Uma Nova Agenda Para a Arquitetura

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Nas últimas páginas do livro, Venturi inicia uma análise do urbanismo norte-americano a partir da Main Street de cidade pequena. A sua atitude com relação ao "corredor" co- mercial das autoestradas, a Strip, e a seu simbolismo seria desenvolvida em Aprendendo com Las Vegas (escrito em coautoria com Denise Scott Brown e Steven Izenour, em 1972), que insiste na aceitação e adaptação às condições dadas (cap. 6). 1. Robert Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture. Nova York: Museum of Modem Art, 1966. ROBERTVENTURI Complexidade e contradição em arquitetura Trechos selecionados de um livro em preparação A COMPLEXIDADE VERSUS 0 PITORESCO A complexidade deve ser uma constante na arquitetura. Ela deve estar tanto na forma como na função. A complexidade que se limita exclusivamente ao programa alimenta um forma- lismo de falsa simplicidade; a complexidade que se refere meramente à expressão tende a um formalismo de multiplicidade - de um lado, supersimplificação em vez de simplicidade, de outro, mero pitoresco em vez de complexidade. Ninguém mais discute se o primado cabe à forma ou à função, mas é impossível ignorar sua interdependência. Os arquitetos modernos ortodoxos reconheceram a complexidade, mas geralmente o fizeram de modo insuficiente ou inconsistente. Na tentativa de romper com a tradição e começar tudo de novo, eles idealizaram o primitivo e elementar à custa da diversidade e da sofisticação. Como participantes de um movimento revolucionário, aplaudiram a novidade da função moderna em detrimento de sua complexidade. Na qualidade de reformadores, trabalharam puritanamente em prol da separação e exclusão de elemen- tos em vez da inclusão de elementos diversos e de suas justaposições. A complexidade

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  • Nas ltimas pginas do livro, Venturi inicia uma anlise do urbanismo norte-americano

    a partir da Main Street de cidade pequena. A sua atitude com relao ao "corredor" co-

    mercial das autoestradas, a Strip, e a seu simbolismo seria desenvolvida em Aprendendo

    com Las Vegas (escrito em coautoria com Denise Scott Brown e Steven Izenour, em

    1972), que insiste na aceitao e adaptao s condies dadas (cap. 6).

    1. Robert Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture. Nova York: Museum of Modem Art, 1966.

    R O B E R T V E N T U R I

    Complexidade e contradio em arquitetura

    T r e c h o s s e l e c i o n a d o s d e u m l iv ro e m p r e p a r a o

    A C O M P L E X I D A D E VERSUS 0 P I T O R E S C O

    A complexidade deve ser uma constante na arquitetura. Ela deve estar tanto na forma como na funo. A complexidade que se limita exclusivamente ao programa alimenta um forma-lismo de falsa simplicidade; a complexidade que se refere meramente expresso tende a um formalismo de multiplicidade - de um lado, supersimplificao em vez de simplicidade, de outro, mero pitoresco em vez de complexidade. Ningum mais discute se o primado cabe forma ou funo, mas impossvel ignorar sua interdependncia.

    Os arquitetos modernos ortodoxos reconheceram a complexidade, mas geralmente o fizeram de modo insuficiente ou inconsistente. Na tentativa de romper com a tradio e comear tudo de novo, eles idealizaram o primitivo e elementar custa da diversidade e da sofisticao. Como participantes de um movimento revolucionrio, aplaudiram a novidade da funo moderna em detrimento de sua complexidade. Na qualidade de reformadores, trabalharam puritanamente em prol da separao e excluso de elemen-tos em vez da incluso de elementos diversos e de suas justaposies. A complexidade

  • do programa muitas vezes coincidiu com uma simplicidade de forma, tal como nas "grandes formas primrias" de Le Corbusier,"que so ntidas [...] e sem ambigidades". A arquitetura moderna, com raras excees, evitou a ambigidade. Mais recentemente, argumentos de racionalidade em favor da simplicidade na arquitetura - mais sutis do que os argumentos iniciais da arquitetura moderna - encontram-se entre as diversas derivaes do esplndido paradoxo de Mies de que "menos mais". Paul Rudolph falou recentemente sobre as implicaes do ponto de vista de Mies:

    Nunca ser possvel resolver todos os problemas. Na verdade, uma caracterstica do sculo xx o fato de que os arquitetos so altamente seletivos ao elegerem os proble-mas que querem resolver. Mies, por exemplo, faz edifcios maravilhosos simplesmen-te porque ignora muitos aspectos de uma construo. Se ele resolvesse mais proble-mas, seus edifcios seriam muito menos poderosos.1

    A doutrina do "menos mais" deplora a complexidade e justifica a excluso em nome de finalidades expressivas. Essa doutrina, de fato, permite que o artista seja "altamente seletivo na determinao de quais problemas [ele quer] resolver". Mas, se o arquiteto deve estar "integralmente comprometido com seu modo particular de ver o universo"2

    - isto , se ele deve ser seletivo no modo de tratar os problemas - , no deve selecionar quais problemas vai examinar. Ele pode excluir problemas importantes sob o risco de isolar a arquitetura da experincia de vida e das necessidades da sociedade. E, se alguns de seus problemas se mostrarem insolveis no quadro de uma arquitetura includente, tambm isso ele poder exprimir. H espao na arquitetura para o fragmento, a con-tradio, a improvisao e as tenses que os acompanham.

    Os primorosos pavilhes de Mies tiveram realmente valiosas implicaes para a arquitetura, mas no seria a sua seletividade de contedo e linguagem uma limitao e uma fora ao mesmo tempo? Tenho dvidas acerca das analogias com os pavilhes, principalmente os japoneses, em nossa arquitetura residencial recente. Essa simplici-dade forada supersimplificao. A Wiley House de [Philip] Johnson, por exemplo, separa e articula as "funes ntimas" da casa na parte inferior do prdio e a funo social, aberta, na parte superior, mas o edifcio resvala para o diagramtico. Acaba se transformando em uma dualidade rida - uma teoria abstrata do "ou isso ou aquilo" -antes de ser uma casa. Onde no h lugar para a simplicidade, o resultado o simplismo. A simplificao espalhafatosa indica uma arquitetura frouxa. Menos um tdio.

    O reconhecimento da complexidade e da contradio na arquitetura no nega o que [Louis] Kahn chamou de "desejo de simplicidade". Mas a simplicidade esttica, uma sa-tisfao para o esprito quando legtima e profunda, nasce de uma complexidade interior. A simplicidade visual do templo drico fruto das suas famosas sutilezas e da preciso de sua geometria distorcida. Robertson chamou a ateno para as contradies e tenses

  • implcitas na posio singular dos trglifos de canto na ponta da arquitrave e no desvio das colunas em relao ao centro, alargando, em conseqncia, a mtopa final.3 A apa-rente simplicidade do templo drico resultaria de uma complexidade real.

    Kenneth Burke referiu-se supersimplificao como um processo vlido na anlise: "Ns supersimplifkamos um acontecimento quando o caracterizamos do ponto de vista de um determinado interesse".4 Mas a arte no procede desse jeito. Os crticos literrios tm destacado a complexidade da linguagem da arte, que, em essncia, to pouco sim-ples quanto seu contedo. Outros caracterizaram a interpretao de uma obra de arte como um jogo consciente entre a percepo do que ela parece ser e do que ela . O seu sentido preciso est nas discrepncias e contradies de uma justaposio complexa.

    J me referi a algumas justificativas da simplicidade nos primrdios da arquitetura moderna - sua clareza exagerada como uma tcnica de propaganda - , sua estreiteza excludente, quase puritana, como um instrumento de reforma. Mas uma outra razo que as coisas eram mais simples naquela poca. As solues eram mais bvias, se no mais fceis de atingir. O obstinado Wright cresceu ouvindo o mote "a verdade contra o mundo". Esse lema no mais nos parece adequado e a atitude que adotamos tem mais a ver com a que August Hecksher assim descreveu:

    A passagem de uma viso da vida como algo essencialmente simples e disciplinado para a viso de algo complexo e irnico uma experincia pela qual todos passam num processo de amadurecimento. Mas certas pocas estimulam esse desenvolvimen-to; nelas, a perspectiva paradoxal ou dramtica colore todo o panorama intelectual [...]. O racionalismo nasceu em meio simplicidade e ordem, mas se mostra inadequado em um perodo de convulso. Nesse momento, preciso criar o equilbrio a partir das oposies. A paz interior que os homens adquirem deve representar uma tenso entre as contradies e as incertezas. [...] Uma sensibilidade especial para o paradoxo permite que coisas aparentemente dessemelhantes existam lado a lado, a sua prpria incongruncia sugerindo uma espcie de verdade.5

    Edmund W. Sinnot assim referiu-se complexidade da evoluo orgnica:

    A evoluo foi, antes de tudo, um processo de aumento de tamanho e de complexidade. A seleo natural, assim creio, no deu importncia especial forma enquanto tal, mas sim crescente diferenciao e diviso do trabalho que torna um organismo mais efi-ciente e capaz de sobreviver. Esse processo teve como resultado necessrio uma maior elaborao da forma, as leis da matria e da energia permanecendo o que so.6

    Insisto em afirmar que uma arquitetura da complexidade e da contradio no o mesmo que o pitoresco ou o expressionismo deliberado. Se sou contra a pureza, tambm sou

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  • contra o pitoresco. A falsa complexidade conta hoje com a falsa simplicidade e encontra paralelo em outra arquitetura usual, chamada por um dos seus integrantes de serena. Essa reao um novo formalismo, muitas vezes to dissociado da experincia e do programa quanto o culto simplicidade. Mesmo no nvel do detalhe, no se compara fluncia e exuberncia de tcnica, como no rendilhado de pedra do gtico tardio ou no entrelaado maneirista do Norte, legitimamente ostentados em sua arquitetura.

    Nossa melhor arquitetura muitas vezes rejeitou a simplicidade atravs da reduo de modo a promover a complexidade no todo. As obras de [Alvar] Aalto, Le Corbusier (que, s vezes, menospreza os prprios escritos polmicos) e s vezes as de [Frank Lloyd] Wright so exemplos disso. Mas as caractersticas de complexidade e contradio em seus trabalhos so freqentemente ignoradas ou mal compreendidas. Crticos de Aalto, por exemplo, nele preferiram outras caractersticas, como a sensibilidade para os materiais naturais e o esmerado detalhamento. Eu no acho pitoresca a igreja de Aalto em Vvokenniska, tampouco um exemplo legtimo de quase expressionismo a Igreja da Autostrada, de Giovanni Michellucci. A complexidade de Aalto parte integrante do programa e da estrutura do todo, e no um artifcio expressivo justificado unicamente pelo desejo de expressar alguma coisa. A complexidade deve ser no mnimo o resultado do programa mais do que da vontade do autor. O edifcio complexo cria um todo vibrante a despeito de sua variedade.

