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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU” PROJETO A VEZ DO MESTRE A FAMÍLIA – UM AGENTE DE INCLUSÃO/EXCLUSÃO PSICOSSOCIAL DO DOENTE MENTAL MARIA ODETE GARCIA SOBREIRA DE ARAÚJO ORIENTADOR: PROF. HENRIQUE PEREIRA NITERÓI 2004

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

A FAMÍLIA – UM AGENTE DE INCLUSÃO/EXCLUSÃO PSICOSSOCIAL DO

DOENTE MENTAL

MARIA ODETE GARCIA SOBREIRA DE ARAÚJO

ORIENTADOR:

PROF. HENRIQUE PEREIRA

NITERÓI

2004

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2UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”

PROJETO A VEZ DO MESTRE

A FAMÍLIA – UM AGENTE DE INCLUSÃO/EXCLUSÃO PSICOSSOCIAL DO

DOENTE MENTAL

Apresentação de monografia à Universidade Cândido Mendes como condição prévia para a conclusão do Curso de Pós-graduação “Lato Sensu” em Terapia de Família. Maria Odete Garcia Sobreira de Araújo

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Agradeço,

Aos amigos Eduardo Monteiro Fuchshuber

e sua mamãe Ângela pela colaboração.

Ao psicanalista Odir Camacho Fernandes.

As colegas de terapia de família da primeira

turma em Niterói: Fabiana, Theresa, Leila,

Marcele, Eliane, Maria das Graças em

particular à Alexandra pelo companheirismo

demonstrado.

Ao corpo docente pela contribuição teórica.

A todos que contribuíram direta e

indiretamente para confecção desse

trabalho acadêmico.

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Dedico às minhas filhas Patrícia e

Adriana, pela paciência, incentivo e

carinho constante para comigo.

À minha mãe Esmeralda, pela

persistência em motivar os filhos à

produção. Aos meus seis irmãos

Francisco Jr., Maria do Socorro, Maria

Esmeralda, Alexandre, Juliana, Liliana e

aos meus sobrinhos. Ao meu irmão Tito,

(in memorian) que mesmo sendo

diferente não perdeu a referência da

família e também aos seus filhos.

Aos meus cunhados e cunhadas, tios e

primos.

Dedido àquelas famílias que lutam para

oferecer ao familiar doente ou não, uma

forma melhor de viver.

Dedico aos meus pacientes e as suas

famílias.

Dedico a todos que amo,

E finalmente, ao meu pai Francisco (in

memorian) que me ensinou a ver poesia

nas coisas mais estranhas.

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“Quando a gente ama, é claro que a gente cuida”

(Peninha)

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RESUMO

O movimento da vida coletiva transforma a vida familiar. Saiu-se cada vez

mais de um espaço público para um espaço privado.

Viver com a loucura no espaço público não era nenhum incômodo.

Mas houve um momento em que a sociedade se dividiu. As diferenças

começaram a causar estranheza. As famílias se fecharam em habitações

intimistas. Ficou mais difícil conviver com as diferenças. O louco acaba excluído

da família. É exilado de um convívio social. Capturado pela psiquiatria como

doente mental, perde sua autonomia passa a não ter razão. É um ser

“desrazionado”. Perde sua cidadania.

Nossa sociedade não está preparada para o desafio de acolher e cuidar

das pessoas que adoecem mentalmente com gravidade.

O universo desses familiares de pacientes com transtorno mental severo

reflete uma realidade de preconceito e exclusão. Aproximar-se dessas famílias

implica tomar contato com sentimentos de muita dor e sofrimento.

“Trabalhar no sentido de procurar compreender o paciente e sua família

em relação às diversas dimensões existenciais envolvidas sugere uma

psiquiatria que não pode ser definida em si mesma, fora de suas

implicações com outros saberes, com outros territórios do conhecimento

humano”. (Melman, 2002, p: 15-17).

Diante do incômodo, frente ao doente mental, os trabalhadores de saúde

mental, dentre eles, o terapeuta de família, promovem uma mudança de

paradigma. Como estratégia, a saúde da família (modelo assistencial do SUS,

cujas condições, organização e funcionamento estão dispostos pela Lei 8.080 de

19. 09. 1990, cuja participação dispõe na Lei 8.142 de 28.12.1990, e conforme

NOB - Norma Operacional Básica do SUS (D.O.U. de 06.11.1996) e cujos ideais

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7estão na Constituição Federal 1988); é usada para “cuidar” do doente mental na

sua integralidade, devolvendo-lhe sua cidadania.

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................ 09 Capítulo 1 – A Família ............................................................................. 10

1.1 – Origens ................................................................................. 10

1.2 - Histórico ............................................................................... 14

Capítulo 2 – O Doente Mental ................................................................. 16

2.1 – Reforma Psiquiátrica ........................................................... 16

2.2 – A Perda da Realidade ......................................................... 23

Capítulo 3 – O Papel do Terapeuta Familiar ........................................... 26

3.1 – Família – Um dos Agentes de Inclusão/Exclusão

Psicossocial do Doente Mental ........................... 26

3.2 - Princípios do SUS ................................................................ 28

3.3 – Mudanças de paradigmas ................................................... 30

Conclusão ............................................................................................... 32 Referências Bibliográficas ...................................................................... 34 Anexo ..................................................................................................... 36

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INTRODUÇÃO

A reforma psiquiátrica no Brasil, já data dos primeiros anos do século XIX.

