cit.,p.114‐115.7Op.Cit.,p.1378Op.Cit.,p.141

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AartecristãnoImpériodoMeio

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barreira comunicacional que estaria a dificultar a incursão dos missionários no

ImpérioCeleste.Nestesentido,tendoconhecimentoqueMichelleRuggieridefendia

a aprendizagemda língua e dos costumes chineses comoponto de partida para a

dinamização do trabalhomissionário, Valignano dirigiu uma carta ao Superior em

Goa a solicitar a dispensa de Ruggieri para a Missão da China. O jesuíta italiano

chegouaMacauem22deJulhode1579,aprendendo,durantedoisanosemeio,a

língua chinesa com um pintor de pintura tradicional chinesa e introduzido ao

cerimonialchinêspeloBispoMelchiorCarneiro9.

Durante este período, Ruggieri realizou incursões no interior da China,

nomeadamenteemGuangdongeZhaoqing,ondeobteveautorizaçãodoGovernador

localparapermanecereestabelecermissões.Em1582,regressouaMacauondese

encontroucomFranciscoPasioeMatteoRiccique,deacordocomfonteschinesas,

“aprendiama línguachinesae liam livrosemchinês”10.Noano seguinte,Ruggieri,

PasioeRicciviviamnoTemplodeTianningemZhaoqing,concretizandoodesejode

FranciscoXavierdeiniciarumamissãonoCelesteImpério.

O elevado grau de erudição e conhecimento dos padres jesuítas que se

encontravamemZhaoqing,bemcomoorespeitoeconhecimentodocerimonialque

ditaasrelaçõesprotocolaresnaChina,eram factoresprofundamenteapreciadose

valorizados pelas autoridades chinesas. Poucos anos depois, o Governador de

Shaoxing, Guo Yingpin, na província de Zhejiang, convidouMichelle Ruggieri para

iniciaraíactividademissionária.

Enquantoisso,Ricciganhavainfluênciajuntodasautoridadeschinesasdevido

ao apreço que os funcionários locais de Zhaoqing tinham pela cartografia,

instrumentosastronómicoserelógiosoferecidospelomissionário jesuíta.Foidesta

9HuangQichen.“Macau,pontedointercâmbioculturalentreaChinaeoOcidentenosséculosXVIaXVIII”. IN:Administração. Revista da Administração Pública deMacau. ‐Macau ‐ nº 6, vol II (Dez.1989),p.613.10Colectânea das histórias não oficiais do reinado deWanli por ShenDefu, vol. 30. Cit. a partir deHuangQichen. “Macau,pontedo intercâmbioculturalentreaChinaeoOcidentenosséculosXVIaXVIII”. IN:Administração. Revista da Administração Pública deMacau. ‐Macau ‐ nº 6, vol II (Dez.1989),p.614.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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formaqueMatteoRicciobteveautorizaçãoparaaconstruçãodasprimeiras igrejas

no interiordaChinaem1584(igrejadeZhaoqing)e1590(igrejadeShaozhou).Em

1594,MatteoRiccipartiuemdirecçãoaPequim,noentantonãofoibemrecebido

pelas autoridades chinesas emNanquim, sendo obrigado a regressar a Nanchang.

Entretanto, Valignano incumbiu Matteo Ricci de se deslocar a Pequim e solicitar

audiência com o Imperador Shenzong para pedir residência e autorização para

desenvolver acção missionária em Pequim. Esta acção determina uma completa

independência do Reitor do Colégio deMacau e a afirmação daMissão da China,

concentradanoobjectivodechegaraPequim.Foiapenasem1598,noseguimento

de uma recomendação deWang Zhongming,Ministro dos Ritos de Nanquim, que

MatteoRiccieLázaroCattaneochegaramaPequim.Aindaassim,devidoà invasão

da Coreia pelos japoneses, osmissionários jesuítas foram obrigados a regressar a

Nanquim, sem se apresentarem ao Imperador. Foi novamente um funcionário do

Ministériodos RitosquegarantiupassagemdeMatteoRicci aPequim, tendosido

apresentado a um Eunuco que o colocou diante do Imperador Shenzong. À sua

chegada,nodia24deJaneirode1601,MatteoRicciofereceuaoImperadorchinês

uma imagemdo Senhor, duas imagens daVirgemMaria, outra deDeus Pai e um

Crucifixocompérolasembutidas.Entreestespresentesofereceuaindarelógios,um

Átlasedois instrumentosmusicais,permitindoque fosse recebidopelo Imperador

comoumconvidadodeelevadaconsideração.

DeGoa aMacau e deMacau a Pequim, entre 1509 e 1601, criaram‐se duas

realidadesdistintasemtornodaconquistaespiritualemterritóriochinês.EmMacau,

sobGovernaçãoportuguesaapartirdoLeal Senadodesde1583,osportuguesese

outros europeus viviam num verdadeiro porto de comércio internacional

caracterizado por uma malha urbana multicultural de asiatizados, casados e de

outros, oriundos das regiões circundantes. A vivência e convivência de uma

oligarquia mercantil, que partilha o espaço com fidalgos e missionários das

diferentesOrdensReligiosas,resultamnumapluralidadeculturaleartística.Apesar

desta convivência de gentes e culturas diversas, Macau é um espaço fortemente

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AartecristãnoImpériodoMeio

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ocidentalizado, com edifícios construídos num estilo europeu, embora

ornamentados com elementos de influência local, chegando até, em alguns

momentos, a não haver na cidade quem falasse a língua dos chins11. As relações

fortementecomerciaisacentuamadicotomiasocialentreacomunidadechinesaea

comunidade cristã, constituída não só por portugueses, mas também cristãos

convertidos de Malaca, da Costa do Malabar e de nhons (naturais da terra). O

carácterocidentalizadodeMacau,juntamenteaumaelevaçãoaSedeEpiscopalna

Ásia Extrema, transforma o pequeno istmo numa plataforma de circulação de

pessoasebensentreasmissõesnaChina, JapãoenoSudesteAsiático.Elevam‐se

igrejas, seminários e colégios ricamente ornamentados com pintura, escultura de

vulto e imaginária em marfim que seguia os modelos iconográficos e estéticos

europeus.TalcomoFreiGaspardaCruzafirmatervistoemCantãoumavastidãode

artíficescarpinteiros,ouriveseoutrostantosqueproduziam“muitaabundânciade

cousasdecadaofícioemuyperfeitas”12,tambémemMacauhaviacertamenteuma

elitedeartistaslocaisqueproduziramextensaiconografiacristã,nãosóempintura

eescultura,comotambémemporcelana,emseda,marfimemetaispreciosos.Estes

artistas naturais deMacau, como são exemplo os irmãos coadjuvantes Shi Hongji

(Francisco Lagea), João Novais, You Wenhui (Manuel Pereira), o autor do famoso

retrato de Matteo Ricci, foram determinantes para a circulação do estilo e das

técnicasdapinturaeuropeianaChinaenoJapão,apartirdeMacau13.

Por outro lado, a residência dos missionários jesuítas na corte imperial em

Pequim, iniciadapelaacçãodiplomáticadeMatteoRiccinodealbardoséculoXVII,

apresentaumarealidadeculturaleartísticacompletamentedistintadaquelaquese

11Cf. JoãoPauloOliveiraCosta. “MacaueNagasáqui ‐ospolosdapresençaportuguesanoMardaChinana segundametadedo séculoXVI”. IN:Portugale China.Actasdas conferênciasno III CursoLivredeHistóriadasRelaçõesentrePortugaleaChina(séculosXVI‐XVII),coordenaçãodeJorgeM.dosSantosAlves.Lisboa:FundaçãoOriente,2000,p.93.12TratadodascoisasdaChinaporFreiGaspardaCruz. IntroduçãoenotasdeRuiManuel Loureiro.Lisboa:Cotovia/CNCDP,1997,pp.147‐153.13Cf.LuísFilipeBarreto.Macau.PodereSaber‐séculosXVIeXVII.Lisboa:EditorialPresença,2006,p.274. Nicholas Standaert. Yang Tingyun, Confucian and Christian in Late Ming China. His life anfthought.Leiden:SinicaLeidensia,vol.XIX,p.92.

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vive emMacau.MatteoRicci levava consigo diversas curiosidades da Europa para

oferecer aos Imperadores da China, entre as quais os instrumentosmusicais e de

observação astronómica geramomaior interesse na Corte Imperial. A pintura e a

gravura com temas cristãos, que o missionário italiano também ofereceu ao

Imperador,comointuitodedaraconheceroCristianismo,foramrecebidoscomtão

grandeapreçocomofascíniodastécnicasartísticaseuropeias,comoaperspectiva,a

ilusãodoreal,otrompe l’oeileapinturaaóleo.TalcomonaEuropa,ogostopelo

exótico, que preencheu as kunstkammern das principais cortes europeias com as

raridades dosNovosMundos, também os Imperadores das dinastiasMing e Qing

pretenderamteraoseudisporváriosartistaseuropeusquetrabalhavamnasoficinas

imperiais produzindo pintura ao estilo ocidental. Estes artistas, na sua maioria

associados à Companhia de Jesus, desencadearam um processo de confluência

artística,numacombinaçãodetécnicas,deestilosedetemas,considerandoqueas

imagens cristãs geraram grandes controvérsias no interior do Palácio Imperial,

chegando mesmo algumas das figuras influentes a insurgirem‐se contra a

representação de arte cristã, pela forma violenta como o Deus dos europeus era

representado.

Estamos, desta forma, perante duas formas de estar no relacionamento

culturaleartísticono ImpériodoMeio.EnquantoemMacauseconstruiuao longo

do tempo uma cidade à imagem dos grandes portos internacionais da Europa,

apesar da forte presença da comunidade chinesa, em Pequim, os missionários

jesuítas tornaram‐se profundamente permeáveis à cultura e arte chinesas. Estas

duasrealidadesdeterminaramdiferentescaminhosnodiálogodasformasartísticas,

sobretudo da arte cristã como instrumento da propagação do Cristianismo no

CelesteImpério.Importaaonossoestudoperceber,porumlado,apermeabilidade

da artemissionária às formas de representação do sagrado na China, assim como

inúmerosartistasjesuítasseadaptaramaoestilodapinturachinesatradicional.

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1. AartenaChinaMingantesdachegadadosportugueses

Aotempodoreinadodo ImperadorHongwu,primeiro imperadordadinastia

Ming, a China atravessava um momento de grande esplendor e glória depois da

queda da dinastia Yuan, um período aparentemente obscuro de governação

estrangeiraqueerafundamentalapagardamemóriadosanaisdahistóriadaChina.

DepoisdarestauraçãodopoderdosHan(amaioriaétnicadaChina),osMingderam

inícioauma reestruturação dopoder central focado, sobretudo,numavalorização

cultural,artísticaefilosóficadoperíodoáureodasdinastiasTangeSong.

OfundadordadinastiaYuan,KhubilaiKhan,adoptoumuitosdoscostumesda

cultura ancestral chinesa, não só ao nível do pensamento, da filosofia e da

organizaçãodoImpério,mastambémaonívelartístico,comespecialênfaseparaa

produção de porcelana e a consagração de uma grande elite de pintores da corte

Imperialqueexerciam,dealgumaforma,uma liberdadeexpressivanacomposição

de pintura de paisagem e caligrafia e outros artistas que contribuíram para um

reafirmardasartesdecorativasapartirdo séculoXIV.É fundamental referirquea

herançaTurco‐MongolealigaçãocomercialentreaEuropaeaÁsiatornouaChina

permeável a um intercâmbio cultural e ao despoletar de processos de alteridade

artística. Ainda assim, a dinastia Yuan implementou profundas alterações na

organizaçãosocial,atravésdeumadiscriminaçãoétnica,definindoquatroclassesde

privilégios sociais, sendo que os cargos de administração central eram reservados

aosmongóis.

Com a dinastiaMing, o Confucionismo retoma o seu lugar de proeminência

comoordemsocialemorale,osAnaletosdeConfúcio,asinterpretaçõesdeMencius

dos textos confucionistas, a Doutrina do Meio e o Grande Ensinamento, foram

profusamenteestudadosapartirdasexplicaçõesdograndeeruditodadinastiaSong,

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ZhuXi.Anecessidadede formaçãodeumanovageraçãode literati, submetidosa

rigorosos exames, visava a substituição dos oficiais mongóis nos cargos de

administração do governo. Rapidamente, estes literati ganharam um estatuto de

proeminência pelas funções governativas que assumiam, mas também enquanto

conhecedores da cultura chinesa, sendo‐lhes concedidos privilégios, propriedades,

vivendomuitasvezesdeformaabastada.

Este crescimento económico e consequente desenvolvimento urbano,

sobretudonaregiãoinferioraoRioYangtze,deve‐se,porumlado,àemergênciade

uma vasta elite de oficiais do Governo e, por outro, a um comércio marítimo

internacionalqueprosperavanasprovínciascosteirasdeJiangsu,Zhejiang,Fujiane

Guangdong.Destaforma,chegavaàChinaaprataqueacelerouamonetarizaçãoda

economia chinesa. Seria exactamente a prata que,mais tarde, esteve na base da

emergência da importância comercial dos portugueses, que a traziam aos portos

chineses de Cantão e do Fujian a partir da Carreira do Japão. Era primordial

circunscreverocontactocomosestrangeirosaregiõesperfeitamentecontroladase

tambémincluirtodoocomérciointernacionalnascomplexaseexigentesestruturas

dosistematributáriochinês1.

PassadospoucosanosdaafirmaçãodopoderdosMingemNanjing,oterceiro

imperadordadinastiaMing,Chengzu,mudoua capitalparaPequim,delineandoa

partirdospaláciosquemandouconstruirtodasasestratégiasmilitares.Nanjingficou

reduzida à gestão fiscal aplicada ao comércio internacional e a todos os impostos

deduzidosnasricasprovínciasdoSul.

Em Pequim,milhares de homens trabalhavam continuamente na construção

deumacidadeimperial,envoltaporextensasmuralhas.ACidadeProibidatornou‐se,

aolongodadinastiaMing,nomaisimportanteespaçonãosócomoresidênciaoficial

doImperador,mastambémpelaemergênciadeumaelitedeliteratiqueformavam

umaestruturaintelectualdeelevadaconsideração.Aorganizaçãodopodermilitare

1PatriciaBuckleyEbrey.TheCambridgeillustratedhistoryofChina.Cambridge:CambridgeUniversityPress,10thedition,2008,p.190.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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económico permitia, a partir da primeirametade do século XV, uma estruturação

educativa,culturaleartística.

Aadmissãodeoficiaisimperiaisdecorriasobumelevadorigoratravésdeum

processodeexamesqueprocuravaidentificaraquelesquedemonstravamummaior

talento, quer ao nível das suas ideias morais, que estão na base do pensamento

Confucionista,queraoníveldoconhecimentocultural. Trata‐se,efectivamente,de

um reconhecimento de princípios gerais e ideais que descartam, em absoluto, o

princípio de recomendação pessoal. O ideal de governação concentra‐se no

tradicionalequilíbriodeforças,aparentementeantitéticas,fundamentadasnoYine

no Yang e que se manifesta na reflexão e na acção do Homem. Em resumo, os

candidatos deveriam demonstrar três aspectos primordiais, a saber: o culto dos

ancestrais, o culto dos espíritos e o conhecimento dos três ensinamentos (o

Confucionismo, o Taoismo e o Budismo)2. O culto dos ancestrais e dos espíritos

relaciona‐se como princípio de celebração dos valoresmorais da família, que são

fundamentaisnatradiçãoculturalchinesa,porquesãoosantepassadoseosespíritos

ancestraiszelampelafortunae longevidadedos seusdescendentes.Sóaqueleque

sabe cuidar dos seus antepassados é que poderá ser capaz de participar na

governaçãoumImpério.Oconhecimentodostrêsensinamentospermiteodomínio

de um vasto conjunto de princípios éticos, educacionais e de um ideal de

governação,sustentadona ideiadequeavirtudefluidoImperadorparaosoficiais

daadministraçãodoImpério.Refere‐seaumaacçãonaturaldoconceitotaoistawu

wei,quesignificaliteralmente,actuarsemagir,permitindoaogovernadorincorporar

e entender a energia vital, que semanifesta através da natureza e da relação do

HomemcomoCosmos.

O culto dos antepassados, a reflexão do lugar do Homem no Cosmos e o

conhecimento cultural de um literati ganham expressão na sua relação intrínseca

comacriaçãoartística,nãosóapartirdeumaideiadememória,atravésdacolecção

depreciosidadese relíquias culturais,mas tambémapartirdeumacapacidadede

2JacquesPimpaneau.Chine.Cultureettraditions.Arles:ÉditionsPhilippePicquier,1990,pp.190.

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acção técnicae sensitiva,atravésdaexpressãoartística.Neste contexto,os literati

chineses e os oficiais de governação, reuniam importantes colecções de arte que

incorporamas relíquias dos seus antepassados e os rituais que eramdestinados a

outros antepassados ainda mais ancestrais. Entre estes objectos os jades e os

recipientes em bronze seriam os mais apreciados, precisamente pelo ritual de

celebraçãodosantepassadosque lhesestá implícito3.Aestas relíquiasdopassado

juntam‐se as três perfeições: a pintura, a caligrafia e a poesia, criteriosamente

coleccionadas e estudadas, apresentando várias vezes os diversos registos das

reflexões dos seus proprietários ao longo do tempo. A harmonia dos princípios

aparentemente antitéticos reflecte‐se no Homem enquanto oficial de estado,

portanto operativo, e enquanto artista ou apreciador de arte,manifestandoo seu

carácter reflexivo e meditativo. Neste contexto, não é de estranhar percebermos

queopróprioimperadorXuande(1426‐1435)eraumliteratodereferência,notável

pintor e poeta, contribuindo para ummomento de grande prosperidade artística,

tendo ainda ficado conhecido comoo primeiro grandemecenas da dinastiaMing,

seguindooexemplodoimperadorHuizongdadinastiaSong.Éduranteoseureinado

quesecomeçaadefinirumaestruturaorganizadadapinturadecorte,caracterizada

porumelevadorigoracadémico,queseinspiravanosmodelosdosgrandespintores

da dinastia Song, entre os quais Guo Xi e Li Cheng. Os pintores da corte imperial

desenvolveram uma maior preocupação com o restabelecimento dos conceitos

estéticos desenvolvidos pelos artistas Song, num retorno a um conceptualismo

metafórico,retomando, inclusivamente,apinturasobresedaemopçãoaopapele

muitasvezescopiandoatéaprópriaassinaturadosmestresSong4.

3Cf.AA.VV.Artsfromthescholar'sstudio.HongKong:OrientalCeramicSocietyofHongKongandtheFung Ping ShanMuseum, University of Hong Kong, 1986. Fang Jing Pei. Treasures Of The ChineseScholar. New York: Weatherhill, 1997. Rui Oliveira Lopes. “Símbolos auspiciosos nos gabinetes deeruditonaChina Imperial”. IN:Museu IbéricodeArqueologiaeArte.Antevisão II.Abrantes:CâmaraMunicipaldeAbrantes/MIAA,2010,pp.116‐121.4 Craig Clunas. Art in China. Oxford: Oxford University Press, 1997, pp. 72 ‐ 79. Ferrer, Anne.“Caligraphy and Painting for official life”. IN: The British Museum Book of Chinese Art, edited byJessicaRawson.London:BritishMuseum,pp.102‐119.MichaelSullivan.SymbolsofEternity.TheartoflandscapepaintinginChina.Stanford:StanfordUniversityPress,1979,108‐135.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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O enquadramento cultural, político e económico da China Ming ditou uma

dicotomiaentreaproduçãoartísticanoseiodacorte imperialetodaaquelaoutra

desenvolvidaporartistasamadores,muitosdelesantigosoficiaisdaadministração,

queviviamagora recolhidosnas regiõesmontanhosasdoSul,emharmonia coma

natureza.Outrosconstruíramextensos jardinsemSuzhou,naprovínciadeJiangsu,

onde se dedicavam à pintura, caligrafia, poesia e à discussão harmoniosa das

pinturaseoutrasrelíquiasdassuascolecções.

Umadasmais importantesobrasatribuídasaXieHuan,datadadec.1437,e

intitulada Elegante encontro no jardim de alperce, representa Yang Rong, um dos

grandes secretários do imperador Xuanzong, no seu jardim, juntamente com oito

secretáriosdoestadoaapreciarpoesia,averpinturaeajogarxadrez.Estapintura

representa, na plenitude, o gosto da corte imperial Ming, sendo notável nas

expressõesfaciaisdasfigurasumatotalharmoniacomomeioenvolvente5.

Afastados do rigorismo da Academia Oficial de Pintura, associada à corte

imperial,umconjuntodepintores,entreosquaisShenZhoueoseudiscípuloWen

Zhengming, desenvolveram em Suzhou um movimento de pintura amadora,

dedicando‐seaumaliberdadederepresentaçãoedeexpressãoartística.Apesarde

nãoignoraremcompletamenteapinturadosmestresdadinastiaSong,reconheciam

acimade tudo a liberdade expressiva da pintura e caligrafia como veículo doTao,

inerenteàpinturadeZhaoMeng‐FuedosquatrograndesmestresdadinastiaYuan

(HuangGong‐Wang,WangMeng,WuZheneNiZan)6.Inspirando‐senestesartistas,

invocamo idealdasTrêsPerfeições,combinandoapintura,apoesiaea caligrafia,

através de uma relação entre a ideia representada pela paisagem figurada e da

composição poética sobre a essência da paisagem. Por outro lado, a “mancha”

caligráficadopoemafunde‐secomacomposiçãoformaldapaisagem,numelogioao

5Cf.RuiOliveiraLopes.“Aideiadenaturezanaartechinesa:dapinturadepaisagemàarquitecturadejardins”. IN: Actas das Conferências Arte e Natureza. Lisboa: Faculdade de Belas‐Artes daUniversidadedeLisboa,2009,pp.248‐267.6Michael Sullivan. Symbols of Eternity. The art of landscape painting in China. Stanford: StanfordUniversityPress,1979,108‐135.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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equilíbrioeharmoniadascoisas.Esteequilíbrioeconsonânciaenquantoregistoda

reflexãoecorrelaçãodolugardoHomemnoCosmoséexpressãodeumsentimento

espiritual,namedidaemque,aopintar,oartistaéoveículodoqi,aenergiavital.

A emergência de uma extensa classe de eruditos, dispersos pelos principais

centrosurbanosdaChinaMing,deuorigemàformulaçãodeumgostopelas“coisas

supérfluas”, de um culto do objecto pelo seu valor histórico como legado do

passado,preciosidadedomaterialeexecuçãotécnica.Éesteprincípioocatalisador

da afirmação das artes decorativas na expressão artística da ChinaMing, onde os

têxteis,emparticularasedadelicadamentebordada,acerâmica,comdestaquepara

a porcelana azul e branca, o jade, a laca, omobiliário, o esmalte e a escultura de

escala reduzida e entalhada numa vasta panóplia de materiais fazem parte das

relíquiasdoimperador.

Oobjectoéocentroondeseconcentraaenergiavitaldopassado,damatéria

edatécnica.Énestecontextoqueasesculturasemjade,emmuitoscasosimitação

de recipientes utilizados em rituais fúnebres durante as dinastias Shang e Zhou,

eram dos mais apreciados objectos das colecções privadas do Imperador ou dos

literati. Para além de evocar uma ligação ao culto dos antepassados, através da

actualizaçãodoritual7,ojade,persi,representaossímbolosdanobreza,perfeição,

imortalidadeeumelodeligaçãoaumadimensãoespiritual8.Finalmente,oartistaé

oveículodaenergiavital,capazdeesculpiramaisdurasuperfíciedeumaformatão

perfeitaeporissotãonatural.

A construção de amplos palácios após a mudança da capital dosMing para

Pequimpermitiuodesenvolvimentodediversasoficinas,sobacriteriosasupervisão

doMinistériodosRitos.Entreessasoficinasimperiais,aFábricadoPomardestacou‐

7MirceaEliade.Osagradoeoprofano.Aessênciadasreligiões.Lisboa:EdiçãoLivrosdoBrasil,Col.VidaeCultura,nº62,2006,pp.107‐116.8JessicaRawson.“JadesandBronzesforritual”. IN:TheBritishMuseumBookofChineseArt,editedbyJessicaRawson.London:TheBritishMuseumPress,pp.44‐83.Idem.“Treasuredfortenthousandyears: Bronze and Jade in Early China”. IN:Treasures from Shanghai. Ancient Chinese bronzes andjades,editedbyJessicaRawson.London:TheBritishMuseumPress/TheShanghaiMuseum,2009,pp.20‐45.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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se pela exuberância e qualidade das peças de mobiliário e em madeira lacada

utilizadas para a ornamentação dos palácios imperais. As técnicas utilizadas

remetiam igualmente para os modelos remanescentes da dinastia Song e estes

objectoseramconsideradosdeelevadaqualidadeeapreçonas regiões comerciais

daembocaduradoRio Yangtze9.As cadeirasemmadeiraHuanghuali reproduzidas

emabundânciana ilhadeHainan,ao largodoSuldaChina (MacaueHongKong),

caracterizadas pelos tons vermelhos com veios e pontos negros, dureza elevada e

levementeperfumada,foramamplamentedifundidaspelosmercadoresportugueses

por toda a Ásia, incluindo o Japão, onde surgem representadas nos biombos

Namban.

Astécnicasdeentalhecombinadascomumadiversidadedemateriaiscomoo

bambu,omarfim,oosso,raízesdeplantas,pedraspreciosaseatétijoloscerâmicos,

resultaramna estruturação de diversas oficinas artísticas, que forneciamnão só a

corte imperial, mas também muitos dos comerciantes que procuram produtos

valiososnosprincipaisportosdecomércio nas regiões litoraisdaChina, sobretudo

emCantão.OmarfimfoiumdosmateriaismaisutilizadosduranteoséculoXVI,para

oentalhededeusesbudistasedosimortaistaoistas,especialmentenoFujian10.

A produção de cerâmica, ancestral na tradição cultural da China, atinge

durante a dinastiaMing umelevado estatuto, sobretudo ao nível da produção de

porcelanaemJingdezhen,naprovínciadeJiangxi,cujosfornosfuncionavamjádesde

a dinastia Song. A combinação de vários factores, entre os quais a localização

geográfica,capazdetransportaraporcelanaportodaaÁsiaExtrema,JapãoeCoreia

atravésdoRioYangtze,chegatambémaoSudestedaÁsia.Aconcentraçãodeuma

multidãodetrabalhadorestornoupossívelumaproduçãoemsériedeporcelanasob

uma criteriosa supervisão da corte imperial, nomeadamente no que respeita à

ornamentação, seja para uma utilização em rituais de celebração, seja para a

9CraigClunas.ArtinChina.Oxford:OxfordUniversityPress,1997,p.67.10 Jane Portal. “Decorativearts fordisplay”. IN:The BritishMuseumBook ofChineseArt, editedbyJessicaRawson.London:BritishMuseum,p.182.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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utilização de quotidiano11. A porcelana Ming tornou‐se um dos ex‐líbris da arte

chinesa, numa combinação entre os significados simbólicos da decoração e a

execuçãotécnicadoartista.Acerâmicaazulebrancaeosblancdechineassumem‐

se como a verdadeira identidade da porcelana Ming, apreciada não só na China

como no mundo inteiro, tendo sido imitada no Japão, no Sudeste Asiático e na

Pérsia, com repercussões na Europa, nomeadamente servindo de inspiração à

cerâmicaholandesadeDelft12eàfaiançaportuguesa13.

A representação de divindades budistas, taoistas ou dos imortais e outros

seres do universo celestial, entre guardiães humanos de expressões terríficas ou

animais e demónios, preenchem um imaginário essencial no culto prestado aos

espíritos ancestrais. À semelhança do que assistimos no contexto da acção

missionária do Cristianismo, também o Budismo e a tradição popular do Taoismo

encontram na escultura de pequenas dimensões uma portabilidade útil a uma

devoçãoerranteedistantedosgrandescentrosdeespiritualidadedascidades.

A definição cultural da China assenta numa estreita relação entre a

manifestação de um sentimento religioso e a criação artística associada a rituais

consagradosaumahierarquiacelestial.Astradiçõesfolclóricasdeumareligiosidade

popular concentram‐se num período in illo tempore denominado Tempo dos Três

SoberanoseCincoImperadoresqueantecedeotempodahierarquiaterrestreeda

estruturaimperialfundadapeladinastiaQin.Esteperíodomitológicoreporta‐seao

tempo heróico e ancestral dos Criadores de todas as coisas, do primeiro Homem

(Imperador Amarelo), da escrita (Fuxi), da agricultura (Shennong). Esta

hierarquizaçãocelestialquecontrolaas forçasdanaturezaatravésdoqi,aenergia

11CraigClunas.ArtinChina.Oxford:OxfordUniversityPress,1997,p.67.ShelaghVainker.“Ceramicsfor use”. IN: The British Museum Book of Chinese Art, edited by Jessica Rawson. London: BritishMuseum,p.238‐242.12MichaelSullivan.TheartsofChina.London:Cardinal,1973,pp.205‐206.13Cf.SylvieMessingerRamosetalli.DoTejoaosmaresdaChina:umaepopeiaportuguesa.Lisboa::SecretariadeEstadodaCultura,1992.RafaelCalado.“AporcelanadaChinacomofontedeinspiraçãodadecoraçãodafaiançaportuguesadoséc.XVI”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº14,(Junho1993),pp.76‐83.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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vital, espelha o reflexo do aparelho burocrático da governação do Império chinês,

através do princípio fundamental de que tudo é uma consequência da acção do

Homem.

Decertaforma,oTaoismo,desdeosséculosVIeVantesdanossaEra,baseia‐

se numa ideia de sagrado intrínseco à natureza, como força mística criadora das

energiasdouniverso,origemdetodasascoisas.OTaoéavianaturaldascoisas,o

processoespontâneoquesemanifestaapartirdastransformaçõespermanentesdo

Universo14. Esta é a estrutura base da cultura chinesa, sobretudo a partir da

unificaçãoimperialdadinastiaHan,em221ANE.

Os princípios estéticos da arte chinesa estruturam‐se em torno da

contemplaçãodesteprocessoespontâneodanatureza,daqualoHomemfazparte,

considerandoqueaprópriacriaçãoartísticaéocaminho(Tao)paraacontemplação,

reflexãoeentendimentodosciclosdaordemedocaosprimordial.Arepresentação

do mundo natural e da natureza como tema principal é transversal à produção

artísticachinesanasmaisdiversastipologias,desdeosobjectosfunerários,passando

pelapinturadepaisagem,emroloeemleque,pelaspeçasemjade,lacaeporcelana

eaindapelaarquitecturadejardinsedepaisagensemminiatura15.

As características da paisagem montanhosa conjugam‐se com os outros

elementosnaturais,océu,oareaágua,queoimagináriodoHomemconverteem

propriedades místicas. Os recortes das encostas e as grutas que se abrem nas

montanhas,dedifícilacesso,tornam‐se,pelasuaproximidadeaocéu,portaispara

umUniversocelestial,ondehabitamos “imortais”, figuras lendárias comooVelho

Mestre, oMestre Celeste e os Espíritos dasMontanhas. Asdongtian (grutas) nas

montanhas são, de certomodo, o espaço onde a energia (qi) se liberta e onde se

criam todasas coisas.Estamatrizoriginal,pela acçãocíclicaeespontâneadoTao,

14 Kristofer Schipper. “O Taoismo”. IN: As grandes religiões do mundo, coordenado por JeanDelumeau.Lisboa:EditorialPresença,3ªed.,2002,p.511.15RuiOliveiraLopes.“A ideiadenaturezanaartechinesa:dapinturadepaisagemàarquitecturadejardins”. IN: Actas das Conferências ‘Arte e Natureza’. Lisboa: Faculdade de Belas‐Artes daUniversidadedeLisboa,2009,pp.248‐267.

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liberta a sua energia e os ventos leves e transparentes sobem para formar o Céu

enquantoosventospesadoseescurosdescemparasetransformaremnaterra.

Os monges taoistas que habitam no sopé das montanhas sagradas, em

comunhão com a natureza e com a energia vital, são considerados os maiores

conhecedoresdaordemdoCosmose,porqueabsorvemessamesmaenergiavital,

conseguem transgredir as barreiras do tempo, vivendo muito para além de uma

idadenormal.Ossoberanosmitológicos,os imortais,homensqueseelevamacima

dasuacondiçãoterrenaeoutrosheróisfazempartedeumaestruturaeimaginário

de umamoralidade que, através da arte, sobretudo da pintura de paisagem e da

representação da natureza, exprimem os princípios morais e éticos inerentes ao

TaoismoeaoConfucionismo.ÉnestecontextoqueTsungPing,noséculoVdanossa

Era,escreveomaisantigotratadosobrepinturadepaisagem,definindo‐aenquanto

género (lei) da maior importância porque reúne, por um lado um registo da

existência material e, por outro, conduz ao reino dos espíritos ancestrais16. Mais

tarde,no séculoVI,éXieHeque no seuRegistodospintoresdos temposantigos,

defineosseisprincípiosparaoentendimentodeumapintura,sendoqueoprimeiro

emaisimportanteéa“ressonânciaespiritual”,ouseja,avitalidadequetransmitea

energia vital que flui através do pintor para o pincel e deste para o papel17. A

representação do mundo natural e das propriedades simbólicas de todos os

elementos da natureza, desde as plantas aos animais, servem de analogia para a

construção de uma moralidade e de um código de conduta compilados pelo

pensamento taoista e Confucionista, que atinge umponto dematuridade artística

duranteasdinastiasTangeSong.

O terceiro ensinamento, o Budismo, exerce uma forte influência na tradição

cultural chinesa,desdeo século IdanossaEra,atravésda introduçãodeumnovo

16MichaelSullivan.TheArtsofChina.London:Cardinal,1973,p.97.17 Cf. Osvald Sirén. The Chinese on the art of painting. Texts by the painter‐critics, from the Hanthrough the Ch’ingDynasties. New York: Dover Publications inc., 2005, pp. 7 ‐ 37. Nicole Vandier‐Nicolas (ed.). Esthétique et peinture de paysage en Chine (des origins aux Song). Paris: ÉditionsKlincksieck,1987,pp.64‐66.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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panteão,umsistemadeparaísoseinfernos,areincarnação,okarmaeailuminação.

Entrando na China através da Rota da Seda, o Budismo difunde‐se pelas zonas

montanhosasaOeste,fundandoaíosprincipaismosteirosnasgrutasdeDunhuang,

Turpan, Urumqi e Kashgar. Esta característica geográfica é fundamental para a

afirmaçãodoBudismonaChinaumavezqueoOesteconstituiumpontocardealde

referência para a geografia mitológica chinesa. É a Oeste que se encontram as

montanhassagradasondeFuxieNuwaserefugiaramduranteodilúvio.Éaitambém

queseencontramasmontanhasKunlun,oparaísotaoistaondeviveoImperadorde

Jade e XiWangMu, a RainhaMãedoOeste que, no seu jardim, templantado os

pessegueiros da imortalidade. Hua Shan é uma das cincomontanhas sagradas do

Taoismo,muitasvezesdenominadaMontanhadoOeste,tendoaolongodostempos

sido visitada por peregrinos que aí procuravam as ervas medicinais para alcançar

umamaiorlongevidade.Poroutrolado,oBudismofoisempreentendidoàimagem

datradiçãoascetaemeditativadoTaoismo,dasuarelaçãocomomundonatural,do

lugardoHomemnoCosmosedeumelevadosincretismonumaadaptaçãodealguns

dosconceitosfundamentaisdoBudismoàrealidadetaoista.

Contudo, ainda assim, o Budismo na China teve momentos de grande

aceitabilidade, sobretudo após a queda da dinastia Han18, mas também de

perseguiçãoreligiosa,resultandonumadiáspora religiosaquepartilhouosmesmos

espaçoscomcristãosnestorianosnasestepesdaMongóliaInterior,nasequênciadas

políticasdeintolerânciadoimperadorWuzong,oúltimodadinastiaTang19.

OBudismocriouassuasprópriasraízesnatradiçãoculturaldaChinapelasua

dimensãoreligiosa,fundamentalnumperíodoamotinado,subsequenteàquedada

dinastiaHanedodescréditodaspopulaçõesnoConfucionismo.Poroutro lado,os

principaistemplosbudistaseramtambémresponsáveispelaeducaçãodascrianças,

providenciavamalojamentoaviajanteserecebiammuitosdosliteratiquevisitavam

18 Cf. Patricia Buckley Ebrey. The Cambridge illustrated History of China. Cambridge: CambridgeUniversityPress,10thedition,2008,pp.86.19Videcap.II.

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asmontanhassagradas.Finalmente,aintensidadevisualdaexpressãoreligiosaedos

rituais sagrados corresponde a uma relação inata e simpática do Homem com o

imaginárioreligioso.

A contemporaneidadedeBudaemrelaçãoaConfúcioea LaoTzecontribuiu

paraaconstruçãodeumimagináriodehistóriasenarrativasquecruzavamodiálogo

entre diferentes ensinamentos e que sublinhavam pontes de entendimento,

similitude e conveniência. Desta forma, é ao nível artístico que se materializou o

diálogocultural,sobretudoentreoTaoismoeoBudismo.Aartebudistadeixouuma

marca vincada na arte chinesa, através de uma carga fortemente figurativa na

ornamentação dos templos com escultura de proporções desmesuradas de

representaçõesicónicasoudenarrativasdahistóriadeBuda.

A construção de templos culminou na formação de centros de produção

artística num estilo próprio e característico de uma arte missionária. Durante a

dinastiaTang,quandoos imperadoresfinanciamsubstancialmenteaconstruçãode

templos budistas, coincide com a emergência da escultura taoista de escala

significativa20. Os Lokapala que se encontram no templo de Fengxian, construído

duranteoséculoVIIjuntoaLuoyang,sãoumaherançaculturaldatradiçãohindudos

QuatroGuardiãesdosquatro pontos cardeais.Na tradiçãobudista,osQuatroReis

dosCéus correspondemaosguardiãesdospontos cardeaisda tradição hinduque,

durante a dinastia Tang, são recontextualizados em túmulos funerários enquanto

guardiãesdosespíritosancestrais.AesculturafuneráriaTang,emcerâmicavidrada

com as características cores verde, amarela e azul ou em terracota, ganha

literalmenteumanovadimensão,nocontextodaqualosLokapala constituemum

pontodeviragemnaproduçãoescultórica chinesa.Essaevoluçãodas formaseda

simbioseconceptualestánaorigemdatransformaçãodobodhisattvaAvalokitesvara

para uma representação de uma figura do género feminino da tradição cultural

20CraigClunas.ArtinChina.Oxford:OxfordUniversityPress,1997,pp.101‐103.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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chinesa, sob o nome de Guanyin e que se tornou particularmente popular nas

regiõespiscatóriasdoSuldaChina21.

DuranteadinastiaTang,oBudismonãosóseafirmanaChina,comotambém

se dissemina para outras regiões da Ásia, nomeadamente para a Coreia e para o

Japão.Estarealidadeintensifica‐se,sobretudo,duranteadinastiaYuan,nãosópela

aberturacompletaaocomérciointernacional,mastambémpeloimpulsotecnológico

proporcionado pela impressão tipográfica de textos sagrados e de ilustrações

policromasdarepresentaçãodeBuda,queacompanhavamostextos.

Finalmente, no século XVI, a ChinaMing torna‐se o palco, uma vezmais, do

diálogodeculturasedeumsincretismoreligiosoentreoCristianismo,oBudismoeo

Taoismo, em que a deusa Guanyin, na sua figuração maternal segurando uma

criança no colo, serviu de modelo a artistas chineses na produção de uma vasta

diversidade de materiais e de suportes artísticos para uma iconografia cristã

consagradaàVirgemMaria.

