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UMA FRESTA NA NEBLINA estudo da possibi l idade de
Restauro Urbano do Ser ro Ana Aparecida Barbosa
EESC USP2007
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A n a A p a r e c i d a B a r b o s a
U M A F R E S T A N A N E B L I N A Estudo da Possibilidade de Restauro Urbano do Serro
Dissertao apresentada ao Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo, para a
obteno do ttulo de mestre em Arquitetura e Urbanismo.
rea de concentrao: Teoria e Histria da Arquitetura e do Urbanismo
Orientadora: Prof. Dr. Maria ngela P.C.S. Bortolucci
So Carlos
2007
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AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Ficha catalogrfica preparada pela Seo de Tratamento da Informao do Servio de Biblioteca EESC/USP
Barbosa, Ana Aparecida B238f Uma fresta na neblina : estudo da possibilidade de
restauro urbano do Serro / Ana Aparecida Barbosa ; orientadora Maria ngela P.C.S. Bortolucci. - So Carlos, 2007.
Dissertao (Mestrado-Programa de Ps-Graduao em
Arquitetura e Urbanismo. rea de Concentrao: Teoria e Histria da Arquitetura e Urbanismo) - Escola de Engenharia de So Carlos da Universidade de So Paulo, 2007.
1. Serro (MG). 2. Restauro Urbano. 3. Patrimnio
cultural. 4. Cidade. 5. Preservao. 6. Restaurao. 7. Cesare Brandi. I. Ttulo.
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Dedico as conquistas e alegrias deste trabalho ao
Olavo dos Santos Pereira Junior,
companheiro de todos os momentos, amor querido, beno em minha vida.
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A DEUS
Aos meus amados pais Wenceslau e Olandina, pelo exemplo de vida, e pela certeza de que o conhecimento se faz a partir da cultura e da determinao;
por me possibilitarem tudo aquilo cuja oportunidade no tiveram.
Aos meus irmos queridos, Marlene, Wanderlei, Wilma, Maria do Carmo, Hilza, Walace e Mirandinha por todo apoio e contribuio no caminhar dirio da vida,
sempre objetivando um sucesso mtuo e compartilhado; e, neste trabalho, em especial Mariza, Ana, Rubinho e Helena.
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Aos mestres,
Maria ngela Bortolucci
e
Leonardo Barci Castriota
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Agradeo querida professora, mestra Maria ngela Bortolucci por
generosamente me aceitar como orientanda, conduzindo este trabalho com
equilbrio, sensibilidade e muita competncia, assim como ao professor
Leonardo Barci Castriota pelas orientaes complementares certeiras na
direo de um adequado recorte do objeto; professora Beatriz Mugayar
Khl, que prestou importantes orientaes para uma pertinente atualizao
bibliogrfica do tema da restaurao; ao professor Carlos Roberto Monteiro
de Andrade contribuindo com, carinho e profissionalismo, preciosas incurses
no que se refere a Camillo Sitte; ao professor Silloto, pela gentileza e
contribuio; a amiga Til Costa Pestana que compartilhou conhecimentos
sobre patrimnio cultural numa conduta constante ao debate cientfico sobre a
preservao da cidade; ao IPHAN, Lia Motta, Cladia Lage e Srgio
Abraho, por terem me apresentado a cidade como patrimnio cultural; aos
funcionrios do IPHAN de Diamantina, Tiradentes, Sabar, Serro e Belo
Horizonte; aos colegas do Laboratrio de Fotodocumentao Sylvio de
Vasconcellos da EA UFMG, especialmente ao Archimedes e Carla; aos
funcionrios, da Biblioteca da EA UFMG e da EESC USP; ao ensino pblico
brasileiro e rgos de fomento, CAPES pelo apoio nesta pesquisa, e pela
capacidade de estimular a expanso do conhecimento democrtico; aos
colegas Vladimir Benincasa, Luciana Mascaro e Michele sempre
companheiros, e todos os demais colegas do nosso Grupo de Pesquisa, Preta,
Camila Corsi, Marcus, Valria, Paola, Mateus...; ao Programa de Ps
Graduao em Arquitetura e Urbanismo da EESC, da Universidade de So
Paulo, especialmente ao Marcelinho e ao Geraldo; aos anjos da guarda Maria
Vilma da EA UFMG e Joo ngelo Chiari
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Amar o perdido deixa confundido
este corao.
Nada pode o olvido contra o sem sentido
apelo do No.
As coisas tangveis tornam-se insensveis
palma da mo.
Mas as coisas findas, muito mais que lindas,
essas ficaro.
Memria, Carlos Drummond de Andrade
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Resumo
BARBOSA, A.A. (2007). Uma fresta na neblina: estudo da possibilidade de restauro urbano do Serro. 288p. Dissertao (Mestrado) Escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos, 2007.
Estudo da possibilidade de restauro urbano da cidade patrimnio cultural.
Refora o carter artstico da cidade, reconhece a sua materialidade atravs da
percepo espacial, e identifica condies fsicas de espaos urbanos. Discute
suas transformaes para a preservao. Adota, como estudo de caso, Serro
(MG) reconhecendo sua natureza artstica. Interpreta a Teoria do Restauro de
Cesare Brandi focando o espao urbano percebido, a partir da leitura da cidade
antiga brasileira, atravs dos princpios artsticos de Camillo Sitte. Conclui que
a cidade passa por transformaes que podem comprometer sua condio
artstica, necessitando, desta forma, de aes de preservao apropriadas.
Palavras-chave: Restauro urbano. Serro (MG). Patrimnio cultural. Cidade.
Preservao. Restaurao. Cesare Brandi.
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Abstract
BARBOSA, A.A. (2007). An opening in the fog: Study of possibility of the restore urban of the Serro. 288p. M.Sc. (Dissertation) Escola de Engenharia de So Carlos, Universidade de So Paulo, So Carlos, 2007.
Study of possibility of the restore urban of the patrimony city. It reinforces the
artistic character of the city, it recognizes your materiality through the space
perception and it identifies physical conditions of urban spaces. It discusses
your transformations for the preservation. The city of Serro (MG) was used as
case study due its artistic nature. This study interprets the Cesare Brandis
Theory of Restoration applied the urban space, and this urban space is
interpreted through analysis of the brasilian old city (colonial city), according to
artistic principles of Camillo Sitte. Like this we ended that the city changes and
this change can to alter its artistic nature, imposing apropriate preservation
action.
Keywords: Restore urban. Serro (MG). Work of art. Cultural patrimony. City.
Preservation. Restoration. Cesare Brandi.
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Sumrio
INTRODUO...............................................................................................................13
1. CAPTULO 1 PRINCPIOS PARA UM RESTAURO URBANO ............................................23
1.1. Teoria do Restauro de Cesare Brandi ..........................................30
1.2. O mtodo formal................................................................................59
1.3. A cidade como obra de arte..............................................................97
2. CAPTULO 2 - A CIDADE-PATRIMNIO ......................................................................112
2.1. Atribuio do valor esttico ...........................................................112
2.2. Formao e transformao da cidade ...........................................122
2.3. A preservao e a no preservao...............................................142
2.4. O estado da forma urbana ..............................................................179
3. CAPTULO 3 O RESTAURO URBANO ......................................................................249
3.1. A restaurao da cidade e a Teoria brandiana .............................250
3.2. Serro para o futuro ..........................................................................260
3.3. Se necessrio,... restaurar ..............................................................276
REFERNCIAS ...........................................................................................................282
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Introduo
Esta pesquisa tem sua origem a partir da observao direta da condio atual
de preservao das cidades setecentistas mineiras, da realidade de entendimento
predominante sobre espao urbano por agentes, que possuem grande
responsabilidade por importantes transformaes pelas quais a cidade passa.
Percebemos graves deficincias quanto ao entendimento do significado dessas
cidades e o quanto importante a forma de tratar a preservao. Esta nossa
inquietao estava sempre presente durante o desenvolvimento de trabalhos pelo
Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (IPHAN) em cidades como
Diamantina, Tiradentes, Sabar, e Serro.
Desta oportunidade de conhecermos diferentes cidades mineiras, em
diferentes condies econmicas e sociais, com origem e formao distintas, apesar
de ter em comum a minerao, foi possvel percebermos o que realmente favorece a
salvaguarda de um acervo urbano: o seu reconhecimento como tal, principalmente
por sua populao local. E, ligado a isso, o reconhecimento das especificidades do
acervo por agentes como arquitetos e engenheiros, que transformam estas cidades.
Neste universo, podemos entender Serro (MG) de maneira diversa das
demais, pois o turismo ainda no faz parte da base de sua economia, e a rea mais
antiga habitada predominantemente pela populao prpria do lugar. Alm disso,
tem em sua origem econmica, tradicional e histrica, a minerao a agropecuria.
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Entendemos que disso resulta um povo que se relaciona com seu habitat com mais
intimidade, uma vez que na agricultura, para se colher, preciso cuidar da terra; e
na minerao, basicamente, explorar o existente. Serro diferente de Tiradentes ou
Ouro Preto com relao a esta raiz exploratria a qual o turismo, se vincula,
podendo resultar em uma comunidade despreocupada com os motivos da
preservao e mais vinculada a resultados imediatistas. Diamantina, a partir de
1999, aps a obteno do ttulo de patrimnio da humanidade, se voltou para o
caminho do turismo e vivencia fortes transformaes, refletindo na populao local
dvidas quanto aos motivos da preservao de sua cidade. Sabar possui uma
populao de certa forma desterritorializada, devido a sua condio de regio
metropolitana de Belo Horizonte, referenciada por muitos como cidade dormitrio.
Cada cidade tem sua especificidade, e neste universo entendemos que Serro
(MG) representa o conjunto urbano setecentista mineiro, tombado pelo IPHAN mais
ntegro, no sentido de uma maior aproximao com suas origens, se apresentando
como objeto de estudo ideal para a verificao de um possvel restauro urbano. Este
quadro reforado por sua escala urbana, com maiores possibilidades de domnio
de um inteiro que favorece nossas discusses urbansticas de preservao.
O desenvolvimento deste trabalho nos cria a expectativa de somar maiores
contribuies. Com o conhecimento dessas cidades, acrescido da aproximao com
os demais conjuntos urbanos tombados pelo IPHAN, devido sua natureza
nacional, tivemos a oportunidade de amplo aprendizado por meio de colaboraes
em trabalhos em So Joo Del Rei (MG), Mariana (MG), Ouro Preto (MG), e cidades
como Prados (MG), onde participamos, em 2002, da elaborao de um plano de
preservao para o entorno da igreja tombada de Nossa Senhora da Conceio.
