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A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 1 Uma visão do Brasil sobre a África Beluce Bellucci (*) [O texto é uma contribuição pessoal organizado a pedido da Secretaria Internacional do PT, para o III Seminário Brasil e China, ocorrido nos dias 4 e 5 de fevereiro de 2010, em Brasília - DF, realizado pelo PT e pelo PCCh. Não expressa necessariamente a posição oficial do governo brasileiro, nem a posição do Partido dos Trabalhadores] Apresentação As relações do Brasil com a África se confundem com a formação de nossa própria nação. É assim uma relação antiga e as políticas externas que balizaram esse relacionamento tiveram diferentes matizes e períodos ao longo dos séculos. A dificuldade em falarmos sobre a África ainda é grande no Brasil. Até muito recentemente, pouco se estudava e se sabia sobre as origens do nosso povo. Dizia-se que éramos, ou deveríamos ser, apenas europeus e tolerantes. Que não havia racismo entre nós, e que éramos o país da democracia racial e, até mesmo, da democracia social. Na colônia e no Império ignorávamos a África pois não se podia admitir que escravos pudessem ter história. Na República, nem sequer admitíamos que tivéssemos tido escravidão, como registra o próprio Hino da República: Nós nem cremos que escravos outrora, Tenha havido em tão nobre país. As visões coloniais da nossa sociedade, interna e externamente (o movimento negro vem se impondo muito recentemente na história nacional), e o colonialismo em África, prejudicaram a aproximação nos últimos 150 anos. O desconhecimento mútuo entre africanos e brasileiros tem levado a que cada movimento de aproximação de um, leve a constrangimentos, desarmonias e desconfianças do outro. É nesse contexto que se dão as políticas de relações africanas no Brasil. * Beluce Bellucci, é doutor em história econômica pela USP, licenciado em estudos do desenvolvimento econômico e social pela Université de Paris 1 – Sorbonne. Trabalha há mais de 30 anos com a África. Residiu 12 anos em Moçambique, na coordenação de projetos de desenvolvimento. Pró-Reitor da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, e diretor do seu Centro de Estudos Afro-Asiáticos, onde coordena o curso de pós-graduação em História da África e do negro no Brasil. Autor de Economia contemporânea em Moçambique; Introdução à Historia da África e do Negro no Brasil.

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A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 1

Uma visão do Brasil sobre a África

Beluce Bellucci (*)

[O texto é uma contribuição pessoal organizado a pedido da Secretaria Internacional do PT,

para o III Seminário Brasil e China, ocorrido nos dias 4 e 5 de fevereiro de 2010, em Brasília

- DF, realizado pelo PT e pelo PCCh. Não expressa necessariamente a posição oficial do

governo brasileiro, nem a posição do Partido dos Trabalhadores]

Apresentação

As relações do Brasil com a África se confundem com a formação de nossa própria nação. É

assim uma relação antiga e as políticas externas que balizaram esse relacionamento

tiveram diferentes matizes e períodos ao longo dos séculos.

A dificuldade em falarmos sobre a África ainda é grande no Brasil. Até muito recentemente,

pouco se estudava e se sabia sobre as origens do nosso povo. Dizia-se que éramos, ou

deveríamos ser, apenas europeus e tolerantes. Que não havia racismo entre nós, e que

éramos o país da democracia racial e, até mesmo, da democracia social. Na colônia e no

Império ignorávamos a África pois não se podia admitir que escravos pudessem ter história.

Na República, nem sequer admitíamos que tivéssemos tido escravidão, como registra o

próprio Hino da República:

Nós nem cremos que escravos outrora,

Tenha havido em tão nobre país.

As visões coloniais da nossa sociedade, interna e externamente (o movimento negro vem se

impondo muito recentemente na história nacional), e o colonialismo em África, prejudicaram

a aproximação nos últimos 150 anos. O desconhecimento mútuo entre africanos e

brasileiros tem levado a que cada movimento de aproximação de um, leve a

constrangimentos, desarmonias e desconfianças do outro. É nesse contexto que se dão as

políticas de relações africanas no Brasil.

* Beluce Bellucci, é doutor em história econômica pela USP, licenciado em estudos do desenvolvimento econômico e social pela Université de Paris 1 – Sorbonne. Trabalha há mais de 30 anos com a África. Residiu 12 anos em Moçambique, na coordenação de projetos de desenvolvimento. Pró-Reitor da Universidade Candido Mendes, no Rio de Janeiro, e diretor do seu Centro de Estudos Afro-Asiáticos, onde coordena o curso de pós-graduação em História da África e do negro no Brasil. Autor de Economia contemporânea em Moçambique; Introdução à Historia da África e do Negro no Brasil.

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1. Um pouco sobre a África

“O Brasil não conhece o Brasil”, diz o poeta popular, mas desconhece mais ainda a África,

terra originária de 50% da nossa população. A África é um continente com mais 30 milhões

de km2 e se aproxima de um bilhão de habitantes. O deserto do Saara divide

geograficamente o continente em duas grandes e distintas partes. A África do Norte,

islamizada e de colonização árabe, com processo histórico mais homogêneo e relacionado

ao mediterrâneo, econômica e politicamente. E a África sul-saariana, também conhecida

como subsaariana ou África negra. Na parte sul-saariana as diversidades histórias, étnicas,

culturais, econômicas, lingüísticas, são enormes, pese boa parte da população ter origem

banta.

Podemos, ainda, dividir o continente africano segundo as relações históricas de integração

regional em: África do Norte, África Ocidental, África Central, África Austral, África Oriental e

África Indica.1

Em cada uma dessas regiões o Brasil vem se relacionando de forma diferenciada. Na África

do Norte as prioridades tem se concentrado na Argélia. Na faixa atlântica, as prioridades são

a Nigéria, a África do Sul e recentemente Angola. Tudo, entretanto, num vai e vem de

intenções e ações pontuais. Com o governo Lula as políticas se modificaram e podem, se

continuadas e aprofundadas, abrir espaço para relações mais amplas, menos seletivas, e

mais duradouras, enfocando dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais, em vez,

simplesmente, das confissões de afinidades históricas e de interesses comercias de curto

prazo.

1 Baseado em O continente africano. Perfil histórico e abordagem geopolítica das suas macroregiões, de José

Maria Nunes Pereira, 2003.

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As macrorregiões da África

África do Norte

A África do Norte, devido à predominância árabe e aos fatores históricos e linguísticos, é,

muitas vezes, separada do resto do continente e agrupada ao estudo do Oriente Médio.

Apresenta duas sub-regiões: a leste, o machrech, que inclui a Líbia e o Egito. A oeste, o

magrebe (onde o sol se põe), compreende a Tunísia, a Argélia, o Marrocos, e o Saara

Ocidental. Este é ocupado pelo Marrocos, desde 1975, com a saída da Espanha, e

enquanto não se realiza o plebiscito pelas Nações Unidas para definir o status de país

independente ou incorporado ao Marrocos, o povo sarauí luta pela sua própria

independência.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 4

Embora a África do Norte dispute a primazia geopolítica e econômica com a África Austral,

no momento, ela apresenta vários indicadores de desenvolvimento econômico-social e

posição estratégica (compartilha a bacia do Mediterrâneo com a Europa e o Oriente Médio)

que a colocam em primeiro lugar do ranking africano. Seus cinco países estão entre os sete

países africanos com maior PIB, grau de industrialização e escolaridade. Com mais de 150

milhões de habitantes, a região apresenta um número de árabes e muçulmanos maior que

o Oriente Médio.

