A Filha da Revolução

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CLÁSSICOS C O N R A D

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John Reed teve dez anos, os últimos de sua curta exis-tência, para se transformar em um herói. Nesse tempo escreveu Os dez dias que abalaram o mundo, que é considerado um marco na história do jornalismo e o principal livro-reportagem do século XX.

Teve também o cuidado de cruzar todas as fronteiras que viu pela frente. Das pros-titutas de Nova York a Trotsky. E isso fica claro em seu texto.

As histórias de A filha da revolução são crônicas (esta é a melhor palavra?) que John Reed escreveu para publi-cações alternativas de seu tempo, num trabalho paralelo ao que fazia para a grande imprensa.

São um exemplo da mis-tura de literatura e realidade, que fez alguém dizer que “se a vida de John Reed parece ficção, seus contos são sem-pre fatos”.

John Reed aparece aqui como um elo entre Mark Twain, Jack London, Walt Whitman e aquilo a que nos acostumamos chamar de new

“A reportagem como conhecemos começa com John Reed. E, por acaso, as reportagens dele

são literatura” Walter Lipmann

“O que nos salta aos olhos é um entusiasmo e um amor à vida, uma observação apurada e muitas vezes eufórica do mundo aliada a uma

impetuosidade própria da juventude” Lawrence Ferlinguetti

“Jack Reed foi o melhor escritor americano do seu tempo”

John dos Passos

“Ele era um poeta que conseguia compreender a ciência. Ele era um idealista que conseguia

encarar os fatos” Max Eastman

C L Á S S I C O S C O N R A D

John Reed, 1912.

ISBN 85-87193-14-7

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C L Á S S I C O S CONRAD

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Copyright © 1927, Vanguard Press Inc.

Copyright desta edição © 2000, Conrad Editora do Brasil

CONRAD LIVROS

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Fone: 11 279.9355 Fax: 11 3341.7752e.mail: [email protected]

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EDITORA ASSISTENTE: Priscila Ursula

CAPA: Kalu Castro e Ayala Jr.

(baseada no original norte-americano)

TRADUÇÃO: Laura Pinto Rebessi

PREPARAÇÃO DE ORIGINAIS: Bárbara Guimarães Arányi

REVISÃO: Sandra Martha Dolinsky

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reed, John, 1887-1920. A filha da revolução / John Reed ; tradução de Laura Pinto Rebessi. -- São Paulo : Conrad Editora do Brasil, 2000.

Título original: Daughter of the revolution and other stories ISBN 85-87193-14-7

1. Contos norte-americanos I. Título

00-0715

Índices para catálogo sistemático:1. Contos : Século XX : Literatura norte-americana

813.52. Século XX : Contos : Literatura norte-americana

813.5

CDD-813.5

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Sumário

Prefácio......................................................A filha da revolução....................................O mundo perdido.......................................Noite na Broadway.....................................Mac, o americano.......................................Endymion ou na fronteira..........................Retratos mexicanos....................................Os direitos das pequenas nações ................A coisa certa a fazer.......................................O chefe de família......................................O capitalista..............................................Onde o coração está...................................Um gosto de justiça....................................Ver é crer....................... .............................Outro caso de ingratidão............................Vinhetas revolucionárias............................

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Prefácio

“É um pouco embaraçoso ter que admitir para um sujeito que você conhece que ele é um gênio.” As palavras de Walter Lippmann a respeito de John Reed demonstram como o autor de Os Dez Dias que Abalaram o Mundo era visto já por seus contemporâneos. Um gênio e um herói. Muitos heróis reunidos em um só homem. Poucas pes-soas tiveram maneiras tão espetaculares de transformar suas idéias em prática.

Filho de uma família rica e tradicional do Oregon, John Reed forma-se em Harvard em 1910. Depois da formatura, parte para a Europa. A típica atitude de um estudante da Harvard de seu tempo. A diferença é que Reed faz sua viagem como trabalhador em um cargueiro. Desembarca na Inglaterra já preso, acusado de assas-sinato. Ele prova sua inocência e segue como andarilho pela Inglaterra, Espanha e França. Arrumando um jeito de, novamente, ser detido nesses outros países.

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“A verdadeira paixão de Jack é ser preso”, reclama um amigo irritado ao receber a notícia de que John Reed estaria em uma cadeia na Itália, por nadar em uma fonte desenhada por Michelângelo.

Volta para os Estados Unidos e, em pouco tempo, é proclamado o Golden Boy da cena boêmia de Greenwich Village. Suas poesias são publicadas ao lado das de Ezra Pound, William Butler Yeats e William Carlos Williams.

Quando resolve fazer teatro, coloca mais de dois mil operários grevistas representando operários grevistas, no Madison Square Garden, e o seu espetáculo é aclamado como uma nova forma de arte. Decide ser repórter e ra-pidamente torna-se tão popular que seu salário passa a ser um dos maiores da América. Os jornais o anunciam como “o Kipling americano”, quando isso era um grande elogio. E o próprio Kipling vem a público para elogiar, de maneira entusiástica, o trabalho de John Reed.

Seus contemporâneos acompanham todas as suas aventuras. Chocados e, ao mesmo tempo, maravilhados. Num dado momento, John Reed está preso junto com trabalhadores imigrantes grevistas, em outro está vivendo com uma milionária em Florença. Ora está cavalgando junto ao exército de Pancho Villa durante a revolução mexicana, ora está numa festa em Paris com Gertrude Stein e Pablo Picasso. Ou nas trincheiras nos Bálcãs. Ainda na França, apaixona-se pela namorada de um amigo e foge com ela para tentar se casar em Berlim, em plena Primeira Grande Guerra. Logo chega a notícia de que está preso na Rússia czarista. Mas depois está noutra prisão, na Finlândia.

Então, Reed aparece defendendo a si próprio num julgamento espetacular nos EUA. Nesse meio tempo, consegue fazer teatro com Eugene O’Neill, entrevistar Trotsky, jogar em Monte Carlo e ser aplaudido por guer-

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rilheiros mexicanos numa de suas brilhantes exibições de bebedeira. Quando morre, aos 33 anos, é enterrado com todas as honras na Praça Vermelha, como herói da Revolução Russa. Passara-se apenas dez anos desde o dia em que se formara em Harvard.

Um humorista bolchevique, um desordeiro profissio-nal, fundador do Partido Comunista Norte-americano e defensor da revolução sexual, um jornalista que era notí-cia, um “playboy da revolução” e um feminista militante, John Reed teve o cuidado de cruzar todas as fronteiras que viu pela frente.

E isso aparece claro em seu texto. Se Os Dez Dias que Abalaram o Mundo é considerado um marco na história do jornalismo e o principal livro-reportagem do século XX, é, ao mesmo tempo, literatura. E se as histórias deste livro são jóias da literatura norte-americana, são também reportagens.

John Reed aparece aqui como um elo entre Mark Twain, Jack London, Walt Whitman e aquilo a que nos acostumamos chamar de new journalism.

As histórias deste livro são crônicas (esta é a melhor palavra?) que John Reed escreveu para publicações al-ternativas de seu tempo, num trabalho paralelo ao que fazia para a grande imprensa.

“Mesmo quando os cofres dos magnatas do jornalismo se abriram para ele e seu nome era famoso em todo o país, Jack Reed sempre foi fiel à nossa pequena revista revolucionária, que não pagava nada e não tinha mais que dez mil leitores”, conta Max Eastman, na época editor do The Masses. “Ele nunca falhou em suas colaborações. Não importava onde estivesse, nunca deixou de nos enviar histórias melhores que aquelas que vendia para seus empregadores.”

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O conto que dá nome a este livro é um exemplo da mistura de realidade e literatura, que fez alguém dizer que “se a vida de John Reed parece ficção, seus contos sem-pre são fatos”. Publicada pelo The Masses em fevereiro de 1915, “A filha da revolução” retrata a perplexidade de Reed e sua geração ante a brutalidade estúpida e tediosa da Primeira Guerra Mundial.

Sabe-se que Reed realmente freqüentou aquele peda-ço de Paris durante a Guerra. O personagem chamado Fred é na verdade Fred Boyd, socialista inglês e amigo de Reed. Marcelle talvez não tenha existido antes, mas aparece tão viva neste conto que certamente passou a existir de fato depois.

A história seguinte, “O mundo perdido”, é tão impres-sionante quanto, pelo que tem de atual. O personagem Takits, um ex-militante comunista sérvio, transformado em soldado leal do exército nacionalista sérvio, mostra o quanto a História pode se repetir. Foi publicada em fe-vereiro de 1916 também pelo The Masses, mas soa como um retrato dos Bálcãs de hoje, perdidos em guerras e esquecimentos fatais.

Em abril, dois meses depois de “O mundo perdido”, o The Masses publicou “Noite na Broadway”. E no mês seguinte, “O capitalista”. Duas histórias em Nova York. Esta é a cidade de Reed. Não a Nova York do Poder, mas a cidade dos vagabundos, prostitutas, mendigos e malan-dros. É dela que Reed fala também em “Onde o coração está”, “Outro caso de ingratidão”, “Um gosto de justiça” e “Ver é crer”. São algumas das histórias mais citadas por aqueles estudiosos que consideram Reed precursor de Norman Mailer, Hunter S. Thompson e Tom Wolfe.

“Mac, o americano” realmente existiu. Um sujeito a quem o escritor recorreu como auxílio para conseguir entrar nos sertões do México durante a Revolução de

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Villa e Zapata. A antipatia de Reed pelo companheiro é explícita. Se esse conto amarra-se com “Endymion” e “Retratos mexicanos” como descrição da marginália norte-americana na fronteira, amarra-se também a “Os direitos das pequenas nações” como retrato do “ameri-cano horrível”. Vemos aqui o avô daquele americano de camisa havaiana e óculos Rayban envolvido em negocia-tas sangrentas da United Fruits ou nas ações da CIA em defesa do “Mundo Livre”. Cínicos, corruptos, arrogantes e incapazes de ver qualquer beleza em algo que não seja uma América Branca idealizada, que só existe na TV. Reed até pode desprezar aristocratas decadentes como os personagens de “A coisa certa a fazer”, “Endymion” e “O chefe de família”, mas seu ódio sempre esteve re-servado para os americanos tranqüilos de mãos sujas, como Mac e Frank.

O livro vai então à Rússia das vésperas da revolução bolchevique. Fala de soldados disputando cigarros, lama, esperanças e de um gentil pastor ortodoxo desempre-gado que perdeu suas ovelhas para a Revolução. Então chegamos em Chicago, em um julgamento de militantes operários.

Paris, Bálcãs, Texas, Nova York, México, Rússia e Chicago. John Reed não seguiu o conselho de cantar sua aldeia para falar do Universo. Mas Reed falou de seu tempo, e assim falou de todos os tempos.

Rogério de Campos

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Naquela noite caía uma dessas chuvas de Paris que parecem nunca molhar como as outras. Estávamos sentados no terrasse do Rotonde, mesa do canto, Fred, Marcelle e eu, bebendo um Dubonnet. Era uma noite quente, apesar de ser novembro. Em função da guerra, todos os cafés fechavam às oito em ponto, e nós sempre costumávamos ficar até essa hora.

Perto de nós estava um jovem oficial francês, com a cabeça envolvida por uma bandagem e o braço conforta-velmente em torno dos ombros de Jeanne, cobertos por uma capa verde. Beatrice e Alice estavam mais afastadas, sob o clarão das luzes. Atrás de nós havia uma fenda na cortina da janela, através da qual podíamos espiar – e sobreviver – a sala fumacenta de dentro: um ruidoso grupo de homens prensados entre garotas, batendo nas mesas e cantando, dois velhos franceses em seu tranqüilo jogo de xadrez, um compenetrado estudante escrevendo uma carta para casa, a cabeça de sua amie apoiada em seu ombro, cinco estranhos absolutos e o garçom ou-vindo sem fôlego as histórias de um soldado de pernas enlameadas, recém-chegado do front.

As luzes amarelas inundavam-nos e salpicavam com ouro o negro e brilhante asfalto. Pessoas com guarda-chuvas passavam numa corrente constante. Um velho farrapo humano procurava furtivamente por bitucas de cigarros sob nossos pés. Na rua, o arrastar de pés de homens marchando passava, mas nossos ouvidos já estavam acostumados e indiferentes. As baionetas pingando cruzavam um raio de luz vindo do outro lado do Boulevard Montparnasse.