    1. Paul Rudolph, "Rudolph", Perspecta 7,1961, p. 51.

    2. Ibid.,p. 51.

    3. D.S. Robertson, Greek and Roman Architecture. Cambridge: 1959.

    4. Kenneth Burke, Permanence and Change. Los Altos: Hermes Publications, 1954.

    5. August Heckscher, The Public Happiness. Nova York: 1962, p. 102.

    6. Edmund W. Sinnott, The Problem of Organic Fortn. New Haven: 1963, p. 195.

    [P E T E R E I S E N M A N 0 P S - F U N C I O I M A L I S M O Neste editorial para a revista Oppositions, rgo do Institute of Architecture and Urban

    Studies (IAUS), do qual era diretor na poca, Peter Eisenman discorda do termo "ps-

    modernismo", alegando nunca ter havido uma arquitetura moderna e, portanto, tor-

    nando a arquitetura ps-moderna uma impossibilidade. Eisenman baseia sua inusitada

    declarao no argumento de que a relao entre forma e funo uma caracterstica

    definidora da arquitetura desde o Renascimento. A arquitetura humanista procurou

    estabelecer um equilbrio entre a distribuio programtica e a "articulao formal de

    temas ideais", tambm chamada de tipo (cap. 5). No entanto, a industrializao introduziu fun-es novas e de tal complexidade que as solues tipolgicas se tornaram inadequadas para

  • p e t e r e i s e n m a n

    O ps-funcionalismo O establishment crtico no campo da arquitetura nos disse que entramos na era do "ps-modernismo". E o tom pelo qual a notcia nos fornecida invariavelmente o de alvio, semelhante ao que acompanha a advertncia a um jovem de que ele no mais um adolescente. Indcios dessa suposta mudana so dois eventos to diferentes quanto as exposies "Architettura Razionale", na Trienal de Milo de 1973, e "cole des Beaux-Arts", no Museu de Arte Moderna de Nova York em 1975. A primeira, que partiu do pressuposto de que o modernismo era um funcionalismo ultrapassado, declarou que a origem de toda arquitetura s poderia ser encontrada dentro de si mesma, se ela fosse encarada em sua condio de disciplina pura ou autnoma. A segunda, que via na arquitetura moderna um formalismo obsessivo, converteu-se na afirmao implcita de que o futuro reside paradoxalmente no passado, isto , na resposta peculiar funo que caracterizara a manipulao ecltica dos estilos histricos no sculo xix.

    O curioso no que esses dois diagnsticos, e as solues correspondentes, sejam mutuamente excludentes, mas antes o fato de ambos inclurem o prprio projeto da arquitetura na mesma definio: a de que seus termos continuam sendo a funo (ou programa) e a forma (ou tipo). Desse modo, a atitude que se mantm com relao arquitetura no difere significativamente da que vem sendo postulada ao longo dos cinco sculos de tradio humanista.

    As vrias teorias da arquitetura que podem ser propriamente chamadas de "huma-nistas" caracterizam-se por uma oposio dialtica: uma oscilao entre a preocupao com a distribuio interna - com o programa e o modo pelo qual ele se concretiza - e a preocupao com a articulao formal de temas ideais - , tal como se manifesta, por exemplo, no significado configuracional do projeto. Essas preocupaes foram enten-didas como dois polos de uma s e mesma experincia contnua. No interior da pr-tica humanista pr-industrial conseguiu-se preservar um equilbrio entre eles porque tanto a funo como o tipo foram investidos de uma viso idealista da relao entre o homem e o mundo objetivo. Se compararmos um htel parisiense com uma casa de campo inglesa - conforme a sugesto original de Colin Rowe - , ambas constru-es do incio do sculo xix , veremos que essa oposio est presente na interao entre a preocupao em expressar um tipo ideal e a preocupao com a proposio programtica, ainda que nos dois casos o peso das preocupaes seja diferente. No htel francs, a disposio dos aposentos obedece a uma seqncia elaborada e apre-senta uma variedade espacial proveniente de uma necessidade interna, dissimulada

  • no exterior por uma fachada rigorosa e bem proporcionada. Na casa de campo inglesa h um arranjo interno formal dos cmodos que confere ao exterior uma volumetria pitoresca. O primeiro reverencia o programa no espao interno e o tipo na fachada externa; a segunda inverte essas orientaes.

    O advento da industrializao parece ter rompido a essncia desse equilbrio. De-vido necessidade de compatibilizar problemas de natureza funcional mais complexa, principalmente no que diz respeito ao atendimento a uma clientela de massa, a arquite-tura foi se tornando uma arte cada vez mais social ou programtica. E, medida que as funes adquiriam maior complexidade, a capacidade de manifestar a forma-tipo pura foi erodindo. Basta comparar o projeto que William Kent inscreveu no concurso para a construo dos edifcios do Parlamento ingls, no qual a forma de uma villa palladiana no d conta do programa intricado, como a soluo de Charles Barry, em que a forma-tipo se subordina ao programa, e onde se pode ver um primeiro exemplo do que viria a ser conhecido como promenade architecturale. Assim, medida que, em todo o sculo xix e boa parte do sculo xx, o programa adquiria complexidade, a forma-tipo foi per-dendo importncia como objetivo realizvel e o equilbrio foi perdendo fora enquanto aspecto fundamental de toda teoria. (Le Corbusier talvez seja o nico arquiteto na his-tria recente que conseguiu combinar uma malha ideal com a promenade architecturale como materializao da interao original.)

    Nos ltimos cinqenta anos, essa reviravolta na noo de equilbrio fez com que os ar-quitetos passassem a entender o projeto como o produto da aplicao de alguma verso ex-cessivamente simplificada do preceito "a forma segue a funo". Essa situao persistiu at mesmo nos anos imediatamente posteriores Segunda Guerra Mundial, quando talvez se esperasse que ela fosse radicalmente alterada. Em fins da dcada de 1960, ainda se acredita-va que as teorias e as polmicas iniciais do movimento moderno pudessem manter viva a arquitetura. A tese principal dessa postura foi formulada pelo assim chamado funcionalis-mo revisionista ingls de Reyner Banham, Cedric Price e do grupo Archigram. Essa atitude neofuncionalista, com sua idealizao da tecnologia, fundamentou-se no mesmo positivis-mo tico e na mesma neutralidade esttica que predominou nas polmicas do pr-guerra. No entanto, a crescente substituio de critrios morais por fundamentos de natureza mais formal gerou uma situao que hoje podemos considerar como a origem de um impasse funcionalista, uma vez que a principal justificativa terica para as composies formais era um imperativo moral que se tornou intil na experincia contempornea. A percepo de um positivismo fora do lugar caracteriza determinadas interpretaes atuais sobre o fracasso do humanismo num contexto cultural mais amplo.

    O impasse inclui outro aspecto mais complexo. No se trata apenas do fato de po-dermos reconhecer no funcionalismo uma espcie de positivismo; que, tal como o positivismo, o funcionalismo tambm pode ser visto como descendente de uma viso idealista da realidade. De fato, o funcionalismo, no importa quais sejam as suas pre-

  • tenses, levou adiante a ambio idealista de produzir arquitetura como um processo eticamente constitudo de "doao de forma". Mas, por revestir essa ambio idealista com as formas radicalmente desnudas da produo tecnolgica, o funcionalismo deu a impresso de representar uma ruptura com o passado pr-industrial. Na realidade, o funcionalismo nada mais que uma fase tardia do humanismo, no uma alternativa a ele. E, nesse sentido, no se pode continuar a v-lo como uma manifestao direta do que se chamou de "sensibilidade modernista".

    Entretanto, as exposies da Trienal e da Beaux-Arts levam a crer que o problema estaria em outro lugar - no tanto no funcionalismo em si, mas na natureza da assim chamada sensibilidade modernista, donde o ressurgimento do neoclassicismo e do academicismo Beaux-Arts como pretensos substitutos para um modernismo persis-tente, ainda que mal compreendido. verdade que, em algum momento do sculo xix, ocorreu uma virada crucial no pensamento ocidental - que podemos definir como a virada do humanismo ao modernismo. Mas, na maior parte das vezes, em sua obstinada adeso aos princpios da funo, a arquitetura no participou nem compreendeu os as-pectos fundamentais dessa mudana. Ao que parece, a diferena latente entre a natureza das teorias humanista e modernista passou despercebida para esses que hoje falam em ecletismo, ps-modernismo ou neofuncionalismo. E a diferena no foi notada exata-mente porque essas pessoas veem no modernismo uma mera expresso estilstica do funcionalismo e entendem o funcionalismo como uma proposta terica fundamental na arquitetura. Na verdade, a idia de modernismo rasgou uma fenda nessas atitudes, ao mostrar que a dialtica forma e funo tem uma base cultural.

    Em sntese, a sensibilidade modernista tem a ver com uma nova atitude mental em relao aos artefatos do mundo fsico. Essa mudana se manifestou no s na es-ttica, mas tambm se expressou na tecnologia, na filosofia e na sociedade; em suma, exprimiu-se em uma nova atitude cultural. Esse abandono das atitudes humanistas que prevaleceram nas sociedades ocidentais por mais de quatrocentos anos ocorreu em momentos distintos do sculo xix e em reas to diversas quanto a matemtica, a msica, a pintura, a literatura, o cinema e a fotografia. Revela-se na pintura abstrata, no objetiva de [Casimir] Malivitch e de [Piet] Mondrian; na escrita atemporal e no vernacular de [James] Joyce e de [Guillaume] Appolinaire; nas composies ato-nais e politonais de [Arnold] Schnberg e [Anton] Webern; no cinema no narrativo de [Hans] Richter e de [Viking] Eggeling.

    Abstrao, atonalidade e atemporalidade, no entanto, so apenas manifestaes es-tilsticas do modernismo, no a sua natureza essencial. Embora no seja este o lugar para desenvolver uma teoria do modernismo, ou mesmo para expor os aspectos dessa teoria que j se firmaram na bibliografia de outras disciplinas humansticas, cabe di-zer que os sintomas indicados sugerem um deslocamento do homem do centro de seu mundo. Ele no mais visto com um agente originante. Os objetos so considerados

  • como idias independentes do Homem. Nesse sentido, o homem uma funo discur-siva em meio a sistemas de linguagem complexos e preexistentes, que ele testemunha mas no constitui. Como afirmou [Claude] Lvi-Strauss,"a linguagem, uma totalizao no reflexiva, a razo humana que tem a sua prpria racionalidade inteiramente des-conhecida pelo Homem". essa condio de deslocamento que d origem ao projeto cuja autoria no mais pode responder por um desenvolvimento linear, com um "come-o" e um "fim" - donde a ascenso do atemporal - , nem pela inveno da forma - donde a abstrao como uma mediao entre sistemas de signos preexistentes.

    O modernismo, como uma sensibilidade baseada no deslocamento fundamental do homem, representa o que Michel Foucault definiu como uma nova pistme. Deri-vado de uma postura no humanista com respeito s relaes entre um indivduo e seu ambiente fsico, o modernismo rompe com o passado histrico, quer com as concep-es do homem como sujeito, quer com o positivismo tico de forma e funo. Por isso, no pode ser associado ao funcionalismo. por esse motivo que o modernismo no foi at o presente elaborado arquitetonicamente.

    Mas, hoje em dia, h uma evidente necessidade de fazer-se uma investigao te-rica sobre as implicaes bsicas do modernismo (em oposio ao estilo moderno) na arquitetura. Em seu editorial para a revista Oppositions 5, intitulado "Neo-Functionalism" [O neofuncionalismo], Mario Gandelsonas reconhece tal necessidade. Mas nesse arti-go ele simplesmente afirma que "as complexas contradies" inerentes ao funcionalis-mo - como o neorrealismo e o neorracionalismo - tornam indispensvel para qualquer nova dialtica terica incluir alguma forma de neofuncionalismo. E, com isso, continua recusando-se a admitir que a oposio entre forma e funo no necessariamente ine-rente a toda teoria da arquitetura, o que o leva a desconhecer a diferena crucial entre modernismo e humanismo. Por contraste, o que vem sendo chamado de ps-funciona-lismo comea como uma atitude que reconhece no modernismo uma nova e distinta sensibilidade. Na arquitetura, a melhor forma de entender essa nova atitude v-la como uma base terica que se ocupa do que se poderia chamar de uma dialtica modernista, contrria antiga oposio humanista (isto , funcionalista) entre forma e funo.

