UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI - Célia Belim · roteiro – e discursivos – a montagem e a...

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI CURSO DE DESIGN DIGITAL A NARRATIVIDADE NO CINEMA E NA HIPERMÍDIA: UMA ANÁLISE POR MEIO DO FILME 21 GRAMAS ANA CLAUDIA PÁTRIA FELIPE SZULC MATEUS KNELSEN MILEINE ISHII PAMELA CARDOSO RENATA MARTINEZ TÂNIA TAURA SÃO PAULO 2008

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UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

CURSO DE DESIGN DIGITAL

A NARRATIVIDADE NO CINEMA E NA HIPERMÍDIA:

UMA ANÁLISE POR MEIO DO FILME 21 GRAMAS

ANA CLAUDIA PÁTRIA

FELIPE SZULC

MATEUS KNELSEN

MILEINE ISHII

PAMELA CARDOSO

RENATA MARTINEZ

TÂNIA TAURA

SÃO PAULO

2008

UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI

CURSO DE DESIGN DIGITAL

A NARRATIVIDADE NO CINEMA E NA HIPERMÍDIA:

UMA ANÁLISE POR MEIO DO FILME 21 GRAMAS

ANA CLAUDIA PÁTRIA

FELIPE SZULC

MATEUS KNELSEN

MILEINE ISHII

PAMELA CARDOSO

RENATA MARTINEZ

TÂNIA TAURA

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Banca Examinadora, como exigência parcial para a obtenção de título de Graduação do Curso de Design Digital, Habilitação em Design Digital, da Universidade Anhembi Morumbi, sob a orientação dos Profs. Marcelo Vieira Prioste e Nelson Somma Junior.

SÃO PAULO

2008

BANCA EXAMINADORA

DEDICATÓRIA Dedicamos este trabalho aos nossos familiares e amigos, por todo apoio e compreensão concedidos, e a todos aqueles que direta ou indiretamente nos auxiliaram na conclusão dessa trajetória.

RESUMO

O presente trabalho pretende analisar a estrutura narrativa e discursiva do filme 21

Gramas – segundo na trilogia cinematográfica dirigida por Alejandro González

Iñárritu e roteirizada por Guillermo Arriaga Jordán –, a fim de estabelecer reflexões

relevantes a respeito das possíveis relações existentes entre narrativas

desenvolvidas para o cinema e narrativas voltadas para meios hipermidiáticos. A

escolha do filme em questão se deu pelo fato do mesmo representar de maneira

mais marcante o assincronismo e não-linearidade explorados no decorrer de toda

trilogia, facilitando sua analogia com as características da hipermídia. Para tanto,

propõe-se primeiramente a desconstrução do filme em sua estrutura informacional

(roteiro) e discursiva (montagem e a pós-produção), para, finalmente, refletir-se

acerca da narratividade aplicada a ambientes hipermidiáticos.

Palavras-chave: Cinema; Hipermídia; Narrativas.

ABSTRACT

The present work intends to analyze the narrative and discursive structures of the

movie 21 Grams – second one in the cinematographic trilogy directed by Alejandro

González Iñárritu and written by Guillermo Arriaga Jordán –, in order to establish

considerable reflections on the possible relations between narratives developed for

cinema and narratives managed for hypermediatic environment. The election of this

specific movie is due to the fact that it represents very well the asynchronism and

non-linearity explored by the authors in the whole trilogy, making the analogy with

hypermedia’s characteristics somewhat easier. In order to discuss the aspects

mentioned above, we propose the following method: first, a deconstruction of the

movie in both its informational (screenplay) and discursive (montage and post-

production) structures, to then be able to approach narrativity applied in

hypermediatic environments.

Keywords: Cinema; Hypermedia; Narratives.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................. 1

2 CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS NARRATIVAS PRESENTES NA

TRILOGIA EM ESTUDO ................................................................................. 4

3 ANÁLISE ESTRUTURAL: O ROTEIRO DE 21 GRAMAS ........................... 10

3.1 CONFLITO E AÇÃO DRAMÁTICA ..................................................... 10

3.2 PERSONAGENS ................................................................................ 27

3.3 O TEMPO NA NARRATIVA ................................................................ 40

4 RELAÇÃO TEXTO-IMAGEM: A MONTAGEM E A PÓS-PRODUÇÃO ....... 49

4.1 SEQUÊNCIAS, CENAS E PLANOS ................................................... 51

4.2 ILUMINAÇÃO E MOVIMENTOS DE CÂMERA .................................. 61

4.3 TRATAMENTO DE IMAGEM .............................................................. 69

4.4 ANÁLISE DO TECIDO SONORO ....................................................... 82

5 OS DISCURSOS CINEMATOGRÁFICO E HIPERMIDIÁTICO:

DA TRILOGIA À HIPERMÍDIA .................................................................... 100

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................ 118

7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS............................................................ 120

8 ANEXOS ................................................................................................................. 124

1

1 INTRODUÇÃO

Este trabalho toma como objetos de estudo as narrativas presentes na trilogia

cinematográfica composta por Amores Brutos (México, 2000), 21 Gramas (Estados

Unidos, 2003) e Babel (Estados Unidos, 2006), dos quais a direção e o roteiro são

respectivamente creditados aos mexicanos Alejandro González Iñárritu e Guillermo

Arriaga Jordán. Aventa-se a hipótese de que tais filmes representem reflexões sobre

o narrar contemporâneo no cinema, sendo estas relevantes no estudo da técnica e

das características das narrativas em meios hipermidiáticos. Este estudo encontra

sua justificativa na aproximação da hipermídia à linguagem do Cinema,

consideradas mídias nas quais o percurso narrativo pode ser explorado.

Não obstante, a trilogia cinematográfica em questão apresenta uma estrutura e um

discurso narrativos particularmente interessantes quanto a esta discussão,

possuindo em seus filmes características marcantes como o assincronismo, a

complexa trama de causalidades entre os elementos narrativos e o discurso

audiovisual que dá forma a essa complexidade. A desconstrução dos filmes em

características estruturais e discursivas servirá como princípio para o estudo das

narrativas em ambientes hipermidiáticos.

Para tanto, este trabalho considera a construção da narrativa cinematográfica como

um processo composto de três fases: roteiro, montagem e pós-produção. Observa-

se que os aspectos referentes a cada uma das etapas do processo de

desenvolvimento dos objetos de estudo serão examinados quanto a sua importância

narrativa, sendo, portanto, desconsiderados elementos da produção que não sejam

de relevância para a discussão aqui proposta.

Visando uma análise consistente dos aspectos relatados, o presente trabalho tomará

como objeto de estudo o filme 21 Gramas, haja vista que este apresenta, de maneira

marcante, todas as principais características presentes ao longo da trilogia

cinematográfica. Entende-se, portanto, que 21 Gramas exemplifica o auge da

discussão de narrativas não-lineares no cinema, estabelecida anteriormente por

Amores Brutos e finalizada em Babel. Estes dois filmes que completam a trilogia

2

serão trazidos enquanto complemento para o estudo, estando o foco de análise

estabelecido em 21 Gramas.

Sendo assim, primeiramente, serão apresentadas as características gerais da

trilogia: aspectos referentes às narrativas introduzidas pelos três filmes que sejam

similares ou que possam ser discutidos enquanto proposta geral das obras. Estes

pontos a serem levantados servem como base para um aprofundamento destes

aspectos na análise de 21 Gramas.

Posteriormente, 21 Gramas será analisado quanto aos seus aspectos estruturais – o

roteiro – e discursivos – a montagem e a pós-produção. Aqui há um aprofundamento

da análise das propostas presentes nas narrativas dos três filmes com exemplos

retirados de 21 Gramas, que por sua vez servem como alicerce para a etapa

posterior: a discussão sobre possíveis relações entre as propostas da trilogia

cinematográfica em estudo e a hipermídia quanto às possibilidades e características

do uso de narrativas em meios hipermidiáticos.

Para a realização deste estudo, pressupõe-se que a proposta presente nos três

filmes começa por um trabalho conjunto entre roteirista e diretor. Segundo

comentários de Arriaga e Iñárritu no DVD de Amores Brutos (2001), o filme já nasce

não-linear, ou seja, sua estrutura é construída de maneira não-hierárquica. Sabe-se

que a trilogia do diretor e roteirista mexicanos não é a primeira a explorar a não-

linearidade como proposta. A trilogia em questão, no entanto, destaca-se por

enfatizar a narrativa como forma de construção desta não-linearidade, propondo

uma relação muito próxima entre o que é contado e como é contado, ou seja, um

real projeto da estrutura da informação e do discurso a ser adotado de forma a

enfatizar a complexidade da trama.

Assim sendo, propõe-se que a trilogia de Arriaga e Iñárritu leve a discussão da

complexidade das relações entre os elementos narrativos a um nível particular,

servindo-se de narrativas não-lineares para criar sua discussão e sua linguagem.

Isso é feito com base nos conflitos sociais contemporâneos, especialmente

referentes aos países latinos, também caracterizados por uma crescente

complexidade de relações de causalidade e choques entre realidades sociais,

3

culturais e econômicas. Compreende-se, portanto, a problematização das relações

apresentadas pelos três filmes como retratos cinematográficos da vida cotidiana,

como uma forma de narrar baseada nas características do seu tempo, no qual a

informação é hipertextual e as realidades podem ser abordadas em macro e micro

perspectivas. Estes aspectos de linguagem e de relação com seu espaço-tempo

apresentados pela trilogia são tomados como potenciais diálogos com narrativas

desenvolvidas para ambientes não-lineares.

4

2 CARACTERÍSTICAS GERAIS DAS NARRATIVAS PRESENTES NA

TRILOGIA EM ESTUDO

Uma narrativa pode ser descrita, sinteticamente, como a transgressão ou movimento

entre dois estados. Narrar é, portanto, apresentar a dinâmica de estados de

personagens, fatos, tempos e espaços por meio da perspectiva de um narrador,

ainda que este seja oculto ou difícil de ser distinguido. No cinema, a arte de compor

narrativas encontra-se na dialética entre o que é contado e como é contado, um

diálogo entre forma e conteúdo cujas diversas possibilidades articulam diferentes

visões do mundo e atingem públicos dos mais distintos contextos culturais.

No intuito de apresentar Amores Brutos, 21 Gramas e Babel quanto à análise de

suas características narrativas, aponta-se, em primeiro lugar, que os filmes sugerem

uma discussão quanto à abrangência dos meios audiovisuais em um contexto

mundial no qual os discursos atravessam barreiras políticas e geográficas. Por

constituir-se de uma linguagem baseada na imagem e no som, o cinema não está

tão restrito às diferenças lingüísticas – como é o caso dos discursos textuais –

podendo, no entanto, estar em maior ou menor grau influenciado por fatores

culturais locais. Utilizando-se deste potencial do cinema, a trilogia em discussão

metaforiza conflitos passíveis de identificação em diversas culturas por meio de

personagens e espaços específicos. No entanto, a abrangência geográfica destes

conflitos torna-se progressivamente maior no decorrer da trilogia, o que reforça a

intenção do roteirista e do diretor de demonstrar que os dramas locais são nada

além de manifestações em menor grau de uma complexa sistemática fractal que

constitui, simultaneamente, a ordem e a desordem da sociedade contemporânea.

Em Amores Brutos, o conflito gira em torno de três núcleos narrativos, situados na

periferia da Cidade do México. O primeiro deles é constituído por Octavio (Gael

Garcia Bernal), cunhado de Susana (Vanessa Bauche), que se apaixonam e vivem

um amor proibido. Octavio envolve-se em rinhas de cães para tentar conseguir

dinheiro e fugir com Susana das ameaças do seu marido, Ramiro (Marco Pérez), um

homem violento que realiza assaltos pela cidade. O segundo núcleo é constituído

por Daniel (Álvaro Guerrero), um renomado editor que abandona a família para

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assumir um relacionamento com a famosa modelo Valeria (Goya Toledo). Por fim, o

terceiro núcleo é caracterizado por Chivo (Emilio Echevarria), um ex-professor

universitário que abandona a família em prol de movimentos políticos, sendo preso

por vinte anos. Uma vez livre, Chivo passa a morar nas ruas, sobrevivendo como

assassino de aluguel e adotando cães desabrigados como irônica compensação de

sua falta de compaixão humana. Ao longo do filme, ele tenta reconciliar-se com sua

filha, Maru (Lourdes Echevarria), que não sabe que seu pai ainda vive.

As três histórias colidem em um mesmo fato marcante, apresentado no princípio do

filme: um acidente de automóvel que liga as vidas de todos os personagens

envolvidos. Tal fato é explicado e tem suas conseqüências reveladas de maneira

não-linear ao longo da narrativa, que transita pelos diferentes contextos sócio-

econômicos dos personagens, revelando simultaneamente aproximações e

contrastes entre os mesmos. O nome original do filme, Amores Perros (literalmente,

“Amores Caninos”), traduz em palavras a metáfora que Arriaga e Iñárritu propõem

quando ligam as vidas dos personagens por meio de um cão, Cofi, causa indireta do

acidente. A afetividade (ou a sua ausência) entre homens e cães é a ironia e o meta-

discurso sobre a brutalidade das periferias da Cidade do México, nas quais seres

humanos e animais se equiparam na luta por sobrevivência e prazer.

De maneira similar se desenvolve a narrativa em 21 Gramas, porém, de modo mais

complexo, com um assincronismo acentuado, maior número de personagens

envolvidos e de conflitos internos e externos. Mais uma vez, o conflito principal é

composto por um acidente de carro, desta vez, em Memphis, uma pequena cidade

no interior do estado norte-americano de Tennessee. Jack Jordan (Benicio del Toro),

ex-presidiário recuperado por meio do seu fanatismo religioso, atropela e mata o

marido e as duas filhas de Cristina Peck (Naomi Watts). O marido de Peck torna-se

doador de seu coração a Paul Rivers (Sean Penn), um professor de matemática a

beira da morte e com um turbulento relacionamento com Mary Rivers (Charlotte

Gainsbourg).

Novamente, um fato central e um elemento da história ligam todos os personagens e

conflitos envolvidos na trama; temos, respectivamente, o acidente de carro causado

por Jack e o coração de Paul. Usando destes dois elos, Arriaga e Iñárritu discutem

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semelhanças e diferenças sobre o amor por meio de fragmentos não-lineares que

revelam eventos passados, presentes e futuros não totalmente discerníveis e cuja

compreensão global só é reconstruída com o fechamento da narrativa.

O título 21 Gramas provavelmente encontra sua origem na teoria do doutor Duncan

MacDougall, difundida no estado norte-americano de Massachusetts do começo do

século XX. MacDougall pesou cerca de seis pacientes durante o processo de

falecimento para averiguar o possível peso da alma humana, no intuito de atestar

sua mensurabilidade. O mesmo foi feito com cães como cobaias1 (HOLLANDER,

2001). O filme de Iñárritu e Arriaga resgata a teoria da mensurabilidade da alma

como metáfora do valor creditado à vida, à morte e ao amor.

Babel encerra a trilogia, expandindo os limites geográficos dos conflitos sociais

abordados nos dois filmes anteriores. Como o próprio nome sugere, a narrativa se

fundamenta na simbologia da história bíblica sobre a Torre de Babel, que demonstra

como a incomunicabilidade entre os homens é capaz de destruí-los e impedi-los de

alcançar sua redenção.

Assim como nos dois primeiros filmes, a narrativa se desenvolve por meio de

fragmentos que apresentam pontos de ligação entre si, resultando em uma trama

complexa dotada de interconexões. Entretanto, em Babel, Iñarritu e Arriaga

exploram em menor grau o assincronismo em prol de um maior número de

personagens e conflitos internos e externos em um filme de caráter global.

A história trata do casal de norte-americanos Richard e Susan Jones (Brad Pitt e

Cate Blanchett), em férias no deserto do Marrocos. Dois garotos, Yussef e Ahmed

(Boubker Ait El Caid e Said Tarchani), aprendem a atirar com uma arma que seu pai

ganhou de presente de Yasujiro (Koji Yakusho), um caçador e empresário japonês.

Richard e Susan deixam seus filhos pequenos – Debbie e Mike (Elle Fanning e

Nathan Gamble) – em San Diego, Estados Unidos, sob os cuidados da imigrante

mexicana Amelia (Adriana Barraza), que leva as crianças ao casamento do seu

sobrinho em Tijuana, México. Enquanto isso, no Japão, a adolescente Chieko (Rinko

1 Apesar da grande variedade de resultados, MacDougall chegou a uma média de 21 gramas de perda de peso apresentados

pelos pacientes no momento de sua morte. A pesquisa ganhou popularidade, porém foi rejeitada pela comunidade científica devido a sua frágil fundamentação (HOLLANDER, 2001).

7

Kikuchi) tem uma vida conflituosa devido a sua deficiência auditiva em uma Tóquio

repleta de estímulos sensoriais. Após a morte da mãe, Chieko tenta enfrentar os

preconceitos e o relacionamento problemático com o pai, Yasujiro. Os destinos

dessas quatro famílias se cruzam por meio de um evento: Susan é atingida por uma

bala disparada pela arma de Yussef e Ahmed; Richard enfrenta diversas barreiras

políticas e culturais para salvar sua esposa. Simultaneamente, Amelia e as crianças

do casal Jones se perdem no deserto mexicano, uma vez que a governanta é

acusada do seqüestro de Debbie e Mike por tentar cruzar a fronteira sem seus

documentos.

Babel, portanto, estabelece um paradoxo ao aproximar as distâncias culturais

existentes entre Marrocos, México, Estados Unidos e Japão. Os conflitos retratados

unem e afastam as personagens, sublinhando traços em comum entre os diferentes

núcleos ao mesmo tempo em que problematizam as relações humanas, criando um

certo distanciamento. A síntese resultante destes contrastes serve como cenário

para Iñárritu e Arriaga narrarem histórias caóticas que caminham sempre para a

tragédia graças à incapacidade de comunicação entre os homens em um mundo

“globalizado” pela tecnologia e padrões político-econômicos.

Percebe-se, portanto, que os três filmes em estudo tratam de histórias que discutem,

de maneira progressiva quanto a sua abrangência geográfica, os efeitos dos

conflitos sociais, econômicos e políticos nos relacionamentos entre indivíduos. As

histórias presentes nos filmes, apesar de não estabelecerem continuações entre si,

são similares quanto aos conflitos elaborados, à linguagem discursiva adotada na

abordagem dos mesmos e à multiplicidade de contextos e vozes que narram as

histórias envolvidas.

Quanto à multiplicidade de vozes discursivas, sabe-se que a narração

cinematográfica se dá, invariavelmente, pelo ponto de vista e de escuta

determinados pela câmera, por vezes personificada em alguma personagem ou

dando a impressão da existência de um “observador oculto”, um terceiro alguém

presente na história que é ignorado pelo universo diegético, revelando ao

espectador, porém, este mesmo universo (MACHADO, 2007).

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Cabe, aqui, introduzir ao leitor o conceito de diegese que, em poucas palavras, pode

ser considerada

a história compreendida como pseudomundo, como universo fictício, cujos

elementos se combinam para formar uma globalidade. A partir de então, é

preciso compreendê-la como significado último da narrativa: é a ficção no

momento em que não apenas ela se concretiza, mas também se torna una.

Sua acepção é, portanto, mais ampla do que a de história, que ela acaba

englobando: é também tudo o que a história evoca ou provoca para o

espectador. Por isso, é possível falar de universo diegético, que

compreende tanto a série das ações, seu suposto contexto (seja ele

geográfico, histórico ou social), quanto o ambiente de sentimentos e de

motivações nos quais elas surgem (AUMONT, 1995: 114).

A diegese, portanto, é a tendência da história em apresentar-se como universo

completo, autônomo e independente da narrativa que a constrói, desfrutando de

uma existência própria que, quase sempre, pode ser considerada uma simulação do

mundo real (Ibid.: 114).

No caso da trilogia em questão, observa-se que a narração se dá por meio do

“observador oculto” acima descrito, indiferente ao universo diegético, porém

determinante para o discurso dos filmes. Esta “humanização” do papel da câmera

pode ser identificável por meios dos ângulos, perspectivas e movimentos tomados

durante o processo de filmagem.

As formas como isso se dá variam desde a adoção pelo narrador do ponto

de vista de uma personagem, o que implica a parcialidade e a subjetivação

do universo diegético, até a dissolução do narrador numa multiplicidade de

vozes que se defrontam e se contradizem ao longo de uma narrativa

descentralizada e aberta (MACHADO, 2007: 11).