Naquele ano todas as garotas no Rotonde vestiam-se igual. Tinham pequenos chapéus redondos, cabelo curto, cinturas baixas e capas longas, até os pés, com as pontas jogadas sobre os ombros à moda espanhola. Marcelle era a imagem das outras. Além disso, seus

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lá-bios estavam pintados de escarlate, suas faces eram muito brancas e falava obscenidades quando não estava em seus momentos de dignidade. Nestes, era sentimen-tal. Presenteara-nos com a história de sua muito rica e respeitável família, de como fora tragicamente seduzida por um duque, de sua virtude inata – e orgulhosamente deixara bem claro que não era uma vagabunda qual-quer…

Naquele momento, ela alternava comentários malicio-sos com apelos por dinheiro a quem passava diante de seus olhos, numa vozinha irritante. E eu pensei comigo que nós já conhecíamos Marcelle a fundo. Seus comen-tários sobre coisas e pessoas eram pungentes, vigorosos, originais, mas suavizavam-se depois de um tempo. Seu alvoroço e seu amor desavergonhado pela vida durariam só mais um pouco. Ela já estava corrompida pelo muito uso...

Ouvimos uma discussão violenta e uma garota alta vestindo um suéter laranja saiu, seguida por um garçom que gesticulava e exclamava:

“Mas os oito anisettes que você pediu, nom de Dieu!”“Eu disse que vou pagar”, gritou ela, estridente, por

cima do ombro. “Vou ao Dome fazer algum dinheiro.” E atravessou correndo a rua iluminada. O garçom ficou parado, olhando para ela, mexendo com os trocados em seu bolso.

“Não adianta esperar”, gritou Marcelle. “O Dome tem outra porta na Rue Delambre!” Mas o garçom não prestou atenção. Ele mesmo já pagara as bebidas no caixa. E, de fato, a garota nunca mais apareceu.

“Esse truque é velho”, disse-nos Marcelle. “É fácil, quando você não tem dinheiro, pegar uma bebida do garçom, porque eles não ousam pedir para você pagar adiantado. É uma coisa boa de se saber em períodos de

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guerra, quando os homens são tão poucos e pobres...”“Mas, e o garçom!”, objetou Fred. “Ele também tem

que ganhar a vida!”Marcelle deu de ombros. “E nós a nossa”, disse ela.“Costumava haver uma belle type pelo Quarter”,

continuou ela depois de um minuto, “que chamava a si mesma de Marie. Ela tinha um cabelo lindo – épatante – e adorava viajar... Uma vez encontrou-se em um barco no Mediterrâneo, rumo ao Egito, sem um sou – nada além da roupa do corpo. Um monsieur passou por ela enquanto se debruçava sobre a amurada, e disse: ‘Você tem um cabelo maravilhoso, mademoiselle’.

“‘Eu o vendo para você por cem francos’, respondeu ela rapidamente. E então cortou fora seu lindo cabelo e foi para o Cairo, onde conheceu um lorde inglês.”

O garçom deu um suspiro profundo, sacudiu triste-mente a cabeça e entrou. Ficamos calados, pensando em jantar. A chuva caía.

Não sei como isso aconteceu, mas Fred começou a assobiar distraidamente a Carmagnole. Eu não teria notado se não ouvisse uma voz acompanhando. Olhei em volta e vi o oficial francês machucado, cujo braço caíra dos ombros de Jeanne, olhando para o nada do outro lado da calçada, cantarolando a Carmagnole. Que visões estaria tendo esse jovem de aparência sensível, trajando o uniforme do exército de seu país, cantando a canção da revolta! Quando olhei, caiu em si, parecendo tomar consciência, e levantou-se rápido, arrastando Jeanne com ele.

No mesmo instante Marcelle agarrou Fred pelo bra-ço.

“É défendu… vai fazer com que sejamos todos pegos!”, gritou ela, com algo mais forte que medo nos olhos, des-pertando meu interesse. “E, além disso, não cante essas

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canções sujas. Elas são revolucionárias, cantadas por voyous… pobres… esfarrapados...”

“Então você não é uma revolucionária?”, perguntei.“Eu? Bien, não, eu juro para você!”, sacudiu a cabeça

violentamente. “Os méchants, os vilões, eles querem dei-xar tudo de cabeça para baixo!” Marcelle tremeu.

“Olhe aqui, Marcelle! Você está feliz no mundo do jeito como ele está? O que mais faz por você, além de mandá-la para as ruas, para se vender?” Fred estava tomado agora por uma onda fervente de propaganda. “Quando o dia vermelho chegar, eu sei de que lado das barricadas vou estar...”

Marcelle começou a rir, uma risada amarga. Era a primeira vez que eu a via sem autocontrole.

“Ta gueule, meu amigo”, interrompeu ela, brusca-mente. “Conheço esse papo! Eu ouvi isso desde que era deste tamanho... Eu sei.” Ela parou, riu para si mesma e lançou: “Meu avô foi fuzilado contra uma parede em Père Lachaise por carregar uma bandeira vermelha na Comuna”. Parou, olhou para nós envergonhada e sorriu. “Por isso, vocês vêem que venho de uma família sem valor nenhum…”

“Seu avô!”, gritou Fred.“Basta do meu avô!”, disse Marcelle, indiferente. “Dei-

xemos o velho louco, de mãos sujas, o bobo, descansar em seu túmulo. Eu nunca falei dele antes e não vou acender velas pela sua alma...”

Fred alcançou a mão dela. Estava exaltado. “Deus salve o seu avô!”

Com a sagacidade de sua profissão, Marcelle perce-beu que, por algum motivo misterioso, agradara. Como resposta, começou a cantar baixinho as últimas linhas da Internationale.

“C’est la lutte finale…”, coqueteou com Fred. “Conte-nos mais sobre seu avô”, pedi.

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“Não há nada mais a contar”, disse Marcelle, meio envergonhada, meio satisfeita e totalmente irônica. “Ele era um homem selvagem de Deus sabe onde. Não tinha mãe nem pai. Era pedreiro e, segundo dizem, um bom trabalhador. Mas desperdiçava seu tempo lendo livros e estava sempre em greve. Era um bárbaro, sempre gritan-do ‘Abaixo o governo e os ricos!’. As pessoas o chamavam de Le Farou. Lembro-me do meu pai contando como os soldados vieram tirá-lo de casa para fuzilá-lo. Meu pai era um rapaz de catorze anos, e escondeu meu avô embaixo do colchão da cama. Mas os soldados cutucaram o lugar com suas baionetas, uma atravessou seu ombro, e eles viram o sangue. Então meu avô fez um discurso para os soldados – ele estava sempre fazendo discursos – e pediu a eles para não acabarem com a Comuna... Mas os soldados apenas riram dele.” E Mar-celle riu, porque era divertido.

“Mas meu pai…”, continuou, “Céus! Ele era ainda pior. Lembro-me da grande greve nas obras de Creusot – espere um minuto – era o ano da Grande Exposição. Meu pai ajudou a fazer aquela greve. Meu irmão era, então, só um bebê. Tinha oito anos e já estava trabalhando, como as crianças pobres fazem. E na manifestação dos grevistas, de repente, meu pai ouviu uma vozinha gritando para ele através das filas: era meu irmãozinho, marchando com uma bandeira vermelha como um dos camaradas!

“‘Olá, velho!’, ele chamou o meu pai. ‘Ça ira!’ “Eles atiraram em vários homens naquela greve.” Mar-

celle balançou a cabeça, enojada. “Argh! A escória!”Fred e eu tremíamos de frio por termos ficado muito

tempo na mesma posição. Batemos na janela e pedimos mais conhaque.

“E agora vocês já ouviram o suficiente sobre a minha

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família miserável”, disse Marcelle, numa tentativa de tornar as coisas mais leves.

“Continue”, disse Fred, rouco, com olhos brilhantes.“Mas você vai me levar para jantar, n’est-ce pas?”, in-

sinuou Marcelle. Eu disse que sim. “Pardié!”, continuou, com um sorriso. “Não foi assim que meu pai morreu… Ele! Depois que meu avô morreu, meu velho não conseguia encontrar trabalho. Estava passando fome e ia de casa em casa pedindo comida. Mas as mulheres dos camara-das de meu avô fechavam a porta na cara dele, dizendo: ‘Não lhe dê nada, o salaud. Ele é filho de Le Farou, que foi fuzilado’. E meu pai arrastava-se entre as mesas dos cafés, como um cachorro, em busca de migalhas para manter seu corpo e sua alma. Isso me ensinou muito”, disse Marcelle, balançando seu cabelo curto, “a manter sempre boas relações com aqueles que me alimentam. É por isso que não roubo do garçom como aquela garota fez: e digo a todos que minha família era respeitável. Eles podem me fazer sofrer pelos pecados do meu pai, como ele sofreu pelos do pai dele.”

Tudo ficou claro para mim e mais uma vez o intrigante primitivismo da humanidade justificou-se. Ali estava a chave para Marcelle, sua fraqueza, sua futilidade. Então não fora o vício que a desviara do caminho, mas a in-tolerável degradação do espírito humano pelos mestres da Terra, a terrível punição daqueles que lutam por liberdade.

“Lembro-me como”, disse ela, “depois que a greve de Cresout terminou, os patrões livraram-se dos trabalhado-res que causavam confusão. Era inverno e, por semanas, tínhamos apenas a madeira que minha mãe apanhava nos campos para nos aquecer – e um pouco de pão e café que o Sindicato nos dava. Eu não tinha mais do que quatro anos. Meu pai decidiu ir a Paris e nós fomos – caminhando.

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Ele me carregava em um ombro e no outro uma pequena trouxa de roupas. Minha mãe carregava outra, mas ela já tinha tuberculose e precisava descansar a cada hora. Meu irmão vinha atrás... Percorremos a estrada branca, reta, coberta pela neve suave, entre os altos choupos nus. Dois dias e uma noite... Quando veio a escuridão, amontoamo-nos numa cabana abandonada, minha mãe tossindo, tossindo. Depois saímos de novo, antes do Sol nascer, vagando pela neve. Meu pai e meu irmão gritando frases revolucionárias, e cantando:

‘Dansons la CarmagnoleVive le son… Vive le son…Dansons la CarmagnoleVive le son du canon!’”

Marcelle levantou a voz, inconscientemente, enquanto cantava a canção proibida. Suas bochechas coraram, seus olhos estalaram, e batia o pé. De repente, parou e olhou em volta com medo. No entanto, ninguém havia notado.

“Meu irmão tinha uma vozinha aguda, como a de uma menina, e meu pai começava a rir quando via o filho marchando inflexivelmente a seu lado, rugindo as canções de ódio como um velho grevista.

“‘Allons! Petit chemineau…, seu pequeno vagabundo! Aposto que a polícia vai conhecer você um dia!’ E ele dava um tapa em suas costas. Isso fazia minha mãe empa-lidecer e, às vezes, durante a noite, ela saía da cama e ia até o canto onde meu irmão dormia. Acordava-o para dizer, chorando, que ele devia crescer para ser um bom homem. Uma vez meu pai acordou e pegou-a – mas isso foi mais tarde, em Paris...

“E eles cantavam: ‘Debout frères de misère!

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(Avante, irmãos da miséria!)Ne voulons plus de frontières;(Não queremos mais fronteiras;)Pour égorger la bourgeoisie,(Para saquear a burguesia,)Et supprimer la tyrannie,(E suprimir a tirania,)Il faut avoir du cœur,(Nós precisamos ter coração,)Et de l’énergie!’(E energia!)

“E então meu pai olhava para a frente com olhos brilhantes”, prosseguiu Marcelle, “marchando como um exército. Toda vez que seus olhos brilhavam daquele jeito minha mãe tremia – porque significava alguma luta incansável e terrível contra a polícia, ou uma greve sangrenta, e ela temia por ele. Eu sei como ela devia se sentir, pois era uma seguidora da lei como eu. E o meu pai, ele não tinha jeito.” Marcelle estremeceu e tomou seu conhaque de um só gole.

“Eu só comecei a saber das coisas depois que viemos para Paris, porque então comecei a crescer. Minha pri-meira lembrança, praticamente, é de quando meu pai liderou a grande greve no Thirion’s, o campo de carvão na Avenida de Maine, e veio para casa com o braço quebrado pela polícia. Depois disso era trabalho, greve… trabalho, greve… com pouco para comer em casa, minha mãe fi-cando cada vez mais fraca, até morrer. Meu pai casou-se novamente, com uma mulher religiosa, que acabou dando para ir continuamente à igreja rezar pela alma imortal dele – porque ela sabia o quanto ele odiava Deus.