21Op.Cit.,pp.115‐116.

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2. Macau.UmacidadecristãàsPortasdoCerco

AolongodasegundametadedoséculoXVI,osmissionárioscristãoscriaram,o

Sul da China uma estrutura para asmissões no ExtremoOriente, não só na China

masemtodooSudesteAsiáticoetambémnoJapão.Peranteumvastoconjuntode

factores, entre os quais é importante referir o forte controlo das autoridades

chinesas sobre as movimentações dos europeus nas costas da China, o sucesso

significativodasmissões jesuítasdoJapão,asdificuldadessentidasporFreiGaspar

daCruzparaasmissõesnaChina1,eadistância considerávelda ÍndiaPortuguesa,

Macau assoma‐se como a sede de administração comercial e espiritual na Ásia

Extrema.Estaconcomitânciaentreocomércioeadifusãodafécristãrepercute‐se

num levantar de uma fronteira cultural notável a partir de umamultiplicidade de

materiais, técnicas artísticas e de sistemas de representação do sagrado que

excedemoslimitesgeográficoseantropológicosdaEuropaedaÁsia.

AtravésdaCarreiradoJapão,comparagemobrigatóriaemMacau,opequeno

istmo funcionava como uma placa giratória para a circulação da arte cristã

provenientedaÍndiaPortuguesaparaasmissõesnoExtremoOriente,sobretudoas

do Japão, na qual a Companhia de Jesus sedimentou, ainda durante o século XVI,

centrosdeproduçãoartísticacapazesdeforneceroutrasmissõesnaChinaenaÍndia

Mogol.Poroutro lado,adiversidadeartísticadaChina,particularmenteemrelação

àsartesdecorativas,associadaaumacapacidadedeproduçãoemmassa,permitiu

queMacau se tornasseummercadoartísticodeexportaçãodeporcelana, sedase

1 O dominicano Frei Gaspar da Cruz, no seu Tratado das cousas da China, dá‐nos conta dasdificuldadesde conversãodasgentesdaChina,ditadanão sópelabarreirada língua,mas tambémpela ausência de autorização para difundir o Cristianismo no Império do Meio, sendo por isso,fundamentalqueoreidePortugalprovidencieumaembaixadaaPequim.Cf.TratadodascousasdaChinaporFreiGaspardaCruz,ediçãodeRuiManuelLoureiro.Lisboa:CNCDP/EdiçõesCotovia,1998,pp.17ess.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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outrostecidosbordados,marfins,jadeselacasentalhadas,mobiliárioetodootipo

deraridades,quecorrespondessemaogostodossoberanosdaÁsiaedaEuropa.

EmMacausubsistemaindahojemuitasdasigrejaslevantadasentreosséculos

XVIeXIX,peseemboraofactode,nasuamaiorparte, teremsidoreconstruídase

reformuladas,mantendoapenasaplanimetriaeavolumetria.SãoexcepçãoaIgreja

daMadredeDeus,ruínadaqualrestaapenasafachadaeamarcaçãodaplantano

solo,assimcomopórticodelinhasclássicasdo iníciodeseiscentoseosfrescosda

igreja de Nossa Senhora da Guia que, de acordo com Fernando António Baptista

Pereira,seguemosmodelosdasermidasalentejanas2.

Nasequênciadoincêndioque,em1601,devastouamaioriadosedifíciosemS.

PaulodoMonte,nasuamaiorparteconstruídosemtaipaemadeira,foilançada,no

ano seguinte, a primeira pedra para a construção da Igreja de Nossa Senhora da

Assunção, a partir do risco de Carlo Spínola3. Do complexo, constituído por uma

residência,pelocolégioepelaigreja,subsistemapenasasruínas,afachadadaIgreja

da Madre de Deus e a escadaria frontal. Permanece também o testemunho da

primeirapedra, naqual foi gravadaa inscriçãoVIRGINIMAGNAEEMATRI/CIVITAS

MACAENSISLIBENS/POSUIT.AN.1602.

Apesar de as obras terem tido início em1602, a fachada apenas terá ficado

terminadaentre1637e1644.Concretamente,emborasejaevidentea reprodução

dos modelos italianizantes do final do século XVI, comparados com a Igreja dos

JesuítasdeMilão,aIgrejadoBomJesusdeGoa,deS.PaulodeDiuedaCartuxade

Évora,aigrejadaMadredeDeus,emMacau,demonstraumaclaraconfluênciacom

osestilosdaarquitecturareligiosadaChinaetambémaoníveldealgunselementos

2 FernandoAntónioBaptista Pereira. “Aarte eopatrimónio cristãosnadefiniçãoda identidadedeMacau”. IN:DePortugalàChina.CiclodeConferências, coordenaçãodeRuiD’ÁvilaLourido. Lisboa:CâmaraMunicipaldeLisboa,2009,pp.200e201.3GonçaloCouceiro.AigrejadeS.PaulodeMacau.Lisboa:LivrosHorizonte/FundaçãoOriente,1997.FernandoAntónioBaptistaPereira.“AAcrópoledeMacau:ocomplexoreligioso,culturalemilitardaCompanhiadeJesus”.IN:AA.VV.UmMuseuemespaçohistórico.AFortalezadoS.PaulodoMonte.Macau:MuseudeMacau,1998,pp.14‐55.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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iconográficos que encontramos na fachada recuperados do imaginário chinês 4.

Importa também acrescentar que tanto a planta como também a ornamentação

interioremmadeiralacada,sãoresultantesdeumaconfluênciadeestilos.

OcarácterinéditodafachadadaigrejadaMadredeDeusdeMacauconcentra‐

senoprogramaiconográficodopreenchimentodosespaçosdasfiadashorizontaise

verticais, como se se tratasse de um retábulo. Tal como demonstrou Fernando

António Baptista Pereira, o programa iconográfico, sobretudo nas duas fiadas

superiores,revela“umagrandefamiliaridadecomgravurasdevocionaisdaépocaou

mesmocomaliteraturaemblemáticaque,desdeosfinaisdoquinhentismo,auxiliava

os produtores de imagens na elaboração das suas composições. Em suma, a

combinação de uma estruturação arquitectural / retabular do alçado principal,

reveladora de uma sofisticada formação erudita de base, com um programa

iconográficodeintençãocatequética‐emquesefundem,comoiremosver,imagens

devocionaisdatradiçãocatólicaesignos/símbolosorientais‐pareceindicarquea

igreja da Madre de Deus partiria de uma proposta original de Spínola

progressivamente enriquecida (e não traída) pela posteridade imediata, ou seja,

pelos companheiros portugueses, italianos ou orientais que dirigiram (ou

participaramn)aobraatéàconclusão”5.

No Arquivo Histórico Ultramarino encontra‐se depositado um documento,

datadode1747,comassinaturadeJoãoÁlvares,noqualoautorfazumadescrição

pormenorizadadaIgrejadaMadredeDeus,nomeadamentedafachada.

“Tema IgrejahumFrontispíciocovzaboaOFrontispícioda IgrejadoCollegio

deMacao/hedepedralavradadeobraRomana,temdealto/abayxotresordensde

colunnas sobre pedestaes, e/seis nichos do arco em boa proporção; quatro

delles,/que são de meya laranja ficão sobre o primeiro/Sino entre as colunnas da

4FernandoAntónioBaptistaPereira.“AAcrópoledeMacau:ocomplexoreligioso,culturalemilitardaCompanhiadeJesus”.IN:AA.VV.UmMuseuemespaçohistórico.AFortalezadoS.PaulodoMonte.Macau:MuseudeMacau,1998,pp.14‐555Op.Cit.,p.22‐23.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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segundaordem,cada/humporsy,aos ladosdastrez janellasrasgadas,que/ocoro

temestãoNellasasImagensdevultodeme/yaestaturadosNossosSantosIgnacio,

Xavier,Bor/ja,eLuiz,cadaqualemseu;esobrepianhasdepedracomseusNomes

esculpidos toda de bronze/Maons, e rostos encarnados com suas insignias de

fun/diçãoedourados.//

Emosegundonicho,eterceiro/andardecolunnas,quecahesobreajanellado

me/yo esta o seu Nicho e a Imagem da Senhora da/Assumpção orago da Igreja;

ainda que em outro/Lugar, digo, que he daMadre de Deos, he o collegio/a qual

pintandoaformadehumagrandeluade/bronzedourada,sobreacabeçalheestão

comosem/tandohuacoroafechadadousAnjosdevultodomês/mometal,eobra,

estendendocadaqualobraçode/lado,aqueficaabayxodesta,queparecehirpelo

ar/outrosdousLançandoemfavordasobidadaSe/nhora.//

Aoultimonichoheolugaroterceiro/frizo,quecorreporbayxododerradeiro

andar,nel/letemsobresuabazeaImagemdoMeninoJE/SUScomsuacruz,eglobo

do Mundo Na mão, e/nada inferior das Mais, senão que he de pouco Me/nor

estatura,queasMais.//

No campo do remate/faz hum triangulo firme, em que estriba a pia/nha de

pedra,Naqualsehaviaencayxaracruzde/ferrodeVara,eMeyaemalto,ecomos

braçosde/varo,queheorematedetodaaobra.//

Sahe para/fora doMeyo de hum rayos abertos daMesma/pedra hua como

figura de pomba, que reprezenta/a do Espirito Santo com as azas estendidas de

bron/zedouradadeproporcionadagrandeza;esseFron/tispiçioseacabouem1644

dequantosegastoy/nãoseachaconsto(?)//

AindalhefaltãoduasImagensnorematehumadeSamPedro,eou/tradeSam

Paulo,quehandeficarnorematede/cima”6.

6AHU,Códice1659,fls.85‐86.CitapartirdeManuelTeixeira.Macaueasuadiocese:ocultodeMariaemMacau,vol.9,Macau:EscolaTipográficaSalesiana,1969,pp.14‐16.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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Dispostapornovefiadasverticaisequatrofiadashorizontais,coroadasporum

frontão clássico, a organização estrutural da fachada obedece às configurações

iconográficas dos retábulos de pintura ou em talha das igrejas europeias ou, até

mesmo, da Índia Portuguesa. A fiada inferior caracteriza‐se pela abundância de

elementos geométricos e pelas estruturas arquitectónicas, entre as quais, plintos,

colunas,nichosemolduras.

As duas fiadas seguintes distinguem‐se pela densidade iconográfica na

ocupação dos espaços vazios, correspondendo a um programa claro, focado na

edificaçãoetriunfoespiritualdosmissionáriosdaCompanhiadeJesus.Ainclusãode

Inácio de Loyola e São Francisco Xavier, ao centro, e Francisco de Borja e Luís

Gonzaga, nas extremidades, corresponde a uma glorificação dos padres da

Companhia de Jesus em representação da Igreja Militante. Na parte superior da

fachada, a coroar toda a estrutura eleva‐se a Igreja Triunfante, através da

representação do Triunfo daVirgem (terceira fiada); deMenino Jesus Salvador do

Mundo(quartafiada)edaConcessãodaGraçapeloEspíritoSanto,nofrontão7.

Efectivamente,arepresentaçãodoTriunfodeNossaSenhoradeterminatodaa

articulaçãodoprogramaiconográfico,apresentando‐seentreomundodosHomens

e o universo Celeste de Deus. O seu papel de intercessora, conforme as

determinações da Reforma Católica, é sublinhado pela presença de diversos

símbolosda litaniamariana,entreosquaisé importantedestacaraEstreladoMar

queguiaaIgreja,vistacomoaNauqueatravessaomarparalevarasalvaçãoatodo

omundo,eaHidradeSeteCabeças que temuma legendadecaracteres chineses

quediz:“ASantaMãecalcaacabeçadoDragão”.Oprogramaiconográficodetodaa

partesuperior,incluindoofrontãoe,sobretudo,afiadaconsagradaàVirgemeaos

símbolosdalitaniamariana,teráseguidodepertoumaxilogravuradatadade1582,

da autoria de PhilipMenzel. A estampa representaMaria in Sole com oMenino,

rodeadaprecisamentepelosmesmos símbolosquevemosna fachadada Igrejada 7FernandoAntónioBaptistaPereira.“AAcrópoledeMacau:ocomplexoreligioso,culturalemilitardaCompanhiadeJesus”.IN:AA.VV.UmMuseuemespaçohistórico.AFortalezadoS.PaulodoMonte.Macau:MuseudeMacau,1998,pp.14‐55.

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MadredeDeusdeMacau,eencimadapelarepresentaçãodeDeusPaiedoEspírito

Santo8.

Finalmente,asaletassãopreenchidas,doladodireito,comarepresentaçãodo

Triunfosobreamorte,acompanhadoporumainscriçãoemcaractereschinesesque

diz “a pessoa que se lembra da morte é sem pecado”, enquanto que do lado

esquerdo,estárepresentadooTriunfosobreoMal,tambémacompanhadoporuma

inscriçãoquesignifica:“odiabotentaohomemparapraticaromal”.

Por outro lado, o recurso a artistas locais, aos quais se poderão ter juntado

alguns artistas japoneses refugiados daMissão do Japão, resultou na inclusão de

elementos iconográficos e estilísticos da tradição asiática. O tratamento estilístico

quevemosnasnuvensquesustentamosanjosaoredordaVirgemMaria,bemcomo

odesenhodasondassobaNaudaSalvação,mantém‐sefieisaodesenhoemespiral,

característicodaartechinesae,por influênciadesta,daarte japonesa.Ocorpoda

hidra é, na realidade, um dragão chinês, enquanto que as gárgulas estão

representadas sob a forma de leões chineses, como símbolo da força e enquanto

protectores contra todos os males. Finalmente, a representação de símbolos

auspiciosos do imaginário chinês, como os crisântemos e os ramos de líchias,

demonstram uma apropriação de iconografia popular da China de modo a

estabelecer uma aproximação dos valores fundamentais do Cristianismo e da

evangelização.Natradiçãochinesa,oscrisâtemosestãoassociadosaossímbolosda

sabedoria e daqueles que levam uma vida humilde, mas simboliza também

abundânciaeplenitude.Porsuavez,as líchiasrepresentamosímbolofemininodo

amoreda fertilidade,a forçaeabeatitudeespiritual9,queNossaSenhorapoderá

concederaosseusdevotos,protegendo‐osdamorteedopecado.

A complexidadedoprograma iconográficona fachadada igrejadaMadrede

Deus demonstra um carácter pedagógico e de instrução da estrutura militante e

8Op.Cit.,p.42.9 Patricia Bjaaland Welch. Chinese art: a guide to motifs and visual imagery. Vermont: TutlePublishing,2008,pp.24‐25e54.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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triunfante da Igreja, através das legendas que identificam as personagens, dos

símbolosqueevidenciama intercessãodaVirgemMariaedossímbolosdaPaixão.

Asinscriçõesemcaractereschineses,quesereferem,precisamente,àtentação,ao

triunfosobreomaleaopecadosãodirigidasàcomunidadechinesa.Anossover,as

inscriçõesemcaractereschineses,bemcomoainscriçãoMATERDEIqueseencontra

dentro de uma moldura sobre a porta axial, correspondem a um processo de

equiparação aos templos chineses, nos quais as inscrições ocupam um lugar de

destaquenasfachadas,nomeadamentenoTemplodeA‐Ma,construídoem148810.

Este facto levanta outra hipótese quanto ao próprio significado da Nau que se

encontra representada do lado esquerdo da Virgem Maria. Gonçalo Couceiro

interpretaaNaucomosendoaNaudoTratopelofactodeaconstruçãodaIgrejada

MadredeDeusterdependidodocomérciodosmercadoresqueviviamecirculavam

emMacau. Acrescenta ainda que se trata de uma invocação da Virgem ou como

símbolo da Igreja de Cristo. Fernando António Baptista Pereira reconhece Maria

comoaStellaMaris,ouseja,aestrelaqueguiaosmissionáriosqueseguiramnaNau

daSalvaçãoparapropagaroCristianismonosNovosMundos.Finalmente,Alexandra

Curveloassumetratar‐seda“NaudaContemplaçãoMística”ouTriumphusEcclesiae,

comoreflexodotriunfodaIgrejaCatólicapós‐tridentina.

Anossover,éperfeitamenteaceitávela ideiadaNaudaSalvaçãoque,como

vimosanteriormente,fazpartedatradiçãoiconográficadaCompanhiadeJesusque,

acrescentaàNauarepresentaçãodeMeninoJesusSalvadordoMundosegurando

uma bandeira com o monograma jesuíta. Contudo, considerando o princípio de

accomodaçãodaestratégiamissionáriadaCompanhiadeJesus,nonossoentender

estamos efectivamente perante uma citação à embarcação chinesa que levou a

10Oanode1488correspondeàconstruçãodaestruturamaisantiga,oPavilhãodaBenevolência.ApartirdaíocomplexofoilargamenteampliadocomaconstruçãodoPavilhãodasOrações,conhecidoporPrimeiroPaláciodaMontanhaSagrada,datadode1605ereconstruídoem1629,deacordocominscrições em pedra aí encontradas. Outras estruturas, como o Pavilhão de Guanyin e o PavilhãoBudistadeZhengjiaoChanlinsãojádaprimeirametadedoséculoXIX.Cf.SteveShipp.“Macau,China:a political history of the Portuguese colony’s transitionto Chinese rule”. IN: The China Quarterly(1997), nº 151, p. 194; ChristinaMiu Bing Cheng.Macau: a cultural Janus. Hong Kong: Hong KongUniversityPress,1999,pp.100‐116.

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Macau a deusa A‐Ma, também conhecida por Mazu. Vimos anteriormente que o

culto das Deusas‐Mãe enquanto protectoras e intercessoras era particularmente

comum no Sul da China. O arquétipo da Deusa‐Mãe no Sul da China surge

profundamente relacionado com a protecção dos pescadores,motivo pelo qual o

juncochinêsestáassociadoàiconografiadeA‐Ma.DeacordocomalgumaslendasA‐

Masalvouopaieoirmãomaisvelhodonaufrágio.Noutras,A‐Mapartiunumbarco

para salvar opaie o irmãoenuncamais voltou, refugiando‐senumamontanhae

protegendotodosospescadores.Finalmente,numaoutralenda,umacriançapediu

aocomandantedeumgrandenavioquea levassematéCantão,massemsucesso.

Um pequeno e pobre pescador aceitou levar a criança no seu barco. Durante a

viagem uma grande tempestade aproximou‐se e todas as embarcações que se

encontravamnomarafundaram‐se,comexcepçãodopequenobarcoondeseguiaa

criança.DepoisdechegaremaMacau,acriançadesapareceuereapareceunaforma

deumaDeusa.EmsuahomenagemospescadoresdeMacauconstruíramumtemplo

juntoaolocaldasuaaparição11.

Neste contexto, parece‐nos indissociável a ideia de conveniência simbólica,

formal e conceptual, entre a Virgem Maria e A‐Ma, pela relação iconográfica da

embarcação, pelos princípios de protecção e intercessão universal e pela relação

que,paraacomunidadechinesadeMacau,têmcomomar–éimportanterecordar

que A‐Ma chegou numa embarcação proveniente do Fujian e o culto da Virgem

Mariachegounasembarcaçõesdosportugueses.

Actualmente,todasestas igrejasseencontramdespojadasdamaiorpartedo

seu património móvel que, após uma criteriosa inventariação coordenada pelo

Instituto Cultural de Macau, encontrou lugar no Museu de Macau, construído

propositadamentenoantigoespaçodocolégiodosJesuítas,anexoàIgrejadaMadre

deDeus,noMuseudeArteSacra,sitonoespaçomusealizadodasRuínasdeS.Paulo,

noMuseu da Igreja de S. Domingos, junto à praça pública e ao Leal Senado, e no

11Op.Cit.,pp.100‐116.

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SemináriodeS.José,actualmenteencerradoaopúblico.Éaindaimportantereferira

extensacolecçãodeporcelanapertencenteàSantaCasadaMisericórdiadeMacau,

grande parte com o monograma da Companhia de Jesus e que demonstra uma

profunda influência daornamentaçãode objectos rituais chineses.Estas colecções

são reveladoras de uma circulação dos objectos artísticos de devoção cristã, com

peças indo‐portuguesas em marfim, estatuária e ourivesaria, imaginária hispano‐

filipina e outras peças de factura europeia, chinesa e japonesa, executadas para

serviçodasmissõesouparaocomérciodasraridadesepreciosidadesnoOcidente.

OsprópriospadresdaCompanhiade Jesus tiveramumpapelpreponderante

no comércio de objectos produzidos na China, sendo essa a forma que tornaria

viável o financiamento das missões no Extremo Oriente. É através de Alexandre

ValignanoquepercebemosoenvolvimentodaCompanhiadeJesusnocomércioda

seda e da prata, na ligação da “Grande Nau” com o Japão, sem o qual, afirma,

“teremos de abandonar a nossa obra naquele país, pois não se poder de forma

algumamantê‐laemenosaindaprogredir,senãohouvercomqueassegurartodas

asdespesas”12.

Importaainda,nestecontexto,citarumapassagemdeumacartadeAlexandre

Valignano,GeraldaCompanhia,dirigidaaosseussuperioresdeGoaem1599,queo

acusavamdetercomerciadoilegalmenteouroesedaschinesas:“PelagraçadeDeus

nãonascifilhodemercador,nemnuncaofui;massinto‐mefelizporterfeitooque

fizparabemdoJapão,eacreditoqueNossoSenhortambémoconsiderabemfeitoe

que me dá e dará muitas recompensas por isto (...). E se alguma das Vossas

Reverências pudesse vir aqui ver de perto estas províncias, com as suas enormes

despesaseosmiseráveisrendimentosecapital,provenienteesteúltimodeprocessos

incertoseperigosos,possoassegurar‐lhesquenãopassariamcalmamenteotempoa

dormir...por conseguinte, Vossa Reverência e opadre visitador deviamapoiar‐nos

12 Alexandre Valignano. “Sumário”, 1583, tradução, apresentação e notas de Bésineau, J..Grandesdépenses qui se font au Japon. Nécessité d’assurer notre existence. Revenus necessaries pouraccomplirnotremission,descléedeBrower,1990,Paris,v.Cap.XXVIIp.227,cit.apartirdeGonçaloCouceiro.AigrejadeS.PaulodeMacau.Lisboa:LivrosHorizonte,1997,p.36.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

300

nesteassuntoenãodiscutirconnosco”13. Já,nopassado,teriasidoFernãoMendes

PintoafinanciaramissãodeFranciscoXavier,doando,deumasóvez,umterçodo

valoranualconcedidopeloPadroadoPortuguêsàCompanhiadeJesus.

A ausência em Macau de artistas capazes de dar resposta a uma extensa

procura de imaginária, tanto para servir as missões como a exportação, e que

obrigou à fixação de artistas ocidentais no pequeno istmo, leva a supor que uma

parte substancial das peças tenham sido inicialmente encomendadas em outros

portos comerciais do Sul da China. As esculturas em marfim da Virgem com o

menino,pertencenteaoMuseuNacionaldeArteAntiga,edeGuanyin,pertencente

à colecçãodoMuseu EstatalHermitage,deS.Petersburgo, são representativasde

uma simbiose artística e de umdiálogo cultural e religioso que se vivia no Sul da

China (Fig. 132 e Fig. 133). Ambas as peças sãodatadas do final do século XVI ou

início do século XVII e provenientes do Fujian, onde existia uma velha tradição de

produçãoescultórica,nomeadamenteemjadeemarfim.DuranteoséculoXVI,com

a abertura dos portos ao comércio internacional, o Fujian tornou‐se um dos

principais centros de produção de escultura emmarfim, tanto de figuras de vulto

como tambémde placas emmarfim, executadas a partir demodelos em gravura.

Apesar da figura de Guanyin apresentar feições profundamente chinesas e se

aproximar dos modelos de representação característicos da China Ming,

nomeadamenteorostoamploeredondoeodrapejadodasvestesqueidentificam

asdivindadesbudistas,épresumívelpensarqueaposição,sentadacomomeninoao

colo,sigaosmodeloseuropeusdaVirgementronizada.

AesculturadeNossaSenhoracomoMeninodeLisboa,apesardedemonstrar

uma forte influência das poses da escultura europeia e da que determinou as

tendênciasdaescultura indiana,éperfeitamentevisívelumaconcepçãochinesano

tratamentodorostoenadelicadezadoentalhe.Poroutrolado,umaoutraescultura

emmarfim de Nossa Senhora da Conceição, certamentemais tardia, aproxima‐se

13Cit.apartirdeCharlesBoxer.OimpériomarítimoPortuguês(1415‐1825).Lisboa:Edições70,2001,p.88.

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AartecristãnoImpériodoMeio

301

substancialmente de outras esculturas de Guanyin pela pose e pelo manto com

delicadosdrapeamentosquepraticamentecobremaLuaCrescente(Fig.134).

Como vimos anteriormente, o tema da deusa‐mãe com a criança no colo é

particularmentepopularnoSuldaChinaapartirdarelaçãodecultoentreGuanyine

Mazu, uma divindade taoista protectora dos pescadores e das mulheres dos

pescadores.VimostambémqueaorigemdestecultonoSuldaChinateráquever

com o culto a Guanyin, manifestação feminina do bodhisattva Avalokitesvara, o

cultodeXiWangMu,igualmentepopularnoSuldaChinaduranteadinastiaTange,

eventualmente,comapresençadosmissionáriosfranciscanosGuilhermedeRubruck

eJoãoMontecorvinoduranteoséculoXIII.

Principalmente no Fujian e nas zonas costeiras habitadas por pescadores e

vulneráveis à ferocidade dos tufões,Guanyin é conhecida porGuanyin doMar do

Sul,pela sua relaçãocomomitoda deusaMazu.Deacordocoma lenda local Lin

Moniang,queficariaconhecidaporMazu, rezavaparaquetodosospescadoresse

salvassemduranteumtufão,incluindooseupai.Desesperada,Mazusaiunumbarco

edurantetrêsdiasprocurouospescadoressemsucesso.Paraqueostufõesnunca

mais voltassem a ameaçar os pescadores decidiu partir para uma colina e aí ficar

sozinhapara sempre, onde ficaria célebrepela suaprotecção sobreoshomensdo

mar e, tal como Guanyin, seria um modelo de compaixão e piedade14. Como já

referimos, Mazu ficaria conhecida em Macau por A‐Ma e estaria na origem da

toponímiadoistmoAmagao.Umaoutralenda,narradaemváriostemplosbudistas,

contaqueospaisdeMazu rezaramaGuanyinparaque lhes fosseconcedidauma

filha.Guanyinconcedeu‐lhesumafilhaqueseriaareencarnaçãodaprópriadeusana

Terra15.OcultodeMazunoFujianestavadetalformadisseminadoqueoimperador

Taizu, da dinastia Song, mandou erguer em 960, em Meizhou, um templo

consagradoaMazu.

14JacquesPimpaneau.Chine.Cultureettraditions.Arles:ÉditionsPhilippePicquier,1990,p.223.15LeeIrwin,"TheGreatGoddessesofChina",AsianFolkloreStudies,Vol.49,No.1(1990),pp.53‐68.

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Outras deusas femininas da religião popular da China, como a deusaMagu,

deusadalongevidade,sãomuitasvezesrepresentadascomumacriança,nocasode

Magucomosímbolodaeternajuventude.

O Kunsthistorisches Museum, em Innsbruck, conserva na sua colecção uma

figuradeGuanyinacompanhadaporumacriança,representadassobreumaflorde

lótus, conservandoaindaadecoraçãodourada nas roupasdas figuras (Fig.135).A

escultura,esculpidaempedrasabão,terásidoexecutada,aindaduranteofinaldo

séculoXVIouiníciodoséculoXVII,naregiãodoFujianedaíteráentradonarotado

comércio das curiosidades doNovoMundo para integrar o fabuloso Gabinete de

Curiosidades de Fernando II, Arquiduque da Áustria. Nesta importante colecção

encontram‐se muitas das preciosidades e curiosidades importadas dos Novos

MundosecertamenteoferecidaspeloseuprimoFilipe IIdeEspanha16.Entreestes

objectoscontam‐searmadurasdeSamurai,porcelanas,pinturachinesasobreseda,

coraiseoutrosnaturaliaposteriormenteornamentadoscomourivesaria.

Ao contrário da escultura do Museu Hermitage, a figura de Guanyin da

colecção de Fernando II segue os modelos tradicionais da iconografia piedosa de

Guanyin, denotando uma verticalidade elegante que caracteriza a sua condição

divina e que servirá de modelo à iconografia mariana encomendada pelos

missionárioseuropeus.ÉaindainteressantenotarqueorosárioqueGuanyinsegura

éidênticoaoquevemosnaesculturadaVirgemeoMeninoemmarfim,pertencente

ao Museu Nacional de Arte Antiga, evidenciando até uma torção a meio,

diferenciandoapenasnaextremidade,comumafranjadeseda,enquantoorosário

deNossaSenhoratemumcrucifixo.

Na colecção da Casa‐MuseuMedeiros eAlmeida, encontra‐se uma escultura

deGuanyin ladeada pelos seus discípulos, Shan Tsai e LongNu, representados no

mesmomodelodaesculturadeInnsbruck,sobrepeanhasemformadeflordelótus

16ElisabethScheicher.“FerdinandIIatSchloosAmbras: Itspurpose,compositionandevolution”.IN:The origins of museums: the cabinet of curiosities in sixteenth‐ and seventeenth‐century Europe,editedbyOlivierImpeyandArthurMacGregor.London:BritishMuseumPress,2001,pp.37ess.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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(Fig.136).Estemodeloconsistejánumrefinamentoverticaldasfigurasqueresultará

nomodelomais tardio dosblanc de chine, em porcelana, de que são exemplo as

peçasqueseconservamnaTheBurghleyHouseCollection,Stamford(Fig.137),ena

colecçãoCamiloPessanha,emdepósitonoMuseudoOriente,emLisboa(Fig.138),

provenientes dos fornos de Dehua, na província de Fujian, um grande centro de

produçãodeporcelana,nomeadamentede figuras religiosasdo panteãobudistae

taoista17.

AsrepresentaçõesdeGuanyinvariamdeacordocomotempoecomaregião,

podendo figurar sozinha, de acordo com os protótipos que remontam à dinastia

Song,ouacompanhadaporum rapaz, ShanTsai, eporuma rapariga, LongNu, ou

aindacomumacriançaaocolo,símbolodasuafertilidadeecapacidadedeconceder

descendência. Alguns destes exemplares representam a deusa sobre uma flor de

lótusousobreumconjuntodenuvensdispostasemespiraleem formaondulada,

simulando, por um lado, a sua condição celestial e, por outro, a energia vital do

MonteSagradoPlutuo.

Como vemos, ao contrário do que sugerem Regina Krahl e Maria L.

Menshikova18, as representações demãe e filho na China são bastante populares,

não sónaescultura,mas tambémnapintura chinesa,aindaantesdachegadados

missionárioseuropeusaoImpériodoMeio.Oqueaconteceéque,talcomonaÍndia,

os missionários reconheceram neste protótipos universais de fertilidade,

maternidadeeprotecçãoumaponteparaodiálogoeparaapropagaçãodafécristã

atravésdasimagens,paraalémdasmuitasimagensdedevoçãoencomendadasnos

mercados chineses para figurarem nos gabinetes de curiosidades na Europa, que

garantiramumaintensificaçãodaproduçãodestasesculturas.Estereconhecimento

daimagemdeGuanyincomosímbolodematernidadeeprotecçãocorrespondenteà

17RobertBlumenfield.BlancdeChine.ThegreatporcelainofDehua.Berkeley:TenSpeedPress,2002,pp.19‐107.Ayers,John.BlancdeChine.Divineimagesinporcelain.NewYork:ArtMediaResources,Ltd,2002,p.21ess.18ReginaKrahleMariaMenshikova.“Deusa‐mãecommenino”.IN:Encompassingtheglobe.PortugaleoMundonosséculosXVIeXVII,coordenadoporNunoVassaloeSilvaetalli.Lisboa:MNAA/ IMC,2009,p.328.

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significaçãodeNossaSenhoratorna‐seevidentequandoMichelleRuggierieMatteo

Ricci escrevem ao Geral da Companhia, Cláudio Aquaviva, a solicitar o envio de

imagens de Nossa Senhora e de Cristo Salvador do Mundo, perante a grande

curiosidadeedevoçãodealgunsdosmagistradoschinesesaumaimagemdaVirgem

comoMeninoqueestavanumoratórionaCasados JesuítasnaMissãodaChina.

Trata‐se de uma imagem de Nossa Senhora do Pópulo levada para a China por

MatteoRicci,conformevemreferidonumacartadopadreSpinola19.Talcomohavia

acontecidonasmissõesjesuítasnacorteMogolserãoasimagensdeNossaSenhora

edeCristoSalvadordoMundoqueviriamaseroferecidasaoImperadorjuntamente

com o evangelho ilustrado pelo célebre Jerónimo Nadal. Percebe‐se que a acção

missionária dos jesuítas procura abrir relações de tolerância religiosa e de

propagaçãodafécatólicaapartirdeumaimagempiedosaqueoarquétipouniversal

damãecomacriançarepresenta.

DuranteoséculoXVII,comaafirmaçãodacristandadeemMacau,sobretudo

apósaexpulsãodoscristãosdoJapão,estabeleceram‐seaíváriosartistaseuropeus,

chinesesejaponesesqueproduziramvastaiconografiacristã.

Tal comonasmissões do Índico, nosMares do Sul da China osmissionários

estabelecidos emMacau levaram consigo várias gravuras que serviramdemodelo

para a reprodução de imaginária emmarfim para servir durante a celebração da

missa, de ornamentação interior das igrejas e como retábulos portáteis para

devoçãodaquelesqueandavamdeportoemportopelocomérciooupelamissão.

Muitos desses objectos, parte substancial em marfim e madeira e que se

encontramemcolecçõespublicaseprivadasemPortugal,mastambémemMacau,

foramtrazidosdaÍndiaparaasmissõesnoExtremoOriente,servindoigualmentede

modeloaimagináriacongénereproduzidanaChina,mantendo‐sefielaosprotótipos

19 Cf. Fernando António Baptista Pereira. “A Acrópole de Macau: o complexo religioso, cultural emilitardaCompanhiadeJesus”. IN:AA.VV.UmMuseuemespaçohistórico.AFortalezadoS.PaulodoMonte.Macau:MuseudeMacau,1998,pp.14‐55.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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europeus e indo‐portuguesesmas demonstrando uma factura chinesa ao nível da

técnica do entalhe, nos traços finos e nas expressões faciais claramente chinesas.

Algumas dessas peças demonstram um elaborado programa iconográfico que

obedece às rigorosas convenções do Concílio de Trento, de que é exemplo um

trípticoemmarfimcomoCalvário,detalhadamentenarradoeladeadopeloArcanjo

Miguel,vestidocomoummilitarPortuguês,talcomovemosnaiconografiacristãda

Índia e, no outro volante, o Arcanjo Rafael protegendo Tobias (Fig. 139)20. A

qualidadedoentalhe,comelevadosentidodevolumetriaeprofundidadedandoaté

a ideia das peças terem sido esculpidas e colocadas sobre a placa, denunciam,

juntamentecomafisionomiachinesadasfiguras,umaproveniênciadasoficinasde

Cantão.Emboraasárvores,àmaneirachinesa,sugiramterempartidodaimaginação

doartista,acomposiçãodascenas,bemcomoasarquitecturasdefundoseguemos

modelos de gravuras europeias que certamente ilustravam literatura de

espiritualidade.Édereferirque,noCalvário,NossaSenhorasurgerepresentadade

pé e não desfalecida, já de acordo com as disposições pós‐tridentinas. Por outro

lado,ovolantedoladodireitorepresentaoArcanjoMiguelpisandoumhomemcom

asase cauda de serpente, no lugar do tradicional dragão, conforme é relatado no

Livro doApocalipse: “E houve batalha no céu;Miguel e os seus anjos batalhavam

contra o dragão, e batalhavamo dragão e os seus anjos;mas não prevaleceram,

nemmaisoseulugarseachounoscéus.Efoiprecipitadoograndedragão,aantiga

serpente,chamadaoDiabo,eSatanás,queenganatodoomundo;elefoiprecipitado

naterra,eosseusanjosforamlançadoscomele”21.Certamente,estaalteraçãoaos

esquemas característicos da representação do Arcanjo Miguel, que vemos

igualmentenumpanobordado, temquever como factododragão constituir um

dos elementos primordiais da cultura chinesa, sendo inclusivamente o símbolo do

Imperador.

20PedroDias.ArtedePortugalnoMundo.ExtremoOriente.Lisboa:Público,vol.13,2009,pp.121‐122.21Apocalípse,12:7‐9.

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A representação de Cristo crucificado causou entre os chineses alguma

incompreensão e até repulsa, por não entenderemomotivo pelo qual os cristãos

representam Deus em sofrimento e que morre às mãos de outros Homens. Em

meadosdoséculoXVII,YangGuangxianpublicouumtextoondeapresentouassuas

críticas sobre a doutrina cristã e também sobre a astronomia e a geografia

ocidentais, classificando de ofensivas algumas das imagens que os missionários

transportavam consigo. No seu texto, entitulado Budeyi (Não suporto mais isto!),

Yang Guangxian reproduziu três gravuras da Entrada de Jesus em Jerusalém; a

Crucificação e o Calvário, apresentadas ao Imperador por Adam Schall, que

acompanhamoseucomentário:“Thesepictureswouldmakeallpeopleintheworld

knowthatJesuswasputtodeathasaconvictedcriminal,sothatnotonlyscholar‐

officialswouldnotwriteprefacesfortheir [Christian]writings,butpeolpleof lower

classes would also be ashamed to believe in that kind of faith. The album Schall

presentedtotheimperialcourtiscomposedof64leavesofwritingsand48pictures;

anannotationwasputontheleftsideofeverypicture.Beingunabletoreproduceall

the pictures, I copy only three pictures and their respective annotations for the

presentmoment.Theyare“ThepeopleapplaudingJesus”,“Jesusbeingnailedonthe

cross”,and“Jesusonthecross”.ThiswillshowtheentireworldthatJesuswasnotan

orderly and law‐abiding person, but a subversive rebel leader, whowas convicted

andexecuted.Theannotationsareputtotheleftofthepictures”22.

Apesar desta resistência e repúdio de alguns homens influentes da corte

imperial,ofactoéquechegaramaténósdiversoscrucifixoscomimagensdeCristo

emmarfim entre os quais se destacam o exemplar de uma colecção privada que

esteve na célebre exposição Encompassing the Globe ou ainda um outro, de

excelentequalidadetécnicaedeclaraproduçãochinesa,sobreumacruzchapeadaa

prata, que se conserva noMuseu de Arte Sacra deMacau. Estes crucifixos foram

22YangGuangxian,Budeyi,Juan1,f.32a(p.1135);Cit.apartirdeHsiangTa“Europeaninfluencesonchineseart in the laterMingandEarlyCh’ingPeriod”. IN:The translationof art: EssaysonChinesepaintingandpoetry.Renditionsnº6,Specialissue‐HongKong‐(1976),pp.159‐160.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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executados com base num protótipo europeu, eventualmente até italiano, e

certamentedestinadoaumoratóriooualtardedevoçãoprivada.

Apesar de uma parte significativa da escultura cristã, em pedra ou marfim,

seguirfielmenteosmodeloseuropeusouindo‐portugueses,existemoutrosobjectos

que demonstram uma evidente simbiose nos esquemas de representação da

imagemdevocional, tornando‐seaarte cristãpermeávelaos símbolos sagradosdo

imagináriochinês.