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Esta realidade tem colaborado, de maneira positiva, nos debates que esta pesquisa
exige.
Quando trabalhamos no Serro pelo IPHAN, mapeamos lacunas relacionadas
ausncia de edificaes antigas e verificamos a existncia de danos na cidade
tombada. Ento nos perguntvamos se seria possvel um restauro urbano. Como
tratarmos um objeto em especial condio de reconhecimento de valor artstico? E
quais os mecanismos para viabilizarmos este processo?
A partir de ento, verificamos a necessidade de ampliao do conhecimento
para lidar com tais questes e ingressamos no Programa de Ps-Graduao em
Arquitetura e Urbanismo da EESC/USP. Durante o desenvolvimento da ps-
graduao, realizamos ampla pesquisa bibliogrfica e levantamento de dados sobre
o tema restaurao. Consultamos bibliotecas, arquivos e sites sobre a histria do
restauro e seus principais tericos. J no incio do processo, identificamos o perodo
histrico em que o espao urbano, uma cidade inteira passaram a ser reconhecida
como bem patrimonial, sendo Choay (2001) fundamental neste momento.
Como nosso propsito foca a questo urbana pensando em seu restauro,
avanamos a pesquisa bibliogrfica rumo aproximao entre a cidade e sua
preservao, conservao e restaurao. Contamos nesta fase, dentre vrios
autores, com a colaborao de Dourado (2003), que nos apontou vrios caminhos.
Dentre os estudiosos da cidade e de sua preservao, aquele que mais se
aproximou do tema restaurao urbana foi o italiano Gustavo Giovannoni. Jokilehto
(1986) lembra que Giovannoni desenvolveu a Teoria de Diradamento', onde ele
destaca a importncia para a cidade, da arquitetura de pequenas edificaes, aquela
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no monumental. Giovannoni estava consciente de que a cidade desenvolveu-se ao
longo dos anos, e nela foram introduzidos estilos diferentes em perodos diferentes
(JOKILEHTO, 1986, p.196, traduo da autora).
Mas, nos voltamos aos tericos clssicos do restauro, como Viollet-le-Duc,
John Ruskin, Camilo Boito, Alois Riegl, em que percebemos uma abordagem da
questo do restauro a partir das inquietaes de cada poca, gerando importante
legado, um aps o outro, num desenvolvimento constante de amplos avanos do
tema enquanto disciplina autnoma. Temos cincia de que todos oferecem
destacada contribuio, mas para uma abordagem mais direta, voltada para o
restauro da cidade, acreditamos que encontraramos em Giovannoni a maior
contribuio para o debate que buscamos. Mesmo tendo o discernimento de
conceitos ainda atuais desses tericos clssicos da restaurao, vamos, exceo
de Giovannoni, que eles no apresentavam em suas pesquisas a viso mais
contempornea sobre o tema do restauro para uma demanda urbana.
Pensamos, ento, ser o restauro cientfico de Gustavo Giovannoni o mais
adequado recurso da linguagem da preservao para a avaliao de um possvel
restauro urbano. Entretanto, a partir do momento que nossas leituras e pesquisas
avanavam e descobramos novas abordagens, ficvamos mais distantes de
Giovannoni que, apesar de ter sido inovador principalmente quanto questo
urbana, sofreu importantes influncias de Camillo Sitte, quanto forma de
percepo dos valores visuais e pinturescos da cidade (JOKILEHTO, 1986). A partir
da segunda guerra mundial Giovannoni viu seus princpios de restauro entendidos
como insuficientes, uma vez que os amplos danos que surgiram apresentavam
demandas de anlises e solues no contempladas pelo seu mtodo do restauro
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cientfico. O ponto mais determinante neste sentido trata da ausncia, em seus
estudos, da dimenso figurativa da imagem, onde neutros no funcionavam na
recomposio de obras severamente danificadas ou destrudas. A partir dessas
constataes decorrentes dos graves prejuzos causados pela guerra no patrimnio
europeu, ocorreram novas reflexes e pesquisas que culminaram no surgimento do
restauro crtico, quando novos pesquisadores perceberam que cada caso um caso
diferente. E, conseqentemente a reflexo de que a obra danificada deva ser tratada
como nica, vinculada ao conhecimento de histria da arte do restaurador, de sua
sensibilidade, experincia, dentre outros condicionantes.
A partir do final da dcada de 1940, aconteceu uma revoluo no
entendimento de restauro, que historicamente foi conflituoso e passvel de leituras
diversas. Da vivncia desse perodo histrico, na dcada de 1960, Cesare Brandi
publicou um compilado de seus textos e produo sobre o tema, com o ttulo de
Teoria del Restauro, e a partir de uma filosofia como a kantiana criou sua prpria
teoria do restauro, sem referenciar seus antecessores (CARBONARA, 2003).
Brandi (2005) busca definir caminhos para um entendimento do objeto a que
se pretende restaurar para ento pensar na realizao. Para ele, a restaurao
constitui o momento metodolgico do reconhecimento da obra de arte, na sua
conscincia fsica e na dplice polaridade esttica e histrica, com vistas sua
transmisso para o futuro (BRANDI, 2005, p.30). Ou seja, a ao de restaurar est
vinculada ao reconhecimento da obra de arte como tal, e o objeto que a determina.
Para Azevedo (2003), desde o trabalho de Brandi, a produo sobre o tema
do restauro no teve colaborao neste teor e nesta ordem de grandeza. Existem
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posturas diferentes da sua, como o atual conservadorismo puro que busca
desmontar a Teoria brandiana em sua base, fundamentada no reconhecimento do
objeto a ser restaurado como sendo obra-de-arte. Para estudiosos do restauro como
Carbonara (2006), Brandi ainda no foi superado, mostrando-se absolutamente
atual.
Acreditamos, portanto, que Cesare Brandi, por meio de sua Teoria do
Restauro, represente o caminho mais adequado e atual para se avaliar a
possibilidade de um restauro urbano, pois seu pressuposto que se trate de uma
obra-de-arte, exigindo uma anlise de natureza formal e esttica, como a apreenso
do espao visual da cidade (ARGAN, 1998). Ento, neste sentido, retomamos
nossas pesquisas quanto ao reconhecimento da cidade como bem patrimonial.
a noo de patrimnio urbano histrico constituiu-se na contramo do processo de urbanizao dominante. Ela o resultado de uma dialtica da histria e da historicidade que se processa entre trs abordagens [memorial, histrica e historial] (CHOAY, 2001 p.180).
Percebemos que a abordagem histrica discutida por Choay (2001) encontra-
se presente, de maneira expressiva, na obra de Camillo Sitte, que apresenta um teor
tcnico quanto abordagem esttica do espao urbano antigo e do importante
carter humano em sua manuteno. Para Sitte (1992), a percepo visual do
espao urbano deve trazer ao observador a sensao do belo, do agradvel.
Camillo Sitte considerado por Choay (2001) como o pai da morfologia
urbana, e tem sido objeto de constantes estudos retomados com maior vigor a partir
da dcada de 60, mostrando-se contemporneo. Seu trabalho sobre os princpios
artsticos da construo dos espaos pblicos se aproxima de maneira tcnica da
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leitura do espao urbano como obra de arte. E esta leitura ocorre a partir da forma,
dos dados espaciais, da materialidade urbana.
Cesare Brandi (2005) acredita que se restaura apenas a matria da obra de
arte. Para verificarmos a possibilidade de um restauro urbano, entendemos como
sendo adequado partir de uma leitura pioneira e contempornea. Elegemos Camillo
Sitte em A construo das cidades segundo seus princpios artsticos, como o
instrumento que possui o mximo de qualidades necessrias para satisfazer os
critrios de apreciao apontados por Brandi (2005), para atingirmos nosso objetivo
de verificar a possibilidade de um restauro urbano da cidade patrimnio cultural,
reforarmos o carter artstico da cidade, reconhecermos a sua materialidade por
meio da percepo espacial, identificarmos condies fsicas de espaos urbanos,
discutirmos suas transformaes para a preservao.
Contudo, percebemos a necessidade de complementarmos os estudos para o
entendimento da cidade como obra de arte. Em entrevistas com arquitetos e
engenheiros que atuam em cidades reconhecidas como obra de arte, constatamos a
deficincia quanto ao reconhecimento desta natureza artstica (BARBOSA, 2005). A
partir de nossas anlises e pesquisa bibliogrfica, percebemos em Argan (1998)
uma leitura do historiador da arte com amplitude do objeto de maneira global, que
transporta o conceito de cidade para um universo mais amplo do que aquele
entendido convencionalmente, e que traz tona as relaes internas de uma
edificao, a maneira de se vestir e o espao tido como rural. Entendemos que esta
viso das mais atuais quando aplicada ao universo patrimonial contemporneo.
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Alm das pesquisas bibliogrficas, realizamos levantamentos de campo para
o conhecimento pleno do objeto de estudo. Aps a deciso de trabalhar Serro (MG),
ampliamos nossas investigaes bibliogrficas a respeito dessa cidade, assim como
anlises e levantamentos de dados no prprio local objeto do trabalho.
Fotografamos percursos, praas, monumentos; registramos vistas panormicas e
parciais da cidade, elaboramos mapas temticos, assim como complementamos o
material de pesquisa com acervo fotogrfico e documental levantado por outros
pesquisadores que esto trabalhando com a cidade, vinculados a instituies como:
a Universidade Federal de Minas Gerais, com o Plano Diretor; o Ministrio da
Cultura, com o Programa Monumenta; o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico
Estadual e a Prefeitura Municipal de Serro que, alm de participarem do Programa
Monumenta, participam da Lei Estadual de Incentivo Cultura de Minas Gerais, que
dispe sobre a concesso de incentivos fiscais com o objetivo de estimular a
realizao de projetos culturais no Estado. Salientamos, ainda, a valiosa
colaborao do IPHAN com seu vasto arquivo sobre a cidade desde seu
tombamento, dentre outras contribuies.
Aps inmeras reflexes, estruturamos a dissertao em trs captulos: o
primeiro, de carter terico-conceitual, para a discusso e apresentao dos
princpios da teoria do restauro de Cesare Brandi, de como se pode realizar uma
anlise formal da cidade, e de que maneira ela pode ser percebida como obra de
arte, com destaque para as contribuies de Cesare Brandi, Camillo Sitte e Giulio
Carlo Argan.