“Ele costumava vir para casa à noite, depois das reu-niões semanais do Sindicato, seus olhos brilhando como estrelas, rugindo blasfêmias pelas ruas. Era um homem terrível. Era sempre o líder. Lembro-me quando saiu para ajudar numa manifestação em Montmartre. Era na

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frente do Sacré Cœur, a grande igreja branca no alto da montanha, de onde se vê toda a Paris. Vocês conhecem a estátua do Chevalier de la Barre, logo abaixo dela? É de um jovem de tempos antigos que se recusou a saudar uma procissão religiosa. Um padre quebrou seu braço com a cruz que carregavam e o jovem foi queimado pela Inquisição. Ele está lá em pé, com seu braço tombado, sua cabeça levantada de uma maneira tão… orgulhosa. Eh b’en, os trabalhadores manifestavam-se contra a Igreja, ou algo assim – eu não sei o quê. Faziam discursos. Meu pai estava parado nos degraus da basílica quando, de repente, o curé da igreja apareceu. Meu pai gritou, com uma voz de trovão, ‘À bas os padres! Esse porco queimou aquele rapaz!’ E apontou para a estátua. ‘Para o Lanterne com ele! Enforquem-no!’ Então eles todos começaram a gritar e ir em direção aos degraus. E a polícia avançou na multidão com revólveres... Bem, meu pai chegou em casa, naquela noite, todo coberto de sangue e quase sem conseguir arrastar-se.

“Minha madrasta encontrou-o na porta, muito irritada, e disse, ‘Bem, onde você esteve, seu João-ninguém?’

“‘Numa manifestação, quoi!’, resmungou ele. “‘Isso é bom para você’, disse ela. ‘Espero que você

esteja curado agora.’ “‘Curado?’, gritou ele, rugindo, com a boca ensangüen-

tada e sem dentes. ‘Até a próxima vez! Ça ira!’ “E, na verdade, no dia em que Lebœuf foi guilhoti-

nado, os couraceiros pegaram os socialistas e depois carregaram meu pai para casa com um corte de sabre na cabeça.”

Marcelle inclinou-se, um cigarro na boca, para acen-der no de Fred.

“Eles o chamavam de Casse-Tête Poissot – o Quebra-cabeça, e ele era um homem duro. Como ele odiava o

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Governo! Uma vez, cheguei da escola e disse a ele que tinha aprendido a cantar a Marselhesa.

“‘Se um dia eu pegar você cantando essa maldita canção de traidores por aqui’, gritou comigo, cerrando o punho, ‘quebro a sua cara!’”

Fiz uma figura mental desse velho guerreiro grosseiro e limitado, cheio de cicatrizes de uma centena de lutas vãs e sujas com a polícia, voltando para casa por ruas imundas depois de reuniões do Sindicato, seu cérebro iluminado por visões de uma humanidade regenerada.

“E o seu irmão?”, perguntou Fred.“Oh, ele era ainda pior que meu pai”, disse Marcelle,

rindo. “Você podia conversar com meu pai sobre muitas coisas, mas há coisas sobre as quais você não podia con-versar com meu irmão de jeito nenhum. Mesmo quando menino ele era terrível. Ele dizia: ‘Depois da escola venha me encontrar em tal igreja, eu quero rezar’. Encontrava-me com ele nas escadas, entrávamos juntos e nos ajoelháva-mos. E, quando eu estava rezando, ele pulava de repente e saía correndo e gritando pela igreja, chutando as cadeiras e derrubando as velas que queimavam nas capelas... E, quando via um curé na rua, marchava bem atrás gritan-do: ‘À bas les calottes! À bas les calottes!’ Vinte vezes foi preso e até posto no reformatório, mas sempre escapou. Quando não tinha mais que quinze anos, fugiu de casa e não voltou por um ano. Um dia entrou na cozinha onde estávamos tomando café da manhã.

“‘Bom dia’, disse, como se nunca tivesse ido embora. ‘Manhã fria esta, não?’

“Minha madrasta gritou. “‘Eu fui ver o mundo’, ele continuou. ‘Voltei porque não

tinha dinheiro e estava com fome.’ Meu pai não brigou com ele, apenas deixou-o ficar. E ele passava o dia no café da esquina, nunca voltava para casa antes da meia-noite.

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Então, uma manhã ele desapareceu de novo, sem dizer uma palavra a ninguém. Em três meses estava de volta, morrendo de fome. Minha madrasta disse a meu pai para fazer o menino trabalhar, que já era duro o suficiente com um homem preguiçoso e desregrado para sustentar. Mas meu pai apenas riu.

“‘Deixe-o em paz!’, disse. ‘Ele sabe o que está fazendo. Há bom sangue de lutador nele.’

“Meu irmão continuou saindo e voltando assim até quase os dezoito anos. Nos últimos tempos, antes de se estabelecer em Paris, quase sempre trabalhava apenas até ter juntado dinheiro suficiente para ir embora. Então, finalmente pegou um trabalho fixo numa fábrica aqui, e casou-se...

“Ele tinha uma voz boa para cantar e deixava as pessoas pasmas com a maneira como entoava canções revolucionárias. À noite, depois de terminar seu trabalho, costumava amarrar um lenço vermelho em volta do pes-coço e ir a alguma casa noturna ou cabaré. Ele entrava e, enquanto algum cantor se apresentava no palco, de repente levantava a voz e começava com o Ça ira ou com a Internationale. O cantor no palco era forçado a parar e toda a platéia voltava-se e olhava para meu irmão, lá nos bancos mais altos do teatro.

“Quando terminava, gritava: ‘O que vocês acham dis-so?’ E então o ovacionavam. E ele gritava: ‘Todo mundo comigo, abaixo os capitalistas! À bas a polícia! Para o Lanterne com os flics!’ Havia aplausos e assobios. ‘Eu ouvi alguém assobiar para mim?’, gritava. ‘Vou esperar lá fora pelo homem que ousou assobiar para mim!’ E depois lutava com dez ou quinze homens, numa briga furiosa na rua até a polícia chegar.

“Ele também estava sempre liderando greves, mas tinha um jeito galante, risonho, que fazia com que todos

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os camaradas o amassem. Poderia ter se tornado um delegado, se meu pai não tivesse lhe ensinado a ser um fora-da-lei quando era pequeno…”

“Onde está ele agora?”, perguntou Fred.“Lá nas trincheiras, em algum lugar”, ela abanou o

braço vagamente para o leste. “Teve que ir com os outros quando a guerra começou, embora odiasse o exército. Quando cumpriu o serviço militar foi horrível. Nunca obedecia. Ficou na prisão por quase um ano. Uma vez, decidiu ser promovido e em um mês fazia parte da corpo-ração, ele era tão inteligente. Mas, no primeiro dia recu-sou-se a dar ordens aos soldados de seu esquadrão... ‘Por que eu deveria dar ordens a esses camaradas?’, gritou. ‘Eu recebo ordens de comandá-los a cavar trincheiras. Voyons, eles são escravos?’ Rebaixaram-no, então, a sol-dado raso. E ele organizou uma revolta e aconselhou-os a atirar nos oficiais... Os próprios homens ficaram tão insultados que jogaram-no contra a parede. Ele odiava a guerra! Quando a Lei Militar dos Três Anos estava na Câmara, foi ele quem levou a multidão ao Palais Bourbon... E agora tem que ir para matar os Bôches, como os outros. Talvez esteja morto. Eu não sei, não ouvi dizer nada.” E depois acrescentou, distraída. “Ele tem um filhinho de cinco anos.”

Três gerações de sangue impetuoso, livre, lutando infatigavelmente por um tênue sonho de liberdade. E agora uma quarta no berço! Eles sabiam por que luta-vam? Não importava. Era uma coisa mais profunda que a razão, um instinto do espírito humano que nem força nem argumento jamais poderiam exterminar.

“E você, Marcelle?”, perguntei.“Eu?”, ela riu. “Devo contar para vocês que não fui

seduzida por um duque?” Deu uma risadinha amarga.

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28 A filha da revolução

“Então vocês não vão mais me respeitar – porque percebo que vocês, amigos de passagem, querem sua diversão temperada com romance. Mas direi a verdade. Não foi romântico. Naquela vida hedionda e severa que leváva-mos, sempre desejei alegria e felicidade. Queria sempre rir, estar alegre, mesmo quando era um bebê. Costumava imaginar-me bebendo champanhe, indo ao teatro, e que-ria jóias, vestidos finos, automóveis. Bem cedo meu pai percebeu que meus interesses iam por esse caminho. E ele disse: ‘Eu vejo que você quer jogar tudo para o alto e vender-se para os ricos. Deixe-me dizer que, na primeira falta que você cometer, ponho você pela porta afora e nunca mais a chamo de minha filha’.

“Tornou-se intolerável a vida em casa. Meu pai não perdoava mulheres que se entregavam sem estarem casadas. Ficava dizendo que eu estava no caminho do pecado. Quando fiquei mais velha, não podia sair sem minha madrasta. Assim que alcancei idade suficiente, ele correu para arrumar um marido para mim, para me salvar. Um dia, chegou em casa e disse que encontrara um… um jovem pálido, manco, filho do gerente de um restaurante da mesma rua. Eu o conhecia. Não era mau, mas eu não podia nem pensar em casamento. Queria muito ser livre.” Assustamo-nos, Fred e eu. “Livre!” Não era por isso que o velho lutara tanto?

“Então, naquela noite”, continuou, “eu saí da cama, coloquei meu vestido de domingo, o vestido de todo dia por cima dele e fugi. A noite inteira andei pelas ruas e o dia seguinte também. Naquela tarde, tremendo de medo, fui até a fábrica onde meu irmão trabalhava e esperei que saísse. Não sabia se ele me entregaria ou não a meu pai. Logo ele veio, gritando e cantando com alguns camaradas, e então me viu.

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“‘Bem, garota, o que traz você aqui?’, gritou, pegando o meu braço. ‘Problemas?’ Contei que havia fugido. Ele ficou parado olhando para mim. ‘Você não comeu’, disse ele. ‘Venha para casa comigo e conheça minha mulher. Você vai gostar dela. Vamos todos jantar juntos!’ Então eu fui. A mulher dele era maravilhosa. Recebeu-me de braços abertos e eles me mostraram o bebê, de apenas um mês de idade... E tão gordo! Tudo era quente e feliz lá naquela casa. Lembro-me que ela mesma fez o jantar, e nunca comi um jantar assim! Eles não me perguntaram nada até terminarmos de comer. Meu irmão acendeu um cigarro e me deu um. Eu tinha medo de fumar porque minha madrasta havia dito que isso trazia o inferno para uma mulher... Mas minha cunhada sorriu para mim e pegou um para ela.

“‘Agora’, disse meu irmão. ‘Bem, quais são seus pla-nos?’

“‘Eu não tenho’, respondi. ‘Preciso ser livre. Eu quero alegria e roupas bonitas. Quero ir ao teatro. Quero beber champanhe.’

“A mulher dele sacudiu a cabeça, triste.“‘Nunca ouvi falar de nenhum trabalho para uma

mulher que desse essas coisas’, disse ela.“‘Acha que eu quero trabalhar?’, soltei. ‘Acha que que-

ro ser escrava a vida inteira por dez francos por semana, ou pavonear-me usando vestidos de outras mulheres em alguma couturiére’s na Rue de la Paix? Você acha que vou aceitar ordens de alguém? Não, eu quero ser livre!’

“Meu irmão olhou para mim, gravemente, por um longo tempo. Depois disse: ‘Temos o mesmo sangue. Não adiantaria nada discutir com você, ou forçar você. Cada ser humano tem que resolver a própria vida. Você vai e vai fazer o que quiser, mas eu quero que saiba que quando estiver com fome, ou sem coragem, ou desolada,

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minha casa estará sempre aberta para você. Sempre será bem-vinda aqui, enquanto você viver...’”

Marcelle enxugou os olhos com as costas da mão e prosseguiu:

“Fiquei lá aquela noite e no dia seguinte andei pela cidade e conversei com as garotas dos cafés. Garotas como sou agora. Elas me aconselharam a trabalhar se eu quisesse um amante fixo. Então entrei em uma grande loja de departamentos por um mês. Tive um amante, um argentino que me deu roupas bonitas e levou-me ao teatro. Nunca fui tão feliz!

“Uma noite, quando íamos ao teatro, passamos pela casa de meu irmão e eu pensei em parar e dizer-lhe co-mo achava a vida maravilhosa. Eu usava um vestido charmeuse azul… lembro-me dele agora, era adorável! Sandálias de saltos muito altos e brilhantes nas fivelas, luvas brancas, um chapéu enorme com uma pena de avestruz preta, e um véu. Por sorte o véu estava abaixado, porque quando entrei pela porta da casa de meu irmão, meu pai estava lá nos degraus! Ele olhou para mim. Eu parei. Meu coração parou. Mas pude ver que ele não me reconheceu.

“‘Va t’en! ’, gritou ele. ‘O que o seu tipo está fazendo aqui, na casa de um trabalhador? O que você quer vin-do aqui e nos insultando com suas sedas e suas penas, fruto do suor de homens pobres em moinhos, e de suas mulheres tuberculosas e suas crianças moribundas? Vá embora, sua vadia!’

“Eu estava apavorada, pensando que pudesse me reconhecer!