Uma placa em marfim representando a sagrada família, pertencente a

colecção particular, denuncia uma factura por artista chinês, provavelmente do

séculoXVII,que teráusadoomodelodeumagravuradeAntonoudeHieronimus

Wierix,particularmentepopularnocontextodasmissõesemGoa.Éprecisamentea

mesmacomposição,quevemosemoutraspeçasemmarfimeemmadeira,inseridas

em contexto de um retábulo portátil ou nas portas de oratórios. Distingue‐se dos

modelos indianos não só pela expressão chinesa dos rostos das figuras, mas

sobretudo pela elevada profundidade conferida pela qualidade do entalhe e a

representaçãodasnuvens,dispostasporcamadasmaisoumenoscircularesouem

espiral.Vamosencontrareste tipode representaçãoe composiçãodasnuvensem

outrasplacasemmarfimcomarepresentaçãodeNossaSenhoradaConceição(Fig.

140)edaVirgemcomoMeninocoroadapordoisanjos(Fig.141).Aprofundidadedo

relevo confere à imagem uma maior tridimensionalidade, na qual as nuvens

desempenhamumpapeldeterminanteparacaracterizaroespaçocelestialecomo

suportedosanjos,talcomotambémévisívelnoTrípticodoCalvário.Outromodelo

de representação deste padrão de nuvens estáassociado a uma função axiológica

representandoasfigurassuportadaspelasnuvens,talcomovemosemalgunspanos

chinesesbordadoscomdiversostemascristãos(Fig.142),ouaindanumaescultura

doArcanjoMiguel datada do século XVII (Fig. 143).O pano chinês, pertencente a

umacolecçãoprivada,ébordadocomdiversostemasefigurasdoimagináriocristão,

dispostas sem qualquer coerência narrativa e desrespeitando completamente o

cânone de representação das figuras, o que demonstra um completo

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desconhecimentosobreoCristianismo.Oqueimportareferiréquetodasasfiguras

estão representadas sobre um padrão de nuvens em círculos sobrepostos de

diferentes tons de forma a simular a profundidade, que existe efectivamente nas

peçasemmarfim.

Considerandoquenaimagináriacristã,sejaemmarfim,pinturaouentalheda

madeira e pedra, não encontramos este tipo de representação, recai sobre a

herança cultural e visual dos artistas chineses que executaram estas obras por

encomenda a introdução deste elemento iconográfico. De facto, este padrão

estilizado de nuvens remonta aos bronzes utilizados nos rituais consagrados aos

espíritos ancestrais durante as dinastias Shang e Zhou. Damesma maneira que a

ornamentaçãocurvilíneadosbronzesrituaistendeparaumafiguraçãodotaotie,a

representaçãozoomórficaquedesempenhaumaacçãofundamentalduranteoritual

eacelebraçãodosespíritosancestrais,tambémasnuvensganhamformaapartirda

decoração em espiral, como uma simulação do qi, a energia vital que mantém a

ordemdocosmoseamanifestaçãodouniversoceleste.

Asnuvensemespiralouemcírculo,atravésdeumarepetiçãoquedefineum

padrãoqueservedefundoedeveículodosespíritosancestraisedeoutrosseres,

invocamumuniversocelestialhabitadoporShangdi,oDeusSupremo.Maistarde,o

espaçodamontanhasagrada,decomunhãoentreoCéueaTerraatravésdoqi,é

igualmente habitado pelos Imortais e uma vasta corte de deuses taoistas. Ainda

durante a dinastia Han, o padrão de nuvens surge em objectos de cerâmica, nos

espelhoseemmadeiralacada,usadosemrituaisemhonradosespíritosancestrais

paraqueaalmasepossajuntaraosseusantepassados23.

ARotadaSedaeainerentemovimentaçãoculturaleartísticaemtodooseu

percurso,desteaÁsiaCentralatéaoMediterrâneo,permitiramqueestepadrãode

nuvensenquantorepresentaçãoeevocaçãodacondiçãocelestialdacomposiçãoou

dasfigurassedisseminasseportodaaÁsia.

23Michael Sullivan. Symbols of Eternity. The art of landscape painting in China. Stanford: StanfordUniversityPress,1979,p.20.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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Nas grutas de Turpan, os monges estabeleceram o primeiro complexo de

budistaconstruindodezenasdetemplosdedevoçãoaBuda,conservando‐seainda,

na gruta de Shenjinkou, pintura mural que representa flores de lótus sobre um

padrãodenuvens,juntamentecomoutroselementosvegetalistaserepresentações

deBuda.Acolocaçãodaflordelótus,símbolodosagradoedadimensãoespiritual

do Budismo, sobre o padrão de nuvens, símbolo da energia vital que mantém a

ordemdoCosmos, torna evidente uma clara intenção de criar uma “tradução” de

significadosquepermitaummaisfácilentendimentodaquelesquedesconhecemo

novo ensinamento. Vimos este tipo de esquema de representação quando os

primeiros cristãosnestorianos chegaramàChinaduranteo séculoVI.Algumasdas

estelas funerárias,queestudámosnoprimeiro capítulodesteestudo,demonstram

um sincretismo entre o Taoismo, o Budismo e o Cristianismo através da

representaçãodacruzsobreolótusesobreopadrãodenuvens.Apartirdoséculo

VI,eaolongodetodaadinastiaTang,quandooBudismopassaporummomentode

grande prosperidade, este motivo disseminou‐se por toda a Ásia, incluindo o

Tibete24,aCoreiaeoJapão.DoséculoX,emDunhuang,foramencontradaspinturas

derolosobresedarepresentandooReiGuardiãodoNorteatravessandoooceano

comoseuséquito,todoselessuportadosporumagigantescanuvemdesenhadaem

espiral(Fig.144).

Finalmente, comodomínioda dinastiaMongol apartirdo séculoXIVeuma

aberturaaoOcidenteeemparticularaocomérciocomossafávidas,estepadrãode

nuvens torna‐se predominante na pintura de miniatura, nomeadamente na

ilustraçãodashistóriasépicasdosgrandesprofetas25.Umvastoconjuntodepintura

muralnoTemplotaoistaemYongle,naprovínciadeShanxi,dedicadoaoimortalLu

Dongbin,foiexecutadoporumgrupodeartistasdirigidosporMaJunxiang(Fig.145).

Neste imponente complexo religioso, a representação da Assembleia da Corte

24RobertBeer.TheencyclopediaofTibetansymbolsandmotifs.Chicago:SerindiaPublications,2004,pp.24‐34.25 Cf. Yuka Kadoi. “Cloud Patterns: The Exchange of Ideas between China and Iran under theMongols”.IN:OrientalArt.‐London‐VolXLVIIINo.2,(2002),pp.25‐36.

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Celestialsobrenuvensemespiralédeterminanteparaadefiniçãoeidentificaçãoda

narrativadosagrado.

As nuvens representam na tradição cultural da China, primeiro na taoista e

depois também na budista, um símbolo auspicioso representativo de uma

identidadesagradaedaDivindadeSuprema.Éoelementoqueintroduzodiálogoea

condiçãodarelaçãodoHomemcomoSagradoecomossábiosancestrais.Porisso,

a nuvemé o símbolo do ImperadorAmarelo, também conhecido porHuangDi, o

lendáriosoberanoedivindademáximadoTaoismo26.

A importância da representação artística das nuvens enquanto símbolo da

energiavitaltemquevercomumprincípiodecelebraçãodosespíritosancestraise

invocaçãodosagrado,mastambémtemquevercomumaspectoinerenteàacção

dopróprioartista.

Já referimos que a natureza, encontra na arte chinesa, uma concomitância

primordialàprópriacultura,mantendo,destaforma,umacontinuidadeespontânea

na representação do mundo natural como tema principal. É neste contexto que

TsungPing(375‐443)escreveu,duranteosúltimosanosdasuavida,omaisantigo

tratado de pintura de paisagem com o título Introdução à pintura de paisagem,

caracterizandoapinturadepaisagemenquantogénero(lei).

No século seguinte, Xie He faz uma classificação dos grandes pintores dos

tempos antigos, tecendo, em torno da sua obra, a teoria dos Seis Princípios que

permitem identificar uma obra de arte27. Um desses princípios é a ressonância

espiritual, vibrante na pintura através da harmonia e do equilíbrio das formas

naturais, onde asmontanhas das quais emana oqi se fundem comas nuvens e a

bruma.Àluzdostextosdosartistaschinesesacercadapinturadeveremosentender

queoartistaeoseupincelsãooveículoatravésdoqualfluioqi,essaenergiavitale

ressonânciaespiritualqueespelhamumarevelaçãodeumaexistênciaetéreaepura.

26RobertBeer.TheencyclopediaofTibetansymbolsandmotifs.Chicago:SerindiaPublications,2004,p.63.27MichaelSullivan.TheartsofChina.London:Cardinal,1973,pp.92‐97.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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UmapassagemdaIntroduçãoàpinturadeWangWei,umpintorepoetachinêsda

dinastiaTang, ilustraperfeitamentea influência queoqi, atravésdasnuvensedo

nevoeirocósmico,exercenaacçãodepintaroudecomporpoesia:“Gazinguponthe

cloudsofautumn,myspirit takeswingsandsoars.Facingthebreezeofspring,my

thoughts flow like great, powerful currents. Even the music of metal and stone

instrumentsandthetreasureofpricelessjadescannotmatch[thepleasureof]this.I

unroll pictures and examine documents; I compare and distinguish themountains

and seas. Thewind rises from the green forest, and foamingwater rushes in the

stream.Alas! Suchpaintings cannotbeachievedby thephysicalmovementsof the

fingersandthehand,butonlybythespiritenteringintothem.Thisisthenatureof

painting”28.Há todauma reflexãoestéticae construção teóricadaarte dapintura

que gravita em torno da capacidade do artista incorporar a energia vital que se

expressa na representação sublime das montanhas, das nuvens e da bruma

cósmica29.

Em relação ao padrão de nuvens chinês, presente na imaginária cristã dos

séculosXVIeXVII,nãoépossívelsabersehouveuma intençãoclaraporpartedos

missionários europeus de introduzir estes elementos de identificação da imagem

sagradaresgatadaaosesquemasderepresentaçãodaartechinesa, talcomohavia

acontecidoséculosantesnacombinaçãodaflordelótus,dopadrãodenuvenseda

cruznestoriana30.Contudo,parece‐nosmaisplausívelqueospadresdaCompanhia

não detivessem estes conhecimentos profundos sobre o Taoismo e a estética

associadaàrepresentaçãoartísticacomoexpressãoreligiosa31.Écertoqueaúnica

via de entendimento da espiritualidade chinesa se circunscreveu ao Budismo, em

28 Introduction to painting byWangWei, edited byWilliam Theodore de Bary,Wing‐Tsit Chan andBurtonWatson.IN:SourcesofChineseTradition.ColumbiaUniversityPress,1964,p.255.29 Cf. Osvald Sirén. The Chinese on the art of painting. Texts by the painter‐critics, from the HanthroughtheCh’ingDynasties.NewYork:DoverPublicationsinc.,2005,pp.145‐152.30Cf.XiaojingYan.“TheconfluenceofEastandWestinNestorianArtinChina”.IN:HiddenTreasuresand Intercultural Encounters: Studies on East Syriac, ed. Dietmar W. Winkler and Li Tang. London:TransactionPublishers,2009,p.387‐388.31Veja‐se,atítulodeexemplo,aleituradepreciativadeMatteoRicciacercadasartesdaChina.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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primeira circunstância pelo conhecimento prévio e proximidade religiosa ao

Hinduísmoe,emsegundolugar,pelotratadosobreoBudismoelaboradoporTomás

Pereira durante a Missão na China por volta de 168832. Neste contexto torna‐se

evidente que o motivo das nuvens se trata de um arquétipo universal, comum à

tradição iconográficacristãeao imaginárioreligiosochinês,quepermitecriaruma

dicotomiaclaraentreouniversomundanoeouniversocelestial.Osartistaschineses

limitaram‐se a entalhar as nuvens de acordo com os princípios estéticos e os

esquemasderepresentaçãodaartechinesa.

É ainda importante referir que emNanjing existia, e ainda hoje existe, uma

longatradiçãoqueremontaaoReinodeWu(séc.III)naproduçãodosmaisfinose

requintados têxteisdetalhadamentebordados.OsBrocadosYundeNanjing,nome

que os distingue dos outros dois grandes estilos de brocados (Brocados Song e

Brocados Shu), devem o seu nome à profusa inclusão do padrões uniformes de

nuvensemtornodedragõeseoutrossímbolosauspiciososqueassociavamafigura

do imperador a um contexto celestial. Um manto, já da dinastia Qing, que se

conserva noMuseuOriental del Real Colégio de los padres Agustinos Filipinos de

Valladolid,éumexemplodaornamentaçãoconsagradaaovestuáriosemiformalda

corte imperial, cujopadrão, combinandoosdragões comopadrãodenuvens (Fig.

146).Apenasosmembrosdafamíliaimperialeeventualmenteosaltosfuncionários

dacortepoderiamvestirestaspeças cujospadrões seguiamumanormativa rígida

promulgada durante a dinastia Ming e o reinado de Qianlong, da dinastia Qin33.

Desta forma, os brocados de Nanjing tornaram‐se populares durante as dinastias

Yuan,MingeQingusadoscomotributoàcorte Imperial,preciosospelatecnologia

32Defacto,estetratadocorrespondeaumacartadeTomásPereiraaFernãodeQueiróz,quehaviasolicitadoinformaçõessobrea“SeitadeBuda”,sendoqueumapartesubstancialdotextosereportaà vida de Buda e uma apologia do Cristianismo face a uma refutação das fábulas chinesas.Recentemente, no Colóquio Internacional sobre a vida e obra de Tomás Pereira, Ines Zupanovapresentouumacomunicaçãoondedesmistificouoconhecimentodosmissionarioseuropeusacercadagentilidade.Cf.InesZupanov.“Conquista,temporalespiritualdeCeylaõ”.IN:TomásPereira(1646‐1708).UmjesuítanaChinadeKangxi,coordenaçãodeLuísFilipeBarreto.Lisboa:CentroCientíficoeCulturaldeMacau,2009,pp.122‐123.33 Blas Sierra De La Calle. Museo Oriental. Arte Chino y Filipino. Valladolid: Ediciones EstudioAgustiniano‐MuseoOriental,1990,pp.70‐73.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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inerente à sua produção, pela grande capacidade de acção do artista e pelo

resultadoluxuosoqueapresentam34.

DuranteadinastiaMingeoiníciodadinastiaQing,opadrãodenuvenstorna‐

seumdoselementosdecorativosmaispopularesnosmaisdiversosobjectosdaarte

chinesa. Em conjunto com outros elementos vegetalistas encontram‐se, desde a

pintura,aslacasesobretudoasporcelanasproduzidasemmassaemJingdezhen,na

provínciadeJiangxijuntoàsprovínciasdeFujianeGuangdong.

Nestecontexto,parece‐nosqueaformaestilizadaenãorealistadasplacasem

marfim com iconografia cristã se aproxima de uma herança cultural e artística da

Chinaedeumaformaderepresentaçãoda imagemsagradacomaqualosartistas

chineses estavam familiarizados. Os artistas chineses abriram as suas linhas de

produçãoaumcomérciodeimagináriacristãexecutadasobencomendaapartirdos

modeloseuropeus,masoperandocomtotalautonomia, justificandodestaformaa

existência de algumas incorrecções iconográficas bem como a introdução de

elementosdaartechinesa.

Nocontextodas imagenscristãsproduzidasnaChina,aporcelanaconstituio

maissignificativomanancial,queraoníveldonúmerodeobjectosquechegaramaté

nós, quer pela diversidade iconográfica e tipológica. A capacidade de produção

verdadeiramenteindustrialdosfornosdeJingdezheneafacilidadedetransportede

toneladasdepeçasemporcelana,permitiuqueestesobjectoschegassemàEuropa,

África e Américas, levadas pelo comércio dos portugueses e, mais tarde, pelos

comerciantesholandeseseinglesesdaCompanhiadasÍndiasOrientais.Talcomojá

havia acontecido no passado, com os artistas chineses a produzirem porcelana

adaptada às formas e iconografia da clientela persa e otomana, os fornos de

Jingdezhen dedicar‐se‐iam a partir do século XVI à denominada “porcelana de

34 TereseTse Bartholomew. “TextilesandCostumes” IN:Power&Glory: CourtArtsofChina’sMingDynasty,editedbyHeLiandMichaelKnight.SanFrancisco:AsianArtMuseum,2008,pp.65‐92.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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exportação”35.Oestatutoqueaporcelanaadquirenasprincipaiscorteseuropeiase

famíliasdebensé justamenteequiparávelà importânciadapimentada Índia,com

um fluxo de exportação ao nível das centenas de milhar ao ano. O verdadeiro

comércio da porcelana, que contribuiu em larga escala para a consolidação

económicadaChinaQing,determinouinclusivamenteosurgimentodeummercado

paralelo,decontrafacçãodeumacerâmicaquesefaziapassarporaquelaquevinha

da China. A célebre indústria cerâmica de Faenza e de Florença tentava, em vão,

produzirporcelana,apesardedesconhecerocaulino.

A porcelana era considerada, na Europa, amirabilia da China, o expoente

máximo do requinte, da delicadeza e da perfeição, à semelhança de outros

artificialia importados daÁsia e criteriosamente coleccionados nosKunstkammern

das casas reais da Europa. Serviam como oferta exótica de missões diplomáticas

associados a uma abundância económica e ostentação do poder. A acessibilidade

económica e o carácter utilitário dos objectos em porcelana, quer ao nível do

quotidianoprivado,queraoníveldacelebraçãodecasamentosentrefamíliasoudos

rituaislitúrgicosdaIgrejaconferiuàporcelanadaChinaumadiversidadedeformas,

deornamentaçãoeumacirculaçãoàescalaplanetária36.

A mais antiga porcelana com iconografia cristã que se conhece é,

evidentemente, um conjunto de peças provenientes de encomenda directa e

personalizada, ainda fora do contexto de um comércio massificado associado à

exportação destas peças. Na FundaçãoMedeiros eAlmeida conserva‐se uma taça

emporcelanaazulebranca,pintadacomasarmasdoReiedoReinodePortugal, 35Cf.MariaAntóniaPintoMatos. “Porcelanasde encomenda:históriasdeum intercâmbio culturalentrePortugaleaChina”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº14(Junho1993),pp.40‐56.MariaAntóniaPintoMatos e João PedroMonteiro.A influência orientalna cerâmicaportuguesado século XVII. Lisboa:Sociedade Lisboa 94, 1994. Maria Antónia Pinto Matos (coord.). A casa das porcelanas. CerâmicachinesadaCasa‐MuseuAnastácio‐Gonçalves.Lisboa:IPM,1996.MariaAntóniaPintoMatos.“Chineseporcelaininportuguesepubliccollections”.IN:OrientalArt.‐London‐Vol.XLVI,nº3(2000),pp.2‐12.Idem.“Macaoandtheporcelainforportuguesemarket”.IN:OrientalArt.‐London‐Vol.XLVI,nº3(2000),pp.66‐75.MariaAntóniaPintoMatos(coord.).AzuleBrancodaChina.PorcelanaaotempodosDescobrimentos.Lisboa: IPM,1997.MariaAntóniaPintoMatos.PorcelanachinesadaFundaçãoCarmona e Costa. Lisboa: Assírio e Alvim, 2002. Idem. Porcelana chinesa na colecção CalousteGulbenkian.Lisboa:FCG,2003.36Op.Cit.,pp.40‐56.

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AartecristãnoImpériodoMeio

315

embora invertidas, e um monograma estilizado, que Pedro Dias interpreta como

sendo as letras gregas iota, eta e sigma ou zeta (ΙΗΣ), envolto numa coroa de

espinhos37. É ainda importante referir que o monograma é anterior à criação da

Companhiade Jesus, sendoumatributodeS.Bernardino deSienaevisto comoo

“nomedeJesus”,comosepoderáverificarpeladecoraçãoexteriordeoutraspeças

coetâneasedatadasdofinaldoséculoXVeiníciodoséculoXVI38.Nobordointerior

encontra‐se a inscrição AVE GRATIA PLENA (Fig. 147)39. Os erros cometidos pelo

artistanarepresentaçãodasarmaspermitemperceberodesconhecimentoabsoluto

quetinhasobreaheráldicaportuguesa.Poroutrolado,pensamosqueaconcepção

desta peça, que eventualmente terá feito parte de um serviço, ostenta uma

decoraçãoquecorrespondeàcelebraçãodachegadadosportuguesesedoprimeiro

reinocristãodoOcidenteaoImpériodoMeio.AcombinaçãodosímbolodoReide

Portugal e do símbolo do Cristianismo trata‐se de uma afirmação política de D.

Manuel,aquemoPapahaviaconcedidoodireitodesoberaniaterritorial,políticae

espiritual das conquistas ultramarinas dentro dos limites geográficos definidos e

confirmadoscomabulaEaquæprobonopacis.Ainclusãoda legendaAVEGRATIA

PLENA,referenteàEncarnação,completaoprograma,estabelecendoaligaçãoentre

osímbolodoReidePortugaleosímbolodoscristãos,apresentandooReicomoo

anunciadordeCristoedoCristianismoaosgentiosdaÁsia.

ComoavançardoséculoXVIecomoestabelecimentodasdiferentesordens

religiosas surgem os primeiros exemplares em porcelana que incluem as insígnias

queasidentificam,àsemelhançadoqueaconteceunaÍndiasobretudoaoníveldo

mobiliário. SãodiversasaspeçasqueapresentamomonogramadaCompanhiade

37PedroDias.Reflexos. Símbolose imagensdo Cristianismonaporcelana chinesa. Lisboa: CNCDP/SCML,1996,pp.35‐36.38 Cf. Maria Antónia PintoMatos. “Christian iconography in Chinese porcelain”. IN:Oriental Art. ‐London‐vol.XLVII,nº5(2001),pp.27‐34.39PedroDias.Reflexos. Símbolose imagensdo Cristianismonaporcelana chinesa. Lisboa: CNCDP/SCML,1996,pp.35‐36.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Jesus,aáguiabicéfaladaOrdemdeS.Agostinhoouaindacomaheráldicareligiosa

dosFranciscanosedosDominicanos.

A Companhia de Jesus encomendou, durante o século XVII, elevadas

quantidadesdeporcelanaquetinhamcomodestinoaornamentaçãoeousonavida

quotidiana do Colégio de S. Paulo, existindo ainda hoje vários exemplares que

incluemagravaçãodasiniciais“S”e“P”,dequeéexemploumpotepertencenteà

colecção da Casa‐Museu Anastácio Gonçalves40. Embora não tenhamos qualquer

documentaçãoqueosuporte,épossívelquepartesubstancialdestasencomendas

paraoColégiodeS.PaulodeMacaupossamserdestinadosaosPrémiosdeSanto

InáciodeLoyolaque,comovimos,eramigualmenteatribuídosaosmelhoresalunos

doColégioJesuítaemGoa,naformadeestatuetasemmarfins.

Esta iconografia cristã, certamente fruto de encomenda directa dos

missionários a pequenos centros de produção de porcelana, é normalmente

combinada comelementos decorativos do imaginário chinês que tradicionalmente

preenchia os espaços vazios. Por isso, é comum encontrarmos flores de lótus

estilizadas,odragãoeo leão imperialporentreopadrãodenuvens,quevimos já

serextremamentepopularnaChinaMingeQing,ouaindaaspaisagensclaramente

chinesas com pássaros, pessegueiros, cerejeiras e outras árvores com significados

auspiciosos,talcomoeramapreciadospelosImperadoreseletradoschineses.

É importante referir que a composição ornamental de muitas das peças

permitem perceber precisamente o carácter industrial damanufactura dos fornos

chineses e da capacidade de resposta à encomenda dos europeus e,

particularmente,dosmissionáriosqueprocuravamnãosódotarasigrejas,mosteiros

e colégios das outras missões orientais, mas também dos principais edifícios

religiosos na Europa. Muitos exemplares apresentam uma ou mais tarjetas, no

interior das quais a iconografia cristã poderia variar de acordo com o desejo do

encomendante. São exemplo umpar de garrafas combojo em formade pêra em

40Cf.MariaAntóniaPintoMatos.“Porcelanasdeencomenda.HistóriasdeumintercâmbioculturalentrePortugaleaChina”.IN:Oceanos.‐Lisboa‐nº14(Jun.1993),pp.40‐56.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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porcelanaazulebranca,decoradascomduastarjetas,umasdasquaiscomosímbolo

daOrdemdeS.FranciscodeAssis(Fig.148).Noladooposto,asgarrafasapresentam

uma segunda tarjeta, na qual uma das garrafas tem representado o símbolo das

cincochagasdeCristo,aopassoqueaoutraaindaseencontraporpreencher(Fig.

149).NoMuseudeGrãoVasco,emViseu,conserva‐seumaoutragarrafadeforma

idênticae comamesma tarjeta coma insígniadaOrdemdeS. FranciscodeAssis,

diferindoapenasnadecoraçãoaonívelinferiordopéedogargalo(Fig.150).

Um outro modelo de composição ornamental que permitiu uma grande

diversidadeaoníveldaiconografiacristãequesimultaneamentetornapossíveluma

narratividadedashistóriasdedevoçãoencontra‐senarepresentaçãodeumoumais

medalhões,no interiordosquaispoderiamser representadosdiferentespassosda

Paixão de Cristo, intercalados com ramos de flores, padrões de nuvens ou outros

elementos da imaginária chinesa. A representação destes temas, entre os quais

predominamoCalvário,aLamentaçãoeaDescidadaCruz,poderiaserpintadano

tradicional azul cobalto do final da dinastiaMing ou com a policromia e grisaille

característicos da dinastia Qing. Em alguns casos, a falta de entendimento das

narrativassagradaseaautonomiadeexecuçãodoartistaresultounacombinaçãode

temas completamente díspares, como exemplifica uma taça do período Qianlong

querepresentanummedalhãoa“DescidadaCruz”ea“SepulturadeCristo”,onde

vemosasduasSantasMulheresacarregaremocorpodeCristo(Fig.151).Osoutros

dois medalhões representam temas completamente distintos, um dos quais com

uma representação de um homem a entrar num quarto e a surpreender duas

mulheres numa cama e no outro duas alcoviteiras apresentam uma jovem a um

homem(Fig.152eFig.153)41.Trata‐seclaramentedeumrecursoagravuraseróticas

defêtegalantequeestavamemvoganaEuropadoséculoXVIIIequechegavamà

China pelas mãos de fidalgos e outros nobres que procuravam enriquecer com o

comérciodasÍndiasOrientais.Estasgravurasforamutilizadascomotemasprincipais

41JorgeWelsh(org.).ImagensdoCristianismonaporcelanadaChina.Lisboa:JorgeWelsh,PorcelanaOrientaleObrasdeArte,2003,p.64.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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numa parte significativa da porcelana de exportação da Companhia das Índias

Orientais, juntamentecomos temasdamitologiagreco‐latinaeas comemorações

de acontecimentos históricos. Estes objectos correspondiam, desta forma, a um

gostoburguês,querpelarepresentaçãodeactividadeslúdicasegalantescomoauto‐

retrato da sua vida luxuriosa, como também pela ostentação e símbolo de

delicadeza,requinteeexotismoqueaporcelanarepresentaenquantomaterial.

Na tradição Ming, estes espaços eram normalmente preenchidos com

paisagensoupinturadepássaros inspiradosnapinturade lequesdadinastiaSong.

Em outros casos, particularmente em taças de chá, era simplesmente colocado

dentro do círculo o caracter de uma palavra auspiciosa, como por exemplo fu

(felicidade),shou(longavida)oulu(lucro)42.Apartirdaquipoderemosperceberque

osartistaschinesesdetinhamcertamenteumarquivodeimagensqueutilizavam,em

determinadascircunstâncias,comtotalautonomiaecorrespondendoaumaprocura

que não vivia apenas da encomenda directa e personalizada. Os artistas chineses

chegavam até a interpretar livremente os temas da História Sagrada à luz dos

modelosedoconhecimentodasuarealidadeculturalereligiosa.

Um interessante par de pratos em porcelana policromada da dinastia Qing,

períodoQianlong,temrepresentadoaocentroacenabíblicada“FugaparaoEgipto”

que, logo à partida, pelo tratamento caracteristicamente chinês das figuras e das

roupas,sepoderiaconfundircomqualquertemadaculturachinesa(Fig.154).Como

muito bem observaram alguns autores, a Virgem, S. José e o Menino são

transportadosporumavacaeacompanhadosporduasoutrasfiguras,umadasquais

apéeumaoutraacavalo.Anossovertrata‐seclaramentedeumacorrespondência

formale,possivelmenteatéconceptual,entreotemada“FugaparaoEgipto”eum

momentodahistóriadeLaoTse, fundadordoTaoismo.DeacordocomSimaQian,

historiador da dinastia Han e autor do célebre texto com o títuloRegistos de um

Historiador, Lao Tse era o guardião dos arquivos imperiais que se retirou, já com

idadeavançada,paraasmontanhasdoOcidente.Depoisdefazertodoopercursono

42MichaelSullivan.TheartsofChina.London:Cardinal,1973,pp.204.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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dorsodeumtouroeacompanhadopordoispajens,chegouàPassagemdeHanku,

entreoRioAmareloeasMontanhasdeChungnan,ondeconheceuYinXi,oGuardião

daPassagem,aoqualrevelouoLivrodoCaminhoedaVirtude(TaoTeChing).Uma

dasmaispopularesrepresentaçõesdeLaoTseé,precisamente,montadonodorso

deumtouroatravessandoaPassagemacompanhadopelosseuspajens(Fig.155).A

questãoquesecolocaésaberseoartistafez,nãosóumaaproximaçãoformalentre

ahistóriadeLaoTseeaFugaparaoEgipto,aorepresentaraspersonagensbíblicas

sobre o dorso do touro, mas também encontrou em ambos os temas uma

correspondência simbólica e conceptual. A “Fuga para o Egipto” representa o

arquétipo do retiro do herói mítico perante a corrupção do Homem para depois

trazeraosHomensasabedoriadoverdadeirocaminhoevirtudehumana,talcomo

LaoTse,queseafastoudacorrupçãodosHomens,esetornouoreveladordoTaoTe

Ching,ocaminhodoconhecimentovirtuoso.

Naturalmente,estamosperanteumconjuntodepeçasexcepcionaisumavez

queomonumentallegadoartísticodaporcelanacomiconografiacristãseinsereno

contextodachamadaporcelanadeexportação.Poroutrolado,mesmonaporcelana

Ming, que não se destinava ao comércio de exportação são raros os exemplares

ornamentados com cenas figurativas. A imaginária budista e taoista emporcelana

limita‐se a uma produção escultórica, como vimos, proeminente na província do

Fujian.Aoníveldapinturadeporcelana,existemdoperíodoXuandealgunsobjectos

decorados com ilustrações dos princípios fundamentais da vida dos literati,

nomeadamenteamúsica,oxadrez,apinturaeacaligrafia.Osobjectosproduzidos

pelas oficinas imperiais eram criteriosamente submetidos para apreciação e

aprovação oficial, só depois seriam produzidos. Caso não correspondessem às

expectativasdoimperador,fossenaformaounadecoração,eramenviadosdevolta

para serem modificados ou eram completamente recusados. Daí que, sobretudo

durante a dinastia Qing, os objectos concebidos sob os auspícios das oficinas

imperiaiscorrespondamfielmenteaogostodo imperador,comoumreflexodasua

governação e conhecimento das tradições ancestrais. Por este motivo, como já

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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vimos, é comum encontrarmos nos objectos em porcelana da corte imperial

símbolos auspiciosos como a presença do caracter chinês shou (longevidade),

decoraçõesfloraiscomopeónias,símbolodenobrezaevirtude,orquídeas,símbolo

de fertilidade e prosperidade. Na nossa opinião, o monograma da Companhia de

Jesus, que vemos em muita da porcelana de exportação, assume‐se como um

equivalentesimbólicoedesignificaçãoespiritualemrelaçãoaoscaractereschineses

depalavrasauspiciosas.

Este elevado nível de erudição e conhecimento das coisas do mundo e das

grandezas dos antepassados, profundamente celebrados pelosMing, dá um salto

substancialduranteosreinadosdeKangxi,YongzhengeQianlong,dadinastiaQing.

ApesardeseremManchus,umaminoriaétnicadoNordestedaÁsia,osimperadores

dadinastiaQingforammecenasentusiásticosdetodasas formasartísticasdaarte

chinesa,dandocontinuidadeàorganizaçãoburocráticadadinastiaMing.Ofactode

serem considerados como pertencentes a umadinastia estrangeira, à semelhança

dosYuan,Kangxi,YongzhengeQianlonglevaramacaboumapolíticadelegitimação

do poder, encontrando na arte uma forma de representação da herança dos

antepassados.

Operíododeprosperidadeepazqueseseguiuduranteosreinadosdostrês

imperadores abriu espaço para um florescimento artístico que beneficiou

claramente com a confluência de técnicas e estilos da pintura europeia, como

veremos no capítulo seguinte. A arte tornou‐se, durante este período, numa

expressãodopoderedaprosperidadeimperialatravésdaconstruçãodeimagensde

legitimaçãodopoder.

O coleccionismodas relíquias dos antepassados, comoos bronzes rituais, os

objectos funeráriosem jade,as lacas, aspinturasdosgrandesmestresdadinastia

Song,constituíaumaformadecelebraçãoedeexpressãodocultodosantepassados,

estabelecendo,desta forma, uma ligaçãoestreitaàs tradiçõesancestraisdaChina.

Aosartistasdasoficinas imperiaiseram frequentemente feitasencomendasparaa

execuçãode reproduções formaisdealgumasdestas relíquiasdasdinastiasShang,

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AartecristãnoImpériodoMeio

321

ZhououHan.Estasreproduções,muitasvezesemjadeououtrosmateriaisnobres

como a porcelana e os esmaltes, davam início a uma nova tendência das artes

decorativas da China através de uma reactualização simbólica dos rituais de

celebração dos antepassados que os objectos originais representam. As formas

clássicasdosbronzes rituaisoudas cerâmicas funerárias são retomadasem jadee

porcelanaapartirdoprincípioda“transmissãopelacópia”,umdosseisprincípiosda

verdadeira obra de arte definidos por Xie He. Não se trata de uma simples

reprodução,mas simnuma combinação harmoniosa entre aspectos de inovação e

arcaísmodasformastradicionaisedaornamentaçãorecorrendoanovosmateriaise

novastécnicasparareinterpretarosmodelostradicionais43.

NoNúcleoMuseológico da Santa Casa daMisericórdia deMacau, aberto ao

públicodesde2001,encontra‐seumacolecçãodeporcelanas,algumasdasquais,da

dinastia Qing, períodoQianlong. Este conjunto de porcelanas, ornamentadas com

iconografiacristã,apresentaumagrandediversidade,desdeotradicionalmodelodo

Calvário, como vemos num prato em porcelana azul e branca, do reinado Kangxi,

idêntica a outros conjuntos que vemos nas colecções em Portugal, até aos

exemplares que reinterpretam os modelos formais e decorações de recipientes

rituaisdaantiguidade.

Alguns vasos da colecção do Núcleo Museológico da Santa Casa da

MisericórdiadeMacau combinamas formascaracterísticasdosvasosdos templos

budistas, distinguindo‐se destes apenas pelo monograma da Companhia de Jesus

(Fig.156,Fig.157eFig.158).Estesexemplares,quevisivelmentefazempartedeum

conjunto com outras peças de carácter utilitário, serviram certamente para

ornamentar uma das igrejas de Macau. A simplicidade da ornamentação com o

monogramaenvoltoporumhalodouradocontrastacomaforçatridimensionaldos

ramosdecerejeira,depessegueirooudoslagartosemrelevo.

43 AA. VV.Harmony and Integrity: The Yongzheng Emperor and His Times. Taipei: National PalaceMuseum,2009,pp.201ess.

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As porcelanas com estes formatos eram tradicionalmente decoradas com

símbolosauspiciososcomoodragãoeafénixentreopadrãodenuvens,tornaram‐

se particularmente populares durante a dinastia Yuan, tal como vemos nos mais

antigosexemplaresdeporcelanaazulebrancadequeháconhecimento(Fig.159).

Estesvasoseramnormalmenteoferecidosaotemplopordoadorespoderosos,como

invocaçãodeprotecçãoespiritualedesejodeprosperidade.DuranteadinastiaQing,

os vasos dos templos diversificam‐se tanto na forma como na ornamentação,

distinguindo‐sepelas formasesguias,depescoço subido, debasequadrangular ou

combinandoessasformascomelementosdecorativosdosbronzesrituais,talcomo

vemosnaspeçascomomonogramaJesuíta.Aoníveldadecoraçãotorna‐secomum

a pintura de motivos florais, enquanto símbolos auspiciosos associados à

longevidade,prosperidade,nobrezaevirtude.

Fazem ainda parte do conjunto dois recipientes inspirados nos celadons

LongquandadinastiaSongdoSul,cujosmodelosforampopularizadosnosperíodos

dos reinados Yongzheng e Qianlong. No Museu de Shanghai conserva‐se um

excelente examplar de celadon de Longquan, ornamentado com um dragão em

relevoemtornocolodobojoeumcãosobreatampaaservirdepega(Fig.160).O

recipientedaMisericórdiadeMacau,apesardenãotertampa,segueprecisamente

estemodelo,quernaformadoprópriorecipiente,queraoníveldaornamentação,

apresentandodoisdragõessobreomonogramadosJesuítasedoiscãesnaslaterais

dopescoço(Fig.161).

AgrandecapacidadeprodutivadosfornosdeLongquanteve inícioduranteo

períododasCincodinastiaseatingiuoapogeuduranteadinastiaSong.Asucessão

dosYuannagovernaçãodaChinagarantiuacontinuidadedaprofícuaproduçãode

celadons de Longquan, subsistindo desse período vários exemplares que

comprovam, inclusivamente, uma preocupação de manter uma ligação forte aos

antepassados,atravésdareinterpretaçãodosmodelosdosjadesdoNeolíticooudos

bronzesrituaisdasdinastiasZhouedosEstadosCombatentes,utilizandoastécnicas

modernasdeproduçãocerâmicaemLongquan.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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Um recipiente com tampa e uma interessante pega em formade peixe, que

pertenceaoconjuntodacolecçãodaMisericórdiadeMacau,seguiuoformatoguan,

característicodos celadonsdeLongquanda dinastiaYuan (Fig.162, Fig.163eFig.

164). O detalhe da pega em forma de peixe surge, com particular incidência, nos

celadonsdeLongquanduranteadinastiaYuan.Estetipodedecoraçãocorresponde

ao contexto da exportação de celadons de Longquan para o Sudeste da Ásia,

nomeadamenteparaaTailândia.Porvoltade1370, naufragouumaembarcaçãoa

cercadecemmilhasdacostadaMalásia,carregadadecerâmicadaChina,Tailândia

e Vietname44. Na embarcação chinesa foram encontrados celadons de Longquan,

cerâmicadosfornosdeSukhothai,naTailândia,ealgunsexemplaresdecerâmicado

Vietname45. Este achado arqueológico prova não só que, à data do naufrágio, os

fornos de Sukhothai não produziam celadons, como também é a cerâmica da

TailândiaqueintroduznovosmotivosnadecoraçãodosceladonsdeLongquan,entre

os quais os peixes e osmotivos florais, que se juntam ao dragão e Fénix entre o

padrãodenuvens.NoMuziumNagara,emKualaLumpur,conservam‐sealgumasdas

cerâmicasencontradasnofundodomareexpostasaopúblicopelaprimeiravezem

2001,entreasquaisseencontraumexemplaremceladondeLongquannoformato

guan,decoradocomfloresde lótus (Fig.165).NoMuseuProvincialdeGuangdong

conserva‐se numa bacia da dinastia Song, ornamentada com dois peixes,

provenientedonaufrágiojuntoàcostadaMalásia(Fig.166).Aslargasquantidades

depratosemcerâmicadeSukhothaiornamentadoscomdiversosestilosdepeixes,

muitocomunsnaTailândiaequemaistardeviriamaserincorporadosnosceladons

deLongquan,correspondiamcertamenteaogostodoReinoAyutthaya46.Durantea

dinastiaQing,nomeadamentenosreinadosYongzhengeQianlong,estesmotivose

formascerâmicas são reinterpretadas,deonde resultampeças comoaquevemos

44 Roxanna Brown and Sten Sjostrand. Turiang: A Fourteenth Century Wreck in Southeast AsianWaters,Pasadena:PacificAsiaMuseum,2000,pp.23ess.45StenSjostrandandClaireBarnes.“TheTuriang:AFourteenth‐centuryChineseShipwreckUpsettingSoutheastAsianCeramicHistory”.IN:JMBRASVol.LXXIVPart1(2001),pp.71‐109.46CharlesNelsonSpinks.“AceramicinterludeinSiam”.IN:ArtibusAsiae,vol.23,nº2(1960),pp.95‐110.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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naMisericórdia deMacau ou ainda os célebres três vasos celadon em forma de

peixe, emmontagem de bronze cinzelado e dourado, ao gosto europeu, feita em

França, actualmente pertencentes à colecção doMuseu Calouste Gulbenkian (Fig.