O segundo captulo consta da histria e transformao urbana do objeto
cidade setecentista de Serro , da trajetria de preservao da cidade, da sua
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apresentao a partir do estudo de seu valor esttico, lido a partir dos conceitos
apontados principalmente por Argan, Sitte e aqueles reconhecidos pelo IPHAN em
seu tombamento; das anlises do estado atual de sua forma urbana, utilizando os
princpios artsticos da construo do espao urbano por Camillo Sitte.
O terceiro, consta de preciosa discusso que aborda a relao dos critrios
da Teoria brandiana que so passveis de aplicao ao universo urbano. Esta
aplicabilidade avaliada a partir da condio da forma urbana atual demonstrada no
captulo anterior. Em carter ilustrativo, desenvolvemos a verificao da
possibilidade de um restauro urbano em ambientes da cidade de Serro praa
Getlio Vargas; praa Dom Epaminondas; praa Joo Pinheiro , mas sempre
entendendo que esses locais pertencem a um inteiro que a cidade, garantindo a
unidade de sua espacialidade conforme entendimento de Camillo Sitte. Tais recortes
se destacam pela relevncia de suas caractersticas morfolgicas e estticas, e pela
sua trajetria histrica, que possibilitou a ligao entre eles por caminhos seculares.
Nestes espaos foi aplicada a Teoria do Restauro de Cesare e Brandi a partir da
condio do estado em que se encontra a forma urbana percebida por princpios de
Camilo Sitte.
Consideramos estas discusses fundamentais para o universo brasileiro, uma
vez que aes de preservao urbana ainda so precrias, e muitas vezes
confusas. Ocorrem a vulgarizao e o uso de termos especficos da rea de
restauro, reabilitao, revitalizao, recuperao, conservao, dentre outras,
evidenciando falta de clareza dos seus significados. Disso resulta que, em situaes
de catstrofes e perdas graves do patrimnio cultural, valores emocionais se
sobressaem e os critrios de reconstruo em estilo predominam (sobrado
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incendiado em Ouro Preto). Atrelado a isso, Baptista (2002) aponta a gravidade da
deteriorao da reflexo crtica que vivemos, atualmente, decorrente do expressivo
desenvolvimento tecnolgico, apesar da criao de melhores condies de trabalho
da tcnica de restauro.
A confirmao de um restauro urbano trata de um grande desafio, pois,
conforme dissemos anteriormente, so muitos os profissionais e estudiosos que no
vem a cidade como obra de arte, mesmo considerando o alargamento do conceito
de bem cultural, ou que no acreditam ser aplicvel a Teoria brandiana no espao
urbano por sua mltipla constituio, alm de sua materialidade.
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1. Captulo 1 Princpios para um restauro urbano
Neste captulo desenvolvemos o embasamento terico conceitual que se
exige s anlises e reflexes para o alcance de nosso objetivo principal quanto
verificao da possibilidade de um restauro urbano. Descortina-se a faculdade
intelectual voltada para a organizao e unificao das sensaes mltiplas em
conceitos e juzos adequados ao conhecimento do mundo sensvel da restaurao a
partir de Cesare Brandi. Surge, ento, a percepo da espacialidade urbana, em sua
materialidade reconhecida na experincia vivida da conscincia, em uma explorao
do espao visual da cidade por Camillo Sitte. Desvendamos o entendimento desta
artisticidade com colaborao de Brandi, Sitte, Argan e Benedetto Croce por possuir
importante contribuio s bases do restauro crtico.
Restaurao
O tema da restaurao se apresenta sempre em debate; entretanto, j
compreendido como uma disciplina desde a dcada de vinte do sculo XIX (CHOAY,
2001). O modo contemporneo de vermos os bens culturais, a salvaguarda, no se
limita exclusivamente s "obras de arte" de especial interesse, porm contempla os
bens considerados mais simples, de baixa colocao, mas que carregam
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destacada significao cultural. Aquilo que no passado era entendido como
"Monumento Histrico" referindo-se a obras espetaculares ; atualmente
utilizado a partir de uma leitura mais prxima da origem do termo Monumento,
conforme entendimentos de Alois Riegl, mostrando-se como dispositivo da memria
coletiva e de bens histricos.
Para melhor compreenso de nossas opes quanto questo da
restaurao urbana, indicamos, de maneira geral, apontamentos sobre a trajetria
de modificaes sobre noes de restauro para compreendermos que a preservao
de bens culturais, tal como entendida hoje, tem razes remotas.
possvel detect-las no sculo XV, quando, de forma paulatina, as intervenes em obras de pocas passadas deixam de ter como moventes questes de ordem essencialmente prtica e utilitria e comeam a ter motivao cultural. A partir de finais do sculo XVIII a preservao vai se sistematizar, assumindo, de forma gradativa, uma maior autonomia e consolida-se como campo disciplinar autnomo principalmente a partir do sculo XX (KHL, 2006, p.3).
Percebemos que as produes vinculadas ao tema da preservao, como
princpios e preceitos, esto fundamentadas em pelo menos 200 (duzentos) anos de
slidas e respeitadas experimentaes. Mas devemos ter ateno, pois divergncias
so constantes, apesar de no impedir preciosas discusses e contribuies
criteriosas para a rea, proporcionando ao tema da preservao importantes
instrumentos de reflexo.
No que se refere arquitetura, Feilden (1982) afirma que o trabalho de
preservao requer tratamento de materiais em um ambiente aberto e virtualmente
incontrolvel, onde devem ser permitidos os efeitos do tempo. Entretanto,
historicamente, as intervenes feitas em edifcios j existentes foram, ao longo do
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tempo, voltadas, em geral, para sua adaptao s necessidades da poca e ditadas
por exigncias prticas e de uso.
noes que floresceram, isolada e esporadicamente, a partir do Renascimento e amadureceram entre os sculos XV e XVIII, foram posteriormente conjugadas na formao das vertentes tericas da restaurao: o respeito pela matria original; a idia de reversibilidade e distinguibilidade da interveno; a importncia da documentao e de uma metodologia cientfica; o uso como um meio de preservar os edifcios e no como a finalidade da interveno; o interesse por aspectos conservativos e de mnima interveno; a noo de ruptura entre passado e presente (KHL, 2006, p.3).
Ainda podemos destacar a importncia dos debates decorrentes das
transformaes e demandas criadas pela Revoluo Industrial e principalmente pela
Revoluo Francesa, quanto aos valores de patrimnio. A preservao de
monumentos histricos se transforma em uma conotao fundamentalmente
cultural, vinculada aos valores formais, histricos, simblicos e memoriais, em
contraposio s aes de cunho prtico (CHOAY, 2001).
Todo esse processo de reflexes tericas esteve atrelado a experincias
prticas, que a partir do sculo XIX obtiveram repercusso mais ampla, inclusive
legislativa, em vrios pases europeus. Ocorreram vertentes distintas, das quais
podemos destacar a busca de um estado completo para a obra, que pode no ter
existido, um completamento do que no foi construdo originalmente, que possui
como importante representante Eugene E. Viollet-le-Duc. Outra importante vertente
foi liderada por John Ruskin e William Morris, que acreditavam no respeito absoluto
pela matria original do bem, indicando sempre a manuteno peridica para
prolongar o mais possvel a vida do edifcio, mas admitindo a possibilidade de uma
possvel perda.
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Khl (2006) afirma que as experincias dspares e, mesmo, antagnicas
praticadas at ento foram reformuladas por Camillo Boito no final do sculo XIX.
Ele consolidou uma via que se contraps prtica difusa de tentativas de voltar a
um suposto estado original, unidade de estilo, ou estado anterior qualquer. O
trabalho de Boito preconizava
o respeito pela matria original, pelas marcas da passagem do tempo e pelas vrias fases da obra, alm de recomendar a mnima interveno e, no caso de acrscimos, a distinguibilidade da ao contempornea, para que esta ltima no fosse confundida com aquilo que subsistia da obra, o que poderia levar o observador ao engano de consider-la como antiga (KHL, 2006, p.4).
No que se refere abordagem da preservao urbana, em especial questo
do restauro, de acordo com Jokilehto (1986), Gustavo Giovannoni marcou a histria
da arquitetura, na conservao e restaurao de edifcios histricos e cidades,
destacando sua forte fundamentao em Camilo Boito, a partir do respeito s
expresses de vrios perodos sobrepostos no monumento.
Boito trouxe questes como a distinguibilidade, a nfase ao valor documental
dos monumentos, e Alois Riegl, no final sculo XIX incio do sculo XX, trouxe
novidades tanto para a teoria quanto para a prtica da preservao e restaurao
dos bens culturais, contemplando aspectos normativos na ustria, alm de anlises
profundas sobre o papel dos Monumentos Histricos e suas formas de apreenso
por uma dada sociedade.
Riegl deu passos fundamentais para consolidar a preservao de bens culturais como um campo disciplinar autnomo, que deixou de ser apenas um "auxiliar" da histria da arte (assim como tambm contribuiu para a consolidao da prpria histria da arte como um campo autnomo em relao "histria geral"), passando a assumir caractersticas prprias, podendo, por sua vez, oferecer contribuies para a prpria historiografia e para a criao artstica contempornea. Elaborou proposies prospectivas, que permanecem vlidas ainda hoje, contendo elementos que podem ser continuamente explorados (KHL, 2006, p.5).
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Cludia Reis (2006) chama a ateno para o interesse das colocaes de
Riegl em sua obra O Culto Moderno dos Monumentos, de 1903. Esse trabalho de
Riegl se direciona a uma estruturao legislativa para a conservao na ustria,
sendo composto de trs partes: a primeira, O Culto, uma discusso terica que
fundamenta a proposta de lei; a segunda o projeto de lei para a tutela dos
monumentos; a parte final contempla as disposies para a aplicao da lei (REIS,
2006).
Riegl propunha debates sobre Monumentos Histricos distantes daqueles
tradicionalmente baseados nas abordagens histrico-artsticas, como prevalecera
at ento. Foi inovador em considerar as formas de recepo, de percepo e de
fruio dos monumentos, atravs dos "valores" por ele explicitados no Culto.
para Riegl, monumentos histricos eram no apenas as "obras de arte", mas qualquer obra humana com certa antigidade (para ele, qualquer obra com mais de sessenta anos), contrapondo-se assim s polticas de preservao que se voltavam apenas aos objetos de excepcional relevncia histrica e artstica (KHL, 2006, p.5).
