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Manuel da Silva Mendes

Socialismo Libertário ou Anarchismo. História e Doutrina

Ninguém se deslustra com ser anarquista: são-no algumas das maiores

individualidades da actualidade: H. Spencer, Kropotkine, Elisée Reclus, Tolstoi,

Ibsen,istoé,omaiorsociólogo,omaiorapóstolodaliberdade,omaiorgeógrafo,o

maior cristão, o maior dramaturgo!!! De maneira que: ou o anarquismo é uma

utopiaformidávelouumafatalidadesocial.Masquetêmdecomumestesespíritos

mais insignes do século com Pini, Caserio ou Ravachol? - A resposta dava uma

dissertação.

(...)

A entidade Estado saiu das lutas entre os grupos primordiais para a

consecuçãodopodereconómico.Depoisquealgunsgruposadquiriramdominação

sobreoutrosefoiestabelecidainteriormenteadivisãodapopulaçãoemcastasou

classes, tornou-senecessário,paraassegurarasvantagensobtidas,organizarum

poder político coercitivo. Depois que a sociedade se achou dividida em chefes,

aristocrataseescravos,apareceramasprimeiras leisoucódigosparadelimitara

esfera dos direitos e deveres. Não foram os primitivos Estados constituídos por

uniões voluntárias e livres; os primeiros movimentos dos grupos primordiais,

comoescreveL.Gumplowicz,deramemresultadouniõesforçadas,queformaram

asprimeirasorganizaçõesdedominaçãodeunsgrupossobreoutrosgruposou-

Estados. O Estado nas primeiras fases do desenvolvimento social, no estádio de

tribo, de cidade, etc., foi uma agregação forçada, crua;mas, depois que adquiriu

certo grau de coesão e estabilidade, tornou-se um todo sólido e, em relação às

outrasunidadessociais,umgruposecundário,namesmaposiçãoqueantescada

grupoprimordialpara comosoutros gruposprimordiais.Daí, o considerar cada

Estadotodososoutroscomoobjectosdasuaconcupiscência,cujasujeiçãose lhe

antolhavacomoummodocómododeauferircertasvantagensecomodidades;daí,

a luta entre Estados e o aumento e enriquecimento do vencedor com novas

uniões.1

1VideL.Gumplowicz,Unprogrammedesociologie,p.76eseg.,nosAnnalesdeL'InstitutInternationaldeSociologie,de1894.

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EsteprocessodeformaçãodosEstadosécorroboradopelasmaisrecentes

investigações sociológicas e admitido pelos sociologistas mais insignes. Embora

Morgan,na suaobranotabilíssima -AncientSociety, -nosdê contadediferentes

populações que, enquanto tiveram por base da sua organização a constituição

gentílica, viveram sem Estado, nem organização coercitiva2; embora H. Spencer

citetambémpopulações"quenãoforamagressivaseque,porcausasespeciais,não

estiveram expostas a nenhuma agressão, sendo a veracidade, a honestidade, a

justiça e a generosidade tão bem praticadas, que bastava que a opinião pública

pudessedetemposatemposexprimir-senumaassembleiadeanciãosconvocada

em intervalos irregulares3"; embora, de acordo com estes ilustres publicistas,

EliséeReclusafirmequediversaspopulaçõesviverameaindahojevivemsemleis,

nem governo, nem organização coercitiva4; - o facto geral é que os primeiros

movimentossociaisforamportodaaparteagressivosecomfinsdominadores.

Estaverdadeéperfilhadapelospublicistasmaisnotáveise,emespecial,por

HerbertSpencer,cujosistemasocial,comasuaideiamaterialistadogoverno,asua

opiniãosobreocarácterperturbadordoEstadoeoseunihilismoadministrativo,

contém, na frase de Adolfo Posada, uma verdadeira sugestão do anarquismo

doutrinal.5 "Sejaverdadeounão,escreveH.Spencer,queohomemsecomponha

de iniquidadese tenha sido concebidonopecado, é incontestávelqueo governo

nasceudaagressãoeporelafoiorganizado".6E,comoH.Spencer,afirmaoilustre

criminalistadaescolaantropológica,EnricoFerri,queoEstado"saiudaslutasdas

classessociaisemcadagrupohumanoeda lutadosgruposétnicosentresipara

conquistaremopodereconómico".OEstadoemtodasassuasformasembrionárias

2VideMorgan,Ancientsociety;ouumresumodestaobraporFr.Engels,comotítulodeL'originedelafamille,delapropriétéetdeL'Etat,tad.porH.Ravé.

