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MARIA TOORPAKAI WAZIR com KATHARINE HOLSTEIN UMA FILHA DIFERENTE Tradução de Cláudia Ramos Oo

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MARIA TOORPAKAI WAZIRcom KATHARINE HOLSTEIN

UMA FILHA DIFERENTETradução de Cláudia Ramos

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Prólogo

Uma profecia

Eles mandam raparigas como eu para o manicómio – ou, sim-plesmente, apedrejam-nos até à morte. As mais afortunadas poderão vir a casar com um elemento de uma tribo rival, para contamina-rem o sangue da tribo. Eu sou o produto de um desses casamen-tos tribais punitivos. Numa sentença com vista a amaldiçoá-los a ambos, a minha rebelde mãe casou com o meu renegado pai sem o conhecer antes do dia do casamento. O que os anciãos da tribo não previram foi a combinação apaixonada  – instantânea e explosiva – das forças combinadas dos dois na partilha da coragem e ideais comuns. Nem nunca previram a minha chegada, disso estou certa. Assim como também não conseguiram evitar que a nossa insolente família de rebeldes de etnia pastó se multiplicasse.

Mesmo entre os meus pares, sempre fui considerada uma filha diferente. Detestava bonecas, ficava numa tristeza profunda quando me enfiavam num vestido bonitinho, e rejeitava tudo o que fosse remotamente feminino. Os meus sonhos e ambições jamais se con-cretizariam comigo enfiada numa cozinha ou enclausurada entre as quatro paredes da nossa casa. Para me manter mentalmente sã, precisava de estar lá fora, sob o céu aberto e em liberdade – precisa-mente tudo o que a lei tribal não me permitia.

Ainda muito pequenina, vi o meu pai levar para casa uma televi-são, uma velha Zenith, e um aparelho de VHS emprestado. E para a grande estreia, comprou, no bazar local, um vídeo sobre as técnicas de caça dos leões. Cativada por esse documentário – tal como por tudo o que o meu pai nos mostrava, fosse na televisão ou em velhos

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livros –, ficou-me a lição de vida de que tínhamos de procurar para encontrar. Sentados no chão fresco de tijoleira da nossa sala, de-leitámo-nos a ver um leão em plena savana africana a cercar uma manada de gazelas.

O leão é um predador extremamente lento que, ainda assim, con-segue caçar algumas das criaturas mais rápidas do mundo. Encon-trava-se em nítida desvantagem. E, no entanto, mesmo esfomeado, mantinha-se deitado sobre as ervas oscilantes, qual rei ocioso, olhando casualmente em seu redor. De quando em vez levantava--se, espreguiçava-se, e aproximava-se a escassos centímetros das suas presas. Quando as gazelas erguiam os olhos para ele, limitava-se a olhá-las, numa expressão indiferente e despreocupada, sem trair as suas intenções. A serena confiança das gazelas advinha do facto de correrem mais depressa do que os leões, mas essa infundada crença nas suas capacidades tornar-se-ia precisamente a sua fatal perdição. O leão detinha dois vantajosos e inegáveis talentos – uma paciência feroz e uma extraordinária capacidade de se camuflar. Ainda hoje me lembro bem do modo como aquela elegante fera se lançou de entre as gramíneas, cravando garras e dentes no pescoço exposto de uma pobre e atordoada gazela, que nem desconfiara da sua presença até então. Que gazela estúpida, pensei eu, e que felino astuto!

*

Pouco antes do meu quinto aniversário, queixei-me ao meu pai de que não iria aguentar nem mais um vestido sufocante e que, doravante, preferia usar roupas largas como os rapazes que via jogar à bola lá fora no chão poeirento. Ele riu-se e disse-me para não me  preocupar. Terão sido a t-shirt e os calções amarelos que ele me trouxe do bazar que desencadearam o resto. Fingi dar aten-ção ao pedido que ele me fez para os usar apenas dentro dos muros da nossa casa, mesmo sabendo que no meu pequeno mundo, uma rapariga ousar surgir sem ser coberta era haram – proibido, um pe-cado contra Deus.