O "valor de antigidade" fundamenta as propostas de Riegl para a nova
legislao, que buscava uma tutela difusa afim de assegurar a preservao de
ampla gama de testemunhos relevantes de pocas passadas. Riegl considerava que
os outros "valores" deviam ser aplicados, de modo alternado ou indistinto,
dependendo da situao.
Cabe destacar ainda que Riegl foi um dos primeiros a evidenciar que as
atuaes voltadas preservao dos Monumentos Histricos no podiam ser
entendidas em sentido absoluto; para ele no existe uma nica soluo
universalmente vlida, mas comporta vrias solues, de pertinncia relativa. Mas
isso no significa que a ao seja arbitrria, pelo contrrio (KHL, 2006).
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28
Em meados do sculo XX, foram feitas novas proposies no campo da
restaurao, que surgiram tambm em conseqncia das destruies da Segunda
Guerra Mundial, evidenciando os reduzidos instrumentos tericos at ento
empregados para se entender a realidade figurativa dos monumentos. As
contribuies da esttica no haviam sido levadas suficientemente em conta, no
sendo empregados os meios conceituais disponveis para abordar obras e extensas
reas devastadas, tornando-se evidente a inadequao de se trabalhar com
"neutros" no completamento de edifcios, ou no tratamento de conjuntos urbanos,
como se fizera e se propusera naquela primeira metade do sculo, principalmente
com o restauro cientfico de Gustavo Giovannoni.
Foram de relevncia (e permanecem atuais) textos escritos desde os anos 1940, a exemplo dos de Cesare Brandi, Roberto Pane, Renato Bonelli e Paul Philippot, atingindo-se certa posio de consenso internacional na Carta de Veneza, de 1964 (KHL, 2006, p.7).
Houve buscas paralelas que convergiram em alguns temas, oferecendo meios
para a crtica e aprofundamento recprocos. Autores filiados ao chamado "restauro
crtico", tais como Bonelli e Pane, aliceram suas posies nas anlises das
transformaes histricas por que passaram as teorias de restaurao,
reformulando-as e articulando-as a outras enunciaes da poca, tais como as de
Brandi, que, por sua vez, fundamenta suas proposies essencialmente atravs da
esttica e da histria. E, conta com o importante vnculo s atividades prticas do
Instituto Central de Restauro (ICR).
Por se fundamentar na relao dialtica entre as "instncias" estticas e histricas da obra (ou conjunto de obras), suas proposies exigem esforo interpretativo caso a caso, e a interveno no pode ser enquadrada, a priori, em uma determinada categoria fixa como acontecera anteriormente, em especial com as formulaes de Gustavo Giovannoni (KHL, 2006, p.10).
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Mas o fato de cada restaurao constituir um caso a ser analisado em razo
das caractersticas particulares de sua especificidade no transcorrer na histria no
faz com que a interveno seja arbitrria. Essa objetividade s pode ser alcanada
pela reflexo terica e crtica. Por isso, a restaurao deve seguir princpios gerais
atravs de procedimentos e conceitos consistentes, sustentados na histria e na
filosofia, em uma formulao de restauro como hiptese crtica no expressa
verbalmente, mas concretizada em ato (CARBONARA, 2000, traduo da autora). A
"ancoragem" nesses campos disciplinares essencial para aqueles que atuam na
preservao de bens culturais, pois possibilita que se superem atitudes ditadas
unicamente por predilees individuais. Acreditamos que a restaurao deve, ainda,
estar vinculada a valores de hipteses e no di scientifica o dogmatica certezza
rende subito pi chiaro il senso dei criteri-guida vigenti in materia, come la
distinguibilit, la reversibilit, il minimo intervento, il rispetto dell'autenticit
(CARBONARA, 2000).
Dentre as tendncias atuais que procuram seguir os objetivos da
preservao, podemos destacar o restauro tipolgico, que responde a princpios de
imitao; a pura conservao com uma postura de mxima cautela, que privilegia a
instncia histrica, amenizando as aes do tempo na obra, assemelhando-se neste
ponto ao restauro tipolgico; a tendncia crtico-conservativa alicerada na teoria
brandiana e na releitura de aspectos do chamado restauro crtico. De acordo com
Carbonara (2006), conservativa porque parte do pressuposto de que o monumento
deve ser perpetuado para o futuro, e por atuar na conscincia histrica impe a
conservao de um nmero maior de coisas" do passado; e crtica pela explcita
atrao com a formulao terica que impulsiona o convencimento que cada
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interveno constitui um episdio por si, no enquadrado em categorias, no
respondendo a regras preestabelecidas, mas objetivando estudar a fundo cada
momento, sem assumir posio dogmtica ou preestabelecida.
Si dovr quindi interrogare con viva coscienza storica l'opera, nella sua natura figurativa e materiale, nei problemi di degrado e conservazione che manifesta, perch essa stessa risponda suggerendo la strada da seguire nella specifica contingenza. Il tutto senza mai dimenticarsi di fornire una soluzione estetica al problema conservativo e di considerare anche i valori figurativi indotti, sulle antiche superfici, dall'invecchiamento (CARBONARA, 2000, p.545).
Ao considerarmos a realidade da restaurao atualmente, percebemos a
necessidade de uma maior conscincia cultural.
1.1. Teoria do Restauro de Cesare Brandi
Como indicamos anteriormente, nos ltimos 200(duzentos) anos, ocorreu uma
consolidao da disciplina de restauro por meio de um processo de aprendizado
maduro e coeso. E, atravs deste processo de amadurecimento, entendemos que a
ltima consolidao de uma teoria da restaurao arquitetnica ocorreu a partir da
necessidade de escolher entre dois caminhos contraditrios e igualmente
insatisfatrios: da reparao ou perda total dos centros histricos europeus,
decorrentes dos efeitos extremamente penosos da Segunda Guerra Mundial.
[...] pouco se avanou nos ltimos 40 anos no que se refere teoria de restaurao arquitetnica, embora se tenha progredido bastante no que
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toca ao desenvolvimento de uma metodologia cognoscitiva dos centros histricos e criao de modelos de gesto dos mesmos, especialmente na Europa[...] (AZEVEDO, 2003, p.19).
neste contexto que ocorre a retomada da discusso da problemtica da
restaurao arquitetnica, trazendo novas questes e inovaes expressivas, por
meio das conferncias em 1994 e 1996 no Japo e na Bulgria, onde aconteceu o
debate sobre autenticidade e integridade do patrimnio cultural.
Contudo, os debates atuais no contemplam os critrios de interveno em
bens culturais notadamente arquitetnicos e urbansticos, atendo-se, basicamente,
ao carter crtico-historiogrfico sobre as conceituaes e polticas patrimoniais.
Conforme afirma Feilden (1982) no caso da conservao arquitetnica, surgem
freqentemente problemas porque a utilizao do edifcio histrico, que economica
e funcionalmente necessria, tambm tem que respeitar valores culturais.
Observamos esta realidade no preenchimento, em 2005, da lacuna ocorrida
na praa Tiradentes em Ouro Preto (MG), resultado do incndio no sobrado antigo
onde funcionava o Hotel Pilo, em 2003. A variedade de critrios adotados neste
tipo de restaurao ampla, e contraditoriamente muito pequena a produo de
estudos de carter terico e crtico sobre essas intervenes, resultando em
escassas publicaes sobre as restauraes, de maneira a gerar deficientes bases
crticas sobre as intervenes de restauro arquitetnico e urbano no Brasil.
A insuficincia de tais debates crticos resulta em ambigidades e graves
lacunas quanto ao entendimento do conceito de restaurao aplicado arquitetura,
que, em funo de seu carter utilitrio, gera divergncia entre vrios crticos e
tericos de arte quanto sua natureza de obra de arte, que a vem como meia-
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arte, conforme afirma Azevedo (2003). Buscamos, atravs de Brandi (2005),
compreender que a funcionalidade na arquitetura representa carter primordial,
porm no de natureza primria em sua restaurao como obra de arte.
Amplos debates quanto natureza artstica da arquitetura, envolvendo os
interesses de sua preservao, ocorrem com freqncia; entretanto, no que se
refere ao tema da teoria da restaurao, discusses da dcada de sessenta ainda
so atuais. Estas reflexes, que resultaram do ps segunda guerra, geraram uma
maior avaliao crtica do entorno e do monumento afetado pelas destruies, para
ento decidir-se o que pode ser feito diante dos danos provocados pela guerra.
Neste contexto, tais aes revelaram uma nova forma de ver a arquitetura da
cidade, momento em que Cesare Brandi publicou os conceitos de sua Teoria do
Restauro em um livro, que, de acordo com Carbonara (2002), traz nas bases de seu
pensamento a confirmao de um slido alargamento conceitual que manifesta, de
maneira implcita, uma contribuio sistematizada e rigorosamente terica de Alois
Riegl.
Considerando a importncia dos conceitos desenvolvidos por Brandi (2005),
estudaremos sua Teoria, por se mostrar instrumento slido para os debates crticos
atuais quanto aos critrios de interveno em bens culturais, e como
apropriadamente afirma Azevedo (2003), por representar a ltima formulao terica
desta categoria que aborda o tema da restaurao. Destacamos ainda que, de
acordo como Carbonara (2006), na atualidade a linha crtico-brandiana a mais
adequada preservao do patrimnio cultural.
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Enfatizamos, ainda, a importncia da publicao em lngua portuguesa, a
partir de 2004, da Teoria do Restauro de Cesare Brandi, um trabalho da Beatriz Khl
para a ampliao dos estudos sobre o tema junto aos falantes de lngua portuguesa.
Entendendo a importncia dos estudos de Brandi, introduzimos um olhar atravs de
sua teoria, voltado para os bens culturais arquitetnicos, que traz neste universo a
presena do espao urbano, que possui carter essencial em nossas pesquisas.
Observamos que, nos ltimos anos, ocorreram em cidades tradicionais
brasileiras nmero expressivo de intervenes com a denominao de
requalificao, revitalizao. Normalmente, essas intervenes so executadas pelo
poder pblico, que busca um maior aproveitamento de reas e regies,
implementando modificaes das estruturas dos espaos urbanos por ele
trabalhados, onde coincidem construes sobre o j construdo, gerando uma nova
configurao esttica e funcional. E, em muitos desses casos, trata-se de espaos
urbanos especialmente qualificados como obras de arte, por serem assim
reconhecidos. Entretanto, revelam-se freqentemente aes de interveno sobre
eles, sem o devido reconhecimento de fato (e no conceitual) de uma artisticidade
inerente; por isso, o adequado tratamento do tecido figurativo da obra de arte no
ocorre, propiciando aos monumentos danos irreparveis.