    Essa nova base terica transforma o equilbrio humanista entre forma e funo numa relao dialtica inerente evoluo da prpria forma. A melhor maneira de des-crever essa dialtica como a coexistncia em potencial, no interior de qualquer forma, de duas tendncias no seqenciais e no corroborantes. A primeira delas supe que a forma arquitetnica uma transformao identificvel de algum slido geomtrico ou platnico preexistente. Nesse caso, a forma geralmente entendida por meio de uma srie de registros projetados de modo a lembrar uma configurao geomtrica mais simples. Essa tendncia , sem dvida, uma relquia da teoria humanista. A ela, porm, acrescentada uma segunda tendncia que concebe a forma arquitetnica de manei-ra atemporal, decompositiva, como algo que foi simplificado a partir de um conjunto

  • preexistente de entidades espaciais inespecficas. Nesse segundo caso, a forma compreendida como uma srie de fragmentos - sinais sem significado dependentes de uma condio mais bsica, ou referidos a ela. A primeira tendncia, considerada em si mesma, uma posio reducionista que pressupe a existncia de uma unidade primordial como base a um s tempo tica e esttica para toda criao. A ltima em si mesma pressupe uma condio bsica de fragmentao e multiplicidade, da qual a forma resultante um estado simplificado. Juntas, no entanto, as duas tendncias consti-tuem a essncia dessa nova e moderna dialtica. Elas comeam a definir a natureza intrn-seca do objeto em si e por si, e sua capacidade de ser representado; comeam a sugerir que os pressupostos tericos do funcionalismo so, de fato, culturais e no universais.

    Portanto, o ps-funcionalismo um termo de ausncia. Ao negar o funcionalismo, sugere determinadas alternativas tericas concretas - fragmentos do pensamento exis-tente que, uma vez examinados, poderiam servir de arcabouo para o desenvolvimento de uma estrutura terica maior - , mas no se prope suprir, em si e por si, um rtulo para essa nova conscincia na arquitetura que, a meu ver, est pontencialmente diante de ns.

    ["Post-funcionalism", extrado de Oppositions 6 (Fali 1976): s. p. Cortesia do autor.]

    [M I C H A E L G R A V E S A R G U M E N T O S E M F A V O R DA A R Q U I T E T U R A F I G U R A T I V A A converso de Michael Graves, um dos famosos "Cinco Arquitetos", ao historicismo

    ps-moderno foi gradual e teve grande repercusso. Mesmo em seus projetos "bran-

    cos" (modernos), Graves j demonstrava um interesse especial pelo figurativo, isto

    , pelo potencial representativo da arquitetura. Influenciado por Le Corbusier e pelo

    cubismo analtico (principalmente do pintor Juan Gris), no surpreende o modo suges-

    tivo como Graves usou a cor em seus trabalhos anteriores a 1976-77, e mais tarde, os

    carregados fragmentos histricos. Esses interesses transparecem tanto em suas pinturas e

    cenografias como em sua arquitetura.

    No ensaio "On Reading Architecture", Mario Gandelsonas sugere que a atrao de

    Graves pela arte e arquitetura clssicas em parte seria devida maneira como ambas

    estruturam a relao da humanidade com a natureza: "pela assimilao das leis funda-

    mentais da natureza".' Os temas duradouros da arquitetura e da paisagem aparecem na

    forma de jardins clssicos idealizados que ele projetou para as reas suburbanas de Nova

    Jersey, nitidamente inspirados por sua estada na Academia Americana em Roma. Para os

    projetos "pardos" (ps-modernos) de Graves, a hierarquia espacial estabelecida por meio

    de referncias antropomrficas e cosmolgicas ao classicismo (especialmente terra e

    ao cu) muito superior ao espao contnuo e alienante do modernismo. Em uma decla-rao recente a respeito desse ensaio, Graves afirmou que "a arquitetura figurativa [...],

  • lica e ttil das junes. Esses aspectos contr ibuem para realar a qualidade potica que na

    opinio de Heidegger essencial para o habitar.

    Norberg-Schulz, levado por sua grande admirao por Robert Venturi, identifica-o

    equivocadamente com a fenomenologia, por causa do interesse recente do arquiteto na

    "parede entre o interior e o exterior". Depois de Aprendendo com Las Vegas, restam pou-

    cas dvidas de que Venturi e seus colaboradores esto mais interessados na superfcie (o

    "galpo decorado") do que em questes espaciais, como lugares delimitados.

    1. An thony Flew, A Dictionary of Philosophy, 2.ed. revisada. Nova York: St. Mart in 's Press,

    1984, p. 157.

    CHRISTiAN NORBERG-SCHULZ

    0 fenmeno do lugar Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste em "fenmenos" concretos. Compe-se de pessoas, animais, flores, rvores e florestas, pedra, terra, madeira e gua, cidades, ruas e casas, portas, janelas e moblias. E consiste no sol, na lua e nas estrelas, na passagem das nuvens, na noite e no dia, e na mudana das estaes. Mas tambm compreende fen-menos menos tangveis, como os sentimentos. Isto , o que nos "dado" o "contedo" de nossa existncia. Rilke escreveu: "Quem sabe no estamos aqui para dizer: casa, ponte, fonte, porto, jarra, rvore frutfera, janela, - no mximo, pilar, torre".1 Tudo o mais, sejam tomos e molculas, nmeros e todos os tipos de "dados", so abstraes ou ferramentas construdas para atender a outros propsitos que no a vida cotidiana. Atualmente, muito comum confundir as ferramentas com a realidade.

    As coisas concretas que constituem nosso mundo dado se inter-relacionam de modo complexo e talvez contraditrio. Alguns fenmenos, por exemplo, podem compreender outros. A floresta compe-se de rvores e a cidade feita de casas. A

    "paisagem" um fenmeno muito abrangente. De maneira geral, pode-se dizer que alguns fenmenos formam um "ambiente" para outros. Um termo concreto para fa-lar em ambiente lugar. Na linguagem comum diz-se que atos e acontecimentos tm lugar. Na verdade, no faz o menor sentido imaginar um acontecimento sem refern-cia a uma localizao. evidente que o lugar faz parte da existncia. Ento, o que se quer dizer com a palavra "lugar"? claro que nos referimos a algo mais do que uma localizao abstrata. Pensamos numa totalidade constituda de coisas concretas que

  • possuem substncia material, forma, textura e cor. Juntas, essas coisas determinam uma "qualidade ambiental" que a essncia do lugar. Em geral, um lugar dado como esse carter peculiar ou "atmosfera". Portanto, um lugar um fenmeno qualitativo

    "total", que no se pode reduzir a nenhuma de suas propriedades, como as relaes espaciais, sem que se perca de vista sua natureza concreta.

    A experincia diria nos diz, ademais, que aes diferentes exigem ambientes dife-rentes para que transcorram de modo satisfatrio. Em conseqncia disso, as cidades e as casas consistem em uma multiplicidade de lugares. claro que as teorias corren-tes da arquitetura e do planejamento levam em considerao esse fato, mas at aqui o problema tem sido tratado de modo excessivamente abstrato. Geralmente se entende o "ter lugar" num sentido quantitativo e "funcional", com implicaes que remetem ao dimensionamento e distribuio espacial. Mas as "funes" no so inter-humanas e similares em toda parte? evidente que no. Funes "similares", mesmo as mais bsicas como dormir e comer, se do de diferentes maneiras e requerem lugares que possuem propriedades diversas, de acordo com as diferentes tradies culturais e as diferentes condies ambientais. Dessa forma, a abordagem funcional deixou de fora o lugar como um "aqui" concreto com sua identidade particular.

    Sendo totalidades qualitativas de natureza complexa, os lugares no podem ser definidos por meio de conceitos analticos, "cientficos". Por uma questo de prin-cpio, a cincia "abstrai" o que dado para chegar a um conhecimento neutro e "ob-jetivo". No entanto, isso perde de vista o mundo-da-vida cotidiana, que deveria ser a verdadeira preocupao do homem em geral e dos planejadores e arquitetos em particular.2 Felizmente, h uma sada para o impasse, o mtodo chamado defenome-nologia. A fenomenologia foi concebida como um "retorno s coisas" em oposio a abstraes e construes mentais. Por enquanto, os fenomenlogos tm se ocupado principalmente da ontologia, psicologia, tica e, em certa medida, da esttica, e deram pouca ateno fenomenologia do ambiente cotidiano. Existem algumas obras pio-neiras que, no entanto, fazem escassas referncias diretas arquitetura.3 Uma fenome-nologia da arquitetura , portanto, urgentemente necessria.

    Alguns filsofos que abordaram o problema do mundo-da-vida usaram a lingua-gem e a literatura como fontes de "informaes". Na realidade, a poesia capaz de concretizar as totalidades que escapam cincia e, por isso, capaz de sugerir como se deveria proceder para obter a necessria compreenso. Um dos poemas usados por Heidegger para explicar a natureza da linguagem o magnfico "Uma noite de inverno", de Georg Trakl.4

    As palavras de Trakl tambm servem aos nossos propsitos por apresentarem uma situao de vida total em que o aspecto do lugar fortemente sentido:

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  • Uma noite de inverno Quando a neve cai na janela E os sinos noturnos repicam longamente, A mesa, posta para muitos, E a casa est bem preparada. H quem, na peregrinao, Chegue ao portal da senda misteriosa, Florescncia dourada da rvore da misericrdia, Da fora fria que emana da terra. O peregrino entra, silenciosamente, Na soleira, a dor petrifica-se, Ento, resplandecem, na luz incondicional, Po e vinho sobre a mesa.5

    No pretendo reproduzir a penetrante anlise de Heidegger sobre o poema, mas apenas chamar a ateno para umas tantas propriedades que iluminam o tema deste ensaio. Em geral, Trakl emprega imagens concretas que todos conhecemos a partir da vida co-tidiana. Ele fala de "neve", "janela", "casa", "mesa", "porta", "rvore", "soleira", "po e vinho", "escurido" e "luz" e define o homem como um "peregrino". Mas essas ima-gens trazem implcitas estruturas mais gerais. Em primeiro lugar, o poema distingue entre um lado de fora e um lado de dentro. O lado de fora apresentado nas duas primei-ras linhas da primeira estrofe e compreende tanto elementos naturais como fabricados pelo homem. O lugar natural est presente na neve caindo, que sugere o inverno, e na referncia ao anoitecer. O prprio ttulo do poema "situa" tudo nesse contexto natural. Mas um anoitecer de inverno no apenas um ponto no calendrio. Presena concreta, tambm vivido como um conjunto de qualidades, ou, em geral, como um Stimmung, um "temperamento ou carter", que forma o pano de fundo dos atos e acontecimentos. No poema, essa qualidade est presente na neve fria, gelada, macia, silenciosa, que bate na janela e esconde o contorno dos objetos ainda reconhecveis no lusco-fusco. A pala-vra "cai" induz ainda a uma impresso de espao, ou melhor, a sugesto da presena da terra e do cu. Com um mnimo de palavras, Trakl d vida a todo um ambiente natural. Mas o exterior, o lado de fora, tambm possui propriedades criadas pela mo do ho-mem. L est o sino que toca ao anoitecer, ouvido em toda parte, que torna o "lado de dentro", o "privado", parte de uma totalidade "pblica" abrangente. O sino vespertino, entretanto, mais que um artefato prtico, um smbolo, que relembra os valores co-muns nos quais se fundamenta essa totalidade. Como diz Heidegger, "o repicar do sino ao anoitecer chama os homens, como mortais, presena do divino".6

    Os dois versos seguintes apresentam o "lado de dentro", descrito como uma casa que d abrigo e segurana por ser fechada e "bem-preparada". Mas h uma janela,

  • uma abertura que nos faz sentir o interior como complemento do exterior. Dentro da casa h um ltimo ponto focai, a mesa que est "posta para muitos". Em torno da mesa, as pessoas se renem; ela o centro, e mais que qualquer outra coisa constitui o "de dentro". No se diz muito sobre o carter desse interior, mas de todo modo ele est presente. Sabemos que iluminado e clido, e contrasta com o frio e o escuro do lado de fora, e seu silncio prenhe de sons latentes. De modo geral, o interior um mundo de coisas compreensveis, onde a vida de "muitos" tem lugar.