No dia em que estreei o meu conjunto amarelo, o panorama dos picos e vales exteriores aos portões de ferro da nossa casa atraiu-me

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imensamente. Era a primeira vez que me via sozinha lá fora, po-dendo, se quisesse, desatar a correr sob o céu aberto. Com o cabelo escuro acabado de lavar, todo trabalhado em tranças e fitas multi-colores, acolhi o calor abrasador do meio-dia, já com a t-shirt a co-lar-se-me às costas, tranças e pernas escorrendo suor. Com o sol a escaldar-me os braços e as pernas, parei por um momento no meio do pátio, estendi os braços, e experienciei uma descarga intensa de liberdade. Baixei o olhar e vi a minha suave estrutura inferior, quase sempre coberta, já a começar a ficar rosada. Depois puxei pelo trinco, abri o pesado portão de ferro… e desatei a correr. Consegui regressar sem ser vista, e nunca contei a ninguém o que fizera.

Numa dessas tardes sufocantes, ajoelhei-me e apoiei-me ao pa-rapeito de uma janela baixa da sala, o queixo apoiado numa mão, observando a extensa planície fluvial a perder de vista em frente à nossa casa. A minha mãe obrigara-me a estrear um vestido – uma constelação de contas e fios de seda bordados sobre o tecido pesa-díssimo. Envolvia-me da cabeça aos pés como um caixão. Do ex-terior chegou-me o som dos gritinhos e gargalhadas de um grupo de rapazes brincando, correndo e levantando com os pés nuvens de poeira que me toldavam a vista do horizonte serrilhado. Ouvi o baque constante de pés a chutarem uma bola, e senti, enquanto olhava e escutava, um punho súbito de calor intenso socar-me a garganta. Eram no mínimo dez, todos com roupas largas, aos chu-tos numa bola de futebol que saltitava pelo terreno plano por entre as rochas. A bola ziguezagueava por entre pés ligeiros e eu entrei em pânico, sentada dentro de casa, ao aperceber-me de repente do meu próprio destino, como se lesse o meu futuro num livro – em-balsamada em vestidos sufocantes, fadada a ir para a escola ou a ficar em casa. Nesse momento o meu coração petrificou. Não havia meio-termo para meninas como eu, que apenas queriam correr ao ar livre, jogar e praticar desportos. De súbito apercebi-me de que, não obstante os esforços indulgentes do meu pai –  os seus mitos e mapas gigantes dos continentes, e tudo o que me tentou ensinar sobre um mundo muito mais além – eu jamais seria realmente livre. Na nossa cultura as raparigas ficavam em casa, caladas e sossegadas e escondidas da vida real.

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Não pensei no que fiz a seguir. Limitei-me a levantar-me, afas-tei-me do parapeito, esfrangalhei o meu vestido, rasgando as cos-turas, arrancando as mangas. Depois, percorri a casa num êxtase silencioso, tirei todos os meus vestidos do roupeiro e atirei-os pela janela diretamente para o jardim. Um a um. Eram tão pesados que a operação me levou uma hora inteira.

Lá fora, o forno de terra montado debaixo da árvore era pouco profundo, composto por quatro tijolos e umas quantas tábuas mon-tadas sobre um grelhador, mas eu sabia onde a minha mãe manti-nha os fósforos e o querosene. Na prateleira de cima de um armário da cozinha. Apressei-me, antes que mudasse de ideias, com a per-feita noção de que se me permitisse pensar demasiado, acabaria por desistir da ideia. Pegando na vasilha de querosene cheia até acima, arrastei-a pelo chão, lentamente e com ambas as mãos, evitando ao máximo derramar uma gota que fosse. Depois, levei-a pela porta das traseiras e percorri o longo trilho poeirento que dava direta-mente para o forno. Já tinha os vestidos todos empilhados –  uns em cima dos outros – sobre os tijolos do forno, contas e bordados refletindo o sol, texturas e tecidos pesados como chumbo irreme-diavelmente expostos. Mesmo quando uma rajada de vento varria o jardim, os vestidos permaneciam tesos como cadáveres. Olhando fixamente para a pilha de roupa, hesitei por um segundo apenas: era quase criminoso incendiar aquelas belas peças de vestuário, mas ignorar aquilo que eu sabia era como assinar a minha própria sen-tença de morte. Encharquei a pilha de vestidos com o querosene cristalino como água, e acendi um fósforo. Recuando um passo, vi a chama atear-se como uma pequena estrela-cadente.