3VideH.Spencer,L'individucontrel'Etat,p.65.

4VideEliséeReclus,L'anarchie,conferênciapublic.nosn.ºs3,4e5deLesTempsNouveaux,de1895.

5VideAdolfoPosada,Lasociologieetl'anarchisme,pp.329-350,nosAnnalescit.,de1894.

6VideHerbertSpencer,Lajustice,cit.,porA.Posada.

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oudesenvolvidas,acrescentaele,temsido"obraçoseculardaclassequedetémo

podereconómicoe,comele,opoderlegislativo,judicialeadministrativo".7

As reuniões dos grupos que vieram a constituir as grandes aglomerações

sociais, operaram-se,dizTolstoi, nãoporqueoshomens tivessemconsciênciada

superioridade das novas formas estruturais, mas por causa do aumento das

populações e por efeito das lutas e das conquistas. A constituição de um poder

governamental, embora aparentemente necessário para fazer desaparecer as

violências interiores,deuemresultado introduzirnavidadoshomensviolências

desconhecidas, tanto mais desastrosas, quanto mais longa se foi tornando a

duração e mais crescida a força do Poder. Apesar dos esforços incessantes

daquelesqueodetêmparaocultarasuaverdadeirasignificação,resultadomais

ligeiroexamedasinstituiçõescoercitivas,queabasedetodoopoderéaviolência

físicaeaopressão.Ohomem,submetidoàacçãodopoder,nãoprocedesegundoa

suaespontaneidade,masobedecemaquinalmenteaumavontadealheia,despindo

asuainiciativaindividual,asuaautonomiae,portanto,asuadignidade.OEstado

foi historicamente engendrado pela violência e por meio dela vive; pois, sem a

exaltaçãodesimesmoeahumilhaçãodeoutrem,semahipocrisiaeafraude,sem

asprisõeseasfortalezas,semasexecuçõeseosassassinatos,nenhumpodernasce

esemantém.8OEstadonãoéasociedade,comodisseBakounine;masumaforma

histórica, brutal e abstracta, nascida em toda a parte da aliança da violência, da

rapina,daguerraedaconquistacomosdeusescriadospelafantasiateológicadas

nações.9

Não carecemos de insistir mais neste ponto; todas as investigações

sociológicas mais recentes confirmam a doutrina que deixamos expendida,

apoiando brilhantemente a tese marxista (...); isto é, que a constituição política

procededaconstituiçãoeconómica."Quandoobservamosassociedadeshumanas,

7VideEnricoFerri,Sociologieetsocialisme,p.166,nosAnnalescit.,de1894.

8VideL.Tolstoi,Lesalutestenvous,cap.VII,pp,181,201e254.

9VideM.Bakounine,Oeuvres,Dieuetl'Etat,pp.287e288.

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diz P. Kropotkine, nos seus traços essenciais, abstraindo das manifestações

secundárias e temporárias, reconhecemos que o regime político, a que estão

submetidas, é sempre a expressão do regime económico que existe no seio da

sociedade. A organização política não muda à vontade dos legisladores; pode

certamentemudar de nome, pode apresentar-se hoje sob a formamonárquica e

amanhã sob a forma republicana, mas não sofre modificação equivalente:

acomoda-se, ajeita-se ao regime económico, cuja expressão sempre é, como

também a sua consagração e conservação".10 Ou, como diz G. de Greef, "uma

sociedade economicamente igualitária sê-lo-á também inevitavelmente no resto;

isto é, sob o ponto de vista da constituição da família, das funções artísticas,

científicasemorais,daconcepçãoedarealizaçãododireitoe,acimade tudo,do

regimepolítico".11

Os mais notáveis publicistas anarquistas, embora confessem que é

impossível traçar antecipadamente o quadro da sociedade futura, indicam pelo

menosunstraçosgeraisquelhesparecemderivardasociedadeactualparaterem

realização no futuro. Respigando aqui e alémnos seus escritos, achamos acordo

nasseguintesafirmações.