Este “narrador múltiplo” presente nos três filmes analisados, pode ser descrito como

o eixo entre a diegese e o espectador, ainda que este eixo esteja dissolvido na

multiplicidade de vozes propostas por Arriaga e Iñárritu que atuam como enunciação

de uma complexa trama de relações entre conflitos. Amores Brutos, 21 Gramas e

Babel são filmes que possuem inter-relações não somente quanto à abordagem

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similar das narrativas cinematográficas, mas também por apresentarem um fato

central e um elemento narrativo (personagem ou objeto), que ligam os eventos e

personagens, conferindo um ponto de confluência entre as diversas instâncias. Não

se trata apenas de aproximar todas as realidades que compõem o universo diegético

das narrativas, mas de justapô-las e, a partir de sua aproximação, distanciá-las

ainda mais por meio da comparação e da ironia. Estas aproximações de aspectos

aparentemente desconexos compõem a síntese semântica desejada por Iñárritu e

Arriaga. Sendo esta síntese de cunho metafórico, as relações entre os elementos

narrativos propiciam abertura para diferentes níveis de interpretação e

compreensão.

No website oficial do filme Amores Brutos, encontra-se a seguinte afirmação: “se a

sua história acabou bem, encontre sua razão na linha do „Amores‟. Se acabou mal,

encontre sua razão em „Brutos2‟”. Esta frase exemplifica o objetivo dos produtores

dos filmes em deixar as interpretações das histórias que os compõem a cargo do

espectador.

Uma vez determinadas as características gerais da trilogia em estudo, parte-se para

um exame detalhado das narrativas cinematográficas por meio de 21 Gramas.

2 Ver texto completo em <http://movies.filmax.com/ amoresperros/>

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3 ANÁLISE ESTRUTURAL: O ROTEIRO DE 21 GRAMAS

A análise do roteiro é fundamental para a compreensão de uma narrativa

cinematográfica. É o roteirista o responsável por organizar inicialmente o conteúdo

da obra; enquanto o diretor determina a forma por meio da qual a narrativa se

estrutura, o escritor de um roteiro determina os alicerces do discurso, o que deve ser

contado.

Conforme afirmado anteriormente, na trilogia analisada o trabalho do roteirista é

particularmente interessante por ser desenvolvido em conjunto com o diretor, a fim

de gerar um produto final cuja complexidade não poderia ser atingida sem um

projeto em parceria. Ao construírem uma estrutura não-linear, Arriaga e Iñárritu

propõem que a montagem explore a linguagem discursiva do filme em fragmentos,

ou seja, a ordem do tempo narrativo difere da ordem do tempo cronológico inerente

ao universo diegético. Em outras palavras, os filmes da trilogia são composições de

recortes feitos em diversos momentos da história, tendo seus nós informacionais

(cenas e seqüências) compostos de elementos narrativos que atuam como links

entre eles. Tal procedimento permite que o espectador realize um processo de

“colagem mental”, uma vez que 21 Gramas se trata de uma narrativa audiovisual

que exige maior participação do espectador para sua compreensão. O espectador é

instigado a ligar os nichos de informação no filme segundo seus critérios pessoais, o

que torna as narrativas presentes nos filmes mais “particulares”, ligadas à

experiência individual e não só ao que é exibido na tela.

3.1 CONFLITO

O escritor é o primeiro a visualizar a trama a ser contada: a princípio apenas

idealizada pelo autor, ela é posteriormente registrada no papel como roteiro. Nesse

sentido, Frank Daniel afirma que “Quando as pessoas me perguntam o que vem a

ser escrever roteiros, tenho uma resposta padrão – é contar histórias interessantes

11

sobre gente interessante de uma forma interessante. Só isso. (…) sim, porque

roteirizar é fazer um filme no papel” (HOWARD; MABLEY, 2002: 21).

Em entrevista, Arriaga afirma que a idéia para escrever os roteiros parte muitas

vezes de situações pelas quais passou ou surge através de sonhos e, antes de

serem escritas, as idéias passam por um período de amadurecimento, sendo

pensadas e repensadas. 21 Gramas, conforme conta, surgiu de uma ocasião real

em que o roteirista atrasou-se para sua própria festa de aniversário, o que irritou sua

esposa. Para ser perdoado, Arriaga imaginou relatar que havia atropelado uma

família (ARRIAGA, 2004).

No que se refere à teoria clássica do cinema, padrão adotado para análise de 21

Gramas, Howard e Mabley (2002) destacam que uma história intrigante, ao ser

narrada, envolve um personagem principal (podendo haver mais de um), com um

difícil desejo a ser satisfeito, de maneira a impactar emocionalmente o

leitor/observador e evocar assim sua participação no enredo. O final dessa história

deve ser satisfatório, o que não significa propriamente um desfecho feliz. A visão

fundamental que um roteirista pode desenvolver sobre sua obra, segundo

mencionam os autores, é a seqüência de eventos, por sua vez constituída de vários

elementos primordiais ao ritmo da narrativa, por exemplo: o diálogo entre

personagens, o contexto da história, a ambientação, o figurino, os efeitos sonoros, a

música, a fotografia, entre outros. Arriaga trabalhou cautelosamente com esses

elementos ao longo dos roteiros que desenvolveu para a trilogia. O escritor acredita

que ao mesmo tempo em que cada cena tem seu próprio significado, a justaposição

das passagens altera sua semântica dentro do contexto da obra (ARRIAGA, 2004).

O caráter semântico de uma narrativa, conforme observa BORDWELL (2005)

“confere significação a um mundo ou conjunto de idéias”. Como exemplo de

justaposição, cita-se a cena de 21 Gramas em que Cristina sai da piscina após

nadar com sua irmã Claudia (Clea DuVall), despedindo-se da mesma com um

sorriso. Na ordem cronológica não-linear em que o filme foi disposto, a cena

seguinte apresenta Jack e sua família em um centro religioso, exaltando o contraste

entre as diferentes personagens (figura 1). Contudo, em uma reorganização lógica e

linear, este é o mesmo momento que suas filhas e marido estão saindo da

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lanchonete, e que também Jack se despede de seu amigo e segue em direção à

caminhonete; na seqüência, ocorre o acidente causado por Jack que tira a vida do

marido e filhas de Cristina (figura 2).

FIGURA 1: Justaposição de cenas em 21 Gramas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

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FIGURA 2: Reorganização linear de seqüência de 21 Gramas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Para que sua idéia se torne tangível na tela, uma boa prática é o escritor ter

conhecimento das artes cinematográficas e comunicação clara e objetiva com o

diretor e os demais profissionais do cinema.

Nota-se tal preocupação na estruturação do roteiro original de 21 Gramas, em que

Guillermo Arriaga descreve minuciosamente cada personagem, estruturando-os

física e psicologicamente. Detalha ainda cada cena, cada elemento de composição,

buscando criar junto à equipe um filme próximo às suas intenções iniciais.

Jack (trinta e cinco anos) é um homem forte e nervoso, com a barba a fazer

e características de um lobo. Ele veste jeans azul e camisa de manga curta.

A frase “Jesus ama você” é tatuada em seu antebraço esquerdo, a sua

direita há um ideograma chinês e runas, e existe uma estrela atrás de sua

mão direita. Um coração pequeno é tatuado em seu pescoço (ARRIAGA,

2004).

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Acrescentamos que “No fim roteirizar resume-se ao planejamento meticuloso da

representação física da história (…)” (HOWARD;MABLEY, 2002: 32).

Ao contar uma história, o roteirista leva em consideração como o público vai

vivenciá-la, o que o espectador sabe, o que desconhece, o que pode ser antecipado,

e de que forma pode surpreendê-los. Já o diretor torna a trama o mais verossímil

possível, concretizando suas intenções na tela, o que difere a experiência estética

cinematográfica da experiência de um leitor que conta com sua imaginação para

visualizar imagens relativas à história contada. Assim, Arriaga diz que a narrativa no

cinema é compreendida pelo espectador através de ações e imagens (ARRIAGA,

2004).

Para a organização das idéias acerca do enredo, uma técnica comum aos escritores

é a estruturação da trama em atos. No intuito de colaborar com o potencial imersivo

do filme, o roteirista suaviza as transições entre os atos a ponto destas passarem

despercebidas pelo público. Esse recurso possibilita que a história evolua

homogeneamente, considerando ainda os cortes e mudanças no tempo e no

espaço. Nas palavras de Howard e Mabley (2002: 54), “A vivência ideal que um filme

pode dar ao público é a de um sonho ininterrupto, a de uma trama evoluindo e

progredindo sem cessar”.

Dentro da teoria clássica do cinema, em geral, os filmes podem ser divididos em três

atos (genericamente: princípio, meio e fim), sendo o primeiro a apresentação das

personagens principais e do conflito matriz ao espectador. Até o final do primeiro

ato, o objetivo das personagens centrais terá sido revelado, bem como alguns

indícios dos obstáculos a serem superados. Durante o segundo ato, os obstáculos

são mais explorados e detalhados, para que sua superação por parte das

personagens seja uma forma de manter o espectador envolvido emocionalmente

com o enredo. Em paralelo, as personagens se desenvolvem e são movidas por

uma força que será compreendida apenas no terceiro ato, que amarra a história e

resolve os conflitos.

15

Em 21 Gramas a compreensão total dos atos se dá apenas com o término da

narrativa3, pois os fatos que os compõem encontram-se dispersos cronologicamente.

A narrativa, nesta forma de organização, torna-se menos previsível e é

potencialmente mais imersiva.

O conflito é o nó central de uma trama. É através dele que uma história é contada,

ganha força e movimento e é impulsionada adiante. “A palavra-chave para mim, é

sempre o conflito. Qual é o conflito da história? Qual é o conflito que vai contar a

história que você quer escrever?” (BERNSTEIN apud HOWARD; MABLEY, 2002:

82).

O conflito está intrinsecamente ligado à concepção das personagens, que por sua

vez está relacionada ao desenvolvimento de uma história. O conflito se instaura a

partir do momento que uma personagem tem um objetivo, um desejo intenso e

desesperado por algo e está tendo dificuldade em obtê-lo devido a uma força

opositora externa, ou seja, outra personagem, ou ainda a natureza, circunstâncias

da história, ou uma força interior da própria personagem. O objetivo precisa

despertar oposição para produzir conflito, e é dessa forma que se garante uma

história forte e a atenção do público. Este aspecto deve estar presente tanto na

história como um todo quanto nas cenas individuais, pois conforme mencionam

Howard e Mabley (2002), se ninguém deseja nada em uma cena ela murcha, e se

ninguém desejar nada na história inteira o roteiro não progride. “Na verdade, não se

cria conflito com histrionices ou comportamentos exagerados e sim com um

personagem querendo algo que é difícil de obter ou conseguir.” (HOWARD;

MABLEY, 2002: 83).

As personagens centrais podem ser constituídas de conflitos internos ou externos,

ou ainda possuírem ambos. Conforme citam Howard e Mabley (2002), são estes

aspectos que mostram o que vai por dentro de uma personagem. Diz-se conflitos

internos aqueles que se apresentam como batalhas travadas internamente na

personagem, que possui dentro de si tanto desejos quanto resistência aos mesmos.

3 Procedimento também encontrado em Amores Brutos.

16

Já os conflitos externos são aqueles travados diretamente com outras personagens,

causados por oposições entre seus desejos particulares.

Guillermo Arriaga criou o roteiro de 21 Gramas de forma a desconstruir a linearidade

cronológica. É possível dividir o filme em três atos, mas é necessário ressaltar que

alguns fatos que teoricamente pertenceriam ao segundo ato, por exemplo, são

exibidos no primeiro; da mesma forma, o que faria parte do primeiro é exibido

somente no terceiro ato da trama. Isso significa que começo meio e fim estão

dissolvidos ao longo do enredo.

De acordo com Murray (1997: 50), “o início de uma trama é carregada de

possibilidades”. O primeiro ato de 21 Gramas não demonstra ser diferente, sendo

que este aspecto se amplia para o espectador pelo fato de a narrativa ser

estruturada não-linearmente, pois a incerteza do que pode ou não acontecer é um

fator de grande peso que mantém a participação do espectador ativa. O truque para

manter a participação do público no drama é a “incerteza sobre o futuro imediato,

incerteza sobre o desenrolar dos acontecimentos” (HOWARD; MABLEY, 2002: 72).

No ato inicial de 21 Gramas, é possível identificar as personagens centrais Cristina

Peck, Paul Rivers e Jack Jordan e seus respectivos conflitos, a princípio, apenas

internos.

O conflito interno inicial de Cristina gira ao redor do vício das drogas e a

possibilidade de cura. Esse objetivo fica evidente em uma das primeiras cenas em

que a personagem aparece: ela está depondo em uma associação sobre seu

distanciamento das drogas, viável somente, a seu ver, em virtude do seu casamento

e de suas filhas. Posteriormente, com a compreensão do universo em que a

personagem está inserida, toma-se conhecimento de sua família, composta por pai,

irmã, marido e duas filhas. No final do primeiro ato, Cristina descobre que sua família

é vítima de um acidente (a personagem não sabe, mas para o público já fica claro

que se trata de um acidente de carro). Há vestígios de que a perda de sua família,

ainda não completamente delineada, será um dos obstáculos enfrentados pela

personagem.

17

Jack é apresentado como um homem religioso, que através de sua fé busca a

salvação. Ele deseja inicialmente reconstruir sua vida, inserir-se na sociedade

novamente após ter sido preso diversas vezes desde a adolescência. Muitas são as

cenas no primeiro ato que mostram Jack Jordan prestando trabalho voluntário no

Centro Religioso, lidando com delinqüentes juvenis, sendo constante o confronto

com seu passado. Dentro do mundo no qual está inserido, Jack conhece sua

esposa, filhos, e o reverendo John (Eddie Marsan), personagens estas que se

destacam por terem uma ligação grande com Jordan na trama. Ao término do

primeiro ato, é revelado ao público que Jack é o responsável pelo atropelamento do

marido e das filhas de Cristina. Nitidamente, um dos obstáculos pelos quais a

personagem passará será aprender a conjugar sua fé com o fato de ter provocado o

acidente. O conflito acentua-se uma vez que a sua caminhonete, a mesma que

atropelou um homem e duas garotinhas, foi ganha em uma rifa por vontade divina.

Outro provável obstáculo é a relação com sua família, como encarar seus filhos

pequenos e conviver com sua esposa Marianne (Melissa Leo).

Paul Rivers é exposto no primeiro ato de forma bastante complexa: na primeira cena

do filme, por exemplo, ele está junto de Cristina; todavia, em uma cena mais adiante

no filme, notamos que ele é casado com Mary. O prosseguimento do filme denota

que um envolvimento com Cristina é iminente. Seu problema de saúde é

evidenciado durante este primeiro ato; Paul está morrendo, tem cerca de um mês de

vida, e deseja um transplante de coração – este jogo de forças entre vida e morte

configura seu conflito interno. Em contrapartida, é revelada ao público a existência

também de um conflito externo do personagem. O desejo de Mary por um filho opõe-

se ao fato de Paul ter de conviver com a hipótese de que, caso venha a ser pai,

possa não chegar a conhecer a criança. Outro empecilho pelo qual Paul terá que

passar é como será sua vida do momento do transplante em diante.

O conflito matriz do enredo de 21 Gramas se passa dentro do personagem Paul. Ele

deseja, necessita de um transplante de coração no prazo de um mês, que é a sua

estimativa de vida.

Em declaração, ao referir-se ao transplante de coração de Paul, Arriaga (2004) diz

que imagina haver um momento na vida de um transplantado em que ele se sente

18

vazio, pois ora ele não tem coração, e de repente encontra-se portador do coração

de uma pessoa diferente. Guillermo exemplifica, e cita a cena em que Paul vê e

segura uma jarra com seu próprio coração, que simbolicamente armazenou alegrias

e infelicidades, e que agora está separado dele. O coração que bate em seu peito é

de uma outra pessoa, que viveu emoções diferentes das suas. O coração é um

órgão historicamente carregado de simbologias românticas, além de constituir-se

como centro vital do corpo humano – assim, um transplante de coração não é

encarado da mesma forma que outro tipo de transplante.

De fato, em entrevista, o roteirista foi questionado a respeito do coração da

personagem. “Então o coração de Paul é realmente o „coração‟ do filme?”. Em

resposta, disse: “Exatamente.” (ARRIAGA, 2004: 21).

No segundo ato de 21 Gramas a trama se desenvolve e as personagens mudam; as

contradições presentes no filme transparecem. Essa característica pode ser

observada de uma cena para a outra. Logo em uma das primeiras cenas do

segundo ato, Paul está no hospital satisfeito com seu transplante realizado com

sucesso, está feliz ao lado de Mary, e na cena subseqüente Cristina recebe a notícia

que suas filhas faleceram. Outro fato similar é a cena em que Paul está em um

almoço com amigos após o transplante. Na cena seguinte, Marianne limpa

resquícios de sangue da caminhonete, para que seu marido não seja incriminado

por homicídio. Na cena posterior, Cristina está no funeral de sua família e diz que

não irá denunciar ninguém. Cenas opostas como essas são comuns ao longo da

narrativa.

A contradição é ainda a própria essência do roteiro, que trata da vida e da morte.

Para Arriaga (2004), a contradição é a “epidemia da natureza humana”. Os seres

humanos são contraditórios, são essencialmente paradoxais. Em complemento, o

roteirista afirma em entrevista4 que vivemos em uma sociedade muito polarizada,

com oposições muito profundas. 21 Gramas é fundamentalmente uma história

multiforme, pois trata da imprevisibilidade da vida. A narrativa multiforme nos permite

ter em mente ao mesmo tempo múltiplas e contraditórias alternativas. São estas

4 Entrevista concedida ao programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura em 04 de julho de 2007.

19

composições de possibilidades que pressionam os formatos lineares do passado a

exprimir o século XX enquanto conjunto de possibilidades paralelas (MURRAY,

1997).

“Viver no século XX é ter consciência das diferentes pessoas que podemos ser, dos

mundos possíveis que se alternam e das histórias que se entrecruzam infinitamente

no mundo real” (Ibid, 1997: 50-51).

Para ater o público emocionalmente no segundo ato, de acordo com Howard e

Mabley (2002), é necessário que o escritor utilize equilibradamente a esperança

sobre o futuro, potencialmente o que está por vir, versus o medo do que pode

acontecer. Esse é um fator que se expande em um filme não-linear, como é o caso

de 21 Gramas, pois devido a algumas cenas de um futuro próximo serem

antecipadas, o espectador formula hipóteses sobre o que virá em seguida, o que

aconteceu de fato, e, mais importante, qual é o tempo em que se insere determinada

cena, já que os limites passado – presente – futuro não são claros. Para

exemplificar, é possível citar a personagem Paul que em uma das primeiras cenas

do segundo ato aparece coberto de sangue, no carro com Jack e Cristina. Depois,

ele está no hospital e quer saber quem lhe doou o coração, e mais adiante ele

observa Cristina nadar tranqüilamente. São cenas que misturam eventos do

passado, presente e futuro, e trazem questionamentos a respeito do envolvimento

entre Paul e Cristina, acerca do temor (não se sabe se Paul sobrevive), a mesmo

ansiedade com relação à potencial cura e felicidade com Cristina. Tudo isso leva o

espectador a um engajamento na construção de uma ordem lógica, que faça

sentido.

O desejo que motiva Paul no segundo ato é saber quem ele é a partir do transplante,

e de quem é seu novo coração; movido por este interesse, ele se distancia cada vez

mais da idéia de ter um filho com Mary. Esta, por sua vez, opõe-se a Jack por

desejar um filho e por não aprovar o interesse do marido pelo doador de seu

coração. Após saber que a doação do órgão tem sua origem em um trágico acidente

que matou Michael (Danny Huston), suas pequenas filhas Katie (Carly Nahon) e

Laura (Claire Pakis), Paul é inundado por um sentimento de intensa gratidão pela

família que consentiu a doação. Deste ponto em diante, a personagem se afasta de

20

seu conflito com Mary ao passo que seus conflitos internos e aqueles relacionados à

Cristina tornam-se mais agudos.

“Uma fonte de conflito externo, numa história onde o grande conflito é

essencialmente interno ajuda a tornar visíveis e palpáveis os dois lados do

personagem” (HOWARD; MABLEY, 2002: 59-60), o que deseja e suas barreiras.

Uma vez que se aproxima de Cristina alguns de seus objetivos são alcançados, e

novamente Paul experimenta mudanças em seus desejos. Seu agradecimento

transforma-se em vontade de ajudar uma mulher que sofre, que pede por vingança.

A esperança das personagens, por sua vez, traz o amor. Seu principal obstáculo é

como sanar a dor física e psicológica que Cristina causa em Jack, e vice-versa, já

que ele sente-se responsável pela situação, afinal o “coração”, ou seja, o cerne de

toda a tensão, está dentro dele.