“As opiniões são unânimes em situar o marco institucional da

assistência psiquiátrica brasileira em 1852”. (Resende, 2001,p: 3).

Embora, o incômodo dos trabalhadores de saúde mental, detecta que já é

antigo o mal estar na cultura quanto ao doente mental, essa questão chega ao

Brasil em meados do século XX.

Uma das críticas do século XX foi quanto ao asilamento. O movimento do

trabalhador de saúde se refere à apropriação médico-psicológica do doente

mental como aprisionamento da loucura – aquilo que aparece na cultura como

diferença irredutível.

João Ferreira da Silva Filho 1(2001, p: 76): cita em seu texto, A medicina, a

psiquiatria e a doença mental,

“Hoje é universalmente aceito o conceito da etnopsquiatria de que a

doença tem sua realidade e valor numa cultura que a reconhece como

tal”.

Se a sociedade, através da família, outrora, excluía o doente mental do

convívio social, agora, o Ministério da Saúde procura mudar o antigo paradigma

de limpeza, descontaminação bio-psicossocial, utilizando-se da estratégia de

saúde da família. Assim, pretende devolver ao doente mental o estatuto de

cidadão que lhe fora roubado, reabilitando-o na sua integralidade, isto é, através

do mesmo veículo que o excluiu, incluí-lo novamente: a família.

1 Ph.D em Epidemiologia Social. Coordenador do Mestrado em Saúde Comunitário da UFBa. Professor Adjunto do Departamento de Medicina Preventiva da FAMED – UFBa. Pesquisador II – C do CNPq.

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CAPÍTULO 1 – A FAMÍLIA

1.1 – ORIGEM

Segundo Luiz Carlos Osório (2002,p: 25), “A família é uma instituição cujas

origens remontam aos ancestrais da espécie humana e confunde-se com a própria

trajetória filogenética”.

Nos animais há também uma organização familiar quer entre vertebrados

ou invertebrados, mesmo que sob formas rudimentares. Do mesmo modo, na

espécie humana, encontram-se distintas formas de organização familiar.

Os componentes familiares de certos animais enfatizam o caráter universal

dos agrupamentos familiares e chamam a atenção para sua onipresença, não só

ao longo da evolução da espécie humana, mas também na de outros seres do

reino animal.

A origem etimológica da palavra “família” nos remete ao vocábulo latino

“famulos” que significa “servo” ou “escravo”, sugerindo que primitivamente,

considerava-se a família como sendo o conjunto de escravos ou criados de uma

mesma pessoa.

A raiz etimológica nos remete à natureza possessiva das relações

familiares entre os povos primitivos. Naquela época, os filhos pertenciam aos seus

pais a quem deviam suas vidas e os pais se julgavam com direito absoluto sobre

os filhos.

A noção de posse e a questão de poder estão, portanto, intrinsecamente,

vinculados à origem e à evolução do grupo familiar.

Inicialmente, as famílias se organizavam sob forma “matrilineares”. O papel

do pai era atribuído ao tio. Acreditava-se que essa “transferência” do papel do pai

era por desconhecer o papel do homem na reprodução.

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11Há também a hipótese do matriarcado ter sido conseqüência da vida

nômade dos povos primitivos. Os homens saiam à procura de alimentos e as

mulheres ficavam com os filhos.

Em algumas sociedades, uma das conseqüências do matriarcado, foi que

as mulheres tinham direito a propriedade e a certas prerrogativas políticas.

Segundo Osório (2002, p: 28), L. H. Morgan, antropólogo norte americano,

cuja tipologia familiar, ainda é referência para estudos sobre a família, pesquisou

que entre os iroqueses canadenses, no século XIX, as mulheres possuíam as

terras cultiváveis e as habitações, podendo vetar a eleição de um chefe, embora

não pudessem ocupar um cargo no conselho supremo.

Morgan nos lembra também a “família consangüínea” na qual não havia

interdição para o intercurso sexual entre os seres humanos. Nesta época, era uma

promiscuidade absoluta.

Na “família punalvana”, os membros de um grupo casavam com os de outro

grupo, mas não entre si. Aí, já acontece o “tabu do incesto” – impedimento de

relação sexual entre pais, filhos e irmãos.

Na “família sindesmática” ou de “casal”, há o casamento entre casais que

se constituem respeitando o tabu do incesto, mas sem condicionar sua ligação à

obrigatoriedade do casamento intergrupos. Caracterizavam-se pela coabitação de

vários casais sob autoridade matriarcal.

Com o advento da agricultura o sedentarismo emergiu o patriarcado,

fundado sob a autoridade absoluta do patriarca ou “chefe de família” que

geralmente vivia no regime poligâmico, com as mulheres habitualmente isoladas

ou confinadas em determinados locais.