    As duas estrofes seguintes aprofundam a perspectiva. Aqui sobressai o significado dos lugares e das coisas, e o homem apresentado como um peregrino que chega pela

    "senda misteriosa". Em vez de ficar na segurana da casa que fez para si mesmo, ele vem de fora, do "caminho da vida", que tambm representa a tentativa do homem de "orientar-se" num ambiente desconhecido dado. Mas a natureza tem um outro lado: ela oferece a graa do crescimento e da florescncia. Na imagem da rvore "dourada", terra e cu se unem formando um mundo. Pelo labor do homem o mundo trazido para o interior como po e vinho, por meio dos quais o interior se "ilumina", isto , adquire significado. No fossem os frutos "sagrados" do cu e da terra, o interior estaria "vazio". A casa e a mesa recebem e renem, e trazem o mundo para "perto". Habitar uma casa significa habitar o mundo. Mas esse habitar no fcil, tem de ser al-canado por caminhos escuros e uma soleira separa o dentro do fora. Representando a "brecha" entre a "alteridade" e o sentido manifesto, a soleira concretiza a dor que

    "se petrifica". Assim, na soleira que o problema do habitar se torna presente.7

    O poema de Trakl ilumina alguns fenmenos essenciais de nosso mundo-da-vida e, em particular, as propriedades fundamentais do lugar. Primeiramente, ele indica que toda situao a um s tempo local e geral. O anoitecer de inverno que o poema descreve obviamente um local, um fenmeno nrdico, mas as sugestes de um "in-terior" e um "exterior" so gerais, assim como os sentidos relativos a essa distino. Dessa forma, o poema concretiza propriedades bsicas da existncia. Falo aqui em

    "concretizar" no sentido de transformar aquilo que genrico, "visvel", isto , em uma situao local, concreta. Com isso o poema se move numa direo oposta do pensamento cientfico, pois, enquanto a cincia parte do "dado", a poesia nos remete s coisas concretas, desvendando os sentidos inerentes ao mundo-da-vida.8

    Alm disso, o poema de Trakl faz uma distino entre elementos naturais e elemen-tos fabricados pelo homem, com o que sugere um ponto de partida para uma "feno-menologia do ambiente". Os elementos naturais so, evidentemente, os componentes principais do dado, e os lugares costumam ser definidos em termos geogrficos. Cabe insistir, porm, que "lugar" significa mais do que uma localizao. A literatura atual so-bre a "paisagem" contm vrias tentativas de descrio de lugares naturais, mas essa prtica usual nos parece, mais uma vez, excessivamente abstrata, porque se baseia em consideraes "funcionais", ou mesmo "visuais".9 Precisamos mais uma vez recorrer

  • ajuda da filosofia. Heidegger estabelece uma primeira distino fundamental entre os conceitos de "terra" e cu", quando afirma: "A terra o que sustenta servindo, flores-cendo e dando frutos, espalhando-se em rochedo e gua, abrindo-se em plantas e ani-mais [...] O cu o caminho arqueado do sol, o curso das vrias luas, da cintilao das estrelas, das estaes do ano, da luz e do crepsculo do dia, das sombras e dos clares da noite, da clemncia e da inclemncia do tempo, das nuvens errantes e do azul pro-fundo do espao celeste [...]".10 Como muitos achados fundamentais, a distino entre terra e cu pode parecer trivial. Mas sua importncia se revela quando acrescentamos a definio de Heidegger do "habitar": "O modo como voc , eu sou, o modo como os homens so na terra, habitar [...]". Mas "na terra" j traz em si o sentido de "sob o cu".11 Heidegger tambm chama de mundo o que fica entre a terra e o cu, e diz que "o mundo a casa onde habitam os mortais".12 Em outras palavras, quando o homem capaz de habitar, o mundo se torna um "interior".

    Em geral, a natureza forma ampla e extensa totalidade, um "lugar", que, de acordo com as circunstncias locais, possui uma identidade peculiar. possvel definir essa identidade, ou "esprito", nos termos concretos, "qualitativos", que Heidegger em-prega para caracterizar o cu e a terra, e devemos partir dessa distino fundamental. Com isso, podemos obter uma compreenso existencialmente relevante do conceito de paisagem, que cabe preservar como principal designao dos lugares naturais. Mas a paisagem comporta lugares subordinados e tambm "coisas" naturais, como a "r-vore" de Trakl. O significado do ambiente natural se "condensa" nessas coisas.

    Os elementos do ambiente criado pelo homem so, em primeiro lugar, todos os "assentamentos" de diferentes escalas, das casas s fazendas, das aldeias s cidades, e, em segundo lugar, os "caminhos" que os conectam, alm dos diversos elementos que transformam a natureza em "paisagem cultural". Quando os assentamentos es-to organicamente integrados ao seu ambiente, supe-se que so pontos focais onde a qualidade peculiar do ambiente se condensa e "explica". Heidegger afirma: "As casas particulares, as aldeias, as cidades so construes que renem dentro delas e em torno delas esse entre multiforme. As construes trazem a terra, como paisagem habitada, para perto do homem e, ao mesmo tempo, situam a intimidade da vizi-nhana sob a vastido do cu".13 Logo, a propriedade bsica dos lugares criados pelo homem a concentrao e o cercamento. Os lugares so literalmente "interiores", o que significa dizer que "renem" o que conhecido. Para cumprir essa funo, os lugares contm aberturas atravs das quais se ligam com o exterior. (A bem dizer, s um interior pode possuir aberturas.) Alm disso, as construes se ligam s suas vizinhanas porque repousam sobre o solo e se elevam para o cu. Finalmente, os ambientes criados pelo homem incluem artefatos ou "coisas" que servem de focos internos e sublinham a funo de reunio do assentamento. Nas palavras de Heide-gger: "the thing things world" ["a coisa rene o mundo"], onde a palavra "thinging"

  • usada em seu sentido original de "reunir", e, mais adiante, ele acrescenta: "Only what conjoins itselfout ofworld becomes a thing" ["S o que se rene fora do mundo chega a ser coisa"].14

    Essas observaes introdutrias fornecem vrias pistas sobre a estrutura dos lu-gares. Algumas j foram estudadas pelos filsofos e oferecem um excelente ponto de partida para uma fenomenologia mais completa. Demos um primeiro passo com a distino entre fenmenos naturais e fenmenos fabricados pelo homem. Um segundo passo representado pelas categorias terra-cu (horizontal-vertical) e fora-dentro. Es-tas categorias tm implicaes espaciais, mas o conceito de "espao" reaparece aqui no como uma noo essencialmente matemtica, mas como uma dimenso existencial.15

    Um ltimo passo especialmente importante dado pelo conceito de "carter". O ca-rter determinado por como as coisas so, e oferece como base de nossa anlise os fenmenos concretos do mundo-da-vida cotidiana. S assim podemos compreender de modo cabal o genius loci, isto , o "esprito do lugar" que os antigos reconheciam como aquele "outro" que os homens precisam aceitar para ser capazes de habitar.16 O conceito de genius loci refere-se essncia do lugar.

    A E S T R U T U R A DO LUGAR

    A anlise at aqui realizada sobre o fenmeno do lugar leva-nos a concluir que a estru-tura do lugar deveria ser classificada como "paisagem" e "assentamento" e analisada por categorias como "espao" e "carter". Enquanto "espao" indica a organizao tridimensional dos elementos que formam um lugar, o "carter" denota a "atmosfera" geral que a propriedade mais abrangente de um lugar. Em vez da distino entre espao e carter, podemos partir de um conceito amplo, como o de "espao vivido".17

    No nosso caso, entretanto, mais prtico distinguir espao de carter. Organizaes espaciais similares podem ter cunhos muito diferentes conforme o tratamento con-creto dos elementos que definem o espao (ou fronteira). A histria das formas es-paciais bsicas j recebeu novas caracterizaes.18 Por outro lado, deve-se assinalar que a organizao espacial impe certos limites a essas interpretaes e que os dois conceitos - espao e carter - so interdependentes.

    O conceito de "espao" certamente no novo na teoria da arquitetura, mas pode ter muitos significados. A literatura corrente distingue dois usos: o espao como geo-metria tridimensional, e espao como campo perceptual.19 Entretanto, nenhum deles satisfatrio, porque so abstraes a partir da totalidade intuitiva tridimensional da experincia cotidiana, que podemos chamar de "espao concreto". Na realidade, as aes concretas das pessoas no tm lugar num espao isotrpico homogneo, mas ocorrem em um espao que se caracteriza por diferenas qualitativas, como "em cima" e "embaixo". Muitas tentativas j foram feitas na teoria da arquitetura para definir o

  • espao em termos qualitativos concretos. [Siegfried] Giedion distingue "exterior" de "interior" como fundamento de uma concepo grandiosa da histria da arquitetura.20

    Kevin Lynch investiga mais a fundo a estrutura do espao concreto, introduzindo os conceitos de "nodo" ("marco"),"baliza","caminho","borda" e "distrito" para indicar os elementos que embasam a orientao das pessoas no espao.21 E Paolo Portoghesi de-fine o espao como um "sistema de lugares", o que d a entender que o conceito tem razes em situaes concretas, embora possa ser descrito por mtodos matemticos.22

    Esta ltima concepo compatvel com a afirmao de Heidegger de que "os espa-os recebem sua essncia dos lugares e no 'do espao'".23 A relao interior-exterior, que um aspecto principal do espao concreto, sugere que os espaos possuem graus variados de extenso e cercamento. Enquanto as paisagens se diferenciam por terem extenses variveis, mas basicamente contnuas, os assentamentos so entidades mura-das entre fronteiras. Portanto, assentamento e paisagem mantm entre si uma relao de figura-fundo. De modo geral, tudo o que fica encerrado se manifesta como "figura" contra o vasto fundo da paisagem. O povoamento perde sua identidade quando tal relao se corrompe, da mesma forma como a paisagem perde sua identidade de am-pla extenso. Em um contexto maior, tudo o que fica encerrado se torna um centro que pode exercer a funo de "foco" para seu entorno. O espao se estende a partir do centro com graus variveis de continuidade (ritmo) e em diferentes direes. Na-turalmente, as direes principais so a horizontal e a vertical, isto , as direes da terra e do cu. Portanto, centralizao, direo e ritmo so importantes propriedades do espao concreto. Por ltimo, deve-se mencionar que os elementos naturais (como as montanhas) e os assentamentos podem agrupar-se ou formar feixes, com graus di-versos de proximidade.