A culminância neste ato pode ser vista sob três perspectivas diferentes, cada uma

condizente com as personagens centrais da trama. Howard e Mabley (2002: 94)

explicam que tal ferramenta “é o ponto alto ou fraco do roteiro, o acontecimento para

o qual se encaminha tudo que houve antes”.

A culminância referente a Paul ocorre quando ele atira em si mesmo com um

revólver (o qual deveria ser usado para matar Jack), como forma de pedido

desesperado para que Cristina e Jack parem com toda a brutalidade em que estão

envolvidos. Cansado de ser conivente com tal situação, e principalmente por amor a

Cristina, Paul comete este ato.

Neste segundo ato, para Cristina a vida não segue adiante sem o marido e suas

filhas; sem encontrar motivos para viver ou para se manter saudável e longe das

drogas, ela tem uma recaída, e deseja drogar-se como uma fuga da cruel realidade

em que se encontra. Contudo, este conflito interno esbarra na resistência que Paul

representa ao tentar ajudá-la, devolver-lhe a esperança. Esta oposição, no entanto,

é deixada de lado quando o envolvimento com Paul se torna profundo e,

aproveitando-se deste sentimento, Cristina deseja matar o homem que tirou a vida

de sua família.

21

A culminância deste ato para a personagem em questão ocorre quando ela chega

perto de tirar a vida de Jack através da ajuda e cumplicidade de Paul. Em uma ação

violenta, ela bate repetidamente em Jack, só não o mata pois sua conduta é

paralisada pelo tiro de Paul em si mesmo.

A aspiração pela retaliação de Jack é a tensão principal do segundo ato de 21

Gramas. Howard e Mabley (2002) citam que a tensão principal é resolvida na

culminância; uma vez resolvida, o enredo caminha para a resolução de todos os

conflitos.

Jack no segundo ato apresenta sérias indagações com relação à sua vida espiritual.

O que o estimulava era sua fé, e neste campo o seu grande conflito interno é o

questionamento da crença em Jesus Cristo. O mesmo Cristo que lhe deu uma bela

caminhonete, usou-a como instrumento para causar um sério acidente e muito

sofrimento, e Jack é quem estava na direção, segundo diálogo da personagem com

o reverendo John.

Jack é preso, e para ele a situação de ter matado pai e filhas é angustiante; sem

vislumbrar saída, pretende cometer suicídio, mesmo que isso signifique renegar sua

família e sua fé. Contudo, a tentativa de suicídio não sai como esperado: o cano ao

qual tentou se enforcar não era forte o suficiente para agüentar seu peso, e Jack

volta ao seu inferno interior. Para conduzir a trama adiante, Jack sai da prisão, e seu

desejo muda de foco. Envergonhado diante de sua família e amigos, almeja se

esconder de todos e de si mesmo, e busca refúgio em um hotel afastado da cidade.

A dificuldade que enfrenta é o desejo de vingança de Cristina, que é exaltado na

cena em Jack busca pela personagem e por Paul no hotel, após sofrer uma tentativa

de homicídio por parte do segundo. Jack apanha sem parar de Cristina que é

movida pelo ódio, pela perda, pelo vazio, e em cada agressão Jack busca o perdão,

mesmo que o desejo pelo perdão signifique a sua morte. O foco está novamente no

desejo de morte como forma de remissão da culpa pelo homicídio de Michael e suas

filhas, e esta é a culminância deste ato para o personagem em questão. Entretanto,

Jack tem seu desejo interrompido pelo inesperado tiro de Paul em si mesmo.

22

O terceiro ato é o ponto onde os conflitos se encerram satisfatoriamente, não

necessariamente o que se espera ou teme, mas todo o círculo aberto inicialmente no

primeiro ato se fecha neste último. Após a culminância, este é o momento em que o

público pode relaxar.

“De qualquer modo, o conflito some e com ele o drama; uma situação fluída

transforma-se numa situação estável.” (HOWARD; MABLEY, 2002: 93).

A resolução é estável, pois ela não suscita mais nenhum tipo de expectativa por

parte dos espectadores. Ela se caracteriza em uma trama quando a personagem

central (no caso da produção analisada há três protagonistas) perde a vontade de

lutar por ter atingido seu objetivo, ou por ter reconhecido sua derrota, conforme

explicam Howard e Mabley (Ibid).

Em 21 Gramas Paul encontra em sua morte uma forma de ajudar Cristina, pois atira

em seu coração, o centro de todo o conflito da trama, num desejo de devolver-lhe a

paz perdida no momento em que ela teve sua família morta no acidente de carro.

Neste ato, Paul chama atenção de Cristina para si, desviando a sua raiva e

sentimento de ódio de Jack, e, assim, Cristina não consegue matá-lo.

Cristina não se vinga como planejava, pois a esperança na vida e não na morte lhe é

transferida por Paul, que torna a possibilidade de ser mãe viável novamente, uma

vez que Cristina está grávida.

Jack, por sua vez, sente que foi perdoado por Cristina, após ajudá-la a conduzir Paul

ao hospital. Ele não tem mais do que se envergonhar ou razões para se esconder, e

por esse motivo retorna para casa e para os braços de sua família.

O roteiro de 21 Gramas é acima de tudo sobre esperança. Como complemento,

Arriaga (2004) cita em entrevista que 21 Gramas é uma metáfora da vida, cuja

importância é devidamente reconhecida somente em situações intensas, adversas e

obscuras.

23

“O poder da vida é muito, muito maior do que o poder da morte.” (MÁRQUEZ apud

ARRIAGA, 2004: 23)

Portanto, 21 Gramas, apesar de não-linear, estrutura-se em 3 atos, segundo análise

feita a partir da teoria clássica do cinema. A não-linearidade evoca na narrativa uma

participação mais ativa por parte do público, pois passado, presente e futuro

intercalam-se e trazem consigo questionamentos e incertezas sobre o que pode vir a

acontecer. O conflito é a força que impele o filme de um ato ao seguinte, e no caso

de 21 Gramas, o conflito principal da trama se instaura dentro de Paul. Além do

conflito matriz, existem conflitos dentro de cada cena que são responsáveis por dar

movimento à trama e manter o espectador imerso na narrativa. Quando os conflitos

são superados, é sinal de que o final da história e do drama estão próximos, e a

tensão gerada por incertezas e questionamentos é substituída por momentos que

propiciam relaxamento ao espectador, uma vez que a situação torna-se estável.

A seguir são apresenados três mapas desenvolvidos de acordo com os conflitos

internos e externos apresentados pelas protagonistas de 21 Gramas, como forma de

ilustrar a trama informacional abordada neste item.

24

FIGURA 3: Fluxo que representa os conflitos e ações que movimentam o personagem Paul.

25

FIGURA 4: Fluxo que representa os conflitos e ações que movimentam a personagem Cristina.

26

FIGURA 5: Fluxo que representa os conflitos e ações que movimentam o personagem Jack.

27

3.2 PERSONAGENS

Conforme visto no item anterior, o conflito é um embate entre uma força e uma

personagem. É a personagem que auxilia a construção do argumento, é ela que dá

movimento ao drama.

A construção das personagens deve ser minuciosa, pois é através delas que os

espectadores são imersos dentro da ação dramática. Para o início da construção de

uma personagem é necessário que o storyline (argumento ou sinopse) esteja

desenvolvido. Nele é delineado o conflito matriz da história; uma vez construído,

passa-se à composição das personagens.

O nascimento do personagem que vai começar a desenvolver o conflito é

determinado no próprio instante em que se começa a escrever a sinopse.

Poder-se-ia dizer que a sinopse é o reino da personagem, e, quanto mais

desenvolvida estiver, mais possibilidade terá o roteiro (COMPARATO, 1995:

112).

Segundo o autor supracitado (Ibid), a protagonista é a personagem básica do núcleo

dramático principal, aquela que é mais trabalhada e desenvolvida. No filme 21

gramas, observa-se que a história é narrada com três protagonistas, Paul Rivers

(figura 6), Cristina Peck (figura 7) e Jack Jordan (figura 8).

28

FIGURA 6: Paul Rivers.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 7: Cristina Peck.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

29

FIGURA 8: Jack Jordan.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Para dar vida a essas personagens foi necessário que o roteirista Guillermo Arriaga

criasse um perfil para cada uma delas, características básicas que se adequassem

ao conflito. Essas características vão desde físicas a emocionais, que são os valores

das personagens. No decorrer da narrativa, o objetivo da personagem pode mudar,

mas suas características mais fortes permanecem as mesmas. Para criar o perfil das

protagonistas, pode-se representar a estrutura destas personagens como na figura

9, em que a partir de um assunto que irá percorrer do primeiro ao terceiro ato, o

roteirista precisará criar protagonistas com as características de acordo com sua

necessidade.

“Perfil é o conjunto dos traços característicos de um personagem” (CAMPOS, 2007:

156).

30

FIGURA 9: Esquema de estrutura da caracterização de um personagem, nela consta quais são as

características que o roteirista deve se preocupar no momento de montar o perfil de um personagem.

31

Pode-se descrever o perfil destes protagonistas da seguinte forma:

Paul Rivers: Quarenta e um anos, fumante. É professor de matemática,

sarcástico, está à espera de um transplante de coração. Tem um

relacionamento instável com sua namorada Mary.

Cristina Peck: Trinta e quatro anos, ex-viciada em drogas É uma mulher

vulnerável, tem um casamento estável e feliz com o marido Michael com o

qual tem duas filhas, Katie e Laura. Ela não tem contato com drogas desde o

nascimento de sua primeira filha, há cinco anos.

Jack Jordan: Trinta e cinco anos, forte, violento, rude, ex-presidiário, com

quatro tatuagens, uma imagem religiosa no braço direito, um coração no

pescoço e dois ideogramas chineses. Tem uma vida perturbada desde os

seus 16 anos quando foi preso pela primeira vez. Tem um grande histórico

criminal que engloba roubos de carros, golpes, cheques sem fundos e

envolvimento com drogas e álcool.

Em entrevista5 Guillermo Arriaga afirma que quis trabalhar com três protagonistas

com características diferentes, pois queria retratar três tipos de “inferno” diferentes, o

inferno das drogas, o inferno da falta de saúde e ainda o inferno de um prisioneiro.

Em algumas histórias existem personagens estereotipadas, ou seja, totalmente boas

ou más. Estas personagens são chamadas de planas. Esse tipo de estereótipo não

é encontrado nas protagonistas de 21 Gramas, que apresenta personagens

redondas, aquelas que não são exatamente previsíveis.

“Personagem redondo é aquele constituído de traços plurais de perfil e personagem

raso (planas) aquele constituído de um ou pouco mais de um traço de perfil”

(FORSTER apud CAMPOS 2007: 140).

5

Entrevista concedida ao programa Roda Viva, exibido pela TV Cultura em 04 de julho de 2007.

32

Uma das características de Arriaga é trabalhar com personagens com forte

motivação, o que pode ser um resgate das situações presentes na obra de

Shakespeare.

As características básicas citadas acima foram apresentadas ao espectador no

primeiro ato quando da apresentação dos personagens e do problema inicial. Com

isso, o roteiro começa a envolver o espectador na trama.

Em 21 Gramas os objetivos das personagens mudam de acordo com a fluidez da

trama, a partir de um movimento interno nas personagens que pode alterar sua

índole e seus obstáculos.

Por esse motivo, temos de conhecê-la [a personagem] tanto quanto seja

possível, e respeitar a sua originalidade, a sua individualidade, para não

incorremos na atrocidade de pôr nos seus lábios palavras que são nossas e

não suas. (COMPARATO, 1995: 134).

Como as protagonistas são personagens redondas, que nos surpreendem, as

referidas mudanças (em índole / obstáculos) podem ser observadas no andamento

dos atos, pois o objetivo principal de cada um sofre modificações consideráveis no

decorrer da narrativa.

No início, Cristina Peck é descrita como uma mãe dedicada, livre do vício em drogas

e feliz com sua família: pai, irmã, marido e filhas. Em um segundo momento, após a

perda de seu marido e filhas, Cristina mostra sua fragilidade, vulnerabilidade, e

diante do mais duro obstáculo de sua vida, recorre novamente às drogas. A

personagem perde o gosto pela vida e acredita que nada vai mudar esse

sentimento. Quando conhece Paul, demonstra ser ainda mais vulnerável, ao deixar-

se envolver com ele, o que irrita e confunde Cristina e agrava seu desejo por

vingança da morte de sua família. Na conclusão da história, depois da morte de Paul

e de descobrir que esta grávida, Cristina volta a ter uma atitude esperançosa, seu

temperamento voltando ao estado apresentado no primeiro ato.

33

Paul, no início da trama, é um doente terminal. A partir da gravidade do seu estado,

observa-se o seu descaso pela vida, sua falta de esperança e o conformismo com

uma morte aparentemente iminente. No segundo ato, após sofrer operação, Paul

deixa transparecer sua curiosidade sobre a origem do coração transplantado. Na

busca pela sua nova identidade, apaixona-se por Cristina. Por meio deste

relacionamento, Paul demonstra a frieza e a inconseqüência que podem existir por

detrás de um sentimento intenso como o amor, e planeja com Cristina a morte de

Jack. O desfecho de Paul revela um personagem confuso a respeito de seu estado

entre a vida e a morte, e, incapaz de continuar a viver com um coração que não era

seu, comete suicídio.

Já no caso de Jack, todos os obstáculos enfrentados pela personagem revelam sua

forma resoluta e rígida de tomar decisões. No início, sua crença religiosa parece

inabalável. Jack deseja educar os filhos e fazer trabalhos comunitários para honrar

sua fé e a salvação pessoal que a mesma lhe propiciou. O atropelamento o leva à

confusão e ao desespero. Jack abandona sua família para se entregar à polícia,

assumindo a sua culpa no assassinato. Porém sua confiança começa a demonstrar-

se abalada, pois a personagem passa a se questionar sobre o motivo de sua

condição, se havia se portado como um cristão correto. Deus passa a ser um

questionamento constante, e Jack, desesperado com a perda de sua fé, tenta se

matar. Logo após sair da prisão, inseguro, prefere permanecer longe da família,

procurando conforto nos vícios e na solidão. Após seu encontro com Cristina e Paul,

Jack consegue enfrentar suas responsabilidades familiares e retorna ao seu lar para

viver junto de sua família.

Uma vez esclarecidos os comportamentos das protagonistas na narrativa de 21

Gramas, prossegue-se com a função das personagens secundárias, que segundo

Comparato (1995), convivem próximas à protagonista, porém são pouco detalhadas

e apresentam inexpressivas transformações ao longo da trama. No objeto de estudo

em questão, podem ser citados como personagens secundárias Marianne, esposa

de Jack (figura 10); Mary, namorada de Paul (figura 11) e Claudia, irmã de Cristina

(figura 12).

34

FIGURA 10: Marianne, esposa de Jack Jordan.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 11: Mary, namorada de Paul Rivers.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

35

FIGURA 12: Claudia, irmã de Cristina Peck.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Estas personagens são consideradas secundárias ou coadjuvantes por estarem

contracenando ao lado da protagonista e, apesar de terem seus objetivos pessoais,

estes não são explorados pela narrativa. O espectador pouco sabe sobre o conflito

destas personagens. Sua função é conferir complementaridade e fluidez à narrativa.

Marianne, Mary e Claudia são secundárias e planas, pois suas ações são previsíveis

e possuem um perfil praticamente inalterado até o fim da trama, não causando

surpresa alguma ao espectador.

Dentro das classificações das personagens, ainda podem ser citados os

componentes dramáticos ou figurantes, que de acordo com Campos (2007) e

Comparato (1995), são elementos de união, explicação ou solução: têm uma ação

de compor um cenário que interfere na história, ainda que estas personagens não

apresentem profundidade. Sua função é complementar o conflito dos protagonistas.

O prisioneiro que salva Jack no momento em que ele tenta se suicidar (figura 13) é

um tipo componente dramático, não se sabe de onde ele veio, quem ele é, nem ao

menos o nome dele, a única coisa que sabemos é que ele esta ali para salvar a

protagonista. Jack poderia ser salvo por qualquer outra personagem secundária,

36

sem prejuízo para o andamento da narrativa. Entretanto, a função desta

personagem era essencial para complementar o drama.

FIGURA 13: Figurante ou componente dramático que salva Jack no momento em que tenta se

suicidar.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Os elementos que auxiliam o espectador no seu entendimento da narrativa são as

unidades de ação e tempo e a exposição. As protagonistas têm seus objetivos e,

focados na busca de suas metas, constituem um ciclo que cria a unidade de ação.

“Sendo assim, contar uma história transforma-se na seqüência de acontecimentos

que ocorrem a um personagem central envolvido na busca de seu objetivo”

(HOWARD; MABLEY, 2002, p.100).

Como 21 Gramas é um filme não-linear em uma mídia linear, ele precisa lançar

elementos que atuem de modo a orientar o espectador. Arriaga e Inñáritu utilizam

tais elementos em vários momentos para que não haja dispersão por parte dos

espectadores.

37

A unidade de ação e de tempo é utilizada para que o espectador entenda a narrativa

que, no caso, apresenta-se de maneira fragmentada e não-linear. Segundo Howard

e Mabley (2002) é possível fazer isso porque mesmo utilizando regressão, avanço

no tempo, inversões temporais ou ainda lembranças, o roteirista, através da unidade

contida na busca de um objetivo, mantém o público orientado e dá a sensação de

continuidade a ele.

Isso pode ser observado no primeiro ato, no qual temos a apresentação das

personagens. Na primeira cena, vemos Paul e Cristina em um quarto onde se

estabelece um relacionamento. Nas cenas seguintes, a vida particular de cada um

deles é retratada: Cristina em um de seus encontros de recuperação de drogas, Paul

em um quarto de hospital enquanto Jack prega a um delinqüente juvenil (figura 14).

A apresentação dos protagonistas continua, com uma montagem cada vez mais

nítida de seus perfis. A próxima seqüência se apresenta com Cristina se drogando,

Jack brigando com o mesmo garoto a quem pregava anteriormente, ao que se

segue a apresentação da família de Jack. Paul está sentado com uma arma nas

mãos, conforme a figura 15. Cada uma das três protagonistas vive uma situação

diferente, cujos contrastes são explorados por meio da aproximação dos conflitos na

seqüência narrativa; isso faz com que o espectador envolva-se cada vez mais com o

enredo de 21 Gramas.

38

FIGURA 14: Primeira seqüência de cena que apresenta os protagonistas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 15: Segunda seqüência de cena que apresenta os protagonistas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

39

Um outro elemento também utilizado para guiar o espectador nesta obra é a

exposição.

Os fatos que não ficam evidentes ao público através do desenrolar dos

acontecimentos na tela, mas dos quais o espectador precisa estar ciente [...]

Podem ser fatos que aconteceram no passado, antes do começo da

história, pode ser sentimento [...] A exposição só é necessária ao

espectador, não é uma coisa que os personagens precisem saber no

decorrer da trama. (HOWARD; MABLEY, 2002: 101)

Pode-se levantar como exemplo de exposição quando Jack chega à prisão depois

de ter se entregado, reconhecendo sua culpa pelo atropelamento (figura 16). Um

dos prisioneiros então, diz: “Ei! Wolf, voltou filho da mãe.” Neste momento, uma nova

informação vem à tona para o espectador: no passado, Jack já havia sido preso.

Uma outra cena que também usa esse elemento de exposição é aquela em que

Cristina acorda no quarto de hotel onde ela esta hospedada com Paul e, não o

encontrando, vai até o banheiro fumar. Com isso, vê-se que ela permanece

desmotivada e busca a resolução dos problemas, mesmo que seja através da

autodestruição com as drogas.

FIGURA 16: Cena em que Jack chega à prisão e um dos prisioneiros o reconhece.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

40

Observa-se, portanto, que a construção de uma personagem deve ser minuciosa,

pois cada ponto de sua caracterização influenciará o decorrer da narrativa. As

protagonistas desta obra são personagens redondas, que tendem a nos surpreender

a cada obstáculo. E a fluidez e o entendimento desta narrativa se ligam à unidade de

ação e tempo, em conjunto com os elementos de exposição.

3.3 O TEMPO NA NARRATIVA

Segundo Howard, Mabley (2002) e Comparato (1995), a importância do tempo

enquanto elemento estrutural de uma narrativa pode ser descrita por meio de

algumas funções elementares, tais como atuar na transição entre as cenas, prover-

lhes ritmo (andamento), intensificar o seu teor dramático e determinar os lapsos de

tempo longos ou curtos, lentos ou rápidos, quais ações são apresentadas ao

espectador.

Recorre-se a diferentes termos para classificar os distintos empregos do tempo em

uma história. Para efeito de estudo, serão adotados na análise de 21 Gramas os

chamados tempo dramático, tempo real, e tempo da estória.