Numa súbita explosão, senti o ar estremecer à minha volta, re-volteando-me o cabelo e roubando-me o fôlego, e a pilha de vestidos desapareceu num ápice por detrás de uma parede de fogo. Todas as contas e cristais faiscaram, desfeitas numa explosão escaldante e car-mim de pequenas brasas diretamente projetadas para o azul do céu, envoltas numa espiral de fumo negro. Todo aquele arco-íris vívido e sedoso se desintegrou em escassos minutos, transformando-se em castanhos e negros. Corri para casa, descobri as calças e a camisa do meu irmão – um traje a que chamamos shalwar kameez – e vesti-as.

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Depois, fui à cozinha e tirei de uma gaveta uma faca afiada. Num segundo, vi-me a decepar as longas madeixas do meu cabelo entran-çado e a lançá-las para a fogueira, vendo-as desfazerem-se pronta-mente em cinzas.

O meu pai, sem que o tenha visto, deixara-se ali ficar parado por um longo momento, observando tudo – o olhar passando da filha rebelde que se deslocava em movimentos rápidos e animados para a pilha inerte de vestidos incinerados. Vim a saber, muito tempo de-pois, que naquela tarde abrasadora, ele viu em mim outra rapariga – a irmã que ele não conseguira salvar muitos anos antes.

De uma janela lá de cima, ele vislumbrara a figura franzina da irmã, arrastando pesadamente dois baldes de ferro galvanizado cheios de água do rio pelo pátio da casa da família. De repente, ela parou, estranhamente petrificada, como que colada ao chão. Ele viu o primeiro balde cair, depois o segundo. A água espalhou-se pelo chão de pedras quentes, enquanto os baldes rolaram aos seus pés, encharcando-lhe a bainha do vestido. Ouviu a irmã arquejar de dor uma única vez, e viu o seu corpo tombar – como que subitamente atingido por um raio.

Quando chegou junto dela, encontrou-a prostrada no chão, o céu sereno e límpido refletido nas cúpulas dos seus olhos escancarados. Estava morta. As pessoas da aldeia afirmaram que ela tinha o cora-ção dilatado, ou outra qualquer maleita que lho fez parar. Mas o meu pai sabia que morrera devido única e exclusivamente ao insustentável peso das suas variadas mágoas. A irmã dele havia sido exatamente como eu – forte, andrógina e temperamental. Era simplesmente im-possível uma maria-rapaz sobreviver no cativeiro imposto às rapari-gas pela nossa cultura.

Já homem feito, o meu pai testemunhara o suicídio de inúmeras raparigas para escaparem à sua triste sorte – primas que se envenena-ram para evitarem casamentos arranjados, outras que simplesmente deixaram de comer até perecerem. Muitas encharcavam-se em que-rosene e imolavam-se pelo fogo. Uma vez, vira uma rapariga da al-deia a elevar-se como uma tocha humana. Viu o que restava do seu corpo incinerado. Outras raparigas lhe seguiram o exemplo, ainda que o mais comum fosse ser-lhes feito a elas como punição – noivas

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queimadas por disputas de dotes ou por condenação reservada a um qualquer pecado imperdoável.

– A minha irmã era como tu, Maria, forte e distinta, nascida do leão, e eles não a deixaram ser.