167).

OestatutoeelevadaconsideraçãoqueosmissionáriosdaCompanhiadeJesus

usufruíamjuntodosmandarins,dosliteratiedopróprioimperador,juntamenteuma

atitude de identificação e acomodação às culturas e tradições da China, resultou

numa evidente adopção do gosto artístico em voga na corte imperial durante a

dinastiaQing.EstacolecçãodeporcelanasdoNúcleoMuseológicodaSantaCasada

Misericórdia de Macau distingue‐se completamente da porcelana de exportação,

reflectindo, por um lado, um conhecimento das culturas e tradições da China e,

acimadetudo,umaclaraintençãodeestabelecerumdiálogofrancoeadiluiçãode

fronteirasculturaiseartísticas.

Para finalizar, teremos ainda que referenciar um conjunto de potes da

colecção daMisericórdia deMacau que seguemos formatosmuito apreciados na

Europa e amplamente reproduzidos com o monograma da Campanha de Jesus

envoltapormotivosfloraisoucomaimagemdeSantoInáciodeLoyola.Porém,os

potes que se conservam emMacau distinguem‐se pela decoração que envolve o

monogramaJesuítaequecorrespondeàstendênciasartísticasdasoficinasimperiais

doperíodoQianlong.Osmotivosflorais,comcrisântemos,lótusepeónias,sobreo

vidrado, da paleta da “família verde” (Fig. 168 e Fig. 169) e da “família rosa” (Fig.

170)harmonizam‐secomossímbolosauspiciososdaporcelanaimperial.Esteúltimo

pote, com os símbolos da Paixão envoltos por peónias, apresenta algumas

semelhançascomoutro,decolecçãoprivada,nomeadamenteaoníveldacercadura

delóbulosemvoltadopéedafaixadecabeçasderuyi,emvoltadogargalo.Opote

da Misericórdia de Macau apresenta, no lugar da cercadura de lóbulos, uma

cercaduraestilizadaemformadepagode.

No seguimento do princípio de reinterpretação dos modelos antigos, três

potesdaMisericórdiadeMacau sãodecoradoscomumacercadurade sequências

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AartecristãnoImpériodoMeio

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geométricasemespiral,queencontramosnosbronzesrituaisdasdinastiasShange

Zhou (Fig. 171 e Fig. 172). Estas representações aparentemente abstractas e

padronizadas, que surgem nos bronzes rituais das dinastias Shang e Zhou,

congregam em si uma significação inerente à função ritual destes objectos,

manifestando aspirações espirituais ou de consagração do ritual à protecção dos

espíritosancestrais(Fig.173).Estaspráticasespirituaismotivamaornamentaçãodos

objectos, distinguindo‐os dos objectos comuns, tornando‐os parte integrante do

ritualpelaacçãocriativadadecoração.Daíque,aocontráriodasprimitivas formas

daescritachinesaquepartemdeumafiguraçãoparaaabstracção,aornamentação

dos recipientes rituais se caracterizaporuma figuraçãode formasabstractas,pela

necessidadedecorrespondênciaeaproximaçãoàsimagensdomundoreal.

O taotie, que surge já nos jades rituais da cultura Hongshan é amplamente

representado nos bronzes a partir de 1500 ANE, resulta de uma figuração de

representaçõesabstractas,apartirdeumprincípiouniversaldeagrupamentooude

resolução cognitiva entre imagem e significado, isto é, a reacção automática do

cérebroaoprocurarnoconhecimentopré‐adquiridoumconjuntodesignificadose

conceitosquenospermitemestabelecerumarelação,consequenteidentificaçãodo

objecto observado e despoletar a emoção47.O padrão geométrico emespiral que

servedefundonaornamentaçãodosbronzesrituaisé,emrigor,umarepresentação

estilizada da qual deriva o tradicional padrão de nuvens, que se desenvolve

sobretudo a partir da dinastia Tang. Tal como a representação de divindades, do

dragãoedafénixentreopadrãodenuvens,confereaestas figurasumacondição

celestial, tambémaqui,opadrãoemespiral representaoqi,aenergiacósmicaeo

espaçosagradoondehabitaotaotie.

No espírito de reinterpretação dos modelos antigos de bronzes rituais

coleccionados por diversos literati e pelo próprio imperador, alguns elementos

decorativos, simbólicos e formais foram redefinidos e contextualizados, de acordo 47SemirZeki,“Artisticcreativityandthebrain”.IN:Science’sCompass,vol.293‐July2001‐pp.51‐52. V. S. Ramachandran, A brief tour to human consciousness. From imposter poodles to purplenumbers.NewYork:PiPress,2003,pp.40‐59.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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comasnovastendênciasestilísticasetécnicasdaartechinesa,comoreflexodeum

elevadograudeconhecimentoecultodosantepassados.

EstacolecçãodoNúcleoMuseológicodaMisericórdiadeMacauéexcepcional

noquadrodaartereligiosadeMacau,prevalecendoacondiçãomercantileaintensa

circulaçãodeimagináriacristã,tornandoaCidadedoNomedeDeusnumpontode

conexão com outras missões no Extremo Oriente que apresentavam melhores

resultadosespirituais.Macaueraopontodechegadaedepartida demilharesde

objectoscomiconografiacristã,encomendadosnosmaisdistintosportosdosMares

da China, sem que aí se abrisse espaço ao uso da imagem para missionação e

conversão das populações locais. A arte cristã damissão deMacau não contémo

carácter proselitista ou um discurso narrativo na construção de elaborados

programasiconográficosquepermitissemàspopulaçõeslocaisentenderasfigurase

estórias de devoção, tal como assistimos em Goa, Cochim, Damão e Diu. Com

verdadeiraexcepçãodafachadadaIgrejadaMadredeDeusdeMacau,aimaginária

cristãproduzidanaChinanãosedestinaàsgrandesmassaspopulacionaiscomona

Índia Portuguesa, servindo a manutenção dos serviços litúrgicos e ornamentação

interiordasigrejascristãse,sobretudo,ointeresseeuropeupelosprodutosexóticos

comoaporcelana,assedas,aesculturaemmarfim.Estacircunstânciafoiditadapela

condição da presença portuguesa em Macau, limitada pelas Portas do Cerco

medianteopagamentodoforodochãoeocontrolosobreapiratarianosMaresdo

Sul da China. A actividade missionária levou cerca de cinquenta anos a criar

condições ao estabelecimento da missão da China e às primeiras tentativas de

conversãodo imperadorWanli lideradasporMatteoRicci. Jáhámuito tempoque

existia a ideia da importância de levar o Cristianismo ao Imperador, a mais

importante figura do sistema burocrático da administração chinesa. Apesar das

importantesacçõesdeMatteoRiccinacortedoImperadorWanli,encontrandonas

imagens cristãs um suporte fundamental para a transmissão do ensinamento do

Cristianismo, ilustrando a diversa literatura de espiritualidade que ele próprio

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AartecristãnoImpériodoMeio

327

traduzia para mandarim, foi apenas após a sua morte que o impacto da arte

ocidentalsefezsentirnocontextodaartechinesaedasconfluênciasartísticas.

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3. Onovodiálogocomasvelhastradições.Reflexõessobreaarteeuropeiana

corteimperialemPequim(1601‐1773)

AMissão Jesuíta em Pequim, iniciada porMatteo Ricci em Janeiro de 1601,

conheceudiferentesdinâmicasaolongodotempo,pronunciadas,emprimeirolugar,

pelarelaçãoprotocolarcomaburocraciaimperialchinesae,emsegundolugar,pela

instabilidadepolíticacausadapelasucessãodinásticaapósainvasãodosManchuse

fundaçãodadinastiaQing.Porestemotivo,diversoshistoriadorestêmconsiderado

osjesuítasJohannAdamSchalleFerdinandVerbiestcomoosverdadeirossucessores

deMatteoRiccinaconduçãodaMissãodaCompanhiadeJesusnacorteimperial,a

partirdoreinadodeShunzhi.

A acção missionária de Michelle Ruggieri e de Matteo Ricci, nas cidades

chinesas de Zaoqqing, Nanjing, Nantang, a partir de 1583, serviu‐se sobretudo de

gravurasedelivrosilustradosparaadifusãodoCristianismo,àimagemdoquehavia

acontecidocomAntónioMonserrate,RudolfoAcquavivaeFranciscoHenriques,três

anos antes na Missão Mogol. O domínio da língua chinesa pelos missionários

jesuítas, associada à longa tradição chinesa na impressão de caracteres, tornou

possível a tradução e impressão em mandarim de diversa literatura europeia

religiosa, filosófica e, sobretudo, científica. Alguns registos apontam para a

existência,em1623,deaproximadamentesetemillivroseuropeusnabibliotecada

Companhia de Jesus em Pequim1. Juntamente com os livros ocidentais, diversas

gravurasforamlevadasparaPequimeusadasisoladamenteoucomoilustraçãodos

textos.

1Harrie Vanderstappen. “Chineseartand the jesuit inPeking”. IN.The Jesuits in China,1582‐1773.East meets West, edited by Charles Ronan, S. J. and Bonnie Oh. Chicago: Loyola University Press,1988,pp.103‐104.

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Algumasdasgravurasforamreproduzidasemtextoschineses,comofoiocaso

deumconjuntodedesenhosdepedrasdetinta,compiladosporChengDayue,com

o título Cheng shi moyuan 程氏墨苑 (Impressões de tinta de Cheng). Esta

compilação,datadade1606,consistenumregistodecoisaspreciosasrelacionadas

com os Céus, as coisas da Terra e os Três Ensinamentos2. Neste volume estão

reproduzidasquatrogravurascomtemascristãos,executadasapartirdemodelosde

HieronimuseAntonWierix,segundoumdesenhodeEduardusvanHoeswinkel3.As

gravuras que representam Lot em Sodoma, Virgem com o Menino, Pedro

caminhandosobreaáguaeCristoeosDiscípulosemEmaus, foramoferecidaspor

Matteo Ricci a Cheng Dayue, em 1605, juntamente com algumas explicações das

imagensemcaractereschineseseemalfabetoromanizado4.Adedicatóriaassinada

porRicci,queChengDayuepublicanoseulivro,éuminteressantecomentáriosobre

aimportânciadoslivrosimpressosparaadifusãodoCristianismo5.AobradeCheng

Dayue demonstra que as imagens cristãs reproduzidas em livros ilustrados de

literatura de espiritualidade se destinavam, sobretudo, à apreciação de homens

letradose,muitasvezes,ligadosaosistemaburocráticooficialchinês,deacordocom

a política missionária delineada por Alessandro Valignano, que visava reunir a

confiança dosmais altos dignitários chineses, demodo a obter autorização oficial

paraadifusãodoCristianismonoImpériodoMeio.

Estasgravuras,executadasapartirdemodelosgravadosporartistasitalianose

flamengos, terão sido enviadas para aMissão da China a partir de outrasmissões

2PaulPelliot.“LapeintureetlagravureeuropéennesenChineautempsdeMathieuRicci”.IN:T’oungPao‐Leiden‐,vol.XX(1921),pp.1‐18.3Harrie Vanderstappen. “Chineseartand the jesuit inPeking”. IN.The Jesuits in China,1582‐1773.East meets West, edited by Charles Ronan, S. J. and Bonnie Oh. Chicago: Loyola University Press,1988,pp.103‐104.4 As legendas estão publicadas integralmente em Berthold Laufer. “Christian art in China”. IN:OstasiatischeStudien.‐Berlin‐,vol.13(1910),pp.100‐122.5Op.Cit.,p.104.ManuelCadafazdeMatos,"AsgravurasflamengasdosirmaosWierixemcirculaçãonaChinae(re)impressasporMatteoRiccieChengDayue".IN:Culturarevistadehistoriaeteoriadasideias, vol. IX, série II, 1997, p. 75‐105. O texto poderá ser lido integralmente em Berthold Laufer.“ChristianartinChina”.IN:OstasiatischeStudien.‐Berlin‐,vol.13(1910),pp.100‐122.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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asiáticas.AgravuradeNossaSenhoracomoMeninoapresentanabaseumalegenda

em latim que identifica a imagem como tendo sido concebida para a Catedral de

Sevilha. A parte final da inscrição, 8 cm º Iapv 1597, tem suscitado alguma

controvérsia, existindo alguns autores que interpretam como sendo uma forma

abreviadadeAnnoapartuVirginis1597, enquantooutros sugeremqueSem. Japv

1597sereportaàdatae localdeexecuçãodagravuracomosendooSemináriodo

Japão,ondeoperavaumaescoladeartistasdirigidaporGiovanniNiccolò6.Ofactoé

que a escola de artistas do Seminário Jesuíta no Japão estava estabelecida desde

1592 e reproduzia pintura e gravura a partir de modelos importados da Europa.

EstasimagensserviamnãosóaMissãodoJapão,mastodasasMissõesJesuítasnos

NovosMundos.

Diversas imagens, nomeadamente deCristo Salvador doMundo, seguiamdo

JapãoparaasmissõesjesuítasnaÍndiaMogol.Esteéumreflexodeumatendência

estéticatransversalàuniversalidadedaacçãomissionáriajesuíta,caracterizadapor

JerónimoNadal,soboprincípiodonostermodusprocedendi7equesecoadunacom

auniformizaçãodoensinoaplicadapeloRatioStudiorum.Mais,percebemosqueos

modelos de Nossa Senhora com o Menino e de Cristo Salvador do Mundo se

apresentam, independentemente do contexto cultural da missão, como os

estandartesdamissionaçãoedisseminaçãodoCristianismonosNovosMundos.

Os Comentários eCartas deMatteoRicci, reportando‐seaosanosde1586e

1587,mencionampedidosparaoenviodeimagensdeoutroslocaisondeasmissões

jesuítas viviam uma condição mais favorável à difusão do Cristianismo, o que se

traduz numa necessidade de produção de imagens cristãs executadas por artistas

6PaulPelliot.“LapeintureetlagravureeuropéennesenChineautempsdeMathieuRicci”.IN:T’oungPao‐Leiden‐,vol.XX(1921),p.8‐9.7 Sobre a ideia de modo nostro ver Gauvin Alexander Bailey. “Le style Jesuit n’existe pas: JesuitCorporate cultureand theVisualArts”. IN:The Jesuits: Cultures, Sciences, and theArts,1540‐1773,edited by John O’Malley et alli. Toronto: University of Toronto Press, 2000, pp. 38 ‐ 89. CristinaOsswald. FromModo Nostro toModo Goano: Jesuit art inGoa between 1542 and 1655. Florence:ThesissubmittedformassessmentwithaviewtoobtainingthedegreeofDoctorofPhilosophyattheEuropeanUniversityInstitute,2003,p.132ess.

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europeusouporartistaslocaisconvertidos:“NotrePèreGénéralClaudeAcquavivaa

écritauxPèresdelaMissioneettoutdesuiteil leurenvoyédeRomeuneimagedu

Sauveur faite par un excellent peintre. Du Japon, le Père Vice‐Provincial Gaspard

Coelho leurenvoyéunegrande imageduSauveur faitepar leP. JeanNicolao, très

belle.DesPhilippines,unprêtrepieuxaenvoyéuneimagedelaViergeavecl’Enfant

danssesbrasetSaintJean[Baptist]l’adorant,[image]venued’Espagne,d’unerare

talentparlavivacitédescouleursetdesfigures”8.

QuandoMatteoRicci seapresentouao ImperadorWanli levavaconsigoduas

imagens da Virgem com oMenino e uma imagem de Cristo Salvador doMundo,

eventualmente executadas porGiovanniNiccolò e enviadas do Japão pelo próprio

AlessandroValignano,quehaviadadoindicaçãoaomissionárioitalianoparachegar

aPequim.A importânciadoSemináriodosartistasdeGiovanniNiccolòreflecte‐se,

inclusivamente, na formação de artistas locais que vieram a integrar aMissão da

China,apartirde1601.UmdestespintoreséoartistaNiYicheng,filhodeumchinês

e de uma japonesa, que adoptou o nome Jacobo Niwa após a sua conversão ao

Cristianismo. Niwa chegou a Macau na companhia de Alessandro Valignano, em

1601,tendoseguidonoanoseguinteparaPequim,ondeintegrouamissãoliderada

porMatteoRicci.DeacordocomEmanuelDias,ReitordoColégiodeMacau,Jacobo

Niwa,apesardeterapenasdezoitoanos,erabomconhecedordaartedapinturae

constituía umamais valia para o Apostolado da China. Da sua actividade artística

estádocumentada, logoà chegadaaMacau,aexecuçãodeumapinturadeNossa

SenhoradaAssumpçãoeumfrontaldeS.Úrsula,paraoaltardasOnzemilVirgens,

naIgrejadeS.Paulo9.

Já em Pequim, Niwa executou, para a ornamentação da igreja durante as

celebraçõesdoNatalde1604,umapinturadaVirgemdeS.LucascomoMeninonos

braços, a partir do modelo da Igreja de Santa Maria Maggiori em Roma, e uma

8Cit.apartirdePaulPelliot.“LapeintureetlagravureeuropéennesenChineautempsdeMathieuRicci”.IN:T’oungPao‐Leiden‐,vol.XX(1921),p.7.9CesarGuillenNunez.Macao'sChurchofSaintPaul:AGlimmeroftheBaroqueinChina.HongKong:HongKongUniversityPress,2009,pp.114‐115.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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imagem de Cristo Salvador doMundo. Através de uma carta deMatteo Ricci ao

padreAcquaviva,de15deOutubrode1606,sabemosqueJacoboNiwaseencontra

emMacauparaexecutaraspinturasdaIgrejadaMadredeDeus,umadasquaiséo

ArcanjoMiguelqueactualmenteseencontranoMuseudeArteSacradeMacau(Fig.

174)10.Em1610,JacoboNiwafoienviadoaNanchangparapintarimagensdeDeus

SalvadordoMundiedaVirgemnasduas igrejasJesuítasaíexistentes.EmMaiodo

mesmo ano regressou a Pequim, na sequência da morte de Matteo Ricci, para

executarapinturamuralnotemplobudistaqueoimperadorWanliconcedeuparao

túmulodomissionárioJesuíta11.

UmoutropintoractivonaMissãodaChinafoioartistachinêschamadoYou

Wenhui, que se havia convertido ao Cristianismo e adoptadoo nomede Emanuel

Pereira12. Nascido em Macau, frequentou o seminário dos artistas de Giovanni

Niccolò no Japão para integrar aMissão da China, sendo hoje conhecido por ter

executado o célebre retrato de Matteo Ricci, que se encontra na Chiesa del

SantissimoNomediGesúall’Argentina,emRoma(Fig.175).

Embora não se conheça qualquer outra obra de Emanuel Pereira, existem

registos de que terá executado cópias de uma pintura de Nossa Senhora com o

Menino e S. JoãoBaptista a partir de umoriginal enviado de Espanha, através do

MéxicoedasFilipinas,destinadoaoImperadorWanli.NaProvínciadeShandong,a

mulher do Governador viu e admirou a pintura que Matteo Ricci levava ao

Imperadoreordenouqueumpintorchinêsfizesseumacópia.OJesuíta, receando

queopintorchinêsnãoexecutassedignamenteaimagem,ofereceuumaréplicada

pintura executada por Emanuel Pereira. De acordo com Craig Clunas, existe uma

clara intenção depreservar umadistânciaentre osdiferentesestilosdepintura,o

10 Paul Pelliot. “La peinture et la gravure européennes en Chine au temps de Mathieu Ricci”. IN:T’oungPao‐Leiden‐,vol.XX(1921),p.10‐11.DavidMungello.ThegreatencounterofChinaandtheWest,1500‐1800.Maryland:Rowman&Littlefield,2009,p.42.11MichaelSullivan.ThemeetingofEasternandWesternart.NewYork:GraphicSociety,1973,p.57.12 Paul Pelliot. “La peinture et la gravure européennes en Chine au temps de Mathieu Ricci”. IN:T’oungPao‐Leiden‐,vol.XX(1921),p.10.

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que se coaduna com a ideia de uma transversalidade e universalidade do ensino

atravésdaspalavrasedasimagens,deacordocomomodonostro13.Acimadetudo,

estasituaçãotemquevercomovalorestéticoqueMatteoRicci tememrelaçãoà

pintura chinesaeàpinturaeuropeia.Ricci consideraqueosartistas chinesesnada

sabemsobreaartedapintura,sendomuitoprimitivosnestaarte,devidoaofactode

nunca terem estado em contacto íntimo com outras nações para além das suas

fronteiras. Assume claramente que o encontro com a pintura europeia tem

contribuídoparaumaprogressãodapinturachinesa,dandoaconhecerapinturaa

óleo, o uso da perspectiva e a aplicação da técnica chiaroscuro, que confere

profundidadeetridimensionalidadeàsfiguras14.

Atravésdeumcomentáriopublicadoporvoltade1618emmandarimporGu

Qiyuan, na obra intitulada Ke zuo zhui yu 客坐贅語, é possível perceber a

preferência deMatteo Ricci pela pintura europeia em detrimento da ausência de

vivacidadedapinturachinesa:“LiMadouisamanfromtheWesternOceancountry

ofOuluoba.Hehasafairskin,acurlybeard,anddeepeyeswithyellowpupils like

those of a cat. He knows the Chinese speech. He came to Nanjing and lived in a

barrackwestof the ZhengyangGate.Hehimself said that his nationworships the

LordofHeaven,andthatthisLordofHeavenisthecreatorofHeavenandEarthand

themyriadofthings.ThisLordofHeavenispaintedasasmallboy,heldbyawoman

called “HeavenlyMother”. He is painted on a copper panel, with the five colours

spreadon top.The face isas if living, thebody,armsandhands seem toprotrude

fromthepanel,theconcaveandconvexpartsofthefacearenodifferentofthoseof

alivingpersintolookat.Whenaskedhowthepaintingcouldachievethis,hereplied,

“Chinese painting only paints the light (yang), it does not paint the shadow (yin).

Thus to look at, people’s faces are completely flat, with no concave or convex

physiognomy.Mycountry’spainting combines theyinand theyang indrawing, so

13CraigClunas.PicturesandvisualityinearlymodernChina.London:ReaktionBooks,1997,pp.175‐176.14GianniGuadalupi (ed.).China.Arts anddaily lifeas seen by FatherMatteo Ricciandother Jesuitmissionaries.MilãoeParis:FrancoMariaRicci,1984,pp34‐35.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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that faces have higher and lower parts, and arms are round.When anyone’s face

towardsthe light (yang), then it isentirelybrightandwhite,but if it is turnedthen

thesidewhich is towardsthe lightwillbewhiteandthatwhich isnottowardsthe

light,theeye,ear,nose,mouthandconcaveplaceswillhaveadarkappearance.The

portraitpaintersofmycountryunderstandthisprinciple,andbyusingitareableto

ensure that the painted effigy is no different from the living person…”He brought

withhimagreatnumberofbooksprintedinhiscountry,allprintedonbothsidesof

white sheetsofpaper,with characters inhorizontal lines.Thepaper is likeYunnan

ragpaperoftoday,thickandrobust,withtypeandinkbothveryfine”15.

Estes textos permitem‐nos concluir que, apesar de Matteo Ricci dominar

aparentementedeterminadosprincípiosdaculturaedapinturachinesa,recorrendo

à utilização de palavras comooyin e oyang eassumindoque a pintura europeia

reúne intrinsecamente esta harmonização e equilíbrio das forças, não consegue

distanciar‐se de uma perspectiva estética Ocidental que procura evidenciar a

supremacia da pintura europeia em relação à pintura chinesa. Estabelece uma

avaliaçãoapartirdeprincípiosestéticospuramenteeuropeus ignorandoasteorias

da arte chinesa, nomeadamente os Seis Princípios Canónicos da Pintura definidos

peloteóricoXieHe.Emrelaçãoàutilizaçãodatécnicadochiaroscuro,àcriticaque

MatteoRiccilançasobreapinturachinesaeàausênciadapercepçãovisualdeluze

sombra, como muito bem observa James Cahill, qualquer bom artista chinês,

pintandonasuatradiçãonativa,poderiaterpintadorochasmuitomaisreaisnasua

naturezadoqueasquevemosrepresentadasporJerónimoNadal16.

Éfundamentalconsiderarqueapinturachinesaprivilegiaoregistodovalore

significadointrínsecodoobjecto,asuaforça,vitalidadeeenergiavital.Apinturada

15AfacsimileofaneditionofGuQiyuan顧起元,Kezuozhuiyu客座贅語,inBaibucongshujicheng

百部叢書集成, vol. 100 (Taipei: Yiwenyinshuguan藝文印書館, 1968),orig.p.19r., cit apartirdeCraigClunas.Picturesandvisuality inearlymodern China. London:ReaktionBooks,1997,pp.176 ‐177. Cf. James Cahill. “Wu Pin and His landscape painting” IN: Proceedings of the InternationalSymposiumofchinesePainting.Taipei,1970,pp.651‐656.16 James Cahill. The compelling images: nature and style in seventeenth‐century Chinese painting.Cambridge:HarvardUniversityPress,1982,p.96.

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verdadeiranaturezade todasas coisas,doqi,que semanifestaatravésdaprópria

naturezaedoequilíbriodoselementos,ganhacorpoatravésdadiluiçãodatinta,de

contrastesdeluzesombra.Opintorémeramenteaqueleatravésdoqualaenergia

vital flui, aquele que manuseia o pincel e dá estrutura ao não corpóreo. Neste

contexto,averosimilhançacomorealeaevidênciaformaldascoisaséinsignificante

peranteaforçadaemoçãoeaenergiadaverdadeirasubstância.

OsSeisPrincípiosparaoentendimentodeumapintura,enumeradosporXie

He, constituemo ponto de partida para a evolução estilística e teórica da arte da

pinturachinesa.Oprimeirodessesprincípios,aressonânciaespiritual, reporta‐seà

essênciainteriordetodasascoisasrepresentadas,averdadeiraforçaquedespertaa

emoção.ÉoregistodaVidaemmovimento.Emsegundolugar,opintordesenvolve

aestruturaqueencerraemsiasformasatravésdasquaisseexpressaaenergiavital.

Oterceiroprincípioatribuiaosobjectosumasemelhançacomorealquepermitaao

observador identificar a sua natureza. Seguidamente, o pintor deve distribuir as

cores a partir de diferentes tonalidades e características das coisas. Através do

quinto princípio, o pintor define um plano e distribuição do espaço pictórico.

Finalmente,éatravésdosextoprincípioqueopintortransmiteosaberdosgrandes

mestres,reproduzindoeglosandoosseusmodeloseestilos.

Oquartoeoquintoprincípios,querespectivamentesereportamàtécnicade

diluiçãodatintaconformeascaracterísticasdosobjectoseàcriaçãodeumesquema

planimétrico do espaço pictórico, anunciam as teorias de combinação de luz e

sombra e de estratificação de diferentes níveis de profundidade, que foram

desenvolvidospelospintoreseteóricosdadinastiaSong.

GuoRuoxo,opintore teóricodaartedadinastiaSong,escreveuem1075o

famosotratadoTuhuajianwenzhi图画见闻志(Apontamentossobreoquevieouvi

sobrepintura),noqualteceumelogioaopintorGuoXi,considerando‐oosupremo

pintordepaisagemdasuageração.OtextodeGuoRuoxusegue,emlargamedida,a

tradição teórica de Xie He, sublinhando a verdadeira importância da ressonância

espiritual,queconsideraserinerenteeinataaograndepintor,edodomínionouso

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AartecristãnoImpériodoMeio

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dopincel,atravésdoqualopintorproduzabelezaespiritual17.Omaisinteressante

dotratadodeGuoRuoxoéofactodereferirqueaotufa,ométododeconcavidade‐

convexidade, é o mais adequado para a pintura de montanhas e rochas. Aotufa

凹凸法eraumatécnicadepinturaintroduzidanaChinapelosmissionáriosbudistas

que vieram da Índia e se estabeleceramnas grutas deDunhuang. Trata‐se de um

efeitoqueconferetridimensionalidadeàs figuras,atravésdavariaçãodepigmento

que faz a diferenciação entre luz e sombra e que vemos aplicado nos templos

escavadosnarochaemAjantaeDunhuang18.

Muito próximo das observações teóricas de Guo Ruoxo está Han Zhuo, um

modesto pintor e oficial do reinado do Imperador Huizong. Han Zhuo escreveu o

famoso tratado com o título Shan shui Chunquan ji山水純全集 (Ensaios sobre

pintura de paisagem), datado de 1121. O texto é completamente consagrado à

pintura de paisagem, nomeadamente sobre a forma adequada para a pintura de

montanhas, cursos de água, árvores, pedras, nuvens e nevoeiro, chuva e neve.

Concretamente, Shan Shui significa montanha e água, consideradas, à luz do

pensamentoestéticodeHanZhuo,asestruturasfundamentaisparaarepresentação

dapaisagemcomoresultadodeumacombinaçãoentreaexecuçãotécnicadopincel

eoimpulsoinspiradordaenergiavital.

Sobreaimportânciadaexecuçãotécnicadopincelconsideraqueapinturaé,

emsi,umtrabalhoresultantedodomíniodopincelnaexpressividadedasemoçõese

dasformasenoequilíbriocomatintaqueserveparadistinguira luzdassombras:

“Painting isabrush‐work inaccordancewiththerevolutionofthemind.Itmustbe

conceived before it takes shape. It is reached onle after the rules have been

mastered.ItissecretlyunitedwiththeCreatorandwiththepowerofTao.Whenthe

brush is grasped, it scatters numberless images, and one may with a tuft of hair

17 Guo Ruoxu.Notes sur ce que j’ai vu et entendu em peinture, traduis du chinois et présenté parYolaineEscande,avante‐proposdeFrançoisCheng.Bruxelles:Lalettervolée,1994,pp.70‐78.18 Tan Chung et alli. Dunhuang art: through the eyes of Duan Wenjie. New Delhi: Indira GandhiNationalCentre for theArts,1994,pp.229.EugeneWang.Shaping the LotusSutra: Buddhist visualcultureinMedievalChina.Washington:WashingtonUniversityPress,2005,p.243.

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sweepoverathousandli.Thusthebrushservestoestablishshapeandsubstanceand

theinktodividethelightfromthedark.Completelandscapesaremadewithbrush

and ink”19. Acrescenta ainda que profundas concavidades e convexidades

transmitem com eficácia as partes expostas à luz e as que permanecem sob a

sombra,fundamentaisquandosepintamasmontanhas20.

AsteoriasdeHanZhuosãotecidasemtornodaobradeGuoXique,através

destas técnicas, introduz na pintura de paisagem uma nova dimensão de

profundidadeàcomposiçãopictórica.EmIníciodaPrimavera,GuoXicombina,numa

monumental paisagem, três níveis de profundidade através de uma ilusão

conseguidapeladiluiçãodatintaemdistintastonalidadesdeluzesombraedeum

sistemademúltiplospontosdefuga(Fig.176).Amovimentaçãoobliquadostrilhos,

que serpenteiam pela densidade da paisagem, intensifica a verticalidade da

montanha e a monumentalidade da paisagem, perante a singela presença das

estruturasarquitectónicasconstruídaspeloHomem.Asdiferentestonalidadesdeluz

esombradãocorpoaosemblantesinuosodamontanhaque,porvezes,seesconde

sobummantodenevoeiro.Estenevoeiroé,emúltimaanálise,arepresentaçãoda

própria distância, da atmosfera que se impõe entre a montanha e o olhar do

observador.

Porúltimo,duranteadinastiaMingospintoresdaescolaamadoradeWu,que

floresceunofinaldoséculoXVeiníciodoséculoXVInaregiãodeSuzhou, fundada

por Shou Zhou e pelo seu discípulo Wen Zhengming, introduz um sistema de

concavidade e convexidade unicamente através da pincelada em detrimento da

dualidade de luz e sombra através da diluição de tinta. Dong Qichang, pintor e

teóricodaarteautordaideiaqueestabeleceadivisãoestilísticaentreospintoresda

escola de Wu e da escola de Zhe, escreve no seu tratado Hua chan shi sui

19HanZhuo.ShanshuiChunquanji山水純全集,cit.apartirdeSirén,Osvald.TheChineseontheartofpainting.Textsbythepainter‐critics,fromtheHanthroughtheCh’ingDynasties.NewYork:DoverPublicationsinc.,2005,pp.81‐82.20 Elisabetta Corsi. La Fábrica de las Ilusiones. Los Jesuitas y la diffusion de la perspectiva lineal enChina,1698‐1766.México:ElColegiodeMéxico,2004,pp.118‐119.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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bi畫禪室隨筆 (Crítica sobre a caligrafia) que a representação de concavidade e

convexidadedeveexpressar‐sedirectamenteatravésdopincelsobreasuperfície21.

ÉcertoquenasgravurasabertaseimpressasnaChinaapartirdosmodelosda

Evangelicae Historiae imagines de Jerónimo Nadal se percebe uma ausência da

técnica de chiaroscuro que confere profundidade e volumetria às imagens. Numa

versão ilustrada de Song nianzhu guicheng誦念珠規程 (Regras para a oração do

Rosário), publicada emNanjing em 1619 pelo jesuíta português João da Rocha, o

artista chinês usa como modelo a gravura de Nadal sem, no entanto, procurar

executarumacópiaexacta.Paraalémdaausênciadastécnicasdagravuraeuropeia

o artista chinês resume a imagemao essencial optandopor não representar uma

partesignificativadasfiguras,emparticulardostondiqueladeiamotronodeCristo

noEncontrodeJesusnoTemplo(Fig.177)22.

AsgravurasdaediçãodeJoãodaRochaforamexecutadassobforteinfluência

dosesquemasderepresentaçãodaartechinesaerecontextualizadassobopadrão

cultural chinês. A Anunciação (Fig. 178) e a Visitação (Fig. 179), para além dos

retratos de figuras de semblantes asiáticos, apresentamarquitecturas tipicamente

chinesas,ondepredominaaharmoniaentreasestruturasconstruídaspeloHomeme

oMundo Natural. Estamos perante a representação de espaços que no contexto

cultural chinês invocama contemplação da natureza e a harmonia entre aOrdem

NaturaleCaos,oMundodoHomemeoMundoNatural.Emparticularnagravurada

Anunciação, as paisagens dominam o cenário da narrativa, tendo o pintor

representado, à esquerda, uma pedra de literato e uma bananeira. A pedra de

literato, que simula a representação da montanha sagrada, e a bananeira faziam

21DongQichang,Huachanshisuibi畫禪室隨筆,inBijixiaoshuodaguan筆記小說大

觀, vol. 22: 5 (Taipei: Xin xing shuju新興書局, 1978), p. 3091, cit. a partir de Hui‐Hung Chen. “AEuropeandistinctionofChinesecharacteristics:astylequestion inseventeenth‐centuryJesuitChinaMissions.IN:TaiwanJournalofEastAsianStudies,Vol.5,No.1(Iss.9),(June2008),pp.18.22 Xiaoping Lin. “Seeing the Place: The Virgin Mary in a Chinese Lady’s inner chamber”. IN: EarlyModern Catholicism: Essays in honor of JohnW.O’Malley, S. J., edited by KathleenM. Comerford,HilmarM.Pabel.Toronto:UniversityofTorontoPress,2001,pp.183‐210.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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parte dos jardins construídos pelos literati e pelos monges taoistas23 que

encontravamnasmontanhasumretiroespiritual,ondepoderiamabsorveraenergia

vital e a harmonia com a natureza que lhes garantia uma maior longevidade.

Algumas das gravuras apresentam ainda o característico padrão de nuvens em

espiralquedelimitaaenvolvênciadoespaçosagradoouqueservedeveículo,como

vemos na Anunciação, na Natividade, na Oração no Orto, na Ressureição e na

AscensãodeCristo,noPentecostesenaAssunçãodeMariaaosCéus.

Porúltimo,naOraçãodeCristonoHorto(Fig.180),apesardesemanterfielà

composição da gravura de Nadal, o artista chinês reformula a expressividade da

paisagem de acordo com a estética e as técnicas da pintura chinesa, onde, em

primeiroplano,arepresentaçãodeduasárvoresemdiferentesescalasedispostas

em lados opostos conferem uma certa profundidade à pintura. A disposição do

espaço da paisagem torna evidente a aplicação da técnica de proporcionalidade e

distribuição obliqua dos objectos que atribui à pintura uma profundidade em

diferentes níveis. Esta técnica foi desenvolvida pelos grandes mestres da dinastia

SongdoNorte,nomeadamenteporGuoXinacélebrepinturaÁrvoresVelhas,Nível

deDistância,queseconservanoMetropolitanMuseumofArt,ouaindaemInícioda

Primavera,pertencenteaoNationalPalaceMuseumemTaipé.

Poroutrolado,aediçãodeGiulioAlenideTianzhujiangshengchuxiangjingjie

天主降生言行紀略 (Explicação das imagens da Encarnação do Senhor do Céu),

publicadaemJinjiangem1637,demonstraumarealidadecompletamentedistinta.O

contraste de luz e sombra, embora significativamentemenos acentuado, é visível

sobretudoaoníveldasarquitecturas,paraalémdequeasgravurassãoreproduzidas

mimeticamente,apesardenãoterreproduzidoatotalidadedasgravurasdeNadale

do aspecto asiático das figuras. Mais, o sistema de identificação das figuras e

explicação da narrativa da imagem é igualmente reproduzido na edição de Aleni,

dando continuidade ao carácter didáctico e explicativo das histórias sagradas que

23 Cf. Craig Clunas. Fruitful sites. Garden Culture in Ming Dynasty China. London: Reaktion Books,1996,p.73.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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encontramosnaobradeNadaleparaoqualteráeventualmenteservidoestaedição

emmandarim.

Em1640,AdamSchallvonBellofereceao ImperadorChongzhenumaversão

da Vida de Cristo, com 48 ilustrações compilada com base numa edição original

publicadaprovavelmenteemMunique,porvoltade1617.ComAdamSchallàfrente

damissãoJesuítanacorteimperialchinesa,osmissionáriosbeneficiamdeumapoio

dosDuquesdaBaviera,nomeadamentedeGuilhermeIeoseusucessorMaximiliano

I,queserevelouvitalparaasrelaçõesentreaChinaeoOcidente.

AediçãodeJinchengshuxiang進呈書像 (IlustraçõesExplicadaseOferecidas

ao Imperador), ao contrário das edições de João da Rocha e Giulio Aleni, é um

conjuntodeimagensàsquaisseanexaumaexplicaçãodoseusignificadoenarrativa

eumanotasobrecomodevemserlidoseentendidososlivrosocidentais.Talcomo

observaNicolasStandaert,noentenderdeJerónimoNadal,as imagensdaVidade

Cristonãoeramapenasimagensartísticas,eramsobretudoumaparteessencialpara

areflexão(meditatio).Oseutrabalhodeveráserentendidocomoumcomplemento

aosExercíciosespirituaisdeInáciodeLoyola,umlivroquenãocontémimagensmas

querefereasuaimportânciaduranteasorações,sendoqueodevotoéencorajadoa

utilizar os cinco sentidos durante as orações. AsAdnotationes etmeditationes de

Nadal reflectem estes princípios, sendo, por isso, o texto que complementa o

discursodasimagensenãoasimagensqueilustramotexto24.