Ainda segundo os autores por último mencionados, caracteriza-se como tempo

dramático o intervalo de tempo utilizado para mostrar determinada ação ao

espectador. Em complemento, Comparato (1995) cita que cada cena possui um

tempo interior próprio, um tempo parcial, durante o qual os acontecimentos

decorrem de acordo com certo ritmo. Desta forma, é possível conceber que a soma

dos tempos parciais é igual ao tempo dramático total.

O ritmo, segundo o mesmo autor, é um conjunto de ações (por exemplo, fala,

respiração, batimento cardíaco) dentro de um tempo ideal que transmita ao

41

espectador o peso dramático de uma cena. Em adição, Campos (2007: 218) cita que

“num sentido largo, ritmo é a velocidade com que se narra”.

Em 21 Gramas, o ritmo sobre o qual a seqüência final foi pautada emana da

personagem Paul, de sua saúde debilitada, de sua respiração lenta e batimentos

vagarosos. O ritmo com que fala sobre a perda ou ganho relacionados a 21 Gramas

provém da emoção suscitada pelo conteúdo dramático de uma cena, o que explica a

desaceleração em determinadas passagens.

FIGURA 17: Paul em estado emocional fragilizado em virtude de sua saúde. Ritmo da seqüência final

(ver figura 18) foi construído a partir desta cena.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

42

FIGURA 18: Algumas cenas da seqüência final de 21 Gramas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Em linhas gerais, Campos (2007) menciona o segundo ato como decisivo para o

ritmo, pois é neste período que a trama se torna intensa e acelerada, devido às

ações que se intensificam e se estendem. Em 21 Gramas, este aspecto mostra-se

diferente uma vez que sua cronologia não segue uma linearidade. Na película,

cenas que comporiam o primeiro, segundo, e terceiro ato se interpõem, confundindo

o que seria passado, presente ou futuro para o espectador. Por esse motivo, o ritmo

do filme é inconstante e repleto de descontinuidades. Graficamente, o ritmo da

narrativa do filme seria irregular em todos os seus atos.

43

GRÁFICO 1: Representação da relação tempo da estória X tempo dramático, presente em 21

Gramas, com suas descontinuidades e mudanças bruscas no ritmo da narrativa, ainda que limitada a

uma mídia linear.

O tempo dramático não é necessariamente igual ao tempo real. Como tempo real,

Howard e Mabley (2002) tomam o tempo que uma ação leva para se completar

(figura 19).

44

FIGURA 19: Sequência retratada em tempo real. Todo o trajeto do Paul até o banheiro é exibido, não

houve cortes, é como se qualquer pessoa pudesse executar esta ação dentro do tempo proposto.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Para que a diferença entre ambos os tempos se evidencie, é possível citar a

seqüência de 21 Gramas relativa à briga de Jack com seu aluno em um centro

religioso. Após o desentendimento, vê-se Jack ao lado de sua caminhonete. Na

cena seguinte, a personagem está dentro do carro e, devido ao movimento da

câmera, há um momento em que temos a visão de Jack da perspectiva do interior

do veículo. Na cena posterior, Jack chega em sua casa. O deslocamento espacial de

Jack ocorre de forma acelerada na linha do tempo dramático, pois em segundos o

personagem atravessa uma distância que, em tempo real, tomaria minutos. Nota-se

então que a transição de tempo foi suavizada no tempo dramático devido à elipse

existente entre as cenas, de forma que o espectador não saia do gancho da ação

retratada.

“Chama-se elipse, o ato de saltar períodos pequenos ou grandes de tempo sem tirar

o público de seu sonho ininterrupto” (HOWARD; MABLEY, 2002: 67)

45

FIGURA 20: Seqüência que utiliza a elipse como recurso temporal.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

A elipse pode ainda ser utilizada dentro de uma mesma cena. Isto ocorre, por

exemplo, na cena em que Jack está trabalhando no campo de golf, e é avisado

através de outro funcionário que seu chefe gostaria de conversar com ele. Não é

exibido ao público o caminho que Jack faz do campo até o escritório de seu chefe

Brown (Paul Calderon); pelo contrário, de forma brusca, em poucos segundos é

possível acompanhar a conversa entre os dois. Isto ocorre porque o foco está no

diálogo a ser retratado, e não no trajeto que a personagem deve percorrer.

A narrativa sob a qual se estruturou 21 Gramas, conforme visto anteriormente, não

segue uma ordem cronológica linear. Por esse motivo, a percepção de elipse como

recurso a ser usado na transição entre as cenas torna-se difícil de ser identificada ao

longo da trama, já que em geral uma cena não é a continuação do trecho anterior.

Segundo Howard, Mabley (2002) e Campos (2007), em oposição à elipse encontra-

se a elaboração, elemento que prolonga o tempo de uma determinada ação se

comparada ao tempo real, exibindo-a de forma detalhada.

46

A elaboração como elemento inerente do tempo dramático pode ser observada no

final de 21 Gramas, na seqüência em que Michael e as pequenas filhas de Cristina

estão saindo da lanchonete, logo após Jack caminhar em direção a sua

caminhonete. Posteriormente, Cristina sai de sua sessão de natação. Estes três

momentos que ocorrem em câmera lenta convergem no acidente de carro, situação

que aproxima as personagens centrais Cristina, Jack e Paul. Para ampliar a tensão

dramática da cena, fez-se o uso de câmera lenta para prolongar a vivência de um

momento importante (HOWARD; MABLEY, 2002).

Com relação ao ato de encurtar (elipse) ou prolongar (elaboração) o tempo de uma

determinada ação em uma cena, é possível dizer que “O tempo da narrativa é a

atenção que o narrador dedica aos seus pontos de foco” (CAMPOS, 2007: 210)

Além da elipse e elaboração, vale ressaltar o figurino, imagem, música, e diálogo,

como importantes recursos temporais dramáticos utilizados para ilustrar a passagem

de tempo e transição entre as cenas. Howard e Mabley (2002: 69) sublinham que “O

importante é que o espectador consiga cobrir o intervalo de tempo graças a alguma

coisa que o escritor insere”.

Os figurinos e maquiagem em 21 Gramas representam um importante papel no que

diz respeito a facilitar a identificação do momento representado para o espectador, já

que passado, presente, e futuro estão emaranhados (figura 21).

FIGURA 21: Paul antes do transplante, e após alguns meses recuperado, quando inicia sua busca

para conhecer Cristina

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

47

Cenas em que imagens são sucedidas por sons, como por exemplo, o uso da

imagem de pássaros voando no terceiro ato da narrativa, têm o intuito de dar um

descanso ao espectador, pois seu teor dramático é baixo e não requer grande nível

de concentração para ser assimilado. A desaceleração do enredo pode preparar o

público para um ritmo acelerado que a história tomará adiante.

“Se o interesse do espectador pede complicação dos incidentes, intensificação das

ações e aceleração do ritmo da narrativa, o fôlego dele pede pausas nisso”

(CAMPOS, 2007: 224).

ESQUEMA 1: Representação das diferentes articulações que podem ser feitas entre o tempo

narrativo e o tempo da enunciação.

Baseado em: (PALACIOS, s/d).

Através de diálogos, Arriaga informa os espectadores que a data em que ocorre o

acidente de carro é a mesma data da festa de aniversário de Jack, 10 de outubro. E

que também Jack de fato cometeu diversos crimes, passando cerca de dezesseis

anos na cadeia, e de forma condensada passa ao espectador uma idéia de como foi

o passado desta personagem. A sua pena por ter matado o marido e filhas de

Cristina é de 2 anos, e este dado indica que o tempo da estória, que “é o tempo que

a estória percorre” (CAMPOS, 2007: 210), ocorre em torno de 2 anos, não sendo

este número exato, considerando que este elemento temporal não aparece de forma

explícita na trama. O diálogo no filme atuou como um reforço da tensão dramática, a

chamada moldura temporal, que Campos (Ibid) observa como sendo a ação que

supera determinado obstáculo em um tempo imediato. Em 21 Gramas, essa

representação fica explícita na conversa que Mary tem com o médico de fertilidade.

No diálogo, vem à tona o fato de Paul ter somente cerca de um mês de vida, e assim

48

o espectador antecipa que a personagem deve obter o órgão nesse rápido prazo, e

a história deve prosseguir paralela a este dado que tem certo teor de urgência.

Sendo assim, é possível notar que o roteiro de 21 Gramas é ditado por ações que

motivam reações em um espaço que aproxima as três personagens centrais, que

ora são agentes, ora reagentes (CAMPOS, 2007). Mais importante que entender se

o filme narra o tempo da estória em 2 anos ou mais, é notar que é a sucessão de

causalidades que define o que será contado e o tempo da trama que será

configurado na narrativa.

49

4 RELAÇÃO TEXTO-IMAGEM: A MONTAGEM E A PÓS-PRODUÇÃO

Segundo Rodrigues, em Cinema e produção (2002), pode-se compreender como

montagem o conjunto de planos, ângulos, movimentos de câmera e demais recursos

cinematográficos que compõem o universo de um filme. Este trabalho parte da

análise de tais recursos no objeto de estudo, no tocante a sua contribuição para a

narrativa.

A montagem cinematográfica, portanto, constitui uma sintaxe cuja forma de

utilização de seus elementos resulta em um discurso. A forma final da apresentação

deste discurso é definida segundo as manipulações feitas pelo diretor e sua equipe

técnica, e são sempre influenciadas por uma perspectiva sobre a experiência

humana. Neste sentido, a câmera possui um papel fundamental, pois ela apresenta

o universo construído durante o processo de montagem, dos cenários às

personagens e aos conflitos. Para o espectador, a câmera torna-se a simulação de

um estado consciente, que substitui momentaneamente o universo presente do

público por meio da imersão. Nesse sentido, a câmera aproxima-se do conceito do

cineasta russo Dziga Vertov, o kino-eye.

“Kino-eye significa a conquista do espaço. A ligação visual de pessoas pelo

mundo inteiro baseada no intercâmbio contínuo dos fatos visíveis (...). Kino-

eye é a possibilidade de ver os processos da vida em qualquer ordem

temporal ou em qualquer velocidade (...). Kino-eye usa todos os meios

possíveis na montagem, comparando e ligando todos os pontos do universo

em qualquer ordem temporal, rompendo, quando necessário, todas as leis e

convenções da construção de filmes” (AMERIKA, 2003: 144).

Para Vertov, o cineasta não só registra uma realidade, como altera aquelas de todos

os que assistem aos registros da câmera, justamente por fazer com que o

espectador abandone concepções e lógicas pertencentes ao seu mundo. Dessa

forma, podemos dizer que existem possibilidades definidas pelo universo do filme

que são apresentadas visualmente pelo “cine-olho”.

50

Observa-se que o kino-eye é um conceito muito particular ao cinema de vanguarda

russo de meados da década de 1920, consistindo numa teoria sobre a linguagem

cinematográfica que, apesar de sua forte ligação com o período histórico, pode ser

resgatada sob o prisma das narrativas contemporâneas no cinema. A idéia exposta,

em conjunto com a malha sonora, pode auxiliar na concepção da forma como uma

história é contada. Entre todas as possibilidades de ângulos, movimentos, focos,

tempos e espaços, a câmera está em um ponto que, narrativamente, estabelece um

elo entre todos os elementos, definindo as características da sua ausência ou

presença. Este exato ponto determina, simultaneamente, uma visão sobre estes

elementos, influenciada por fatores culturais relevantes ao cineasta na montagem do

filme.

Em 21 Gramas, e nos filmes presentes na trilogia em geral, percebe-se que a

abordagem adotada na concepção de cenários, personagens, filmagens e edições

gira em torno do conceito de contraste. A relação entre estrutura definida pelo

roteiro e o discurso cinematográfico visa sempre justapor oposições entre realidades

sociais, políticas, espaciais, temporais e históricas dos elementos narrativos. A

câmera, neste caso, está sempre posicionada para estabelecer uma dialética, na

qual diferentes personagens, eventos e contextos convivem simultaneamente em

uma sociedade desigual em sua essência.

Assim, muitos dos recursos de montagem são utilizados de forma a enfatizar esse

contraste. A iluminação, as diferentes naturezas, índoles e contextos das

personagens, os eventos e conflitos que as unem e as separam, os ângulos de

câmera: todos suportam a lógica da montagem que caracteriza o discurso

cinematográfico ao longo dos três filmes.

Cada aspecto da montagem relevante à narrativa presente em 21 Gramas é

discutido a seguir.

51

4.1 SEQUÊNCIAS, CENAS E PLANOS

A montagem de um filme a partir de um roteiro não se limita a um simples trabalho

de cortes e colagens. O sistema é, sobretudo, um trabalho de criação, em que a

linguagem do realizador impõe um estilo e revela uma visão original do mundo. Ela

norteia a organização do real, visando satisfazer simultaneamente a inteligência e a

sensibilidade, provocando a emoção artística, o efeito dramático ou onírico, capaz

de criar um jogo de equilíbrio com o tempo e o espaço, a fim de retratar uma

narrativa em certo limite de tempo (BETTON, 1987).

Para atingir o objetivo de análise do filme 21 Gramas quanto às características

de sua estrutura e discurso narrativos passíveis de diálogo com a hipermídia, iremos

ressaltar e examinar o arranjo da montagem explorada por Alejandro González

Iñárritu, assim como os tipos de seqüências, cenas e planos utilizados para o

desenvolvimento da trama.

Iñárritu incorpora em seu filme os três tipos de categoria existentes na estrutura de

montagem. A primeira delas é a montagem rítmica, encarregada de configurar ritmo

ao filme, alternando os tempos fortes com os tempos fracos, dando ordem e

proporção no espaço e na duração da narrativa. Acontecimentos que se precipitam

em ritmo rápido conotando ações violentas, trágicas e dinâmicas são traduzidas por

uma seqüencia de planos curtos, enquanto que fatos que exploram o tédio, a tristeza

ou sensualidade são revelados através de uma sucessão de planos longos (Ibid:

72).

Esse estilo de montagem fica explícito, por exemplo, na cena (figura 22) em que

Paul aparece sentado na cadeira, olhando Cristina dormir e logo após passa-se para

a cena (figura 23) em que Paul está apontando uma arma para Jack. Arriaga utiliza a

alternância de tempos fortes e fracos para criar ritmo à trama, uma vez que na

primeira cena citada os planos longos são explorados para produzir a sensação de

tristeza e depressão e logo após são substituídos por diversos curtos tipos de

planos, dispostos em sucessão a fim de criar a tensão dramática proposta na cena.

52

Planos cada vez mais curtos traduzem, em princípio, um aumento da

intensidade dramática em direção ao nó ou à reviravolta da ação. Os planos

cada vez mais longos provocam normalmente a impressão inversa: volta à

calma, relaxamento progressivo, abrandamento da angústia (BETTON,

1987: 73).

FIGURA 22: Cena do filme 21 Gramas que explora planos longos.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 23: Seqüência de curtos planos do filme 21 Gramas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

53

O ritmo cinematográfico não consiste apenas na percepção das relações de tempo

entre os planos, mas se baseia essencialmente na coincidência entre a duração de

cada plano e os movimentos de atenção que ela suscita e satisfaz. É alternando as

durações e variando com freqüência a extensão dos planos que o filme capta e

revela as diversas tensões e sentimentos de uma cena (BETTON, 1987: 72).

Visto que a montagem rítmica abordada no filme 21 Gramas visou atingir uma

totalidade de percepção intuitiva do ritmo da dramaticidade narrativa, discutiremos

agora a respeito de um segundo tipo de montagem, também utilizado como base

para a construção da história. A montagem intelectual ou ideológica, assim

denominada por Gérard Betton em Estética do Cinema, explora a justaposição entre

dois planos para que de tal forma dê origem a uma nova idéia ou exprima algo que

não existia em nenhum dos dois planos utilizados separadamente.

Segundo Betton (1997), a aproximação entre os planos busca comunicar um ponto

de vista, um sentimento ou um conteúdo ideológico ao espectador, podendo criar ou

evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor simbólico: relações

de tempo, de lugar, de causa e conseqüência.

As imagens só adquirem poder através de sua relação. È fácil constatar

que imagens (ou sons) neutras, tomadas isoladamente, são “influenciadas”

pela justaposição de outras imagens (ou de outros sons). Da mesma forma,

um pintor não se exprime por cores, mas por relações de cores: um azul é

um azul por si mesmo, mas se está ao lado de um verde, já não é o mesmo

azul (Ibid: 77)

Compreende-se ainda, no filme de Iñárritu, o uso da montagem narrativa que possui

uma função “descritiva”, utilizada para contar uma ação através de uma reunião de

diversos fragmentos de realidade, cuja sucessão se destina a formar uma totalidade

significativa. A mais simples e mais clássica, normalmente utilizada nas produções

cinematográficas, é a narrativa linear que compreende uma sucessão de cenas

dispostas uma após as outras numa ordem lógica e cronológica, sendo assim

totalmente o oposto do estilo de montagem presente na trilogia cinematográfica do

diretor Iñárritu. Nesse caso, a ordem cronológica não é respeitada: assim como visto

no filme 21 Gramas, a narrativa é construída a partir de vários trechos da trama,

54

dispostos de maneira não linear. Fragmentos da história são apresentados ao

espectador de maneira atemporal, a fim de incitá-lo a criar ligações entre uma cena

e outra, dando pistas através do comportamento das personagens ou através de

alguns pequenos detalhes no cenário.

Para atingir essa estrutura de montagem, o filme agrega diferentes tipos de planos,

que dizem respeito à proporção em que a figura humana e o ambiente são

enquadrados. Os planos ou shots podem ser fixos ou estar em movimento. A

princípio, veremos os principais planos fixos explorados na construção do filme 21

Gramas, para que no capítulo seguinte sejam abordados os planos em movimento.

Iñárritu explora cenas em que o objetivo é criar uma pausa, um tempo de “respiro”,

para que o espectador consiga refletir acerca da narrativa e assim propiciar

equilíbrio e ritmo à trama. Para elaborar esse efeito, utiliza-se o plano geral que

possui como base o enquadramento do ambiente em sua totalidade, abarcando

tanto o cenário completo como todas as personagens.

Nas ultimas cenas do filme, após Paul atirar contra si próprio, há a utilização do

método apontado acima. A câmera filma, em plano geral, pássaros voando sobre um

céu azulado. Essa cena (figura 24) descrita serve como método de “afastamento” do

espectador provavelmente aflito e ansioso, após uma cena trágica. Essa pausa

oferece ao espectador um tempo para que ocorra uma assimilação entre todos os

fatos que se sucederam nesses últimos instantes, afastando assim o observador por

alguns minutos para que o mesmo possa absorver os fortes acontecimentos que

acabaram de ser retratados.

55

FIGURA 24: Cena do filme 21 Gramas filmada em plano geral.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Há ainda, outra cena semelhante a esta reproduzida acima que utiliza o mesmo

estilo de plano, mas com um diferente objetivo. Logo no início do filme, após a

seqüência de cenas onde são apresentadas as personagens, a câmera filma, em

plano geral, pássaros voando sobre os edifícios em um fim de tarde. A exploração

desse plano (figura 25) tem agora como papel servir de preparação para a imersão

do espectador na trama.

56

FIGURA 25: Cena do filme 21 Gramas filmada em plano geral.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

O plano geral toma outro papel na montagem, além de auxiliar em “cenas de

preparação” ou no “tempo de respiro” entre as cenas: pode também situar a

personagem na história, identificando o lugar onde a ação irá decorrer. Exemplo

disso é a cena (figura 26) na qual se vê em plano aberto o local da igreja, e logo na

cena seguinte, Jack e sua família acompanham a missa no interior da construção.

FIGURA 26: Cena do filme 21 Gramas filmada em plano geral.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

57

Outra cena (figura 27) em que ocorre o plano geral é aquela na qual Jack está

conversando com o seu chefe na rua, pouco antes de atropelar as filhas e o marido

de Cristina. Nesta cena, enquadram-se as personagens por inteiro e o ambiente

ocupa grande parte da tela reduzindo os atores a silhuetas minúsculas, causando

uma sensação de afastamento entre as personagens.

FIGURA 27: Cena do filme 21 Gramas filmada em plano geral.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Outro método de filmagem explorado por Iñárritu na composição das cenas é o

enquadramento em que predomina o sujeito em relação ao ambiente, denominado

como plano médio ou americano, onde a personagem é vista da cintura para cima

ou a figura é cortada pelos joelhos (GRIMALDI; MIRANDA, 1988). Com o intuito de

atrair a atenção do espectador para a ação executada na trama, a cena (figura 28)

em que Paul está andando com a arma na mão foi filmada utilizando o plano médio.