Por fim, o meu pai aproximou-se da fogueira e parou a meu lado, rindo. E passou a mão pelo meu cabelo escortinhado.

– O meu novo filho será homenageado em honra a um grandioso guerreiro, e à batalha ganha sem sangue derramado. Vamos chamar--te Gengis Khan.

Depois baixou-se e repetiu suavemente o nome ao meu ouvido esquerdo – e no direito sussurrou-me o azan sagrado, a nossa cha-mada à oração. E foi então que Maria desapareceu.

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Um

Por entre as montanhas

Cadeias montanhosas arrebatadoras enquadravam a minha casa de infância numa vista panorâmica infinita singelamente conhecida por «Lar de Deus». Punhais maciços de rocha, inundados de luz da cor do fogo. Aninhados por entre os picos, ocultos em suaves bol-sas, corriam ribeiras debruando aldeias feitas de pedra e adobe. E, lá no alto, uma imensa cúpula azul de céu cristalino estendendo-se infi-nitamente. Nos vales, onde o milho crescia e as ovelhas pastavam, por vezes não se via vivalma. Não se ouvia um único som. Uma pessoa podia percorrer dias a fio as planícies sem ver ninguém, e no entanto sentir o toque de Deus em todo o lado.

Para mim, aquela terra linda e serena era o paraíso. Contudo, quando o mundo pensa na minha terra, visualiza um posto avan-çado do inferno. Em forma de martelo, o Vaziristão do Sul – cerca de quatro mil quilómetros quadrados que se estendem pela ilícita e sangrenta fronteira do Afeganistão – faz parte do Território Federal das Áreas Tribais (FATA) a noroeste do Paquistão, mas na realidade governa-se a si próprio através de um antigo e tirânico sistema de leis tribais. Como quartel-general atual do Talibã, a minha terra natal é considerada o local mais perigoso do mundo, mas permanece na minha mente como o lar tribal a que eu, se pudesse, regressaria a correr sem pensar duas vezes – caso não existisse por lá ninguém que me quisesse ver morta.

Pelas tardes da minha infância corria uma brisa constante em que as lufadas dançantes passavam de frias a quentes, e de novo a frias. Mas quando o tempo mudava, antes de uma tempestade, ou

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nas mudanças de estação, um vento novo apropriava-se das monta-nhas, varrendo os picos com longas tiras de nuvens, e envolvendo as cordilheiras como espessas faixas de gaze. Exóticos odores sem nome, e – tal como imaginei – mundos inteiros invisíveis sopravam esse mesmo vento doce, desafiando a minha mente a vaguear muito para lá da serenidade da nossa casa entre as montanhas.

A mesma brisa soprou no dia em que nasci, 22 de novembro de 1990, numa aldeia como qualquer outra, pequena e pacífica, uma mancha insignificante aninhada por entre um extenso e verdejante vale. Yasrab, a minha mãe, tinha vinte e seis anos e ninguém a aju-dou no parto – nem médico ou hospital, um simples medicamento de que tipo fosse. As mulheres da vizinhança entravam e saíam com malgas de água fresca, sussurros rápidos e faixas de pano lavadas. Os homens ficaram na mesquita a rezar, chupando cubos de açúcar e mangas colhidas nas matas – a uma prudente e agradável distância. A sala de parto era mantida sombria e silenciosa, mal se ouvindo um pio através da pesada porta trancada. Quando tudo acabou, era per-feitamente indiferente ao clã que o meu primeiro choro fosse robusto ou lamentoso, ou que estivesse viva ou morta. Cheguei ao mundo tal como a minha irmã Ayesha Gulalai quatro anos antes – uma rapariga: uma mácula aos olhos da nossa tribo.