O anarquismo, admitindo a fatalidade histórica da socialização futura da

propriedade,reconhecequetal factoseoperarásomente,quandoaconcentração

dosmeiosdeproduçãoeaorganizaçãosolidáriadotrabalhoestiveremrealizadas;

queoresultadopolíticoimediatodestefactorevolucionárioseráaautonomiados

centros produtores, os quais, chamando as classes improdutivas ao trabalho

comum, cuidarão de regular o funcionamento dos grupos, no que respeita à

produção,àtrocaeaoconsumo.Ospublicistasanarquistaspensamqueosgrupos

independentessenãodeixarãodirigirporrepresentantesdanação,comoquerem

os colectivistas; mas, sim, que eles mesmos regulem e administrem a sua vida

interior e exterior; e isto julgam-nopossível, porqueadivisãodo trabalhohá-de

10VideP.Kropotkine,Parolesd'unrévolté,pp.169eseg.

11VideG.deGreef,Letransformismesocial,pp.313eseg.

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subiratalgrau,aespecializaçãodasfunçõesirátãolonge,quenãopoderão,como

jáoreconheceuProudhon,serdemasiadovastasasorganizaçõeslibertárias.

Verdadeseja,e istoéevidente,que,nãosendoassazabundantes todosos

produtos, será preciso estabelecer as bases do gozo em comum. Kropotkine,

propondo esta questão, responde que não há dois modos de a resolver

acertadamente:oúnicosistemapráticoéoqueadoptamascomunasagráriasda

Europa:utilizar-secadaqualàsuavontadedosprodutosabundantes,ehaver,nos

queonãoforem,partilha,conformeasnecessidades individuais.Éosistemaque

praticamtodaaSuíçaemuitascomunasfrancesas,alemãs,etc.;dos350milhõesde

habitanteseuropeus,200milhõesseguemactualmenteestaprática, inteiramente

natural.12Deresto,éprecisonãoesquecerqueaproduçãoterápor fimdirectoa

satisfação das necessidades, conforme o grau da sua urgência e não o interesse,

comoactualmentenoregimecapitalista.Eestepontodevistadaeconomiaémuito

importante,porque,alémdetornarpossívelumcertobemestargeral,evitará,até

certoponto,alutapelapossedosprodutosraros.

Com estas ideias concorda Malato, dizendo que "a forma social, antes e

depoisdatormenta,nãopoderáseramesmaportodaaparte,poisqueépreciso

ter em conta as diferenças de raças, costumes, carácter, instituições,

desenvolvimentoindustrialeagrícola,queoporão,segundoasregiões,aoímpeto

socialista resistências mais ou menos consideráveis. Onde superabundar a

produção, não haverá necessidade de regulamentar o seu uso: consumir-se-á

livremente - não por espírito de sistema, mas por hábito: será o comunismo

anarquista; pelo contrário, nospaísesmenosprovidos, a repartiçãopro rata, em

proporçãodasnecessidades,impôr-se-á:seráocolectivismo.Oregimeeconómico

variaráevidentementeentreestesdoistermos"13.

Geralmente, predomina a ideia de que, emancipados revolucionariamente

ostrabalhadoresdojugodoCapitaledoPoder,sedevedeixaràsassociações,em12VideP.Kropotkine,Laconquêtedupain,p.79.

13VideCharlesMalato,Révolutionchrétienneetrévolutionsociale.

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que se constituírem, liberdade plena de contrataremo pacto quemelhor agrade

aosseusmembros, sendocertoqueasmodalidadesse imporãonecessariamente

porcausadasdiferençasdepaísesparapaíses.

Asociedadeserá,portanto,livrepelaassociaçãofederativaeespontâneados

homens para a vida, sobre a base das comunidade da terra e de todos os

instrumentosdetrabalho;querdizer:aAnarquiaseráaigualdadepelaaboliçãoda

propriedadeprivadaealiberdadepelaaboliçãodetodososgovernos.

Tal a doutrina e tais as aspirações da corrente socialista comunista

anarquistacientíficadominante.