“Só o vi uma vez mais. Meu amante me deixou e eu tive outros amantes... Meu irmão e sua mulher foram viver perto de meu pai em St. Denis. Eu às vezes passava a noite com eles, para brincar com o bebê, que cresceu tão

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rápido... Aqueles eram tempos realmente felizes. Eu ia embora de manhã, para evitar encontrar meu pai. Uma manhã, quando saí na rua, vi meu pai indo trabalhar ao alvorecer, com sua marmita! Ele não vira meu rosto. Não havia nada a fazer senão andar pela rua adiante dele. Eram umas cinco horas e logo percebi que ele estava andando mais rápido. Então, ele disse com uma voz baixa, ‘Mademoiselle, espere por mim. Nós estamos indo na mesma direção, hein?’ Andei mais rápido. ‘Você é bonita, mademoiselle. E eu não sou velho. Não podemos ir a algum lugar?’ Eu entrei em pânico. Estava tão cheia de horror e de medo que ele visse meu rosto! Não ousava virar uma esquina, porque ele veria o meu perfil. Então fui direto em frente – em frente por horas, por milhas. Não sei quando ele parou. Não sei se agora ele está morto. Meu irmão disse que ele nunca falou de mim…”

Ela parou de falar e os ruídos da rua tornaram-se aparentes de novo aos nossos ouvidos, que haviam fica-do alheios a eles por tanto tempo. Agora pareciam ter o dobro da altura de antes. Fred estava excitado.

“Maravilhoso, por Deus!”, gritou ele, batendo na mesa. “O mesmo sangue, o mesmo espírito! E veja como a re-volução ficou mais doce, mais ampla, de geração para geração! Veja como o irmão entendeu a liberdade por um ângulo ao qual o velho pai era cego!”

Marcelle olhou-o com admiração. “O que você quer dizer?”, perguntou.

“Seu pai, lutando a vida toda por liberdade... no entanto, pôs você para fora porque você queria a sua liberdade!”

“Oh, mas você não entende”, disse Marcelle. “Eu er-rei. Sou má. Se tivesse uma filha como eu, teria feito a mesma coisa.”

“Você não vê?”, gritou Fred. “Seu pai queria liberdade

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para os homens, não para as mulheres!”“Naturalmente”, ela deu de ombros. “Homens e mu-

lheres são diferentes. Meu pai estava certo. Mulheres devem ser… respeitáveis!”

“As mulheres precisam de uma outra geração”, sus-pirou Fred, triste.

Eu peguei a mão de Marcelle.“Você se arrepende?”, perguntei a ela.“Arrepender-me da minha vida?”, ela jogou o cabelo

para trás, orgulhosa. “Dame, não. Eu sou livre!”

1914

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O mundo perdido

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34 O mundo perdido

A cidade sérvia de Obrenovatz é um agrupamento de telhados vermelhos e torres bulbosas brancas, escondi-da entre árvores verdes num cinturão de terra ao redor do qual o rio Sava faz uma larga curva. Atrás dela, as colinas verdes da Sérvia tornam-se conjuntos de monta-nhas azuis, sobre cujos cumes pilhas de cadáveres per-manecem sem ser enterrados, entre os tocos de árvores dizimadas pelo fogo de metralhadoras. Cães famintos lutam com abutres. Meia milha distante, na margem do rio amarelo, soldados em trincheiras inundadas até os joelhos atiram nos austríacos a trezentas jardas, do outro lado. As ricas colinas da Bósnia estendem-se a oeste, como ondulações do mar, escondendo os canhões que cobrem Obrenovatz com a ameaça da destruição. A cidade ergue-se sobre uma pequena elevação do terreno, cercada por charcos inundados quando o rio está cheio, onde as cegonhas sagradas andam entre os juncos, alheias às batalhas. Em todas as colinas, novas folhas vívidas e ameixeiras desabrocham como fogo. A terra vibra com um milhão de pequenas sensações, os brotos verde-claros aparecendo e as mudas surgindo. O mundo cheira à primavera. E, regular como um relógio, o ruído de tiros dos dois lados levanta-se sorrateiro no ar preguiçoso. Por nove meses tem sido assim, e os sons da guerra tornaram-se parte do grande coro da natureza.

Jantamos com os oficiais do Estado-maior. Gigantes de boa índole, foram camponeses e filhos de camponeses. O servente que se ajoelhou para escovar nossos sapatos e tão formalmente derramou a água em nossas mãos, bem como os soldados que nos serviram durante o jantar com tanta civilidade, entraram e sentaram-se quando o café foi servido, e foram apresentados a todos. Eram amigos íntimos do coronel.

Depois do jantar alguém trouxe uma garrafa de co-nhaque e uma caixa de charutos Havana autênticos – dos

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quais Iovanovitch disse, rindo, que haviam sido captura-dos dos austríacos duas semanas antes. E saímos para visitar as baterias.

A oeste, sobre as colinas bósnias, um pálido Sol de primavera aparecia baixo num céu turquesa. As peque-nas nuvens queimavam em vermelho dourado, escarlate, vermelhão, rosa-pálido e cinza, no enorme arco do céu. Pássaros sonolentos gorjeavam e um leve vento fresco vinha do oeste.

Iovanovitch voltou-se para mim:“Você queria ver um socialista sérvio”, disse ele. “Bem,

terá sua chance. O capitão no comando da bateria que nós vamos ver é líder de um dos partidos socialistas sérvios, ou pelo menos era, nos dias de paz. Não, eu não sei quais são suas doutrinas. Pertenço à Juventude Radical”, ele riu. “Nós acreditamos no Grande Império Sérvio.”

“Se todos os socialistas fossem como Takits”, disse o coronel, tragando satisfeito seu charuto, “eu não teria nada a dizer contra o socialismo.”

Numa trincheira funda, curvada em forma de meia-lua no canto de um campo, quatro canhões escondiam-se atrás de uma tela de salgueiros novos. Havia um telhado sobre eles, quase no nível do campo, e sobre esse telhado sementes foram plantadas, e grama e arbustos cresciam para escondê-los dos aviões. O coronel respondeu à sau-dação em staccato do sentinela, e bradou: “Takits!” Do ponto dos canhões veio um homem, enlameado até os joelhos e sem chapéu. Era alto e encorpado. Seu uniforme gasto assentava-lhe como se um dia tivesse sido mais robusto. Uma barba grossa e descuidada cobria seu rosto até as maçãs, e seus olhos eram calmos e francos.

Eles disseram alguma coisa em sérvio para o capitão, e ele riu.

“Então”, disse ele, dirigindo-se a mim com um brilho

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nos olhos, falando um francês titubeante, como se não o usasse há muito tempo. “Então, você está interessado em socialismo?”

Eu disse que estava. “Disseram-me que você era um líder socialista neste país.”

“Eu fui”, disse ele, enfatizando o tempo passado. “E agora…”

“Agora”, interrompeu o coronel, “ele é um patriota e um bom soldado.”

“Diga apenas ‘um bom soldado’”, disse Takits, e senti uma sombra de amargura em sua voz. “Desculpe-me se falo um francês ruim. Faz muito tempo que não converso com estrangeiros, embora já tenha feito discursos em francês…”

“E o socialismo?”, perguntei.“Bem, vou contar a você”, começou, vagarosamente.

“Ande comigo um pouco.” Pôs seu braço sob o meu e franziu a testa, olhando para a terra. De repente voltou-se, preocupado, e gritou para alguém invisível na trincheira: “Peter! Ponha óleo na culatra da arma número um!”

Os outros caminhavam adiante, rindo e fazendo obser-vações por sobre os ombros, da maneira como os homens fazem quando comeram e estão satisfeitos. A noite subia rápido e escondia aquelas nuvens brilhantes, colocando seu trem de estrelas como uma capa para cobrir todo o paraíso. Em algum lugar, nas trincheiras distantes, vo-zes cantavam uma trêmula canção macedônia sobre as glórias do império do Tsar Stefan Dushan, e um violino acompanhava, arranhando e guinchando sob a mão de um gooslar cigano. Na leve encosta de uma colina, lon-ge, do outro lado do rio, no país inimigo, uma faísca de chama tremulou, avermelhada...

“Veja, nosso país é diferente do seu”, começou Takits.

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“Aqui não temos homens ricos e população industrial, por isso não estamos prontos, eu acho, para a imensa união de trabalhadores contra a concentração do capital nas mãos de poucos.” Ele parou um momento e depois riu. “Você não faz idéia de como é estranho falar assim de novo!...

“Nosso partido foi formado para aplicar os princí-pios do socialismo às condições deste país, um país de camponeses donos de sua própria terra. Nós, sérvios, somos comunistas naturais. Em toda vila você verá as casas dos ricos zadrugas, muitas gerações de uma mesma família, com todas as suas ligações feitas por casamentos, que juntaram suas propriedades e mantiveram-nas co-muns. Não queríamos perder tempo com a Internacional. Isso nos retardaria, bloquearia nosso programa: cair nas mãos das pessoas que produziam tudo e possuíam todos os meios de produção, e os meios de distribuição também. O programa político era mais simples: almejávamos uma real democracia por meio do sufrágio mais amplo possí-vel. O máximo de iniciativa, referendo e renovação. Você vê, nos Bálcãs, um grande golfo separa os ambiciosos políticos das massas de pessoas que os elegem. Política está se tornando uma profissão elitista, fechada para todos exceto os advogados especuladores. Queríamos destruir essa classe. Não acreditávamos na Greve Geral, e a grande população industrial oprimida do mundo não podia fazer nada conosco, a não ser usar-nos em seus programas econômicos, que não tinham nada a ver com as condições na Sérvia.”

“Você se opôs à guerra?”Ele fez que sim. “Nós éramos contra a guerra…”, co-

meçou, depois parou de repente e explodiu numa risada. “Sabe que eu tinha esquecido tudo isso... Pensávamos que os camponeses, as pessoas da Sérvia, poderiam parar a

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guerra quando quisessem, simplesmente recusando-se a lutar. Deus! Havia apenas alguns de nós, não uma grande e sólida classe operária como na Alemanha ou na França, mas nós achávamos que podia ser feito.”

“E agora, em que você acredita?”Takits voltou-se para mim devagar, e seus olhos eram

trágicos e amargos. “Não sei. Não sei. Era o ‘eu’ antes da guerra que falava com você agora mesmo. Que choque foi ouvir minha voz dizendo essas coisas velhas, gastas! Elas são tão sem sentido agora! Cheguei a pensar que tudo tem que ser feito de novo… a construção da civiliza-ção. De novo temos que aprender a lavrar o solo, a viver juntos sob um governo comum, a fazer amigos além das fronteiras, com outras raças, pessoas que se tornaram apenas rostos escuros, maus e falando línguas que não são a nossa. Esse mundo tornou-se um lugar de caos, como na Era das Trevas. E, no entanto, vivemos, temos nosso trabalho a fazer, sentimos alegria num dia claro e tristeza quando chove. Isso é mais importante que qual-quer coisa agora. Depois virá a grande guinada para fora do barbarismo, para um tempo em que homens pensem e raciocinem, e conscientemente organizem suas vidas de novo... Mas isso não será no nosso tempo. Morrerei sem ver isso… o mundo que nós amávamos e perdemos.”

Ele olhou para mim com uma emoção extraordinária, olhos flamejantes e escuros, e agarrou meu braço. “Este é o ponto, o ponto trágico. Já fui um advogado. Outro dia, o coronel perguntou-me sobre uma questão legal comum, e eu havia esquecido. Quando conversei com você sobre o meu partido, descobri que tudo também era vago, nebuloso. Você notou o quanto fui obscuro e geral, não notou? Bem, eu esqueci meus argumentos e perdi minha fé.

“Há quatro anos luto no exército sérvio. No começo

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odiava, queria parar, era oprimido pela irracionalidade disso tudo. Agora é meu trabalho, minha vida. Passo o dia inteiro pensando nessas armas. Passo a noite em claro preocupado com os homens na bateria, se fulano ou sicrano farão sua sentinela sem negligência, se vou precisar de cavalos novos no lugar dos mancos, o que pode ser feito para corrigir o pequeno defeito de coice do canhão número três. Essas coisas são minha comida, mi-nha cama, o tempo… essa é a vida para mim. Quando vou para casa de licença, para visitar minha mulher e meus filhos, sua existência parece muito mansa, distante da realidade. Fico entediado rapidamente e aliviado quando chega a hora de voltar para os meus amigos aqui, meu trabalho, minhas armas... Essa é a parte horrível.”

Ele parou, e caminhamos adiante em silêncio. A ce-gonha de grandes asas veio pousar em seu ninho, sobre o telhado da casa. Ao longe, no rio, uma repentina onda de tiros de rifle soou inexplicavelmente, e terminou com um silêncio lancinante.