A repartição de tarefas oriundas do advento da agricultura deu origem à

“família patriarcal”.

Paradigma da civilização do ocidente veio a “família monogâmica”, cujas

origens vinculam-se ao desenvolvimento da idéia de propriedade ao longo do

processo civilizatório. A fidelidade conjugal como condição para o reconhecimento

de filhos legítimos e a transmissão hereditária da propriedade, bem como o

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12estabelecimento da coabitação exclusiva demarcando território da parentalidade,

são os elementos emblemáticos da família monogâmica.

Como nos diz Luiz Carlos Osório (2002, p: 28), Engels, apoiando-se nas

idéias de Morgan, sustentou a tese de que a família monogâmica seria a primeira

família fundada não mais sob condições naturais e sim sociais. A monogamia é

visualizada sob a ótica do materialismo histórico, não como uma forma mais

evoluída da estrutura familiar e sim como a sujeição de um sexo a outro a serviço

do poder econômico.

Porém, as crises pelas quais a família vem passando levaram-na a muitas

mudanças e transformações.

Segundo Luiz Carlos Osório (2002, p: 44-45), Mark Pôster em sua “Teoria

Crítica da Família” cita quatro modelos familiares:

• Família aristocrática dos séculos XVI e XVII – baseada no respeito à

hierarquia social;

• Família camponesa dos séculos XVI e XVII – foi na família camponesa

“modelo patriarcal” que houve a renúncia à individualidade;

• Família burguesa do século XIX – renuncia ao corpo/mente. Os pais eram

os modelos de identificação. Lugar de laser, refúgio e intimidade.

Microcosmo privado;

• Família operária do século XIX – lugar de satisfação das necessidades

primárias, de alimentação e agasalho.

A estes quatros modelos, Luiz Carlos Osório (2002, p: 45) acrescentou

mais um:

• Família da “aldeia global”, século XXI - lugar de prover segurança física e

psicológica.

Atualmente, o Ministério da Saúde, conforme Costa e Carbone (2004, p: 33)

em Saúde da Família, classifica a família em quatro tipos:

• Família Nuclear: Dona-de-casa, marido ou companheiro e filhos do casal ou

de um deles;

• Família Uniparental: Dona-de-casa ou dono-de-casa e filhos;

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13• Família Alargada: Dona-de-casa e/ou marido, companheiro, filhos parentes

e amigos (agregados);

• Sem família: Pessoas que moram sozinhas.

Como vimos, podemos traçar um perfil polimórfico da família ao longo de

sua evolução sem esquecermos que a família é um agrupamento humano de

trocas e que suas estruturas e funções estão intrinsecamente vinculadas às

mudanças de paradigmas bio-psicossociais ao longo do processo civilizatório.

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1.1 – HISTÓRICO

Philippe Áries (1978, p: 191) em História Social da Criança e da Família,

fornece-nos dados das transformações que a família sofreu e do quanto de

pressão teve que tolerar.

O sentimento de família, inicialmente nascido e desenvolvido nas classes

abastadas dos séculos XV a XVIII, estendeu-se a todas as camadas. Deixava-se

cada vez mais, o espaço público para o espaço privado. A sociabilidade para o

individualismo. Mas, não foi o individualismo que triunfou, foi a família.

As pessoas viviam em um estado de contraste. O nobre não se importava

de conviver com a miséria, o vício com a virtude, o escândalo com a devoção.

A justaposição desses extremos, assim como não tolhia os ricos, não

humilhava os pobre.

A história de nossos costumes reduz-se em parte a esse longo esforço do

homem para se separar dos outros, para se afastar de uma sociedade cuja

pressão não pode mais ser suportada.

Por esse motivo, houve o momento em que a burguesia não suportou mais

a pressão da multidão, nem o contato com o povo. Cindiu: retirou-se da vasta

sociedade polimorfa para se organizar à parte entre suas famílias fechadas, em

habitações previstas para a intimidade, protegidas contra a contaminação popular.

A justaposição das desigualdades, outrora natural tornou-se-lhe intolerável.

A antiga sociedade concentrava um número máximo de gêneros de vida no

mínimo de espaço, a nova sociedade, ao contrário, assegurava a cada gênero de

vida em um espaço reservado.

As famílias conviviam umas com as outras num mesmo lugar.

A partir do séc XVIII até hoje, a intimidade da vida privada foi tomando lugar

em detrimento das relações de vizinhanças, de amizade ou de tradição.

O sentimento de família surge com as manifestações da mesma

intolerância diante da diversidade isto é, das diferenças.

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15Cada vez mais, os familiares tentaram atingir o imaginário de uma família

perfeita, sem doenças, limpa e impecável.

Logo, o sentimento de uma família perfeita, aponta para a descontaminação

e para uma política de limpeza (higienista). Desta forma, utiliza-se de um modelo

médico, no qual a doença deverá ser excluída e combatida da sociedade.

Isto nos leva a entender o incômodo da sociedade, que não sabia o que

fazer com o louco, já que ele passou a ser considerado doente. Apoiou-se na

medicina para um asilamento daquilo que lhe era estranho. O veículo que se

prestou para este favorecimento foi a família. Mas precisamente, a Saúde da

Família.