Aes dessa natureza vm acontecendo no Brasil, e podemos utilizar como
exemplo o Programa Monumenta, que tinha como premissa bsica, para realizar
intervenes em bens culturais, que fossem reconhecidos como patrimnio mundial.
Foram alteradas posteriormente suas normas, que passaram a contemplar cidades
patrimnio nacional, sem o ttulo de patrimnio mundial, e atualmente, com novas
mudanas, tm em suas regras possibilidades de investimento em outras categorias
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patrimoniais, como foco de suas aes de preservao. Entretanto, ao se referir aos
espaos urbanos, as intervenes deste programa vm ocorrendo com deficincia,
quanto abordagem do entendimento conceitual de restaurao. Est faltando uma
busca adequada da relao com o espao urbano, objeto de intervenes, em seu
carter esttico e histrico.
Para melhor exemplificarmos deficincias como essas, destacamos o que
Odete Dourado (2003) afirma em relao perda devida ao incndio do sobrado
praa de Tiradentes de Ouro Preto, em 2003.
[...] reconstru-lo na sua aparncia de casaro do sculo XVIII, mesmo com a utilizao de materiais contemporneos e simplificao formal - na tentativa velada de evitar um falso histrico no camuflaria um atentado contra a arte: a sua expresso formal dificilmente fugiria do epteto de pastiche, desqualificando a arquitetura contempornea e fazendo empalidecer a antiga (DOURADO, 2003, p.13).
Se formos a Ouro Preto, hoje, encontraremos a lacuna do antigo casaro
incendiado preenchida. A cidade e a praa, o ambiente como um todo, tiveram seus
dados espaciais resgatados, ou mantidos, utilizando-se para isso a reconstituio de
dados formais do monumento desaparecido. Surgem, ento, vrias indagaes
quanto postura adotada diante da cidade reconhecida como bem cultural de
relevncia nacional e mundial, no que tange sua condio artstica e histrica.
A reconstituio formal, em 2005, do sobrado incendiado em 2003, privilegiou
um determinado tempo histrico, e elaborou-se um pastiche. A partir de pesquisas e
investigaes, constatamos que na rea atualmente ocupada pela nova construo,
dentre os registros de ocupao, at o final do sculo XIX, no local do ento casaro
incendiado, na fachada para a praa Tiradentes, havia duas edificaes: um sobrado
com sete janelas no segundo pavimento; e seis portas no primeiro pavimento e uma
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casa trrea na esquina com duas janelas e uma porta. No sculo XX, conhecemos
esses volumes modificados, de maneira que o maior incorporou o menor, passando
a um nico volume assobradado com dez janelas e dez portas. Agora, no sculo
XXI, um sobrado foi reconstitudo naquela rea. Por que um sobrado, e no um
sobrado e uma casa trrea? Ou por que no uma interveno contempornea?
As ilustraes a seguir retratam estes trs perodos histricos, com suas
diferenas formais. Acreditamos que o sobrado incendiado no seja uma construo
do final do sculo de XIX, mas uma obra de ampliao de um sobrado existente a
partir da eliminao da casa trrea, (Figura 1).
Figura 1. Praa Tiradentes, Ouro Preto, em 1867 - edificaes onde era o Hotel Pilo Fonte:LAFODOC EA UFMG (2006)
Figura 3. sobrado construdo onde era o Hotel Pilo.
Figura 2. Praa Tiradentes, Ouro Preto Hotel Pilo antes do incndio. Fonte: Dourado ( 2003).
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Analisando e estudando intervenes desta natureza, percebemos a
importncia de conhecermos o que restaurao e compreendermos o restauro
urbano em sua possvel implementao, pois o Brasil nem sempre reflete as
concepes mais atualizadas do tema.
Azevedo (2003), notando essa deficincia brasileira no que se refere ao
restauro, nos apresenta trs tendncias de recolocao do monumento frente
histria. Para ele, a primeira, de carter museificante, procura congelar o edifcio
com o auxlio das novas tcnicas de consolidao estrutural, voltada para o
anacronismo e para o passado. A segunda tendncia foca o presente como sntese
do passado, e procura integrar o monumento na vida contempornea, flexibilizando
seus usos e intervenes, introduzindo novos servios e funes, para torn-lo
Figura 4. Praa Tiradentes, Ouro Preto, em 2007 sobrado construdo onde era o Hotel Pilo.
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vivel e auto-sustentvel. A terceira vertente, de carter modernizante, tende a criar
uma composio nova, voltada primordialmente para o futuro.
Em cada uma dessas posturas ocorre uma concepo distinta de patrimnio e
de histria; na maioria das vezes, refletem a ausncia de linha conceitual unitria e
coerente, percorrendo sensibilidades e gostos pessoais, gerando fragilidade e danos
decorrentes do tipo de interveno realizada.
Recorremos a Cesare Brandi (2005), para destacarmos que o restauro deve
objetivar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, sem com essa
recuperao cometermos uma falsificao artstica ou histrica, de maneira a no
apagarmos algum vestgio da passagem da obra de arte pelo tempo. Esse
restabelecimento se torna o objetivo principal da restaurao, a partir da Teoria
brandiana. E sua importncia destacada por restauradores e pesquisadores; vrios
autores tm manifestado suas crticas ao tema da restaurao, dentre eles Paulo
Ormindo de Azevedo (2003), que afirma ser o restabelecimento da unidade
potencial da obra de arte o estado da arte do restauro hoje, e a grande questo da
restaurao atualmente saber,
[...] o que se deve retirar e o que se pode introduzir para refazer a unidade potencial da obra de arquitetura e sua plena interao social, sem comprometer sua autenticidade ou eliminar as marcas de sua trajetria histrica e possibilidades futuras (AZEVEDO, 2003, p.22).
Acreditamos que a teoria desenvolvida por Brandi (2005) propicia
fundamentos para esta discusso, por entendermos ser ainda a mais
contempornea Teoria que aborda a obra de arte quando de seu restauro.
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Para o professor arquiteto de teoria e histria do restauro, Luigi Guerriero
(2004), da Seconda Universit degli estudi di Napoli, o sculo XX teve como
momentos de expresso para a restaurao Riegl, atravs de O Culto Moderno dos
Monumentos, e Giovannoni, com a caracterstica do restauro cientfico. A partir de
ento ocorreu uma ruptura do pensamento do restauro, representada pela Segunda
Guerra Mundial, que fez surgir a urbanstica da cidade histrica, e o restauro crtico
com raiz neoidealizadora e fenomenolgica. E nesta linha que a teoria do restauro
de Cesare Brandi se fundamenta.
Guerriero (2004) afirma que, aps Brandi, somente no ltimo decnio se
iniciou um aporte de estudos que tm contribudo para a qualificao do restauro
como disciplina autnoma voltada para a rigorosa conservao matrio-figurativa do
patrimnio cultural. Em sua Teoria de restauro, Brandi (2005) mantm sempre
presente fundamentos filosficos.
[Brandi possui] uma ascendncia sempre kantiana, do idealismo e do espiritualismo de Benedetto Croce, em direo, no incio, fenomenologia de Edmund Husserl, e, depois, ao estruturalismo e tambm ao existencialismo de Jean-Paul Sartre, sem excluir, por fim, Martin Heidegger (CARBONARA, 2003,p.15).
Tendo como princpio que a Teoria brandiana de carter filosfico,
buscamos compreender a fenomenologia em sua teoria, para melhor explor-la.
Para Brandi (2005) restaurao o momento metodolgico do reconhecimento da
obra de arte na dplice polaridade esttica e histrica. Afirma que o reconhecimento
da obra de arte como obra de arte ocorre de modo intuitivo na conscincia
individual, e chega ao esclarecimento de que o momento metodolgico deste
reconhecimento se refere ao ... reconhecimento naquele momento do processo
crtico em que, to s, poder fundamentar a sua legitimidade.... Ou seja, segundo
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Brandi (2005) a conceituao de restaurao, em sua fundamentao, est no
prprio momento da manifestao da obra de arte como tal na conscincia de cada
um.
De acordo com o autor, na imagem que a obra de arte se formula, no
reduzida somente a uma funo do conhecimento em meio da figuratividade desta
imagem, pois nestas condies qualquer postulado de integridade orgnica se
dissolve. Assim, ele afirma que a imagem verdadeiramente e somente aquilo que
aparece: a reduo fenomenolgica que serve para indagar o existente torna-se, na
Esttica, o prprio axioma que define a essncia da imagem (BRANDI, 2005, p.44).
Buscando a relao com o restauro, verificamos que Brandi (2005) conclui
que a manifestao, ou percepo da natureza, ou do significado essencial da
imagem, mostrada atravs da matria e diz que
[...] deve-se definir a matria, pelo fato de representar contemporaneamente o tempo e o lugar da interveno de restauro. Por isso s podemos nos servir de um ponto de vista fenomenolgico[...] (BRANDI, 2005, p.36).
Brandi (2005) esclarece que tal definio reflete um processo anlogo quele
que conduz definio de belo, definvel to s pela via fenomenolgica, como j o
fizera a Escolstica: quod visum placet (BRANDI, 2005). Ou seja, podemos
entender que h uma experincia de contato direto com a verdade revelada, diante
daquilo que agrada o olhar. A partir dessa realidade, percebemos que a
fenomenologia1 faz parte das bases da Teoria do Restauro de Cesare Brandi, e que
1 Edmund Husserl fundou a fenomenologia na busca de que a filosofia tivesse as bases e a condio de uma cincia rigorosa, procurando dar raciocnio filosfico em relao s coisas variveis do mundo real. Para ele, trata-se de um mtodo filosfico que se prope a uma descrio da experincia vivida da conscincia, cujas manifestaes so expurgadas de suas caractersticas reais ou empricas e consideradas no plano da generalidade essencial [Reconhecida como uma das principais correntes filosficas do sculo XX, influenciou
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estabelece a importncia dos fenmenos da conscincia os quais devem ser
estudados em si mesmos e que tudo que podemos saber do mundo resume-se a
esses fenmenos, a esses objetos e idias que existem na mente, cada um
designado por uma palavra, que representa a sua essncia, sua significao.