1916

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Noite na Broadway

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42 Noite na Broadway

Ele estava parado na esquina da Broadway com a Rua 42, um homem bem-apessoado com costeletas grisalhas, uma boca plácida, óculos benevolentes presos na ponta do nariz, e o ar de um clérigo humanista. Mas na frente de seu alto chapéu-coco estava fixada uma etiqueta, Notícias Matrimoniais. Uma outra estava pendurada em seu peito, outra em seu braço direito esticado, e ele car-regava uma pilha de jornais em sua mão esquerda. De tempos em tempos sua boca abria-se mecanicamente e ele entonava, com sotaque clerical:

“Compre o Notícias Matrimoniais. Se você quer uma mulher ou um marido. Cinco centavos a cópia. Apenas um níquel pela alegria do casamento. Apenas meio dime* por uma vida inteira de felicidade.”

Dizia isso sem qualquer expressão, olhando vagamen-te para a multidão que passava.

Ondas de luz – branca, verde, amarelo-metálica, ver-melha – batiam nele. Sobre sua cabeça um gato de três metros brincava com um rolo monstruoso de fio vermelho. Uma águia gigante batia suas asas devagar. Colossais escovas de dente apareciam como solenes presságios no céu. Um escocês verde e vermelho e azul e amarelo, alto como uma casa, dançava com uma gaita de foles silen-ciosa. Dois gigantes em roupas de baixo e luvas de boxe lutavam a uma jarda de distância. Uma cerveja brilhante caía de garrafas dentro de copos coroados de espuma in-candescente. Dedos invisíveis traçavam palavras da lida doméstica pelo céu, tingindo-o em letras de fogo. E tudo em volta eram ondas e espirais de chama colorida.

“Se você quer uma mulher ou um marido. Apenas um níquel pela alegria do casamento”, vinha a voz me-

* Dime é o nome dado à moeda de dez centavos de dólar. Níquel é a de cinco centavos. (N. da T.)

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tálica.Mantinha-se imóvel, como uma rocha em meio à tor-

rente. Os teatros estavam fechando. Como uma imen-si-dão de toras se move descendo o rio, uma corrente dupla de motores gritando e enfumaçando enchiam a Broadway, a Sétima Avenida, a Rua 42, correndo, parando, libertan-do-se novamente... Uma serpente iluminada de bondes bloqueados, barulhentos.

Os pedestres corriam como gelo na primavera, rápidos e ruidosos, apertados dos dois lados. Homens magros com cara de doninha, mulheres magras de face branca, brilho de golas brancas, chapéus de seda, grandes chapéus floridos balançando, véus de seda sobre cabelos escuros, sóbrios pequenos chapéus duros e com pinceladas de vermelhão, sandálias de cetim, barras de anáguas, ver-nizes, ruge e esmalte e malhas. Perfumes voluptuosos, excitantes. Fumaça azul de cigarro, tomando um brilho de ouro. Música de café e restaurante levemente audível, rítmica. Luzes, som, prazeres febris, rápidos... Primeiro a onda veio devagar, depois como maré cheia – peles mais ricas que na Rússia, mais sedas que no Oriente, mais jóias que em Paris, rostos e olhos e corpos, o desejo do mundo –, depois a rápida vazante, e os vagabundos.

“Cinco centavos a cópia. Apenas meio dime por uma vida inteira de felicidade.”

“Você pode garantir isso?”, perguntei.Lançou-me seu olhar calmo e gentil e pegou meu

níquel antes de responder.“Abra na página dois”, ordenou. “Vê essa foto? Leia.

‘Linda jovem, vinte e nove anos, em perfeita saúde, her-deira de quinhentos mil dólares, deseja correspondência com solteiro. Objetivo: matrimônio, se a parte certa for encontrada.’ Milhares alcançaram a felicidade por essas páginas. Se você ficar desapontado”, olhou gravemente

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44 Noite na Broadway

por sobre seus óculos, “se você ficar desapontado, nós devolvemos o seu níquel.”

“Você já tentou?”“Não”, respondeu ele cuidadosamente. “Serei franco

com você. Eu não tentei.” Aqui, interrompeu-se para suplicar ao mundo que passava: “Compre o Notícias Ma-trimoniais. Se você quer uma mulher ou um marido...

“Não tentei”, continuou. “Tenho cinqüenta e dois anos e minha mulher está morta há cinco. Conheci de tudo na vida. Por que deveria tentar?”

“Besteira!”, exclamei. “Hoje em dia a vida não está acabada aos cinqüenta e dois. Veja Walt Whitman e Su-san B. Anthony.”

“Não conheço essas pessoas que você menciona”, res-pondeu o homem do Notícias Matrimoniais, seriamente. “Mas digo-lhe, meu jovem, o tempo de terminar de viver depende de se você viveu ou não. E eu já vivi.” Voltou-se para gritar: “Cinco centavos a cópia. Apenas um níquel pela alegria do casamento...

“Meus pais eram operários. Meu pai foi morto num acidente na casa de máquinas do reservatório do Central Park. Minha mãe morreu de tuberculose causada por trabalhos intensos em casa. Eu fui ajudante em uma loja de armarinhos, mensageiro num hotel, depois dirigi um carro de entregas para o Evening Journal, até que me quebrei todo numa briga: minha constituição era fraca. Então entrei na escola noturna e tornei-me um escriturário. Trabalhei em diversos escritórios, até que finalmente entrei na Smith-Tellfair Company, Banquei-ros e Operadores da Bolsa, Rua Broad, 6. E lá, minha vida começou.” Metódico, sem pressa, gritou de novo as virtudes do Notícias Matrimoniais.

“Aos vinte e sete anos me apaixonei, pela primeira vez em minha vida. Logo nos casamos. Não vou me de-morar a respeito das dificuldades do início, nem sobre o

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nascimento de nosso primeiro filho, que morreu logo em seguida, em grande parte porque nossos meios não nos permitiam viver onde houvesse luz e ar suficientes para um bebê doente.

“Depois, no entanto, as coisas tornaram-se mais fá-ceis. Fui promovido a escriturário-chefe na Smith-Tell-fair. Quando a segunda criança nasceu, uma menina, tínhamos uma casinha em White Plains, pela qual eu pagava gradualmente, economizando em tudo.” Aqui ele fez uma pausa. “Muitas vezes fiquei pensando, depois dessa experiência, se economia vale mesmo a pena. Po-deríamos ter tido mais prazeres em nossa vida, e tudo teria dado na mesma, afinal.” Ele parecia perdido em seus pensamentos. Acima, o caos nervoso de luzes brilhava em glória. Duas mulheres, usando sapatos brancos de saltos altos, passaram, olhando para trás por cima de seus ombros para os homens furtivos. Meu amigo gritou seus preços mais uma vez.

“De qualquer forma, minha garotinha cresceu. Deci-dimos que ela deveria aprender piano e algum dia seria uma grande música, com seu nome num luminoso aqui.” Apontou para a Broadway. “Quando ela estava com cinco anos, um filho nasceu. Este seria um soldado, um general do exército. Aos seis anos, minha filha morreu. O proble-ma era nos canos de esgoto da cidade. Os empreiteiros que fizeram a obra eram corruptos, e então houve uma epidemia de febre tifóide.

“Ela morreu… Myrtle morreu. Depois disso minha mu-lher nunca mais foi a mesma. Infelizmente, logo depois ela engravidou de novo. Sabíamos que as condições dela não eram boas e tentamos o que podíamos para encontrar um meio de evitar. Eu ouvi que há meios… mas nós não os conhecíamos e o médico não queria fazer nada. A criança nasceu morta. Minha mulher não sobreviveu.

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46 Noite na Broadway

“Deixou a mim e ao pequeno Herbert, que devia ser um general, você lembra… Foi mais ou menos nessa época que o jovem senhor Tellfair sucedeu o pai na chefia do negócio. Ele acabara de sair da faculdade, com idéias so-bre eficiência e reorganização de escritório. E descartou-me primeiro, porque meu cabelo já era branco... Depois persuadiu a Associação de Construção e Empréstimo a suspender minhas prestações pela casa por seis meses, enquanto eu buscava uma nova situação. Herbert tinha catorze anos. Era muito importante que ele continuasse na escola, para preparar-se para os exames de West Point… porque ele ia para lá.

“Foi impossível encontrar outra colocação como es-criturário, embora eu procurasse em todos os lugares da cidade. Acabei tornando-me vigia noturno numa casa de tintas e couros perto do distrito financeiro. Claro que o salário era menos da metade do que eu costumava ga-nhar. Meus pagamentos pela casa recomeçaram, mas eu era incapaz de cumpri-los. Então, eu a perdi.

“Trouxe Herbert comigo para a cidade. Ele foi para a Escola Pública. E quando tinha dezesseis anos, há apenas doze meses, meu pequeno Herbert morreu de escarlatina. Logo depois eu tropecei neste emprego, que garante uma vida confortável.”

Ele parou, voltando-se novamente para os passantes, chamando-os suavemente: “Comprem o Notícias Matri-moniais. Apenas um níquel pela alegria do casamento. Meio dime por uma vida inteira de felicidade…”

vOs nomes brilhantes, as vastas conflagrações lumino-

sas, as incandescentes pernas de dançarinas – todas as luzes que forram as fachadas dos teatros – apagaram-se uma a uma. As lojas de bijuterias apagaram as iluminações de suas vitrines, porque esposas e noivas já haviam ido

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para casa, e mulheres da rua, atrizes e grandes cocotes estavam dançando o tango em troca de champanhe em lin-dos cabarés. Ciências Domésticas e Higiene Pessoal ainda disputavam espaço no céu. Mas a Broadway estava mais tênue, mais quieta. E as fantásticas garotas desfilando sozinhas, em duplas, em alerta, olhos em guarda, moviam-se sedutoramente entre luz e sombra. Na obscuridade, homens moviam-se furtivamente, e viravam as esquinas. Eles iam pela rua, as golas dos casacos levantadas e cha-péus puxados para baixo, devorando as mulheres com olhos duros. Suas bocas estavam secas e eles tremiam, febris e excitados com a caçada.

“Aqui. Me dá um”, disse uma voz enferrujada. Uma mulher gorda, de vestido largo, curto, sapatos de salto cinza com rendas na parte de trás, um chapéu rosa do tamanho de um botão, esticou um níquel com dedos gor-duchos em luvas brancas sujas. Ao longe, a uma distância de três quarteirões numa rua escura, você poderia tê-la julgado jovem. Mas, olhando de perto, seu cabelo tinha fios prateados entre os descoloridos, e havia frestas de carne branca morta sob todo aquele vermelho artificial; buracos e rugas.

“Boa noite, madame”, disse meu amigo, levantando cortesmente o chapéu. “Suponho que esteja bem. Como vai o negócio esta noite?”

“Não é mais como era quando comecei a fazer a Bro-adway”, respondeu a dama, sacudindo a cabeça. “Hoje em dia, só o que temos são pães-duros e garotos de ca-ridade. Uns caras novinhos fizeram gracinha lá perto do Shanley’s, convidaram-me para jantar. Deus, o que você acha disso? Eles estavam me gozando, no final. Já estive em tantos lugares legais quanto qualquer outra garota da cidade. Olhe só! Eu encontro um cara lá na Rua 45 e ele diz, ‘Aonde a gente vai?’, e eu digo, ‘Eu conheço um

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48 Noite na Broadway

lugar lá na Sétima Avenida.’ ‘Na Sétima!’, diz ele. ‘Sete é meu número de azar. Boa noite!’, e saiu fora. Que coisa!” Ela tremeu com uma boa risada. Nesse momento, entrei em seu campo de visão. “Quem é seu jovem amigo, Bill?”, disse ela. “Apresente a gente”, ela baixou a voz. “Diz aí, benzinho, quer se divertir? Não?”, bocejou, revelando dentes de ouro. “Bem, é hora de cama mesmo. Vou pra casa tirar um ronco.”

“Procurando um marido?”, disse eu, apontando para o Notícias Matrimoniais.

“Olhe só! Diga-me, você já conheceu uma garota que não estivesse? Se você tiver algum amigo legal com um milhão de dólares, deixe um recado com o Bill, aqui. Ele me vê toda noite.”

“Mas você só compra o Notícias Matrimoniais aos sá-bados”, disse Bill.

“Para ler aos domingos”, respondeu ela. “Eu descanso de verdade aos domingos. Nunca trabalho no dia do Se-nhor. Nunca trabalhei.” Jogou a cabeça para trás, orgu-lhosa. “Nunca, não interessava o quanto estivesse dura. Fui educada severamente e tenho escrúpulos religiosos.” Ela foi embora, balançando os enormes quadris.

O agente do Notícias Matrimoniais dobrou seus pa-péis.