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CAPÍTULO 2 – O DOENTE MENTAL

2.1 – REFORMA PSIQUIÁTRICA

A Organização das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948,

reconheceu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, no seu artigo XII:

“Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua

família, no seu lar ou na sua correspondência, nem ataques à sua

honra. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais

interferências ou ataques”.

O incômodo dos trabalhadores de saúde mental trouxe novas idéias,

perspectivas e questões quanto ao tratar do doente.

“O modelo vigente, que concentra sua atenção no caso clínico, na relação

individualizada entre o profissional e o paciente, na intervenção terapêutica

armada (cirúrgica ou medicamentosa) específica, deve ser associado, enriquecido,

transformado em um modelo de atenção centrado na qualidade de vida das

pessoas e do seu meio ambiente, bem como na relação da equipe de saúde com

a comunidade, especificamente, com os seus núcleos sociais primários – as

famílias. Essa prática, inclusive, favorece e impulsiona as mudanças globais,

intersetoriais ” (NOB do SUS, item 9 - D.O.U. de 06.11.1996).

Conforme Ana Pitta (1996, p: 9), organizadora contextual de “Reabilitação

Psicossocial no Brasil”, a idéia de Reabilitação Psicossocial:

“... implica em uma ética de solidariedade que facilita aos sujeitos com

limitações para os afazeres cotidianos, decorrentes de transtornos

mentais severos e persistentes, o aumento da contratualidade afetiva,

social e econômica que viabilize o melhor nível possível de autonomia

para a vida na comunidade”.

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E Fernando Tenório (2001, p: 11), complementa nos dizendo que:

“... a reforma psiquiátrica é a tentativa de dar ao problema da loucura

uma outra resposta social...”. “Trata-se de agenciar o problema social da

loucura de modo a permitir ao louco manter-se na sociedade”

A saúde da família é a estratégia que o Ministério da Saúde conforme

Norma Operacional do Sistema Único de Saúde, no item 12.1.2, Incentivo aos

Programas de Saúde da Família – (PSF) e de Agentes Comunitários de Saúde –

(PACS); conforme Diário Oficial da União de 06/11/1996, escolheu para mudar

o paradigma do modelo assistencial do SUS a partir da atenção básica, iniciada

em 1991, com a implantação do PACS (Programa de Agentes Comunitários de

Saúde), tendo cada unidade o seguinte objetivo:

“Realizar atenção contínua nas especialidades básicas com uma equipe

multiprofissional habilitada para desenvolver as atividades de promoção,

proteção e recuperação da saúde, características do nível primário de

atenção”. (Costa e Carbone, 2004, p: 8)

A OMS, Organização Mundial de Saúde, em 1949, conceitua saúde como

sendo: “Um completo estado de bem-estar física, mental e social e não apenas

ausência de doença”.

Mas, foi em 1950 que houve a priorização excessiva da medicalização do

processo saúde/doença, em detrimento da prevenção e do conceito ampliado de

saúde.

Já em 1978, na Conferência de Alma Ata, na antiga União Soviética, foram

estabelecidas as estratégias da atenção primária à saúde, objetivando alcançar a

saúde para todos em 2000.

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18 Em 1986, na I Conferência Internacional de Promoção de Saúde, no

Canadá, na Carta de Otawa, foram enfatizadas a importância das dimensões

sócio-econômicas, políticas e culturais sobre as condições de saúde.

Cada vez mais foram ampliadas as condições e o processo de atenção à

saúde e não mais de saneamento da doença mental.

Desta forma as condições básicas de atenção ao doente mental foram

também se transformando.

A idéia de loucura muda. A doença mental, categoria criada pela psiquiatria,

quando da sua apropriação da loucura, passa a ser vista diferentemente.

Segundo Tenório (2001, p: 11), “a loucura é propriamente aquilo que

aparece no corpo social como não redutível a outras categorias que tentam dar

conta da diferença, do que aparece como incomodamente dissonante”.

Em 1992, na Agenda 21, inclui-se o conceito de cidade saudável, utilizando-

se a tríade saúde (vinculada à qualidade de vida), intersetorialidade e participação

popular, para promover a saúde (Lei 8.080, de 19.09.1990 -Título II - Capítulo II -

Art. 7º).

Assim a proposta do governo brasileiro elege a família como núcleo alvo em

território definido e agrega ainda os princípios da responsabilidade social,

interdisciplinaridade e intersetorialidade, além da vigilância em saúde.

Com isso define-se o que é e o que na é atenção básica.

• Atenção básica não é:

1 Saúde pobre, para pobres;

2 Sinal de baixa resolutividade;

3 Lugar para profissionais com baixa qualificação profissional.

• Atenção básica é (Lei 8.080, de 19/09/1990):

1 Serviço de alta qualidade e resolutividade;

2 Valorização da promoção e proteção da saúde;

3 Parte de um sistema hierarquizado.

Define-se também segundo o Ministério da Saúde, no documento “Saúde

da Família: uma estratégia para reorientação do modelo assistencial” (Brasília –

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191998), os objetivos da implantação do modelo de saúde da família, a saber (Lei

8.080, de 19/09/1990 e Norma Operacional Básica, item 4, Diário Oficial da União

de 06/11/1996):

• Prestar assistência integral, contínua, com resolutibilidade e boa

qualidade as necessidades de saúde da população adscrita;

• Intervir sobre os fatores de riscos aos quais a população está exposta.