Os objetos da fenomenologia so dados absolutos apreendidos em intuio
pura, com o propsito de descobrir estruturas essenciais dos atos (noesis) e as
entidades objetivas que correspondem a elas (noema) (COBRA, 2005, p.1).
Com o auxlio dos preceitos filosficos como a fenomenologia, Brandi (2005)
v um dos conceitos mais importantes para a restaurao, o conceito de imagem,
dizendo que imagem exatamente o que aparece: a reduo fenomenolgica.
Entendendo que a fenomenologia trata do estudo da conscincia e dos objetos da
conscincia, a reduo fenomenolgica, segundo Cobra (2005) [...] o processo
pelo qual tudo que informado pelos sentidos mudado em uma experincia de
conscincia, em um fenmeno que consiste em se estar consciente de algo,
podendo se referir a imagens, coisas, fantasias, atos, relaes, pensamentos,
sentimentos e demais constituies de experincias da conscincia.
Percebemos ento que, para a fenomenologia, o mais relevante no o que
existe no mundo, mas, sim, o modo como o conhecimento do mundo acontece e se
realiza para o indivduo, onde a reduo fenomenolgica significa restringir o
conhecimento ao fenmeno da experincia da conscincia, importando
prioritariamente a viso de mundo que cada um tem. Neste contexto, a percepo,
autores como Heidegger (1889-1976), Sartre (1905-1980) e Merleau-Ponty (1908-1961).]. (Houaiss, 2001, verbete da Rubrica: filosofia).
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assim como o pensamento, se faz nas coisas, considerando-se que pensar consiste
em se reinstalar no ato da viso. Desta forma, de acordo com Merleau-Ponty (1999),
a cada instante da existncia estamos integrados ao mundo por meio de nosso
corpo. Sendo esta a nossa condio, temos que reavaliar o fenmeno da percepo
e perguntar como percebemos o mundo e, mais, devemos inquirir se podemos
pens-lo sem antes perceb-lo.
Formulao conceitual
Brandi se apresenta como um dos principais tericos do chamado restauro
crtico, ao lado de Roberto Pane, Pietro Gazzola e Renato Bonelli. Essa vertente do
restauro surgiu em meados da dcada de 1940, resultante do dualismo entre
aspectos histricos e estticos de uma mesma obra (KHL, 1998).
Brandi, em 1963, publica pela primeira vez a Teoria del Restauro, uma
sntese de sua produo textual, em processo de elaborao desde os anos de
1940, com discusses desmontando de imediato o conceito preestabelecido de que
restaurao trata de dar nova eficincia a qualquer produto da atividade humana.
Na sua obra h ausncia de destaque para Viollet-le-duc e Ruskin, pois mesmo se
presentes, continua a existir a falta de citao referente a eles em suas exposies,
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assim como de Camillo Boito, Alois Riegl, Gustavo Giovannoni, dentre outros
estudiosos do restauro.
O pensamento brandiano percorre caminhos diferentes daqueles
tradicionalmente explorados pela conservao propriamente dita. Ele foi se
solidificando fora do envolvimento inquietante que conjuga historicamente as
sucesses de mudanas deste tema. Conforme esclarece Carbonara (2005) Brandi
prefere remeter-se, por princpio e por via dedutiva, diretamente esttica e
filosofia da arte, [ambas] investigada por ele de modo paralelo restaurao, a
partir de cujas principais questes, sempre presentes na matria, proposta a
Teoria do Restauro.
Carbonara (2005) sustenta que Brandi desenvolveu suas bases tericas com
grande distncia e soberana indiferena em relao ao debate especializado
contemporneo, e sua Teoria do Restauro gerou axiomas, entendidos por muitos
como sendo ditados por uma lgica rigorosa. Devido a isto, recentemente,
opositores de Brandi acreditaram encontrar motivos para considerar a Teoria
brandiana superada, a partir da elaborao de crticas que com freqncia so
interpretadas por seus seguidores como equivocadas. Entretanto, Giovanni
Carbonara (2002) reconhece a contribuio de Brandi entre as mais atuais
formulaes filosficas, desde sua formulao at a atualidade.
As crticas contrrias Teoria brandiana so fundamentadas no que concerne
a construo terica de Cesare Brandi, que se rompe caso seja negada a arte na
linguagem da conscincia humana (ou seja, em seus fundamentos filosficos
bsicos), pois se isso acontecer, extingue-se no mesmo instante o juzo de valor,
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que o que realmente est apto a resolver a dialtica entre a instncia esttica e
histrica colocadas por ele como essenciais. por esse caminho, portanto, que se
sustentam as crticas atuais Teoria do Restauro brandiana.
Os defensores da linha, conhecida como pura conservao, defendem a
ruptura do reconhecimento da obra de arte proposta por Brandi (2005),
fragmentando sua estruturao conceitual, ou seja, as bases da fundamentao de
sua Teoria do Restauro.
Contudo, Carbonara (2006) afirma que a unio da Teoria brandiana com o
pensamento do restauro crtico delineou novas perspectivas de desenvolvimento,
estando assegurado que a Teoria se encontra na linha mais correta e mais
adequada defesa do patrimnio cultural.
Brandi (2005) evidencia suas premissas bsicas quanto utilizao da
restaurao quando se tratar de uma produo industrial, afirmando que o escopo
da restaurao ser evidentemente restabelecer a funcionalidade do produto. E,
nesse sentido, desde as primeiras pginas de seu livro, ele j definiu a delimitao
do que restauro quando se tratar de obra de arte. Afirmando, ainda, que o
restabelecimento da funcionalidade, caso seja o objetivo da interveno de restauro
em obra de arquitetura e artes aplicadas [o restabelecimento da funcionalidade]
representar, definitivamente, s um lado secundrio ou concomitante, e jamais o
primrio e fundamental que se refere obra de arte (BRANDI, 2005).
Cesare Brandi (2005), em sua Teoria da Restaurao, enfatiza que a
caracterstica peculiar das obras de arte est no fato de se tratar de um produto
especial da atividade humana a que se d o nome de obra de arte, pelo fato de um
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singular reconhecimento que vem conscincia,... at que este reconhecimento que
a conscincia faz dele [do produto humano] como obra de arte, excetue-o,
definitivamente do comum dos outros produtos. E essa exceo acontece, pois
neste momento ele comea a fazer parte do mundo, do particular ser no mundo de
cada indivduo. Portanto, preciso apenas que se aceite a arte como um produto da
espiritualidade humana (BRANDI, 2005). Neste sentido, preciso que no haja
dvida de que at que acontea o reconhecimento da obra e arte como tal, ela
obra de arte apenas potencialmente.
Esta compreenso do significado da obra de arte de fundamental
importncia para a Teoria brandiana, pois, por meio desse entendimento, Brandi
(2005) estabelece que qualquer comportamento em relao obra de arte, nisso
compreendendo a interveno de restauro, depende de que ocorra o
reconhecimento ou no da obra de arte como obra de arte representando a espinha
dorsal da sua Teoria do Restauro, pois a restaurao somente cabvel em obras
de arte atualmente inserida no alargamento de bem cultural , conforme nos
esclarece Carbonara (2002).
No caso de uma restaurao, a qualidade da interveno estar estreitamente
ligada ao juzo de artisticidade obtido a partir do comportamento em relao obra
de arte, do qual vem o reconhecimento da Teoria brandiana com a imposio da
necessidade de articular o conceito de restaurao no com base nos
procedimentos prticos que caracterizam o restauro de fato, mas com base no
conceito da obra de arte, de que recebe a qualificao, ocorrendo, portanto, a
ligao indissolvel entre a restaurao e a obra de arte, pelo fato de a obra de arte
condicionar a restaurao e no o contrrio (BRANDI, 2005, p.29).
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Brandi (2005) demonstra, portanto, que a ligao entre obra de arte e
restaurao se estabelece no ato do reconhecimento da obra de arte como tal, e
nesse reconhecimento que se encontram as premissas desta ligao, que tender a
se desenvolver. Estabelecida ento a relao entre obra de arte e restaurao,
Brandi (2005) define que sero levadas em considerao no apenas a matria
atravs da qual a obra subsiste, mas tambm a bipolaridade com que a obra de arte
se oferece conscincia. Comprovando que a obra de arte se coloca em uma
dplice instncia: a instncia esttica e a instncia histrica. Sendo a primeira fato
basilar da artisticidade pela qual a obra de arte obra de arte, e a segunda, se
refere obra de arte como produto humano realizado em um certo tempo e lugar e
que em certo tempo e lugar se encontra (BRANDI, 2005, p.29-30).
Constatamos que Brandi (2005) se preocupa em evidenciar o significado de
obra de arte, esclarecendo que ela estruturada na conscincia fsica e nas duas
instncias fundamentais [esttica e histrica], na recepo que a conscincia faz
dela, pois tais definies so fundamentais para que ele possa enunciar o seu
conceito de restauro, condicionado devoluo de uma relao direta com a obra
de arte, a partir do seu reconhecimento como tal, definindo que:
restaurao constitui o momento metodolgico do reconhecimento da obra de arte, na sua conscincia fsica e na dplice polaridade esttica e histrica, com vistas sua transmisso para o futuro (BRANDI, 2005, p.30).
definida por Brandi (2005) uma estruturao fundamental para o
entendimento da obra de arte, na recepo que dela faz a conscincia de cada
indivduo. E a partir dessa capacidade para o conhecimento, sentimento e
vontade, por meio da qual o ser humano se apercebe daquilo que se passa dentro
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dele ou em seu exterior, que derivaro os princpios para a atuao prtica da
restaurao. A Teoria brandiana se define de maneira que passa a mergulhar em
cada detalhe, organizando as diversas partes que a compem solidamente. E nesse
processo de reconhecimento da obra de arte como tal que
a conscincia fsica da obra deve necessariamente ter a precedncia, porque representa o prprio local da manifestao da imagem, assegura a transmisso da imagem ao futuro e garante, pois, a recepo na conscincia humana (BRANDI, 2005, p.30).
por isso que no reconhecimento da obra de arte, o autor destaca a
importncia relevante do lado artstico, entendendo que a partir desse
reconhecimento que ocorre o objetivo da conservao para o futuro de uma possvel
revelao. Nesse sentido, a conscincia fsica adquire primria importncia, de onde
formulado o primeiro axioma da teoria do restauro brandiana, que diz:
Restaura-se somente a matria da obra e arte (BRANDI, 2005).