É a região mais homogênea do continente: de modo geral, uma só religião, o Islã, uma só

língua, o árabe, e alguns propõem uma só nação, a árabe. O perfil político é marcado pela

presença de Estados antigos, alguns milenares, que permaneceram com a sua própria

estrutura representativa durante a colonização, exemplo do Egito e do Marrocos. Já a

Argélia só obteve coesão nacional a partir da guerra de independência (1954-1962). Os

países desta região foram os primeiros da África a obter a independência. O Egito em 1922;

a Líbia em 1951; Tunísia e Marrocos em 1956 e Argélia em 1962.

Quanto à colonização, a França dominou no magrebe. Houve colonização inglesa no Egito e

italiana na Líbia. Argélia, Líbia e Egito são grandes exportadores de petróleo. As classes

dominantes são antigas, como a mercantil e a fundiária, ou são apoiadas pelo Estado, como

a industrial, de formação recente. Do ponto de vista das relações internacionais, todos os

cinco países da região estão entre os quinze mais influentes do continente.

África Ocidental

A África Ocidental é composta por 16 países: Benin, Burkina-Faso, Cabo Verde, Costa do

Marfim, Gâmbia, Gana, Guiné, Guiné-Bissau, Libéria, Mali, Mauritânia, Níger, Nigéria,

Senegal, Serra Leoa e Togo. Três países, Burkina-Faso, Mali e Níger, não têm saída para o

mar, e junto com a Mauritânia e o Chade (da África Central), compõem a faixa do Sael, com

avançado processo de desertificação, e por isso é uma das regiões mais problemáticas da

África.

Do século X ao século XVI, importantes reinos e impérios se formaram. O reino de Gana, os

impérios Mali e Songai, as cidades-estados Hauçás, e Iorubás, na Nigéria, tiveram seu

apogeu. Foi área pioneira e de intenso tráfico de escravos para as Américas.

Foram colônias inglesas: Serra Leoa, Gana, Gâmbia e Nigéria. Ao contrário do que

aconteceu com as colônias de povoamento europeu na África Austral e Oriental, a Inglaterra

praticou na região uma colonização de exploração, sem a expulsão dos camponeses de

suas terras e com pequena, mas decisiva, presença do poder metropolitano.

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Cabo Verde e Guiné Bissau foram colônias portuguesas. Benin, Burkina-Faso, Costa do

Marfim, Guiné, Mali, Mauritânia, Níger, Senegal e Togo foram colônias francesas. A Libéria

foi formada por escravos libertos dos Estados Unidos da América, em meados do século

XIX, não tendo conhecido a colonização.

Excetuando a Nigéria, maior produtor africano de petróleo, a região conta com pouca

produção mineral, embora os diamantes de Serra Leoa têm influência nos conflitos da

região. No aspecto sociocultural, nota-se o peso político das classes mercantis oriundas da

escravidão e uma presença marcante do islamismo, majoritário em alguns países.

África Central

A África Central é constituída por dez países: Burundi, Camarões, República Centro-

Africana, Chade, Congo (Brazzaville), República Democrática do Congo (ex-Zaire), Gabão,

Guiné-Equatorial, Ruanda, e São Tomé e Príncipe.

A região Congo-Angola é de onde vieram o maior número de africanos escravizados ao

Brasil e a influência do reino do Congo foi fundamental para a formação da nação brasileira.

Portugal colonizou as desabitadas Ilhas de São Tomé e Príncipe. A República Democrática

do Congo (ex-Zaire) foi colônia pessoal do rei Leopoldo da Bélgica, e depois de duas

décadas entregue ao Estado Belga. O Camarões foi colônia alemã até a Primeira Guerra

Mundial, sendo depois entregue à tutela da França e da Inglaterra pela Liga das Nações. O

mesmo aconteceu com Burundi e Ruanda que foram colônias alemãs até a primeira guerra

e depois passaram para a Bélgica.

A Guiné-Equatorial foi a única colônia espanhola na África sul-saariana. Os quatro países

restantes – República Centro-Africana, Chade, Congo e Gabão - integraram a África

Equatorial Francesa, com capital em Brazzaville, atual Congo.

Congo (ex-Zaire), Gabão e Camarões são ricos em minérios e petróleo. Situada em grande

parte em zona equatorial, a região apresenta fraca densidade demográfica. No domínio das

relações internacionais, a República Democrática do Congo, apesar das dificuldades

internas de integração, há décadas em crise, é o país com maior importância geopolítica da

região, por suas riquezas minerais, além de ser o mais extenso e populoso.

Todas os países desta região tiveram a independência no início da década de 60, com

exceção de São Tomé e Príncipe, em 1975.

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África Oriental

A África Oriental apresenta relações ancestrais com o mundo árabe e a região índica, e

divide-se em duas sub-regiões: o Chifre da África e a Centro-oriental.

O Chifre da África é formado por cinco países: Etiópia, Eritréia (independente da Etiópia em

1993), Djibuti (ex-colônia francesa), Somália, colonizada em partes separadas pela Itália e

pela Inglaterra, e Sudão, administrado no tempo colonial pelo condomínio anglo-egípcio. É

no Sudão que se localiza a região de Darfur, palco de conflitos no início do século XXI. Tem

uma comunidade negra, cristã ao norte, e outra animista, no sul. A região guarda

importância estratégica, pelo petróleo e proximidade com o Oriente Médio.

A Etiópia é o país mais importante do Chifre, embora não faça mais parte dos 15 maiores

PIB africanos por conseqüência de sua decadência econômica. Foi sede da Organização da

Unidade Africana (OUA), e é sede da sua sucessora a União Africana. Tem o poder

simbólico de Estado Milenar. A antiga Abissínia, expandiu-se às custas dos seus vizinhos, e

nunca foi colônia de nenhuma potência, embora tenha sofrido ocupação militar italiana entre

1936 e 1941. A população se divide entre cristãos ortodoxos e muçulmanos.

A África Centro-Oriental é formada pelas ex-colônias inglesas de Uganda, Quênia e

Tanzânia (antiga Tanganica e ilha de Zanzibar) que, no período colonial, integravam a África

Oriental Britânica. Região de cruzamento de povos árabes e asiáticos, formou a cultura

suaíli, cuja língua mistura o banto e o árabe.

No campo das relações internacionais, foi a primeira região do continente a propor a

integração econômica, ainda na década de 1960, com a criação do Mercado Comum da

África Oriental, Kenutan, formado pelos três países citados, que, entretanto, foi mal

sucedido. Com o deslocamento político e econômico da Tanzânia para a África Austral, o

Quênia consolidou posição de pólo econômico mais importante. Sem recursos minerais

expressivos, como os restantes países da região, o Quênia tem excelente agricultura,

turismo ecológico e a sua capital, Nairóbi, é a sede mundial da Organização do Meio

Ambiente das Nações Unidas. No início do século XXI vem enfrentando problemas de

governabilidade.

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África Austral

Atualmente, a África Austral é região-chave do continente. Apresenta alta integração em

termos de capital, mercadorias e pessoas, sem paralelos na África. Contém uma das

maiores reservas minerais do mundo, alguns ainda estratégicos e indispensáveis à Europa e

aos Estados Unidos. A fachada atlântica lhe confere proximidade e boa potencialidade de

cooperação com o Cone Sul da América Latina. A fachada do Índico a coloca em contato

com o Oriente Médio e com importantes países asiáticos, com quem têm longa história de

comércio e influência mútua. Onze países a compõem: África do Sul, Angola, Botsuana,

Lesoto, Malaui, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue. Seis

não têm saída para o mar, fator que exige maior integração.

A Tanzânia é situada na África Oriental, contudo, por razões políticas e econômicas, ela se

australizou, e hoje faz parte de todos os organismos integrativos da região. O mesmo que

Angola e a Zâmbia, que são países histórica e culturalmente pertencentes à África Central.