“É hora de cama para mim também, meu jovem”, dis-se. “Então, boa noite. Quanto a você, acho que vai sair por aí atrás de bebida e mulheres.” Ele balançou a cabeça, meio triste. “Bem, siga o seu caminho. Eu já deixei de culpar qualquer um por qualquer coisa.”

vSaí pela rua febril, quadriculada de luz e sombra,

coroada com colares e pingentes e medalhões e raios de luz, entulhada de trapos e papéis, quebrada para a construção do metrô, patrulhada pelos grupos de mulhe-

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John Reed 49

res. Eu observava uma garota alta e magra que andava a minha frente. Seu rosto era muito pálido e seus lábios como sangue. Três vezes a vi conversando com homens… Três vezes entrou no caminho deles e num movimento de falcão com a cabeça murmurou algo para eles, com o canto da boca.

Apressei meu passo e alcancei-a. Quando passei à frente, olhou para mim friamente, num convite violen-to.

“Olá”, disse eu, diminuindo o passo. Mas ela parou de repente, olhou-me com ódio, como se eu fosse um estranho, e elevou-se.

“Com quem você pensa que está falando!”, perguntou, com uma voz dura.

“Isso”, disse eu, “é o que eles chamam de Seleção Natural!”

vA próxima não foi tão difícil. Ela estava depois da es-

quina da Rua 37, e parecia esperar por mim. Aproxima-mo-nos como ímã e aço e juntamos as mãos.

“Vamos a algum lugar, beber alguma coisa”, disse ela.

Era robusta e jovem, voraz, com cores vivas de se olhar. Ninguém dançava como ela no restaurante onde fomos. Todos se voltavam para vê-la: os garçons com cara de nada, insolentes, o homem de peito engomado mordendo charutos, as mulheres alegres e as descontentes, que sentavam-se lá como se tudo tivesse sido organizado para deixá-las de fora. Em seu chapéu de palha preto com a pena azul, sua roupa marrom de tweed um pouco surrada, ela soprou, como um vento fora-da-lei, um suave calor sobre o ouro, os espelhos, o ragtime histérico do lugar.

Sentamo-nos contra a parede, olhando o fluxo de rostos, a brancura de ombros magros, ouvindo a risada

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50 Noite na Broadway

muito alta, cheirando fumaça de cigarros e aquele odor que é como o gosto de champanhe em excesso. Duas orquestras tocaram e vibraram alternadamente. Uma dança para os clientes – depois dançarinos e cantores profissionais, indo e vindo espasmodicamente, grunhin-do palavras sem sentido, apenas para dar ritmo. Então, todas as luzes se apagaram, com exceção do spot sobre os artistas, e na escuridão bêbada trocamos um beijo quente. Flash! As luzes acenderam-se novamente, ruído de uma hilaridade dura, redemoinho de palavras gritadas, palavras, palavras, corrida de parceiros para a pista de dança, a orquestra batendo uma imbecilidade sincopa-da, sem fôlego, corpos movendo-se e brincando em um uníssono selvagem...

Seu nome era Mae. Escreveu-o num cartão, junto com seu endereço e número de telefone, e deu referências de diplomatas sul-africanos a quem haviam agradado seus encantos, se eu quisesse recomendações... Mae nunca lia os jornais e estava apenas vagamente consciente de que havia uma guerra. No entanto, como conhecia a Broadway entre a Rua 33 e a Rua 50! Como era uma perfeita dona do seu mundo!

Viera de Galveston, no Texas, segundo disse. Orgu-lhou-se de contar que sua mãe era espanhola, e hesitou em admitir que seu pai era cigano. Tinha vergonha disso, e quase nunca contava a ninguém.

“Mas não era um desses ciganos que vão como vaga-bundos pelas estradas e roubam coisas”, acrescentou Mae, assegurando a respeitabilidade de sua paternidade. “Não, ele vem de uma família cigana muito fina…”

1916

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Mac, o americano

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52 Mac, o americano

Conheci Mac no México – na cidade de Chihuahua – na véspera de Ano Novo. Ele era um sopro de sua pátria, um americano nu e cru. Assim que saímos do hotel para tomar um Tom e Jerry no Chee Lee, os sinos rachados da antiga catedral chamaram enlouquecidos para a missa da meia-noite. Acima de nós estavam as quentes estrelas do deserto. Por toda a cidade, dos cuartels onde o exército de Villa estava escondido, dos destacamentos avançados nas colinas nuas, dos sentinelas nas ruas, vinha o som de tiros exultantes. Um oficial bêbado passou por nós e confundindo a fiesta gritou: “Cristo nasceu!” Na esquina seguinte um grupo de soldados enrolados até os olhos em seus ponchos estava sentado em volta de uma fogueira, cantando a interminável Canção da Manhã para Francisco Villa. Cada cantor tinha que fazer um novo verso sobre as façanhas do Grande Capitão...

Diante das enormes portas da igreja, através dos ca-minhos cobertos de sombra do Plaza, tornando-se visíveis e desaparecendo de novo nas bocas das ruas escuras, as silhuetas sinistras e silenciosas de mulheres vestidas de preto juntavam-se para lavar-se de seus pecados. E da própria catedral saía uma pálida luz vermelha – e estra-nhas vozes índias cantavam uma canção que eu ouvira apenas na Espanha.

“Vamos entrar e assistir à missa”, disse eu. “Deve ser interessante.”

“Que diabo, não!”, disse Mac, com uma voz um pouco forçada. “Não quero me intrometer na religião de nin-guém.”

“Você é católico?”“Não”, respondeu ele. “Acho que não sou nada. Eu

não entro numa igreja há anos.”“Bom para você!”, lamentei. “Então você também não

é supersticioso!”

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John Reed 53

Mac olhou para mim com um certo desgosto. “Eu não sou um homem religioso”, soltou. “Mas não saio por aí me batendo com Deus. É muito arriscado.”

“Arriscado como?”“Ora, quando você morre… você sabe”, agora ele estava

desgostoso e irritado.No Chee Lee encontramos mais dois americanos. Eram

do tipo que começa todos os comentários com: “Estou neste país há sete anos, e conheço esse povo como a palma da minha mão!”

“As mulheres mexicanas”, disse um, “são as mais podres do mundo. Elas nunca se lavam mais que duas vezes por ano. E quanto à virtude, simplesmente não existe! Elas nem se casam. Só pegam qualquer um de quem gostem. As mulheres mexicanas são todas vadias, é isso que são!”

“Eu peguei uma indiazinha legal lá em Torreon”, co-meçou o outro homem. “É um absurdo. Ora, ela nem se preocupa se vou casar com ela ou não! Eu…”

“É assim com elas”, interrompeu o outro. “Soltas! É isso que elas são! Estou no país há sete anos.”

“E você sabe”, o outro homem sacudiu o dedo seve-ramente para mim. “Você pode dizer tudo isso para um mexicano que tudo o que ele fará é rir de você! É esse tipo de cafajestes sujos que eles são!”

“Eles não têm orgulho”, disse Mac, melancolicamen-te.

“Imagine”, começou o primeiro compatriota. “Imagine se você dissesse isso para um americano!”

Mac bateu com o punho na mesa. “A mulher ameri-cana, que Deus a proteja!”, disse ele. “Se algum homem ousasse sujar o bom nome da mulher americana para mim, acho que o mataria.” Ele olhou ao redor da mesa e, como nenhum de nós manchasse a reputação da femini-

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54 Mac, o americano

lidade da Grande República, continuou: “Ela é um ideal puro e temos que mantê-la assim. Eu gostaria de ouvir alguém falar mal de uma mulher na minha frente!”

Tomamos nossos Tom e Jerries com a virtude de uma convenção de Galahads.

“Diga, Mac”, o segundo homem falou de repente. “Você se lembra das duas garotinhas que eu e você tivemos em Kansas City naquele inverno?”

“Se eu me lembro?”, corou Mac. “E você se lembra do terrível apuro em que você pensou que estava?”

“Nunca me esquecerei!”O primeiro homem falou: “Bem, você pode pegar as

suas lindas señoritas o quanto quiser. Mas para mim, dê-me uma menininha americana limpinha...”

vMac tinha mais de um metro e oitenta de altura – um

homem enorme, na magnífica insolência da juventude. Tinha apenas vinte e cinco anos, mas já vira muitos lu-gares e trabalhara em muitas coisas: mestre de ferrovia, capataz de plantação na Georgia, chefe dos mecânicos em uma mina mexicana, vaqueiro e delegado-xerife no Texas. Era natural de Vermont. Por volta do quarto Tom e Jerry, Mac levantou o véu do seu passado.

“Quando cheguei em Burlington para trabalhar no moinho de madeira, eu era um garoto de uns dezesseis anos. Meu irmão trabalhava lá havia um ano e hospe-dou-me na casa em que morava. Ele era quatro anos mais velho que eu. Um cara grande, também, mas meio mole... Sempre ficava falando por aí que era errado brigar, e esse tipo de coisa. Nunca me batia, nem quando estava irritado comigo, dizendo que eu era menor.

“Bem, tinha uma garota na casa, que o meu irmão vinha levando havia um bom tempo. Fui um tanto per-verso”, riu Mac. “Sempre fui. Não me faria diferença

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nenhuma, mas eu ia pegar aquela garota do meu irmão. E logo, logo eu consegui. Bem, senhores, vocês sabem o que aquela diabinha fez? Uma vez que o meu irmão a estava beijando, ela disse de repente: ‘Ora, você beija igualzinho ao Mac!’

“Ele veio me procurar. Todas as idéias dele sobre não brigar tinham desaparecido, é claro. Não valem nada para um homem de verdade. Ele estava tão branco que quase não o reconheci, os olhos soltando fogo como um vulcão. Ele disse: ‘Seu maldito, o que você andou fazendo com a minha garota?’ Era um cara bem grande e por um minuto fiquei um pouco assustado. Mas então lembrei o quanto ele era mole, e eu, valente. ‘Se você não pode segurá-la’, disse eu, ‘deixe-a ir!’

“Foi uma briga feia. Ele queria me matar. Tentei matá-lo também. Uma nuvem enorme, vermelha, apossou-se de mim e fiquei enraivecido, louco. Vê essa orelha?” Mac indicou a parte do corpo a que se referia. “Ele fez isso. Peguei um olho dele, porém, e ele nunca enxergou de novo. Nós logo paramos de usar os punhos. Arranhamos, estrangulamos, mordemos e chutamos. Disseram que meu irmão soltava um rugido de quando em quando, mas eu apenas abri minha boca e gritei o tempo todo... Logo dei-lhe um chute no… num lugar que doeu, e ele caiu como se estivesse morto.” Mac terminou seu Tom e Jerry.

Alguém pediu outro. Mac continuou:“Um tempo depois disso eu vim para o sul e meu ir-

mão entrou para a Polícia Montada do Noroeste. Vocês se lembram daquele índio que matou um cara em Victoria em 1906? Bem, meu irmão foi mandado atrás dele e levou um tiro no pulmão. Por acaso eu estava visitando os velhos, única vez que voltei, quando meu irmão veio para casa para morrer... Mas ele ficou bom. Lembro que, no dia em que fui embora, ele tinha acabado de sair da

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56 Mac, o americano

cama. Caminhou comigo até a estação, implorando para eu falar uma palavra com ele. Esticou a mão para eu apertar, mas só virei para ele e disse: ‘Seu filho da puta!’ Um pouco depois ele foi de volta para o trabalho, mas morreu no caminho...”

“Uau!”, disse o primeiro homem. “Polícia Montada do Noroeste! Isso sim é que deve ser trabalho. Um bom rifle e um bom cavalo e nenhuma estação fechada para a caça aos índios! É isso que chamo de esporte!”

“Falando de esporte”, disse Mac, “o melhor esporte do mundo é caçar negros. Depois que deixei Burlington, vocês lembram, eu fui para o sul. Saí para ver o mundo de cima para baixo, e acabara de descobrir que podia brigar. Deus! As lutas em que eu costumava me meter... Bem, de qualquer jeito, acabei numa plantação de al-godão na Georgia, perto de um lugar chamado Dixville. Acontece que eles estavam precisando de um capataz, então eu fiquei.

“Lembro-me daquela noite perfeitamente, porque estava sentado em minha cabine escrevendo para casa, para minha irmã. Ela e eu sempre nos demos bem, mas não conseguíamos nos dar bem com o resto da família. No ano passado ela se juntou com um caixeiro-viajante… Ah, se um dia eu pegar esse aí… Bem, como eu dizia, eu estava sentado lá, escrevendo sob a luz de uma lampa-rina a óleo. Estava uma noite quente, úmida, e a tela da janela era uma massa contorcida de mosquitos. Fiquei com coceiras só de vê-los engatinhando uns por cima dos outros. De repente, minhas orelhas levantaram-se e o meu cabelo começou a se arrepiar. Eram cachorros, cães sanguinários, vindo espalhados em meio à escuridão. Não sei se vocês já ouviram um cão ladrar quando está atrás de um humano... Qualquer cão ladrando à noite é a coisa mais solitária, mais assustadora do mundo. Mas aquilo

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John Reed 57

era pior. Fazia você sentir como se estivesse parado no escuro, esperando por alguém que vai estrangulá-lo – e você não pode escapar!