Essa escolha de plano acaba por sugerir mobilidade e aproximação, podendo captar

pormenores acerca da personagem e assim conduzir a atenção do espectador com

relação aos acontecimentos.

58

FIGURA 28: Cena do filme 21 Gramas filmada em plano médio.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Ainda como plano fixo explorado no filme, temos o primeiro plano ou close up, que

põe em evidência um detalhe e amplia a expressão da personagem na cena e,

conseqüentemente, aumenta a intensidade do momento revelando emoções.

(COMPARATO, 1995). Esse efeito se traduz claramente na cena (figura 29) em que

Paul revela a verdade à Cristina sobre o fato de ter recebido a doação de órgão do

falecido marido dela. No close, o fundo fica totalmente subordinado ao motivo do

primeiro plano, e apesar de seu tempo de leitura ser breve, consegue suportar um

grande poder expressivo captando todas as mudanças de expressão da

personagem.

59

FIGURA 29: Cena do filme 21 Gramas filmada em close up.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Por extensão, também há o “primeiríssimo plano”, designado pelo termo big close ou

very close up, tendo como função ressaltar um detalhe da personagem ou de um

objeto de determinada cena (COMPARATO, 1995: 314). Esse tipo de filmagem foi

utilizado por Iñárritu em cenas que prevêem grande impacto, como na cena (figura

30) em que Jack produz um corte sobre sua tatuagem em forma de cruz com uma

faca quente. Identifica-se ainda a cena (figura 31) em que Paul segura seu próprio

coração em um recipiente de vidro. Com o uso do big close, estas cenas adquirem

um maior grau de intensidade pelo fato desse tipo de filmagem ter um notável poder

expressivo, causando no espectador um impacto visual muito grande.

60

FIGURA 30: Cena do filme 21 Gramas filmada em big close.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 31: Cena do filme 21 Gramas filmada em big close.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Outra técnica da câmera utilizada para criar uma unidade dramática é a

desfocagem, que leva a câmera a focalizar apenas um ponto ou personagem,

removendo do foco tudo aquilo que rodeia o ponto de destaque. Na cena (figura 32)

em que Cristina recebe a notícia da morte de suas filhas e do grave estado de seu

marido, o método de filmagem apontado acima é explorado com o fim de pôr em

61

relevo o estado de choque da personagem, enaltecendo o momento dramático da

cena.

FIGURA 32: cena que demonstra a utilização do desfoque para criar a unidade dramática.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Enfim, através dos métodos de filmagem citados e explorados nesta seção, fica

explícita a grande importância do entendimento de cada ângulo que a câmera pode

captar, para que uma narrativa seja explorada da melhor forma possível. A câmera

penetra no terreno do cinema com todos os seus recursos, a fim de proporcionar

uma experiência única ao espectador, através de sua aproximação, tornando-se

íntima dos personagens, rompendo barreiras com o observado e ainda revelando

pormenores de situações.

Nesta seção abordamos a estrutura de montagem do filme 21 Gramas, analisando

os tipos de seqüências, cenas e planos utilizados. Incorporamos os três tipos de

montagem – rítmica, intelectual ou ideológica e narrativa, abordadas por Betton em

seu livro Estética do Cinema – para melhor compreender os métodos de montagem

explorados. Discorremos também acerca dos tipos de planos fixos trabalhados no

filme, apontando o efeito que um enquadramento ou um desfoque pode ter na

narrativa.

62

4.2 ILUMINAÇÃO E MOVIMENTOS DE CÂMERA

Ao se juntarem aos planos em movimento, os planos fixos descritos anteriormente

acabam por explorar outras formas de combinação entre planos para a criação da

montagem. Com a câmera em movimento, é possível focalizar melhor os diversos

elementos que compõem a cena, em busca, assim, de maiores efeitos de

intensificação expressiva, para uma melhor abordagem da narrativa.

O chamado efeito de “câmera na mão” esteve presente não somente no filme 21

Gramas, mas também em toda a trilogia de que ele faz parte, com o objetivo de

transmitir ao público um grau maior de veracidade e realidade à narrativa. Esse

estilo de movimentação acaba por apresentar

(...) o resultado de uma modalidade de filmagem em que os sobressaltos e

as irregularidades de deslocamento se tornaram a marca de uma

participação que se pode definir como física, envolvente, no evento filmado

(COSTA, 2003: 187)

Há também a técnica por meio da qual a câmera pode se deslocar, acompanhando

o movimento da personagem ou de alguma coisa que se mexe na mesma

velocidade. Neste caso, o termo usado é o travelling shot (Ibid: 316). Na cena em

que Cristina chega ao hospital após receber a ligação sobre o acidente envolvendo

sua família, a câmera acompanha os movimentos da personagem de duas formas

distintas. O primeiro modo (figura 32) foi filmar a personagem de frente,

movimentando a câmera para trás a cada passo que a personagem dava. A

segunda forma (figura 33) foi seguir a personagem, filmando a sua movimentação de

costas para a câmera. Esse estilo de filmagem, travelling shot, foi utilizado com o

intuito de aumentar a intensidade do instante, dando a sensação de movimento ao

espectador.

63

FIGURA 32: Cena do filme 21 Gramas filmada em travelling shot.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 33: Cena do filme 21 Gramas filmada em travelling shot.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Outro método de movimentação de câmera usualmente utilizado é a panorâmica ou

pan, que consiste em movimentar a câmera para explorar uma visão geral do

ambiente (COSTA, 2003: 316). Esse tipo de filmagem foi usado na cena (figura 34)

em que Cristina e Paul estão chegando de carro ao local em que Jack está

trabalhando. A câmera se desloca, explorando o ambiente em que as personagens

estão inseridas, identificando o local onde a ação está ocorrendo.

64

FIGURA 34: Cena do filme 21 Gramas filmada em panorâmica.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Há também a movimentação de câmera, denominada ponto de vista, que se situa ao

nível dos olhos da personagem, criando a sensação de ver através dela (COSTA,

2003: 315). Na cena (figura 35) em que Cristina observa pela primeira vez o homem

(Jack) que matou sua família, Iñárritu trabalha com a movimentação de câmera do

ponto de vista da personagem, nos dando a impressão de ver o que a personagem

vê, o que aproxima o espectador do momento.

FIGURA 35: Cena do filme 21 Gramas filmada em ponto de vista.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

65

Após estudar os estilos de movimentação de câmera explorados no filme 21

Gramas, fica clara, portanto a influência que o modo de filmagem causa no contar da

história. A escolha certa dos planos em movimento favorece ainda mais o despertar

das emoções, acaba por atrair a atenção do espectador para o que ocorre na trama,

incitando-o a imergir e desfrutar da narrativa.

Cabe, ainda nessa seção, destacar as diferentes funções que a iluminação exerce

sobre a narrativa na arte cinematográfica. A luz, juntamente com outros elementos

relacionados à estética do filme, ajuda a compor a cena e ainda poupa o uso de

meios óbvios para explicitar uma emoção, passando assim a exercer o papel de

elemento simbólico.

“O cinema aprendeu bem cedo a singularizar certas zonas da imagem, e da cena,

por uma iluminação apropriada, a salientar, significantemente, certos elementos”

(AUMONT, 2004: 174).

Essa função simbólica liga a presença da luz na imagem a um sentido, como na

cena (figuras 36 e 37) em que Cristina está fechando a porta, após olhar o quarto de

suas filhas que acabaram de falecer. Nesta cena, a luz aparece estourada enquanto

a porta ainda está aberta, e quando ela se fecha há um corte seco da iluminação

proveniente do quarto. Sem precisar de falas ou expressões faciais, o filme

consegue transpor, através do jogo de iluminação, o sofrimento da mãe, como se

aquela interrupção do foco de luz representasse o fim de toda a vida e esperança de

Cristina após a morte de suas filhas.

66

FIGURAS 36 e 37: Cena do filme 21 Gramas em que a luz exerce função simbólica.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Há ainda a cena em que Cristina está sentada em uma das camas do quarto de

suas filhas, segurando um urso de pelúcia (figura 38). Nesse momento, a luz

presente no ambiente está focada diretamente em sua barriga, transmitindo a

sensação de algo divino, algo novo e maravilhoso em sua vida. O foco de luz no

ventre de Cristina serve, provavelmente, como metáfora para sua gravidez, já que,

ao final da trama, ela recebe a notícia de que espera um filho de Paul.

67

FIGURA 38: O foco de luz no ventre de Cristina serve como metáfora para sua gravidez.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

O papel da luz no cinema não se baseia apenas na função simbólica que ela

desempenha, uma vez que a luz é responsável também pelo aumento do efeito

dramático da cena. A intensificação da iluminação sobre um determinado ponto do

enquadramento transmite ao espectador um grande impacto, necessário para a

progressão da história.

De acordo com Stephenson em O cinema como arte, a iluminação pode fazer com

que uma composição tenha uma estrutura unificada, salientando-lhe o significado,

concentrando a atenção no que é importante e deixando na sombra demais

detalhes.

Um exemplo da utilização da luz como efeito dramático é a cena em que a esposa

de Jack, Marianne (Melissa Leo), aparece extremamente abalada lavando o carro do

marido, logo após tomar conhecimento do acidente, que o tornou um assassino

(figura 39). A intensificação da luminosidade na cena, juntamente com a filmagem

em close up, possibilitaram o aumento da perspectiva dramática, enriquecendo

ainda mais o impacto visual da cena.

68

FIGURA 39: Cena do filme 21 Gramas em que a luz exerce função dramática.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Há ainda, no filme, efeitos criados pela iluminação para compor a atmosfera que

envolve os acontecimentos desencadeados na trama. O uso de luzes mais suaves e

avermelhadas favorecem o tom emocional que determinadas cenas procuram

exprimir. Exemplo disso é o caso da cena em que Cristina está recebendo consolo

de seu pai no velório de sua família (figura 40). A iluminação suave e mais sombria,

acompanhada do tom avermelhado, proporciona uma função atmosférica cênica de

consternação e desalento à imagem, que reflete claramente os sentimentos

expostos pela personagem de Naomi Watts.

69

FIGURA 40: Cena do filme 21 Gramas na qual a luz proporciona uma função atmosférica.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Compreende-se, então, que a iluminação, quando habilmente elaborada e atrelada à

narrativa do filme, determina o tom emocional e dá às personagens um caráter

adequado às cenas, contribuindo para a criação de uma forma expressiva que incita

a imersão do espectador na trama.

Em suma, nesta seção tratamos dos tipos de movimentação de câmera explorados

no filme 21 Gramas, enfocando sua importância para o desenrolar da narrativa.

Continuando com a análise, abordamos o efeito que a iluminação pode causar em

determinadas cenas, tornando-as ainda mais fortes e dramáticas.

70

4.3 TRATAMENTO DE IMAGEM

O roteiro intrincado e fragmentado de 21 Gramas escrito por Arriaga significou para

Iñárritu um desafio com relação à transcrição em imagem e som. Para auxiliá-lo

nesta tarefa, o diretor de fotografia do filme Rodrigo Prieto tornou-se responsável,

juntamente com a designer de produção Brigitte Broch, por todas as locações e

estratégias visuais utilizadas em 21 Gramas. Ressalta-se ainda que Prieto também

assina a direção de fotografia de Amores Brutos e Babel e que, exatamente por isso,

os pontos de análise da imagem aqui levantados também se encaixam, em maior ou

menor grau, nos outros dois filmes da trilogia, visto que Prieto mantém uma unidade

visual entre as obras.

O ponto principal a ser destacado no que diz respeito ao tratamento visual de 21

Gramas é o que o próprio Prieto denomina “estrutura granular”, obtida através da

filmagem com diversos tipos de película (SMITH, 2003). Por meio das texturas das

imagens – que podem variar de um tom límpido e brilhante a um tom granulado e

obscuro – o diretor de fotografia consegue interpretar e ressaltar os sentimentos

vividos pelas personagens nos diversos ciclos da trama, e desenvolver uma espécie

de “sugestão visual”, capaz de orientar o público no sentido de saber em qual das

três histórias ele se encontra, bem como qual o momento cronológico e emocional

que determinada personagem está vivendo.

Dessa forma, as propriedades técnicas da película passam a funcionar como

elemento dramático, ficando evidente a diferença na granulosidade da imagem de

acordo com a situação vivida pelas personagens. Paul, por exemplo, começa o filme

sendo captado por uma película bastante granulada, já que se encontra em uma

situação não muito esperançosa – está à beira da morte, aguardando um transplante

de coração; após ter seu coração transplantado, passa a vivenciar cenas mais

nítidas e reluzentes, conseqüência de uma condição mais otimista (figuras 41 e 42).

71

FIGURAS 41 e 42: Paul à beira da morte no hospital (antes do transplante), e após ter seu coração

transplantado: a diferença no tratamento da imagem é evidente e contribui significativamente para

aumentar ou diminuir a dramaticidade das cenas.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

O mesmo acontece com Cristina e Jack: a primeira passa a vivenciar cenas mais

obscuras e granuladas a partir do instante em que perde marido e filhas no acidente,

bem como quando volta a usar drogas (figuras 43 e 44); já Jack é captado através

72

da película especial nas cenas que se passam cronologicamente após o

atropelamento e, principalmente, nas cenas da prisão (figuras 45 e 46).

FIGURAS 43 e 44: Cristina antes e depois da morte do marido e das filhas: as cenas posteriores ao

acidente também apresentam granulação na imagem.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

73

FIGURAS 45 e 46: Jack antes e depois do acidente: a película texturizada é capaz de ajudar a

transmitir as emoções do personagem.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Percebe-se que Prieto opta por utilizar sua “estrutura granular” em cenas cuja

dramaticidade é elevada, a fim de, segundo ele mesmo, poder tocar

emocionalmente o espectador sem que este se dê conta, aproveitando o poder da

74

imperfeição e do “erro” para aumentar a urgência e a imprevisibilidade das cenas

(SMITH, 2003: 77).

A granulosidade da imagem, no entanto, não é o único recurso imagético utilizado

pelo diretor de fotografia no momento de conferir clima às cenas e expor os

sentimentos vividos pelas personagens. As cores dos ambientes e paisagens

também desempenham um importante papel ao ajudarem a traduzir a evolução ou

regressão moral, sentimental e afetiva dos personagens.

Sem cair num simbolismo elementar, a cor pode ter um eminente valor

psicológico e dramático. Assim, sua utilização bem compreendida pode ser

não apenas uma fotocópia do real exterior, mas preencher igualmente uma

função expressiva e metafórica da mesma forma que o preto-e-branco é

capaz de traduzir e dramatizar a luz (MARTIN, 2003: 71).

Em 21 Gramas, Prieto optou por utilizar variações na temperatura e na paleta de

cores para definir cada personagem, bem como para caracterizar suas emoções.

Assim, percebe-se que as cenas da personagem Paul são, na maioria das vezes,

mais azuladas e iluminadas, apresentando uma gama maior de cores frias (figura

47); as cores presentes nas cenas de Jack são mais vibrantes e tendem mais ao

vermelho e alaranjado (figura 48); o mundo de Cristina pode ser caracterizado como

intermediário, variando bastante entre tons quentes e frios, já que ela representa o

ponto de encontro entre os dois opostos (figura 49). Nota-se, ainda, a mistura entre

esses tons na medida em que as vidas dos personagens passam a se relacionar,

até atingirem o clímax no final da narrativa.

75

FIGURA 47: As cenas da personagem Paul apresentam cores mais azuladas e frias.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 48: As cores presentes nas cenas de Jack tendem a ser mais vibrantes (tons vermelhos e

alaranjados).

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

76

FIGURA 49: As cenas em que Cristina aparece variam entre tons quentes e frios.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Fica evidente, até aqui, que, além de cumprir uma função técnica, as cores servem

também para cumprir funções metafóricas e narrativas, pois assim como outros

elementos fílmicos (como a montagem, os enquadramentos, os movimentos de

câmera, a iluminação, as locações e a trilha sonora), auxiliam na comunicação e

propagação de emoções, sentimentos e sensações, chegando a ampliar a

dramaticidade das cenas.

Exemplo claro disso é a seqüência na qual Cristina prepara um bolo junto com as

filhas (figura 50): a paleta de cores mais quentes torna a cena muito mais

acolhedora e viva, despertando sentimentos positivos no espectador. O mesmo não

acontece, no entanto, na cena em que Cristina lava as roupas das filhas após o

acidente (figura 51): ao abusar dos tons esverdeados, a cena é bem menos

acolhedora que a primeira, transmitindo ao espectador a angústia, sofrimento e

desejo de vingança da personagem naquele momento. Já na cena em que Cristina

vai sozinha a uma casa noturna (figura 52), os tons avermelhados do ambiente

remetem, certamente, à paixão, sexo e luxúria. Os tons mais frios e pálidos

presentes na seqüência do almoço entre Cristina e Paul (figura 53) transmitem a

sensação de paz, harmonia e uma possível relação entre o casal.

77

FIGURA 50: Cristina prepara bolo com as filhas: a paleta de cores mais quentes torna a cena mais

acolhedora e viva.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 51: Cristina lava as roupas das filhas após o acidente: os tons esverdeados transmitem a

angústia, sofrimento e desejo de vingança da personagem.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

78

FIGURA 52: Cristina vai sozinha a uma casa noturna: os tons avermelhados remetem à paixão, sexo

e luxúria.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

FIGURA 53: Cristina e Paul almoçam juntos: Os tons mais frios e pálidos transmitem a sensação de

paz, harmonia e uma possível relação entre o casal.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

São inúmeras as cenas em 21 Gramas nas quais a cor representa um forte atributo

no momento de transmitir sentimentos e emoções, auxiliando diretamente no

79

discurso narrativo da trama. Cabe aqui, no entanto, ressaltar a importância de outros

elementos narrativos que não estão sendo estudados mais a fundo nesse trabalho,

mas que, somados à cor e ao tratamento da película já analisados, moldam um

grupo harmônico e influente: o figurino e os cenários e locações. Esses últimos são

trabalhados por Prieto principalmente através de ambientes sujos, sórdidos e

depressivos, que ajudam a compor as texturas das cenas – como é o caso do

hospital, da prisão e do próprio hotel no qual Paul e Cristina se hospedam.

Tomando-se como exemplo a prisão de Jack (figuras 54 e 55), percebe-se que o

diretor de fotografia explora a rispidez do ambiente, criando (juntamente com o

tratamento de cor, iluminação e textura da película) uma composição apertada e

claustrofóbica, capaz de transmitir o sofrimento e terror vividos pela personagem de

Benicio del Toro.

80

FIGURAS 54 e 55: A prisão de Jack: o fotógrafo Rodrigo Prieto opta, quase sempre, por trabalhar

com ambientes sujos e depressivos.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Outro aspecto que merece destaque na direção de fotografia de Rodrigo Prieto são

as cores ultra-contrastadas e pouco saturadas de algumas seqüências, obtidas

através de uma técnica denominada skip-bleach ou bleach-bypass (sem tradução

para o português), na qual alguns tons são deteriorados enquanto outros

(principalmente os azuis e os tons mais escuros) são consideravelmente

ressaltados, tornando as imagens mais densas e escuras. Em outras palavras, a

técnica do skip-bleach “pula” parte da etapa de remoção da prata da película,

fazendo com que grande quantidade dessa prata fique retida, adicionando cinza ou

preto à coloração, e aumentado o contraste e a dessaturação das imagens (KODAK,

2008).

É dessa maneira que Prieto consegue desgastar os tons de pele dos personagens,

salientar as cores escuras dos ambientes e figurinos e aumentar a reticulação da

película, potencializando o momento dramático das cenas. Essa técnica pode ser

percebida nas cenas em que Cristina e Paul olham de dentro do carro Jack trabalhar

(figura 56); na cena em que Cristina revisita o restaurante onde seu marido e filhas

81

fizeram a última refeição (figura 57); na cena em que a piscina do hotel no qual Paul

e Cristina estão hospedados é mostrada (figura 58), entre outras.

Figura 56: Cristina e Paul olham de dentro do carro Jack trabalhar. Fica claro nessa seqüência as

cores ultra-contrastadas e o desgaste na cor da pele dos personagens.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Figura 57: Cristina retorna ao restaurante onde marido e filhas tiveram a última refeição. Prieto opta

por realçar os tons escuros e desgastar os tons mais claros para potencializar a dramaticidade da

cena.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

82

Figura 58: A cena da piscina do hotel onde Cristina e Paul estão hospedados representa o exemplo

máximo da técnica do skip-bleach: cores altamente contrastadas, realce dos tons azuis e aumento na

granulosidade da película.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Por meio de todas as técnicas acima levantadas e analisadas, Rodrigo Prieto exerce

com habilidade o verdadeiro papel de um diretor de fotografia, produzindo condições

de luz adequadas que, combinadas com as técnicas de filmagem e de cópia,

conseguem criar os resultados fotográficos previstos pelo roteiro e exigidos pelo

diretor (COSTA, 2003). Através de sua fotografia contrastada e texturizada, das

locações degradadas e impactantes, e das cores que traduzem personagens e

momentos narrativos, Prieto definitivamente consegue adicionar à trama um poder

imagético e dramático importante, capaz de tocar imperceptivelmente o público e

fazer com que as cenas de 21 Gramas pareçam sempre muito intensas.