A publicação foi bastante bem aceite pelo Imperador, ordenando

inclusivamente que as imagens oferecidas fossem colocadas noPalácio daGrande

Virtude,ondeoimperadoreasuaconsorte,juntamentecomtodaacorte,poderiam

admiraraspinturasegravuras.

Porvoltade1640, JiangShaoshu,noseucélebreWushengshishi無聲詩史

(HistóriadosPoemasSilenciosos)manifesta‐semaravilhadopelaverosimilhançados

24 Nicolas Standaert.An illustrated Life of Christ presented to the Chinese Emperor. The History ofJinchengshuxiang(1640).SanktAugustin:InstitutMonumentaSerica,2007,pp.10.

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retratos europeus. No sétimo rolo, com o título Desenho dos Países Ocidentais,

afirmaqueestasasfiguras,queraoníveldostraçosfaciaiscomodosdrapejadosdas

roupas,sãopintadoscomoseosmodelosestivessemfrenteaumespelhoequea

elegânciadasfigurasestámuitoalémdascapacidadesdosartistaschineses25.

ZengJingfoiumartistachinêsdoFujianque,deacordocomJiangShaoshu,se

afirmoucomoumnotávelnapinturaderetrato.JiangShaoshurefere‐seaosretratos

deZengJingdamesmamaneiraqueaosretratoseuropeus“cadapedaçodebeloou

defeio,noseuretrato,assemelhava‐seaumapessoareal”26.Adianta,relativamente

àsuatécnica,queZengJingnuncasecansadeutilizarumcontrastedeluzesombra

que faz os seus retratos parecerem‐se com imagens reflectidas num espelho27.

Parece‐nosqueJiangShaoshuestabeleceumaintencionalligaçãoentreapinturade

ZengJingeapinturaeuropeiaparatecerumelogioaumpintorchinês, tendoem

contaoestatutoqueaperspectivaeorealismodapinturaOcidentalusufruíanoseio

da corte imperial. Contudo, alguns historiadores defendem que Zeng Jing foi

efectivamente influenciado pela pintura Ocidental, uma vez que era natural do

Fujian, onde eventualmente teve contacto com os missionários e mercadores

25HsiangTa,“European influencesonchineseart inthe laterMingandEarlyCh’ingPeriod”. IN:Thetranslationofart: Essaysonchinesepaintingandpoetry.Renditionsnº6,Special issue‐HongKong(1976).“The imageoftheHeavenlyLordbroughtinbyMatteoRiccifromtheWesternOceanisofawomanholdinganinfant.Theeyebrows,eyes,anddraperyarelikeareflectioninamirror,muchlikewalkingormoving.Thedelicacyandgraceofthe imagecannotbeachievedbythehandsofChinese

artists and craftsmen”. Jiang Shaoshu姜紹書,Wu sheng shi shi無聲詩史, in Yu Haiyan于海晏(comp.)Huashi congshu畫史叢書, vol. 2 (Taipei:Wenshi zhe chubanshe文史哲出版社, 1974),p.1091, cit a partir de Hui‐Hung Chen. “A European distinction of Chinese characteristics: a stylequestion inseventeenth‐centuryJesuitChinaMissions.IN:TaiwanJournalofEastAsianStudies,Vol.5,No.1(Iss.9),(June2008),pp.1‐32.26HarrieVanderstappen.“Chineseartandthe jesuit inPeking”. IN.TheJesuits inChina,1582‐1773.East meets West, edited by Charles Ronan, S. J. and Bonnie Oh. Chicago: Loyola University Press,1988,pp.103‐104.27HsiangTa“European influencesonchineseart inthe laterMingandEarlyCh’ingPeriod”. IN:Thetranslationofart:EssaysonChinesepaintingandpoetry.Renditionsnº6,Specialissue‐HongKong‐(1976),pp165.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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portugueses. Mais tarde, por volta de 1600 está documentado em Nanjing, na

mesmaalturaelocalporondesemoviaMatteoRicci28.

Já em 1629, o Jesuíta Francesco Sambiasi havia publicado um texto com o

títuloShuidaHuada睡答畫答(Respostassobreapinturaalegórica),umresumido

texto emmandarimque tratava o temada pintura tridimensional dos objectos.O

texto, prefaciado por Li Zhiao, um chinês convertido ao Cristianismo, está

estruturado em forma de diálogo entre um chinês e um missionário que é

interrogadosobreaformacomoasfigurasnapinturaOcidentalparecemanimadase

imbuídasdeespírito.Sambiasirespondeafirmandoqueapinturaganhaaformadas

palavras através do pincel, que o coração do pintor é a tela e que o Princípio

Primordial, aDoutrinaeDeus, consistemna corde todasas coisas.Tudo se torna

mais interessante quando Sambiasi é interrogado sobre qual a melhor forma de

representar Deus. A resposta de Sambiasi vai no sentido de que a pintura é um

veículodeedificaçãoespiritualquereflectenecessariamenteaMoralidadeCristãeo

lugardoHomemnoCosmos,físicaeespiritualmente29.Nanossaopiniãoparece‐nos

evidentearelaçãoqueSambiasiestabelececomatradiçãoartísticadaChinanoque

respeita às ideias fundamentais da pintura de paisagem, nomeadamente na

hierarquização da pintura através da acção do pincel e do pintor, que são os

instrumentosapartirdosquaisfluiaenergiacósmicae,naideiadequeapinturaeo

actodepintarsão,emsi,umaexpressãodoTao.

Estetextofoioprimeirodeumconjuntosdetextoseuropeusque,sobretudo

durante a dinastia Qing, viriam a gerar o interesse dos diversos imperadores

chineses, em particular durante o reinado de Kangxi, ao qual foram apresentados

vários textos traduzidos por Luigi Buglio, alguns dos quais inspirados no texto de

FrancescoSambiasi.

28 David Mungello. The great encounter of China and the West 1500 ‐ 1800. Lanham: Rowman &LittlefieldPublishers,1999,p.50.29 Hui‐Hung Chen. “Image and Soul: Jesuit vision in seventeenth‐century China”.IN: Chinese CrossCurrents.‐Macao‐vol.5,nº1(January,2008),pp.85‐93.

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AquedadosMingeasucessãodadinastiaQingteveprofundasimplicaçõesao

níveldapresença dosmissionários jesuítasnacorte imperial.A relação queAdam

SchallmantinhacomFanWenchengfoifundamentalparaacontinuidadedamissão

jesuítanaChina. FanWencheng foiumdos funcionáriosque sehavia rendidoaos

Manchus,em1618e1636,equesetornouumdosquatrograndessecretáriosda

administraçãodadinastiaQing.FoiooficialchinêsqueautorizouSchallaregressarà

residência jesuíta em Pequim e que emitiu um documento que proibia todos os

Manchus de importunar os missionários jesuítas30. Foi ainda essencial na

apresentaçãodeSchallaShunzhi,oprimeiroimperadordadinastiaQing.Arelação

deamizadeentreojesuítaeoImperador,bemcomoosconhecimentosdeSchallao

níveldaastronomia,damatemáticaeocontributoquehaviadadoparaocalendário

deChongzhen,oúltimoImperadorMing,permitiramaomissionárioanomeaçãode

MinistrodoGabinetedeAstronomiadoImperadorShunzhi.

O elevado estatuto de que os missionários jesuítas usufruíam na corte

imperial,particularmentecoma funçãoqueAdamSchalldesempenhavaenquanto

Ministro doGabinetedeAstronomia, umdosmais importantes cargosaonívelda

administraçãoimperialtradicionalmenteocupadoporConfucianos,desencadeouum

fervorosoataquedeummovimentoanti‐cristão.Porvoltade1665,YangGuangxian

楊光先 na sua obra Budeyi 不得已 reproduz três das imagens que considera

“ofensivas” para demonstrar a natureza heterodoxa da doutrina estrangeira (Fig.

181).AsuaideiaprincipaléqueoJinchengshuxiangrevelaJesuscomoumrebelde

condenadoàcrucificação.Astrêsimagensreproduzidasforam:EntradadeJesusem

Jerusalém,CrucificaçãoeCristonaCruz,seguidasdoseucomentário:“Thesepictures

wouldmakeallpeopleintheworldknowthatJesuswasputtodeathasaconvicted

criminal,sothatnotonlyscholar‐officialswouldnotwriteprefacesfortheir(Christian

30 JohnWitek. “The emergenceofaChristian community inBeijingduring the LateMingandEarlyQing Period”. IN: Encounters and Dialogues: Changing Perspectives on Chinese‐Western Exchangesfrom theSixteenth toEighteenth Centuries,Wu Xiaoxin, ed.,MonumentaSericaMonographSeries,Vol.LI,SanktAugustin,Nettetal,Germany,2005,pp.98‐99.

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AartecristãnoImpériodoMeio

345

writings),butpeolpleoflowerclasseswouldalsobeashamedtobelieveinthatkind

offaith.ThealbumSchallpresentedtotheimperialcourtiscomposedof64leavesof

writings and 48 pictures; an annotationwas put on the left side of every picture.

Being unable to reproduce all the pictures, I copy only three pictures and their

respective annotations for the present moment. They are “The people applauding

Jesus”,“Jesusbeingnailedonthecross”,and“Jesusonthecross”.Thiswillshowthe

entireworldthatJesuswasnotanorderlyandlaw‐abidingperson,butasubversive

rebelleader,whowasconvictedandexecuted.Theannotationsareputtotheleftof

thepictures”31.

Emrigor,YangGuangxiannãocriticaapenasasimagensquereproduznoseu

texto,estendendoassuascríticasaopróprioCristianismo.SegundoYangGuanxian,

os textos publicados e traduzidos por Adam Schall negam em absoluto todo o

passado da China, relegando todo o seu passado, os seus ensinamentos e os

clássicoscomoumaramificaçãodaortodoxiadeJudeia.“In[theJesuitFather]Adam

Schall’s ownpreface one can read that [the Christian scholars] XuGuangqi and Li

ZhizaobothunderstoodthattheycouldnotdarepubliclytogiveoffensetoConfucian

norms.AdamSchall’sworksaysthatonemanandonewomanwerecreatedasthe

first ancestors of all humankind. He was not actually so bold as to make the

contemptuous assertion that all the peoples in the world are offshoots of his

teaching,butaccordingtoabookby[theChristianscholar]LiZubo,theQingdynasty

isnothingbutanoffshootof Judea;ourancientChineserulers,sages,andteachers

werebuttheoffshootsofaheterodoxsect;andourclassicsandtheteachingsofthe

sagespropoundedgenerationaftergenerationarenomorethantheremnantsofa

heterodoxteaching.Howcanweabidethesecalumnies!Theyreallyaimto inveigle

thepeopleoftheQing intorebellingagainsttheQingandfollowingthisheterodox

31HsiangTa“European influencesonchineseart inthe laterMingandEarlyCh’ingPeriod”. IN:Thetranslationofart:EssaysonChinesepaintingandpoetry.Renditionsnº6,Specialissue‐HongKong‐(1976),pp.159‐160.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

346

sect, which would lead all‑under‑Heaven to abandon respect for rulers and

fathers”32.

Sãováriososmotivosinvocadospelosmovimentosanticristãos,entreosquais

a heterodoxia a que YangGuangxian se refere.O carácter etnocêntrico da cultura

chinesa, que se considerava a mais poderosa civilização do mundo e a profunda

relaçãoentreaadministraçãodoImpérioeopensamentoConfucionista,conduzem

a uma total rejeição de qualquer ensinamento que não seja o do Verdadeiro

Conhecimento,queosantepassadostransmitiramaConfúcioedepois,apartirdaí,a

todososhomensque se seguiram.Poroutro lado,este sentimentode rejeiçãodo

Cristianismo intensifica‐se a partir da emergência da dinastiaQing, fundamentado

no facto de osManchus constituírem umaminoria étnica em toda a extensão do

Impériochinêseserelevadooreceiodeuminsurreiçãocontraopoderestrangeiro.

Era,portanto, fundamental invocarumaestreita ligaçãoàs tradiçõesancestrais da

culturachinesaquepassava,impreterivelmente,pelarejeiçãodequalquerinfluência

estrangeira. Alguns historiadores referem ainda que os literati confucionistas

acreditavam que as igrejas e residências dos cristãos poderiam gerar um

desequilíbrio na harmonia da natureza. A geomância é uma das estruturas da

tradiçãoculturaldaChinaqueconsistenoequilíbrioentreaconstruçãodeedifíciose

estruturas feitas pelo Homem e a energia cósmica qi que se manifesta na

harmonizaçãodasforçascelestiaisdoyineyang33.

Contudo,nestecasoparticular,éfundamentalconsiderarqueYangGuangxian

era um confucionista e astrónomo, que lançou a calúnia sobre Adam Schall,

acusando‐o de terescolhidoumadatapoucoauspiciosapara o funeraldeumdos

filhosdoImperadorShunzhiedasuaconsorteXiaoxian.SegundoYangGuangxian,a

decisãodeSchalltevecomoconsequênciaamorteprematuradaimperatrizXiaoxian

edopróprioimperadorShunzhi,em1660e1661respectivamente.Atensãopolítica

32SourcesofChineseTradition:From1600throughthetwentiethcentury,compiledbyWm.TheodoredeBaryandRichardLufrano.NewYork:ColumbiaUniversityPress,2nded.,vol.2,2000,151‐152.33 David Mungello. The great encounter of China and the West 1500 ‐ 1800. Lanham: Rowman &LittlefieldPublishers,1999,pp.37‐43.

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AartecristãnoImpériodoMeio

347

criada por Yang Guangxian em relação aos missionários jesuítas levou a que as

autoridades Manchus desenvolvessem uma investigação que concluiu pela

condenação de Adam Schall ao exílio e na condenação à morte de todos os

astrónomos chineses cristãos que colaboravam no Gabinete de Astronomia. Na

sequência destes eventos, Yang sucedeu a Schall como Ministro do Gabinete de

Astronomia. Contudo, Pequim foi assolada por um terramoto no dia seguinte à

sentença,tendosidointerpretadocomoumactodeindignaçãodivinaemrelaçãoà

acusação lançadaaAdamSchall.Desta forma,Schall,Verbiest,BuglioeGabrielde

MagalhãesforamautorizadosapermaneceremPequim.Noentanto,osastrónomos

chinesesforamexecutadoseas igrejasdaChinaforamencerradas.Aindaantesda

mortedeSchall, em1666,Verbiestdemonstrou queos conhecimentosemétodos

europeus sobre astronomia erammais precisos do que osmétodos desenvolvidos

por Yang Guangxian, assumindo por isso o cargo de Ministro do Gabinete de

Astronomia. A morte de Adam Schall coincidiu com final da regência de Sonin,

Suksaha, Ebilun, e Oboi, durante a menoridade de Kangxi. Uma das primeiras

medidas de Kangxi, considerando a relação de amizade entre o seu Pai e os

missionários jesuítas, nomeadamente Adam Schall, foi a reabertura do processo,

revertendotodasasacusaçõesecondenandoYangGuangxianaoexílio34.

No início do reinado de Kangxi, apenas Verbiest, Luigi Buglio e Gabriel de

Magalhães permaneciam na corte imperial, servindo o imperador no Gabinete de

Astronomiaeensinandoaosartistaschinesesasregrasfundamentaisdaperspectiva,

baseando‐se sobretudo em alguns tratados que se encontravam na Biblioteca da

CompanhiadeJesus.

É através de um texto composto por Ferdinand Verbiest, com o título

Astronomia Europaea, publicado em Dillingen, em 1687, que temos notícia da

reacção do Imperador Kangxi, e do público em geral, às técnicas de pintura em

perspectiva. Segundo Verbiest, terá sido Luigi Buglio que, em 1667, executou

pinturas comarquitecturas emperspectiva a partir demodelos retirados de livros

34Op.Cit.,pp.44‐45.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

348

ilustrados.Duasdestaspinturas,reproduzidasnumaescalasignificativamentemaior

em relação às gravuras, representavam um palácio europeu com o seu jardim,

enquanto uma terceira tinha representado um palácio chinês35. Efectivamente,

durante o reinado do imperador Kangxi, o interesse pelos conhecimentos do

missionárioseuropeusconcentrou‐se,emlargamedida,aoníveldosconhecimentos

científicos,damatemática,daastronomiaedastécnicasartísticas,emparticularda

perspectiva, a que chamavam a Ciência da Visão. Neste contexto, em 1697, o

imperador Kangxi solicitou ao padre Joachim Bouvet que viessem da Europa

missionáriosespecializadosnestasmatérias.

Odeslumbramentocomailusãoópticaprovocadapelapinturaemperspectiva

daquadraturaitaliana,concretamenteintroduzidanaChinaporGiovanniGherardini

e por Giuseppe Castiglione, esteve na base de um Renascimento dos estilos da

pinturadadinastiaSongque,emúltimainstância,estabeleceuumaligaçãodinástica

dadinastiaQingaumdosperíodosáureosdahistóriadaChina.Por outro lado,o

carácterexóticoqueotrompel’oeildesencadeianoseiodacorteimperial,reflecteo

poderimperialatravésdaposseeostentaçãodascoisasrarasque,defacto,veioa

caracterizarosreinadosdeYongzhengeQianlong.

NasequênciadopedidodeKangxi,opadreBouvetofereceuaoimperadoruma

plantadoPaláciodeVersalhese umretratodoReideFrança,pintadocommuita

naturalidade e vivacidade de cores. Uma descrição das dependências anexas à

igrejasdosjesuítasemPequimtornaevidenteaimportânciaeointeressedapintura

de retrato na China, encontrando‐se aí retratos dos Reis e príncipes de França,

Espanha e Inglaterra, representados com os instrumentos da Matemática e da

Música.Tambémaíseencontravamdiversasgravuraselivrosdeestampasgravadas

emFrança,comoobjectivoclarodedaraconheceragrandezadasCorteseuropeias,

emparticulardaCortedeLuísXIV.EstatendênciadaarteaoserviçodoEstado,do

retratoRealenquanto representaçãodoEstadoedamáxima“L’Étatc’estMoi” foi

35 Nöel Golvers (ed.).TheAstronomia Europaea of Ferdinand Verbiest,Leuven: InstitutMonumentaSerica,SanktAugustin/FerdinandVerbiestFoundation,1993,pp.114‐117.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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determinante no contexto das relações entre os missionários europeus e a Corte

Imperial de Pequim. A necessidade de legitimação de poder da dinastia Qing,

considerandoquesetratavadeumaminoriaétnicaoriginaldaManchúria,equeà

semelhança dos Yuan foi considerado um povo invasor, encontrou na pintura de

retratouminstrumentodepropagandapolíticaparaumaunificaçãopolítica,cultural

eétnicadopovochinês.

Finalmente, o realismo da pintura europeia, com uma carga emocional

aplicadaaopormenor,quernotratamentodasexpressõesfaciaisdas figuras,quer

ao nível das composições monumentais, tornou‐se também num instrumento

fundamentalpara o registodas imponentes campanhasmilitaresedas cerimónias

imperiais.

O curioso interesse de Kangxi pelos conhecimentos europeus, ao nível da

astronomia, anatomia ematemática, criou um cenário fértil ao florescimento dos

mecanismos científicos da perspectiva linear e ao desenvolvimento de um novo

estilo da pintura chinesa. Jiao Bingzhen, um oficial do Observatório Astronómico,

aprendeucomosmissionáriosjesuítasocaráctercientíficoeasregrasfundamentais

daperspectiva.Nasequênciadosseusestudos, JiaoBingzhenpublicaem1696um

conjuntodequarentae seis ilustrações como títuloCultivodoArrozeSericultura,

posteriormente gravadas por Zhu Gui36. O álbum intitulado Pinturas de Senhoras

(Fig. 182) executado por Jiao Bingzhen demonstra que o pintor chinês desenvolve

verdadeiras tentativas na aplicação de um ponto de fuga ao nível do desenho de

estruturas arquitectónicas. Num outro álbum, intitulado Paisagens denuncia

igualmenteumaaplicaçãodastécnicasdapinturaemperspectiva,comotambém,ao

níveldatonalidade,JiaoBingzhen,procurouaproximar‐sedagravuraeuropeia(Fig.

36 Hiromitsu Kobayashi. “Suzhou prints andWestern perspective: the painting techniques of Jesuitartists at the Qing court, and dissemination of the contemporary court style of painting to Mid‐Eighteenth‐CenturyChineseSociety throughwoodblockprints”. IN:The Jesuits II: cultures, sciences,andthearts,1540‐1773,editedbyJohnO’Malleyetalli.Toronto:TorontoUniversityPress,2002,pp.263.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

350

183). Contudo, apenas com a actividade pictórica de Giovanni Gherardini,Matteo

Ripaeos importantíssimoscontributosdeGiuseppeCastiglioneéqueasregrasda

perspectivadaarteeuropeia se fundemnumestiloprópriodapinturadecorteda

dinastiaQing.

ApesardepartesignificativadaobradeGiovanniGherardininãoterchegado

aosnossosdias, adocumentação coevademonstraquea igreja jesuítadePequim

estavaornamentadacomfrescosaoestilodaquadratura.Emboraapinturadotecto

daigrejarepresentasseoCéurepartidoemtrêsníveisdeprofundidade,sustentado

por colunas em perspectiva e com Cristo Salvador do Mundo ao centro da

composição, o fascínio das autoridades chinesas concentrava‐se em torno das

técnicas de perspectiva, do exotismo proporcionado pelos esquemas de

representaçãoedas técnicasda pinturaeuropeia.Gherardinimanteve‐senacorte

imperial ao serviço de Kangxi, ensinando as técnicas da perspectiva aos pintores

chineses até ao seu regresso à Europa, em 170437. É importante referir que

Gherardini era natural de Bolonha, a cidade italiana onde o enquadramento

ilusionístico arquitectural da quadratura desenvolvida por Annibale Carracci havia

atingido o máximo esplendor, na esteira das tendências artísticas dos quadri

riportati,istoé,daspinturastransferidasparaotecto38.

Mais tarde, Castiglione executou pintura a fresco, ao estilo da quadratura

italiana,nas igrejasdeNantangeDongtang,cujostemassereportamaotriunfoda

conversão. O Triunfo de Constantino e Constantino apontando o caminho para a

Vitória representam a vitória de Constantino, o primeiro imperador Romano a

converter‐seaoCristianismo,sobreMaxêncio,nabatalhadaPonteMílvia.Nanossa

opinião, o mito criado em torno da conversão de Constantino associa o triunfo

militaraotriunfodoCristianismoque,apartirdaassinaturadoÉditodeMilãoem 37MemoirsofFatherRipa:duringthirteenyears’residenceatthecourtofPekingintheserviceoftheEmperorofChina,editedbyJohnMurray.London:ElibronClassicsSeries,2005,p.54.38 Sobrea influência italiananapinturadequadratura napinturaportuguesaverGiuseppinaRaggi.Arquitecturadoengano;alongaconjunturadailusão;ainfluênciaemiliananapinturadequadraturaluso‐brasileirado séc.XVIII, tesededoutoramentoemHistóriadaArteapresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa.

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AartecristãnoImpériodoMeio

351

313, é decretada a liberdade de culto e, algumas décadasmais tarde, é instituído

comoareligiãooficialdoImpérioRomano.Arepresentaçãodestestemasnasigrejas

jesuítassópoderáserentendidaàluzdeumaactualizaçãodaideianaconversãodo

grandeimperadoreotriunfodoCristianismonoImpériodaChina.Osmissionários

JesuítasvêememKangxionovoConstantinoqueiráautorizaroCristianismocomo

religiãooficialdoseuimpério.

Contudo, o Imperador encontrou nas técnicas da arte Ocidental uma

intensidade emocional para traduzir as suas vitórias no campo de batalha, um

realismonarepresentaçãoanatómicadasfiguraseumaprofundidadequecolocao

observador dentro da pintura, fundamentais para a representação das suas

campanhas militares de inspecção pelos vastos territórios do império ou até de

cerimoniais de corte, nas quais os seus súbditos juravam lealdade e prestavam

tributo.Nestecontextodeumabsolutismoconcentradonafiguradoimperador,as

imagenscristãsnãoencontraramlugar,talcomohaviaacontecidonamissãojesuíta

na corte Mogol. Do extenso inventário das cerca de cento e setenta pinturas

atribuídas a Castiglione, realizado por Cecile eMichel Beurdeley, constam apenas

dozepinturasdetemascristãos,sendonasuamaioria,pinturasdecavalos,cenasde

caça, cenas de batalha, pássaros e outros animais auspiciosos39. Acresce ainda a

perseguição do movimento anti‐cristão que se desencadeia durante o reinado de

Yongzheng e que tem continuidade no tempo de Qianlong, ao qual apenas

escaparamosartistaseuropeusaoserviçodacorteimperial.

ÉimportantereferirqueaindaantesdachegadadeCastiglioneaoImpériodo

Meio,Matteo Ripa havia sido forçado a executar a óleo pinturas de paisagem ao

estilochinês.KangxipediuaMatteoRipaqueexecutasseodesenhoparatrintaeseis

vistas sobre o seu retiro demontanha, naManchúria, e que depois abrisse esses

desenhosemgravura,eventualmenteàimagemdasgravurasdospaláciosejardins

europeusqueviunasgravuraslevadaspelosmissionários.

39Cécile BeurdeleyandMichelBeurdeley.Giuseppe Castiglione:a Jesuitpainterat the courtof theChineseemperors.London:LundHumphries,1972,pp.163‐191.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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Foinapinturadeestruturasarquitectónicascomoreflexodeumestilodevida

de uma sociedade civilizada, nas quais a representação de palácios e jardins

espelhamaprosperidadedosoberano40,queointercâmbioeaconfluênciaartística

entreaEuropaeaChinamais se fez sentir.Neste sentido,apesarde sedefender

peranteKangxicomoumpintorderetrato,Ripafoisucessivamenterespondendoa

todasasencomendasimperiais,entreasquaisabrirumagravuradomapadaChina,

ManchúriaedaCoreia,impressoemquarentaequatroestampas41.Estaspinturase

gravurasemaguaforteserviamnaplenitudeàestratégiadepropagandapolíticaede

legitimação do poder, através da construção de uma imagemde soberania que já

havia sido iniciada pela Escola de Pintura Ortodoxa, fundada por Dong Qichang.

Wang Hui, um dos famosos quatroWang’s, foi escolhido pelo próprio imperador

pararepresentarasegundaviagemdeKangxiemdigressãopeloSuldaChina,onde

reuniuapoiodosliteratideSouzhou(Fig.184).AviagemépicaeavisitadeKangxiao

Monte Tai, a montanha sagrada do Oriente, procurava demonstrar a grandeza e

substância do Império e, simultaneamente, identificar Kangxi comoum tradicional

monarcaconfucionista,noseguimentodatradiçãodosMing.

A perspectiva e o chiaroscuro atribuíram uma nova dinâmica à pintura de

paisagem chinesa, tal como vemos na gravura aberta porMatteo Ripa, c. 1711 ‐

1713, como títuloBrilhodamanhãnaorlaOcidental (Fig.185).Agravura,apesar

das visíveis técnicas de perspectiva linear e do contraste de luz e sombra

característicos da arte europeia, mantém a profundidade intuitiva desenvolvida

pelospintoresdadinastiaSong,umavezqueRipareproduzestagravuraapartirde

40FuDongguang.“PintoresmissionariosocidentaiseaspinturasarquitectónicasimperiaisdadinastiaQing”. IN:Exíliodourado.Expressõespictóricasdaescoladosmissionáriosocidentais.ObrasdeartedacortedadinastiaQing.Macau:MuseudeArtedeMacau/MuseudoPalácioImperialdePequim,2002,pp.236‐240.41MemoirsofFatherRipa:duringthirteenyears’residenceatthecourtofPekingintheserviceoftheEmperor of China, edited by John Murray. London: Elibron Classics Series, 2005, p. 66. DavidMungello.ThegreatencounterofChinaandtheWest,1500‐1800.Maryland:Rowman&Littlefield,2009,p.66.

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AartecristãnoImpériodoMeio

353

umapinturachinesaque,porsuavez,seguiuosmodelosdecomposiçãodadinastia

Song42.

ApesardosavançosnafusãodastécnicasartísticasincentivadasporKangxi,foi

a partir do reinado de Yongzheng que a confluência de estilos se tornou

determinante na afirmação de novas tendências. No primeiro ano do reinado do

imperador Yongzheng, Giuseppe Castiglione conheceu Nian Xiyao, director das

Manufacturas Imperiais de Porcelana de Jingdezhen que, já desde o tempo de

Gherardini,haviademonstradooseufascíniopelatécnicadaperspectivalinear.Na

realidade, é pouco provável que Nian Xiyao tenha conhecido Gherardini

pessoalmente, uma vez que à data da sua chegada à corte imperial já o jesuíta

italiano havia regressado à Europa. De qualquermodo, é possível que tenha tido

contacto com as regras da perspectiva linear através de manuais e tratados da

biblioteca da Companhia ou, eventualmente, através dos pintores chineses

instruídosporGherardini43.

Giuseppe Castiglione foi basilar no entendimento de Nian Xiyao acerca das

técnicas da arte europeia, em particular do enquadramento ilusionístico

arquitecturalconhecidoporquadratura,concluindoemduasediçõesdaPerspectiva

PictorumetArchitectorumdeAndreaPozzo,publicadaemRomaentre1693e1700.

AndreaPozzotornou‐secélebrepelassuaspinturasdetectoilusionistas,numa

combinaçãoentreapinturaeaarquitecturaatravésdas técnicasde trompe l’oeil,

perspectiva e outros efeitos visuais daquadratura italiana. As pinturas ilusionistas

deAndreaPozzo,tantonaigrejadeSantoInáciodeLoyolaemRoma,comoacúpula

emtrompe l’oeilna igreja jesuítaemViena,sãoconsideradasasobrasmáximasda

quadratura italiana eexemplos incontornáveis da teoria da perspectiva aplicada à

42 Cf.Wang Yao‐ting.New visions at the Ch’ing Court: Giuseppe Castiglione and theWestern‐Styletrends.Taipei:NationalPalaceMuseum,2009,pp.142‐147.43 Elisabetta Corsi. La Fábrica de las Ilusiones. Los Jesuitas y la diffusion de la perspectiva lineal enChina,1698‐1766.México:ElColegiodeMéxico,2004,pp.75‐96.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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arquitectura, que Pozzo elabora no seu tratado da Perspectiva Pictorum et

Architectorum. A popularidade queAndrea Pozzo gozava na Europa, emparticular

noseiodaCompanhiadeJesus,colocouoseutratadocomoumaobradereferência,

nãosóaoníveldapintura,comotambémdaprópriaarquitectura,fundamentalpara

osmissionáriosjesuítasespalhadospelosNovosMundosnolevantamentodeIgrejas

e Seminários da Companhia de Jesus. Por este motivo, e dado o interesse dos

imperadoresdaChinapelaperspectivaepelastécnicasdeilusãovisual,encontram‐

se vários tratados sobre perspectiva na Biblioteca da Companhia de Jesus em

Pequim,entreosquaispresumivelmenteseencontrariaotratadodeAndreaPozzo.

Sendo Giuseppe Castiglione profundamente influenciado pelo estilo de Andrea

Pozzo,NianXiyaoencontrounopintor jesuítaumalicerce fundamentalparaa sua

análise sobre a perspectiva e a aplicação das técnicas da pintura europeia,

particularmenteaoníveldatraduçãodealgunsconceitostécnicos.Comediçõesem

1729 e 1735, as traduções parciais da Perspectiva Pictorum et Architectorum de

Andrea Pozzo forampublicadas sob o títuloShixue視學 ouCiência da Percepção,

juntamentecomcomentáriosdopróprioNianXiyan.

Osprefáciosreferemclaramentequesetratadeumaobradecaráctertécnico

eparausodosmestresdepintura.Noprimeiro,NianXiyaoagradeceacolaboração

de Castiglione, sobretudo para a tradução de termos técnicos, e descreve

sucintamente a essência da perspectiva e da teoria das sombras.No segundo, faz

referência à tradição local tanto para evidenciar as suas limitações como para

estabelecer similitudes com alguns elementos fundamentais da técnica pictórica

Ocidental. Nian Xiyao, de facto, percebe a distinção entreponto principal, linha e

superfícieeacorrelaçãogeométricaentreeles,naconstruçãodoespaçopictórico.

O entendimento do ponto de fuga foi estudado pela primeira vez por Yang

Boda,utilizandootermoxianfa線法,numarelaçãofortecomarepresentaçãodas

linhas direitas das estruturas arquitectónicas. É neste contexto que surge

frequentementereferenciadonosdocumentosdoarquivodeNeiwufureferentesao

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AartecristãnoImpériodoMeio

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XiYangLou西洋楼(PaláciosaoEstiloOcidental),construídosduranteoperíodode

QianlongapartirdedesenhosexecutadosporGiuseppeCastiglione.

Zou Yigui, um importante pintor chinês da corte Imperial, especializado na

pinturadepássaros,deixouumimportanteregistosobreoimpactoqueastécnicas

da arte europeia deixaram na arte chinesa, em particular ao nível dos triângulos

rectângulos,denominadocomogougufa句穀法.Yiguirefereque“osocidentaissão

hábeisnométododostriângulosrectângulos,por isso,nas suaspinturase luzeas

sombras, assim como as relações entre as distancias, são representados na

perfeição.Tudooquepintam,desdeasfigurashumanasatéaosedifícios,asárvores,

serepresentamedianteluzesesombras.Tambémascoreseospincéisqueelesusam

sãocompletamentediferentesdosutilizadospeloschineses.Osfrescosdosedifícios

nobres,cujasimagensapresentamtamanhosproporcionaisobtidoscommediçõesa

esquadro,dãoverdadeiramenteasensaçãodequeestamos inseridosnoespaço”44.

O princípio aritmético dos gnómones era já referido no clássico texto sobre

astronomiacomotítuloZhoubiSuanjing周髀算经(Oclássicoaritméticodognómon

eoscaminhoscircularesdoCéu).Otexto,atribuídoaoDuquedeZhouedatadodo

século IANE, refereautilizaçãodognómonparaadeterminação dos solstíciosde

VerãoeInverno.Curiosamente,aintroduçãorefereafuncionalidadedostriângulos

rectângulosparaocálculodeproporcionalidadedealturaselarguras,bemcomoas

relaçõesdedistânciaedasombraprovocadapeloSolao longodasváriasposições

latitudinais45.ÉatravésdaobradeShenGua,MengqiBitan夢溪筆談(Conversações

no jardim do rio dos sonhos) que o sistema dos triângulos rectângulos não só é

recuperadocomotambémabrepossibilidadeparaqueosartistasdadinastiaSong

construamumaideiadeperspectivaintuitivaapartirdoconceitodepirâmidevisual.

Finalmente, o sistema de concavidades e convexidades, como já referimos,

estáassociadoàpinturadepaisagemdadinastiaSong,quesedesenvolveapartirdo

44YuAnlan,Hualuncongkan,1937,fasc.III,Juanxia,fl.8r.45 Elisabetta Corsi. La Fábrica de las Ilusiones. Los Jesuitas y la diffusion de la perspectiva lineal enChina,1698‐1766.México:ElColegiodeMéxico,2004,p.117.

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356

final do Período das Seis dinastias a partir da influência da arte budista. Aotufa

凹凸法 é o termo aplicado aos contrastes de luz e sombra da arte budista, que

conferem tridimensionalidade aos rostos nas pinturas dos templos escavados na

rocha. Os pintores da dinastia Song encontram nesta técnica a formamais eficaz

paraarepresentaçãodasmontanhasedasrochas,atribuindoàpinturadepaisagem

acaptaçãodaverdadeiraessênciadanatureza.

Em suma, os comentários de Yang Boda, Zou Yigui e Guo Ruoxo assumem,

acima de tudo, que as técnicas da arte europeia divulgadas pelos missionários

jesuítas, desde a segunda metade do século XVII, sobretudo ao nível da

harmonizaçãode luzesombracomoelementodefinidordedistânciaeproporção,

estãonabasedorenascimentodastendênciasartísticasdapinturadadinastiaSong,

numareabilitaçãodosconceitosjádesenvolvidosporGuoRuoxueporHanZhuo.A

responsabilidade deste renascimento recai sobre os principais pintores da Escola

Ortodoxa, a saber, Wang Shimin (1592‐1680), Wang Jian (1598‐1677), Wang Hui

(1632‐1717),Wang Yuanqi (1642‐1715), Yun Shouping (1633‐1690) eWu Li (1632‐

1718),queingressounaCompanhiadeJesus46.DeacordocomDongQichang,estes

pintores, todos originários da Província de Jiangsu, procuraram a inspiração dos

antigosmestres da Escola de Pintura do Sul.Não deixa de ser interessante referir

que,algunsdestespintores,àsemelhançadospintoreseuropeusqueestiveramao

serviço da corte imperial durante a primeira metade do século XVIII, foram

responsáveis por algumas das mais importantes pinturas de propaganda política.

Como referimos anteriormente, Wang Hui foi o responsável pela pintura do

monumentalroloquerepresentaaviagemdeKangxiaoSuldaChina.O imperador

Kangxi ficoudetal formasatisfeitocomoseutrabalhoqueconferiuaWangHuio

título honorário de “Qinghui” que significa “puro e brilhante”. Por sua vez,Wang

YuanqiteveumcargodepintorprofissionalnadinastiaQing,tendosidoresponsável

porconduziraárduatarefade representaracerimóniadenascimentodopríncipe

46Cf.LaurenceC.S.Tam.SixmastersofEarlyQingandWuLi.HongKong:UrbanCouncil,1986,pp.12‐18.

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AartecristãnoImpériodoMeio

357

Yong no ano de 1709. Foi também responsável para compilação da monumental

obra de Pintura chinesa em 100 volumes, com o título Peiwenzhai shuhuapu

佩文齋書畫譜(Umestudoeregistocompreensivodepinturaecaligrafianoestúdio

de Peiwen) como testemunho enciclopédico da longevidade e grandiosidade da

pinturachinesa.

O realismo introduzido na China pelos pintores europeus tornou‐se

determinantenoregistoiconográficodasproezasmilitares,dasgrandezasimperiais

dadinastiaQingedavidaquotidianadoimperador,daimperatrizedasconcubinas

imperiais. Entre as denominadas “pinturas de prazer”, meticulosamente criadas

pelospintoresdecorte como reflexodeprosperidade,abundânciae tranquilidade

dagovernação imperial,encontram‐seos retratos,aspinturasdetemashistóricos,

aspinturasdecães, cervos, cavaloseoutros símbolosauspiciosos.Poroutro lado,

estaideiadeabundância,prosperidadeetranquilidadepolíticaemilitarreflectiu‐se

numa intensa política de patrocínio artísticomantendoum verdadeiro exército de

artistas nas oficinas imperiais produzindo massivamente pintura ao estilo dos

mestresantigos,sobretudodadinastiaSongdoNorteeumadiversificadatipologia

de objectos em porcelana, jade, laca, mobiliário e bronze que celebravam a

longevidade do Império da China e as suas ancestrais tradições culturais, rituais e

artísticas.