É a região do continente com a mais antiga e maior colônia de europeus, iniciada em 1652,

na região do Cabo. Foi a única colônia de povoamento europeu na África antes da

Revolução Industrial. A integração começou com a Inglaterra se apossando das colônias

bôeres (holandesas) do Cabo e Natal (1902), e de toda a União Sul-Africana,

posteriormente República da África do Sul. Finalmente agregou a Rodésia do Sul, atual

Zimbábue, depois a Rodésia do Norte (hoje Zâmbia) e a Niassalândia (atual Malaui).

A Namíbia era uma colônia alemã (Sudoeste Africano) que, após a derrota alemã na

Primeira Guerra Mundial, foi entregue por mandato à África do Sul, que ilegalmente a

incorporou. A outra colônia alemã, a Tanganica, foi entregue à Inglaterra, também por

mandato, e constitui hoje a Tanzânia (após fusão com o Zanzibar).

Angola e Moçambique tiveram colonização portuguesa, mas mantiveram-se sob

dependência econômica inglesa durante muito tempo, assim como Portugal. Os enclaves de

Botsuana, Lesoto e Suazilândia foram protetorados britânicos na época das guerras entre

bôeres, zulus e ingleses. As independências aconteceram na década de 1960, porém

Angola e Moçambique apenas em 1975. A Namíbia se tornou independente da África do Sul

em 1990.

O processo contemporâneo de maior impacto na região foi o desmantelamento político do

apartheid na África do Sul e a realização em 1994 das primeiras eleições livres e gerais, do

qual saiu vitorioso o ANC (Congresso Nacional Africano) com Mandela. Desde então o ANC

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domina a arena política, mas as desigualdades sociais ainda representam um grande

desafio. No campo econômico a SADC – Comunidade para o Desenvolvimento da África

Austral – agrega 14 países. Nove países tem o inglês como língua oficial e dois o português.

A religião cristã é a predominante, e a região abriga o maior contingente de população de

origem européia da África.

África do Oceano Índico

A África Índica é constituída pelas ilhas de Madagascar, Maurício, Reunião (esta integrada à

França) e os arquipélagos de Comores e Seichelles. O Oceano Índico é espaço privilegiado

de passagem entre o Ocidente e o Extremo Oriente. Por isso teve sempre um papel

estratégico. Lugar de mistura de raças e civilizações, o Índico tornou-se, nas últimas

décadas do século XX, um espaço de enfrentamento entre as grandes potências, sobretudo

depois que as bases navais passaram a ter primazia sobre as terrestres. Madagascar foi

ocupada pelos franceses no final do XIX. As ilhas Comores, Maurício e Seicheles são

habitadas por povos de origem diversa – árabes, africanos, indianos e europeus – que

deram origem a culturas-sínteses, crioulas, diferenciadas entre si. A República Maurícia é

grande produtora de açúcar e de confecções de alta tecnologia. É considerado um “novo

país industrializado” da África, e se distingue por sua estabilidade política.

***

As fronteiras dos países africanos foram estabelecidas no processo de ocupação colonial da

África, que teve início em meados do século XIX, e durou até a Primeira Guerra Mundial.

Elas obedeceram aos princípios estabelecidos na Conferência de Berlim (1894-95) entre as

potências coloniais, e agrupavam diferentes nações e etnias, ao mesmo tempo em que as

dividiram e separaram. Após a Segunda Guerra Mundial, em função das mudanças na

divisão internacional do capital e como resultado das lutas anticoloniais, a grande maioria

das colônias alcançou a independência no início dos anos 60. A exceção foram as colônias

portuguesas, cuja independência se deu em meados dos anos 70, depois de mais de uma

década de luta armada. A OUA – Organização da Unidade Africana, constituída em 1961,

decidiu manter as fronteiras estabelecidas pelos colonialistas nos processos das

independências. A língua oficial na maioria dos países recém independentes foi a língua do

colonizador, utilizada como fator de integração nacional. Exceções são a Somália, que

manteve seu único idioma anterior, o somali; a Eritréia, o tigrino. A Etiópia, nunca

colonizada, mantém o amárico.

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2. Antes do Governo Lula

Houve uma influência recíproca entre o Brasil e a África durante muitos séculos. Mas dois

fatos bloquearam essas relações e trouxeram um distanciamento e um desconhecimento

mútuo entre nossos povos. O primeiro foi a permanência no Brasil, após o término da

escravidão e o advento da república, de um sistema político compromissado com as

grandes potências coloniais e imperialistas e, internamente, com o latifúndio. O segundo, foi

o colonialismo que se instalou na África, nesse mesmo período,

Do lado de cá do Atlântico, a questão da discriminação racial, da superexploração do

africano, da discriminação, do negar-lhe a história e a cultura. Do lado de lá, o negar-se a

nacionalidade, o trabalho compulsório e o cultivo obrigatório, e as outras mazelas do

colonialismo. Essas ambigüidades em relação à África permearam a evolução das

percepções brasileiras sobre as suas próprias identidades nacionais.

Os períodos das relações Brasil-África

Saraiva2 propõem cinco períodos para a história das relações do Brasil com a África, antes

do governo Lula: 1) Do período colonial até a independência (colônia-1822). 2) Da

independência à segunda-guerra mundial (1822-1945); 3) Da Segunda-Guerra ao início do

Governo Jânio (1945-1961); 4) De 1961 aos finais dos anos 1980 (1961-1990); 5) Dos finais

dos anos 80 ao início da era Lula (1990-2003). O sexto período da política externa para a

África se inicia com o Governo Lula (2003 - ?), e será visto em ponto específico.

Da Colônia à Indepêndencia (1822)

O primeiro período é o colonial brasileiro, do século XVI ao XIX. As relações aqui eram

fundamentadas na escravidão e no tráfico de escravos, mas expandiram-se em direção a

outras formas de comércio, e incluíram o intercâmbio de idéias e de experiência políticas e

institucionais. Valores civilizacionais atravessaram o mar e se instalarem nos portos e

cidades. Foram de técnicas agrícolas a trocas de cultivos até a formação da língua

portuguesa. Não foi apenas a força de trabalho escrava que atravessou o Atlântico. Toda

uma economia, e valores societais, se articulou e se desenvolveu, envolvendo povos dos

dois lados do Atlântico.

2 Os cinco períodos da política externa brasileira para a África estão em O lugar da África, de José Flávio

Sombra Saraiva (1996).

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De 1822 à Segunda Guerra Mundial

O segundo período vai da independência do Brasil, em 1822, até finais da Segunda Guerra

Mundial no século XX. No século XIX, com a assinatura do Tratado de Reconhecimento da

Independência do Brasil por Portugal em 1826, o Brasil se submeteu à ex-metrópole em

relação ao controle dos territórios portugueses na África. Foi o início do período que

bloqueou as relações políticas e intelectuais desenvolvidas até então entre a África e o

Brasil, e quando as classes dominantes brasileiras deixaram clara a sua opção de

“exclusão” do continente africano.

Isso aconteceu, apesar dos movimentos em Angola pela anexação ao Brasil e do grande

fluxo comercial e político do Brasil com a costa ocidental da África, e, de que o primeiro

soberano a reconhecer a independência brasileira foi o Obá Osemwede, do Benin. Este

reconhecimento, entretanto, fechou o período das relações.

Nos finais do século XIX, com a extinção do tráfico de escravos, e a invasão européia na

África, o Brasil ampliou a separação com o continente africano. Os interesses diplomáticos

brasileiros dirigiram-se para a Europa, a America latina e os Estados Unidos da América. A

frieza da relação com o continente africano prolongou-se até os finais da 2a. Guerra Mundial.

Da Segunda Guerra ao Governo Jânio (1946-1961)

O terceiro período é o da retomada gradual das relações do Brasil com o continente

africano, e vai da segunda metade da década de 1940 até início dos anos 1960. Nesse

período assistiu-se a agonia do processo colonial na África, e a ascensão dos movimentos

nacionalistas. As novas relações com a aliança ocidental no pós-guerra permitiram a

reconsideração das relações diretas entre o Brasil e o continente africano.

