UMA MERA QUESTO DE SUBJETIVIDADE

O que o mundo psicologicamente falando, afinal? Metafisicamente se diz que tudo aquilo que compe a realidade. Subjetivamente tambm se pode definir como o somatrio da experincia humana. Alis, o que subjetividade? Simplifiquemos a questo entendendo a subjetividade como aquilo que ntimo do indivduo humano, isto , suas inquietaes, suas emoes, seus pensamentos, valores, crenas, lembranas, sonhos, fantasias e sentimentos. Tudo impalpvel, contudo vvido e real para o sujeito que os carrega, e neste sentido a subjetividade particular e nica a cada indivduo. A subjetividade, diz o filsofo e psicanalista francs Flix Guattari, se desenvolve alm do sujeito (no socius) e aqum do sujeito (pela lgica dos afetos e do processo primrio de pensamento). J para os gregos antigos a substncia da alma, enquanto para o cogito cartesiano "penso, logo sou". A subjetividade no o mundo (interno), por excelncia, da igualdade, mas sim das diferenas e das diversidades, visto a natureza psquica da singularidade de cada subjetividade. Um dos mais subjetivos textos literrios escrito, Ulysses, de James Joyce, que o diga. Um livro praticamente ininteligivel para muitos, principalmente devido ao fluxo de conscincia de forma desagregada do personagem Leopold Bloom, onde a livre associao de ideias e fragmentao de pensamentos revela a mxima subjetividade ali contida.

Em linguagem cinematogrfica talvez o melhor exemplo seja Persona de Ingmar Bergman, cuja mutismo em relao aos que rodeiam a personagem Elizabeth Vogler absoluta e cuja voz de quem se prope a falar por ela a da enfermeira Alma, encarregada de acompanh-la e tratar dela. Literalmente, Elizabeth se cala, Alma fala. Pequenos traos singulares vo aos poucos desnudando a subjetividade de Elizabeth.

O que chamamos de mente humana, mais precisamente psiquismo, usa os cinco sentidos para criar "modelos" mentais e cognitivos de realidade. Esta espcie de construo atravs da experincia sensrio-perceptiva-intelectiva se processa por meio de camadas que convencionamos chamar de conscientes e inconscientes. Na gnese do psiquismo humano vai se constituindo o indivduo, ou melhor chamando a pessoa que cada um .

A definio de subjetividade totalmente subjetiva. Ser? Ou ser que a definio de subjetividade a objetivao do que subjetivo? Confundo-me neste momento. Agora pareo compreender Fernando Pessoa quando em seu poema Adiamento diz: "a persistncia confusa da minha subjetividade objetiva". Seja l como for reconheo que a subjetividade est intrinsecamente relacionada a formas de conscincia, ou seja, o eu, a pessoa e sua identidade de ser; formas estas formadas pelo vivenciar psquico da vida e do mundo circundante. Segundo pensa o poeta e filsofo francs Gaston Bachelard, os smbolos da vida ntima relacionam-se com os smbolos da vida objetiva. A escritora inglesa Virginia Woolf mestra em nos mostrar isso. Em seus textos desaparece-se a figura da terceira pessoa, isto , do narrador. O que lemos o reflexo da subjetividade do personagem. Em sua escrita o pensamento quem de fato o personagem. o texto flui mergulhado em pensamentos, lembranas, sentimentos... Em sua obra literria Passeio ao Farol a trama no est centrada no mundo real e externo dos objetos postos em cena, mas sim na percepo e seus significados.

Se a subjetividade de cada um pessoal e nica, por sua vez ela uma sntese do particular com o universal, visto a individualidade se edificar na relao do interno psquico com o externo (mundo fsico, social, cultural e histrico). O particular contm em si algo do universal, afinal o ser humano, todo ser humano, est inserido em um contexto histrico-social. A pessoa que somos uma constante dialtica subjetivao/objetivao. O recente filme Boyhood, de Richard Linklater, acompanha o menino Mason (Ellar Coltrane) ao longo de 12 anos de sua vida, da infncia adolescncia. O amadurecimento de Mason visto em um resumo de quase trs horas flmicas em meio a inmeros conflitos familiares. O eu do personagem e a passagem do tempo sobre ele. A subjetividade do eu permanece e se modifica ao longo dos anos.Em ns, o eu de hoje muitas vezes dialoga com o eu de ontem.

Continuo sendo, mas no sou mais o mesmo. No sou outra pessoa. Sou a mesma pessoa. Onde comecei no sei ao certo. Onde terminarei totalmente incerto. Transito assim entre duas incertezas. Neste espao a mim reservado viver multipliquei-me e me metamorfose-ei. Como Fernando Pessoa tambm sinto em mim crenas que no tenho. Qual a origem da maioria dos pensamentos que me habitam? A minha singularidade ao todo no me pertence.

A realidade vivida por si mesma multifacetada. So vrios seus ngulos. No podemos ser, pois, internamente um s, embora sejamos uma nica pessoa dentro do nosso corpo. Somos, talvez, uma multiplicidade de eus, de mscaras, de personas. Um conjunto de ncleos a nos modelar. No conjunto deste somatrio nos acreditamos ser quem somos, assim como nos acreditamos ser mais do que os outros esperam que sejamos, e somos realmente quem somos.

Estou agora em um ponto no presente texto em que posso considerar que a expresso da subjetividade nos remete sempre ao pessoal de cada um, o seu ponto de vista sobre o mundo, a sua verdade naquele instante da vida. O que pertence ao sujeito psicologicamente falando somente a ele pertence, a mais ningum. Confuso, conflituoso e mutante, o subjetivo do incio ao fim uma aprendizagem. Aprendemos a tratar com o mundo a partir do que entendemos como mundo. "O mundo exterior no existe sem o meu pens-lo", escreve Ortega Y Gasset. E complementa: "mas o mundo exterior no o meu pensamento". O mundo para mim - afirma o pensador espanhol - o que para mim ou perante a mim. No h, para Gasset, subjetividade sem objeto. E por isso conclui: "eu sou quem agora o v, ele o que agora eu vejo". Ou, em melhores palavras, cada um o que para o mundo, e o mundo o que para cada um.

A realidade nos causa impresses. O movimento artstico conhecido como Impressionismo mostra-nos diretamente isso. No Impressionismo (arte em que o sensorial e a subjetividade so usados para a captao do real) cria-se a representao do mundo exterior a partir do mundo interior. Em busca do efeito ptico da luminosidade e suas impresses ilusrias, a retrao da realidade no mais uma mera reproduo quase fidedigna da mesma, mas sim o que a verdade visvel provoca na sensibilidade do artista. Vide Monet no quadro ao lado.

Volto, portanto, a pergunta que abre este texto. Sei que no a respondi, mas tentei, venho tentando. No necessariamente para escrever sobre o tema, porm para mim. Para entender o mundo em que vivo, o mundo em que penso estar vivendo, o mundo onde respiro oxignio, experincias, sabores e dessabores. O mundo que deixar de existir quando eu no mais existir, embora a realidade persista antes e alm de mim. Quando morrer meu mundo (subjetivo) morrer comigo. O que ficar esta triste realidade de um mundo sem mim. Decididamente isto UMA MERA QUESTO DE SUBJETIVIDADE.