Durante o período que ficaria conhecido como a “Próspera Era de Kangxi a

Qianlong”, pintores da Companhia de Jesus como Castiglione, Jean Denis Attiret,

Ignatius Sichelbart, Jean Damascene Sallusti, Louis de Poirot e Giuseppe Panzi

estiveramaoserviçodacorte imperial trabalhandomuitasvezesemconjuntocom

artistas chineses. Ao contrário do que poderíamos imaginar, os pintores europeus

dedicaram‐se quase exclusivamente à pintura de cenas de quotidiano da corte

imperial,nasquaisasrepresentaçõesdearquitecturasbeneficiavamdastécnicasda

perspectiva. Dedicaram‐se também à pintura de retrato, de animais e flores, de

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

358

cenasdecaça,emqueorealismodastécnicaseuropeiasconferiaumavivacidadee

tridimensionalidadeàsfiguras.

DesdeadinastiaSongqueastécnicastradicionaisforamaplicadasdeformaa

criar diferentes níveis de identificação das figuras representadas na pintura. Guo

Ruoxu,noseufamosotratadodepinturaafirmaque“indepictingpicturesonemust

differentiate between the image of an noble and that of the humble, and pay

attentiontotheattireuniquetoeachdynasty.Thesovereignshouldbeelevatedasa

sagelyimageofHeavenitself”47.Esteprincípioétransversalmenteaplicadoaolongo

da história da pintura chinesa, representandoo Soberano comparativamentemais

alto e imponente que os seus súbditos48. Estas convenções universais tiveram

continuidade nos reinados de Kangxi, Yongzheng e Qianlong, durante os quais o

retrato imperial ganhou um novo fôlego no contexto da pintura de corte e da

relação entre o soberano e os seus súbditos. O retrato do imperador abandonou

uma representação meramente frontal e institucional onde o traje tradicional de

corteconstituía,acimadetudo,oelementoidentificativodacondiçãodesoberania,

passando o imperador a ser representado num contexto particular, invocando

situaçõesdasuavidaquotidianaoucaracterísticasdasuapersonalidade.

O retrato imperial era o espelho do poder imperial, representando o

imperador em diversos cenários, seja na sua condição de soberano ou como um

homemqueprocuraumequilíbrioespiritualnanatureza,contemplandoamontanha

ou observando o curso de um rio. Em diferentes períodos, Yongzheng e Qianlong

beneficiaram das técnicas de pintura para reforçar uma legitimação da sucessão

dinástica e afirmação do poder imperial. O famoso retrato ancestral de Kangxi,

representadonaformatradicional,sentadofrontalmenteeenvergandoovestuário

47GuoRuoxu.Anecdotesonpainting(TuhuaJianwenZhi).Cit.Hui,Yu.“NaturalistictrendoftheQingimperial portraiture”. IN: The golden exile. Pictorial expressions of the school of Westernmissionaries.ArtworksoftheQingDynastycourt.Macao:MacaoMuseumofArt,2002,p.257.

48RuiOliveiraLopes(皇權鏡影:對〈胤禛行樂圖〉冊的若干觀察 羅匯著、邱士華).“Reflectionsof Sovereign Power: Various Observations on the Painting Volume Entitled "Entertainments ofEmperor Yongzheng" (translation by Shih‐Hua Chiu). IN: The National Palace MuseumMonthly ofChineseArt,no.321(Dec.2009),pp.26‐33.

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AartecristãnoImpériodoMeio

359

formal de corte, foi exposto durante oito meses após a sua morte no Salão da

LongevidadedosSoberanos,mandadoconstruirporYongzhengemhonradoseupai

emaistarderenovadoporQianlong(Fig.186).

Mais tarde, Qianlong encomendou a Giuseppe Castiglione uma pintura que

ficouconhecidaporSerenamensagemdaPrimavera,representadoQianlong,ainda

príncipe, com o Imperador Yongzheng (Fig. 187). Estas pinturas, de diferentes

formas,demonstramarelaçãoestreitaentreosoberanoeoseupredecessorcomo

uma afirmação da legitimação da posição imperial. No primeiro caso, Yongzheng

construiuumsalãoparareceberoretratoancestraldeKangxi, invocandoumaideia

decontinuidade,posteridadeeintemporalidadedopoder49.

Por sua vez, aSerenamensagemda Primavera chama‐nos à atenção para a

relaçãoentreo Imperador Yongzhengo seuquarto filho,o príncipeHongli, futuro

Imperador Qianlong. Yongzheng é representado com uma expressão autoritária

entregando um ramo de flores de ameixa ao príncipe Hongli, que inclina

ligeiramente a parte superior do tronco, demonstrando respeito e submissão ao

Imperador. De acordo comWuHung, esta composição enfatiza a subordinação e

reverênciadopríncipeperanteo imperadorYongzheng50. EstegestodeHongli, ao

receber o ramo de flores de ameixa do seu pai, é igualmente um símbolo de

passagem de testemunho e transmissão do poder. Atrás das figuras, Giuseppe

Castiglione desenhou duas hastes de bambu, que se cruzam, simbolizando o

cruzamentodeduasgerações,aresistênciaatodasasadversidadesetransmitindo

uma ideia de verticalidade hierárquica da condição imperial. De forma

complementaratodaacomponentesimbólicadapintura,Castiglionerepresentouo

Imperadoreopríncipequeosucederá,envergandootradicionalpenteadoetraje

dosHan, demonstrandouma intencional ligação dinástica ao povo original chinês.

Destaforma,YongzhengeHongli,o futuro imperadorQianlong,assumem‐secomo

49 Jan Stuart. ‘Images of imperial grandeur’, IN: China. The Three Emperors, 1662–1795, edited byEvelynS.RawskiandJessicaRawson.London:RoyalAcademyofArts,2005,64–75.50WuHung.“Emperor'sMasquerade–'CostumePortraits'ofYongzhengandQianlong,”Orientations,Vol.7(July‐August1995),pp.25‐41.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

360

os soberanos legítimos de um Império unificado, no qual as diferentes etnias

coexistem harmoniosamente. O mais interessante de tudo é que esta pintura foi

encomendada por Qianlong já após a morte de Yongzheng, o que intensifica a

importância da legitimação da sucessãodinásticaatravésdapintura, como registo

propagandístico da passagem de poder, no qual o retrato realista executado por

Castiglioneactualizaomomento.

Finalmente,Castiglioneenfatizaaerudiçãoe todasasqualidades inerentesà

capacidade governativa que caracterizam o Imperador Yongzheng e que são

transmitidos a Hongli, através da representação dos instrumentos do literati

pousadossobreumamesa51.

Opoderda imagemé intensificadoatravésdo recursoàstécnicasdapintura

europeia, em particular na colocação do fundo em azul intenso que,

frequentemente,encontramosnailuminuraenapinturademiniaturacomointuito

deconcentraraatençãonoprimeiroplanodapintura.Estaspinturas,imbuídaspor

um certo exotismo determinado pela combinação das técnicas europeias com os

temas e estilos da arte chinesa, que tão intensamente caracterizam a pintura de

GiuseppeCastiglione,foramexecutadascomointuitodesuscitarodeslumbramento

através de uma ilusão do real (trompe l’oeil) da perspectiva linear e a expressão

emocionalimpressanosrostosdasfigurasrepresentadasnapintura.

Contudo, a instrumentalização da pintura de retrato como representação do

poder imperialecomoestratégiadepropagandapolíticaéanterioraQianlong.No

Museu do Palácio Imperial de Pequimencontra‐se umálbumde treze folhas com

diversas pinturas de Yongzheng representado com diferentes roupas e cenas de

quotidiano.

51RuiOliveiraLopes(皇權鏡影:對〈胤禛行樂圖〉冊的若干觀察 羅匯著、邱士華).“Reflectionsof Sovereign Power: Various Observations on the Painting Volume Entitled "Entertainments ofEmperor Yongzheng" (translation by Shih‐Hua Chiu). IN: The National Palace MuseumMonthly ofChineseArt,no.321(Dec.2009),pp.26‐33.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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Yongzhengcomoumeruditotocandoumacítara

YongzhengcomoumTurcorecebendoumpêssegodeummacacopreto

Yongzhengsobumpinheirojuntoaumriacho

YongzhengcomoumguerreiroMogolsegurandoumarcoeflecha

Yongzhengcomoumpescadordormitandojuntoaumlago

Yongzhengcomoummongebudistaolhandoumriacho

Yongzhengcomoumocidentalusandoumaperuca

Yongzhengcomoumtaoistainvocandoumdragão

Yongzhengcomoumpoetacompondopoesianumarocha

YongzhengcomoumnobreMongololhandoohorizontenotopodeumamontanha

YongzhengcomooConfucionistaouvindoosomdorio

Yongzhengolhandoospássarosnovento

YongzhengcomoummongeTibetanomeditandonumagrutacobertadeneve

Comosesabe,umpintordecorte,depoisderealizaroestudoparaumretrato

teriadeaguardarpelaaprovaçãooficialparaprocederàpinturafinal.Nestecaso,o

pintorouospintoresforamcertamenteautorizadosarealizaresteeoutrosálbuns

de retratos do imperador Yongzheng divertindo‐se e mascarando‐se de diversas

formas.

Esteconjuntodepinturas,quenaopiniãodealgunshistoriadoresrepresentao

imperadordivertindo‐se,nãoeramuitocomum,particularmenteseconsiderarmos

que retratar o imperador foi sempre considerado um privilégio e um processo

institucional equiparado a um ritual sagrado. Existem apenas alguns exemplos de

pinturas onde o imperador é representado no seu quotidiano, de que é exemplo

aquela que se conserva no Museu do Palácio Imperial de Pequim denominada

ImperadorQianlongeascriançasnaVésperadeAnoNovo(Fig.188).Nestapintura,

atribuída a Giuseppe Castiglione, provavelmente de 1736 ‐ 1737, o imperador é

representado com uma criança no colo enquanto outro rapaz se prepara para

acenderumpanchão.Aindaassim,quandoaparentementeestacenarepresentaum

momento do quotidiano, está implícita uma mensagem política de sucessão

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dinástica, através da representação de um dos filhos de Qianlong, Yonglian,

segurandoumaalbardaeumselo,anunciandoqueopequenopríncipehavia sido

escolhidocomoopróximoimperador.

Wu Hung sugere que o álbum de retratos do Imperador Yongzheng está

relacionado coma influência do retrato europeu,mas sobretudo coma tendência

europeia pelo exotismo fervilhante da burguesia europeia ao representar‐se em

múltiplos retratos trajando roupas orientais52. Durante o século XVIII, os Bailes de

Máscaras tornaram‐seextremamentepopularesnas corteseuropeias, como forma

deentretenimentoeestatutodaaristocracia,nãosónaInglaterra,mastambémem

Itália e França. O multiculturalismo e a diversidade antropológica que suscitou o

interessedos IluministaseRacionalistas, incrementandoo saberenciclopédicodos

círculosdaeliteculturaleuropeia, foramresponsáveispelaemergênciada ideiado

“olharsobreooutro”.Fazendo‐seumnobrerepresentarvestindoasexóticasroupas

é colocar‐se num patamar de distanciação à condição periférica do seu

conhecimento, aproximando‐se de uma condição universal ao nível da amplitude

dosNovosMundos.Nestecontexto,WuHungsugerequeestesretratoseestamoda

europeia eram já conhecidos na China antes do tempode Yongzheng, estandona

base do retrato Yongzheng vestindo‐se como um Ocidental, que se encontra no

MuseudoPalácioImperialemPequim(Fig.189).

Contudo,apesardaspertinentesobservaçõesdeWuHung,nanossaopiniãoo

Álbum de Retratos da Vida do Imperador Yongzheng é, acima de tudo,

representativo de uma política com propósitos de propaganda imperial. Em

Yongzheng comoum taoista invocando umdragão o imperador equilibra‐se sobre

umagrande rocha juntoaumriacho segurandoumceptrocomrabo‐de‐cavalona

mão esquerda e uma pérola na mão direita (Fig. 190). A postura simbólica de

Yongzheng representa o seu controlo sobre as forças da natureza, colocando‐se

entreapérolaeoDragão,omaispoderososerdetodooUniverso.Oimperadoré

52WuHung.“Emperor'sMasquerade‐'CostumePortraits'ofYongzhengandQianlong,”Orientations,Vol.7(July‐August1995),pp.25‐41.

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AartecristãnoImpériodoMeio

363

igualmente representadocomoummongebudista,umConfucionistaeummonge

Tibetanoemmeditaçãonointeriordeumagrutanamontanha(Fig.191,Fig.192e

Fig.193).Destaforma,YongzhengrepresentatodasasreligiõesdaChina,colocando‐

se como o Imperador de todas as formas de espiritualidade que fazem parte das

tradiçõesancestraisdaChina.

A ideia deste álbumde pintura é abraçar a realidademulticultural na China,

não apenas no que respeita à diversidade religiosa, mas também económica e

cultural, representando o imperador tanto como simples e humilde pescador

dormitando junto a um lago ou comoum literato escrevendopoesia numa rocha.

EstasduaspinturasestabelecemumaidentificaçãodoImperadorcomadiversidade

educacional e cultural dos seus súbditos, desde o homem que tem de pescar ou

caçar ao funcionário oficial que trabalha no seu gabinete, como vemos em outro

álbum. Esta é a dualidade entre a pobreza e a riqueza, entre aquele que possui

apenasumbambuparapescareaquelequecoleccionaasrelíquiasculturais.Desta

forma,Yongzhengassume‐secomooimperadordosricosedospobres,dossimples

edosletrados.

O poder imperial de Yongzheng estende‐se a todas as realidades culturais e

gruposétnicoscomoosMongóis,osTurcoseatéosMogóisdaÍndia, invocandoas

recentes conquistas e também os antepassados ancestrais. Tal como o seu pai,

Kangxi, Yongzheng usou a força militar para preservar o domínio na Mongólia.

Quando o Tibete foi assolado por uma guerra civil, entre 1717 e 1728, deu

continuidadeà intervençãomilitar iniciadaporKangxi,mantendoaíumaguarnição

militar para defender os interesses imperiais. Sendo retratado como um nobre

Mongol olhando o horizonte no topo de uma montanha, Yongzheng invoca a

herança das conquistasdeGenghisKhanedeKhubilaiKhan, fundadorda dinastia

Yuan.Poroutrolado,oretratodeYongzhengcomoumguerreiroMogolsegurando

umarcoe flechaéparticularmente interessanteconsiderandoqueé surpreendido

pelo voo de um pavão. O pavão e o seu traje identificam Yongzheng como um

guerreiroMogol,partindodaideiadequeopavãoéumdosmaisapreciadosanimais

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na corte Mogol, inúmeras vezes representado nos jardins das cenas de corte da

miniaturaMogol. É importante referir que Babur, fundador do ImpérioMogol no

NortedaÍndia,eradescendentedirectodeTimur,peloseupai,edeGenghisKhan,

pelasuamãe.O imperadorYongzhengapresenta‐secomolegítimoherdeirodeum

vastoterritórioque incorporadiferentesestruturasculturaisqueseunificamsobo

seupoderimperial.

Contudo,nestecontexto,afigura‐se intrigantea representaçãodeYongzheng

vestido como um ocidental e usando uma peruca, afastando‐se claramente da

perspectivamulticulturaldaChina.Em1723,duranteoprimeiroanodoreinadode

Yongzheng, o Imperador convidouGiuseppeCastiglione amanter a sua actividade

comopintordacorteimperial.Nessemesmoano,opintoritalianoexecutouamais

antiga pintura conhecida da sua autoria, com o título Uma colecção de símbolos

auspiciosos, representandoumauspicioso presságio para o início do novo reinado

(Fig.194).Nestapintura,Castiglioneseguiuatradiçãochinesa,assinandoChenLang

ShiningGongHua (pintado respeitosamentepelo súbdito LangShining),deacordo

com a tradição dos membros da família imperial, altos dignitários e pintores da

corte53. A relação entre Yongzheng e os jesuítas e artistas europeus autorizados a

permanecer na corte imperial é uma relação entre Imperador e súbdito. Nesta

perspectiva,arepresentaçãodoimperador,vestindoaoestiloocidentalacaçarnas

montanhas, poderá estar relacionada com a condição dos europeus enquanto

súbditosdeYongzheng, tal comoCastiglioneassumeclaramentenaassinatura das

suaspinturas.

Emsíntese,maisdoqueuma imagemdeentretenimentodo imperador,este

álbumde trezepinturas constituio retratodas diferentes característicasdopoder

imperial de Yongzheng: intelectual (retratado como um literato), espiritual

(retratado como um monge), e legítimo sucessor de uma ancestral e universal

53 Nie Chongzheng. “Pinturas de Lang Shining sem assinatura de dedicatória imperial”. IN: Exíliodourado. Expressões pictóricas da escola dos missionários ocidentais. Obras de arte da corte dadinastiaQing.Macau:MuseudeArtedeMacau /MuseudoPalácio ImperialdePequim,2002,pp.230‐231.

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AartecristãnoImpériodoMeio

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estruturadinástica(representadocomoumMongol,umTurcoeumMogol).Perante

todas estas diferenças religiosas, económicas, étnicas, culturais e geográficas,

Yongzheng pretende, através do poder do retrato, apresentar‐se como verdadeiro

soberanodetodoopovodaChina54.

Finalmente, as técnicas da pintura europeia, quer através do realismo

atribuídopelapinturaaóleo,querpeladiluiçãodascoresepelocontrastedeluze

sombra, foram determinantes no desenvolvimento de um novo estilo da pintura

naturalista.Naspalavrasdo próprio ImperadorQianlong“Westernpaintinghas its

own tradition” and “its coloring refined to the ultimate (...) such verisimilitude is

inferiorto[chinese]ancientmodes”.Oimperadorreconheceovalordastécnicasda

arte europeia, sobretudo no seu realismo e na qualidade da coloração, contudo

consideraquenãocaptaaverdadeiraessênciadanaturezaàluzdaestéticadaarte

chinesa.Deacordo comZouYigui,no seuXiao ShanHuapu小山花谱 (Manualde

pinturadeXiaoShan),aartequeexpressaaverosimilhançaereflecteosfenómenos

da natureza através de uma representação mimética do modelo original é, de

algumaforma,umarepresentaçãoartificial,semvitalidadeousabor.Éfundamental

penetrar na essência das flores, sendo para isso fundamental examinar

detalhadamentetodasassuascaracterísticas,“damesmamaneiracomosedesenha

umafigurahumana,reproduzindoasorelhas,osolhos,aboca,onariz,oqueixoeas

sobrancelhasdeumaformaverosímil.Detalformasepoderácaptaraalma,sendo

que não é possível transmitir a essência vital de um sujeito através de uma

representaçãodefeituosanasuaaparência”55.

O resultado desta dualidade entre a ilusão do real, proporcionado pelas

técnicas da arte europeia na pintura de figuras, flores e animais e a verdadeira

54RuiOliveiraLopes(皇權鏡影:對〈胤禛行樂圖〉冊的若干觀察 羅匯著、邱士華).“Reflectionsof Sovereign Power: Various Observations on the Painting Volume Entitled "Entertainments ofEmperor Yongzheng" (translation by Shih‐Hua Chiu). IN: The National Palace MuseumMonthly ofChineseArt,no.321(Dec.2009),pp.26‐33.55YuAnlan,Hualuncongkan,1937,fasc.III,Juanxia,fl.1r.

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essência espiritual, filosófica e metafísica da pintura de paisagem chinesa, é a

afirmaçãodeumanova tendênciaestética fundamentadanacombinaçãodosdois

estilos.Nocontextodestenovonaturalismo,queseafirmaduranteosreinadosde

YongzhengeQianlong,ospintoreseuropeuscomoGiuseppeCastiglione,JeanDenis

Attiret, Ignatius Sichelbart, Jean Damascene Sallusti, Louis de Poirot e Giuseppe

Panzi,assumemumaactividade intensaepraticamenteexclusivanarepresentação

deflores,cavalos,cervídeos,cães,aves,eoutrosanimaisexóticos,representados,na

maiorpartedoscasos,sobrepaisagensaoestilochinêspintadasporpintoreslocais.

Como vimos anteriormente, a pintura de flores está relacionada com a

representaçãodesímbolosauspiciososenaltecendoaideiadelongevidade,nobreza,

virtude, prosperidade e pureza. Castiglione pintou Uma colecção de símbolos

auspiciosos,noanodoprimeiroreinadodeYongzheng;epintou,em1728,umrolo

commaisdesetemetroscomarepresentaçãodeCemcavalosapastar(Fig.195).A

monumental pintura, que se encontra no Museu do Palácio Imperial em Taipé,

apresentaacombinaçãoentreosistemadeproporcionalidadedoscavalosnasmais

variadas posições, a técnica de pintura por camadas na coloração e textura das

figuraseacomposiçãodostradicionaisesquemasderepresentaçãodaartechinesa,

comreminiscênciasdaobradeZhaoMengfu,océlebrepintordadinastiaYuan.

NoMuseudeTaipéencontram‐seváriaspinturas,atribuídasaCastiglione,que

representamconjuntosnumerososdecavalos,cervosoucães,emalgunscasos,em

cenasdecaça.Paraalémdo realismo,daconfluênciade técnicaseestilosentrea

pintura europeia e a pintura chinesa, a representação numerosa de cavalos,

cervídeosecãesé,emsi,umsímbolodeprosperidade,tranquilidade,abundânciae

lealdade da governação imperial. Acresce ainda o facto de sabermos, através das

inscriçõesnoestilodacaligrafiaclássicadadinastiaSong,quemuitosdestesanimais

eramtributosprestadosporcortesãosprovenientesdetodasaspartesdo império.

Umconjuntodedezcorcéis,pintadoporCastiglioneem1743,representaosanimais

oferecidos por Koruin Giynn Wang. O pintor italiano pintou, em 1750, o Falcão

branco,oferecidopeloministroFuHeng,oCervodobomagoiro,de1751,oferecido

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AartecristãnoImpériodoMeio

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peloDalaiLamadaMongólia,Quatrocavalosafegãos,oferecidosporumsúbdito,no

Invernode1762,oGaviãobranco,de1764,comotributodeHuoHan,Águiabranca,

de1765,oferecidoporE‐Yueh‐ErheUmdosdezcãescomotributodeChi‐Tan‐T’a‐Li‐

Hsun.

Castiglione não foi o único dos pintores europeus a representar os animais

oferecidosaoimperador.IgnatiusSichelbartpintouDezcãesmagníficosnumálbum

dedezfolhasqueseconservanoMuseudoPalácioImperialdePequim.JeanDenis

AttiretpintouumconjuntodeDezcavalosmagníficose,maistarde,LouisdePoirot,

juntamente com Giuseppe Panzi, pintou um rolo com mais de três metros

representandoKe’rkeoferecendoelefantesecavalos.Considerandoquesetratada

representação de animais reais, tanto em género comoemnúmero, é importante

olhar para estas imagens não só como um catálogo da fauna pertencente ao

imperadormastambémcomoumregistodabiodiversidadedosanimaisexistentes

navastidãodoimpériochinês.

Durante osmais de cento e cinquenta anos da presença demissionários da

CompanhiadeJesus,desdeachegadadeMatteoRicciàcorteimperialemPequim,

asimagensdaartecristãforamutilizadascomointuitodeconverteroimperadordo

CelesteImpério.Váriosartistasforamconvidadosapermanecernacortechinesaao

serviçodoimperador,nãoparareproduzirimagenscristãs,comosucedeunamissão

doGrãoMogol,masparaensinarastécnicasdaperspectiva,dapinturaaóleoedo

realismoaosartistas locais.Estastécnicasserviamaoplanodepropagandapolítica

da dinastiaQing, como forma de legitimação do poder e da sucessão dinástica. A

dimensãodoimpério,emcontactopermanentecomomundoOcidental,careciade

umaimagemdesoberaniaquereflectisseprosperidade,abundânciaeumpanorama

étnicoemulticulturalunificadosobopoderdoimperador.Nãoobstanteoobjectivo

primordialdachegadadediversosartistasàcorte imperial,associadosàmissãoda

Companhia de Jesus, da Propaganda Fide ou ao serviço do Padroado Português,

parte significativa da pintura remanescente resume‐se, substancialmente, a um

discurso de propaganda imperial. O sistema burocrático de funcionamento das

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

368

oficinas imperiais condiciona determinantemente o processo criativo e os temas

seleccionados,levando,certamente,aquealgunsartistassesentissemimpedidosde

representar imagensdedevoção. Talvez sejaesteomotivo fundamentalparaque

muitos dos missionários artistas abandonassem a Missão da China. Jean Denis

Attiret,quesejuntouaCastiglioneem1738,passadosalgunsanos,obrigadoapintar

paisagens e animais ao estilo da pintura chinesa, lamentava‐se de não ter

possibilidade de pintar imagens devocionais. Attiret escreveu ao padre Amiot em

Pequim,afirmandooseudescontentamentoeesforçovãodamissãoJesuíta:“Will

this farce never come to an end? So far from the House of God, deproved of all

spiritual sustenance, I find ithardtopersuademyself thatall this is tothegloryof

God”56.

56 Cit. a partir de Michael Sullivan. The meeting of Eastern and Western art. New York: GraphicSociety,1973,p.66.

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369

CapítuloVI

OséculoNambaneaArteKirishitan

OSéculoNamban(1543‐1639)marcaumdoscapítulosmaissignificativosda

história das relações luso‐nipónicas, considerando que daí resultou um intenso

diálogocomconsequênciasmilitares,económicas, religiosas, científicas, culturaise

artísticassemprecedentes.

Oquase isolamentoemqueoarquipélagodoJapãoseencontravanofimda

primeirametadedoséculoXVIlevouaqueasmercadoriasexóticaseasnovidades

trazidas pelosNamban‐jin (Bárbaros do Sul) despertassemo interesse dedaimyos

locais. Por outro lado, a introdução das espingardas pelos portugueses teve um

papel preponderante na reorganização política do Japão. Um período de

fragmentaçãodopoderentreaselitessenhoriaisquecombatiamentresideulugara

umprocessodereunificaçãopolíticainiciadoporOdaNobunaga,apartirde1568.

OcomércionosprincipaisportosdailhadeKyushubeneficiavadasrelaçõesde

cordialidade entre os mercadores portugueses com as autoridades locais. Estas

notíciascontrastavamcomashostilidadesenfrentadassobretudopelosmissionários

nosdiversosportosdecomércionaChinaduranteaprimeirametadedoséculoXVI.

Concretamente, foiaconversãoaoCristianismodostrês japonesesapresentadosa

Francisco Xavier em Malaca que abriu caminho ao desembarque dos primeiros

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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JesuítasemKagoshima,a15deAgostode 1549.AMissãodo Japão, integradana

jurisdiçãoespiritualPadroadoPortuguêsdoOriente,deuinícioaumanovafasedas

relações luso‐nipónicas, através de uma relação privilegiada que os missionários

mantinham com os daimyos. Shimazu Takahisa procuroumanter Francisco Xavier

por perto com o objectivo de atrair os navios de comércio; contudo os Jesuítas

estabeleceram‐seemHirado,oquelevouodaimyoaproibiroCristianismonosseus

territórios1. De facto, este acontecimento seria o prenúncio de uma relação de

dependência entre os benefícios comerciais e militares que os vários daimyos

usufruíamcomapresençadosmissionáriosJesuítaseaoscilaçãoentreapermissão

ouproibiçãoparaapregaçãodoCristianismo.Apromessadeconversãodealguns

daimyos, com perspectivas de enriquecimento económico emilitar, alimentava as

esperanças dos missionários Jesuítas. Esta situação intensificou ainda mais a

instabilidade e a permanente iminência de guerras civis, alimentando a cobiça de

daimyos rivais pelo comércio dos navios portugueses. Por outro lado, os bonzos

(monges budistas) viam na Companhia de Jesus a emergência de um novo poder

espiritual,tendomotivadorebeliõescontraosdaimyosqueautorizaramapregação

doCristianismo,talcomoaconteceucomOmuraSumitada,quandoseconverteuao

Cristianismo, em 15632. Oda Nobunaga viria a servir‐se desta rivalidade entre os

missionários da Companhia de Jesus e os bonzos budistas, autorizando e

concedendobenefícios aos religiosos europeus comumduplo objectivo. Primeiro,

estreitarrelaçõesdiplomáticasecomerciaiscomosportugueses,deformaagarantir

acesso às armas de fogo. Segundo, anular o poder social, institucional e espiritual

dosbonzosbudistas,nosentidodeeliminarqualquertipodeoposição.

Apesardetodasascircunstâncias,aMissãodoJapãodemonstrava‐sepróspera

ecomelevadonúmerodeconvertidos,oque,dealgumaforma,derrubavabarreiras

1Cf.JoãoPauloOliveiraCosta.“Japão”.IN:HistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques,1ºVol.TomoII‐DeMacauàperiferia.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,pp.388‐389.2Cf. JoãoPauloOliveiraCosta.O JapãoeoCristianismono séc.XVI. Lisboa: SociedadeHistóricadaIndependênciadePortugal,1999,pp.60‐65.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

371

linguísticaseculturais3.Apartirdadécadade1580torna‐secadavezmaisnumeroso

o número de missionários japoneses, demonstrando uma significativa

permeabilidade tanto no que respeita à aceitação e integração de clero nativo na

Companhia de Jesus, como também ao nível da propensão dos nipónicos

relativamenteaumanovaespiritualidade.

Contudo, logoapósasubmissãodeKyushu,ToyotomiHideyoshi,sucessorde

OdaNobunaga, promulgou emHakata o primeiro édito anti‐cristão, em1587. Em

traçosgerais, apromulgaçãodeHideyoshi temquever comacrescente influência

que os missionários detêm junto da sociedade, motivado, em larga escala, pela

acção solidária e misericordiosa na ajuda aos enfermos e moribundos. Por outro

lado,oprincípiode obediênciaaDeusacimadequalquer coisa, incluindoo poder

político,nãosecoadunacomosistemasociopolíticoinstitucionalizadonasociedade

japonesa,queassentanumafidelidadeincondicionalaoSenhor4.

Destaforma,osmissionáriosjesuítasetodososcristãosconvertidospassama

viver numa condição de clandestinidade e perseguição, o que acaba por ter

consequências significativas na expressão espiritual do Cristianismo no Japão. Na

verdade,Hideyoshinuncafezcumpriraordemdeexpulsãodoscristãos,comreceio

deafastarosnaviosdecomérciodosportugueses.Deacordocomalgumasfontes,o

número de cristãos parece até ter duplicado na última década do século XVI,

considerandoatéquemetadedocorpodereligiososerajaponês5.

3 Sobre as estratétigas de missionação vide Pedro Lage Correia. A Concepção de Missionação naApologiadeValignano.EstudosobrearivalidadeentrejesuítasefranciscanosnoJapão(1587‐1597).DissertaçãodeMestradoemHistóriaModernaapresentadaàFaculdadedeLetrasdaUniversidadedeLisboa. Julho2000;AlexandraCurvelo.Nuvens douradasepaisagenshabitadas.AartenambaneasuacirculaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:TesededoutoramentoapresentadaaoDepartamentodeHistóriadaArtedaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovade Lisboa paraaobtençãodograudeDoutor emHistóriadaArte,2008,pp.237‐268.4Cf. JoãoPauloOliveiraCosta.O JapãoeoCristianismono séc.XVI. Lisboa: SociedadeHistóricadaIndependênciadePortugal,1999,pp.60‐65.5Cf.JoãoPauloOliveiraCosta.“Japão”.IN:HistóriadosportuguesesnoExtremoOriente,direcçãodeA.H.deOliveiraMarques,1ºVol.TomoII‐DeMacauàperiferia.Lisboa:FundaçãoOriente,1998,pp.408‐412.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

372

Consequentemente, AlessandroValignano assume amissão diplomática, não

com vista à revogação do édito de expulsão dos cristãos, mas com o intuito de

reforçar as relações políticas e comerciais com o Japão e amenizar as hostilidades

contra osnamban‐jin. Tendo o irmão Jesuíta João Rodrigues ficado ao serviço de

Hideyoshi, como intérprete e conselheiro nos assuntos relativos aos namban‐jin,

paulatinamenteforamconcedidasautorizaçõesàprofissãodafécristãemNagasaki

eemQuioto.

Por outro lado, a promulgação do édito de 1587 precipitou a chegada de

outras ordens religiosas ao arquipélago nipónico, nomeadamente os Franciscanos,

queaíchegaramabordodenaviosespanhóis,vindosdeManila,paracontrabandear

pratamexicana.Hideyoshi recebeu os Franciscanos comagrado e autorizou a sua

permanência, após se ter apercebido que o conflito que estesmantinham comos

missionários Jesuítas poderia ser uma forma de enfraquecimento do poder de

influência dos cristãos. Contudo, na consequência do naufrágio de um galeão

espanholao largodeShikoku,asautoridades concluíramque os religiosos cristãos

preparavamumainvasão,oquejustificouapromulgaçãodeumnovoéditoem1597

eaexecuçãonacruzdosvinteeseismártiresdeNagasaki6(Fig.196).

Este clima de instabilidade intensifica‐se com a preponderância militar e

económica da Vereenigde Oostindische Compagnie (VOC), que atacava

indiscriminadamente todas as embarcações portuguesas nas rotas entreMacau e

GoaeentreMacaueNagasaki.AtotaldependênciadocomérciodoJapãoatravésda

ligação a Macau consumou o fim da presença portuguesa no Império do Sol

NascenteeoprincípiodofimdaMissãodoJapão.

Tokugawa Ieyasu, sucessor de Hideyoshi, libertou‐se da contrapartida de

tolerânciaaoscristãos,pelaperdadomonopóliocomercialdosportuguesesfaceao

poderio holandês7, fazendo cumprir copiosamente o édito de proibição do

6Op.Cit.pp.415‐417.7 Cf. Valdemar Coutinho. O fim da presença portuguesa no Japão. Lisboa: Sociedade Histórica daindependênciadePortugal,1999,pp.27‐34.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

373

Cristianismo promulgado em 1614, o que levou alguns religiosos a abandonar o

JapãoparaservirnocolégiodeS.PauloemMacauounasMissõesda Índia.Ainda

assim, nesse ano, o Cristianismo do Japão prosperava na clandestinidade,

registando‐se um elevado número de cristãos e cerca de cento e cinquenta

missionários, dos quais apenas um terço eram ocidentais. Os anos seguintes são

caracterizadosporperseguiçõesecristãosmartirizados,oquepoderáestarnabase

de um sentimento de militância espiritual, especialmente entre o clero nativo.

Apesardaresistênciadoscristãos,asautoridadesjaponesasestavamdeterminadasa

erradicaroCristianismodoJapão,coincidindocomumprogressivoencerramentodo

Império sobre si mesmo, limitando os contactos com o exterior. Finalmente, em

1639,os comerciantesdeMacau ficaramproibidosde fundearasnausnosportos

japoneses, sob acusação de prestarem auxílio aosmissionários e aos cristãos que

viviamclandestinamentenoJapão,ditandoofimdaesperançanaconversãodeum

ImpérionaÁsiaeassinalando tambémo fimdo lucrativocomérciodaCarreirado

Japão.

Peranteestapermanenteoscilaçãodacondiçãodosnamban‐jin,deprotegidos

a perseguidos, parece incongruente o significativo impacto que as relações luso‐

nipónicas tiveram no contexto artístico. O intercâmbio artístico decorrente entre

1543e1639reflecte,porumlado,aprosperidadedocomérciodaCarreiradoJapão,

atravésdaencomendade luxuososobjectosque interessavamaoseuropeuse,por

outrolado,oenraizamentodoCristianismonasociedadejaponesa,dandoorigema

umaexpressãoartísticadevocionalsemprecedentesecomcaracterísticaspróprias.

É importante ainda referir que este diálogo é, efectivamente, recíproco,

considerando ainda o incontornável registo iconográfico dos biombos namban, da

Escola de Kano, que documentam a presença dos namban‐jin, testemunhando

aspectoscomerciais,sociaisedavidadosreligiososnoarquipélagonipónico.

Destas três categorias daArte Namban interessa, particularmente, ao nosso

estudo a arte Kirishitan, analisando a forma como os missionários europeus

utilizaram as imagens cristãs como instrumento de difusão do Cristianismo, a

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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assimilação dos modelos e esquemas de representação na cultura espiritual do

Japão e a forma como o princípio de accomodatio, ensaiado precisamente por

Alessandro Valignano na Missão do Japão, se transporta igualmente para a

iconografiacristãnumaadaptaçãoaosesquemasderepresentaçãodoBudismo.

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1. AarteKirishitan(1549‐1639)

Os missionários, tal como os mercadores portugueses, recorriam

frequentemente à encomenda de objectos de carácter utilitário e decorativo,

nomeadamente ao nível do mobiliário, cofres em forma de baú, escritórios,

contadores, muitos dos quais ostentando a insígnia da Companhia de Jesus e

ornamentadosaouroepratasobremadeira lacada,tendoestetipodemobiliários

ficado conhecidos por lacas jesuítas1. Chegaram até nós numerosos objectos

relacionadoscomosrituaislitúrgicos,comoasestantesdemissal,caixasparahóstias

(píxides), crucifixos, altares portáteis, oratórios de pendurar,medalhas, pinturas e

algumas estatuetas em marfim, que se integram na acção evangelizadora dos

missionários.

Para além destes objectos de carácter utilitário ou ornamental associado às

celebrações rituais do Cristianismo no Japão, chegaram aos nossos dias objectos

relacionados com o clima de guerra que se viveu durante o Século Namban,

nomeadamenteespingardas,estribos(abumi)eguarda‐mãos(tsuba)comosímbolo

dacruzeosváriossímbolosdomartíriodeCristo,ouaindaasmáscaras,inspiradas

nasmáscaras do teatro Noh, como a que pertence à colecção JorgeWelsh. Estes

objectos teriam sido certamente oferecidos ou encomendados por Senhores da

Guerra convertidos ao Cristianismo, que combatiam em benefício próprio ou

eventualmentecontraosdaimyosqueproibiramoCristianismo.

Entreosobjectos,deusoquotidianodoscristãosjaponeses,éparticularmente

interessante o crucifixo de pendurar ao pescoço com pontas trilobadas que se

conservanoMuseuNacionaldeArteAntiga.Ocrucifixoemcobrecomaplicaçõesde

1MariaHelenaMendesPinto.“LacasNamban”.IN:ArteNamban.Lisboa:FundaçãoOriente/MuseuNacionaldeArteAntiga,1990,pp.40‐44.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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ouroelacaéornamentadocomelementosvegetalistaseborboletasque,deacordo

comPedroDias, representa,na tradiçãobudista,oamor filial eque,por isso, terá

sido oferecido a um pai ou umamãe2 (Fig. 197). Contudo, pensamos que será de

considerar que a borboleta se refere à Ressureição de Cristo crucificado. A

segmentaçãodaexistênciaemduascondiçõesdistintas‐ahumanaeadivina‐que,

apósaprimeira,renasceouressuscitaemapoteoseebelezacelestial.Éimportante

referirque,natradiçãojaponesa,aborboletarepresentaaemergênciadobeloeda

graciosidade.

Algumas pinturas demonstram como os cristãos japoneses utilizavam estes

objectos,muitas vezes integrados nos trajes tradicionais. Um biombo de colecção

privada,datadode1616,representaumgrupode japonesesmúsicoseumoutroa

dançar,observadosporumgrupodeocidentais.Ojaponêsquedançatemumacruz

penduradaàcinturatalcomo,deacordocomtradiçãojaponesa,seusavamos inro

comosseusnetsuke.Édereferiraindaoguarda‐mãodaespadanaformadacruz,

comoaindahojeseconservamemcolecçõespúblicaseprivadas,nomeadamentena

colecçãoJorgeWelshenoMuseudaIgrejaCatólicadeOura.Porsuavez,oocidental

queseencontrasentadonumacadeira,identificadoporMariaHelenaMendesPinto

como sendo o inglês Richard Cocks, que alcançou privilégios para o comércio

britânico,apresentaumamedalhaoval comumacruz,muito idênticaaum fumi‐e

queseencontranoMuseudaIgrejaCatólicadeOura,emNagasaki.Arepresentação

da cruz utilizada por japoneses é ainda comum em 1621, documentado numa

pintura de um cristão japonês pertencente ao Museu do Caramulo, tal como a

teriam usado o D. Bartolomeu, daimyo de Omura e Hosokawa Gracia, a filha do

traidorquesupostamenteassassinouOdaNobunaga3.