A nova conjuntura internacional favorecia a presença dos novos Estados independentes na

África, e impulsionava uma intervenção do Brasil. Estas relações entretanto, foram

condicionadas pelas posições históricas em relação ao colonialismo português na África.

Afloraram as contradições entre o discurso e a prática, e apareceram as ambigüidades da

sua própria política africana, quer nas votações nas Nações Unidas, quer nas negociações

comerciais.

A política externa brasileira para a África foi então desenhada em torno de questões como o

financiamento internacional para o desenvolvimento da América Latina e da África.

Marcaram esse período, a competição entre produtos primários africanos e brasileiros no

mercado internacional, a perspectiva da parceria brasileira com a África do Sul no contexto

Atlântico, as relações especiais com Portugal, na formulação da Comunidade Luso-

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 11

Brasileira e as primeiras conseqüências do processo de descolonização da África sobre os

interesses do Brasil na região atlântica. Particularmente, depois da Conferência de Bandung

(1954), onde o Brasil participou como observador, com o diplomata Bezerra de Menezes.

O discurso “culturalista” se desenvolveu nas décadas de 1960 e 70, e conviveu com outro

que enfatizava os vínculos afetivos que unia brasileiros e portugueses e suas “províncias de

ultramar”.

A África se incluía como posto de manobra para interesses da inserção internacional do

Brasil e sua afirmação no pós-guerra. O único país da região atlântica que o Brasil mantinha

relações no logo pós-guerra, era a África do Sul. E esta era objeto de censura internacional

pelo regime de segregação racial e pela dominação sobre o Sudoeste Africano (Namíbia).

Contraditoriamente, o Brasil acompanhava as recomendações das Nações Unidas que

condenavam a África do Sul, reconhecia os problemas, mas os considerava assuntos

internos. Nesse período, a diplomacia brasileira estava a serviço do desenvolvimento. O

Brasil oferecia segurança para as manipulações ideológicas e as operações militares dos

países centrais, mas, em contrapartida, esperava obter financiamento para a sua

industrialização.

No segundo governo Vargas (1951-54) a concepção nacionalista produziu uma política

externa mais elaborada e buscava maior autonomia relativa no cenário internacional. Insistia

que o desenvolvimento econômico não poderia ser apenas para o Brasil, mas também para

a África, embora esta fosse vista na permanência da colonização.

Os anos do presidente Juscelino Kubitschek (1956-1960) foram marcados por um

abrandamento na guerra fria, pelo alento da Conferência de Bandung, e diversas

conferências africanas em 1957, até a constituição em 1963 da OUA (Organização da

Unidade Africana).

A África que tinha um só país independente em 1939, passou a ter cerca de 50 na

passagem para os anos 1960. O governo brasileiro, entretanto, assistiu a essa mudança

com indesculpável indiferença, apesar da grande ação diplomática desenvolvida nestes

anos. A África para Kubitschek, não tinha valor político. A importância central voltava-se

para as relações econômicas entre Europa e a África, independente da superação, ou não,

da situação colonial. As exportações brasileiras de café, cacau e algodão, principais

produtos de exportação, poderiam ser ameaçadas pela concorrência, entendida como

“desleal”, pelo protecionismo das metrópoles.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 12

Preconizava-se que o Brasil poderia melhor se relacionar com o continente africano, via

Portugal. A suposta habilidade do povo português para administrar a interpenetração de

raças, línguas e culturas, e de combinar os trópicos com o estilo europeu, davam sabor

especial à política externa brasileira. Surgia a identidade brasileira, definida como

“racialmente democrática”.

Em 1953, o Brasil assinou um tratado com Portugal, no qual, em relação à colônias

portuguesas, se subordinava aos interesses portugueses.

Do Governo Jânio ao liberalismo (1990)

O quarto período vai de 1961, com Jânio Quadros, até finais dos anos 1980. Nele se

redimensionou a relevância Atlântica da política externa do Brasil. Foi um período

extremamente ativo política e economicamente, no que se refere à aproximação com à

África. Aumentaram-se os intercâmbios políticos, as trocas econômicas, tecnológicas e

houve investimentos de capital nos dois sentidos. Uma nova cooperação se edificou,

trazendo, conjuntamente, a exclusão da noção de militarização do Atlântico. Nesse período,

a diplomacia brasileira, em articulação com a Nigéria e Angola, desativou a operação da

África do Sul e da Argentina para a criação da OTAS, a Organização do Tratado do Atlântico

Sul, destinada a ser uma OTAN do sul. O projeto fracassou e permitiu à iniciativa brasileira

erigir o Atlântico afro-brasileiro como uma zona de paz e cooperação, e é considerado o

ponto culminante da dimensão Atlântica da política externa brasileira.

A “Política Externa Independente” teve início no governo Jânio Quadros (1/2/1960 a

25/8/1960), e foi desenvolvida por João Goulart (até marco de 1964). A política africana nela

inserida, foi fato marcante da inserção brasileira no cenário internacional, e num período

conturbado da história nacional.

A nova política para a África, embora mantivesse os valores ocidentais, agregavam novas

percepções para os espaços africanos e asiáticos. Buscava certa autonomia, em estratégia

pragmática, para garantir a expansão econômica capitalista coordenada pelo Estado.

O presidente Quadros acreditava que os Estados Unidos responderiam com concessões ao

Brasil diante da instabilidade na América Latina pela revolução cubana, através de

movimentos contraditórios, como a condecoração a Che Guevara, e o acompanhamento

das posições norte-americana na crise cubana de 1961.

A política externa nesse período, foi um instrumento contra o colonialismo e o racismo, e

pelo apoio brasileiro ao principio da autodeterminação dos povos da América. O Brasil

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 13

tomou posição a favor da descolonização africana, mas não se alinhou automaticamente

com nenhum bloco terceiro-mundista.

Enquanto em 1960 o governo Kubistschek assistia às 17 independências africanas sem

qualquer gesto, Quadros, em 1961, rompeu o silêncio e reaproximou o Atlântico do Brasil.

Foi nesse período, em 1961, que se criou no Itamaraty a Divisão da África.

Havia, entretanto, duas políticas para África. Uma de aproximação com o continente,

particularmente com a África atlântica, sustentada pela abertura comercial e na

solidariedade política à descolonização. E outra, que admitia a continuidade do colonialismo

para as colônias portuguesas na África. A guerra de libertação nacional em Angola tomou

proporções internacionais a partir de 1961 e, também aqui, a política externa para a África

continuou ambígua.

Criou-se, ainda em 1961, o Instituto Brasileiro de Estudos Afro-Asiáticos na Presidência da

República, para se suprir as necessidades de conhecimento.

Com o golpe militar de 1964, a política exterior para a África recuou. A África passou a ser,

de local colonizado, para local sujeito ao comunismo. Retomou-se a Comunidade Luso-

Brasileira e os discursos lusófonos. Abandonou-se o nacionalismo independente dos

governos anteriores, e se alinhou aos Estados Unidos da América. O ocidente estaria

ameaçado pelo comunismo, e a África não fazia parte do ocidente, à exceção da África do

Sul. O Atlântico aparecia como espaço adequado para a construção de uma aliança política

entre Brasília-Lisboa-Pretória, contra a ameaça comunista das demais nações africanas da

África negra. A lógica de combate ao comunismo afastava o Brasil da África e o aproximava

da África do Sul.

Na década de 70, o contexto internacional passou por grandes modificações, com o choque

do petróleo e a crise do dólar, e com ela houve redefinições na política externa. Deixou-se

de lado o enfoque geopolítico para a região atlântica e se iniciou uma virada ao continente

africano.