    Todas as propriedades espaciais mencionadas so de natureza "topolgica" e cor-respondem aos famosos "princpios de organizao" da teoria da Gestalt. As pesquisas de Piaget sobre a concepo de espao das crianas confirmam a importncia existen-cial desses princpios.24 Os modos geomtricos de organizao somente se desenvol-vem mais tarde na vida para atender a necessidades especiais e geralmente so vistos como uma definio mais "exata" de estruturas topolgicas bsicas. O cercamento topolgico converte-se ento em crculo, a curva livre converte-se em linha reta, e o feixe numa grade. A arquitetura usa a geometria para tornar patente um sistema geral de grande abrangncia, como uma ilao de "ordem csmica".

    Todo espao cercado definido por uma fronteira, e Heidegger afirma: "A fronteira no aquilo em que uma coisa termina, mas, como j sabiam os gregos, a fronteira aquilo de onde algo comea a se fazer presente".25 As fronteiras de um espao cons-trudo so o cho,aparede e o teto. As fronteiras de uma paisagem so estruturalmente semelhantes e consistem no solo, no horizonte e no cu. Essa similaridade estrutural simples tem importncia fundamental para as relaes entre os lugares naturais e os

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  • lugares feitos pelo homem. As propriedades de confinar um espao, tpicas de uma fronteira, so determinadas por suas aberturas, como Trakl intuiu poeticamente ao usar as imagens da janela, da porta e da soleira. Geralmente a fronteira, especialmente a parede, expe a estrutura espacial como extenso, direo e ritmo contnuos ou des-contnuos.

    "Carter" um conceito ao mesmo tempo mais geral e mais concreto do que "es-pao". Por um lado, indica uma atmosfera geral e abrangente e, por outro, a forma e a substncia concreta dos elementos que definem o espao. Toda presena real est inti-mamente ligada ao carter.25 Uma fenomenologia do carter deve compreender uma pesquisa sobre os caracteres observveis bem como um exame de seus determinantes concretos. Assinalamos anteriormente que diferentes aes exigem lugares com um cunho diferente. Um habitai tem de ser "protetor"; um escritrio tem de ser "prtico"; um salo de baile, "festivo"; e uma igreja, "solene". Quando visitamos uma cidade es-trangeira, geralmente o que nos impressiona seu carter peculiar, que parte impor-

    e da experincia. As paisagens tambm possuem carter, algumas das quais so de tipo especialmente "natural". Falamos, por exemplo, de paisagens "ridas" e "frteis",

    "sorridentes" e "ameaadoras". importante assinalar que geralmente todos os lugares possuem um carter, e que essa qualidade peculiar a maneira bsica em que o mundo nos "dado". At certo ponto, o carter de um lugar uma funo do tempo; ele muda com as estaes, com o correr do dia e com as situaes meteorolgicas, fatores que, acima de tudo, determinam diferentes condies de luz.

    O carter determinado pela constituio material e formal do lugar. Devemos ento perguntar como o solo em que pisamos, como o cu sobre nossas cabeas, ou de modo mais geral, como so as fronteiras que definem o lugar. O modo de ser de uma fronteira depende de sua articulao formal, que est novamente relacionada com a maneira pela qual ela foi "construda". Olhando uma construo desse ponto de vista, temos de examinar como ela repousa sobre o solo e como se ergue para o cu. Uma ateno especial deve ser dedicada s fronteiras laterais, ou paredes, que contri-buem decisivamente para determinar o carter do ambiente urbano. Devemos a Ro-bert Venturi o reconhecimento desse fato, depois de tantos anos em que se considerou

    "imoral" falar sobre "fachadas".27 O carter de uma "famlia" de construes que cons-titui um lugar geralmente est "condensado" em motivos caractersticos, como certos tipos de janelas, portas e telhados. Esses motivos se tornam s vezes "elementos con-vencionais" que servem para transpor o carter de um lugar para outro. Desse modo, na fronteira, carter e espao se combinam e isso nos leva a concordar com Venturi quando ele define a arquitetura como "a parede entre o interior e o exterior".28

    Excetuando as intuies de Venturi, o problema do carter do lugar quase no foi tratado na teoria corrente da arquitetura. O resultado disso foi que grande parte da teoria perdeu contato com o mundo-da-vida concreta. Isso especialmente notrio

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  • no caso da tecnologia, que atualmente considerada um meio banal de satisfazer de-mandas prticas. Contudo, o carter do lugar depende de como as coisas so feitas e , por isso mesmo, determinado pela realizao tcnica (a "construo"). Heidegger observa que a palavra grega tchne significava uma "re-velao" criativa (Entbergen) da verdade e pertencia posis, isto , ao "fazer".29 Uma fenomenologia do lugar deve, ento, abordar os mtodos bsicos de construo e suas relaes com a articulao formal. Somente dessa maneira a teoria da arquitetura poder ter uma base verdadei-ramente concreta.

    A estrutura do lugar se expressa em totalidades ambientais que incluem os as-pectos do espao e de seu carter. Esses lugares so chamados de "pases", "regies",

    "paisagens", "assentamentos" e "construes". E isso nos traz de volta a "coisas" con-cretas do mundo-da-vida cotidiana do qual partimos e nos relembra as palavras de Rilke: "Quem sabe no estamos ns aqui para dizer [...]" Assim, ao classificar lugares, deveramos usar palavras como "ilha", "promontrio", "baa", "floresta", "bosque", ou "praa", "rua", "ptio", "cho", "parede", "teto", "telhado", "janela", "porta".

    Por isso, lugares so designados por substantivos e isso implica dizer que os con-sideramos "coisas [reais] que existem", que o sentido original da palavra "substan-tivo". O espao, como um sistema de relaes, indicado por preposies. No dia a dia, raramente falamos sobre "espaos", mas sobre coisas que esto "acima" ou

    "abaixo", "antes" ou "atrs" umas das outras, ou usamos preposies como "de", "em", "entre", "sob", "sobre", "para" "desde", "com", durante". Todas essas preposies indi-cam relaes topolgicas do tipo mencionado acima. Por fim, o carter indicado por adjetivos, conforme j dissemos. Um carter uma totalidade complexa e um adjetivo sozinho no pode dar conta de mais de um aspecto dessa totalidade. Muitas vezes, porm, o carter to ntido que uma s palavra suficiente para captar sua essncia. Como se v, a prpria estrutura da linguagem cotidiana confirma a anlise que fizemos do lugar.

    Pases, regies, paisagens, assentamentos, construes (e seus lugares secundrios) formam uma srie dotada de uma escala que diminui gradativamente. Designamos os degraus nessa escala de "nveis ambientais".30 No "topo" da srie, encontramos os luga-res naturais mais abrangentes, que "contm" os lugares criados pelo homem nos nveis

    "inferiores". Estes possuem a funo de "reunir" e "focalizar" a que nos referimos acima. Em outras palavras, o homem "recebe" o ambiente e faz convergir para ele as cons-trues e as coisas. Desse modo, as coisas "explicam" o ambiente e evidenciam o seu carter. Esta a funo bsica do detalhe em nosso ambiente.31 Isso no significa, po-rm, que os diferentes nveis tenham a mesma estrutura. Alis, a histria da arquitetura mostra que isso raramente acontece. Os assentamentos vernaculares geralmente tm uma organizao topolgica, embora as casas particulares possam ser rigidamente geomtricas. Nas grandes cidades, no difcil encontrar reas organizadas de forma

  • topolgica no interior de uma estrutura geomtrica etc. Voltaremos mais adiante a es-ses problemas especficos de correspondncia estrutural; por ora, preciso dizer algu-mas palavras a respeito do principal "degrau" na escala de nveis ambientais: a relao entre lugares naturais e lugares criados pelo homem.

    Os lugares construdos pelo homem se relacionam com a natureza de trs formas bsicas. Em primeiro lugar, o homem deseja fazer a estrutura natural mais exata. Isto , ele quer visualizar seu "modo de entender" a natureza, dando "expresso" base de apoio existencial que conquistou. Para tanto, ele constri o que viu: onde a natureza insinua um espao delimitado, constri uma rea fechada; onde a natureza se mostra

    "centralizada", ele erige um Mal [marco];32 onde a natureza indica uma direo, ele faz um caminho. Em segundo lugar, o homem tem de simbolizar seu modo de entender a natureza (inclusive ele mesmo). A simbolizao implica "traduzir" para outro meio um significado experimentado. Por exemplo, um determinado carter natural traduzido em uma construo cujas propriedades de algum modo o exprimem.33 O objetivo da simbolizao libertar o significado da situao imediata, por meio do que se torna um "objeto cultural", que pode fazer parte de uma situao mais complexa ou transfe-rir-se para outro lugar. Finalmente, o homem precisa reunir os significados aprendidos por experincia a fim de criar para si mesmo uma imago mundi ou um microcosmo, que d concretude a esse mundo. A reunio desses significados depende, claro, da simbolizao e pressupe uma transposio de sentidos para um lugar, que por isso assume o carter de um "centro" existencial.

    Visualizao, simbolizao e reunio so aspectos do processo geral de fixar-se num determinado lugar; e habitar, no sentido existencial da palavra, depende dessas funes. Heidegger ilustra o problema com a meno ponte, "construo" que visualiza, sim-boliza e liga, e faz do ambiente um todo unificado. Heidegger escreve o seguinte:

    A ponte se estende lpida e forte sobre o rio. Ela no junta as margens que j existem, as margens que surgem como margens somente porque a ponte cruza o rio. a ponte propriamente dita que faz com que as margens fiquem uma defronte da outra. pela ponte que um lado se ope ao outro. Tampouco as margens correm ao longo do rio como faixas de fronteira indiferentes da terra firme. Com as margens, a ponte leva ao rio as duas extenses de paisagem que se encontram atrs delas. Pe o rio, as margens e a terra numa vizinhana recproca. A ponte junta a terra, como paisagem, em torno do rio.34

    Heidegger tambm descreve o que a ponte junta e assim revela seu valor como sm-bolo. No podemos nos estender aqui sobre esses detalhes, mas eu gostaria de salien-tar que a paisagem como tal obtm seu valor por intermdio da ponte. Antes dela, o significado da paisagem estava "oculto" e a construo da ponte lhe retira o vu.

  • A ponte liga o Ser a uma certa "localizao" que podemos chamar de um "lugar". S que esse lugar no existia como entidade antes da ponte (embora sempre houvesse muitos "stios" ao longo da margem do rio em que o lugar poderia surgir), mas se faz presente com e como ponte.35

    O propsito existencial do construir (arquitetura) fazer um stio tornar-se um lugar, isto , revelar os significados presentes de modo latente no ambiente dado.

    A estrutura de um lugar no fixa e eterna. normal que os lugares mudem, s vezes muito rapidamente. Isso no significa, porm, que o genius loci necessariamente mude ou se extravie. Mais adiante veremos que ter lugar pressupe que os lugares con-servem suas identidades durante determinado perodo de tempo. Stabilitas loci uma condio necessria para a vida humana. Como ento essa estabilidade compatvel com a dinmica da mudana? Deve-se assinalar, primeiramente, que qualquer lugar deveria ter a "capacidade" de receber diferentes "contedos", naturalmente dentro de certos limites.36 Um lugar que s prprio para certos fins logo se torna intil. Se-gundo, bvio que se pode "interpretar" um lugar de diferentes maneiras. Na verdade, proteger e conservar o genius loci implica concretizar sua essncia em contextos hist-ricos sempre novos. Poderamos dizer tambm que a histria de um lugar deveria ser sua"autorrealizao". O que, a princpio, eram simples possibilidades revelado pela ao humana, iluminado e "conservado" em obras de arquitetura que so ao mesmo tempo "velhas e novas".37 Assim sendo, um lugar comporta propriedades que tm um grau varivel de invarincia.