Evidencia-se a clareza de que os meios fsicos responsveis pela transmisso
da imagem so a ela simultneos, gerando a afirmao: no existe a matria de um
lado e a imagem do outro. Entretanto, tal coexistncia no poder manifestar-se por
completo no interior da imagem. Conforme apresentado por Brandi(2005) em sua
Teoria do Restauro, parte destes meios fsicos servir de suporte para os outros
meios fsicos aos quais ser confiada a transmisso da imagem propriamente dita
(ex: fundaes para a obra de arquitetura).
Segundo Brandi (2005), se as condies da obra de arte exigirem sacrifcio de
parte de sua consistncia material, a instncia esttica ser a primeira, prevalecendo
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sobre as demais, e dever ser considerada como a mais importante, o que evidencia
a especial relevncia da artisticidade para a restaurao brandiana, ressaltando que:
a singularidade da obra de arte em relao aos outros produtos humanos no depende da sua consistncia material e tampouco da sua dplice historicidade [do momento de sua confeco, e de seu presente], mas de sua artisticidade, donde se ela perder-se [seu carter de obra de arte] no restar nada alm de um resduo. (BRANDI, 2005, p.32).
Brandi (2005) afirma, ainda, que no poder ser subestimada a instncia
histrica, a qual possui uma dplice historicidade: a que coincide com o ato da
criao e se refere portanto a um artista, a um tempo e a um lugar, e a que provm
do fato de insistir no presente de uma conscincia, e portanto, uma historicidade que
se refere ao tempo e ao lugar em que est naquele momento.
A partir de tais reflexes, Cesare Brandi (2005) atinge o que denomina
dialtica da restaurao, como sendo a disposio benfica entre a instncia
esttica e a histrica, exatamente como momento metodolgico do reconhecimento
da obra de arte como tal. Como conseqncia desse avano, ocorre a enunciao
do segundo princpio do restauro de sua teoria:
a restaurao deve visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte desde que isso seja possvel sem cometer um falso artstico ou um falso histrico, e sem cancelar nenhum trao da passagem da obra de arte no tempo (BRANDI, 2005, p.33).
Considerando o que foi conceituado como restaurao, por Brandi,
destacamos a importncia do entendimento do que matria da obra de arte, por
ser o que se restaura. E de igual importncia o que o autor acredita ser unidade
potencial, por ser a que se dedica restaurao. Portanto, essas abordagens
representam importantes estratgias para a restaurao.
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O que se restaura
O primeiro axioma da Teoria brandiana, premissa para uma restaurao, diz
que: Restaura-se somente a matria da obra e arte. E o que se entende por
matria da obra de arte? Brandi (2005) afirma que na relao matria e obra de
arte, a matria adquire uma fisionomia precisa, e com base nessa relao que se
deve definir o que a matria, ou seja, deve-se investigar aquilo que constitui a
matria com respeito imagem (BRANDI, 2005).
Brandi (2005)nos propiciou analisar, at este momento, o que obra de arte.
Entretanto, para descobrirmos o que a matria, precisamos focar a relao entre
obra de arte e matria, para ento entendermos o que se deve restaurar. Nesse
sentido, uma vez que a Teoria brandiana apresenta como nico objeto da
interveno de restauro a matria da obra de arte, ocorre a exigncia de um
aprofundamento do conceito de matria em relao obra de arte, definida
pelo fato de representar contemporaneamente o tempo e o lugar da interveno de restauro. Por isso, s nos podemos servir de um ponto de vista fenomenolgico e, sob este aspecto, a matria se mostra como aquilo que serve epifania da imagem (BRANDI, 2005, p.36).
Essa definio nos deixa claro que, a partir da percepo do significado
essencial da imagem, que representa um ponto de vista fenomenolgico (conhecer
por intuio psicolgica), que a matria se mostra e representa o tempo e o lugar
da interveno de restauro.
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Continuando, Brandi (2005) afirma que, a matria como epifania da imagem
d portanto, a chave do desdobramento apenas esboado e agora definido como
estrutura e aspecto. Ou seja, a matria como significado essencial da imagem
possibilita a distino entre estrutura e aspecto.
O conceito de matria na obra de arte se insere no de modo diverso, porm
ainda mais inseparvel do que aquele que o verso e o recto para a medalha
conforme afirma Brandi (2005). O autor estabelece ainda que o fato de ser
prevalentemente aspecto ou estrutura representa duas funes da matria na obra
de arte. Uma em geral no contradir a outra, sem que com isso possa excluir um
enfrentamento entre essas funes.
Semelhante conflito, como para a instncia esttica e instncia histrica, s poder ser resolvido com a prevalncia do aspecto sobre a estrutura, quando no puder ser conciliado de outra maneira (BRANDI, 2005, p.36).
Brandi (2005) nos mostra por meio de tal conflito que sempre deveremos
observar atentamente a matria da obra de arte em sua bipolaridade de aspecto e
de estrutura. Verificamos, com isso, que a compreenso da matria, no
desdobramento de suas duas funes, como significado essencial da imagem,
resulta na revelao desta tambm em aspecto e estrutura, subordinando a
estrutura ao aspecto (Figura 5 e 6).
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Contudo, a distino entre aspecto e estrutura sutil e, para Brandi (2005)
nem sempre, para fins prticos, ser de todo possvel. De onde verificamos que, de
acordo com ele, a matria permite a manifestao da imagem e a imagem no
limita sua espacialidade ao invlucro da matria transformada em imagem (Figura 5
e 6). Isso ocorre porque so ainda meios fsicos de transmisso da imagem
elementos intermedirios entre o observador e a obra, como a atmosfera e a luz.
Uma vez que a matria o veculo de uma imagem, a sua estrutura pode ser
alterada desde que no se repercuta no aspecto. Nesse sentido, saibamos que a
matria na obra de arte no se trata da matria em sua concretude, pois ... sendo
historicizada pela obra atual do homem pertencer a esta poca e no quela mais
Figura 5. e Figura 6. Campanilha e Giraldillo da Catedral de Sevlia estrutura e matria como aspecto
Fonte: Andaloro (2006)
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longnqua, e por mais que seja quimicamente a mesma, ser diversa... (BRANDI,
2005, p.38).
oportuno discutirmos o quanto so graves os equvocos decorrentes da no
identificao das funes de aspecto e estrutura da matria da obra de arte. Dentre
tais erros Brandi (2005) apresenta os mais comuns, como: pensarmos que a matria
em sua concretude a mesma matria na obra de arte (mrmore esculpido e o
mesmo mrmore na pedreira); pensarmos que a matria que determinaria o estilo;
considerarmos o aspecto assumido pela matria na obra de arte como funo da
estrutura; assimilarmos o aspecto forma, mas dissolvendo a forma como matria,
ou seja, a matria veculo da forma, mas no a prpria forma (falta de
reconhecimento da importncia da matria como estrutura); limitarmos a obra de
arte conscincia material de que resulta a prpria obra (ocorrem meios fsicos de
transmisso da imagem e/ou elementos intermedirios entre a obra e o observador,
como a qualidade da atmosfera e da luz); limitarmos a obra de arte conscincia
material de que resulta a prpria obra (BRANDI, 2005).
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O que deve visar a restaurao
O segundo princpio da Teoria del Restauro diz que a restaurao deve
visar ao restabelecimento da unidade potencial da obra de arte e, para definirmos
os limites da restaurao, devemos abordar o conceito de unidade desenvolvido
por Brandi (2005). Para evitarmos dvidas, o autor recomenda que seja verificado o
quanto indispensvel que se atribua o carter de unidade obra de arte e,
precisamente, a unidade que concerne ao inteiro, e no aquela que se alcana no
total. De onde ele afirma que a obra de arte deve realizar um inteiro e no um
total.
O carter de unidade demonstrado, por exemplo, em um mosaico, ou em
uma construo arquitetnica feita de blocos separados e, por analogia,
entendemos que esse carter pode ser compreendido em edificaes isoladas na
cidade, onde percebemos a diferena entre os elementos reunidos em um total, ou
conformados em um inteiro na construo da cidade enquanto obra de arte.
Considerando aceita para a obra de arte a unidade do inteiro, Brandi (2005)
afirma que se deve perguntar se essa unidade no reproduz a unidade orgnica ou
funcional como fundamentada de modo contnuo pela experincia.
Na imagem que a obra de arte formula, o mundo do conhecimento obtido por
meio dos sentidos aparece reduzido to s a uma funo do conhecimento em meio
da figuratividade, da representao de formas reconhecveis da prpria imagem
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(Figura 7). Entendemos que qualquer postulado de integridade orgnica se
dissolve, [pois] a imagem verdadeiramente e somente aquilo que aparece: a
reduo fenomenolgica que serve para indagar o existente torna-se, na Esttica, o
prprio axioma que define a essncia da imagem (BRANDI, 2005, p.44).
Em conseqncia disso, a imagem de uma escultura em que se v apenas o
busto de um homem, com apenas o seu tronco, no pode por considerada mutilada,
Figura 7. Esculturas danificadas sem destruio da continuidade figurativa que se mantm nica e legvel. Louvre: a Nike de Samotracia sc.II a. C., glorificao de uma vitria no mar; b Venere di Milo, cerca de 150 a.C., escultura em mrmore, que mantm o carter potico e evocativo. Fonte: a. http://it.wikipedia.org/wiki/Nike_(mitologia) b. http://it.wikipedia.org/wiki/Immagine:Wenuszmf.jpg
a
b
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porque, na verdade, no possui corpo, pois o que se v uma funo semntica
com respeito ao contexto figurativo que a imagem desenvolve (BRANDI, 2005).
Isso nos faz perceber que a unidade orgnico-funcional da realidade
existencial reside nas funes lgicas do intelecto, enquanto a unidade figurativa
da obra de arte se d concomitantemente com a intuio da imagem como obra de
arte (BRANDI, 2005). A partir desse ponto, o autor entende que h duas
proposies definidas para estabelecer os termos que regulam uma ao concreta
de restaurao: a obra de arte goza de singular unidade pela qual no pode ser
considerada como composta de partes; essa unidade no pode ser equiparada
unidade orgnico-funcional da realidade existencial (BRANDI, 2005, p.46). Com
esse encaminhamento dedutivo, o autor elabora a seguinte argumentao reflexiva:
deduzimos que a obra de arte no constando de partes, ainda que fisicamente fracionada, dever continuar a subsistir potencialmente como um todo em cada um de seus fragmentos e essa potencialidade ser exigvel em uma proposio conexa de forma direta aos traos formais remanescentes, em cada fragmento, da desagregao da matria.
infere-se que se a forma de toda obra de arte singular indivisvel, e em casos em que na sua matria, a obra de arte estiver dividida, ser necessrio buscar desenvolver a unidade potencial originria que cada um dos fragmentos contm, proporcionalmente permanncia formal ainda remanescente neles. (BRANDI, 2005, p.46).