A política exterior deixou de ter o alinhamento quase automático aos Estados Unidos, que

era defendido no governo Castelo Branco, e preconizou a volta à política externa de Vargas,

com orientação para a economia, o desenvolvimento e do crescimento industrial,

organizados pelo Estado.

Assim, buscou novos mercados e suprimentos de petróleo, tentou manter a influência

brasileira no Atlântico por meios econômicos e política pacífica, sem os pactos de

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 14

segurança coletivos e sem a interferência externa. Manteve o discurso culturalista, mas

abandonou a comunidade afro-lusa-brasileira. Construiu relações com nações que se

tornaram independentes de Portugal, sem os embaraços anteriores. O Brasil foi o primeiro

país a reconhecer a independência de Angola.

Formulado conceitualmente pelo Governo Geisel (1974-79), o pragmatismo passou a ser a

política internacional. Visava enfrentar os problemas do projeto de desenvolvimento, que se

fundia ao nacionalismo autoritário para encontrar um novo lugar para a inserção brasileira

no mundo.

O pragmatismo que levou o Brasil à África foi o mesmo que o levou ao Japão, à Europa

Oriental e ao Oriente Médio. As exportações brasileiras para o Terceiro Mundo passaram

de 12% em 1967 para 25% no final dos anos 70. O continente africano tornou-se espaço

privilegiado para a estratégia comercial brasileira. O país estava pronto para exportar bens,

serviços e tecnologia ao continente africano. Por outro lado, a África tinha interesses por

produtos, novas tecnologias e serviços que lhes eram considerados adequados. Gibson

Barboza, então ministro das relações exteriores, realizou visita em 1972 a 9 países

africanos, tendo assinado protocolos de intercambio com todos.

O intercâmbio comercial Brasil-África mudou, e a África do Sul perdeu importância,

ganhando peso a Nigéria, que passou a ser a primeira parceira do Brasil na África,

seguidos do Congo, Gabão, Angola e o Zaire. Trocava-se petróleo por produtos

industrializados.

Na década de 90, as dificuldades econômicas, particularmente geradas pela crise da dívida

externa, e pela ascensão das políticas neoliberais no mundo, retraíram as prospecções

anteriores entre o Brasil e a África. As políticas desenvolvimentistas saíram de moda, no

Brasil e na África.

Em 1983, João Figueiredo (1979-85) foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a África.

Visitou Nigéria, Senegal, Guine Bissau, Cabo Verde e Argélia. O fato mais importante para a

política africana do Brasil foi a construção da pax Atlântica. Resistindo às pressões norte-

americanas pela montagem de um pacto de segurança coletiva para a região nos moldes da

OTAN, a política externa brasileira articulou-se com a diplomacia africana para garantir que

o Atlântico, ao sul do Equador, fosse um lugar de paz e de cooperação.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 15

Dos anos 90 ao Governo Lula (1990-2002)

O quinto período vai do final da década de 1980 à eleição do Lula em 2002. Nele vamos

encontrar uma forte redução da presença da África na agenda da política exterior brasileira.

Apesar de não haver ruptura nos princípios formais da política, ela ficou sem conteúdo.

A afro-pessimismo, corrente ideológica e política, que considera a África incapaz de resolver

os seus problemas, tomou conta da diplomacia brasileira e dos empresários. A África

passou a ser considerada inviável, terra do “atraso”, e deveria ser desqualificada como

interlocutora das relações internacionais do final do século.

Vieram os anos de desinteresse na África. Voltaram as teses de relações privilegiadas com

os centros avançados da produção capitalista e o país fez opções seletivas no continente

africano. O olhar brasileiro se voltou para a África Austral, e a África do Sul ressurgiu como

área de interesse para a política externa brasileira dos anos 1990, como fora no imediato

pós-guerra.

A política externa brasileira para a África nos anos 90, foi “uma política minimalista e

eclética”, constituída por “opções seletivas” e que produziu um distanciamento entre o Brasil

e esse continente (Döpcke, 2003).

Outro aspecto desse período, foram os limites do discurso culturalista, até então bandeira

dos empresários e diplomatas. As fontes da desconstrução foram duas: a crítica da

diplomacia africana sobre as contradições na questão dos afrodescendentes, e as

manifestações dos movimentos negros, que desconstruíram o argumento culturalista da

afinidade natural entre brasileiros e africanos. No período diminuiu-se o número de

diplomatas brasileiros na África, e o comércio voltou aos níveis dos anos 50.

A modernidade neoliberal do governo Collor (1990-92), definiu prioridades com os países do

primeiro mundo e a África passou a ter um lugar diminuto. No governo Itamar Franco (1992-

1994), as políticas exteriores foram redirecionadas para formas mais realistas e mais

conseqüentes com os desafios internacionais do Brasil no final do século. Porém, o

MERCOSUL substituiu a importância estratégica que tinha a África nos anos 70 e parte dos

80.

As relações, entretanto, continuaram, porém, de forma seletiva. Se concentraram,

primeiramente, na África do Sul, com Mandela presidente e, em função de sua economia

mais diversificada que os outros países africanos, aumentaram-se as troças comerciais.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 16

A segunda opção seletiva do Brasil foi Angola. Desde ações políticas conjuntas, às missões

de paz das Nações Unidas dedicadas à desmilitarização do país, até a participação em

campanhas eleitorais.

A terceira linha da ação política africana do Brasil no anos 90, foi a retomada das operações

da Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul, com a entrada da África do Sul em 1994.

E finalmente, a criação da CPLP – Comunidade dos Países de Língua oficial Portuguesa,

idéia vindo do governo Sarney com o Instituto Internacional da Língua Portuguesa, cujo

maior sucesso até os dias de hoje é o acordo ortográfico.

3. A política do PT para a África

Os documentos do partido aprovados na década de 1980, exceto o programa de governo de

junho de 1989, eram omissos com relação aos temas africanos. O partido não aprofundou a

compreensão sobre a situação africana, nem propôs políticas específicas para as relações

bilaterais com o Brasil.3

Nesse período, o PT estaria sobretudo empenhado no fortalecimento do conjunto de

partidos de esquerda latino-americanos, meio ao clima de abertura e redemocratização

regional, enquanto na África, até os anos 1990, a agenda política e militar continuava no

contexto da Guerra Fria, e da qual o PT, não chegou a fazer parte.

A opinião do professor Marco Aurélio Garcia, então Secretário de Relações Internacionais

do PT, é significativa quanto ao despreparo do PT para a África, na primeira década de sua

existência:

“Por razões históricas, o PT tinha abertura com alguns partidos social-democratas,

comunistas e verdes, de alguns países da Europa. O mesmo se tentou, sem êxito, com

partidos africanos. (...) Mas não houve grandes avanços. Houve esforços tópicos, alguns

contatos, mas nunca conseguimos ter um relacionamento mais estável.” (...) “A idéia

posterior, no partido, de uma política externa pró-africana era muito mais um conceito, uma

idéia, um desejo, do que o resultado de uma prática mais concreta. Posso estabelecer uma

diferenciação muito clara. Ocupei-me muito da política latino-americana. Ninguém se

ocupou da política africana.” (in Gala, 2007)

3 Os pontos (3) e (4) em A política externa do Governo Lula para a África. (2007), da conselheira Irene Vida

Gala.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 17

Os poucos africanistas do PT continuaram a desenvolver, à margem da diplomacia

brasileira, um diálogo e cooperação com governos e lideranças africanas. Incluem-se aí, a

organização das visitas ao Brasil de Sam Nujoma, líder da Organização dos Povos do

Sudoeste Africano (SWAPO), e de Nelson Mandela e de atos de solidariedade com Angola

e Moçambique.

Os petistas que viveram na África praticamente não chegaram a estabelecer um diálogo

com a militância negra do PT, quer sobre o continente africano, quer sobre as propostas

para as relações entre o Brasil e a África.