    A concluso geral que o lugar o ponto de partida e o objetivo de nossa investi-gao estrutural; no incio, o lugar se apresenta como um dado, espontaneamente vi-vido como uma totalidade e, ao fim e ao cabo, ele surge como um mundo estruturado, iluminado pela anlise dos aspectos do espao e do carter.

    0 E S P R I T O DO LUGAR

    Genius loci um conceito romano. Na Roma antiga, acreditava-se que todo ser "inde-pendente" possua um genius, um esprito guardio. Esse esprito d vida s pessoas e aos lugares, acompanha-os do nascimento morte, e determina seu carter ou essn-cia. At os deuses tinham seus genius, o que bem ilustra a natureza fundamental do conceito.38 O genius denota o que uma coisa , ou o que "ela quer ser", para usar uma expresso de Louis Kahn. No precisamos nos estender aqui na histria do conceito de genius e sua relao com o daimon dos gregos. Basta assinalar que os antigos viviam seu ambiente como constitudo de caracteres definidos. Principalmente, os antigos re-conheciam a suma importncia de entrar em acordo com o genius da localidade onde viviam. Em tempos passados, a sobrevivncia dependia de uma boa relao com o lugar,

  • tanto num sentido fsico como psquico. No Egito antigo, por exemplo, o campo era no somente cultivado de acordo com os fluxos e refluxos do rio Nilo, mas a estrutura mesma da paisagem servia de modelo para o traado dos edifcios "pblicos" que de-viam dar uma sensao de segurana por simbolizarem uma ordem ambiental eterna.39

    No curso da histria, o genius loci tem se mantido como uma realidade viva, apesar de nem sempre ser designado por esse nome. Artistas e escritores buscam inspirao no carter local e tendem a "explicar" fenmenos da vida cotidiana e da arte por refe-rncia a paisagens e ao contexto urbano. Goethe, por exemplo, afirmou: " claro que o olho educado pelas coisas que v desde a infncia e, por isso, os pintores venezianos enxergam tudo com mais clareza e alegria do que outros povos".40Em 1960, Lawrence Durrell escreveu: "A medida que voc vai conhecendo a Europa, saboreando lenta-mente seus vinhos, queijos e as qualidades peculiares dos diferentes pases, comea a perceber que o determinante mais importante de qualquer cultura , no fim de tudo, o esprito do lugar".41 O turismo moderno comprova que as pessoas tm grande inte-resse pela experincia de diferentes lugares, embora, ao que parece, esse tambm seja um dos valores em declnio nos dias de hoje. O fato que, durante muito tempo, o ho-mem moderno imaginou que a cincia e a tecnologia o haviam libertado da dependn-cia direta dos lugares.42 Mas essa crena logo se revelou ilusria - de repente, surgiram, como tenebrosa nmesis, a poluio e o caos ambiental, devolvendo ao problema do espao sua verdadeira relevncia.

    Usamos a palavra "habitar" para nos referirmos s relaes entre o homem e o lugar. Para entender melhor o que esta ltima palavra significa, vale a pena retomar a distino entre "espao" e "carter". Quando o homem habita, est simultaneamente localizado no espao e exposto a um determinado carter ambiental. Denominarei de "orientao" e "identificao" as duas funes psicolgicas implicadas nessa con-dio.43 Para conquistar uma base de apoio existencial, o homem deve ser capaz de orientar-se, de saber onde est. Mas ele tambm tem de identificar-se com o ambiente, isto , tem de saber como est em determinado lugar.

    O problema da orientao tem recebido considervel ateno por parte da literatura terica recente sobre planejamento e arquitetura. Devemos citar novamente a obra de Kevin Lynch, cujos conceitos de "nodo", "caminho" e "distrito" indicam as estruturas espaciais bsicas que so objetos da orientao das pessoas. A percepo de uma in-ter-relao entre esses elementos forma uma "imagem ambiental", sobre a qual Lynch afirma: "Ter uma boa imagem ambiental confere ao indivduo uma importante sensao de segurana emocional".44 Assim, todas as culturas criaram "sistemas de orientao", ou seja, estruturas espaciais que facilitam o desenvolvimento de uma boa imagem am-biental. "O mundo pode organizar-se em torno de um conjunto de pontos focais, ou fragmentar-se em regies indicadas por nomes prprios, ou articular-se por cami-nhos fixados na lembrana".45 Esses caminhos geralmente se baseiam ou derivam de

  • uma dada estrutura natural. Quando o sistema frgil, a pessoa tem dificuldade de formar aquela imagem e se sente "perdida". "O medo de se perder decorre da neces-sidade caracterstica do organismo vivo de orientar-se em seu entorno."46 Evidente-mente, estar perdido justo o oposto do sentimento de segurana que distingue o habitar. A qualidade ambiental que protege o ser humano de perder-se denominada por Lynch de "imagibilidade", que designa "aquela forma, cor ou organizao que facilita a formao de imagens mentais vividamente identificadas, fortemente estru-turadas e de grande utilidade do ambiente".47 O que Lynch pretende acentuar que os elementos componentes da estrutura espacial so "coisas" concretas, dotadas de

    "carter" e de "significado". Mas Lynch se limita a analisar a funo espacial desses elementos e, por conseguinte, nos lega um entendimento fragmentrio do habitar.

    Mesmo assim, a anlise de Lynch uma contribuio essencial para a teoria do lugar. A importncia de seu livro decorre ainda do fato de seus estudos empricos sobre a estrutura urbana concreta confirmarem os "princpios gerais de organizao" da percepo, definidos pela psicologia da Gestalt e pelas pesquisas sobre psicologia infantil de [Jean] Piaget.48

    No querendo reduzir a importncia da orientao, preciso ressaltar que habi-tar pressupe, antes de tudo, uma identificao com o ambiente. Embora orientao e identificao sejam aspectos de uma relao total, esses fatores mantm certa indepen-dncia no interior da mesma totalidade. Sem dvida, uma pessoa capaz de orientar-se bem sem se sentir profundamente identificada; ela se safa sem sentir-se "em casa". E possvel sentir-se "em casa" sem conhecer a fundo a estrutura espacial do lugar, isto , o lugar percebido por ter um carter genericamente agradvel. O sentimento profundo de ser do lugar pressupe que as duas funes psicolgicas estejam plena-mente desenvolvidas. Nas sociedades primitivas, at os menores detalhes do meio so conhecidos e significativos, constituindo estruturas espaciais complexas.49 As socie-dades modernas, porm, concentram toda a ateno quase exclusivamente na funo

    "prtica" de orientao, enquanto a identificao deixada ao acaso. Em conseqncia disso, a alienao tomou o lugar do verdadeiro habitar, no sentido psicolgico. Existe, portanto, uma urgente necessidade de compreender melhor os conceitos de "identifi-cao" e de "carter".

    "Identificao" significa, para os fins desta anlise, ter uma relao "amistosa" com determinado ambiente. O homem nrdico tem de se relacionar bem com o nevoeiro, a neve e os ventos gelados; tem de gostar do rudo da neve rangendo sob seus ps quando sai para passear, tem de sentir a poesia de estar envolto pelo nevoeiro, como Herman Hesse, que escreveu: "Estranho, caminhar no nevoeiro! Solitrio cada ar-busto e pedra, uma rvore no enxerga a outra, todas as coisas esto ss [...]".50 O rabe, por sua vez, tem de ser amigo da infinita imensido do deserto de areia e do sol escaldante. Isso no quer dizer que seus assentamentos no devam proteg-lo contra

  • as "foras" da natureza: um assentamento humano no deserto visa principalmente ex-cluir a areia e o sol. O que queremos dizer que o ambiente vivido como portador de um significado. [Otto Friedrich] Bollnow escreveu com bastante propriedade que,"Jede Stimmung ist bereinstimmung", isto , todo carter consiste em uma correspondncia entre o mundo externo e o mundo interno, entre corpo e alma.51 No caso do homem urbano moderno, a relao amistosa com um ambiente natural limita-se a relaes fragmentrias. Em vez disso, ele tem de identificar-se com coisas fabricadas pelo ho-mem, como ruas e casas. O arquiteto norte-americano de origem alem Gerhard Kall-man certa vez contou uma histria que ilustra bem essa situao. Ao visitar sua cidade natal, Berlim, no final da Segunda Guerra Mundial, depois de muitos anos de ausncia, ele quis rever a casa em que crescera. Como era de esperar, tratando-se de Berlim, a casa tinha desaparecido, e Kallman se sentiu um pouco perdido. De repente, ele reco-nheceu o desenho tpico das caladas: o cho em que brincava quando criana! E teve a forte sensao de, enfim, voltar para casa.

    Essa histria nos mostra que os objetos de identificao so propriedades con-cretas do ambiente e que as pessoas geralmente desenvolvem relaes com elas du-rante a infncia. A criana cresce em espaos verdes, marrons ou brancos; passeia ou brinca na areia, na terra, na pedra ou no musgo, sob um cu nublado ou sereno; agarra e levanta coisas duras e macias; ouve rudos, como o som do vento balanando as folhas de uma certa espcie de rvore; tem experincias do calor e do frio. assim que a criana toma conhecimento do ambiente e elabora esquemas perceptuais que determinam todas as suas futuras experincias.52 Os sistemas perceptuais se compem de estruturas universais, inter-humanas, e tambm de estruturas condicionadas pela cultura e determinadas pelo lugar. evidente que todo ser humano precisa possuir tanto sistemas mentais de orientao como de identificao.

    A identidade de uma pessoa se define em funo dos sistemas de pensamento de-senvolvidos, porque so eles que determinam o "mundo" acessvel. Esse fato con-firmado pelo uso corrente da linguagem. Quando uma pessoa quer declarar quem , geralmente diz: "Sou nova-iorquino" ou "Sou romano". Isso tem um significado bem mais concreto do que dizer: "Sou arquiteto" ou, ento, "Sou um otimista". Ns enten-demos que a identidade das pessoas , em boa medida, uma funo dos lugares e das coisas. Heidegger disse:" Wir sind die Be-Dingen".53 Por isso, importante no s que nossa ambincia possua uma estrutura espacial que facilite a orientao, mas tambm que esta seja constituda de objetos concretos de identificao. A identidade humana pressupe a identidade do lugar.

    Identificao e orientao so aspectos essenciais do estar-no-mundo do homem. Enquanto a identificao a base do sentimento de pertencer, a orientao a fun-o que o torna capaz de ser aquele homo viator [homem peregrino] que faz parte de sua natureza. Caracteristicamente, o homem moderno, por muito tempo, deu ao

    457

  • peregrino um papel de honra. Ele desejou ser "livre" e conquistar o mundo. Hoje comeamos a compreender que a verdadeira liberdade pressupe um sentimento de pertencer e que "habitar" significa pertencer a um lugar concreto.