2PedroDias.ArtedePortugalnoMundo.Japão.Lisboa:Público,vol.14,2008,p.114.3 Maria Helena Mendes Pinto. “Biombos Namban”. IN: Arte Namban. Lisboa: Fundação Oriente /MuseuNacionaldeArteAntiga,1990,p.47.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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Apesardaimportânciaincontornáveldestesobjectos,éaoníveldapinturaque

aartecristãnoJapãosedistinguenocontextodasmissõeseuropeiasnoarquipélago

nipónicoentre1549e1639.

Ainda antes de uma significativa produção de arte cristã em Goa, Francisco

Xavier levava consigo várias imagens de Cristo e deNossa Senhora, à chegada ao

Japão,em1549.PoucodepoisdasuachegadaaoJapão,nacompanhiadeAnjiro,o

jovemjaponêsqueXavierhaviaconhecidoemMalacaequelheserviadeintérprete,

amãe de Shimazu Takahisa,daimyo de Kagoshima, pediu aomissionário que lhe

oferecesse uma imagem de Nossa Senhora. Esta oferta esteve na sequência da

explicaçãoda imagemqueAnjirofezaodaimyoShimazuTakahisa.Contudo,Xavier

nãopôdesatisfazeropedido,pornãoterencontradoquempudessefazerumacópia

dapinturanemosmateriaisnecessáriosparaofazer4.

Logo à chegada, Francisco Xavier é confrontado com o problema da

reprodutibilidadedasimagenscristãsedaincapacidadederespostaaumaparente

interesse dos japoneses na iconografia cristã. Por outro lado, é interessante

sublinharacoincidênciadosrelatosquetestemunhamareacçãodamãedodaimyo

de Kagoshima, em1549, e a damulher doGovernador de Shandong por volta de

1600, quando, respectivamente, Francisco Xavier e Matteo Ricci mostraram uma

imagem de Nossa Senhora. Poderemos estar perante a criação de um mito do

triunfodoCristianismo,emprimeiro lugar,pelo reconhecimentodauniversalidade

dosprincípiosfundamentaisqueasimagensrepresentame,emsegundolugar,pelo

reconhecimentodaacçãomissionáriapelaglorificaçãodaquelesquesetornaramos

íconesdoproselitismoedosincretismoreligiosonaÁsia.Poroutrolado,poderemos

também entender que, tanto no Japão como na China, sobretudo as mulheres,

reconheciamnasimagensdeNossaSenhoraosprincípiosuniversaisdosarquétipos

damaternidade,intercessãoeprotecçãoequiparáveisaGuanyin,Kannoneaoutras

divindadesfemininasdastradiçõesreligiosaslocais.

4YoshitomoOkamoto.TheNambanartofJapan.NewYork,Tokyo:Weatherhill/Heibonsha,1972,p.96.

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Nestecenário,eemrespostaaospedidosque fezparaque fossemenviadas

pinturas,existemdocumentos quecomprovamoenviode imagensquechegavam

ao Japão vindas da Europa5. Estas imagens, maioritariamente representações de

NossaSenhoracomomenino,correspondem,deacordocomalgunshistoriadores,a

uma tendência iconográfica da Companhia de Jesus que encontra referência no

célebreRetratodaVirgemporS.LucasdeSantaMariaMaggioredeRoma,daqualse

encontramcópiasnãosónaÍndia,ChinaeJapão,mastambémnasFilipinas,México,

Paraguai,Peru,EtiópiaePérsia6.

Contudo, apesar das pinturas que foram oferecidas a Ouchi Yoshitaka, a

OtomoSorin,aOmuraSumitada,aKonishiYukinagaedeoutrasquesedestinaram

aoaltarda igrejadeYamagchieaoHospital de Bungo, onúmerode imagensnão

correspondiaàdimensãocadavezmaiordacomunidadecristã7.

A chegada ao Japão de Alessandro Valignano, em 1579, mudou o rumo da

missão Jesuíta, dando início a uma estruturaçãodoensino religiosoaos japoneses

emAzuchi,FunaieArima,locaisondeoscristãoseramprotegidos,respectivamente

porOdaNobunaga,OtomoYoshishigeeArimaHarunobu8.Duranteacurtaestadia

emMacau,noanode1582,Valignanoteveconhecimentodachegadadeumpintor

Genovês para servir na Missão do Japão. Giovanni Niccolò haveria de chegar a

Nagasaki no Verão do ano seguinte, acompanhado de Francisco Pasio e de Pedro

Gomez.EmboranãoexistaconhecimentodenenhumaobradaautoriadeGiovanni

Niccolò, existem algumas pinturas, sobretudo da década de 1580, que lhe são

5 Alguns destes documentos encontram‐se publicados. Cf. PedroDias.Arte de Portugal noMundo.Japão.Lisboa:Público,vol.14,2008;AlexandraCurvelo.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.Aarte namban e a sua circulação entre a Ásia e a América: Japão, China e Nova‐Espanha, c. 1500 ‐1700.Lisboa:TesededoutoramentoapresentadaaoDepartamentodeHistóriadaArtedaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008.6AlexandraCurvelo. “Arte Kirishitan. Laprácticaartística en laacciónmisionalde los jesuitasel enJapón”.IN:RealesSítios.‐Madrid‐nº149(3ertrimestre2001),pp.59‐69.7Cf.FernandoGarciaGutiérrez.Influenciadelartecristianoenelartejaponés.Sevilla:RealAcademiadeBellasArtesdeSantaIsabeldeHungría,2000,p.86.8YoshitomoOkamoto.TheNambanartofJapan.NewYork,Tokyo:Weatherhill/Heibonsha,1972,p.98‐99.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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atribuídas,normalmenterepresentandoCristoSalvadordoMundoeNossaSenhora,

paraofereceraosSenhoresdeArimaedeUsukiouainda para serviraMissãoda

China.

NoanoanterioràchegadadeGiovanniNiccolòaNagasaki,saiudoJapãouma

embaixadaemnomedosdaimyosdeKyushucomdestinoaRoma,composta,entre

outros,porquatroestudantesjaponesesdoSemináriodeArima.Duranteaviagem,

encontraram‐seemMadrid coma ImperatrizD.MariadeÁustria,quevivia coma

InfantaIsabelecomLeonordeMascarenhas,tendooferecidoaestaumapinturade

CristoSalvadordoMundo,emoldurada,feitaporumdosmelhorespintorescristãos

doMiaco. Este facto demonstra que, já antes da chegada de Giovanni Niccolò,

existiampintores cristãosactivosno Japão.Estepintorpoderámuitobemter sido

MelchiorDias,quejáexerciaestaactividadeantesdeentrarparaaCompanhiaem

Lisboa, no ano de 1551. Melchior Dias chegou ao Japão em 1554, tendo aí

permanecidoapenasporquatromeses,nãosesabendoserealmentedeixoualguma

pintura. No entanto, as pinturas levadas do Japão também poderão ter sido

executadas por algumartista japonês que tenha executado uma cópia a partir de

modelosdapinturaeuropeia9.

Giovanni Niccolò dedicou‐se quase exclusivamente à pintura e ao ensino da

pintura aos alunos dos Seminários Jesuítas, fundando aí uma Escola de artistas

vocacionadaaproduzir iconografia cristãatravésdecópiasdemodelosdapintura

espanhola,flamengaeitaliana.Em1590,comaintroduçãodaimprensanoJapão,os

discípulos de Niccolò aprenderam igualmente as técnicas da gravura, na qual os

artistasjaponesessedemonstraramparticularmentehábeis.

Na sua Historia do Japam, Luís Fróis refere‐se às pinturas executadas no

Seminário de Fachiravó, perto de Arima, onde os alunos da escola de pintura

9Cf.AlexandraCurvelo.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.Aartenambanea sua circulaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:Tesededoutoramentoapresentada ao Departamento deHistória da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008,pp.282ess.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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executavam cópias de elevada qualidade a partir dos modelos trazidos de Roma

pelosquatromeninos japoneses,em158210.TambémopadreFernãoGuerreirose

refere às pinturas a óleo que se faziam no Seminário de Nagasaki, em 1601,

afirmandoque“nestacidadeestãooscolegiaisqueatendemàpinturae,emforma

deseminário,vivememumacasaapartadadaqualteemcuidadodoisdosnossos.

Umdestes veio de Romahá alguns anos e é agora sacerdote e tais discípulos fez

nesta arte, que as igrejas de Japão estão ornadas com retábulos tão ricos e

excelentesquerealmentesepodemcompararcomosdaEuropa”11.

AformaçãodeartistasnoJapãoteveinícioemNagasakieArimamas,devido

àsperseguiçõesaoscristãosdecretadasporHideyoshi,osJesuítasforamobrigadosa

mudar o seminário para Shimabara, onde os estudantes japoneses aprendiam

pinturaegravuraemcobreparaalémde teologiae latim.Em1593,umacartade

Pedro Gomez informa que a escola de pintura contava com oito aprendizes de

pinturaaóleo,cincodegravuraeoitodepinturaaaguarela. Jádepoisdomartírio

dosvinteeseiscristãosemNagazakienasequênciadamudançadosemináriode

Shiki para Arima, em 1601, estão documentados catorze estudantes de pintura.

GiovanniNiccolò permaneceu naMissão do Japão até 1614, partindo deNagazaki

paraoColégiodeS.PauloemMacau,juntamentecomoutrosmissionárioseartistas

japoneses. Contudo, outros artistas nipónicos deram continuidade à produção de

artecristã,talcomofoiocasodeLeonardoKimura,discípulodeNiccolò,queacabou

por ser martirizado em 1630 ou ainda de Yamada Emonsaku, que participou na

rebelião iconoclasta de Shimabara de 1637‐1638, resultando, por um lado, na

10LuísFróis.HistóriadoJapam.Lisboa:BibliotecaNacional,vol.5,1984,p.198.11FernãoGuerreiro.RelaçãoAnualdasCoisasquefizeramospadresdaCompanhiadeJesusnassuasmissõesDoJapão,China,Cataio,Tidore,Ternate,Ambóino,Malaca,Pegu,Bengala,Bisnagá,Maduré,CostadaPescaria,Manar,Ceilão,Travancor,Malabar,Sodomala,Goa,Salcete,Lahor,Diu,EtiopiaaaltaouPresteJoão,Monomotapa,Angola,Guiné,SerraLeoa,CaboVerdeeBrasilnosanosde1600a1609edoprocessodeconversãoecristandadedaquelaspartes:toradadascartasqueosmissionáriosdeláescreveram.TomoI:1600‐1603.Coimbra:ImprensadaUniversidade,1930,p.179.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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decapitação de inúmeras estátuas budistas e, por outro lado, namorte de vários

cristãos12.

As violentas perseguições aos cristãos japoneses, eivadas de iconoclastia,

determinaramquachegassemaosnossosdiasapenasalgunsexemplaresdapintura

produzida pela escola de pintores. Contudo, as obras remanescentes desta escola

permitem perceber que existiram dois momentos caracterizados por estilos

diferentes onde, num primeiro momento, até 1614, a pintura se resume a uma

reproduçãodosmodelos,estilosetécnicasdosmodeloseuropeuse,numsegundo

momento,apartirde1614emdiante,emqueapinturacristãdoJapãoseaproxima

dastécnicasdapinturatradicionaljaponesa,comrecursoaosuporteempapeleaos

pigmentosusadosemalgunse‐maquimono13.

Doprimeiromomentosobreviveramalgumaspinturasquehojeseconservam

em colecções públicas e privadas e que foram, provavelmente, levadas do Japão

pelosmissionários que se exilaram emMacau e emGoa no início do século XVII.

Outras foram enviadas do Japão para a Missão da China, depois de terem sido

pintadaspelosartistasjaponeses,dequeéexemploapinturadeCristoSalvadordo

Mundo, de Jacobo Niwa, executada 1597, a partir de uma gravura de Jerónimo

WierixdeumdesenhodeMaertindeVos(Fig.198eFig.199).

Os oratórios lacados de suspender ou pousar, com incrustações em

madrepérolaecomduasmeias‐portaslateraisqueescondemapinturaaóleosobre

cobre, constituem o mais significativo legado da arte namban. Do número

considerável de oratórios que ainda hoje se conservam em colecções públicas e

privadas,amaiorparteparececorresponderfielmenteaoestilodapinturaitaliana,

12Cf.CharlesBoxer.TheChristiancenturyinJapan‐1549‐1650.Manchester:CarcanetPress,1993,pp. 375 ‐ 389. Sobre a identidade de alguns artistas japoneses que frequentaramo seminário dosartistas vide Alexandra Curvelo. Nuvens douradas e paisagens habitadas. A arte namban e a suacirculação entre a Ásia e a América: Japão, China eNova‐Espanha, c. 1500 ‐ 1700. Lisboa: Tese dedoutoramentoapresentadaaoDepartamentodeHistóriadaArtedaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovade Lisboa paraaobtençãodograudeDoutor emHistóriadaArte,2008,pp.313‐331.13Cf.FernandoGarciaGutiérrez.JaponyOccidente.Influenciasrecíprocasenelarte.Sevilla:EdicionesGuadalquivir,1990,p.172.

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espanholae flamenga.PedroDias chegamesmoa sugerir que,apesardealgumas

pinturas poderem ter sido executadas porGiovanniNiccolò, na suamaioria foram

executadas previamente por pintores imbuídos pelo espírito da maniera e,

posteriormente, inseridas nos oratórios lacados por artistas japoneses14. Contudo,

apesardaspertinentesobservaçõesdePedroDias,éimportantesublinharqueeste

tipo de pinturas não é comum em outros centros da acção missionária da Ásia,

considerando ainda que as fontes documentam que a maior parte das pinturas

enviadasdaEuropaficavaporGoaeMacau,sobrandoapenasumapequenaparte

paraaMissãodoJapão.Aestefactoacrescemaindaoscomentáriossupracitadosde

LuísFróiseFernãoGuerreiro,queconfirmamaqualidadeartísticadospintoresno

Japão na execução de pinturasmuito idênticas às se vêem nas igrejas da Europa.

Finalmente, uma das pinturas da Virgem com o Menino no colo, pertencente ao

NambanBukakanemOsaka,demonstratersidoexecutadanoJapãopeloemprego

deazeite,emsubstituiçãodoóleo,paraadiluiçãodopigmento,oquesecoaduna

com documentos que referem a falta de materiais de pintura15. Deste modo,

consideramos que apenas análises químicas que apurem a origem dos materiais

utilizados juntamente com uma análise às técnicas de execução poderão,

claramente,esclarecerolocaldeexecuçãodaspinturas.Nãoobstante,interessaao

nossoestudoaformacomoas imagensea iconografiacristãsecontextualizamno

tecidocultural, religiosoeartísticodoJapão, juntamentecomumapuramentodas

eventuaisplataformasdeconfluênciaimagética.

No Museu da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva encontra‐se um destes

oratórios de pendurar com uma pintura da Sagrada Família acompanhada por S.

Joãomeninoexecutadaapartirdemodelositalianizantes(Fig.200).Estetemaseria

certamenterecorrentenapinturacristãdoJapão,talcomopoderemosobservarnos

oratóriosdoMuseuNacionalSoaresdosReis,igualmenteapartirdemodeloitaliano

(Fig.201).NumacolecçãoparticularnoJapãoencontra‐seuminteressanteoratório 14Cf.PedroDias.ArtedePortugalnoMundo.Japão.Lisboa:Público,vol.14,p.54.15Cf.FernandoGarciaGutiérrez.JaponyOccidente.Influenciasrecíprocasenelarte.Sevilla:EdicionesGuadalquivir,1990,p.174.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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comumapinturadomesmotema(Fig.202).Provavelmente,estamosperanteuma

pinturaeuropeiaquefoienviadaparaoJapãonofinaldoséculoXVIefoiaíinserida

numpequenoretábulolacadocomincrustaçõesaouroemadrepérola.Dopontode

vistaformal,distingue‐sesignificativamentedaspinturasdosoratóriosmencionados

anteriormente.Contudo,umagravuradaVirgemcomoMenino,atribuídaaGiovanni

Niccolò, que se encontra nummanuscrito do padreManuel Barreto, de 1591, na

Biblioteca Vaticana, parece ser interpretação simplificada da pintura enviada da

Europa (Fig. 203).Mais, esta gravura irá desencadear um processo de autonomia

criativavisívelnapinturadaVirgemdasNeves,provavelmentedeumdiscípulode

Niccolò,queseencontranoMuseudos26MártiresdeNagasaki(Fig.204).

Outros oratórios remanescentes registamuma abundante iconografia como

temadaVirgemcomoMenino,naturalmentebaseadosnomodelodeSantaMaria

MaggioredeRoma,comoéocasodooratóriodaMisericórdiadoSardoal(Fig.205).

A pintura, de qualidade extraordinária, é possivelmente uma das que saíram do

Japão paraGoa e que daí vierampara Lisboa. Existemainda dois outros oratórios

com pinturas da Virgem e o Menino de inspiração flamenga, nas colecções do

Peabody Essex Museum (Fig. 206) e no Rijksmuseum Het Catharineconvent de

Utrecht.NosmuseusdoJapão,nomeadamentenacolecçãodoNambanBukakanem

Osaka, conservam‐se tambémpinturasaóleocoma representaçãodaVirgeme o

Menino,aoestiloocidental,nasquaisseverificaumrefinamentonotratamentoda

expressãomaternalecontemplativadeMariacomomeninonocoloounosbraços.

A abundância e diversidade de iconografia mariana que se verifica, não só na

pintura,mastambémaoníveldaesculturadepequenasdimensões,demonstraque

oarquétipodamaternidadeedacompaixãouniversalconstituiuumdosprincipais

instrumentosdamissionaçãonoJapão.

Parece‐nos claroqueapredominânciadomodelodaVirgemeoMeninovai

para além de uma tendência iconográfica da Companhia de Jesus, coincidindo,

sobretudo, com a política de adaptação às culturas e tradições do Japão que

encontra reflexo na iconografia budista e shinto. É importante referir que a

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CompanhiadeJesusfoicriadacombasenumaestruturamilitantevocacionadapara

aestratégiadapropagaçãodoCristianismonosNovosMundos.Por isto,pensamos

que uma análise atenta à iconografia Jesuíta, isto é, da arte produzida como

instrumento da missionação, se reporta a duas características fundamentais: o

despoletar de um processo simbiótico a partir de arquétipos universais e

transversaisaoCristianismoeàsestruturasdoimaginárioreligiosodospovosquese

pretendemconvertereumaexaltaçãodaprópriamissionaçãoatravésdaglorificação

sobrehumanados pregadores da Companhia, nomeadamente de Inácio de Loyola,

enquantofundadordaOrdem,edeFranciscoXavier,enquantopregadornaÍndia,no

Japão e na China. Mais, a glorificação do pregador corresponde, por si só, a um

processo simbiótico do arquétipo universal do triunfo celeste do homem comum

pelasuatotallibertaçãodascoisasmundanas.

As fontes confirmam esta identificação espontânea dos modelos formais e

conceptuaisdaVirgemcomoMeninocomdivindadesbudistas,nomeadamenteda

deusaGuanyin,conhecidanoJapãoporKannon,oudeKariteimo,umadeusabudista

cujo culto foi introduzido pelas seitas doBudismo esotérico de influência Indiana.

FreiAgostinhodeSantaMariarefere,em1580,queosFranciscanosencontraramno

Miaco uma imagem antiga da Virgem com o Menino ao colo. Outros relatos

documentamqueFreiAfonsoFernandesviu,entremuitos ídolos, uma imagemde

uma mulher com um menino nos braços, da mesma forma como se pintava e

esculpia entre os europeus. Responderam‐lhe os japoneses que o acompanhavam

quesetratavadamãedeumagrandedivindade,oqueolevouaacreditarqueseria

umaimagemdaVirgem16.

OBudismofoiintroduzidonoJapãoduranteoséculoVI,seguindodepertoas

naturaisevoluçõesconceptuaiseteológicasqueseverificavamnaChinaenaCoreia.

DuranteoPeríodoAzuka(538‐710),oBudismotornou‐senumainfluenteexpressão

religiosacomumaexponencialdimensãoartísticaaoníveldapintura,daesculturae

atédaarquitectura.Aancestral tradiçãoShintodoJapão,extremamenteenraizada

16Cf.PedroDias.ArtedePortugalnoMundo.Japão.Lisboa:Público,vol.14,p.47.

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nas crenças animistas, sem reflexo antropomórfico, altera‐se coma introdução da

riquezaiconográficadaesculturaepinturabudistas.Foiaforçaimagéticaeacarga

simbólicadasfigurasdivinas,associadasaumanarrativaedificante,quecorresponde

às necessidades espirituais do homem comum, que tornou o Budismo a religião

oficialdoJapãoaindaantesdofinaldoséculoVI.

Inicialmente, a arte budista era importada da China através da Coreia,

seguindo as tendências artísticas derivadas das dinastias Wei do Norte e Wei

Oriental. Uma das mais populares divindades deste período era o bodhisattva

Avalokitesvara, conhecido na Coreia e no Japão por Kannon17. Durante o Período

Heinan (794 ‐ 1185), a ruptura entre o poder politico e a estrutura religiosa, que

determinouaconstruçãodeapenasdoistemplosnanovacapital,abriucaminhoàs

influências do Budismo Esotérico, que se desenvolvia na China na sequência da

acção missionária dos monges do Budismo Indiano. A representação hierática de

Kannon liberta‐se da sua postura vertical para corresponder a uma expressão da

sensualidadefemininaquecaracterizaaesculturabudistanaÍndia.

O princípio misericordioso e intercessor de Kannon correspondia às

necessidades espirituais e à fragilidade humana perante a destruição e o caos,

determinandoquesetornassenamaispopulardivindadebudistanãosónoJapão,

masemtodaaÁsia.Acapacidadedesemanifestaratravésdemaisdetrintaformas

possibilitouumavariedadesignificativanosmodelosderepresentação.Contudo,na

sequênciadaevoluçãoestilísticadaartebudistanaChina,muitoprovavelmentepela

aproximação às divindades femininas do Taoismo, o arquétipo feminino de

Avalokitesvaradifunde‐sepeloSuldaChina,SudesteAsiáticoeÁsiaExtrema.

DuranteoperíodoKamakura(1185‐1333),osartistas japonesestiveramum

contacto próximo com a pintura chinesa dos Song do Norte, entre os quais Li

Gonglin,introduzindonoJapãoastécnicasdepinturadediluiçãodatintaeaplicação

17 Nishikawa Kyotaro. “Japanese Buddhist sculpture”. IN: The great age of Japanese Buddhistsculpture (AD 600 ‐ 1300), edited by Nishikawa Kyotaro and Emily J. Sano. Seattle: University ofWashingtonPress,1982,pp.22.

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dopincel.Umdosartistas japonesesqueestevenaChinaSongfoiomongepintor

Yakuou Tokkenn, que introduziu no Japão a iconografia de Byakui Kannon, a

representação feminina do bodhisattva Avalokitesvara (Guanyin) com o manto

brancoemmeditaçãonamontanha.NoMuseuNacionaldeNaraconserva‐seamais

antiga pintura de Byakui Kannon no Japão, representando o momento que em

KannonévisitadaporZenzaiDoji,omeninoquefezumaperegrinaçãoprocurando

os ensinamentos dos cinquenta e cinco bodhisattvas (Fig. 207). Este tipo de

iconografia está intrinsecamente relacionado com o Budismo Zen extremamente

popularno Japão,pela correlaçãoentreadivindadeeosdiscípulosatravésdeum

subentendimentodacondiçãodepermanentemeditaçãoparaatingira iluminação.

Os monges do Budismo Zen revêem‐se na posição de discípulos em permanente

aperfeiçoamento espiritual, o que poderá explicar o sucesso espontâneo do

CristianismonoJapãopelaatitudeespiritualdosmissionáriosJesuítas.

DuranteoPeríodoMuromachi(1336‐1573),apinturaZen,nomeadamenteda

tradiçãodoshakuga,popularizoua tradicional iconografiadeKannoncomomanto

branco como reflexo da experiência espiritual18. Kannon é tradicionalmente

representada no momento de apoteose espiritual em meditação na montanha

Potalaka,na Índia,representadacomumhaloque identificaasuacondiçãodivina.

Uma dessas pinturas encontra‐se na Freer and Sackler Galleries, Smithsonian

Institution,daautoriadeMokuanReien,queestudounaChinaentre1326e1328

com o mestre Liao’an Qingyu, na qual o pintor japonês inclui uma descrição

apoteóticadadivindade(Fig.208).

O facto é que a iconografia da deusa Kannon anterior à chegada dos

portugueses ao Japão consiste sobretudo em manifestações isoladas de Youryu

Kannon,representadadepéousentadajuntoaumvasodeflores,SuigetsuKannon,

representadacomumagrande lua juntoaumaquedadeágua, JūichimenKannon,

representadacomnoveouonzecabeças,Kannondemilbraçosoucontextualizada

18Cf.PenelopeMason.HistoryofJapaneseart.NewYork:HarryN.Abrams,Inc.Publishers,1993,pp.194‐203.

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na trindade de Amida juntamente com Seishi Bosatsu. A manifestação de Jibo

Kannon, que significa literalmente “Mãe Compadecida”, e que se caracteriza pela

representação de Kannon segurandouma criança no colo, surge abundantemente

noJapãoduranteaEraTokugawa,apartirde1615ecomoreacçãoàproibiçãodo

Cristianismo.Naturalmentenãoquerdizerqueforamoseuropeusquelevaramesta

variante iconográfica para o Japão, mas foram com certeza responsáveis pela

popularizaçãodotemaatravésda importaçãoparaoJapãode inúmerasesculturas

emporcelanadeDehuaprovenientedosportosdecomérciodoSuldaChina.Oque

é fundamental considerar é que o princípio de compaixãomaternal está presente

nasestruturasdo imaginário religiosodoJapãoantesdachegadadosportugueses,

nãosóatravésdarepresentaçãodeKannon,mastambémdeoutrasdivindadesdo

panteãobudista.

Concretamente,pensamosqueasdescriçõesdeFreiAgostinhodeSantaMaria

edeFreiAfonsoFernandespoderãocoincidircomumaidentificaçãodeKariteimoe

não de Guanyin / Kannon. Na verdade, Kariteimo é o nome japonês atribuído à

divindadeHindu,Hariti, protectoradas crianças e consorte dePanchika.OsSutras

referem‐seaKariteimocomosendoumadivindadequedetestavacriançasapesarde

tercercadequinhentosfilhos.Umdia,Budaescondeuumadassuascriançaspara

que sentisse a dor da perda de um filho.Na sequência desta provação, Kariteimo

converteu‐seaoBudismoetornou‐seprotectoradascriançascontratodososmales

domundo19.

AiconografiadeKariteimo,particularmentepopularnoJapãoapartirdofinal

doPeríodoHeinan, consistena representaçãodadeusasegurandoumacriançano

coloeumaromãnamãodireita.AocontráriodeKannon,cujadevoçãocorresponde

a um modelo de meditação e cânone espiritual e onde as crianças surgem na

condição de discípulos, o culto de Kariteimo relaciona‐se, sobretudo, com a

compaixãomaternal,comoespíritoamorosoeprotectordamaternidadee como

19Cf.Hisatoyo IshidaandErnest DaleSaunders.Esoteric Buddhistpainting. Tokyo: Kodansha,1987,pp.158‐182.

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desejo de fertilidade e descendência. Demonstra‐o não só a romã que, tanto na

ChinacomonaÍndia,ésímbolodafertilidadeedeumanumerosadescendência,mas

tambéma linguagem corporal demuitas das pinturas e esculturas remanescentes

dosPeríodosHeinaneKamakura20.

Em Quioto, no Templo Daigo‐ji, o mais antigo templo budista de Quioto,

conserva‐seumapinturasobreseda,doPeríodoKamakura,comarepresentaçãode

KariteimovestidacomotrajetradicionaldadinastiaSongsegurandoumacriançano

braço esquerdo e um ramo de romãs namão direita (Fig. 209). No canto inferior

esquerdo, uma segunda criança brinca interagindo com Kariteimo e a criança no

colo. A cena transmite uma plena complacência maternal, uma tranquilidade

amorosa na cumplicidade entre a deusa e as crianças. A criança no colo não é

meramente apresentada frontalmente como um registo iconográfico. O olhar que

lança sobre Kariteimo, juntamente com os movimentos dos braços e das pernas,

transportaautenticidadee realismodespertandoaemoçãoe compadecimentodo

observador.

A iconografia maternal de Kariteimo é, sobretudo, comum ao nível da

escultura em madeira, característica principal da arte do Período Kamakura. No

templodeOnjoji,naPrefeituradeShiga,conserva‐seumaescultura,provavelmente

do século XIII, que parece seguir de perto o modelo iconográfico e gracioso da

pinturadeQuioto(Fig.210).Contudo,aesculturademonstraumacentuamentoda

relação de cumplicidade entre Kariteimo e a criança, através do cruzamento de

olharesedacriançaqueapontaodedodamãoesquerdanadirecçãodadeusa.

A existência no Japão do arquétipo da compaixão maternal, representada

através da iconografia de Kariteimo, por influência do Budismo Esotérico que se

disseminoupelaÁsiaCentraleOrientalapartirdaÍndia,duranteosséculosXIaXIV,

demonstraatransversalidadedasestruturasantropológicasdoimagináriocomunsa

váriasrealidadesculturaisdaÁsia.Demonstra,ainda,queestacirculaçãodasformas

20 Asoke Kumar Bhattacharyya. Indian contribution to the development of Far Eastern Buddhisticonography.NewDelhi:K.P.Bagchi&Co.,2002,pp.106‐133.

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artísticasedopensamentoreligiosoémuitoanterioràchegadadosportuguesesao

ÍndicoeaoPacífico.Estarealidadecolocacompletamentedeparteaideiadequea

representação da Virgem com o Menino introduziu o arquétipo da compaixão

maternalnaChinaequeapartirdaquisedisseminoupelaÁsiaOrientaleSudeste

Asiático.A iconografiamariana,amplamenteutilizadapelosmissionárioseuropeus,

corresponde a um processo simbiótico que parte de princípios universais do

imaginário, de forma a fazer corresponder significados através de uma “tradução”

espontânea. Desta forma, o resultado deste processo simbiótico apresenta‐se na

emergênciadeumnovoestiloque,nacombinaçãodeumdiálogocultural,religioso

e imagético, se assume autonomamente sob a designação de arte das missões

europeias.

Apesar de terem chegado aos nossos dias diversos oratórios com pinturas

provavelmentefeitasporartistasdoSemináriodospintoresdoJapãorepresentando

a Virgem com o Menino, existem pinturas com outros temas com a mesma

proveniência,nomeadamenteaCrucificação,queseconservanoMuseuNacionalde

Tóquio, também inserida num oratório. A documentação refere igualmente a

existência de pinturas representando diferentes passos da Paixão de Cristo, em

particular um Ecce Homo que foi oferecido a Filipe II durante a Embaixada dos

meninosjaponesesàEuropa21.

No Museu do Oriente encontra‐se um oratório em madeira lacada com

incrustações emmadrepérola e decorações com aves e temáticas vegetalistas ao

estilo japonês (Fig. 211). A pintura, coma representação icónica deS. José como

Meninoaocolo,demonstraaautoriadeumartistalocal,provavelmenteatépouco

familiarizadocomaarteeuropeia.Estaafirmaçãoésustentadaquerpelotratamento

das expressões faciais, quer pelas características anatómicas das figuras ou ainda

21Cf.AlexandraCurvelo.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.AartenambaneasuacirculaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:Tesededoutoramentoapresentada ao Departamento deHistória da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008,p.299.

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pela técnica deficiente na distribuição cromática. Alexandra Curvelo sublinha, de

formapertinente,queestetemanãoécomumnatradiçãopictóricaportuguesa,ao

contrário do que acontece na pintura espanhola e, consequentemente, nos Vice‐

Reinados da Nova Espanha de que S. José era patrono. Acrescenta ainda que a

representaçãodeS.Josécomoumjovemenãoemidadeavançadacorrespondeàs

visõesmísticashispânicasdequeéexemploadeSantaTeresadeJesus.Finalmente,

estabeleceumparaleloentreomodeloderepresentaçãodeS.JosécomoMenino

comtemasdaiconografiachinesa,nomeadamentenarepresentaçãodossennin,de

queéexemploJurōjin(ShouXing),oimortaltaoistaedeusdaimortalidade,quese

faz acompanhar de uma criança. De acordo com a historiadora, este tema esteve

muito em voga durante o período Tokugawa (Edo), momento em que

predominavamosprogramasiconográficoschineses22.

Parecem‐nos pertinentes as observações acima referidas, principalmente no

queserefereauma“situaçãodeaproximaçãoiconográficacomduplosentido,cuja

conveniênciafoi,assim,explorada”23.Contudo,donossopontodevista,éredutoraa

aproximação iconográfica entre o temade S. José comoMenino comos imortais

taoistas, especialmente considerando o manancial da iconografia budista e a

importânciaqueoBudismotemnoJapãoduranteosperíodosMomoyamaeEdo.

ApinturadeS.JosécomoMeninopoderáeventualmentetersidoexecutadaa

partirdomodelodeumagravuralevadadaEuropa,possivelmenteatédeEspanha,

considerandoapopularidadedotema,oelevadonúmerodemissionáriosespanhóis

nasmissõesdoJapãoeaemergênciadamonarquiadualapartirde1580.Contudo,

adifusãodaiconografiadeS.JosécomoMeninoestácertamentenabasedeuma

conveniência formal com Jizō Bosatsu que, tal como Kannon, era um dos

bodhisattvas mais populares do Japão desde a introdução do Budismo no

arquipélago nipónico durante o século VI. Tal como muitas das divindades

remanescentes das tradições da Índia, Jizō Bosatsumanifesta‐se através de várias

22Op.Cit.,p.346‐347.23Op.Cit.,p.347.

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aparênciasdeacordocomasmúltiplasvirtudessalvíficas.JizōBosatsu,noquadrodo

Budismo da Ásia Central e Oriental, é uma divindade proeminente considerado o

SalvadorUniversal, intercessordasalmasquesofremostormentosdoinferno,guia

dasalmas,intercessordosviajantes,protectordascriançasedasmãesqueperdem

osseusfilhos24.

Jizō Bosatsu era uma divindade pouco conhecida no Budismo Indiano,

tornando‐semuitopopularnaChinaapartirdoséculoVeVI,ondeficouconhecido

porTit’sang.OcultochinêsaTit’sangestáamplamenterelacionadocomostextos

budistasnosquaisJizōédescritocomoobodhisattvaqueintercedepelasalmaspara

queestaspossamreencarnarnaTerraPuradoOcidente,apresentando‐secomoo

salvador no últimomomento antes damorte. Algumas esculturas de Jizō Bosatsu,

encontradasnasGrutasdeLongmen,naProvínciachinesadeHenan,edatadasdo

início da dinastia Tang, contêm inscrições que expressam o desejo de que os

familiares dos devotos reencarnem na Terra Pura do Ocidente25. A expressão dos

rituais de devoção em torno do zelo dos antepassados resulta de umprocesso de

conveniênciadocultodeJizōBosatsurelativamenteaosrituaistaoistas,manifestado

atravésdoprincípiodeintercessãodosvaloreseestruturasdafamília.

NoJapão,ocultodeJizōBosatsuremontaaosséculosVIIIeIXdifundido‐seno

tecidocultural,sobretudo,apartirdoperíodoKamarura,quandoaseitadoBudismo

da Terra Pura se torna dominante26. Os monges do Budismo Zen são igualmente

fervorososdevotosdeJizōBosatsu,demonstrandoaimportânciaetransversalidade

doculto,desdeasesferasmaispopularesaosistemaregradodosmosteirosZen.De

facto, durante o período Momoyama e Edo, Jizō Bosatsu atinge um lugar de

24Cf.FrederickHadlandDavis.Mythsand legendsofJapan.NewYork:Cossimo,2007,pp.104ess.YoshikoKurataDykstra.“Jizo,theMostMerciful.TalesfromJizoBosatsuReigenki”. IN:MonumentaNipponica,Vol.33,No.2(Summer,1978),pp.179‐200.25YoshikoKurataDykstra.“Jizo,theMostMerciful.TalesfromJizoBosatsuReigenki”.IN:MonumentaNipponica,Vol.33,No.2(Summer,1978),pp.179‐200.26 Nishikawa Kyotaro. “Japanese Buddhist sculpture”. IN: The great age of Japanese Buddhistsculpture (AD 600 ‐ 1300), edited by Nishikawa Kyotaro and Emily J. Sano. Seattle: University ofWashingtonPress,1982,pp.32.

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392

importância ao nível de Kannon e de Amida Nyorai no contexto das mais

importantesdivindadesbudistasdoJapão.

As mais antigas representações iconográficas de Jizō Bosatsu remontam ao

período Nara, durante o qual as esculturas surgem muitas vezes sem qualquer

elemento iconográficoassociado, resumindo‐se aosgestosdo restabelecimentoda

segurança (abhayamudra), com a mão esquerda, e da atribuição dos benefícios

(varadamudra), comamãodireita. Durante o período Kamakura, as esculturas de

Jizō assumem uma postura distinta, representado como um monge de cabelo

rapado, torso desnudo, fazendo o gesto do abhayamudra com a mão direita e

segurando a pérola do saber universal na mão esquerda27 (Fig. 212). Finalmente,

durante o período Momoyama surgem inúmeras e distintas representações

associadasàsmúltiplasfunçõesdeintercessão,entreasquais,importareferir,ade

guiaeprotectordasalmasdoinferno.Nestecaso,JizōBosatsuérepresentadocomo

ummongecomumhalo,segurandonamãoesquerdaapérolaflamejantee,namão

direita,obáculoqueoidentificacomoguiadasalmasduranteadescidaaoinferno

(Fig.213).

NãoépossíveldeterminarseooratóriocomarepresentaçãodeS.Josécomo

Menino constitui um caso raro no universo da iconografia cristã no Japão ou se é

apenasumadaspoucaspinturascomotemaquechegouaosnossosdias.Porém,na

nossaopinião,pareceverosímilconsiderarquearepresentaçãodestetemanoJapão

se contextualiza num padrão de similitude iconográfica e de conveniência

conceptual com Jizō Bosatsu, considerandoque, tanto S. José comoobodhisattva

representamosarquétiposdaprotecçãodascriançasedosseuspais.Aevidênciada

simbiose dosmodelos de representação entre as imagens cristãse o culto de Jizō

Bosatsu é comprovada, como veremos adiante, por uma clara adopção desta

divindadebudistanoculto doskakurekirishitan (cristãosocultos), após1639.Esta

correlaçãoentreS. Josée JizōBosatsué confirmadapelaevolução iconográficado

27SergeEliséev.“ThemythologyofJapan”. IN:AsiaticMythology1932,editedbyJ.HackinandPaulLouisCouchoud.KessingerPublishing,2005,pp.432ess.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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boddhisattva que, a partir do período Edo, passou a ser representado com uma

criançanocolo,juntamentecomoutrasque,carinhosamente,brincamaoseuredor.

Nanossaopinião,oprocessodealteridadeiconográficadeJizōBosatsu,apartirda

segundametade do século XVII, está na base de uma conveniência conceptual e

formalcomadifusãodarepresentaçãoecultodeS.JosénoJapão.