Ao longo dos anos 1990, não houve alterações significativas no comportamento do PT com

relação à África, exceto o diálogo que se estabeleceu entre as lideranças sindicais do

partido e seus homólogos da Confederação dos Sindicatos da África do Sul (COSATU) e se

constitui, juntamente com o grupo de antigos exilados na África, no segundo fator de

aproximação entre o PT e a África. A eleição de Mandela foi um marco da política

internacional de forte significação para o PT, que inclusive passou a utilizar a expressão

“apartheid social”, como bandeira de luta.

Em 2002 havia entre os dirigentes do PT pouca intimidade com a realidade e lideranças

africanas, exceto as sulafricanas, e também havia a percepção da África como o continente

de populações oprimidas, com as quais o partido se solidarizava. Havia, igualmente, um

desejo de aproximação, inspirado no entendimento de que brasileiros e africanos

compartilhavam desafios e objetivos comuns, tanto no plano interno quanto internacional.

A mudança começou efetivamente nas vésperas da campanha eleitoral de 2002, onde, a

estas percepções, o PT irá incorporar novas idéias provenientes do movimento negro, que

acabarão por construir a política externa do Governo Lula para a África. Com o primeiro

Governo, acompanhado da mudança na conjuntura africana, e munido de uma nova

concepção, o PT avança para uma nova fase de aproximação com o continente africano,

colocando-se outros desafios a resolver, e definindo mais claramente a sua posição.

A Resolução da Secretaria de RI para o 3o. Congresso

A Resolução da Secretaria de Relações Internacionais para o 3o. Congresso do PT, de

2007, se posiciona abertamente em relação África, ao sinalizar os avanços do primeiro

governo Lula: “a aposta firme e consistente do Governo Lula na ampliação do leque de

relações comerciais, investindo pesadamente em aumentar o intercâmbio com países da

América Latina, África, Ásia e Oriente Médio. Essa política foi exitosa, não só pelo aumento

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 18

expressivo, identificando novos mercados e novos fornecedores, mas também por que

contribui para a chamada nova geografia comercial”.

Refere-se ainda especificamente, uma citação de ordem política sobre o apoio a

“constituição de um Estado livre e independente para o povo saaraui, a República do Saara

Ocidental.” E outra, quando define claramente como ponto específico no Plano de Trabalho

2007-2010, a intenção de: “Ampliar as relações com a África”.

As outras citações são mais universais e estão agregadas com outros continentes ou

países. A Resolução prioriza, corretamente, a América do Sul, a integração regional latino

americana, e as relações sul-sul. Entretanto, cada vez, acompanhando o avanço do governo

nessas relações, o PT caminha a passos largos na direção de aprofundar a visão

estratégica em relação à África.

4. A política externa para a África do Governo Lula

O presidente Lula outorgou prioridade à África. A política do atual governo brasileiro não

procura apenas gerar oportunidades comerciais para o Brasil, mas também incrementar a

relação política internacional, com vistas a fortalecer sua posição perante os países centrais

nas negociações comerciais globais. Em Pretória, no primeiro discurso na África, em 2003,

Lula expressou: “Nós desejamos desenvolver uma política estratégica com o resto da África,

com a China, a Rússia, a Índia e o México”.

No primeiro governo (2003-06) as relações com a África ganharam intensidade como nunca.

O Presidente realizou 6 viagens ao continente africano, com escalas em 17 países, e os

números do intercâmbio bilateral, passou de USD 5 bilhões, em 2002, para USD 13 bilhões

em 2006. Voltar-se para a África foi um dos compromissos de campanha. E a justificativa

repousava no fato do Brasil ser o “segundo país com maior população negra no mundo”.

Menciona-se ainda o aprofundamento de relações com a África do Sul, por sua “importância

regional”, juntamente com a Índia, China e Rússia, e a construção de uma nova política

sobretudo com os países de língua portuguesa.

Em 2002, o PT e coligados introduziram o debate sobre questões raciais e seu impacto na

política externa brasileira, para a campanha eleitoral, ao fazerem a vinculação entre o

elevado contingente populacional negro brasileiro, a luta contra o racismo e os objetivos

desenvolvimentistas e universalistas da política externa brasileira, em particular o

adensamento das relações com a África. É dessa forma que surgiu no Programa de

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 19

Governo, uma inédita vinculação entre a política externa brasileira para a África e a

promoção da igualdade racial no Brasil.

“Voltar-se para a África”

Já em 2003, em seus discursos na África, o Presidente Lula dizia que a prioridade dada ao

aprofundamento das relações com a África, tratava-se de “um dever moral” e a uma

“necessidade estratégica” do Brasil. Sem dúvidas o “dever moral” era voltado para o público

interno, enquanto a “necessidade estratégica”, para os parceiros internacionais, sobretudo

os africanos. O dever moral seria conseqüência da dívida histórica com a África, a ser paga

pelo estreitamento das relações bilaterais.

Na política governamental para a África, destaca-se um objetivo comum, com vista a

estender aos cidadãos do Brasil e da África os benefícios da cidadania plena; e duas

metodologias: o estabelecimento de relações de cooperação bilateral, sobretudo com os

PALOP; e o fortalecimento da ação conjunta nos organismos internacionais, com a

valorização do “multilateralismo”, com vista à luta contra a exclusão social.

A SEPPIR

A importância do movimento negro no contexto da política externa, se verifica quando o

próprio Presidente, em Angola, reconheceu a vinculação que seu Governo estabeleceu

entre a política externa para a África e a questão racial no Brasil. Ali, referiu-se sobre a

criação da SEPPIR, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e

sobre a Lei no. 10.639, que determina a obrigatoriedade do ensino da História da África e da

Cultura Afro-Brasileira nos currículos escolares brasileiros.

Na área econômica e do comércio bilateral os prioridades deveriam estar orientados para

aumentar os fluxos de comércio e buscar o equilíbrio na balança comercial.

Nem a indústria do petróleo, nem as oportunidades comerciais e de cooperação

relacionadas à exploração petrolífera, e nem mesmo a busca de um assento permanente no

Conselho de Segurança das NU, são identificadas como interesses estratégicos da

aproximação brasileira à África. Assim, não é correto se associar a noção de necessidade

estratégica de aproximação à África à questão do petróleo, como se fez após o choque do

petróleo, em 1973, com o Governo Médici.

Entretanto, enquanto o “dever moral”, uma das justificativas de aproximação com a África,

encontra raízes históricas, a “necessidade estratégica”, “parece ser fruto de uma apreciação

dinâmica, sobre o contexto internacional em que se desenvolvem as relações entre o Brasil

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 20

e a África”, (Gala, 2007). A necessidade estratégica, desdobra-se na busca de formação de

alianças em torno de uma finalidade comum: A luta contra a exclusão social. Tema este,

inicialmente concebido como plataforma de governo em nível nacional, mas ao qual se

decidiu atribuir projeção internacional com iniciativas como a “Ação contra a fome e a

pobreza”, cujo documento final foi endossado por mais de cem Chefes de Estado e

Governo, em 2004.

A necessidade estratégica de aproximação com a África está relacionada ao contexto

multilateral e à reforma de suas principais instituições. A parceria com os africanos foi

apresentada como modalidade de ação internacional que poderia viabilizar mudanças no

sistema internacional, destinadas a assegurar a realização dos interesses do Brasil e de

outros PEDs (países em desenvolvimento).

No período 2003-2006, alguns dos eixos consagrados pela prática diplomática brasileira,

como o diálogo político, a cooperação militar, a cooperação educacional e as relações

comerciais, foram os mais dinâmicos no conjunto das relações bilaterais Brasil-África. A

estes eixos tradicionais, somaram-se novos eixos, menos dinâmicos, mas que refletiram a

renovação da política africana do Brasil à luz de seus novos pilares. Foram a assistência

humanitária e a cooperação técnica, orientadas para a luta contra a exclusão social.