    A palavra "habitar" tem muitas conotaes que confirmam e iluminam nossa tese. Em ingls, a palavra dwell [habitar] deriva do noruegus antigo dvelja, que significa residir ou permanecer. De modo anlogo, Heidegger relacionou o alemo "wohner' [morar, residir] a bleiben [permanecer] e sich aufhalten [deter-se, ficar].54 O filsofo assinala que o gtico wunian significava "estar satisfeito", "estar em paz". A palavra em alemo para "paz", Friede, significa ser livre, isto , protegido do perigo e das amea-as. Essa proteo obtida por um Umfriedung, ou confinamento. Friede tambm se relaciona com zufrieden (contedo), Freund (amigo) e o gtico frijn (amor). Hei-degger usa essas relaes lingsticas para mostrar que habitar significa estar em paz num lugar protegido. Acrescente-se que a palavra em alemo para habitar, Wohnung, vem de das Gewohnte, o que conhecido ou habitual. As palavras "hbito" e "habitat" revelam uma relao anloga. Isto , o homem sabe ao que tem acesso por meio da morada. Com isso, voltamos ao bereinstimmung ou a correspondncia entre o ho-mem e seu ambiente, e tocamos ento na raiz do problema do ato de "reunir". Reu-nir significa que o mundo-da-vida se tornou gewohnt ou "habitual". Mas reunir um fenmeno concreto e isso nos conduz conotao final do "habitar". Mais uma vez Heidegger quem desvenda a relao fundamental, quando assinala que a palavra

    "construir" no ingls antigo e no alto alemo equivalente, buan, significava morar e estreitamente relacionada com o verbo ser. "Ento, o que significa ich bin [eu sou]? A antiga palavra bauen, com a qual tem a ver bin, responde: ich bin, du bist, quer di-zer: eu habito, tu habitas. O modo como tu s e eu sou, a maneira pela qual ns, os seres humanos, somos na terra buan, o habitar."55 Pode-se concluir que habitar sig-nifica reunir, juntar, o mundo como uma construo concreta, ou uma "coisa", e que o ato arquetpico de construir o Umfriedung ou confinamento. A intuio potica de Trakl sobre a relao fora-dentro confirma isso e nos faz entender que o conceito de concretizao denota a essncia do habitar.56

    O homem habita quando capaz de concretizar o mundo em construes e coisas. J dissemos que a "concretizao" a funo da obra de arte em oposio "abstra-o" da cincia.57 As obras de arte concretizam o que fica "entre" os puros objetos da cincia. Nosso mundo-da-vida cotidiana consiste nesses objetos "intermedirios", e compreendemos que a funo essencial da arte reunir as contradies e complexi-dades do mundo-da-vida. Sendo uma imago mundi, a obra de arte ajuda o homem a habitar. [Friedrich] Hlderlin estava certo quando disse:

    Cheio de mrito, mas poeticamente, o homem Habita nesta terra.58

  • Esses versos dizem que os mritos do homem no contam muito se ele incapaz de habitar poeticamente, isto , de habitar no verdadeiro sentido da palavra. Heidegger afirma o seguinte: "A poesia no voa acima e sobrepuja a terra a fim de escapar dela e de pairar sobre ela. A poesia o que primeiro traz o homem para a terra, fazendo-o pertencer a ela, e assim trazendo-o morada".59 Somente a poesia, em todas as suas formas (e tambm a "arte de viver") d sentido vida humana, e o significado a ne-cessidade humana fundamental.

    A arquitetura pertence poesia, e seu propsito ajudar o homem a habitar. Mas uma arte difcil. Fazer construes e cidades concretas no suficiente. A arquitetura comea a existir quando "faz visvel todo um ambiente", para citar uma definio de Su-zanne Langer.60 Isso significa concretizar o genius loci. Vimos que isso acontece por meio de construes que renem as propriedades do lugar e as aproximam do homem. Logo, o ato fundamental da arquitetura compreender a "vocao" do lugar. Dessa maneira, pro-tegemos a terra e nos tornamos parte de uma totalidade compreensvel. O que se defende aqui no uma espcie de "determinismo ambiental". Apenas reconhecemos o fato de que o homem parte integral do ambiente e que ele somente contribui para a alienao e ruptura do ambiente quando se esquece disso. Pertencer a um lugar quer dizer ter uma base de apoio existencial em um sentido cotidiano concreto. Quando Deus disse a Ado:

    "Sers um fugitivo e um peregrino na Terra",61 ps o homem frente a frente com seu pro-blema fundamental: atravessar a soleira e reconquistar o lugar perdido.

    ["The Phenomenon of Place" foi extrado de Architectural Association Quarterly 8, n. 4,

    1976: pp. 3-10. Cortesia do autor e da editora.]

    1. R. M. Rilke, The Duino Elegies, ix Elegy. Nova York: 1972.

    2. O conceito de "mundo-da-vida cotidiana" foi criado por Husserl em The Crisis of European Scien-

    ces and Transcendental Phenomenology, 1936.

    3. Martin Heidegger, "Bauen Wohnen Denken"; Bollnow, "Mensch und Raum"; Merleau-Ponty,

    "Phenomenology of Perception"; Bachelard, "Poetics of Space"; tambm L. Kruse, Raumliche Um-

    welt. Berlim: 1974.

    4. Heidegger, "Language", in Albert Hofstadter (org.), Poetry, Language, Thought. Nova York: 1971.

    5. Traduo de Liliane Stahl.

    Ein Winterabend

    Wenn der Schnee ans Fenster fllt,

    Lang die Abendglocke luter,

    Vielen ist der Tisch bereitet

    Und das Haus ist wohlbestellt.

    Mancher auf der Wanderschaft

    Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden.

  • Golden blht der Baum der Gnaden

    Aus der Erde khlem Saft.

    Wanderer tritt still herein;

    Schmerz versteinerte die Schwelle.

    Da erglnzt in reiner Helle

    Auf dem Tische Brot und Wein.

    6. Heidegger, op. cit., p. 199.

    7. Ibid., p. 204.

    8. Christian Norberg-Schulz,"Symbolization", em Intentions in Architecture. Oslo e Londres: 1963.

    9. Ver, por exemplo, J. Appleton, The Experience ofLandscape. Londres: 1975.

    10. Heidegger, op. cit., p. 149.

    11. Ibid., pp. 147,149-

    12. Heidegger, Hebel der Hausfreund. Pfullingen: 1957, p. 13.

    13. Ibid., p. 13.

    14. Heidegger, op. cit., pp. 181-82.

    15. Norberg-Schulz, Existence, Space and Architecture. Londres e Nova York: 1971, onde adoto o con-

    ceito de "espao existencial".

    16. Heidegger chama a ateno para a relao entre as palavras gegen (contra, contrrio) e Gegend

    (ambiente, localidade).

    17. Foi o que fizeram alguns autores, entre os quais K. Graf von Drckheim, E. Straus e O. F.

    Bollnow.

    18. Compare-se com a distino de Alberti entre "beleza" e "ornamento".

    19. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. I2ss.

    20. S. Giedion, The Eternal Present: The Beginnings of Architecture. Londres: 1964.

    21. K. Lynch, The Image of the City. Cambridge: 1960.

    22. P. Portoghesi, Le Inibizioni delVArchitettura Moderna. Bari: 1975, pp. 88ss.

    23. Heidegger, op. cit., p. 18.

    24. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. 18.

    25. Heidegger, op. cit., p. 154. "Presena a velha palavra para o ser."

    26. O. F. Bollnow, Das Wesen der Stimmungen. Franfurt am Mein: 1956.

    27. Robert Venturi, Complexity and Contradiction in Architecture. Nova York: 1967, p. 88.

    28. Ibid., p. 89.

    29. Heidegger, "Die Frage nach der Technik", in Vortrge undAufsatze Pfullingen, 1954, p. 12.

    30. Norberg-Schulz, op. cit., 1971, p. 27.

    31. Ibid., p. 32.

    32. D. Frey, Grundlegungzu einer vergleichenden Kunstwissenschaft.Viena e Innsbruck: 1949.

    33. Norberg-Schulz, op. cit., 1963.

    34. Heidegger, op. cit., p. 152,1971.

    35. W. J. Richardson, Heidegger, Through Phenomenology to Thought. The Hague: 1974, p. 585.

    36. Para o conceito de "capacidade", ver Norberg-Schulz, op. cit, 1963.

    37. Venturi, op. cit.

    38. Paulys, Realencyclopedie der Klassischen Alterumwissenschaft vn , I, col., 1155SS.

    39. Norberg-Schulz, Meaning in Western Architecture. Londres e Nova York: 1975, pp. 8oss.

    40. Goethe, Italienische Reise 8, out. 1786.

  • 41. L. Durrell, Spirit ofPlace (Londres, 1969), p. 156.

    42. Ver M. M. Weber, Explorations into Urban Structure (Filadlfia: 1963), que fala de "uma esfera

    urbana sem lugares".

    43. Norberg-Schulz, op. cit., 1963, em que utilizo os conceitos de "orientao cognitiva" e "orienta-

    o catctica".

    44. Lynch, op. cit., p. 4.

    45. Ibid., p. 7.

    46. Ibid.,p 125.

    47. Ibid., p. 9.

    48. Para uma exposio mais detalhada, ver Norberg-Schulz, op. cit., 1971.

    49. A. Rapoport, "Australian Aborigines and the Definition of Place", in P. Oliver (org.), Shelter, Sign,

    Symbol. Londres: 1975.

    50. Seltsam, im Nebel zu wandern! Einsam ist jeder Busch und Seiti, kein Baum sieht den anderen,

    jeder ist allein.

    51. Bollnow, op. cit., p. 39.

    52. Norberg-Schulz, op. cit., 1963, pp. 41 ss.

    53. Heidegger, op. cit., 1971, p. 181. "Ns somos oscoisificados'", os condicionados.

    54. Heidegger, "Building Dwelling Thinking", in op. cit., 1971, pp. 146 ss.

    55. Ibid., p. 147.

    56. Norberg-Schulz, op. cit., 1963, pp. 61 ss, 68.

    57. Ibid.,pp. 168 ss.

    58. Full of merits, yet poetically, man

    Dwells on this earth.

    59. Heidegger, op. cit., 1971, p. 218.

    60. S. Langer, Feeling and Form. Nova York: 1953.

    61. Gnesis, cap. 4, versculo 2.

    C H R I S T I A N N O R B E R G - S C H U L Z . 0 P E N S A M E N T O DE H E I D E G G E R S O B R E

    A R Q U I T E T U R A

    Esta lcida explicao de "O pensamento de Heidegger sobre arquitetura" contm

    uma anlise lingstica de vrios escritos do filsofo, seguindo o interesse do prprio

    Heidegger pela etimologia das palavras de uso corrente. Em resumo, o ensaio desen-

    volve a crtica de Norberg-Schulz arquitetura moderna, que ele considera a origem

    de uma crise de significado por ter criado um ambiente diagramtico e funcionalista

    que no favorece o habitar. Referindo-se a um "momento de confuso e crise", Nor-

    berg-Schulz reconhece que o problema do significado na arquitetura foi abordado por outros

    autores e que alguns partiram da semiologia (estudando a arquitetura como sistema de signos

    convencionais), mtodo que lhe parece inadequado para explicar a disciplina. Ele prope como

    alternativa para compreender a arquitetura a leitura da fenomenologia heideggeriana.

    Norberg-Schulz afirma que o propsito da arquitetura fornecer um "ponto de apoio

    existencial" que propicie uma "orientao" no espao e uma "identificao" com o carter

    461

  • TADAO ANDO

    Por novos horizontes na arquitetura

    O pensamento arquitetnico apoia-se na lgica abstrata. Por abstrato me refiro a uma explorao meditativa que atinge a cristalizao da complexidade e riqueza do mundo, e no a uma reduo de sua realidade pela diminuio de sua concretude. Os melhores aspectos do modernismo no tero se originado desse tipo de pensamento arquitetnico?