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1.1. AltaresnasigrejasdoJapão

As igrejas jesuítas foramnormalmente levantadasporarquitectos japoneses,

não sópela faltademissionários comconhecimentosnestamatéria,mas também

por obediência a um sistemade padronização urbana que vigorava no Japão. Por

outro lado, a política de acomodação implementada por Alessandro Valignano

permitia que as igrejas fossem construídas seguindo os princípios da arquitectura

japonesa, nomeadamente a segmentação de câmaras (zashiqui) e a ausência de

portas, em opção a um corpo único. Contudo, ao nível da planta e orientação,

Valignanodavaindicaçõesclarasdequeacapeladeveriaseraocompridoenãoao

atravessado, como era costume nos templos japoneses1. Não se conhece,

efectivamente,adisposição interiordoespaçodas igrejasnoJapãonemsequeras

orientaçõesaoníveldacolocaçãodosoratóriosealtaresdedevoção.

Alguns documentos permitem ter uma vaga ideia sobre a ornamentação

interiordas igrejascristãsnoJapão,nomeadamenteaoníveldaplantaque,muitas

vezes,incluíaváriasdependênciasparaalémdoespaçodeculto.DaigrejadeNossa

SenhoradaAssunção,queapenasseconheceaaparênciaexterioratravésdapintura

deumleque,sabemosquetinhaumasalacomtatami,muitoprovavelmenteonde

se encontrava o altar, e também uma sala para a cerimónia de chá2. Outras

descrições,referentesaumaigrejadeOsaka,coincidemcomasfontesiconográficas

1SofiaDiniz.“AsigrejasdosJesuítasnosbiombosnamban”.IN:Oriente‐Lisboa‐nº4(Dez.2002),pp.32‐42. Idem,AarquitecturadaCompanhiadeJesusnoJapão.Lisboa:DissertaçãodeMestradoemHistóriadosDescobrimentosedaExpansãoPortuguesa(séc.XVI‐XVIII)apresentadaàFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboa,2007,pp.71‐136.2Cf.AlexandraCurvelo.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.Aartenambanea sua circulaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:Tesededoutoramentoapresentada ao Departamento deHistória da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas daUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008,pp.257ess.

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dos biombos namban, demonstrando que o interior era composto por portas

amovíveisdetalhadamentepintadas com floresepássaros.Como refereAlexandra

Curvelo, não só nas igrejasmas tambémnos aposentos privados dos religiosos da

Companhia, existia uma forte presença tanto da arte europeia como da arte

Japonesa3.

Contudo, as fontes documentais não permitem ter uma ideia clara sobre a

ornamentação interioredacomposiçãodosaltaresdedevoçãodas igrejas cristãs.

Osbiombosnambansão,concretamente,aúnicafonteiconográficaquepermitede

algumaformaternoçãodadecoraçãointeriordasigrejas,emborasejafundamental

considerarquearepresentaçãopossaconstituirapenasumaformadeilustraçãodo

quotidianoespiritualdoscristãosjaponeses.Casocontrárioteríamosdeconcluirque

asespecificaçõesdeValignano,quantoàplantaeorientaçãodacapela,nãoforam

cumpridas. Todavia, parece‐nos verosímil a decoração discreta dos altares

representadosemalgunsdosbiombosnamban,nosquaisalgumasvezesasimagens

dedevoçãoserevelampordetrásdeumacortina.

NoMuseudeKobeencontra‐seumbiomboquerepresentaotradicionaltema

dachegadadagrandenauaoportodeNagasaki,atribuídoaKanoNaizenedatado

de c. 1600 (Fig. 214). Num primeiro plano, o desfile dos portugueses que

transportam as mercadorias, carregadas por negros, recebidos por um grupo de

missionários jesuítase franciscanos, representandoadiversidade social, religiosae

mercantil dosnamban‐jin. No canto superior direito, ocupando a sexta folha, um

religioso,envergandootrajedecerimónia,celebraumamissanaigrejaocupadapor

cristãos japoneses sentados e ajoelhados no chão.O altar conta apenas comuma

pinturadeCristoSalvadordoMundofazendoogestodabênçãoesegurandoavara

crucífera. Na parte inferior encontra‐se uma estrutura em laca policromada com

elementos vegetalistas, com dois castiçais com velas a ladear a imagem e um

recipienteaocentro.

3Op.Cit.,pp.261ess.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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NoMuseudasColecçõesImperiais,emTóquio,encontra‐seumbiomboquese

distinguede todos osoutros, pelocloseup que fazao interiorde umadas igrejas

cristãsdeNagasaki,representandoumgrupodeocidentaisaapreciarumaimagem

de Cristo Salvador doMundo fazendo o gesto da bênção com amão direita (Fig.

215).Aimagemicónica,muitoaoestilodeoutrasimagensdebustocomomesmo

temaexecutadaspelosdiscípulosdeGiovanniNiccolò,éreveladapeloafastamento

decortinasqueocultamapintura.Sobapintura,umaestruturaemmadeiralacadaa

preto e vermelho dispõe igualmente de um recipiente juntamente com algumas

peçasemporcelana.

Finalmente,numbiomboatribuídoaKanoNaizen,pertencenteàAgênciados

Assuntos Culturais do Japão, está representada a partida dos comerciantes

portuguesesdoportodeNagasaki.Nasegundafolhaacontardaesquerda,opintor

japonêsrepresentouumaestruturadebaseoctogonalcoroadaporumacúpula,na

qualseabreumaporta,revelandoumaltarcomumapinturadeNossaSenhoracom

oMeninoeumamesacomdoiscandelabrosaladearumapíxide(Fig.216).

Outrosaltarescristãosencontram‐serepresentadosemmaisdoisbiombosdo

século XVII pertencentes à Fundação Mary and Jackson Burke e à Smithsonian

Institution. Contudo, o estado de conservação do primeiro e a reduzida escala de

representação do segundo não permitem identificar o tema iconográfico das

pinturas do altar, provavelmente de Nossa Senhora com o menino ou de Cristo

Salvador doMundo. Apesar disso percebe‐se que o altar é composto apenas por

umapintura,provavelmenteicónica,umarcazouestruturaemmadeiralacada,que

fazdealtareserviadesuporteacandelabroseoutrosrecipientes.

A representação de divindades budistas e de bodhisattvas era comum nos

altaresdevocionaisdo Japão juntamentecomumconjuntodeutensílios rituais4,o

quemotivouosmissionárioscristãosaconceberemosaltarescristãoscomamesma

configuração.Nestesentido,épresumívelqueosoratóriosnamban,dependurarou

4YoshitomoOkamoto.TheNambanartofJapan.NewYork,Tokyo:Weatherhill/Heibonsha,1972,p.96

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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depousar,constituídosporumapinturainseridanumaestruturaemmadeiralacada

comduasmeiasportasque ocultama imagemquandose fecham, sedestinassem

aoscompartimentosprivadosdasresidênciasdecristãosmastambémparadevoção

colectivanasigrejascristãs.

Efectivamente,aocultaçãodaimagemserveemgrandemedidaparaproteger

as imagens da fúria iconoclasta durante a proibição do Cristianismo, tal como o

demonstra um pequeno oratório portátil de suspender com uma imagem de S.

Domingos. Ao contrário dos tradicionais oratórios namban, a imagem de S.

Domingoséocultadaporumaportadeslizante,quesemovepeloladodireito.

Pensamosqueosrestantesoratórios,comasduasmeiasportasrepresentam

uma combinação entre o gosto europeu pela decoração das lacas japonesas,

juntamentecomalgunselementosdaarquitecturaeuropeia,eostradicionaisaltares

budistas, denominados butsudan. Os butsudan são normalmente estruturas em

madeira com um corpo principal vertical, onde se coloca a divindade, com duas

meiasportas(zushi).Algunsexemplarestêmespaçonaparteinferiordoaltar,onde

eram colocados todos os instrumentos que serviam o ritual, nomeadamente um

vasocomflores,umqueimadordeincensoeoihai,comonomedosantepassados5.

Tradicionalmente, os butsudan continham no interior imagens, maioritariamente

escultura de vulto, de Amida Buddha ou dosbodhisattvas Kannon e Jizō Bosatsu,

umadasmaisveneradasdivindadesbudistas,que respondeàsprecesdosdevotos

queprocuramsaúde,sucessoeprotecçãoaosdescendentes.Emboraexistamainda

hojealgunsbutsudancomoelementosintegradosnopróprioespaçoarquitectónico

dascasas(Fig.217),nasuamaioriaconstituemestruturasdemobiliárioàsquaisse

assemelham muitas das papeleiras com altar que eram transportadas nos navios

portugueses(Fig.218eFig.219).

5Cf.TheTraditionalCraftsofJapan:WritingutensilsandhouseholdBuddhistaltars,editedbyTadashiInumaruandMitsukuniYoshida,Vol.8.Tokyo:Diamond,1992,pp.124‐144.

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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DuranteoPeríodoKamakuraeMuromachi,apenasaaltaaristocraciapodiater

altares privados nas suas residências, tendo‐se popularizado durante o Período

Momoyama/Edo,nãosabemosseporinfluênciadoCristianismonoJapão.

Osbutsudanestavammuitasvezesrelacionadoscomotokonoma,umespaço

de recepção aos ilustres convidados, com decoração minimalista constituída por

uma pintura pendurada (kakemono), jarras de flores ou um bonsai e pequenos

objectos de arte, como porcelanas, lacas e outras cerâmicas (oshi‐ita)6. Esta

tendência está estreitamente relacionada com a Seita do Budismo da Terra Pura,

devotaaAmidaNyorai.

Durante o Período Kamakura era pendurada uma pintura de uma divindade

budistaaocentrodadisposiçãoespacialdotokonoma,sobaqualeramcolocadosos

objectos,nomeadamenteumvasodeflores,velaseumqueimadorde incenso.No

entanto, esta disposição e decoração do tokonoma foi modificando durante o

PeríodoMuromachieMomoyama,substituindo‐seapinturabudistapor inscrições

caligráficas de inspiração Zen, até uma laicização do espaço onde, praticamente,

apenasseexpunhamosobjectospreciosos7.

Todavia,parece‐nospresumívelquenofinaldoPeríodoMomoyamaeiníciodo

Período Edo ainda persistissem tokonoma com as características do Período

Kamakura, sobretudo pela evidência iconográfica que os biombos namban

apresentam na representação do interior das igrejas cristãs. A nosso ver, a

representaçãodaigrejanobiombodoMuseudeKobe,naqualsecelebraumamissa

comcristãos japonesesaocupar distintosespaçosno interioreaténoexterior da

igreja, corresponde ao cumprimento do protocolo de recepção no zashiki, que

colocaomaisilustreconvidadonumaposiçãoprivilegiada,frenteaotokonoma,isto

6DanielSosnoski.IntroductiontoJapaneseculture.Boston:TuttlePublishing,1996,p.76.7Cf.WilliamCoaldrake.“EdoarchitectureandTokugawaLaw”.IN:MonumentaNipponica,vol.36,nº3 (Autumn,1981),pp.235 ‐ 284. Fujimori Terunobu. “Traditionalhousesand the Japaneseviewoflife”.IN:JapanEcho,vol.17,nº4(Winter,1990),p.71.

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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é,aoaltar.Existe,portanto,umarelaçãodeproximidadeemrelaçãoaotokonomo,

deacordocomoestatutosocial,ocontextodatradiçãobudista.

Poroutrolado,nobiombodasColecçõesImperiaisdeTóquio,apinturaquese

encontranoaltardaigrejarepresentaCristoSalvadordoMundosemqualquertipo

de elemento iconográfico cristão, como a cruz ou o globo, envergando apenas o

tradicionaltrajedosmongesbudistas,corresponde,concretamente,àiconografiade

AmidaNyorai.Comoreferimosanteriormente,foiaSeitadoBudismodaTerraPura,

devota a Amida Nyorai, que estabeleceu uma relação entre o butsudan e o

tokonoma,transformandoesteespaçonumaltarcomumapinturadeAmidaNyorai

sobre uma composição de cerâmicas, velas e umqueimador de incenso, tal como

vemosnarepresentaçãodoaltardaigrejacristãnobiombodasColecçõesImperiais

deTóquio.

ÉimportantelembrarqueosmissionáriosdaCompanhiadeJesusprocuraram

adaptarosrituaiscristãosàscelebraçõesreligiosasbudistas.Em1565,GasparVilela

assistiuaumaprelecçãodeumbonzo,paradepoisadaptaresta formade sermão

aos rituais católicos8. Esta ideiavaideencontro aumaadaptaçãopor similitudee

conveniência, à imagem, como já vimos, dos Sutras de Jesus, compilados pelos

cristãosNestorianosoudostextosvédicosqueosmissionárioseuropeusdoséculo

XVIusaramparaadaptartextoscristãos.Nestecontexto,éverosímilquetambéma

organização do espaço de oração, individual e colectiva, tenha sido adaptado à

realidade japonesa, inclusivamente por existirem indicações específicas de

Alessandro Valignano para que o interior das igrejas seguisse o modelo da

arquitecturajaponesa.

8 Sobre a acção dos Jesuítas na adaptação aos rituais budistas e cultura japonesa vide. AlexandraCurvelo.Nuvensdouradasepaisagenshabitadas.AartenambaneasuacirculaçãoentreaÁsiaeaAmérica:Japão,ChinaeNova‐Espanha,c.1500‐1700.Lisboa:TesededoutoramentoapresentadaaoDepartamentodeHistóriadaArtedaFaculdadedeCiênciasSociaiseHumanasdaUniversidadeNovadeLisboaparaaobtençãodograudeDoutoremHistóriadaArte,2008,pp.247ess.

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2. Aconveniênciaconceptualeformalentreartecristãebudistaapós1639

AsconsequênciasavassaladorasdarebeliãodeShimabara,comomassacrede

milhares de cristãos japoneses que se recusaram a pisar os fumi‐e fundidos em

bronzecomimagensdeNossaSenhoraedeCristocrucificado,marcaramoiníciode

umlongoperíodo,duranteoqualoskakurekirishitan(cristãosocultos)expressaram

asuaespiritualidadenaclandestinidade.Asonegaçãoespiritualdoscristãosmarca

um capítulo fundamental do ponto de vista da produção de iconografia cristã no

Japãoenaformacomofoidissimuladanasestruturasderepresentaçãodopróprio

Budismo, revelando conveniência formal e conceptual entre o Cristianismo e o

Budismo.

Destaforma,duranteosséculosXVIIeXVIII,asesculturasdeKannoncomuma

criança no colo e / ou acompanhada por Shan Tsai e Long Nu tornam‐se

extremamente populares no Japão, como uma forma dissimulada de devoção à

VirgemcomoMenino.ConhecidasporMariaKannon,estasesculturaseram,nasua

maioria, feitas em porcelana nos fornos de Dehua, na Província do Fujian, e daí

exportadasparaoJapãoduranteaprimeirametadedoséculoXVII(Fig.220).Estas

imagens,juntamentecomoutrasimagensdedivindadesbudistaseramcomunsnos

altares(butsudan)dascasasparticulares.Apartir1640,quandooJapãosevoltoua

fechar sobre si mesmo, os fornos de porcelana de Hirado procuraram suprimir a

lacunadeixadapelaimportaçãodeblanc‐de‐chineprovenientedoFujian1(Fig.221e

Fig.222).AsesculturasdeMariaKannonemporcelanadeHiradodistinguem‐sedos

blanc‐de‐chine pelaaberturadeumpequenoorifícionabase,emcontraste coma

1 Robert Batchelor. “On themovement of porcelains: rethinking the birth of consumer society asinteractions of exchange networks, 1600 ‐ 1750”. IN: Consuming cultures, global perspectives:historical trajectories, transnational exchanges, edited by John Bewer and Frank Trentmann. NewYork:Gerg,2006,p.102.

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abertura total das porcelanas do Fujian. Por outro lado, também a iconografia se

distingue, considerando que os modelos de representação de Maria Kannon em

porcelana de Hirado evoluem para ummodelo da divindade sentada apenas com

umacriançanocolo.AausênciadeShanTsaiedeLongNudistancia‐seligeiramente

dos modelos da divindade budista em detrimento de uma correspondência aos

protótiposdevocionaisdoscristãosjaponeses.

Ainda no contexto da iconografia mariana conserva‐se ainda um pequeno

oratórioportátildeformatocilíndricoqueconservanoseuinteriorumaimagemde

NossaSenhora(Fig.223).Ooratóriofoiconcebidodeformaapermitiraocultação

totaldaimagematravésdarotaçãoquetapaaaberturaatravésdaqualseconsegue

veraimagem.Dopontodevistaformal,estetipodeoratóriosdeformacilíndrica,de

carácter portátil, são comuns no contexto do Budismo japonês, encontrando‐se

algunsexemplaresnoBritishMuseumconsagradosàdevoçãodeKannon(Fig.224).

Outros exemplares em vários museus apresentam esculturas de vulto de Jizō

Bosatsu ou da trindade composta por Amida Nyorai ladeado por Kannon e Seishi

Bosatsu(Fig.225).Aúnicadistinçãoéqueosoratóriosportáteisbudistassefecham

atravésdeduasportasemmeiacana,nasquais,no interior,sãorepresentadosos

bodhisattvas.Certamente,aresoluçãoformaldooratórioportátilcomaimagemde

Nossa Senhora corresponde a uma necessidade de ocultação e dissimulação da

devoçãoespiritualeàcondiçãoclandestinadoCristianismo.

Odesenvolvimentodeumaartedissimulada levouaquemuitasdas imagens

dedevoçãocristãtenhamchegadoaosnossosdias,dequeéexemploapinturade

Nossa Senhora das Neves que se manteve oculta praticamente até ao século XX,

quandofoidoadaaoMuseudosMártiresdeNagasaki.TalcomoapinturadeNossa

Senhora das Neves, que se manteve dobrada em várias partes e provavelmente

escondida num compartimento secreto, existem imagens budistas que ocultavam

símbolos cristãos.NoMuseuda IgrejaCatólica deOura,emNagasaki, encontra‐se

umaesculturaeumaplacaquerepresentamAmidaNyoraie,naparteposterior,tem

umcrucifixoemrelevo,imperceptívelaoolhardeumconvidado.Outrasesculturas

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OséculoNambaneaArteKirishitan

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deAmidaBuddhacomumacruzemrelevonas costasencontram‐senoMuseude

NossaSenhoradeAmakusaenoKirishitanHolocaustMemorial.

A relação intrínseca entreAmidaBuddha e a cruz torna‐se evidente quando

vemosumcrucifixoembronzefundido,comaproximadamente25X20cm,comum

relevodeAmidaNyoraisentadoemmeditação(Fig.226).Deacordocomatradição

do Budismo da Terra Pura, a salvação e a reencarnação no paraíso apenas se

conseguia através da graça salvífica de Amida Nyorai, o Buda da Terra Pura do

ParaísoOcidental.Acreditava‐sequedepoisdamortedeumdevoto,Amidadesceria

do seu paraíso para conduzir o crente à Terra Pura, representando um ideal de

Salvação2.Amitābha,oBudacelestial,éaprincipaldivindadedaSeitadoBudismoda

Terra Pura, extremamente enraizada durante o períodoMomoyama / Edo, figura

principaldatrindadebudistaeresponsávelpelasalvaçãouniversaldahumanidade.

Desta forma, verifica‐se que há uma intencional equiparação e similitude entre o

Buda Celestial e Cristo, o salvador universal que desceu ao limbo para salvar os

justosdoInferno.

Mais interessanteaindaéumaesculturadeMariaKannonoueventualmente

deJizōBosatsu,umavezqueamãodireitaaparentaestarnaposiçãodeagarraro

báculo,quefoiencontradanointeriordeumaesculturadeAmidaNyorai(Fig.227).

Aescultura,queagoraseconservanoTesourodacidadedeKawaguchi,Prefeitura

deSaitama,demonstraefectivamentequeaiconografiadeJizōBosatsufoiadoptada

e alterada pelos kakure kirishitan confirmado pela ocultação da imagem num

compartimento secreto no interior da mais importante divindade do Budismo no

Japão.

Esta ideiaécorroboradapeloentalhedeJizōBosatsuemrelevo, juntamente

comoutraiconografiacristã,naslanternasdosjardinsdasfamíliascristãsdoJapão.

Denominadas porKirishitan‐dōrō, estas lanternas caracterizam‐se por umpedestal

cruciforme, embora os braços sejam significativamente mais curtos de modo a

2Cf.DepoisdosBárbaros II.ArtenambanparaosmercadosJaponês,PortuguêseHolandês,editadoporJorgeWelsheTeresaVinhais.Lisboa:GaleriaJorgeWelsh,2008,pp.278‐281.

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dissimular a orientação espiritual do seu proprietário. Na maior parte dos casos,

nomeadamentenosKirishitan‐dōrōqueseencontramnoTemploTaisoji(Shinjuku)e

no jardimGyokusen‐en(Kanasawa),contêmuma imagememrelevodeumafigura

com uma criança ao colo, numa clara referência a Kannon ou a Jizō Bosatsu.

Contudo, dadas as características fisionómicas da figura, sobretudo a expressão

arredondada da cabeça, pensamos que se trata de uma representação de Jizō

Bosatsu.Estetipoderepresentaçãoanatómicaassociadaaorelevosobreestelade

granitoécomumàiconografiadeJizōBosatsu,nomeadamenteenquantoprotector

das crianças nos cemitérios, como também na intercessão na boa viagem nas

bermasdasestradas.Comovimosanteriormente,natradiçãodaSeitadoBudismo

daTerraPura, JizōBosatsuéosalvadoruniversal,desceuao infernoparasalvaras

almasparaquepossamrenascernaTerraPura,guiandoasalmasqueoidentificam

com o seu báculo. Se pela protecção às crianças Jizō Bosatsu se identifica com S.

José, pelas capacidades salvíficas no derradeiro fim da Humanidade e pela forma

como guia as almas na descida ao Inferno, Jizō Bosatsu pode, eventualmente, ser

equiparado a Cristo. Alguns dos Kirishitan‐dōrō incluem ainda na base, que se

encontra enterrada, o monograma da Companhia de Jesus, indicando que

provavelmenteterãopertencidoaumaresidênciajesuíta.

Em síntese, a arte cristã produzida no Japão, na sua maioria por artistas

japoneses, reflecte característicasúnicasnoquadrodaartemissionáriaem todaa

Ásia.Oscontornosdosprocessosdealteridadedarepresentaçãodossímboloseda

linguagemimagéticadoCristianismoemsimbioseemiscigenaçãocomasestruturas

do sagrado budista elaboram‐se a partir de uma relação simpática baseada em

arquétipos do imaginário universais permitindo a tradução espontânea dos

significados. Percebemos também que, pela relação intrínseca ao nível dos

arquétipos analisados, se verifica uma tendência de paralelismo com as principais

divindades e rituais da Seita do Budismo da Terra Pura. Não só se confirma uma

conveniência conceptuale formalentreNossaSenhoracomoMenino /Kannone

Kariteimo; S. José / Jizō Bosatsu; Jesus Cristo (Cristo Salvador do Mundo) / Jizō

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OséculoNambaneaArteKirishitan

405

BosatsueAmitābha,comotambémaoníveldosrituaisedaconfiguraçãodosaltares

dedevoçãodoBudismodaTerraPura.

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407

Conclusão

Asquestõesemtornododiálogointerculturaledosfundamentosdasrelações

entreospovosmantêm,hoje,umaactualidadequetempreocupadopensadorese

teóricosdediversasáreasdosaber.

ÉumfactoqueauniversalidadehumanaeaconsciênciacognitivadoHomem

constituemumterrenocomumatodasasestruturascivilizacionais,sobreoqualos

condicionalismos do espaço e do lugar ditaram a organização estrutural das

sociedades,asuaexpressividadeespiritualeaafirmaçãodasuaidentidadecultural.

Efectivamente, é nesta dimensão universal da humanidade e na sua consciência

cognitivaquehabitamasmotivações simbólicasdo imaginário, a raízmatricialdos

esquemas da alegoria e os arquétipos que servem à construção dinâmica da

imagem.OsarquétiposJungianosrelacionam‐seaimagensmuitodiferenciadaspelas

culturase,nasquais,váriosesquemasdo imagináriosevêmconsolidar,numclaro

acordoentreascapacidadesdominanteseuniversais,eoprolongamentodestesno

tecido cultural. Neste contexto, estamos perante dois níveis da construção da

imagem, em que o primeiro se caracteriza pelo universalismo e transversalidade,

enquanto o segundo diz respeito a uma formalização da imagem, configurada de

acordo com um conjunto de pressupostos culturais que definem a diversidade

identitária dos povos. Diríamos nós que o primeiro pertence ao domínio da

consciênciaedosmecanismosdaemoção,aquechamamos imagemmatricial, ao

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

408

passoqueosegundoseconsubstancianaconvergênciadeumconjuntodesaberes

quedefinemaidentidadeculturaldospovosdeumdeterminadoperíodooulugar,a

quechamamosimagemdinâmica.

Odiálogointerculturalpressupõeaidentificaçãodeestruturasdeconsonância

e consentimento ou, noutro sentido, um reconhecimento da diferença e da

incompatibilidade. Ao longo da história, o contacto entre diferentes povos deu

ênfaseaumentendimentodooutro,comvistaàassimilaçãodetodasascoisasque,

potencialmente, poderiam culminar numa consolidação e enriquecimento do

conhecimento. Por outro lado, esse entendimento do outro poderá ter como

objectivo o conhecimento das fragilidades estruturais dooutro, de forma a anular

qualquer ameaça de hegemonia política, militar, diplomática, cultural, religiosa e

artística.

Asconvicçõeséticas,políticasereligiosasconstituemospilaresparaodiálogo

intercultural, namedida em que as estruturas sociais organizadas se caracterizam

porumapulsãonaturalparaadefiniçãodashierarquiasdagovernaçãotemporale

tambémespiritual.

NocasoconcretododiálogointerculturalentreaEuropaeaÁsia,percebemos

queasconviçõesreligiosasocuparamumlugardeproeminência.Olegadoculturale

artísticoresultantedapresençadecristãosnestorianos,nacorteimperialdadinastia

Tang, e que se prolongou até à dinastia Song, constitui hoje um património

riquíssimo,ilustrativodeumsincretismoreligiosoedeumaconvivência,sobretudo,

entreoCristianismoeoBudismo.Maistarde,asmissõesfranciscanaslideradaspor

JoãodeMontecorvinoàcortedeKhubilaiKhan,equeculminaramnafundaçãodo

primeiroBispadonaÁsia, demonstraramevidênciasdeumaprazíveldiálogoentre

distintas tradições religiosas,nasprincipaisProvínciasdoSuldaChina. Finalmente,

num terceiro momento, as missões católicas, sob a jurisdição do Padroado

Português do Oriente ou da Propaganda Fide, dinamizaram um diálogo inter‐

religiosoàescalaglobal,cruzandoosprincipaisfundamentosdoCristianismocomo

Hinduísmo,oBudismo,oTaoismoeoShintoismo.

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Conclusão

409

A importânciaquea religiãoocupa no diálogo intercultural prende‐se coma

formadeorganizaçãodopoderespiritual,queseespelhanumidealdegovernação

temporal. A ideia da governação pela graça de Deus recupera um princípio de

sucessão dinástica de uma governação divina intemporal, que coloca o soberano

como legítimosucessor.Poroutro lado,aassociaçãodopoderespiritualaopoder

temporal assenta no facto de o soberano fazer derivar de Deus a sua autoridade

sobreossúbditosetodasascoisasdentrodoslimitesdosseusdomínios.

O carácter proselitista do pensamento religioso, tanto do Cristianismo como

também do Budismo, torna evidente o impulso das religiões em estabelecer uma

normativa e uniformidade, a partir da anulação das diferenças fundamentais ou,

eventualmente,atravésdeprocessosde similitudee conveniênciaqueevidenciem

umabasecomum,propíciaaodiálogo. Istoé, identificarosarquétipos, símbolose

esquemasuniversaisdo imaginárioque seencontramnas simplificaçõesnarrativas

domito.

Nestecontexto,ocarácterdidáctico,normativoeedificantedaartereligiosa,

na dimensão figurativa das narrativas sagradas, assume‐se como um meio

privilegiado para a instrução e difusão dos princípios fundamentais da religião.Na

Europa do século IV, na sequência da chamada querela das imagens, o Papa

Gregório I considerouqueas imagens sagradasdeveriamservirpara instruir todos

aqueles que não são capazes de ler as narrativas sagradas (instructio), para a

edificação espiritual e entendimento dos valores cristológicos (aedificatio e

instructio) e, finalmente, deveriam suscitar um sentimento de compaixão e

humildadedolorosa(compunctio),paraalémdeserviremdeornamentodacasade

Deus.

AdescobertadosNovosMundoseoreconhecimentodasoberaniaterritorial,

política e espiritual das conquistas ultramarinas do Rei de Portugal determinaram

umalargamentogeográficodaspretensõeshegemónicasdasmonarquiascristãs.Os

missionários cristãos que sobrevieram aos Novos Mundos reconheceram o papel

fundamental das imagens sagradas na mediação com o outro e na tradução

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

410

espontânea dasnarrativas sagradas.Praticamenteemsimultâneo,a25ª sessãodo

Concílio de Trento, em 1563, na sequência das teses protestantes e da própria

experiência missionária, reconhece a importância das imagens como instrumento

paraapráticadevocional.

Aforçavisualdasimagens,enquantofiguraçãodasnarrativas,dossímbolose

dosexemplosprocura, transversalmente, suprir a inculturados simples, instruindo

os que não sabem ler, mas também os que desconhecem completamente os

mistériosdafécristã.Poroutrolado,afiguraçãodasideiasactuaigualmentecomo

umaestratégiaderememoraçãoecelebraçãodosexemplosedificantesdahistória

sagrada. Finalmente, a construção visual das narrativas do mito consiste numa

estimulação sensorial que aproxima o devoto do verdadeiro significado que as

imagensrepresentam.

Assim,verificámosqueosprocessosdeconfluênciaealteridadedaartecristã

na Índia, na China e no Japão são determinados por um condicionalismo político,

socialereligioso.

Ascircunstânciaspolíticasesociaisemqueosmissionáriosseestabeleceram

nosdiferentesespaçosdeterminaramograude permeabilidadeeouaceitaçãoda

iconografia cristãnoseiodastradições locais.AafirmaçãodoEstadoPortuguêsda

Índia, na administração política, económica e espiritual de um vasto território ao

longo da Costa do Malabar, desde Moçambique ao Japão, tem continuidade na

motivação expansionista da Igreja Católica e na fundação de uma Res Publica

Christiana. Neste quadro, verifica‐se uma tendência integracionista e do

reconhecimentodeumahegemoniaculturalcristã,atravésdaanulaçãodossímbolos

e fundamentos das tradições locais. A destruição dos pagodes dos gentios e a

edificaçãodeigrejascristãsaomodoromano,àsquaissesomamasconversõesem

massaeumasériedeproibiçõesaoexercíciopúblicodosrituaishindus,consumama

ideiade integraçãoehegemonia,numclaroverticalismoantropológicoemrelação

ao outro. Em Velha Goa, permanecem de pé diversas igrejas construídas e com

estruturas retabulares em talha dourada à imagem e semelhança das mais

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Conclusão

411

importantes igrejas de Portugal e de Itália, dandoorigemàs célebres designações

“RomadoOriente”e“GoaDourada”.TambémemMacau,oprogramaiconográfico

da fachada‐retábulo da Igreja da Madre de Deus corresponde ao triunfo do

Cristianismo, através dos símbolos da Igreja Triunfante, e, do Proselitismo,

representadopelasprincipaisfigurasresponsáveispelaconquistaespiritualdaÁsia.

Nestesespaços,emqueefectivamenteseverificouumaadministração rigorosado

território por parte dos europeus, sublinham‐se os sinais exteriores a uma

hegemoniaculturalereligiosa.

Do outro lado da balança, em espaços de elevado controlo por parte das

autoridadeslocaisefaceàcoesãopolítica,culturalereligiosadospodereslocais,a

fragilidadeestruturaldasmissõescatólicaseaestratégiamissionáriacaracterizam‐se

por uma adaptação, acomodação e nivelamento antropológico no diálogo

intercultural e artístico. Vimos como o elevado interesse dos imperadoresmogóis

pela religião e iconografia cristã é, em rigor, motivado pela construção de uma

identidadeculturalconcentradanafigurado imperador.EnquantoAkbarpretendia

firmar uma aliançamilitar comos portugueses, os seus sucessores, Jahangir, Shah

JahaneAurangzeb,reconheceramopoderdossímbolosderepresentaçãodopoder

celestial e adaptaram‐nos em prol da propaganda política e divinização imperial.

Tambémnos reinadosdeKangxi, YongzhengeQianlong,osmissionárioseartistas

europeusforamimpelidosaumaadaptaçãoculturaleartística,nãohavendosequer

espaço a uma produção de arte cristã proporcional à presença e qualidade dos

artistaseuropeus.Noarquipélagonipónico,a reunificaçãopolíticaeadministrativa

do território, à qual se associa também o elevado poder dos bonzos, levou

Alessandro Valignano a determinar que todas as igrejas fossem construídas

respeitantoosprincípiosdaarquitecturalocal,demodoaasseguraracontinuidade

dasmissões.

Porsuavez,ocondicionalismoreligioso,comoqualosmissionárioseuropeus

sedeparamnosmaisdistintoslugaresdaÁsia,foideterminanteparaadefiniçãode

uma estratégia de conversão e de evangelização das populações locais. Desde os

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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anos imediatos à chegada dos portugueses à Índia, os missionários cristãos

demonstraramgrandeinteressenasreligiõeslocais,nomeadamentenoHinduísmoe

noBudismo.Comodesmonstramasfontescitadasaolongodonossoestudo,houve

momentos em que se pensou existirem aí cristãos, que prestavam culto a Nossa

SenhoraouatémesmoàSantíssimaTrindade.Osprincípiosdesimilitude,apartirda

analogia e da emulação dos significados e das formas, tornar‐se‐ia a base comum

paraoentendimentodosfundamentosdoCristianismoporpartedascomunidades

locais. Espontaneamente, os missionários cristãos procuraram e encontraram nas

narrativassagradasenarepresentação iconográficadessasnarrativas,osprincípios

universais e transversais aos comportamentos religiosos. A versatilidade visual e

ritual do Hinduísmo, do Jainismo e também do Budismo, através de um vasto

panteãoconsagradoadiversosaspectosfundamentaisdavidasocialdassociedades,

permitiu que osmissionários cristãos reconhecessemnas religiões e nas artes dos

outrospovosalgunsdosprincípiosfundamentaisdoCristianismo.NaÍndiaislâmica,

os missionários cristãos procuraram, esporadicamente, estabelecer uma

proximidade sustentadanumahistória comum, partilhandoalgumasdasnarrativas

sagradase,atémesmo,demuitaspersonagenselugares,apesardeteremhistórias

esignificadosdistintos.Finalmente,ocarácteranimistadoTaoismoedoShintoísmo,

comumadimensãoespiritualconcentradaemtornodoselementosdoCosmoseda

natureza, não se reflecte numa larga expressão iconográfica como assistimos no

Hinduísmo ou no Budismo. Concretamente, é por influência da introdução do

Budismo, na China e no Japão, que a religião popular, em ambos os casos, veio a

assumirumaexpressividadeiconográfica.Assim,é,sobretudo,naartehindu,naarte

budista (na Índia, na China e no Japão) e na arte jaina (sobretudo no Gujarat) e,

menosassumidamente,naarte taoistaqueosmissionárioseuropeusencontraram

pontos de aproximação, formais e conceptuais, que deram lugar a uma arte

miscigenada.

Por outro lado, o permanente recurso a artistas locais que trabalharam

activamente não só na produção de iconografia avulsa, mas que também

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Conclusão

413

colaboraram regularmente na construção e reformulação interior das igrejas,

determinou que o imaginário e os motivos das religiões asiáticas confluíssem na

representação dos temas cristãos. Esta acomodação e adaptação resultam numa

interpretaçãodossignificadosedashistóriassagradasdoCristianismo,apartirdas

estruturasderepresentaçãoartísticadasreligiõesasiáticas.

Nestequadrodealteridadeartística,istoé,deumaartequesecaracterizapela

suarelaçãointrínsecaedeinterdependênciacomasrealidadesculturaiseartísticas

dos outros povos, os processos de confluência e miscigenação da arte são

dinamizadosporprincípiosdeanalogiaedejustaposiçãodesímbolos,istoé,deum

confrontodesemelhançaspelacomparaçãodesignificadosidênticos.Acombinação

dos símbolos da cruz e do lótus, nas estelas nestorianas, consiste numa

representação de equivalências simbólicas enquanto signos primordiais do

Cristianismo e do Budismo e que aludem à ideia de uma nova Era espiritual. É

importante mencionar que a cruz representa a Ressureição de Cristo, a terceira

PessoadaSantíssimaTrindadee,nomesmosentido,édolótusquenasceBrahma,a

terceirafiguradaTrimurtihindu.

Em diversas ocasiões, a confluência artística resulta de uma apropriação de

elementos iconográficos pelo reconhecimento de significados idênticos.

Deliberadamente, por indicação dos missionários cristãos ou, eventualmente, por

umaaproximaçãoàrealidadeartísticaereligiosadosartistasasiáticos,elementosda

iconografia hindu, budista, jaina e também taoista foram recontextualizados em

representaçõesdetemascristãos,substituindo,porvezes,ossímboloscristãoscom

o mesmo significado. Neste diálogo intercultural e artístico, a confluência

iconográfica, pelo princípio de substituição, verifica‐se não só na arte cristã mas

também nas artes asiáticas. Ainda no contexto da apropriação iconográfica, é

fundamental referir a importância que a linguagem simbólica e alegórica da

iconografia cristã teve, sobretudo, junto das elites imperiais da China e da Índia

Mogol,resultandonumasignificativamudançadosesquemasderepresentaçãodas

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ArteeAlteridade.ConfluênciasdaartecristãnaÍndia,naChinaenoJapão,séc.XVIaXVIII

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artes locais, seja ao nível da composição, seja ao nível da inclusão de iconografia

cristãemretratosdesoberania.

Finalmente, a confluência artística com base numa aproximação e

reconhecimento da imagemmatricialedosarquétiposuniversaisassume‐secomo

uma tradução espontânea dos significados intrínsecos da arte cristã na Índia, na

Chinaeno Japão.As similitudes formaisdosprolongamentos culturaisda imagem

dinâmica, que se seguem à imagem matricial, são suficientemente evidentes de

modoapermitirlançaroequívocoe levaraumreconhecimentoporemulação.No

decorrerdonossoestudo,percebemosqueoreconhecimentoeidentificaçãomútua

das imagensmatriciaisdefinemumpadrãodeequivalênciasentreaVirgemMaria,

Kali,Yashoda,Lakshmi,A‐Ma,Guanyin,KannoneKariteimo;entreoMeninoJesuse

Krishna;entreaSantíssimaTrindade,aTrimurtihindueatrindadebudistacomposta

porAmida,KannoneSeishi;entreaSagradaFamíliaeJizoBosatsu;entreosanjos,as

apsaras e outras figurações axiológicas do Hinduísmo, do Budismo e do Taoismo;

entreCristoSalvadordoMundoeobodhisattvaAvalokitesvara.

As imagens matriciais da maternidade, da protecção maternal, da criança

herói,daconcepçãotriândicadasdivindades,dorenascimentoesequênciaentrea

ordemeocaosoudoselementosaxiológicosedoSalvadordoMundoconstituem

ideias universais, colectivas e comuns a toda a humanidade e que servem de

plataforma comum ao diálogo intercultural e inter‐religioso. É a partir deste

entendimentoereconhecimentodooutrocivilizacionalqueadiferençasediluiese

constróiumaconsciênciadeproximidade.

Osprocessosdeconfluênciaealteridadedecorrentesdodiálogo intercultural

permitem‐noscompreenderdeumaformamaisobjectivatantoasnossasestruturas

antropológicasecriativas,comotambémdemonstraquenocontactocomooutro,

esseoutrotambémsomosnós.

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Anexoiconográfico