“Por mais ou menos um minuto tudo que ouvi foram os cães, e depois alguém, ou alguma coisa, caiu por cima da minha cerca. Pés pesados, correndo, passaram bem em frente a minha janela e ouvi o ruído de respiração. Vocês sabem como um cavalo teimoso respira quando você está apertando o pescoço dele com uma corda? Daquele jeito.

“Fui para a varanda num pulo, a tempo de ver os cães pularem minha cerca. Então alguém que eu não conseguia ver gritou, tão rouco que mal podia falar: ‘Pra onde ele foi?’

“‘Passou a casa e foi para trás!’, disse eu, e comecei a correr. Havia uns doze de nós. Nunca descobri o que o negro fez, e acho que a maioria dos homens também não. Não ligávamos. Corremos como uns loucos pelo campo de algodão, pelos campos pantanosos com as inundações, nadamos no rio, mergulhamos por sobre as cercas, de um jeito que normalmente cansaria um homem em cem metros. Mas nós nem sentimos. A saliva conti-nuava brotando em minha boca. Era a única coisa que me incomodava. Era lua cheia e, de tempos em tempos, quando chegávamos a uma clareira, alguém gritava, ‘Lá vai ele!’, e pensávamos que os cães haviam se enganado e ido atrás de uma sombra. Sempre os cães na frente, la-drando como sinos. Diga, você já viu um cão sanguinário correndo atrás de um homem? É como uma corneta. Eu bati minha canela em umas vinte cercas, e a cabeça em todas as árvores da Georgia, mas nem senti...”

Mac estalou os lábios e bebeu.“É claro”, disse ele, “quando o alcançamos, os cachor-

ros tinham acabado de fazer o negão em pedaços.”

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58 Mac, o americano

Sacudiu a cabeça com uma lembrança brilhante.“Você terminou a carta para a sua irmã?”, pergun-

tei.“Claro”, disse Mac, secamente.

v“Eu não gostaria de viver aqui no México”, disse Mac.

“As pessoas não têm coração. Gosto de pessoas amigáveis, como os americanos.”

1914

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Endymion ou na fronteira

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60 Endymion: ou na fronteira

Presidio, Texas, é uma dúzia de choupanas de barro e uma loja de madeira de dois andares, espalhadas entre arbustos numa desolada planície de areia ao longo do Rio Grande. Ao norte, o deserto segue gentilmente em direção ao azul forte e trêmulo, uma terra quieta e destruída. O rio marrom e calmo serpenteia entre as barreiras de areia como uma cobra preguiçosa, a menos de cem me-tros dali. Do outro lado do rio fica a cidade mexicana de Ojinaga, no topo de sua pequena mesa – um aglomerado de muros brancos, tetos retos, as cúpulas de sua igreja antiga, como uma cidade oriental sem um minarete. Ao sul, a terra erma, terrível, espalha-se em grandes planí-cies elevadas de areia, arbustos de algarobeira e sálvia enrugando-se no horizonte em um conjunto de picos baixos e pontudos.

Em Ojinaga estavam os destroços do Exército Fede-ralista, expulso de Chihuahua pelo avanço vitorioso de Pancho Villa, aguardando apaticamente a vinda dele até ali, à fronteira amiga. Milhares de civis, atraídos pelas lendas selvagens do Tigre do Norte, acompanharam os soldados em retirada por aquelas quatrocentas milhas sinistras, pela planície escaldante. A maioria dos refu-giados estava acampada nas terras ao redor de Presidio. Alegremente desamparados, subsistindo do Comissaria-do da Cavalaria Americana local, dormindo o dia todo, fazendo amor e brigando a noite inteira.

Os saldos da guerra deram fama a Presidio. Ela apa-recia nos despachos das notícias enviadas ao resto do mundo pelo único fio telefônico do exército. Automóveis, acinzentados pelo pó do deserto, desciam atravessando a ferrovia, setenta e cinco milhas ao norte, para corromper sua imaculada inocência. Uma porção de corresponden-tes de guerra sentava-se ao Sol, reclamando, e duas vezes ao dia maquinava histórias curtas, cheias de som e fúria. Hacendados ricos que cruzaram a fronteira paravam um

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pouco por lá para esperar a batalha que deveria decidir o destino de suas propriedades. Agentes secretos dos cons-titucionalistas e os federais conspiravam e contracons-piravam por todos os lados. Representantes de grandes interesses americanos distribuíam taxas de segurança e enviavam incessantes telegramas em código. Caixeiros-viajantes de companhias de munição ofereciam armas no atacado e no varejo para qualquer um que planejasse uma revolução. Para não dizer – como dizem em programas de comédia musical – cidadãos, guardas, xerifes, soldados da cavalaria americana, ofi-ciais Huertistas de licença, oficiais de alfândega, vaqueiros de ranchos próximos, mineiros etc.

O velho Schiller, o dono da loja, andava por ali com um revólver enorme preso à cintura. Schiller estava ficando rico. Ele fornecia comida, roupas, ferramentas e medicamentos para a nova população da cidade. Ti-nha o monopólio no negócio de cargas. Havia rumores de que conduzia um jogo de pôquer e um bar privado na sala dos fundos. E sessenta homens dormiam no chão e nos balcões de sua loja a vinte e cinco centavos por cabeça.

Eu caminhava pela cidade com um vaqueiro de pernas arqueadas e rosto sardento chamado Buchanan, que trabalhava num rancho em Santa Rosalia, esperando que as coisas se acalmassem para poder voltar. Buck estava no México havia três anos, mas não consegui descobrir se isso deixara alguma impressão nele – com exceção de reclamações pelos mexicanos não falarem inglês, mesmo com seu espanhol reduzido a umas poucas palavras para satisfazer seus apetites naturais. Certa vez, men-cionou Dayton, em Ohio – a cidade da qual havia fugido num trem de carga quando tinha doze anos.

Parecia ser um tipo bem comum por ali. Um menino

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forte, corpo robusto, corajoso, duro, sem incomodar-se com qualquer sentimento nobre. Ainda não havia passado muitas horas com ele quando começou a falar sobre o Doutor. De acordo com Buck, o Doutor fora o primeiro cidadão de Presidio. Era um grande cirurgião e, mais que isso, um dos melhores músicos do mundo. Porém, o mais marcante de tudo, para mim, eram o orgulho e a afeição na voz de Buck quando falava de seu amigo.

“Ele consegue arrumar uma canela quebrada com um graveto e um fio de crina de cavalo”, disse Buck, sério. “E curar uma mordida de tarântula não é mais difícil pra ele que tomar uma dose ou duas pra mim ou pra você... E tocar… nossa! O Doutor pode tocar qualquer coisa. Por Deus. Acho que se qualquer um de Nova York ou Cleveland o ouvisse tocar, ele teria um lugar de honra no palco do Opera House, agora, ao invés de estar aqui em Presidio!”

Fiquei interessado. “Doutor o quê?”, perguntei.Buck pareceu surpreso. “Ora, só Doutor.”Depois do jantar, naquela noite, arrastei-me pela areia

em direção à casa de tijolo do Doutor. Era uma noite cal-ma, com grandes estrelas. De algum lugar no rio vinha o som de tiros preguiçosos. Em toda a volta, no descam-pado, queimavam as fogueiras dos campos de refugia-dos. Mulheres davam gritos nasalados para seus filhos virem para casa. Garotas riam na escuridão. Homens de sapatos com esporas andavam ruidosamente pela areia. E, como o acompanhamento de um baixo, soava o insistente murmurar dos agentes secretos conspirando na varanda da loja de Schiller. Bem antes de eu chegar perto da casa, já podia ouvir os acordes familiares da abertura do Tannhauser, tocada num órgão aleijado. E, imediatamente em frente da casa, quase tropecei numa fila dupla de mexicanos, acocorados na areia, embrulha-

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dos até os olhos em ponchos, imóveis, ouvindo.Dentro do único cômodo branco, dois oficiais da ca-

valaria americana estavam sentados de olhos fechados, fingindo apreciar o que consideravam entretenimento de “alto nível”. Estavam na fronteira havia oito meses, longe dos refinamentos da civilização, e ouvir esse tipo de música fazia com que se sentissem “cultos”. Bucha-nan, fumando um cachimbo de espiga de milho, estava esticado numa poltrona, seus pés sobre o fogão, seus olhos brilhantes fixos com franco prazer nos dedos do Doutor, enquanto estes saltavam em cima das teclas. O Doutor estava sentado de costas para nós – uma pequena figura patética, gorducha, de cabelos brancos. Algumas das teclas do órgão não produziam som algum. Outras, um guincho morto. E as outras estavam desafinadas. Enquanto tocava, cantava roucamente e balançava para frente e para trás, como que envolvido pela harmonia.

Era um cômodo notável. Num canto estavam os restos de uma elaborada mesa cirúrgica com tampo de vidro. Atrás dela, um armário de instrumentos cirúrgicos enfer-rujados – a prateleira de cima cheia de vidros de pílulas – e um armário de livros contendo cinco volumes: um livro de trechos de óperas para piano, parte de um volume das Sinfonias de Beethoven arranjadas para quatro mãos, dois volumes de Diagnóstico Prático e Os Poemas de John Keats, encadernação marroquim, manu-seado e gasto. Havia uma mesa, também, com papéis empilhados. E em toda a volta do quarto havia instrumentos musicais em vários estágios de degradação: sanfona, violino, vio-lão, clarineta francesa, corneta, harpa. Um cachorrinho mexicano de pêlo curto, com catarata em um dos olhos, sentado aos pés do Doutor, seu nariz levantado para o teto, uivava sem parar.

O Doutor tocava cada vez mais furiosamente, murmu-

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rando, enquanto seus dedos tortos pulavam pelo teclado. De repente, no meio de um acorde trovejante, parou, deu meia-volta olhando para nós e, alongando as mãos, reclamou entre suas costeletas:

“Minhas mãos são muito pequenas! Sempre há algo de errado comigo, em tudo. Ai!”, suspirou. “Franz Liszt tinha dedos curtos também. Ih! Mas não como os meus. Não dedos curtos na cabeça...” Suas palavras sumiram em murmúrios indistintos.

Buck bateu os pés no chão e deu um tapa no joelho.“Deus, Doutor!”, gritou. “Se você tivesse mãos grandes

não sei que diabo você poderia fazer!”O Doutor olhou para o nada no chão. O cachorrinho

pôs as patas em seu colo, choramingando, e o velho pousou sua mão trêmula sobre a cabeça do animal. Os dois oficiais saíram, sem jeito. Nesse momento, o Doutor acendeu um cachimbo enorme, rosnando e grunhindo para si mesmo, a fumaça flutuando por seu bigode, nariz, olhos e ouvidos.

Com uma certa reverência Buck me apresentou. O Doutor acenou com a cabeça e me encarou com olhinhos turvos que pareciam não ver. Seu rosto redondo, inchado, estava coberto de uma penugem branca. Através de um bigode amarelo, descuidado, vieram as indistintas ruínas de uma articulação cultivada. Ele tinha um cheiro forte de conhaque.

“Ai, você não é um desses… pulgas-do-mar… blá-blá-blá”, disse ele, olhando para mim. “Do mundo grande. Do mundo grande. Diga a eles que o meu nome está escrito em água… blá-blá-blá.”

Ninguém sabia coisa alguma sobre ele, a não ser o que deixara escapar quando bêbado. Ele mesmo pare-cia ter esquecido seu passado. Os mexicanos, entre os quais se dava a maioria dos seus clientes, amavam-no

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com devoção e mostravam isso pagando suas contas. O Doutor sempre cobrava a mesma quantia por qualquer serviço – curar uma fratura, amputar um membro, fazer um parto ou dar uma dose de xarope contra tosse –, vinte e cinco centavos. Mas ele falara de Londres, da sala da rainha, do conservatório musical, de ter estado na Índia e no Egito e de ter ido a Galveston como chefe do hospital. Afora isso, nada além de nomes de cidades mexicanas, de pessoas desconhecidas. Tudo o que Presidio sabia dele era que atravessara a fronteira sem nome e bêbado durante a revolução de Madero, e estivera lá sem nome e bêbado desde então.