    O ps-modernismo surgiu no passado recente para denunciar a pobreza do mo-dernismo em um momento no qual esse movimento estava se deteriorando, tornando-se convencional e abandonando o papel que se arrogara como fora de revitalizao cultural. A arquitetura moderna havia se tornado mecnica, e os estilos ps-moder-nos se empenharam em recuperar a riqueza formal que o modernismo aparentemente descartara. Esse esforo sem dvida alguma representou um passo na direo certa, ao voltar-se para a histria, o gosto e o ornamento, e devolveu arquitetura uma certa concretude. No entanto, tambm este movimento rapidamente se atolou em expres-ses de vulgaridade, produzindo uma enxurrada de brincadeiras formalistas que mais confundiram do que inspiraram.

    O caminho mais promissor para a arquitetura contempornea o de um desen-volvimento que atravesse e supere o modernismo. Isso significa substituir os mtodos mecnicos, letrgicos e medocres, aos quais o modernismo sucumbiu pela vitalidade meditativa e abstrata que caracterizou os seus primrdios, de modo a criar coisas esti-mulantes para o pensamento que sejam capazes de nos levar ao sculo xxi. A criao de uma arquitetura capaz de infundir novo vigor no esprito humano deve abrir cami-nho no impasse atual da arquitetura.

    LGICA T R A N S P A R E N T E

    A criao arquitetnica funda-se na ao crtica. Nunca se resume a um mtodo para a soluo de problemas por meio do qual determinadas condies so reduzidas a ques-tes tcnicas. A criao arquitetnica supe a contemplao das origens e da essncia dos requisitos funcionais de um projeto e a subsequente determinao dos seus pro-blemas essenciais. Somente dessa maneira o arquiteto pode manifestar na arquitetura o carter de suas origens.

  • Quando concebi o projeto do Museu Histrico Chikatsu-Asuka, em Osaka, em um stio fundamental para a histria antiga do Japo, compreendi a importncia vital de conceber uma arquitetura que no desfigurasse a grandeza da paisagem local. Con-centrei-me ento na capacidade da arquitetura de introduzir uma nova paisagem e procurei criar um museu que pudesse acolher a paisagem ao seu redor nas exposies que programasse.

    Na sociedade contempornea, a arquitetura condicionada por fatores econmicos e na maior parte das vezes governada pela padronizao e mediocridade. O projetista srio deve questionar inclusive os requisitos dados e refletir profundamente sobre o que real-mente lhe est sendo encomendado. Esse tipo de investigao poder revelar-lhe o carter especfico latente em uma encomenda e esclarecer o papel vital que uma lgica intrnseca cumpre na realizao de uma obra arquitetnica. Quando a lgica permeia o processo de projeto, o resultado uma clareza de estrutura, ou da ordem espacial - acessvel no s percepo como razo. Uma lgica transparente que impregna o todo e transcende a beleza superficial, ou a mera geometria, com seu valor intrnseco.

    A B S T R A O

    O mundo real complexo e contraditrio. No cerne da criao arquitetnica est a transformao da concretude do real, por meio de uma lgica transparente, em uma ordem espacial. No se trata de uma abstrao que suprime, mas de uma tentativa de organizar o real em torno de um ponto de vista intrnseco para orden-lo mediante o poder de abstrao. O ponto de partida de um problema arquitetnico - seja o lugar, a natureza, o estilo de vida ou a histria - se expressa nessa evoluo para o abstrato. So-mente um esforo dessa natureza capaz de produzir uma arquitetura rica e variada.

    Quando desenho uma residncia - um continente para a habitao humana - pro-curo alcanar precisamente essa unio entre a forma geomtrica abstrata e a atividade humana diria.

    Na Row House (residncia Azuma), em Suniyoshi, peguei uma casa de uma s-rie de trs habitaes geminadas de madeira e a reconstru como um espao fechado de concreto, na tentativa de gerar um microcosmo no seu interior. A casa se divide em trs sees, e a seo do meio um ptio a cu aberto. Esse ptio um exterior que preenche o interior, e seu movimento espacial invertido e descontnuo. Como forma geomtrica simples, a caixa de concreto esttica; mas como nela penetra a natureza e a casa ativada pela vida humana, sua existncia abstrata adquire vibrao no encontro com essa concretude. Minha principal preocupao nesse projeto foi es-tabelecer o grau de austeridade da forma geomtrica capaz de se confundir com a vida humana. Esta preocupao tambm prevalece na Koshino House, na Kidosaki House, e em outros de meus projetos residenciais ou outros tipos de construes. A abstrao

    495

  • geomtrica se choca com a concretude humana e, ento, a aparente contradio se dissolve na incongruncia. A arquitetura criada naquele momento preenchida por um espao que provoca e inspira.

    N A T U R E Z A

    Eu procuro instilar a presena da natureza em uma arquitetura construda com auste-ridade mediante uma lgica transparente. Os elementos naturais - gua, vento, luz e cu - trazem o contato com a realidade de volta a uma arquitetura derivada da refle-xo ideolgica, nela despertando a vida criada pelos prprios homens que a habitam.

    A tradio japonesa abraa uma sensibilidade para com a natureza diferente da oci-dental. A vida humana no tem a pretenso de se opor natureza e no se empenha em control-la, mas antes busca uma associao ntima com a natureza a fim de unir-se com ela. Pode-se at mesmo dizer que, no Japo, todas as formas de exerccio espiritual so tradicionalmente realizadas no contexto da inter-relao do homem com a natureza.

    Esse tipo de sensibilidade engendrou uma cultura que diminui a nfase na fronteira fsica entre a residncia e a natureza circundante e que, ao contrrio, instala um limiar espiritual. Ao mesmo tempo em que protege a habitao humana da natureza, procura traz-la para dentro da casa. No h uma demarcao clara entre interior e exterior, mas

    Tadao Ando, M u s e u das Crianas, Himej i , Hyogo, 1987 -89 . Vista externa.

  • uma permeabilidade recproca. Infelizmente, hoje a natureza perdeu muito de sua antiga abundncia e a nossa capacidade de perceb-la tambm se enfraqueceu. Por isso, a arqui-tetura contempornea tem um papel a cumprir no sentido de proporcionar s pessoas lugares arquitetnicos que as faam sentir a presena da natureza. Quando isso acontece, a arquitetura transforma a natureza por meio da abstrao e modifica o seu significado. Quando a gua, o vento, a luz, a chuva e outros elementos naturais so abstrados na arquitetura, esta se transforma em um lugar no qual as pessoas e a natureza se defrontam em permanente estado de tenso. Creio ser esse sentimento de tenso que poder des-pertar as sensibilidades espirituais latentes no homem contemporneo.

    No Museu das Crianas, em Hyogo, organizei cada um dos elementos arquitet-nicos de modo a permitir encontros genunos com a gua, a floresta e o cu, em con-dies ideais. Quando a presena da arquitetura transforma um lugar, dando-lhe uma nova intensidade, possvel descobrir uma nova relao com a natureza.

    LUGAR

    A presena da arquitetura - a despeito de seu carter autossuficiente - cria inevitavel-mente uma nova paisagem. Isso implica a necessidade de descobrir a arquitetura que o prprio stio est pedindo.

    O Edifcio Time, situado margem do rio Takase, em Kyoto, nasceu do envolvi-mento com a delicada corrente do rio que passa por perto. A praa do edifcio em que se pode molhar a mo na gua, o deque que passa por cima do crrego como uma ponte, o plano horizontal de aproximao que provm das margens do rio e no de uma estrada - todos esses elementos servem para extrair o mximo de vida possvel do extraordinrio cenrio da construo. O conjunto habitacional de Rokko, em Kobe, nasceu do cuidado com um stio igualmente singular: neste caso, uma encosta de no mximo 6o de inclinao. A idia do projeto foi a de fazer a construo afogar-se ao longo da encosta, controlando a sua projeo acima do solo a fim de mistur-la densa floresta ao seu redor. Dessa maneira, a cada habitao assegurada uma viso magnfica do oceano a partir de um terrao proporcionado pelo teto da casa vizinha abaixo. Todos os meus projetos, seja o Museu das Crianas, em Hyogo, seja o Museu da Floresta de Tmulos, em Kumamoto, seja o edifcio central da Raika, ou o complexo comercial Festival, em Okinawa, so fruto de um esforo para criar uma paisagem, jo-gando integralmente com as caractersticas do lugar.

    Eu componho arquitetura procurando encontrar uma lgica essencial inerente ao lugar. A pesquisa arquitetnica supe uma responsabilidade de descobrir e revelar as caractersticas formais de um stio, ao lado de suas tradies culturais, clima e aspectos naturais e ambientais, a estrutura da cidade que lhe constitui o seu pano de fundo, e os padres de vida e costumes ancestrais que as pessoas levaro para o futuro. Sem senti-

  • mentalismos, minha ambio transformar o lugar, pela arquitetura, em um plano abs-trato e universal. Somente dessa maneira, a arquitetura pode repudiar o universo da tec-nologia industrial e tornar-se uma "grande arte", no verdadeiro sentido da expresso.

    ["Toward New Horizons in Architecture" foi extrado de Tadao Ando. Nova York: Museum

    of Modern Art, 19991, pp. 75-76. Cortesia do autor e da editora.]

    [R A I M U N D A B R A H A M . N E G A O E R E C O N C I L I A O Os dois autores reunidos neste captulo, entre outros como Vittorio Gregotti e

    William McDonough (caps. 7, 8), abordam a questo das relaes da arquitetura

    com a natureza. interessante contrastar a viso fenomenolgica de Raimund

    Abraham com a de Tadao Ando, j que ambos desenvolvem uma metodologia de

    projeto que se baseia em uma avaliao da arquitetura moderna.

    0 stio tem grande importncia tanto para Abraham como para Ando, mas

    as suas abordagens so opostas. Enquanto Ando procura levar a natureza a uma

    unio ou associao com a humanidade, confrontando-as de modo cuidadosamente estru-

    turado, Abraham fala de uma conquista e negao do stio e de sua topografia. Fica evi-

    dente que Abraham opera com um esquema de pensamento ocidental e antropocntrico,

    que no pe em questo os direitos da espcie humana de manipular livremente o meio

    ambiente. A atitude de Abraham apoia-se nos argumentos de Martin Heidegger sobre a ca-

    pacidade do stio de "reunir e preservar [ou instalar]" a quaternidade formada pelo homem,

    as divindades, o cu e a terra. Mas a agressiva "interveno e coliso" do arquiteto parece

    contradizer a noo heideggeriana de reserva (liberao de alguma coisa para que ela se

    torne a sua prpria essncia). Christian Norberg-Schulz e outros interpretaram a noo de

    reserva como uma recomendao para se cultivar e cuidar da terra. Abraham admite que

    o processo projetual, em seu caso, secundrio, e s pode pretender "reconciliar as con-

    seqncias" do seu ato destrutivo primeiro.

    Outros aspectos da busca de Abraham pelo sentido da arquitetura so mais ins-

    tigantes. Rejeitando a "especulao formal" como uma origem, ele prefere investigar

    "o evento arquitetnico primordial": a interao com o stio. Essa origem est alm da

    histria, da esttica e do estilo, e envolve questes metafsicas. Como Juhani Pallas-

    maa (cap. 9), Abraham identifica um valor na arquitetura, que, por meio da justaposio

    entre o ideal e o material, capaz de celebrar tanto a presena como a ausncia

    do homem, tanto o eterno como o temporal. Seus projetos a lpis ilustram obses-

    sivamente a fora das associaes evocadas por escavaes grotescas na terra e confinamentos espaciais. O corpo habita e d forma a esses espaos bem como s representaes do arquiteto. J

  • Frampton busca uma arquitetura que seja "capaz de condensar o potencial artstico

    da regio e, ao mesmo tempo, de reinterpretar as influncias culturais vindas de fora". A

    crtica da modern