O meu pai, Shams Qayyum, que ainda nem trinta anos tinha, era um homem liberal de sangue nobre, ou seja, um renegado entre os pastós. Shams nunca me fez, ou à minha irmã, sentir-me inferior ao nosso irmão, Taimur Khan, nascido cinco anos antes de mim, ou aos gémeos Sangeen Khan e Babrak Khan, que surgiram como uma dupla bênção quando eu tinha quatro anos. Ao contrário das outras famílias pastós, em que as fêmeas eram subservientes aos machos, todos nós vivíamos como iguais no seio da nossa grande casa de adobe. Juntos, aderimos à nossa fé muçulmana, cumprindo jejuns e festividades e rezando cinco vezes por dia, mas o meu pai ensinou-nos que todos os povos do mundo tinham as mais diversas formas de chegar a Deus.

Na nossa família éramos livres-pensadores, e era esse atributo que nos tornaria proscritos dentro da nossa própria tribo e, em si-multâneo, nos tornaria livres.

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Todos os habitantes do Vaziristão, Norte e Sul, são conhecidos por «wazir», que representa igualmente um nome atribuído a uma tribo pastó em expansão por entre as várias existentes na região –  unidas pelo mesma língua, o pastó, e governadas pelo mesmo código de honra pashtunwali, com as leis ancestrais que estabele-cem as nossas variadas rivalidades e disputas sangrentas. Ainda que os wazir se dispersem por clãs, surgimos como um povo perante ameaça estrangeira. Nenhum poder exterior, por mais influente, por mais avançado que seja o seu armamento, conseguiu subjugar os wazir, ou sequer ocupar o nosso antigo território por um dia que fosse. Os imperialistas britânicos, com a sua vasta experiência na conquista e colonização, lançaram legiões de soldados fardados sobre o coração do Vaziristão, mas depararam-se com intrépidos guerreiros wazir que os fizeram bater em retirada, massacrando quatrocentos soldados britânicos numa tarde, segundo o que o meu pai me contou em tempos com inegável orgulho. A quem quer que os visite, os pastós estão dispostos a oferecer o mais valioso dos seus bens, mas insultem-nos uma vez e terão a vossa cabeça dentro de um saco num simples piscar de olhos.

Durante a minha infância, nunca conheci uma simples alma que não fosse do meu sangue, os quais reconhecia com um vislumbre apenas. Mesmo que conseguissem aqui chegar, os turistas jamais vi-sitariam o meu pequeno e recôndito quinhão do mundo. Nenhum estrangeiro conseguiria pôr um pé na nossa terra sem ser observado e de imediato identificado pelo escuro olhar wazir. O povo wazir é alto e corpulento, com membros fortes e mãos grandes e poderosas. Protegendo-se a si próprias, as mulheres wazir são intrépidas, e as suas potentes vozes trovejam e estremecem das entranhas dos seus corpos. Costuma dizer-se que sempre que uma mulher wazir fala, é melhor ouvi-la. Reza a história de que o nosso povo é descendente de um famoso líder pastó chamado Suleiman e do seu filho, Wazir.

Das suas descendências, muitas tribos floresceram e espalharam--se num gigantesco afluente humano, dissipando massas de terra onde assentavam.

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No mapa, o Vaziristão surge como um remendo cosido nas orlas rasgadas do Paquistão, assente na fronteira afegã e estendendo-se pela cordilheira Preghal. Linhagens partilhadas e um passado entre-laçado, que teve início nos antigos vales do Afeganistão, extravasam a fronteira e entram diretamente pelo sinuoso Passo do Khyber, na Rota da Seda. Nenhuma fronteira cravada em solo rochoso com a boca de uma espingarda, ou pintada em papel com o sangue de milhares de pessoas, seria profundo para conseguir despedaçar a trama da nossa linhagem comum. Onde quer que me encontrasse, a minha terra, o meu povo e o meu pai jamais me deixaram esquecer que eu era wazir de sangue puro. Sou wazir antes de mais.