• Humanizar as práticas de saúde através do estabelecimento de um

vínculo entre os profissionais de saúde e a população;

• Proporcionar o estabelecimento de parcerias através do

desenvolvimento de ações intersetoriais;

• Contribuir para a democratização do conhecimento do processo

saúde/doença, da organização dos serviços e da produção social da

saúde;

• Fazer com que a saúde seja reconhecida como um direito de cidadania

e, portanto, expressão de qualidade de vida;

• Estimular a organização da comunidade para o efetivo exercício controle

social.

Conforme a Norma Operacional Básica, itens 11.1.4 e 12.2.1, montaram as

unidades de saúde de família, segundo algumas diretrizes e conceitos próprios.

São eles:

• Adscrição da clientela – A quantidade de equipes profissionais depende do

número de famílias vinculadas a elas. Cada unidade é responsável pelo

acompanhamento da população que ela mesma cadastrou e vinculou

(adscrita). A cada equipe é destinada uma área entre 600 a 1000 famílias,

com um limite máximo de 4.500 habitantes por área.

• Cadastramento – Deve ser feito através de visitas domiciliares, conforme a

adscrição que lhe cabe.

• Integralidade e hierarquização. As unidades estão inseridas no primeiro

nível de ações e serviços do sistema local, dito atenção básica. Deverá

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20estar vinculada a rede de serviços, para que seja garantida a atenção

integral aos indivíduos e às famílias, e que eles possam ir e vir de um nível

para outro.

• Equipe multiprofissional – É composta, no mínimo, por um médico, um

enfermeiro, um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes

comunitários de saúde. Outros profissionais, como dentistas, assistentes

sociais e psicólogos, podem ser incorporados às equipes ou formar equipes

de apoio.

É esta fundamentalmente, a atenção básica que também deve ser

destinada ao doente mental.

Portanto, na nova clínica da reforma tem-se que tomar em consideração a

“pessoa” e a criação de condições que existem nos laboratórios assistenciais.

Primeiramente é necessário que se entenda que “a psicose é uma questão

de existência” (Tenório citando Cavalcanti, 1992, p: 262), e não uma doença. Isto

significa que não é apenas de sintomas que se fala. Embora os sintomas devam

ser acolhidos e trabalhados, diante das expectativas de vida do doente, pois a

psicose implica numa dificuldade de se estar no mundo. Da dificuldade que o

doente tem em reconhecer a si mesmo.

“O tratamento, portanto, não visa nem a restituir uma integridade mental

perdida ou a tornar o psicótico um neurótico, nem a ajustá-lo ao padrão

social vigente. O tratamento consiste “simplesmente” em acompanhar

aquele sujeito. Devolver ao sujeito um mínimo de qualidade de vida

dentro da sua condição de psicótico”. (Tenório, 2001, p: 60).

Trata-se de permitir ao doente sua reabilitação, sua autonomia e sua

contratualidade.

Reabilitação no sentido de lhe oferecer todas as possibilidades de

tratamentos disponíveis.

Autonomia tem uma representação singular para cada doente. Supõe que

cada pessoa deve ser reconhecida em um status próprio, não redutível a modelos

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21gerais de saúde, capacidade ou independência. Tem-se que pensar que para

cada doente mental há um tratamento diferente, portanto, tantos tratamentos para

quantos forem os pacientes.

E finalmente, devolver-lhe o poder de contratualidade, isto significa criar

condições para que “ele possa de alguma maneira, participar do processo de

trocas sociais”, (Tycanori, 1996, p: 56), lembra-nos Fernando Tenório.

“O manicômio é o lugar zero de trocas”. (Tenório, 2001, p.64)

Depois, é o próprio paciente que vai indicando que tipos de tratamento ele

precisa.

A tarefa está em criar as condições de uma clínica à altura dessa exigência.

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2.2 – A PERDA DA REALIDADE

Em sua XXIII Conferência, Os Caminhos da Formação dos Sintomas, (1917,

p: 419) nos diz:

“Para os leigos, os sintomas constituem a essência de uma doença, e a

cura consiste na remoção dos sintomas...” ”... eliminar os sintomas não

equivale a curar a doença.”, “Os sintomas, ... são atos, prejudiciais, ou,

pelo menos, inúteis à vida da pessoa, que se queixa como sendo

indesejáveis e causadores de desprazer ou sofrimento. O principal dano

que causam reside no dispêndio mental que acarretam, e no dispêndio

adicional que se torna necessário para se lutar contra eles. Onde existe

extensa formação de sintomas esses dois tipos de dispêndios podem

resultar em extraordinário empobrecimento da pessoa no que se refere

à energia mental que lhe permanece disponível e, como isso, influencia

na paralisação da pessoa para todas as tarefas importantes da vida.”