A partir desses dois corolrios, podemos entender o que a unidade
potencial da obra de arte, de maneira mais clara. E compreender ainda a negao
brandiana de que se possa intervir por analogia na obra de arte mutilada e reduzida
a fragmentos. Em sua Teoria, o procedimento de analogia exigiria como princpio a
equiparao da unidade intuitiva da obra de arte com a unidade lgica com a qual se
pensa a realidade existencial. E isso veementemente negado por Brandi (2005).
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Alm disso, tal analogia produz ainda a iluso de querer trazer a salvao da
interveno voltada a retraar a unidade originria que,
desenvolvendo a unidade potencial dos fragmentos daquele todo que a obra de arte, deve limitar-se a desenvolver as sugestes implcitas nos prprios fragmentos ou encontrveis em testemunhos autnticos do estado originrio (BRANDI, 2005, p.47).
No desenvolvimento da unidade potencial, atravs desta salvao que se
liga ao incio do ato da restaurao, so apresentadas as duas instncias da obra de
arte a esttica e a histrica que evitaro a constituio de um falso histrico ou
uma ofensa esttica neste processo (Figura 8). A partir de tais reflexes, Brandi
(2005) constri dois princpios tidos por ele como prticos, mas no empricos.
Figura 8. Figura de So Rufino e So Vitorino, restaurada e recuperada pelo ICR - Baslica Superior de So Francisco de Assis (IT)
Fonte: Andaloro (2006)
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O primeiro diz que a integrao dever ser sempre reconhecvel mas sem
infringir a unidade que se visa a reconstituir (Figura 8, Figura 234 e Figura 235).
Desse modo, a integrao deve ser invisvel distncia de que a obra de arte deve
ser observada, e reconhecvel de imediato, de perto, sem a necessidade de
instrumentos especiais (BRANDI, 2005, p.47) ver figura 230.
O segundo princpio diz que a matria de que resulta a imagem,
insubstituvel s quando colaborar diretamente para a figuratividade da imagem
como aspecto e no para aquilo que estrutura (BRANDI, 2005). A partir desse
princpio, Brandi (2005) afirma que so contestados muitos axiomas da restaurao
dita arqueolgica, que sempre em harmonia, prioritariamente, com a instncia
histrica, desenvolve maior liberdade de ao no que se refere aos suportes,
estruturas portantes, dentre inmeras outras abordagens.
Brandi (2005), em sua Teoria do Restauro, se refere ao que est por vir, ou
seja, prescreve que qualquer interveno de restauro no torne impossvel, mas,
antes, facilite as eventuais intervenes futuras. Entretanto, para o autor, mesmo
com as questes j discutidas e apresentadas, o assunto no est esgotado, porque
permanece sempre em aberto o problema das lacunas. Segundo ele, proibida
integrao fantasiosa, ou seja, a substituio do elemento figurativo desaparecido
com uma integrao analgica (Figura 9 e 10), pois esta completamente diferente
de um desenvolvimento da figuratividade do fragmento at que ele se una com o
fragmento sucessivo.
lacuna, naquilo que concerne obra de arte, uma interrupo do tecido figurativo. Mas contrariamente quilo que se acredita, o mais grave, em relao obra de arte, no tanto aquilo que falta, quanto o que se insere de modo indevido (BRANDI, 2005, p.49).
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Ou seja, a lacuna insere-se como corpo estranho no tecido figurativo da
imagem da obra de arte. Para esse entendimento, Brandi (2005) recorre ao
Gestaltismo no sentido de interpretar e neutralizar o sentido das lacunas, pois
entende que a carga emocional e os conceitos estticos so atributos de uma obra
de arte e no do seu espectador (Figura 7). Ele afirma que a lacuna coloca-se como
figura, em relao a um fundo, e que na organizao espontnea da percepo
visual atravs de sua complexidade de interpretao instantnea, permanece a
percepo que visa estabelecer uma imagem de figura e fundo.
Figura 9. Laocoonte Museu do Vaticano Roma. Situao em 1960 com o brao original, aps a restaurao de F.Magi Fonte: http://www.miti3000.it/mito/musei/louvre/louvre7.htm
Figura 10. Laocoonte, situao da primeira obra de restaurao em 1532, restaurao fantasiosa
Fonte: Carbonara (1997)
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Dessa maneira, para Brandi (2005), quando ocorre mutilao de uma
imagem, d-se conta de que a dimenso da gravidade de tal ordem que ocorre um
retrocesso daquilo que nasceu como figura, pois agora passa a ser fundo.
ainda atravs do Gestaltismo que Brandi explica o tratamento de lacunas
que enfatiza a camuflagem da interrupo do tecido figurativo, causado pela
lacuna, mas a postura deve ser no sentido de fazer frutificar um mecanismo
espontneo da percepo (BRANDI, 2005, p.51).
Compreendendo o que obra de arte, matria da obra de arte, unidade
potencial, instncia esttica e instncia histrica, dentro das abordagens brandianas,
acreditamos que podemos ento constatar que na teoria do restauro de Brandi, a
instncia esttica impera em relao ao restauro atravs da reconstituio da
unidade potencial, que representa especial estrutura da obra de arte como unidade,
mas, sem a realizao de um falso histrico, respeitando a essncia da obra diante
daquilo que a prpria obra "indaga" ou "conduz". A partir de tais entendimentos,
confiamos que seja possvel caminhar rumo aos debates necessrios para a
verificao de um possvel restauro urbano, buscando identificar como se pode
perceber a matria da cidade, e como ela pode ser vista como obra de arte.
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1.2. O mtodo formal
De acordo com Mouldon (1997), morfologia urbana um procedimento
fundamentado em um processo organizado, lgico e sistemtico de pesquisa,
utilizado na anlise das formas urbanas, que consiste no estudo da cidade como um
habitat humano, possibilitando a anlise dessas formas a partir da identificao e
detalhamento de seus vrios componentes. Tais estudos revelam a materializao
das idias e das intenes que se estabeleceram nas cidades.
Tal maneira de se analisar as formas urbanas, denominada morfologia
urbana, possibilita o entendimento de que a cidade pode ser lida e analisada
atravs de sua forma fsica. Esta anlise pode ser estruturada em trs princpios
bsicos: definio da forma urbana pelos elementos fsicos fundamentais
(edificaes e seus espaos livres, reas livres pblicas e privadas, quarteires,
lotes e vias); compreenso da forma urbana decorrente das resolues que
oficializam a relao construtiva entre o edifcio e o lote, as vias e as quadras, a
cidade e a regio; e compreenso da forma urbana a partir da histria (MOULDON,
1997).
Podemos entender que essa leitura apresentada por Mouldon (1997) est
fundamentada nos dados espaciais do universo urbano, compreendidos
principalmente atravs da histria, pois tais elementos espaciais esto sempre em
processo de transformao e substituio. Com isso, percebemos que os dados
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formais da cidade no so os dados formais do edifcio, ou do monumento. Os
dados formais da cidade esto atrelados a seus dados espaciais.
Entendemos que a morfologia urbana permite analisar a relao existente
entre os espaos livres, constitudos de ruas, praas, e os espaos construdos
formados pelas edificaes, materializados pela ao social. Neste sentido, torna-se
importante o conhecimento de que esta relao decorre tanto da forma urbana,
prpria do lugar, como das normas e leis que ali incidem.
As bases conceituais da morfologia urbana tm sido abordadas de vrias
maneiras diferentes por seus seguidores. A partir dessas posturas distintas, a
morfologia urbana se apresenta tendo como referncia trs correntes tidas como
principais. E, atravs delas, so lanadas como ponto de partida, anlises
morfolgicas atravs de linhas ou escolas de morfologia urbana, decorrentes da
maior nfase a determinados elementos conceituais do que a outros. Essas anlises
so realizadas aps a descrio, caracterizao e compreenso ou explicao das
formas urbanas. Assim, as trs correntes ou Escolas de Morfologia Urbana, que
representam linhas de investigao distintas, so conhecidas como escola inglesa,
italiana e francesa (PEREIRA COSTA, 2004).
Nosso objetivo no estudar tais escolas, mas conhecer suas principais
diferenas e aproximaes, para melhor compreenso dos instrumentos de pesquisa
desenvolvidos por elas. Precisamos saber que, conforme esclarece Whitehand
(1981), a Escola Inglesa ressalta o estudo da evoluo das formas urbanas
utilizando como parmetro as modificaes e transformaes, tendo como objetivo
estabelecer uma teoria sobre as construes das cidades, baseada nas
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transformaes do parcelamento do solo e sistema virio. Disso resulta o
entendimento da ocorrncia de padres semelhantes, que so identificados como
tipos caractersticos de determinada forma urbana, que sobressaem em
determinados perodos de tempo.
A Escola Francesa refere-se ao estudo que possibilita a anlise da aplicao
de teorias, como a avaliao da ao do movimento modernista sobre a forma
urbana; a anlise dos espaos livres, boulevard e praas, e de seu impacto nas
formas urbanas (DARN2, 2000, apud PEREIRA COSTA, 2004).
E a Escola Italiana de morfologia urbana, de acordo com Muratori (1959),
enfatiza seus estudos entendendo que a forma urbana representa um modelo
projetual para uma cidade, decorrente das anlises de como as cidades deveriam
ser traadas, tendo como referncia as tradies histricas das cidades italianas e
sua relao com o espao urbano. Podemos apontar, como importantes nomes
dessa escola, Caniggia e Rossi. Neste sentido, torna-se importante para nosso
estudo a afirmao de Lamers (2003) de que Rossi utiliza as teses urbansticas de
Camillo Sitte em suas anlises da cidade, inclusive morfolgica, apesar de
conhecermos sua discordncia com relao a Sitte na leitura global da cidade como
obra de arte. Mas ainda assim, podemos perceber a referncia de Camillo Sitte a
essa escola, a partir do entendimento de suas anlises da cidade antiga, reforada
pela influncia em Rossi.
2 DARN, Mich