Durante o primeiro Governo Lula, registrou-se um intenso calendário de visitas, missões e

encontros entre autoridades brasileiras e africanas, em território brasileiro, africano ou à

margem de reuniões internacionais, além de algumas importantes reuniões, dentre as quais

o Fórum Brasil-África: política, cooperação e comércio, realizado em Fortaleza, Ceará, em

2003, organizado pelo MRE e pelo Grupo dos Embaixadores Africanos em Brasília.

Como conseqüência, o intercambio de embaixadas aumentou. Só no primeiro governo, mais

de uma dezena de representações diplomáticas foram abertas em Brasília e do Brasil no

continente africano. A troca de embaixadas sinalizam o esforço recíproco de estreitamento

de relações e a expectativa mútua de aprofundamento do diálogo político e da agenda de

cooperação, em um ambiente caracterizado pela ênfase na cooperação Sul-Sul.

A cooperação militar tem se valido de modalidades como a oferta de cursos para oficiais

estrangeiros nas escolas militares brasileiras, a realização de visitas e missões no Brasil,

promoção de feiras internacionais na área de defesa e segurança. Cresceram as demandas

por maior presença brasileira e daí aumentaram as �aditâncias militares brasileiras no

continente africano.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 21

No período 2003-2006, o intercâmbio comercial com a África cresceu de USD 5 bilhões, em

2002, para US$ 13 bilhões, em 2006, sem, entretanto, que houvesse mudanças estruturais.

As exportações brasileiras cresceram 255,9%, e são financiadas pelo BNDES, quando

necessário. A carência de transporte de carga e passageiros entre o Brasil e o continente

africano, continua sendo um dos principais obstáculos à expansão dos contatos bilaterais.

Outra questão estrutural diz respeito a financiamentos à exportação e a investimentos em

infra-estruturas na África.

Mas nem tudo são rosas. A inovação do governo para a política africana, que vinculava o

interno com o externo, não alcançou inteiramente os objetivos propostos, “na medida em

que não se desenvolveu uma agenda específica capaz de responder plenamente à

expectativa de que as relações com a África poderiam ser utilizadas a fim de promover, no

Brasil, a igualdade racial e a luta contra o racismo.” (Gala, 2007) A exceção a esse vazio na

implementação foi a realização, em Salvador, Bahia, em 2006, da II CIAD, Conferência de

intelectuais africanos da diáspora, organizada pelo governo brasileiro em parceria com a

União Africana.

As aspirações do movimento negro em relação a África, pouco se vincularam com as lutas

antiraciais no Brasil e apresentaram suas limitações ao reconhecerem, o próprio movimento

negro e, a então Ministra da SEPPIR, não disporem, no início do Governo, “de pauta

específica de diálogo para as relações com o continente africano, pois o que nutriu o espírito

da volta à África foram tradicionalmente as formulações míticas e místicas acerca do

continente”. (Gala, 2007)

Apesar da importância adquirida, na medida em que reverteu a visão colonizada e

colonizadora do Brasil em relação à África, aos africanos e aos afro-descendentes, é

momento de se rever os alcances dessa necessária vinculação, no âmbito da política

brasileira para a África, à luz dos novos arranjos internacionais e do papel do Brasil e da

África.

5. A África, a China e o Brasil

Em 2007, o renomado sociólogo guineense Carlos Lopes, dizia: “A China já é o terceiro

parceiro comercial do Brasil e do continente africano. Mas o que há de espetacular nessa

ascensão é que ninguém duvida que daqui a menos de duas décadas seja provavelmente o

primeiro parceiro de ambos. Se isso é importante para nós, também parece ser importante

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 22

para o mundo”. Esta previsão de Carlos Lopes, ficou ultrapassada em pouco mais de dois

anos. A China já é a primeira parceira comercial do Brasil e da África.

Apesar do esforço brasileiro dos anos 70 para a África, quando criou linhas de crédito,

incentivou exportações, facilitou estabelecimento de ligações aéreas e marítimas, criou

intercâmbios culturais, e ainda, quando iniciativas privadas amplificaram o relacionamento, e

toda uma linha de ações culturais, os “ africanos não estavam seguros de que o interesse

brasileiro tivesse emoção.” (Lopes, 2007)

A depressão econômica provocada pelo ajuste estrutural, e a crise de governabilidade

conseqüente, pode explicar parcialmente os conflitos na África dos anos 80-90. Entretanto,

foi sobretudo o fim do controle indireto oferecido pela guerra fria que permitiu a atores infra-

nacionais contestar os poderes estabelecidos centralmente, agora sem proteção. A

insegurança passou a ser a primeira preocupação da maioria dos africanos.

O final do século

Na década de 80, os preços do café, do cacau, do algodão e do chá, principais produtos de

exportação da África Subsaariana, caíram 50%. Nesse mesmo período, reduziu-se em 50% o

investimento em capital (em base per capita), acrescido da pressão da dívida externa. A

política de ajustamento da economia transformou-se em desajustamento da vida das

populações.

Entre 1980 e 1989, foram aplicados 241 programas de ajustamento estrutural, que se tornaram

a ideologia do desenvolvimento para os países africanos sul-saarianos. Apesar do total

cumprimento do Programa de Ajustamento Estrutural do FMI, os seus resultados foram

dramáticos, a acumulação de capital tornou-se mais lenta na maioria dos países; o

investimento público foi reduzido drasticamente; o investimento estrangeiro estagnou em

níveis baixos; a cota da produção industrial no PIB só subiu em seis países entre 1982 e

1988; e só seis países aumentaram as exportações em mais de 5%.

Com isso, deduz-se que, apesar de os países terem aplicado todas as medidas propostas,

os resultados para eles não foram encorajadores. O objetivo central não era melhorar o nível

de vida das populações, dotando-as de uma economia “saudável”, mas sim fazer que não

necessitassem mais dos recursos externos e ainda concorressem para o envio de fluxos

monetários para os Estados Unidos, em termos globais.

Como conseqüência, a fome alastrou-se, o desemprego aumentou, a desorganização social

atingiu as aldeias mais frágeis, enfim, a crise infiltrou-se por toda parte. E, mesmo assim, o

FMI e o Banco Mundial se tornaram recebedores líquidos de recursos da África sul-saariana.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 23

Na década de 80, o FMI recebeu transferência líquida durante mais de sete anos, com

saldos positivos.

Foi nessa base, para comprimir as despesas públicas, que a maioria das empresas estatais

africanas fechou, foi cedida ou privatizada. E também se realizaram reformas na sua gestão

e no relacionamento com os organismos do Estado.

Nesse quadro, os parceiros econômicos do continente se afastaram. O investimento externo

quase não existiu. O comércio externo, mesmo para matérias primas, foi significativamente

reduzido, um paradoxo já que a liberalização proposta pelo ajuste estrutural prometia o

contrário.

Em 1992, o PNB da África Sul-saariana era menos importante que a sua dívida externa (280

bilhões de dólares), e o serviço da dívida correspondia a 32% das suas exportações (10,2

bilhões de dólares). A África Sul-saariana (à exceção da África do Sul) tinha um PIB igual ao

da Bélgica e era responsável por menos de 2% do comércio internacional.

“A África chegou à última década do século passado com poucos amigos e muitos

problemas.(...) ���Enquanto o Brasil viveu seu período de crescimento, parecia começar a

dar importância à África. Quando a crise o assolou, no entanto, depressa os críticos dessas

‘aventuras africanas’ entraram em cena para apelar para a concentração das relações com

os países que ‘valiam à pena’”. (Lopes, 2007)

O início de século

Mas a África começou bem o século XXI. O crescimento em torno de 2,4% do PIB nos anos

90 deu lugar a um aumento para 4% anuais entre 2000 e 2004, tendo ultrapassado os 4%

em 2005. A proporção da África na produção econômica mundial cresceu 5,5%, mais do que

qualquer membro da OCDE. A inflação média no continente é de um dígito, e em mais de 30

países está abaixo dos 5%.