4.4 ANÁLISE DO TECIDO SONORO

Nesta seção pretende-se analisar os elementos que compõem o tecido sonoro do

filme 21 Gramas, trazendo à tona não somente uma abordagem técnica (que

também se faz necessária), mas, principalmente, uma análise de como o som ajuda

83

a contar a história, estando sempre a serviço da narrativa e auxiliando o propósito

primordial do filme.

Sendo assim, entende-se que é necessário pensar o som em associação à

montagem da obra cinematográfica, e não como um elemento particular e/ou

coadjuvante a ela. Fica cada vez mais claro que, atualmente,

[...] o som já se torna uma potencialidade, abre novas possibilidades

gramaticais e traz uma série de implicações para a linguagem fílmica. No

cinema sonoro, a imagem torna-se mais relativa, precisa de uma

complementação do tecido sonoro para uma leitura mais “correta”, para sua

legitimação. O som passa a interferir na leitura, senão a determiná-la

(MANZANO, 2003: 108).

O som, atrelado ao filme, portanto, não só ambienta, contextualiza e aumenta a

potencialidade de imersão do espectador nos acontecimentos da história, como

também cria uma nova dimensão, abrindo espaço para uma grande gama de

potencialidades narrativas. Através dele, cria-se a possibilidade de expor

acontecimentos que, se contados por meio de imagens, seriam menos subjetivos e,

conseqüentemente, menos interessantes.

A partir da idéia do “indivisível”, pode-se entender a colocação de Deleuze

de que os sons fazem parte de um todo orgânico, estão associados à

imagem visual modificando-a, daí só se separem “na abstração de sua

audição pura”. Uma vez dentro do filme, os sons devem ser entendidos em

função do conjunto, formando um único componente, um “contínuo” (Ibid.:

113).

A idéia de um “contínuo sonoro” proposta por Deleuze remete a idéia de “tecido

sonoro” proposta por Marshall McLuhan, que pode ser entendida como o “conjunto

de elementos que constituem o espaço acústico e que vem somar-se a imagem – e

que produz, em conjunto com a imagem, um sentido audiovisual que não pode ser

realizado autonomamente nem pela imagem nem pelo som” (BASBAUM, 2007: 2).

Entende-se como espaço acústico, por sua vez, um espaço que

84

[...] não tem um ponto de localização favorecido. É uma esfera sem limites

fixos, espaço feito pela própria coisa [som], não espaço contendo a coisa.

Não é um espaço pictórico, encaixado, mas dinâmico, em fluxo constante,

criando suas próprias dimensões de momento em momento. Não tem

fronteiras rígidas; é indiferente ao background, ao meio circundante. Os

olhos focalizam, localizam, abstraem, situam cada objeto no espaço físico,

contra um fundo; o ouvido, porém, acolhe o som proveniente de qualquer

direção (MCLUHAN apud BASBAUM, 2007: 1).

Cabe aqui, ainda, retomar rapidamente o conceito de diegese que, em poucas

palavras, corresponde ao mundo definido pela narrativa, um espaço-tempo em que

há coisas, habitado por certas personagens, onde se desenrola uma história

(BASBAUM, 2007). Sendo assim, os eventos sonoros de um filme podem ser

classificados em diegéticos e não-diegéticos, correspondendo os primeiros aos sons

que fazem parte da cena e os quais os personagens podem escutar, e os outros,

não-diegéticos, aos sons que somente o espectador pode ouvir, pois não emanam

do espaço da cena.

Assim, o tecido sonoro acima citado é composto basicamente por três elementos

distintos: voz, ruído e música. O elemento voz pode ser classificado como diegético

ou não-diegético e, a partir daí como on – o emissor está em quadro na cena e é

visível ao espectador; off – o emissor está em cena, porém fora do espaço fílmico; e

over – onde a voz integra a cena, mas é sobreposta a imagem, vindo, quase

sempre, de um lugar fora do mundo diegético (por exemplo, narradores de

documentários). Os ruídos também podem ser classificados em diegéticos e não-

diegéticos (sendo esses últimos bastante explorados na sonorização de filmes de

suspense e terror) e, então, em on e off. Por último, a música classifica-se em:

diegética – podendo aqui ser on ou off, e não-diegética – podendo, neste caso, ser

over.

Logo nas primeiras cenas, percebe-se a exploração do silêncio como um valor

positivo à narrativa. A ausência de qualquer intervenção musical e de vozes e a

presença apenas de alguns ruídos ambientes reforçam a tensão dramática das

cenas, chamam a atenção do espectador para seu visual, ao mesmo tempo em que

85

transmitem as sensações de vazio, afastamento, tédio, tensão, neutralidade (todas

as personagens parecem estar no mesmo patamar na trama), ou mesmo paz.

Quanto ao uso do silêncio, é importante destacar seu potencial, tanto por

seu valor dramático, ressaltando a tensão ou carga dramática num

determinado momento, como também estabelecendo um elo com o cinema

“mudo” e o conceito de imagem pura, de um visual elaborado e aceito

“naturalmente”. Sem dúvida, o silêncio – presente ou não – ajuda-nos a

revelar o “teor” da cena que se desenvolve. (...) Seu valor dramático é

grande, se bem usado em relação à imagem (e à montagem). Da mesma

forma, tal qual pensamos o conceito de ruídos (ou até diálogo), associados

ao conceito de montagem, o silêncio pode surgir para ressaltar o visual, a

imagem, valorizando esse elemento. (...) Partindo do cinema “mudo”,

chegamos ao silêncio enquanto possibilidade dramática do cinema sonoro

(MANZANO, 2003: 116).

Exemplo disso é a cena de abertura do filme 21 Gramas, na qual Paul encontra-se

ao lado de Cristina na cama (figura 59); a cena em que Paul está sentado de frente

à piscina do hotel, com uma arma na mão (figura 60); e algumas cenas que exercem

a função do que chamamos de “inserções”, que funcionam como transições de um

momento narrativo para outro (figura 61).

86

Figura 59: Cena inicial do filme 21 Gramas: Paul fuma ao lado de Cristina na cama. Aqui, o silêncio

ajuda a aumentar a tensão dramática da cena.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Figura 60: Paul, sentado à beira da piscina do hotel, planeja qual a melhor maneira de vingar-se de

Jack. Também nesse caso, o silêncio auxilia a imersão do espectador na narrativa, abrindo espaço

para outras interpretações (o que Paul está pensando no momento, por exemplo).

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

87

Figura 61: As "inserções", algumas vezes silenciosas, funcionam como transições de um momento

narrativo para outro.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Percebe-se, ainda, a utilização da trilha sonora (assinada pelo mexicano Gustavo

Santaolalla) como método de “afastamento” do espectador em relação à narrativa,

ou seja, em muitas das cenas, as músicas (na grande maioria das vezes serenas,

minimalistas e, até mesmo um pouco depressivas e angustiantes) servem como

“escape” para o espectador possivelmente agoniado e ansioso. É o que visivelmente

acontece em quase todas as inserções, através das quais o espectador tem a

possibilidade de emergir do universo diegético criado pela narrativa e refletir acerca

da história.

Tais inserções (ou cenas de transição), em conjunto com seus respectivos

tratamento sonoros, no entanto, não funcionam somente para afastar o espectador

da trama. Ao contrário do que se imagina, tais cenas podem servir, também, como

um método de inclusão do espectador na história, ou seja, podem funcionar ora

como preparação para determinados momentos narrativos, ora como conseqüência

de outros, aumentando a vivência na narrativa.

88

Uma cena de preparação é aquela em que o espectador e em geral o

personagem ou os personagens se preparam para uma próxima cena

dramática. (...) Uma cena de conseqüência (aftermath, em inglês) é aquela

em que se permite ao personagem e ao público “digerirem” uma cena

dramática imediatamente anterior. Nos dois tipos de cena, música e

atmosfera, juntamente com poesia visual e auditiva, são usadas como apelo

direto às emoções do público (HOWARD; MABLEY, 2002: 116).

Conforme visto anteriormente, a utilização do silêncio em determinados momentos

pode servir para ressaltar o teor dramático da cena, bem como valorizar seu

tratamento visual, e que a trilha sonora, em muitos casos, é utilizada como método

de “afastamento” do espectador em relação à narrativa. Sendo assim, pode-se dizer

que as “inserções silenciosas”, ou seja, aquelas em que não há presença de trilha

sonora, funcionam como cenas de preparação e imersão do espectador na trama,

visto que antecedem seqüências cuja dramaticidade é bastante elevada. Observa-se

tal recurso, por exemplo, na cena que antecede a de Paul no hospital e na cena de

Cristina se drogando; já as “inserções sonorizadas”, ou seja, aquelas que

apresentam fundo musical, exercem o papel de cenas de conseqüência, ao afastar

(justamente com o auxílio da trilha sonora) o espectador da narrativa para que possa

“digerir” e refletir acerca do que se passou anteriormente – caso da cena posterior

ao tiro que Paul dispara contra si no quarto de hotel.

Se por um lado a trilha sonora é, muitas vezes, utilizada como um artifício para

resgatar o espectador do universo paralelo criado pela narrativa, por outro lado é

constantemente utilizada para conferir clima às cenas, ressaltando o seu valor

dramático e fazendo com que o espectador mergulhe ainda mais na diegese fílmica.

Neste caso, ela pode servir “apenas” para ambientar e contextualizar as situações –

como é o caso das músicas que tocam durante a festa de aniversário na casa de

Jack, ou na discoteca na qual Cristina vai para se distrair. A trilha sonora serve ainda

para ajudar a transmitir e potencializar sensações que somente as imagens não

conseguiriam propagar, tornando-se, assim, um “elemento útil à compreensão da

tonalidade humana do episódio” (MARTIN, 2003: 125), e servindo realmente como

um suporte à narrativa. É exatamente o recurso utilizado por Santaolalla na

seqüência em que Cristina revisita todos os ambientes freqüentados por seu marido

e suas filhas antes de morrerem (figura 62). A personagem conversa com o

89

jardineiro que presenciou o acidente e vai até o restaurante onde marido e filhas

fizeram a última refeição, sentando na esquina na qual foram atropelados, tudo isso

acompanhado por uma música melancólica, deprimente e penosa, o que vai ao

encontro do sofrimento e da angústia vividos pelo personagem de Naomi Watts

naquele momento.

Figura 62: Cristina revisita os locais do acidente. Nesta seqüência, a trilha sonora de Gustavo

Santaolalla transmite ao espectador toda angústia e sofrimento vividos pelo personagem de Naomi

Watts nesse momento.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Outro recurso utilizado por Santolalla na composição do tecido sonoro de 21 Gramas

é o que será chamado de “contraste sonoro”. Algumas seqüências passam de um

silêncio quase que total ou de uma trilha sonora bastante singela para um espaço

acústico preenchido por músicas agitadas e festivas que em nada remetem ao que

acabou de acontecer. Esse tipo de recurso é conhecido como preparação por

contraste, e

[...] nesse tipo de cena você vai instilando no público uma expectativa

emocional oposta aos efeitos que a próxima cena dramática provocará.

Pouco antes das más notícias ou de um acontecimento indesejado, a

preparação por contraste pode ser usada para fazer com que o espectador

se sinta bem, esperançoso ou tenha uma atitude positiva. O inverso

90

também funciona muito bem. A preparação por contraste aumenta o

impacto do momento dramático seguinte porque acentua sensivelmente a

reviravolta emocional do espectador (HOWARD; MABLEY, 2002:

117).

É exatamente o que acontece na transição entre as cenas em que Cristina chega ao

hospital para saber o estado de seu marido e suas filhas e a festa de aniversário na

casa de Jack na mesma noite do atropelamento: existe um contraste claro entre o

ambiente silencioso, aflitivo e mórbido do hospital, e o clima descontraído e animado

da casa de Jack. Um pouco mais adiante, o contraste sonoro dar-se-á entre o

interior da casa de Jack, onde acontece a festa, e o exterior silencioso da casa, onde

Jack conta a mulher a respeito do ato que acabou de cometer.

Parafraseando McLuhan (1980), podemos dizer que o som no filme amplia

consideravelmente o espaço fílmico e, dentre outras coisas, é capaz de tornar

presente a coisa ausente. Assim,

“(...) uma chuva (...) cai do lado de fora de uma sala onde se passa uma

cena (ouvimos, sabemos que chove lá fora, mas não vemos a chuva); uma

ambulância passa lá fora e ouvimos a sua sirene; um tiro ressoa na noite

etc”. (MCLUHAN apud BASBAUM, 2007: 5).

Manipulado dessa maneira, o som (e principalmente a utilização de ruídos) é

perfeitamente capaz de expandir o espaço visual e apontar para o que está além do

espaço on da tela. É justamente essa a técnica utilizada por Iñárritu e Santaolalla no

momento de contar ao espectador um dos pontos-chave da história de 21 Gramas: o

atropelamento do marido e das filhas de Cristina (figuras 63, 64 e 65). Nessa cena, o

diretor opta por fixar a câmera em um local específico (nesse caso, em frente a uma

casa na qual um jardineiro limpa o gramado) e narrar o acontecimento somente

através de ruídos: primeiramente, a câmera mostra uma caminhonete passando em

alta velocidade; depois, escuta-se uma freada forte de carro e o ruído de choque; o

jardineiro, assustado, presencia o acidente e corre para prestar socorro (saindo do

espaço on da cena); e, por último, escuta-se o arranque da caminhonete, já

sugerindo que o motorista responsável pelo acidente não prestou ajuda aos feridos.

91

92

FIGURAS 63, 64 e 65: A seqüência do atropelamento da família de Cristina, uma das mais

importantes para a trama, é narrada por Iñárritu somente através da “referência sonora”.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Dessa maneira, através de uma “referência sonora” (já que o acidente não foi

explicitamente exibido), Iñárritu consegue narrar um dos pontos principais da trama,

mantendo o suspense e subjetividade necessários para aquele instante da narrativa,

e unindo imagem e som com o intuito de aumentar a densidade dramática do

acontecimento.

Outro item relevante no tratamento sonoro concedido a 21 Gramas é o recurso o

qual se costuma chamar de ponto de escuta, uma analogia ao já conhecido ponto de

vista.

A representação da percepção do som pelos personagens depende daquilo

que é chamado de seu ponto de escuta (...). Em princípio, em nome do

realismo da representação audiovisual, há coincidência entre o ponto de

escuta e o ponto de vista, tanto para os personagens quanto para o

espectador. Mas pode ser que este ouça o som através do ponto de escuta

de um personagem: de maneira subjetiva (...) ou de maneira objetiva (...),

ou então que um ponto de escuta lhe seja mostrado como surdo (...); [e]

pode ocorrer ainda que o espectador escute os sons antes dos

personagens (...) (MARTIN, 2003: 131).

93

Assim, através do ponto de escuta, o espectador é capaz de “vivenciar”, entender a

situação e até mesmo ser levado para dentro da mente de um determinado

personagem, sem que necessariamente este esteja presente no espaço on da cena.

Um exemplo claro da utilização do ponto de escuta em 21 Gramas é a seqüência em

que Jack é espancado por Cristina após invadir o quarto de hotel onde está

hospedada com Paul (figuras 66 e 67). O ruído crescente que toma conta do

ambiente enquanto Cristina bate em Jack com o abajur afasta o público da briga e o

conduz para dentro da mente transtornada de Paul, que se encontra no espaço off

da cena. O forte ruído só é amenizado com o som do tiro que Paul dispara contra si,

reforçando a idéia de que se tratava realmente de seu ponto de escuta,

subjetivamente narrado para o espectador através do som.

94

FIGURAS 66 e 67: Enquanto Cristina vinga-se de Jack, o espectador é convidado a entrar na mente

de Paul através do recurso do ponto de escuta. O ruído que o representa só é amenizado depois do

tiro que dispara contra si mesmo.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Cabe, aqui, destacar uma seqüência do terceiro filme da trilogia, Babel, na qual

Iñárritu, também através do ponto de escuta, permite ao espectador vivenciar a

experiência da personagem Chieko, uma adolescente surda-muda, ao ir com os

colegas a uma discoteca (figura 68). A alternância entre a música eletrônica em

volume elevado e som abafado (supostamente aquele escutado pela personagem)

traduz ao espectador toda angústia e aflição vividos pela jovem naquele instante.

Aqui, som e imagem são combinados para aumentar a dramaticidade da cena e

ajudar no desenvolvimento da narrativa.

95

FIGURA 68: Em Babel, a utilização do ponto de escuta é evidente na cena em que Chieko, a

adolescente surda-muda, vai à danceteria com os colegas. A alternância entre música e silêncio faz

com que o público realmente vivencie a condição da deficiente auditiva.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

De volta a 21 Gramas, ainda na seqüência do quarto de hotel, é evidente o

tratamento distorcido dado ao som da voz de Cristina a partir do momento em que

Paul atira em si mesmo. Ao pedir para que Jack chame uma ambulância, percebe-se

o som de sua voz um tanto quanto “sujo” e “rasgado”, parecendo de fato

acompanhar a granulação da imagem. Sem dúvida, o diretor opta por esse tipo de

tratamento com a intenção de expressar e ampliar ainda mais a atmosfera onírica e

o ambiente claustrofóbico e inquietante ocupado pelos personagens naquele

instante.

Exatamente o mesmo acontece na seqüência em que Cristina e Paul conversam na

cozinha (figura 69): a mãe exalta-se ao lembrar a morte das filhas e o fato de que

Jack, o responsável por tudo, ainda não foi preso, e pede, então, a ajuda de Paul

para matá-lo. Aqui também a distorção do som é evidente e ajuda a transmitir ao

público toda a revolta, depressão e abatimento da personagem de Naomi Watts na

ocasião.

96

Figura 69: Cristina exalta-se ao relembrar a morte das filhas, e pede a ajuda de Paul para matar

Jack. O tratamento “sujo” concedido ao som da voz de Naomi Watts auxilia a transmitir a angústia e

sofrimento vividos por sua personagem.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Se a trilha sonora composta por Santaolalla para 21 Gramas consegue, através de

suas canções “arrastadas” e angustiantes, expor e ampliar os dramas e dores

vividos pelas três protagonistas, vale ressaltar, também, o papel importante que sua

música exerce nos momentos em que se deseja adiantar a história, acelerando o

seu tempo narrativo e contando em um espaço de tempo bem mais curto do que o

normal os acontecimentos que se passam nas vidas dos personagens.

É o que acontece na seqüência de fechamento do filme, na qual a música (dessa

vez soando um pouco mais esperançosa e próspera) serve para acelerar o tempo da

história e mostrar ao espectador o que acontece com cada uma das personagens

em um futuro próximo. Após a morte de Paul, Cristina e Jack parecem cansados de

tantas perdas e sofrimentos e decidem seguir seus caminhos – Jack retorna para

casa e reencontra a família (figura 70), e Cristina volta a morar sozinha, cuidando de

sua gravidez que, através das cenas, parece já estar um pouco avançada,

insinuando um progresso considerável no tempo da narrativa (figura 71). Dessa

maneira, mais uma vez, a música transporta o espectador para fora da narrativa e

ajuda a construir, juntamente com as imagens, um panorama geral dos fatos que

97

marcaram as vidas das protagonistas após tantas tragédias, apresentando o

desfecho de cada uma delas.

Figura 70: Jack retorna para casa.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

Figura 71: Cristina, grávida, no antigo quarto das filhas. Aqui, nota-se a passagem considerável do

tempo e a aceleração da narrativa com o auxílio da trilha sonora.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

98

Ponto essencial também na seqüência de fechamento do filme é a voz over de Paul,

que está prestes a morrer no hospital e, naquele momento, chega a assumir o papel

de narrador, sendo de suma importância para explicar o significado primordial do

filme: 21 Gramas, na verdade, refere-se ao peso que um corpo perde quando sua

alma o deixa com a morte (figura 72).

Em entrevista6, o roteirista Guillermo Arriaga ressalta que não existe explicação

concreta para o fato de Paul ser o único personagem a “desfrutar” de uma voz over

no filme. Segundo ele, trata-se simplesmente de uma decisão poética, através da

qual ele (Arriaga) proporciona ao personagem a oportunidade de explicar seus mais

profundos sentimentos e mostrar ao público seu ponto de vista no momento da

morte. Nada mais justo, já que, ainda segundo o roteirista, Paul é o personagem

capaz de fazer o sacrifício máximo da trama: atirar em seu coração transplantado

que, querendo ou não, é um dos pontos de partida para os acontecimentos trágicos

que marcam as vidas de todos.