Todas as memórias que retenho da nossa primeira casa, com os seus sólidos tijolos pucca, começam da mesma maneira: o início lento de um filme numa manhã silenciosa, os cálidos raios de sol refletidos em tudo. Em minha casa parecia existir uma magia na forma como nascia o dia, ainda que fosse sempre a mesma rotina, como um hino familiar de atividade tocando em todas as casas de todas as aldeias. Todas as mães pastó acordavam de manhã muito cedo, antes ainda do primeiro cantar do galo. Uma mãe tribal dispensava despertador ou grande premeditação para dar início ao seu dia. A sua obrigação – pôr em marcha o ritmo da família – era tão sagrada e inata quanto o bater do seu coração, abrindo-lhe os olhos por mais exausta que estivesse da labuta doméstica da véspera. Tudo o que uma mãe wazir fazia era pautado pelos ensinamentos do longo e sulcado trilho se-guido pelas mães, avós e bisavós antes dela. Não lhe era permitido operar de outro modo. Não tinha acesso à televisão, nem a jornais e revistas, e mesmo os rádios eram escassos. O conhecimento em si era um perigoso estranho, nada confiável – muito menos bem-vindo.

Eu cresci com a prática aceite de que as mulheres pastós se man-tinham em casa, aventurando-se apenas a pôr um pé na rua quando devidamente envelopadas dos pés à cabeça com vestimentas chama-das abayas ou burcas, ou longos xailes chamados xadores. E sem-pre acompanhadas por um homem – ou um simples rapazinho –, constantemente a seu lado. Ao costume de se restringir uma mulher desta maneira – rendida ao seu dever entre quatro paredes e oculta pelas suas roupas – chamava-se purdah, a ultraconservadora prática

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muçulmana de se isolar e velar as mulheres para não serem vistas pelos homens. Uma prática jamais questionada, da mesma forma que ninguém poderia questionar a direção do vento ou o nascer e pôr do sol. Para os estranhos, este costume tinha os contornos de uma prisão, mas para mim, pelo menos nessa época, as mulheres nunca me pareceram infelizes vestidas assim. Havia uma genuína harmonia em saber aquilo a que todas fôramos predestinadas, onde todas pertencíamos. E na realidade pertencíamos – ao nosso papel dentro de casa e à posição da nossa família dentro da tribo. Acredi-tei nisto até parar de acreditar.

Sempre imaginei que o acordar da minha mãe incutia um espí-rito diligente em todos os que acordavam depois dela – o meu pai, a minha irmã, os meus irmãos e eu própria. Antes de ela se levantar para encarar o dia, nada existia senão um vazio infinito: nem céu, nem chão, nem rio, nem vale de montanha para vislumbrar. O des-pertar da minha mãe tinha o condão de acender o Sol, tal como quando empilhava lenha e acendia o fogo para cozinhar.

No âmago da nossa casa de adobe, a família –  nos seus quar-tos frios e escuros a cheirar a terra – acordava paulatinamente, um por um. Para bem do lar, que com frequência incluía várias famílias multigeracionais, as mães wazir eram as primeiras a levantar-se e, num eco gigante, os filhos seguiam-se-lhes. Os homens, quais feras entregues ao sono dos deuses, eram sempre os últimos a acordar. Os mais novos tomavam conta dos mais velhos, barbeando-lhes os ros-tos enrugados e coriáceos, vestindo-os e penteando-os. No Vaziris-tão, muitas pessoas viviam em grandes casas, recintos emparedados para famílias numerosas viverem juntas sob o mesmo teto – tios e tias, primos e avós e, claro, os filhos. As famílias faziam questão de construírem juntas as suas casas, e cada um tinha a sua posição na hierarquia – com os anciãos no topo – como uma máquina com-posta por inúmeras e movíveis peças.

Até aos pássaros, que todos venerávamos, era reservado um lugar especial. Bastávamo-nos retirar da parede do nosso alpendre um único tijolo pucca de forma a acolher o ninho de um pombo, que de imediato surgia um para se instalar no seio da nossa família, mo-vido por um qualquer instinto que eu nunca consegui compreender.

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