Ainda referindo-se aos sintomas, Freud (1917, p: 421-429) acrescenta-nos:

“Estes criam, portanto, um substituto da satisfação frustrada...“. Os

neuróticos estão ancorados em algum ponto do seu passado... ”. “... no

qual eram felizes.”. “Em geral, eles desprezam os objetos (de satisfação)

e, com isso, abandonam sua relação com a realidade externa...”. ”Em

lugar de uma modificação no mundo externo, essas satisfações

substituem-na por uma modificação no próprio corpo do indivíduo:

estabelecem um ato interno em lugar de um externo, uma adaptação em

lugar de uma ação”.

“Às vezes, os sintomas representam eventos que realmente ocorreram

... e por vezes, representam fantasias do paciente”.

Quando Freud nos diz isso, refere-se às lembranças infantis de pacientes

em análise, que podem estar sendo construídas ou recordadas. Acreditamos que

estas lembranças muitas vezes, podem ser falsas ou verdadeiras, melhor dizendo,

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24os sintomas representam lembranças de eventos que realmente ocorreram e

também de fantasias. No entanto, as lembranças destes eventos podem ser

adulteradas, o que nos mostra poder se igualar fantasia e realidade.

Em sua XXIII Conferência, Os Caminhos da Formação dos Sintomas, Freud

(1917, p: 430) acrescenta: “As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste,

com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo

das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”.

Mas, é importante relembrar, que a diferença entre a neurose e a psicose

não está na perda da realidade, visto que nos dois casos ocorre uma perda. A

diferença reside no substituo desta perda.

Em seu Esboço de Psicanálise, Freud (1940 p: 231), nos fala que:

”... o ego deve sua origem, bem como a mais importante de suas

características adquiridas, à sua relação com o mundo externo real”.

“... os estados patológicos do ego, nos quais ele mais se aproxima

novamente do id, fundamentam-se numa cessação ou num

afrouxamento (do ego) dessa relação com o mundo externo”.

“... a causa precipitadora da irrupção de uma psicose é ou que a

realidade tornou-se insuportavelmente penosa ou que os instintos se

tornaram extraordinariamente intensificados – ambas as quais, em vista

das reivindicações rivais feitas ao ego pelo id e pelo um mundo externo,

devem conduzir ao mesmo resultado”.

Isto quer dizer que diante da incompletude do ser humano e portanto,

diante da angústia que isso gera, a quantidade de contato psíquico que o indivíduo

pode manter com a realidade acaba dividindo o ego, trazendo-se estruturalmente

para o tratamento indivíduos neuróticos, psicóticos ou perversos.

Freud em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, (1924, p: 234)

nos diz: “que tanto na neurose como na psicose não só há uma relativa perda da

realidade, mas também um substituto para a realidade”.

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25A diferença é que na neurose a cena traumática é esquecida, há um faz de

conta, uma camuflagem. Na psicose, não há esquecimento e sim uma rejeição da

cena traumática. Na psicose substitui-se um acontecimento por outro.

Em A Perda da Realidade na Neurose e na Psicose, Freud (1924, p: 234)

cita:

“O novo e imaginário mundo externo de uma psicose tenta colocar-se no

lugar da realidade externa. Na psicose não há faz de conta, não há um

fragmento do fato para ligar-se a um significado outro”.

Não há aquilo que Freud chamou de “simbólico”.

Este é o motivo pelo qual o “doente mental”, assim aprisionado pela

psiquiatria, tem dificuldades em se relacionar. Tem manifestações específicas da

perda da realidade, tais como alucinações e delírios. Pratica suicídio e agride

fisicamente ao outro numa tentativa de reparação da perda da realidade, porém

não às expensas do Id, e sim fundamentalmente ele rejeita a realidade impondo-

se-lhe uma nova, sem as mesmas objeções daquela da realidade abandonada.

Todos nos relacionamos com pessoas em todo momento. Vamos fazer

compras em lojas, supermercados e etc. Vamos ao cinema. Temos uma vida

profissional. Fazemos nossa comida. Nos relacionamos biológica, afetiva e

socialmente.

O psicótico também. Só que sua relação é diferente, pois sua realidade

psíquica também é diferente. Portanto, sua relação com a realidade material é

outra.

Ora, onde está a doença aí?

Foi entendendo que existências diferentes podem conviver juntas que o

trabalhador de saúde mental se movimentou para que houvesse outro olhar de

“Saúde” para todos, e que todos individualmente possam ser acompanhados na

sua integralidade durante sua existência.

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CAPÍTULO 3- O PAPEL DO TERAPEUTA FAMILIAR.

3.1 Família - Um dos Agentes de Inclusão/Exclusão Psicossocial

do Doente Mental.

Diante das crises e mudanças novas formas de adaptações familiares se

estabelecem. As famílias transformam-se dando lugar a novos valores,

comportamentos e relações (afetivas, sociais e econômicas).

O louco tinha seu lugar, seu modo de agir e tinha um reconhecimento pela

sociedade e pela família. Trabalhava, podia dormir entre os familiares e tinha um

convívio social, e amigos. Tomava sol, somente quando quisesse. Andava sem

hora marcada. Comia quando tinha vontade. De alguma forma era dono do seu

desejo. Enfim, era um cidadão.