Figura 72: Paul na cama do hospital. Nesse momento, a voz over do personagem serve para expor

ao espectador o suposto ponto de vista de uma pessoa prestes a morrer, bem como explicar ao

público o significado primordial do filme.

Fonte: 21 GRAMAS (Estados Unidos, 2003).

6

Entrevista concedida a Kevin Conroy Scott presente no livro “21 grams: a screenplay” (2004).

99

Fica claro, portanto, que quando bem manipulado e aliado à idéia de montagem, o

som encontra seu devido papel dentro de um filme, transformando-se em uma

ferramenta narrativa tão poderosa quanto a imagem, e sendo realmente capaz de

complementá-la e/ou modificá-la, construindo uma nova realidade (MANZANO,

2003).

Em 21 Gramas, Gustavo Santaolalla consegue, através da exploração do silêncio,

da composição da trilha sonora, do contraste e das referências sonoras, do ponto de

escuta e de tantos outros recursos que foram expostos e estudados nesse item, criar

um universo paralelo, manipulando as emoções do público que, ao menos por

algumas horas, passa a viver e a compartilhar as mesmas dores e sofrimentos dos

personagens Paul, Cristina e Jack.

100

5 OS DISCURSOS CINEMATOGRÁFICO E HIPERMIDIÁTICO:

DA TRILOGIA À HIPERMÍDIA

Uma vez examinadas as características das narrativas presentes na trilogia

cinematográfica de Arriaga e Iñárritu por meio da análise estrutural-discursiva de 21

Gramas, parte-se para a relação de alguns dos aspectos levantados com a

linguagem da hipermídia.

Tratando-se de um estudo sobre narrativas, primeiramente, parece interessante citar

o que dizem Porter e Sotelo (2004) quanto à narratividade do universo do Design.

Por serem constituídos de diversos tipos de discurso, sejam eles psicológicos,

formais, ideológicos, teóricos, entre outros, a práxis e o estudo em design jamais são

“silenciosos”: todo o produto de Design narra uma história segundo uma perspectiva

de um designer sobre a experiência humana.

Por meio da análise das características narrativas da trilogia em estudo, percebe-se

que as relações que a constituem – entre o que se narra e como é narrado –

equiparam-se à natureza do universo digital quanto a sua trama de estados

continuamente mutáveis. Ao utilizar um sistema hipermidiático, o interator envolve-se

em uma experiência cujo rumo é definido segundo suas decisões tomadas no

ciberespaço, e cada ação sua, por meio de aparatos de hardware, é decodificada

por um software, que providencia uma reação equivalente segundo sua

programação. Assim, a experiência no ciberespaço, como uma estrutura narrativa,

pode ser definida em termos de causalidade, em que cada ação corresponde a uma

reação e assim sucessivamente. Essencialmente, portanto, narrativas e sistemas

hipermidiáticos são compostos de mudanças e diálogos entre estados.

A análise de narrativas no cinema e na hipermídia é de interesse aos designers

devido às diversas relações passíveis de discussão. No que diz respeito aos meios

hipermidiáticos, as possibilidades são ainda maiores, justamente devido ao caráter

múltiplo dos mesmos. Entre as relações passíveis de discussão, podem ser citadas

a complementaridade entre discurso e estrutura, o caráter imersivo por meio da

diegese, a exploração das relações causa-efeito e observador/interator-mídia, entre

101

outras possibilidades. As narrativas constituem, sobretudo, uma abordagem

interessante do diálogo homem-máquina por meio da interface, a hipermídia estando

totalmente envolvida na transcrição e decodificação de linguagens em relações

causa-efeito estruturadas na sua lógica binária: o sim e o não, o zero e o um

(MANOVICH, 2001). Discutir o papel das narrativas no meio hipermidiático, portanto,

significa discutir relações de causalidade entre o mundo real e o virtual: a trama de

estados e elementos informacionais constitui a narrativa da experiência no

ciberespaço. Em certo sentido, narrar é propor realidades virtuais, sendo o cinema

precursor de muitos aspectos explorados atualmente no design de hipermídia.

Assim, aceita-se aqui a tese de Lev Manovich (2001), quando o autor aborda o

cinema como mídia precursora da hipermídia – e das mídias digitais em geral –

justamente por introduzir diversos aspectos característicos da linguagem

computacional, hoje amplamente difundidos graças à expansão da computação e à

crescente valorização da interface como forma de manifestação cultural enquanto

mecanismo de leitura, produção e distribuição da informação.

Por sua vez, as narrativas e o universo fílmico, ao se apresentarem como realidades

virtuais, se equiparam à proposta dos sistemas hipermidiáticos se abordados como

“fábulas” computacionais, compostas de duas faces: de um lado, a estrutura

subjacente, identificável por meio de análise do esqueleto informacional; de outro, a

interface, ou o discurso em si, potencialmente infinito em termos de variabilidade

quanto à hibridização de linguagens. Conforme discutido, a narrativa no cinema se

apresenta de maneira semelhante, ao alicerçar-se em uma estrutura subjacente – o

roteiro – e ao apresentar-se como discurso cinematográfico audiovisual, a sua forma

ou a sua interface.

Com estas reflexões em mente, neste momento se fazem necessários resgates de

algumas características específicas anteriormente citadas na análise da trilogia de

Iñárritu e Arriaga por meio de 21 Gramas, quanto a sua estrutura e discurso, como

princípio de detalhamento das relações com a linguagem da hipermídia.

A primeira delas é quanto ao aspecto talvez mais saliente da trilogia: o seu enredo

não-linear e modular. Segundo Manovich (2001), a modularidade na hipermídia se

refere a sua “estrutura fractal”. Ou seja, a fragmentação do todo em unidades

102

(pixels, polígonos, scripts) idênticas quanto a sua natureza, porém discernentes

quanto a sua finalidade. Estas unidades existem em diferentes escalas: por

exemplo, pixels formam imagens, que por sua vez formam animações, que

compõem websites, e assim sucessivamente. Estas composições, contudo, mantém

as características individuais de cada unidade. A hipermídia é uma estrutura

completamente modular, pois é composta de unidades individuais intercambiáveis e

maleáveis em termos de escala.

Assim como um fractal mantém sua estrutura em diferentes níveis de

escala, um objeto das novas mídias mantém sua modularidade ao longo de

sua estrutura. Elementos midiáticos, tais como imagens, sons, formas,

behaviors, são representados como conjuntos de amostras discernentes

(pixels, polígonos, voxels, caracteres, scripts). Estes elementos são

congregados em objetos de maior escala, mas mantêm sua identidade

separável. Os objetos em si podem ser combinados em outros de escala

ainda maior – novamente, sem perder sua independência (Ibid: 30).

Este trabalho propõe que o roteiro de 21 Gramas, conforme identificável na trilogia

como um todo (ainda que em diferentes níveis), possua características da

modularidade proposta por Manovich no intuito de construir uma obra audiovisual

mais possível quanto às combinações entre os módulos narrativos, gerando assim

diferentes experiências aos espectadores.

A proposta estrutural dos filmes, portanto, pode ser discutida dentro do campo de

estudos sobre a hipermídia, uma vez que se aproxima do que Mark Amerika (2003)

denomina estrutura cinemática pós-filme.

Pensem nas escritas de roteiros digitais – isto é, escrever pela rede – como

uma espécie de estrutura cinemática pós-filme, como uma chance de

brincar com uma máquina remixagem inventiva que é também um

dispositivo de registro de memória, uma plataforma multimídia de

publicação na rede, um espaço de exposição, uma zona de trabalho

colaborativo, etc. (AMERIKA, 2003: 143).

103

Amerika, desta forma, sugere que a hipermídia propicie o “escrever do próprio

escrever”, ou seja, são várias as narrativas pelas quais o usuário transita ou mesmo

cria para si em uma rede de dados continuamente metamórfica, como a Internet.

O caráter modular das narrativas da trilogia de Iñárritu e Arriaga, em especial a

presente em 21 Gramas, é o que as torna não-lineares quanto ao tempo da

narrativa, estando, porém, limitadas à linearidade da mídia e sendo, portanto,

lineares quanto à discursividade propiciada pelo cinema. Em outras palavras, a

narrativa se desenrola não-linearmente, porém o processo de leitura da mesma

ainda é linear. Em paralelo, a hipermídia oferece múltiplos caminhos possíveis a

serem percorridos, ou seja, estruturalmente também são não-lineares. A diferença

está na possibilidade de modificação por parte do usuário. Enquanto no cinema a

película é um objeto “lacrado”, a narrativa é sepultada em um começo, meio e fim

definidos como “obra final”. Na hipermídia, não há uma “obra final”, e sim uma

contínua “obra possível”, na qual os designers e desenvolvedores projetam as

interfaces que compõem os diversos estados ou elementos narrativos possíveis. O

interator, em última instância, determina a sua “obra final”, segundo os critérios que

adota na sua experiência de navegação. Neste aspecto, as narrativas aplicadas aos

meios hipermidiáticos são infinitamente expansíveis e possíveis, ampliando as

discussões das narrativas cinematográficas e aproximando-se do caráter rizomático

proposto por Deleuze e Guatarri (apud MOURA, 2003).

Segundo esses autores, no campo da hipermídia, a não-linearidade é uma

característica que se refere à possibilidade de trânsito entre caminhos diversos,

paralelos, simultâneos, múltiplos desvios adotáveis a qualquer momento ou posição

no ciberespaço (MOURA, 2003).

21 Gramas aproxima-se do que Janet Murray (2003) defende como narrativa

multiforme, ou seja, histórias contadas por diferentes perspectivas, com diversos

conflitos internos e externos que se justapõem e se sobrepõem em diferentes

espaços, personagens e tempos. Segundo Murray, este tipo de narrativa vem sendo

explorado pelo cinema desde 1920, no cinema de vanguarda russo e surrealista, e

principalmente após a década de 1960, com a difusão das teorias pós-estruturalistas

e com a produção de filmes mais próximos às teorias contemporâneas do cinema.

104

Como essa grande variedade de narrativas multiformes demonstra, as

histórias impressas e nos filmes estão pressionando os formatos lineares do

passado, não por mera diversão, mas num esforço para exprimir uma

percepção que caracteriza o século XX, ou seja, a vida enquanto

composição de possibilidades paralelas (Ibid: 49).

Por tentar retratar a simultaneidade e a paradoxalidade da vivência humana

contemporânea, o cinema passou a explorar histórias descontínuas, inacabadas,

incoerentes ou mesmo incompreensíveis. Esta forma fragmentada de representação

da realidade não é exclusividade dos cineastas: já vem sendo trabalhada desde o

princípio do século XX, por exemplo, na pintura de Picasso e nas propostas de

autores como Borges e Bakthin. Estes autores possibilitam que o leitor utilize do

processo de leitura de várias formas, construindo sua obra de maneira aberta e

múltipla (MOURA, 2003). O cinema, portanto, passou a explorar este tipo de

narrativa para adequar-se à aceleração das transformações culturais do seu tempo,

no qual o pensamento dito “pós-moderno” instaurou novos modos de leitura e

produção da informação baseados em uma quebra de paradigmas por vezes quase

niilista (MACHADO, 2007). Aqui se lembra Manovich e a sua afirmação quanto à

precedência do cinema em relação à lógica computacional.

Apesar de não se poder tratar as narrativas presentes na trilogia e em 21 Gramas

como diretamente reconfiguráveis (afinal, a mídia cinematográfica é linear e

“fechada”), observa-se que Arriaga e Iñárritu construíram seus filmes modularmente,

permitindo diferentes tipos de leitura segundo diferentes critérios. Não obstante, os

autores não visionaram os filmes como histórias guiadas segundo uma moral e valor

definidos, mas sim como resultantes de choques entre valores e morais. Estas

colisões ideológicas, que tomam forma por meio espaço fílmico, realizam

intermediações entre realidades interiores e exteriores à narrativa, o que aproxima o

processo de montagem dos filmes ao projeto de interface.

Neste aspecto, na adaptação da proposta de não-linearidade e modularidade – tais

como expostas em 21 Gramas – às narrativas hipermidiáticas, deve-se considerar a

fundamental diferença entre mídias: no cinema, as lexias e links são puramente

mentais, não diretamente editáveis por parte do espectador, que assume uma

105

posição passiva ainda que imerso na história. Em contrapartida, ao utilizar uma

hipermídia, o interator pode movimentar-se virtualmente pela informação, sendo seu

trajeto apenas previsível segundo determinados inputs criados pelo designer de

interface. Ainda assim, as escolhas do usuário sempre permanecem no campo da

probabilidade.

21 Gramas e a trilogia da qual faz parte propõem um maior nível de participação do

espectador, uma vez que sua estrutura informacional é complexa o suficiente para

possibilitar diferentes níveis de compreensão da trama. Não obstante, o processo de

montagem adotado como enunciação evidencia esta complexidade ao justapor

cenas que relacionam diferentes realidades sócio-econômicas e afetivas entre as

personagens em uma configuração temporal desordenada e imprecisa. Além da

justaposição de cenas, diferentes recursos de montagem e pós-produção – como a

colorização proposital de cenas e seqüências, a escolha de planos similares para

contextos diferentes, a granulação da película, entre outros citados na análise do

filme – tornam-se links disponíveis nas “interfaces” ou módulos de informação da

narrativa cinematográfica. Em suma, Iñárritu compõe suas cenas, seqüências e

planos de forma a organizar elementos que simultaneamente aproximem e

distanciem as diferentes instâncias envolvidas pela trama. Certos elementos são tão

camuflados pelo seu nível de detalhe que é necessário atenção por parte do

espectador para a sua percepção. Dificilmente estes “links” são percebidos se o

espectador assiste ao filme apenas uma ou duas vezes. Por isso, percebe-se que

podem existir diferentes níveis de compreensão da narrativa.

Assim, ressalta-se que a não-linearidade é um conceito não inserido culturalmente pelo

hipertexto ou pela hipermídia, podendo-se identificar em contextos e linguagens anteriores

a sua existência. Entretanto, as linguagens hipertextuais e hipermidiáticas enaltecem essa

possibilidade, enfatizando a não-linearidade não somente tecnologicamente, mas

principalmente culturalmente. No âmbito das narrativas, a não-linearidade as torna tão mais

multiplamente possíveis (e efetivamente aplicadas) quanto o nível de hipertextualidade e

conectividade que um determinado aplicativo ou mídia possibilitar. A história se desenvolve

segundo as escolhas do usuário e não mais segundo a continuidade da mídia. Com isso

em mente, e de acordo com necessidades específicas de projeto, designers e

desenvolvedores de hipermídia podem se apropriar das características narrativas para

106

condicionar ou não os caminhos a serem percorridos por um usuário, possibilitando

diferentes níveis de leitura e perspectiva sobre o objeto ou assunto do qual trata a

hipermídia. Este é apenas um exemplo da atuação política do designer e de como cada

decisão projetual determina, acima de tudo, um ponto de vista no espectro da realidade. A

narrativa torna-se um processo, por meio do qual se obtém um ambiente hipermidiático

cuja complexidade das relações entre estrutura e discurso possibilita a utilização por parte

de diferentes tipos de usuário, pertencentes a contextos sociais diversos.

Apesar de suas possibilidades interessantes, a não-linearidade aplicada às narrativas

acarreta em duas dificuldades comuns a designers, cineastas e roteiristas: a falta de

objetividade e o fechamento (PALACIOS, 2008). 21 Gramas é um exemplo de uma

narrativa que não é clara quanto ao discernimento entre atos, os elementos narrativos

sendo revelados de maneira confusa, por vezes insuficiente. A proposta de Arriaga e

Iñárritu é desenvolver uma obra audiovisual baseada em uma malha informacional

complexa, expressada por meio de uma enunciação labiríntica. A objetividade, portanto, é

desconsiderada em prol da abertura às possibilidades de experiência por parte do

espectador. Esta é uma tendência muito recente para designers de meios hipermidiáticos:

a quebra de paradigmas de leitura a fim de privilegiar experiências de interação

inovadoras. Ainda que muitas destas pesquisas tenham cunho meramente

mercadológico, sabe-se que também é papel do design revelar novas formas de se

pensar e construir o universo humano. Nesse aspecto, os elementos narrativos podem

ser recursos interessantes ao designer de hipermídia se utilizados como metáforas,

mapas e sistemas para auxiliar o usuário em sua experiência de utilização. Por

estabelecerem relações de interdependência, os elementos narrativos conferem

dinamismo e caráter imersivo ao sistema.

Quanto ao fechamento de narrativas que experimentam a não-linearidade, Marcos

Palacios comenta:

Uma narrativa tradicional, ou seja, não hipertextual, independentemente de

que suporte esteja sendo usado, chega sempre a um fim (...). O mesmo se

pode afirmar com relação a produções cinematográficas que pretendem

experimentar com a não-linearidade (...); queira-se ou não, eventualmente

chegamos a um "fechamento", representado pela projeção do último

fotograma no processo de projeção do filme (s.d.)7.

107

Assim, apesar de 21 Gramas e da trilogia de Iñárritu e Arriaga não apresentarem os

fatos de maneira hierárquica, as narrativas possuem um “fim”, por mais aberto que

este seja quanto às conclusões dos conflitos. Este fim é dado, conforme Palacios,

pela finitude da duração do filme, decretado pelos produtores e pela restrição física

da mídia. O “fechamento” de Palacios, no entanto, trata de um encerramento

“satisfatório” proporcionado ao observador/interator por parte da narrativa.

O fechamento é um conceito psicológico (...) que se refere à completude

bem sucedida de uma tarefa antes que a próxima tenha o seu começo. Uma

vez que os links hipertextuais podem levar a qualquer nó da estrutura, cada

ligação mantém uma boa chance de que o nó inicial será “abortado” em

favor do link. Isso significa que um leitor talvez possa nunca completar a

leitura da informação em um nó específico. Links podem, portanto, colocar

em risco um fechamento porque eles encorajam o começo de algo novo

antes do término do atual (SCHLEGEL apud PALACIOS, s.d.).

Na hipermídia e no hipertexto, não há um fechamento propriamente dito, uma vez

que a duração e os rumos da experiência de imersão no universo diegético proposto

pela narrativa estão totalmente nas mãos do interator. Enquanto no cinema o diretor

tem o controle sobre o tempo de narração em cada “nó” da trama – e a própria trama

possui um tempo definido – o tempo da narrativa na hipermídia é uma variável

imprevisível. O designer pode tentar influenciar o interator de algumas formas,

criando estímulos para que este tome uma ou outra decisão em maior ou menor

tempo, mas nunca o designer poderá ter certeza dos caminhos e do fator

cronológico do processo de narração. Tais fatores são intrínsecos à experiência.

Assim, se o cinema modularizou o tempo, preservando ainda sua ordem

linear (momentos subseqüentes no tempo tornaram-se momentos

subseqüentes em frames), as novas mídias abandonam esta sólida

representação 'humanista' – para colocar o tempo totalmente sobre o

controle humano. O tempo é mapeado em um espaço bidimensional, onde

pode ser gerenciado, analisado e manipulado mais facilmente (MANOVICH,

2001: 51).

7

Trata-se de documento eletrônico de páginas não numeradas. Ver < http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/ palacios/ hipertexto.html > para todas as referências a esta obra.

108

Sob a perspectiva da usabilidade, o ideal é que o usuário tenha o tempo que quiser

para realizar a tarefa que deseja ao interagir com uma interface digital. Em uma

narrativa, entretanto, certas metas de usabilidade podem ser deixadas de lado em

prol da experiência de imersão, navegação e interação. O usuário pode e deve ter

seus sentimentos, emoções, noções de tempo e espaço modificados pela narrativa,

para que de fato esta se torne o seu universo durante o período de sua duração. O

designer, similarmente ao trabalho do roteirista, deve projetar minuciosamente cada

estado de navegação, cada nó hipermidiático; e, de maneira análoga à do diretor,

deve projetar cada interface, pois ao estruturar uma história, é importante que o

tempo e os demais elementos narrativos sejam representados em consonância com

o propósito da narrativa. O design da informação é fundamental para um enredo

bem estruturado e coeso.