O crescimento do IED (Investimento Externo Direto) com destino africano cresceu 200%,

entre 2000 e 2005 (de 7 a 23 bilhões de dólares). A bolsa de valores de Johannesburg, para

espanto de muitos, tem capitalização superior à da Bovespa e à de Xangai. Outro fator

determinante para atrair o financiamento externo tem sido a redução do peso da dívida,

parcialmente perdoada ou eliminada: o maior devedor africano, a Nigéria, pagou toda a sua

dívida.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 24

A África, neste início de milênio, abre-se enormemente às possibilidades de investimento, e

apresenta juntamente carências básicas fundamentais a serem ultrapassadas, econômica e

socialmente.

Na área comercial as exportações africanas cresceram 25% em média nos últimos três

anos, uma performance igual à da China, a ser comparada aos 14% do resto dos países do

Sul.

A evolução econômica foi acompanhada da redução dos conflitos violentos no continente,

que passaram de 15 a praticamente três: Darfur (e suas extensões no Chade e na

República Centro-Africana), Somália e pequenos resíduos nos Grandes Lagos (Congo

oriental, Burundi e norte de Uganda). Embora haja conflitos não resolvidos no Saara

Ocidental, na Costa do Marfim, no delta do Níger, e na fronteira entre a Etiópia e Eritréia.

A melhoria da segurança também é evidenciada pela evolução positiva dos indicadores de

criminalidade, delinqüência e proliferação de armas leves. Também a reforma da

Organização de Unidade Africana em União Africana teve um impacto positivo na

coordenação dos esforços africanos para a manutenção da paz.

Os amigos da África

Hoje, os protagonistas externos na África, à procura de matérias primas, são a China e a

Índia. Os Estados Unidos da America buscam novas fontes de energia. Porém, o principal

investidor no continente é a África do Sul. Da agricultura à indústria, da mineração às novas

tecnologias.

“A China não esconde o seu apetite pelas matérias primas africanas. O benefício principal

do crescimento chinês tem sido o aumento da procura de certos insumos básicos ao nível

mundial. A China jogou os preços de alimentos e matérias primas, como o petróleo, o ferro e

o manganês, nas alturas. A China é o principal importador mundial de algodão, cobre, soja e

o quarto maior de petróleo. O crescimento da demanda chinesa em cobre e soja é de 50%

anualmente, de petróleo cerca de 10%, o que é gigantesco.” (Lopes, 2007)

Não é, pois, de admirar que a China se tenha tornado um parceiro indispensável para a

África, e para o Brasil. A África vê na China mais do que um mero comprador: obteve ainda

ajuda e investimento. A China tem participado no IED à África com cerca de 1 bilhão de

dólares anuais, desde 2004, e começa a ter um peso mais importante que as instituições de

Bretton Woods, nas decisões africanas.

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 25

Nesse quadro de conjuntura internacional, a chegada ao poder do Presidente Lula

representou uma nova etapa nas relações com a África. Os objetivos estratégicos

apresentados: o reconhecimento do problema racial no Brasil e uma política externa

privilegiando a parceria estratégica com o Sul, tiveram um enorme impacto no continente

africano. Empresas de grande porte como a Petrobras, a Odebrecht e a Companhia do Vale

do Rio Doce aumentaram sua presença no continente, bem como um conjunto de

empresas de porte médio começaram a se instalar na África, ao lado das ações culturais e

educacionais, e das representações diplomáticas, que se multiplicam.

Entretanto, sabe-se que estes indicadores de crescimento das relações do Brasil com a

África no Governo Lula, embora importantes, são relativamente modestos quando

comparados ao esforço chinês, neste momento. A ajuda chinesa pode não ser inovadora,

mas é a mais flexível que se conhece. A China busca no Brasil o mesmo que na África:

alimentos, nomeadamente soja e minérios, ferro em especial, e em troca exporta produtos

manufaturados para o Brasil.

O Brasil concorre com a China, mais do que outros países latino-americanos, mas o

potencial de crescimento é ainda baseado em produtos de baixo valor agregado. Os

caminhos buscados pelo Brasil, quer em relação à África, e à própria China, são os de

romper o potencial de crescimento baseados em produtos de pouco valor agregado, para

fortalecer as exportações de alto valor agregado e constituindo-se como investidor industrial

e nas novas tecnologias.

O desafio africano ao Brasil [e ao PT]

O caminho em termos de política externa para África, vem, assim, sendo aprimorados na

sua vinculação a um projeto estratégico nacional de longo prazo. É premente a criação de

instituições de pesquisa e estudo sobre o continente aptas a formular propostas de políticas

e criticar as ações empreendidas pelo Governo, [veja a respeito, matéria da Folha de São

Paulo de 25/01/2010]; assim como, o redesenho dos instrumentos de ação, incluindo a

agência de cooperação, para que esta passe a ter ampla articulação com a sociedade

brasileira e eficiência no lado de lá; e, consequentemente, pela atribuição e garantia pelo

Estado dos recursos consistentes necessários para a empreitada.

Por outro lado, nesse contexto, o PT aprofunda as ações de relacionamento com os partidos

e governos africanos, buscando laços de continuidade, como apontam os seus programas.

A questão de Carlos Lopes, de que “O Brasil, (...) tem de decidir de uma vez se o seu

relacionamento com a África vai-se pautar pela ‘dívida de solidariedade’, na expressão feliz

A Visão do Brasil sobre a África por Beluce Bellucci 26

do Presidente Lula, ou pelo vaivém das oportunidades”, vem sendo respondida na reversão

da tendência das décadas anteriores, marcada por iniciativas não sustentadas, sabendo-se

que o capital emotivo, que nos é favorável, poderia desaparecer ao se notar de que o Brasil

vivesse de oportunidades.

A percepção que os africanos têm sobre os chineses, de que “são parceiros de longo prazo,

presentes nos momentos difíceis, que não impõem o que fazer, que não se imiscuem nos

processos políticos internos e que são totalmente previsíveis no plano externo”, é o caminho

perseguido.

O preparação do PT frente a África é característica sua no cenário político nacional. O

Brasil, e o PT, já despertaram para a África, estando agora trilhando as sendas para garantir

a sua intensidade, regularidade e visão estratégica, como fizeram a China e o PCCh, nas

últimas décadas.

Para finalizar, e ir além do complemento e competição comercial-industrial, as relações do

Brasil e da China com a África, à luz da cooperação, da amizade e da paz, deverão avançar

por parcerias nas áreas econômicas, sociais e culturais. Enquanto se consolidam as

sociedades nos grandes investimentos nos setores econômicos, industriais, tecnológicos,

agrícolas ou financeiro, o esporte e a educação podem cumprir um excelente papel. A título

de exemplo, poderíamos avançar muito rapidamente com parcerias entre chineses,

brasileiros e africanos:

�(a) No desenvolvimento de estudos e pesquisa nas áreas das ciências sociais, política e

história, em temas acordados com centros de estudos africanos, como o Codesria

(Conselho para o desenvolvimento da pesquisa das ciências sociais na África, com sede no

Senegal), ou universidades;

(b) Na criação de torneios entre equipes chinesas, brasileiras e africanas em voleibol,

basquetebol e futebol, realizados em países africanos, no Brasil e na China. Ou ainda, na

parcerias em programas esportivos, como o aparelhamento e a formação esportiva, que o

Brasil e a China ofereceriam em conjunto, de forma regular.

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6. Bibliografia

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