À medida que a sociedade foi se transformando e se tornando mais

intimista, a família sai do espaço público para o espaço privado.

O louco, assim chamado, por ainda ter o seu lugar no público, acaba sendo

excluído da família e exilado do convívio social, instituído como “doente mental”.

Desta forma perde a sua cidadania.

Ao asilar o doente mental, tornou-se claro, o incômodo da sociedade e da

família diante da loucura.

Saraceno (1999, p: 16) em Libertando Identidades – Da Reabilitação

Psicossocial à Cidadania Possível, nos fala de:

”... uma psiquiatria que não interroga a si mesmo... ...um tratar como um

entretenimento, no qual o doente mental pode ser entretido com

medicamentos, com conversas, com atividades recreativas, com

atividades ergoterápicas, com atividades criativas, etc, dentro dos

ambulatórios, dentro do hospital-dia, dentro da sua própria família.”

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Para Saraceno, (1999, p: 17)

“... a psiquiatra clínica e a terapêutica psiquiátrica constituem um

conjunto de pleonasmos (entretenimentos) ou danosos ou indiferentes,

raramente úteis enquanto que a quebra do entretenimento constituem a

fonte que deve ser conhecida e governada de ações dotadas de maior

eficácia transformadora da vida do paciente”.

No que diz respeito à questão da cidadania importa perceber que nesse

encontro entre o mandato social de exclusão da loucura e as intenções médicas e

filantrópicas do início da psiquiatria se produziu a figura da doença mental como

negativo da razão, resolvendo o que fazer com a cidadania do louco. Em outras

palavras, o louco foi reconhecido como “cidadão” merecedor de cuidados

terapêuticos do Estado na mesma operação em que se define o cidadão, a razão,

a faculdade de responder pelo que diz e a possibilidade de dizer a verdade, quanto

o exercício efetivo da cidadania, a possibilidade de ocupar a polis e exercer os atos

da vida social e civil.

A internação passou a se justificar por razões médicas: a mesma ausência

de razão que tornava o louco inimputável fazia dele um doente merecedor de

cuidados. De todo modo, se não foi desobediência ao contrato social, foi a falta de

razão que excluiu o louco do convívio social, ou melhor do contrato social, e o

tratamento que deveria receber internado tinha como objetivo a restituição da

razão. Em tudo isso, o que estava em jogo era a vinculação entre cidadania e

razão.

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3.2 – Princípios dos SUS (Sistema Único de Saúde)

Conforme a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde (Diário

Oficial da União de 06 de novembro 1996), as bases para um novo modelo de

atenção à saúde são:

a) a consolidação de vínculos entre diferentes segmentos sociais e o SUS; e

b) a criação de condições elementares e fundamentais para a eficiência e a

eficácia gerenciais, com qualidade.

O SUS contará em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do

Poder Legislativo, com as seguintes instâncias (Lei nº 8.142, de 28 de dezembro

de 1990):

I – a Conferência de Saúde; e,

II – o Conselho de Saúde A 8ª. Conferência Nacional de Saúde (1986) reafirmou o conceito de saúde

que admite os seguintes fatores determinantes e condicionantes:

• No campo biológico: idade, sexo, hereditariedade, etc;

• No meio físico: água, alimentação, moradia, etc;

• No meio socioeconômico e cultural: ocupação, renda, etc;

• Na oportunidade de acesso a serviços de saúde.

A Constituição Federal Brasileira de 1988, art. 196 ao art. 200, expressando

o conceito abaixo, criou o Sistema Único de Saúde (SUS), formado por uma rede

de serviços, regionalizados; hierarquizada e descentralizada, com gestão única em

cada esfera do governo e sob controle dos usuários.

SUS é um sistema único porque segue a mesma doutrina em todo território

nacional. E os seus princípios estão baseados nos preceitos constitucionais

conforme os da Constituição Federal Brasileira de 1988, Art. 196 e Art. 198, itens I,

II e III, a seguir:

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29• Universalidade – Todas as pessoas têm direito aos serviços dos SUS

“A saúde é um direito de todos e dever do Estado”.

• Eqüidade – No âmbito do SUS existe a garantia de acesso a qualquer

pessoa, em igualdade de condições, aos diferentes níveis de

complexidade do sistema. O que determina as ações são prioridades

epidemiológicas, e não o privilégio ou o favorecimento.

• Integralidade – As ações de promoção, proteção e recuperação da

saúde, não deverão ser compartimentadas.

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3.3 - Mudanças de Paradigmas

Dentro do programa de Saúde da Família, torna-se clara a importância de

uma olhar que transcende o biológico. Para compreender as dimensões bio-

psicossociais das famílias é essencial conhecer a historicidade de cada paciente. A

fala do paciente reflete seu mundo, sua história construiu o indivíduo que hoje

conhecemos.

Lei 8.080 de 19 de setembro de 1990, Título I, Art. 3º:

“A saúde tem como fatores determinantes e condicionantes, entre

outros, a alimentação, a moradia, o saneamento básico; o meio

ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o

acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis de saúde da

população expressam a organização social e econômica do País.