Os mapas dos conflitos presentes na narrativa de 21 Gramas são tentativas de se

evidenciar o caráter múltiplo da trama, principalmente quanto ao que Palacios se refere

como o real caráter da não-linearidade: as multi-linearidades possíveis. O termo “não-

linear” seria inclusive mal utilizado, segundo o autor, uma vez que nem todas as

narrativas propiciam leituras por meio de diferentes linhas de discurso ou conflito:

A noção de "não-linearidade", tal como vem sendo generalizadamente

utilizada, parece-nos aberta a questionamentos. Nossa experiência de

leitura dos Hipertextos deixa claro que é perfeitamente válido afirmar-se que

cada leitor, ao estabelecer sua leitura, estabelece também uma determinada

"linearidade" específica, provisória, provavelmente única. Uma segunda ou

terceira leituras do mesmo texto podem levar a "linearidades" totalmente

diversas, a depender dos links que sejam seguidos e das opções de leitura

que sejam escolhidas, em momentos em que a história se bifurca ou

oferece múltiplas possibilidades de continuidade (s.d.).

A não-linearidade presente em meios hipermidiáticos, portanto, seria sempre uma

potencialidade resolvida pelo usuário durante seu processo de utilização, admitindo

este processo como uma sucessão de estados entre os nós da hipermídia que

constituem uma linearidade dentre diversas possíveis. As narrativas da trilogia de

Iñárritu e de Arriaga possuem em sua estrutura diversas linhas de conflito que se

entrelaçam por meio de um fato central, um acontecimento, uma tragédia. Estas

109

linhas se tornam tangíveis e “manipuláveis” mentalmente por meio da enunciação

cinematográfica. Os recursos referentes aos processos de montagem e pós-

produção adotados por Iñárritu (como a granulação e o uso de cores para indicar

estados da narrativa) estabelecem relações entre estados, personagens, fatos e

tempos. Esses inputs possibilitam que o espectador monte a sua história de acordo

com os estímulos que perceber, havendo, portanto, diferentes formas de se amarrar

os fatos e compreender-se a evolução dos conflitos.

No cinema, qualquer par de tomadas de câmera pode ser editado em

conjunto e nessa edição, um significado é gerado ou expresso (...). Além

disso, qualquer uma dessas tomadas pode ser também inserida em uma

seqüência diferente, e por sua vez, gerar um significado diferente. O

conteúdo da tomada, seu “corpo literal, continua intacto, por mais que seus

atributos sejam instantaneamente transformados no ato da edição. No

hipertexto, dois ou mais nós podem estar “linkados” de várias maneiras e as

séries de que participam, incluindo a repetição dos nós quando os links são

ativados, também produzem informações instantâneas dos atributos dos

“nós” (MILES, 2003: 160).

Aqui cabe mencionar Manovich (2001) quanto a sua teoria sobre a principal

diferença entre as narrativas ditas “tradicionais” e aquelas exploradas em meios

hipermidiáticos: os bancos de dados. Para o autor, a diferença crucial que a

hipermídia agrega ao universo da narrativa é a possibilidade da mesma se apropriar

de literalmente infinitos elementos para a sua construção, por meio de bancos de

dados atualizáveis. O vasto conteúdo narrativo, desta forma, propicia

concomitantemente diversas linhas de discurso possíveis de ser adotadas por parte

da instância narradora.

110

ESQUEMA 2 – Representações gráficas dos diferentes estados de discursos e histórias em meios

lineares e não-lineares.

Fonte: http://www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/palacios/hipertexto.html

Acesso em 05 mai. 2008.

Esta é justamente a discussão estabelecida por Manovich e Krakty em Soft Cinema,

um software desenvolvido para manipular bancos de dados e gerar narrativas

segundo variáveis inseridas; assim, “Utilizando um conjunto de regras definidos

pelos autores, o software Soft Cinema controla tanto o layout da tela (número e

posição de frames) e as seqüências dos elementos midiáticos que aparecem nestes

frames” (2005: s/p). O objetivo é nunca propiciar a mesma estrutura e discurso

narrativos por uma segunda vez. Não obstante, este software estabelece uma

discussão sobre a máquina como determinante na composição de histórias

compreensíveis pelo ser humano, a narrativa como produto matemático resultante

de scripts, inputs, outputs e algoritmos (Ibid).

111

FIGURA 73 – exemplo de um nó de uma narrativa gerado pelo Soft Cinema, de Manovich.

Fonte: http://www.turbulence.org/blog/images/Soft Cinema.jpg

Acesso em 05 mai. 2008.

A permutabilidade, sendo um aspecto central trabalhado pelo Soft Cinema, é uma

das características que tornam a linguagem hipermidiática singular. Este atributo

serve como princípio para o próximo ponto de discussão de narrativas para o meio:

a interatividade.

A interatividade diz respeito à “ação mútua que é exercida entre duas ou mais

pessoas, duas ou mais coisas, estabelecendo a reciprocidade” (MOURA, 2003:

199). Na hipermídia, a interatividade é um processo caracterizado pelas polaridades

ação-reação ou comando-resposta (feedback), entre usuário e a interface do

aplicativo. Essa relação comunicacional se dá segundo uma série de variáveis

resultantes da configuração entre inputs e outputs.

Este processo, no qual cada ação e resposta entre usuário-máquina é caracterizada

pela modificação, se dá em tempo real, ou seja, a arquitetura virtual é continuamente

112

atualizada por um sistema cíclico subjacente, que mapeia comportamentos, ações,

tempos de ocorrência, enfim, entrada e saída de dados. Assim, o usuário permuta

entre a atividade e a passividade, e as modificações que realiza na interface

conferem caráter único à experiência, tornando-o um co-autor e não mais mero

espectador ou receptor da informação.

No cinema “tradicional”, obviamente, não se pode discutir uma “interatividade”

propriamente dita, uma vez que se trata de uma mídia fechada e não passível de

modificações por parte dos espectadores. No entanto, as narrativas aqui tomadas

como objetos de estudo, em especial 21 Gramas, propõem alguns recursos que

podem ser discutidos como “proto-interatividades”, participações principalmente

quanto à concepção mental de um todo fragmentado exibido pelos filmes, sendo que

cada espectador desenvolve a sua narrativa com base em seus critérios pessoais.

Além da estrutura informacional fragmentada e múltipla, volta-se a citar os recursos

de montagem e pós-produção que estabelecem links audiovisuais entre contextos e

nós da narrativa, como a granulação e a utilização de efeitos de cores. Assim, os

filmes fornecem exemplos da utilização do discurso como forma de enfatizar a

complexidade da trama, sendo o espectador o autor das relações por meio de

diferentes níveis de percepção e conexão.

Por sua vez, a já mencionada justaposição de cenas, seqüências e planos,

trabalhada segundo o conceito de “síntese” de Arriaga – que simultaneamente

afasta e aproxima as realidades das personagens, criticando as aparentes distâncias

e proximidades dos contextos sociais – é outro meio que o espectador possui para

relacionar os fragmentos narrativos no decorrer da experiência, seja através de um

detalhe, ou através da óbvia similaridade explicitada pelo diretor.

No âmbito da hipermídia, a interatividade se torna particularmente interessante na

discussão sobre a aplicação de narrativas quanto à definição de como e o que é

contado. Em outras palavras, as escolhas do usuário determinam a profundidade da

informação a que tem acesso. Sendo assim, personagens podem não ser mais

redondas ou planas em essência: sua profundidade ou não pode depender do grau

de interação que o usuário tiver com uma personagem. Neste aspecto, Machado

(2007) discute que a hipermídia amplifica uma discussão gerada pelo cinema quanto

113

ao “sujeito virtual” ou a “esquize” do olhar. Em outras palavras, a câmera

cinematográfica revela a visão de um “terceiro” sujeito oculto – no caso de uma

instância narradora não ativa na história narrada – ou a visão de uma personagem

específica, servindo como janela por meio da qual o espectador sabe o que

acontece e como acontece, tendo a imagem e o som o papel de criar subjetivação

segundo as peculiaridades do personagem. Desta forma, a câmera objetiva o “eu”

do espectador, sua consciência sendo projetada em um espaço virtual durante o

tempo da narração. O “eu” pode assumir outras identidades, tomar as dores e as

alegrias de uma situação vivenciada por um personagem. Na sala de projeção, o

espectador tem sua consciência transitando entre os estados propostos pelo

universo diegético e a sua “realidade objetiva”. Em suma, o “eu” é ubíquo.

“O que quer dizer que no cinema eu estou ao mesmo tempo nesta ação e fora dela,

nesse espaço e fora desse espaço. Tendo o tom da ubiqüidade, eu estou em toda a

parte e em parte alguma” (MITRY apud MACHADO, 2007: 29).

A hipermídia amplia as discussões quanto às virtualizações do ego e a ubiqüidade

do espaço. O indivíduo que interage com o ciberespaço compõe suas próprias

narrativas e identidades, sendo os processos interativos fundamentais para o

estabelecimento dessas colagens digitais. Neste conceito de fluxo de informações,

no qual o “eu” se dispersa, alicerçam-se termos muito comuns no ambiente digital,

como avatares (simulacros de identidades digitais), imersão, navegação, entre

outros.

Aqui se resgata o conceito de kino-eye sobre o prisma do hipertexto. Amerika (2003)

adapta o conceito de Vertov às mídias contemporâneas ligadas em rede, nas quais

o kino-eye é uma “consciência hipertextual” que reconfigura as relações sociais,

tornando todo o leitor um criador socialmente ativo em um ambiente de telepresença

e de uma sociedade virtual. O kino-eye é a consciência do interator imersa em uma

rede que conecta computadores por meio de um código aberto, que rompe toda a

convencionalidade na construção da sua realidade. Cada computador é uma

estação criadora e receptora de narrativas, com base em fatos reais ou fictícios, que

se amalgamam, se mesclam, tornam-se uma terceira 'verdade', devido à

permeabilidade do meio: informação binária infinitamente reconfigurável. Neste

114

contexto, o “cine-olho” configura-se como a possibilidade de contínua configuração

de identidades e narrativas por meio de um processo de colagem, no qual a

distinção entre realidade e ficção torna-se irrelevante.

Não se trata mais, portanto, de expressar a subjetividade, mas de diluí-la com outras

identidades e ficções, tornando o “eu” um fluxo de identidades e conflitos. A vida em

rede é um fluxo de narrativas simultâneas e hipertextuais. No mesmo espaço no

qual são armazenadas informações pessoais (memória do indivíduo), se produzem e

trocam dados com outros usuários (caracterizando uma mídia) também se produzem

biografias e ficções, igualadas pela natureza de seu contexto.

De modo que, quando aperto o botão vermelho na minha câmera de vídeo

digital, dizem que as pessoas são “capturadas” pelo meu equipamento à

medida que este escrutiniza a cena. Essas pessoas são também parte da

ficção? Ou são atores 'reais' atuando como eles próprios em “tempo real”, e

eu simplesmente os capturo em ação? (AMERIKA, 2003: 140).

Amerika propõe que os aparatos tecnológicos, por meio de suas interfaces e das

narrativas interativas que estas constroem, propiciam a "transferência" da

consciência do interator, o dito processo imersivo, a tal ponto que a realidade

objetiva confunde-se com a virtualizada pela narrativa.

Sob um prisma contemporâneo, o kino-eye é fundamental para a diegese

cinematográfica; afinal, aquilo que está no seu horizonte auxilia o espectador a

construir o espaço fílmico e o universo que o contém. As características exibidas

pela câmera e perceptíveis pelo som constituem links que por sua vez possibilitam

ao espectador compreender e imergir na realidade proposta pelo filme.

Se o kino-eye presente nos filmes que compõem a trilogia gera links sonoros e

visuais que dão sentido à modularidade de suas cenas, seqüências e planos, pode-

se então afirmar que a montagem confere aos filmes características da

multiplicidade, outro dos princípios da hipermídia segundo Manovich (2001) e Moura

(2003). Um objeto digital pode ser recriado segundo uma infinidade de fatores, que

variam das possibilidades oferecidas pela automação (capacidade do computador

115

de realizar tarefas sozinho segundo uma série de algoritmos complexos) às variáveis

que podem afetar um sistema computacional, como resolução, hardware, plug-ins e

comandos. Em suma, um objeto digital pode ter infinitas versões de si mesmo, ou

seja, jamais é absoluto.

Segundo Moura (2003), a multiplicidade é o princípio fundamental da hipermídia,

pois esta é justamente caracterizada pela pluralidade de mídias e linguagens que se

sobrepõem e justapõem em um mesmo suporte. Mais do que múltipla, a hipermídia

é hiper, podendo facilmente chegar ao excesso.

A relação que os diferentes tipos de linguagens (textual, verbal, sonora, visual etc.)

mantém entre si não só modificam a compreensão da informação que carregam,

mas também alteram a forma de percepção de tais linguagens. A combinação de

texto, imagem e som gera uma gestalt que, conforme seu princípio, organiza-se num

todo que é mais do que meramente a soma de seus elementos constituintes.

Moura (2003), lembrando o conceito de rizoma de Deleuze e Guatarri, aborda a

multiplicidade hipermidiática como geradora de um meio que

(...) não tem sujeito nem objeto, mas somente determinações, grandezas,

dimensões que não podem crescer sem que se mude de natureza (...) é

precisamente este crescimento das dimensões numa multiplicidade que

muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas

conexões (173).

Assim sendo, a linguagem, ao ser incorporada por um aplicativo hipermidiático, tem

sua essência modificada e agregada aos diversos planos que constituem uma

interface. Também ressaltamos que as linguagens, por serem compostas de dados

binários reconfiguráveis, tornam-se metamórficas, estando em constante

transitoriedade. Textos, imagens, animações e vídeos tornam-se linguagens

intercambiáveis graças à modularidade da tecnologia computacional.

A narrativa analisada em 21 Gramas pode ser caracterizada como múltipla devido

aos diversos pontos de vista sobre os fatos, que geralmente representam a

116

perspectiva das personagens principais. Ainda que possua um fato central que une

todos os elementos narrativos, os diferentes pontos de vista sobre este fato podem

diferenciar-se de tal forma que a unicidade do evento se perca em meio às várias

perspectivas que o abordam. Em suma, não se pode tratar o conjunto formado pela

estrutura narrativa e discursiva dos filmes da trilogia como “único”, “estático”, já que

as diversas linhas de conflito geram verdadeiros “novelos” narrativos cuja resolução

depende dos critérios e da percepção do espectador.

O princípio da multiplicidade, tão evidente em 21 Gramas, Amores Brutos e Babel, é

um dos aspectos pertinentes à hipermídia que mais caracterizam as ditas narrativas

multiformes, muito discutidas contemporaneamente quanto à narratividade na

hipermídia. O indivíduo que assimila uma grande quantidade de informações

simultaneamente tem sua apreensão dos aspectos espaço-temporais alterada

continuamente. O tempo se contrai e se expande, as delimitações espaciais perdem-

se em fluidas topografias de imagens, textos, sons. A paisagem torna-se multiplanar,

híbrida, multitemporal. “Mistura, sobreposição, empilhamento entre antigo e

moderno, entre sofisticação e elementar, entre artesanal e tecnológico são

características da multiplicidade” (MOURA, 2003: 174).

Ao propor que a resultante da montagem presente nos filmes, analisada aqui em

profundidade em 21 Gramas, aproxima o cinema e a hipermídia quanto ao princípio

da multiplicidade, cita-se novamente Manovich (1997), quando o autor observa que

o cinema tornou a linguagem audiovisual predominante em relação à linguagem

textual. Em certo sentido, a linguagem digital completa o que o cinema se propôs a

criar: a ligação contínua entre dados descontínuos em uma interface dinâmica cuja

inteligibilidade atravessa barreiras culturais.

Cem anos após o nascimento do cinema, maneiras cinemáticas de ver o

mundo, de estruturar o tempo, de narrar uma história, de ligar uma

experiência com a próxima, tornaram-se os meios básicos por meio dos

quais usuários de computadores acessam e interagem com todos os dados

culturais (Ibid).

117

Segundo esta abordagem, o universo computacional cumpre a promessa do cinema

como um “esperanto multimidiático”, não apenas possibilitando que os usuários

compreendam a linguagem cinemática, mas que a “falem” (Ibid). A interface

computacional torna completamente reconfiguráveis, por parte do usuário, a

variabilidade, a modularidade e a pluralidade midiática propostas pelo cinema.

Em suma, viu-se que a hipermídia expande as possibilidades de uma narrativa, tanto em

seus aspectos estruturais quanto nos discursivos. As obras cinematográficas, tais como

as analisadas por este trabalho, podem ser abordadas como precedentes de muitas das

discussões estabelecidas pela hipermídia no âmbito das narrativas. O estudo da

narratividade em meios audiovisuais e interativos acompanha fatores muito

característicos da contemporaneidade e das tecnologias computacionais, como a crise da

identidade, da autoria e do “real-virtual”. Não se trata apenas de verificar como o narrar se

dá contemporaneamente, mas sim de verificar como a própria realidade é influenciada e

influencia diferentes narrativas, a ponto de sujeito e personagem, o “eu” e o “alter-ego

virtual”, a ficção e a objetividade se mesclarem até o nível da indistinção. Essas

problemáticas enfrentadas pela sociedade contemporânea tendem a se tornar

gradativamente mais relevantes nas décadas vindouras, não apenas pela difusão das

tecnologias digitais e das redes telemáticas, mas também através da concepção do ego

como dissolúvel e da realidade como ficcional.

118

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho se propôs a analisar as narrativas presentes nos filmes de Alejandro

González Iñárritu e Guillermo Arriaga. Isso foi feito por meio da desconstrução de 21

Gramas, filme aqui considerado a obra mais emblemática da trilogia, em sua

estrutura informacional – o roteiro – e seu discurso resultante dos processos de

montagem e pós-produção. Os aspectos provenientes desta desconstrução foram

resgatados para uma discussão sobre o comportamento e as possibilidades da

narratividade aplicada à hipermídia.

Verificou-se que estudar narrativas no cinema e na hipermídia significa estabelecer

um diálogo entre linguagens multimidiáticas, ainda que estas sejam diferentes

quanto a sua natureza: o cinema é linear e não propicia interação direta por parte do

espectador; a hipermídia, por sua vez, é um sistema imprevisível, composto de

fragmentos continuamente expansíveis e modificáveis, que adquirem sentido apenas

durante a contextualização proveniente do processo de interação.

A trilogia em questão serve aqui para conduzir a reflexão sobre as narrativas em

meios hipermidiáticos. Entretanto, vemos que a discussão pode se expandir: através

do estudo assinalado, é possível repensar as narrativas no próprio cinema. Ao

buscar referências nas características do seu tempo, o cinema transformou o mundo

ao difundir o pensar e o produzir por meio de sua linguagem audiovisual. Hoje, o

cinema pode reconfigurar-se segundo as possibilidades tecnológicas e os novos

paradigmas de leitura e interação com a informação. Para tanto, este diálogo com a

hipermídia é fundamental.

Foram também abordados os elementos que compõem o processo de construção de

um filme quanto a sua importância narrativa, e assim, pôde-se acompanhar um

pouco do processo de design de produção cujo objeto finalizado caracteriza-se

como uma narrativa cinematográfica. Para o design, área do conhecimento

interdisciplinar por natureza, as discussões se mostram relevantes não somente

quanto ao estudo de linguagem, mas quanto ao próprio processo metodológico.

119

Outro apontamento feito se refere às formas de adaptação das narrativas entre

diferentes meios. Esta pesquisa não tem como objetivo apontar “traduções” do

cinema narrativo para a hipermídia, ou vice-versa: ao aproximar ambas as mídias, os

autores deste trabalho acreditam estar explorando construtivamente as semelhanças

e diferenças existentes entre os dois meios, observando sob o ponto de vista do

design de que forma as narrativas podem contribuir para o desenvolvimento de

projetos interativos.

Durante as discussões apontadas, 21 Gramas e o restante da trilogia de Iñárritu e

Arriaga foram abordados como eixos de uma discussão importante para os

princípios e características da hipermídia adaptadas ao discurso narrativo. A não-

linearidade, a modularidade e a multiplicidade são características da hipermídia

exploradas por meio da ótica da narrativa e do cinema, o que possibilita discussões

construtivas a ambas as áreas do conhecimento envolvidas.

Face ao exposto nos capítulos anteriores, e considerando-se a abrangência dos

tópicos discutidos, afirmamos que o estudo proposto não se esgota com o presente

trabalho. A relação entre produções cinematográficas e hipermídia constitui um

campo muito vasto para futuras pesquisas, que podem gerar discussões produtivas

acerca da temática explorada.

120

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124

ANEXOS

Mapa do fluxo narrativo de 21 Gramas – parte 1.

125

Mapa do fluxo narrativo de 21 Gramas – parte 2.

Mapa do fluxo narrativo de 21 Gramas – parte 2.

126

Mapa do fluxo narrativo de 21 Gramas – parte 3.

127

Mapa do fluxo narrativo de 21 Gramas – parte 4.