Parágrafo único: Dizem respeito também à saúde as ações que, por

força do disposto no artigo anterior, se destinam a garantir às pessoas e

à coletividade condições de bem-estar físico, mental e social.”

Aproximar da realidade vivenciada pelo paciente e da visão que ele tem do

mundo é o principal objetivo para o tratamento do doente mental.

Referindo-se a Norma Operacional Básica do Sistema Único de Saúde,

Diário Oficial da União de 06/11/1996:

“O novo modelo de atenção deve resultar na ampliação do enfoque do

modelo atual, alcançando-se, assim, a efetiva integralidade das ações.

Essa ampliação é representada pela incorporação, ao modelo clínico

dominante (centrado na doença), do modelo epidemiológico, o qual

requer o estabelecimento de vínculos e processos mais abrangentes.”

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31“Além da ampliação do objeto, da mudança do método e da tecnologia

predominantes, enfoque central deve ser dada a questão da ética. O

modelo vigente – assentado na lógica da clínica – baseia-se,

principalmente, na ética do médico, na qual a pessoa “o seu objeto”

constituem o foco nuclear da atenção.”

“O novo modelo de atenção deve perseguir a construção da ética, do

coletivo que incorpora e transcende a ética do individual. Dessa forma, é

incentivada a associação dos enfoques clínico e epidemiológico. Isso

exige, seguramente, de um lado, a transformação na relação entre o

usuário e os agentes do sistema de saúde (restabelecendo vínculo entre

quem presta o serviço e quem recebe) e, de outro, a intervenção

ambiental, para que sejam modificados fatores determinantes da

situação de saúde.”

Como se pode perceber, a mudança de paradigma, se refletiu na ideologia.

Se anteriormente tratava-se o sintoma da doença, hoje a atenção é para uma

saúde básica. Para a qualidade de vida. Para um atendimento integral. Para que

assim haja um acompanhamento do paciente. Para que haja escuta daquilo que o

paciente deseja.

Saiu-se do paradigma sanitário e da prática sanitária e passou-se a

privilegiar a produção social da saúde.

A ordem governativa da cidade passa a ser a gestão social estabelecida.

Não há propostas de vitimização, nem de culpabilidade.

Estabeleceu-se, inevitavelmente, uma mudança no olhar do terapeuta.

Para acompanhar as mudanças promovidas o terapeuta de família, contou

com as diferenças históricas individuais e de famílias, e com as realidades

psíquicas de cada um.

Por esses motivos, é de fundamental importância o papel do terapeuta de

família.

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CONCLUSÃO

Os trabalhadores de saúde mental se empenham para conseguir que seja

devolvido ao doente mental o exercício da cidadania plena. Os terapeutas desejam

que a família seja mais uma colaboradora da inclusão social do doente mental e

não mais como outrora, um veículo de exclusão. Devolvendo àquele familiar um

convívio social, ensinando-lhe regras, comportamentos sociais, relações

contratuais afetivas, sócias e econômicas também.

É necessário permitir um novo modo de funcionamento sem negar que

exista numa família, um outro que age, pensa, trabalha diferentemente dos demais

familiares. Mas que lhe seja reconhecido um lugar de cidadão respeitando sua

diferença. Acreditando-se que este cidadão é capaz de fazer novos vínculos e que

é dono de sua própria voz.

O incômodo dos trabalhadores de saúde mental fez com que a saúde da

família fosse a estratégias do Ministério da Saúde para reorientar o modelo

assistencial do Sistema Único de Saúde a partir da atenção básica.

Mudar-se uma política de limpeza iniciada no século XIX com o advento da

família intimista, que asilou o louco, tratando-o no hospício e institucionalizando a

loucura, para outra, cuja intencionalidade seja substituir ou “tratar” pelo “cuidar” na

integralidade que traz consigo uma reabilitação psicossocial do doente mental,

devolvendo-lhe sua autonomia e sua contratualidade.

Para tanto, faz-se necessário acompanhá-lo em sua vida cotidiana, para

que ele tenha uma lida melhor, e que a instituição saúde esteja aparelhada e

disponível, assumindo sua própria diferença e singularidade, diante dos

enfrentamentos também singulares trazidos pelos seus pacientes.

No Programa de Saúde de Família (NOB do SUS - 11 e 12, D.O.U. de

06/11/96), as Unidades funcionam basicamente com um médico, um enfermeiro,

um auxiliar de enfermagem, quatro a seis agentes comunitários. Outros

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33profissionais, como dentistas, assistentes sociais e psicólogos podem ser

incorporados às equipes ou formar equipes de apoio. (Costa e Carbone, Saúde da

Família - uma abordagem interdisciplinar. 2004, p: 11)

Conclui-se que seria de grande relevância a inclusão do terapeuta de

família na composição básica do Programa de Saúde de Família em todo território

nacional.

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O GRITO -1893-.EDWARD MUNCH (1863 – 1944).

ÓLEO SOBRE TELA. 91- 73,5 CM.NASJONALGALLERIET, OSLO.