“Por Nossa Senhora!”, disse o Doutor de repente. “Andando em suas carruagens! E eu, aqui...”, resmun-gou um pouco e soluçou. “Sim, isso a matou, mas não fui eu…”

Fiquei conversando com ele, tentando apertar alguma tecla que destrancasse sua vida.

“Ouvi dizer que você teve conexão com o Conservatório Musical de Londres.”

Ele ficou em pé de um salto, cerrando os dois punhos, e olhou em volta. “Quem disse isso?”, grunhiu. Depois sentou-se novamente. “E agora sou um velho médico va-gabundo em Presidio!”, terminou e riu sem amargura.

Tentei com Egito e ele disse: “Naqueles dias havia uma floresta de mastros na enseada de Alexandria… espes-sa...” Depois falei da Índia, mas ele apenas murmurou: “Em Darjelling, perto do grande cedro, na grama. Oh, Deus... blá-blá...”

“Galveston!”, gritou e esticou o corpo. “Sim, eu estava em Galveston quando a inundação… Minha mulher afo-gou-se...” Disse isso sem muito sentimento e, levantan-do-se, foi cambaleando até o armário de livros e pegou um dos livros de diagnósticos práticos, que trouxe para

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mim como uma criança teria feito. Na primeira página havia “Galveston, 18 de setembro de 1901”, e recortes de jornais sobre a inundação estavam colocados de qualquer jeito entre as páginas. Levei o livro de volta ao armário e, despreocupadamente, peguei Os Poemas de John Keats. Abri. Dentro da capa estava escrito, em tinta quase invisível:

Junho de 1878Para EndymionCom meu corpo e almaA. de H. K.

Endymion, ele! Para que mulher aqueles destroços batidos e velhos teriam sido Endymion? 1878. Aos vinte e poucos anos, talvez… bonito, um sonhador.

Ouvi um rosnado triste e olhei para cima para ver o Doutor em pé, dobrando-se e olhando para mim de forma estranha.

“O que você tem aí? O que você tem aí?”, ele quase gritava. “Ponha de volta...” Enquanto veio cambaleando até mim, escorreguei o livro de volta ao armário. Segurou minhas duas mãos e levantou-as até seus olhos. Depois deixou-as cair e virou-se.

“Nada”, balbuciou. “Eu tinha esquecido... Eu perdi em Monterey...”, ficou parado, resmungando para si mesmo. “Agora, o que a trouxe de volta, afogada há trinta anos? Bem, afogue-a de novo!” Ele foi até o canto, pegou uma garrafa preta e levantou-a até os lábios. Depois procurou entre seus instrumentos e sacou um velho acordeão. Sentando-se em sua cadeira de novo, começou de repen-te a tocar o que podia ser reconhecido como a Terceira Sinfonia de Beethoven. Foi assustador.

Mas tocou apenas um minuto. Parou, sacudiu a cabeça e suspirou. “Heróica!”, disse. “Heróica! Blá-blá-

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blá. O que vocês, pulgas-do-mar, sabem sobre grandes tragédias? Estou ficando velho, cacei minha vida inteira e nunca encontrei…” Encontrar o quê? Fama? Riqueza? Amor? Verdade?...

vNa noite seguinte jantamos, Buchanan, o Doutor e

eu, num restaurante mexicano de uma única sala, cujo proprietário já possuíra um pequeno rancho do outro lado do rio. Rancho esse que Enrique Creel vendera a William Randolph Hearst, embolsando o dinheiro. Ho-mens grandes, morenos, de botas e esporas, entraram, e cada um parou de um lado da mesa para dizer: “E então, Doutor? Como anda?” O garçom mexicano serviu o Doutor primeiro e, quando um rico fazendeiro que chegara naquela manhã começou a xingar o garçom de engor-durado preguiçoso, um dos guardas aproximou-se e bateu no braço dele.

“O Doutor primeiro, estranho”, disse ele, baixinho. “Depois disso você pode fazer o que quiser.”

O Doutor levantara-se tarde, atormentado pelos fogos do inferno. E, embora já houvesse engolido um quarto de aguardente, ela ainda não surtira efeito. Estava som-brio e quieto, respondendo aos cumprimentos com um grunhido.

Perto de mim estava um sujeito ativo com um queixo retraído, um homem urbano. Era um agente da Com-panhia Crayon de Ampliações de Retratos, de Kansas City, Montana, e estava muito contente com o volume de negócios que havia conseguido em Presidio, tirando fotos e recebendo encomendas dos mexicanos. Todos à mesa ficaram ouvindo suas histórias orgulhosas com rostos graves, mas rindo por dentro. Conforme Buck explicou-me depois, um mexicano adora ser fotografado. E um mexicano faz encomendas de qualquer coisa, ou assina

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seu nome em qualquer lugar – mas não paga.“Mexicanos são ótimos objetos para fotografia”, dizia

o agente, entusiasmado. “Eles mantêm a pose por quinze minutos sem se mover…”

O Doutor levantou sua cabeça de repente, resmungou algo e depois disse com distinção:

“É por isso que meu retrato não foi terminado. Era difícil posar para Freddie Watts.”

“Você quer dizer, em Londres?”, perguntei rapida-mente.

“Hampsted”, respondeu o Doutor, ausente. “O estúdio dele era em Hampsted...”

Então, se o Doutor não tivesse se cansado de posar, seu retrato estaria pendurado entre os de William Morris, Rossetti, George Meredith, Swinburne e Browning, na National Gallery!

“Você conheceu William Morris?”, disse eu, sem fôle-go.

“Um pedante desgraçado!”, gritou o Doutor, de repen-te, batendo o punho na mesa. Entusiasmado, perguntei sobre os outros. Mas ele continuou comendo, como se não ouvisse. “Diletantes. Uma corja de amadores!”, gritou, finalmente, e não disse mais nada.

O agente das Ampliações Crayon fez continência para a companhia e um sinal com o dedão para o Doutor. “Ele não vale nada, não é?”, comentou com um sorriso de especialista. “Não tem nada na cabeça, hein?” Um olhar hostil prolongado encontrou seus olhos. Da cabeceira da mesa um caubói sério jogou nele um pedaço de pão e comentou:

“Seu cabrito cabeça oca, é melhor você ficar quieto. O Doutor aqui é amigo meu e ele esqueceu mais do que você jamais vai saber.”

O Doutor pareceu nem perceber. Mas quando saímos,

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mais tarde, eu o ouvi murmurar algo sobre “pulgas-do-mar”. Caminhamos em direção a uma choupana de madeira, onde uma mesa de bilhar havia sido colocada, e tentei descobrir quando ele saíra do “grande mundo”. Reagiu ao nome de Pasteur, mas era evidente que Ehr-lich, Freud e os outros nomes da medicina moderna não significavam nada para ele. Na música, Saint-Saens era um jovem interessante e nada mais. Strauss, Debussy, Schoenberg, mesmo Rimsky-Korsakoff, eram grego para ele. Ele odiava Brahms, por alguma razão.

Havia jogo na sala de bilhar quando chegamos, mas alguém gritou “Lá vem o Doutor!”, e os jogadores bai-xaram seus tacos. O Doutor e Buck jogaram na mesa capenga, enquanto fiquei sentado ali perto. O jogo do velho era magnífico. Parecia nunca perder uma jogada, não importava o quão difícil, embora mal pudesse ver as bolas. Buck quase não tinha chance de jogar. Ao redor, encostados nas paredes, formando um cinturão sólido, sentavam-se mexicanos com seus altos e largos sombre-ros, com ponchos de cores desbotadas mas maravilho-sas, grandes fivelas nas botas e esporas grandes como dólares. Quando o Doutor fez uma grande tacada, um coro de aplausos suaves veio deles. Quando seu cachim-bo escorregou e caiu, dez mãos embaralharam-se pela honra de reavê-lo...

Na leve, profunda noite aveludada, fomos para casa pela areia. Já havíamos caminhado uma pequena dis-tância quando o Doutor parou de repente.

“Aqui, Tobey! Aqui, Tobey!”, gritou, voltando-se e procurando com os olhos na escuridão. “Perdi meu ca-chorrinho. Onde será que está aquele cachorrinho? Acho que deve estar lá no bilhar. Aqui, Tobey! Tenho que voltar e encontrar meu cachorrinho.”

“Diabo, Doutor”, disse Buck, impaciente. “Seu ca-

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70 Endymion: ou na fronteira

chorro vai voltar bem. Deixe-me ir e trazê-lo para você. Você está cansado.”

O Doutor sacudiu a cabeça, resmungando. “Eu tenho que encontrar meu cachorrinho”, disse. “Ninguém pode encontrar coisa alguma para mim. Cada um tem que procurar… sozinho, sabe?” E ele voltou.

Buck e eu ficamos perto da trilha e acendemos uns ci-garros. À nossa volta, a noite espessa, exótica, era rica de sons e cheiros. Abruptamente Buck começou a falar:

“Não me lembro nada do meu pai, exceto que era um filho-da-puta. Mas eu pensava que todos os velhos fos-sem como ele. Realmente, nunca encontrei um homem de verdade ou nenhum outro tipo de homem que não se importasse só consigo mesmo, até que conheci o Doutor. Toda essa coisa cristã nunca significou nada pra mim até agora. Mas esse Doutor, ele tem um tipo de combinação de bondade terrível, e só sofrendo como um pobre diabo o tempo todo que… bem, eu não sei, mas eu… eu… amo esse homem. Grande… ele é um grande homem, sei disso. Ele é todo grande. Uns imbecis por aí dizem que é louco. Mas às vezes penso que todos nós outros é que somos. Ele fica bêbado o tempo inteiro, o Doutor, mas tudo que diz, mesmo as coisas mais loucas, de alguma forma me tocam aqui dentro como se fossem a verdade de Deus.”

Buck parou, e vimos a pequena figura atarracada do Doutor aparecendo indistintamente, saindo da escuridão, com Tobey trotando aos seus calcanhares. Levan-tamo-nos calados e andamos com ele, um de cada lado. Parecia não nos notar, resmungando e soluçando para si mesmo. Mas, de repente, soltou um suspiro enorme, esticou os dois braços e com seus pobres olhos embaçados fixos no céu, disse:

“Oh! A noite para os gentios é dia para os Filhos de Israel!”

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1916

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Retratos mexicanos

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I. Soldados da Fortuna(Jiminez, 1914)

Lá, ao lado do plaza, encontrei um pequeno grupo de cinco americanos amontoados em torno de um banco. Estavam inacreditavelmente esfarrapados, todos, com exceção de um jovem magro, de polainas e uniforme de oficial federal, usando um chapéu mexicano sem o topo. Os pés projetavam-se para fora dos sapatos, ninguém tinha mais que restos de meias, todos sem se barbear. Um, que não era mais que um garoto, tinha o braço numa tipóia feita com um cobertor rasgado. Deram-me espaço com prazer e aglomeraram-se a minha volta dizendo o quanto era bom ver outro americano no meio daqueles malditos engordurados.

“O que estão fazendo por aqui?”, perguntei.“Somos soldados da fortuna!”, disse o garoto do braço

machucado.“O-o…”, interrompeu outro. “Soldados da...!”“Veja bem”, começou o jovem com aparência de militar.

“Lutamos na Brigada Zaragosa, estivemos na Batalha de Ojinaga e tudo. E agora vem uma ordem de Villa para dispensar todos os americanos das linhas e mandá-los de volta para a fronteira. Não é uma mensagem dos diabos?”

“Ontem à noite ele nos deu nossas honrosas dispensas e nos jogou para fora do quartel”, disse um homem de uma perna só e cabelos ruivos.

“E não tivemos lugar pra dormir e nada pra comer…”, disparou um garoto de olhos acinzentados que eles cha-mavam de major.

“Não vão ficar tentando tirar esmola do cara!”, retor-quiu o soldado, indignado. “Não vamos receber cinqüenta Mex cada um pela manhã?”

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John Reed 75

Fizemos uma excursão rápida a um restaurante pró-ximo e, quando voltamos, perguntei-lhes o que fariam.

“O velho Estados Unidos, pra mim”, soltou um irlandês moreno e bonitão que não falara ainda. “Vou voltar para São Francisco e dirigir caminhão de novo. Estou cansado de graxa, comida ruim e lutas ruins.”

“Eu tenho duas dispensas honrosas do Exército dos Estados Unidos”, anunciou o jovem militar, orgulhosa-mente. “Servi durante a Guerra Espanhola, servi sim. Sou o único soldado deste grupo.” Os outros zombaram e xingaram, mal-humorados. “Acho que vou me realistar quando cruzar a fronteira”, concluiu.

“Eu não”, disse o homem de uma perna só. “Sou procurado por dois assassinatos. Não fiz isso, juro por Deus que não. Foi uma armação. Mas um cara pobre não tem chance nos Estados Unidos. Quando não estão armando uma acusação falsa pra cima de mim, eles me en-gaiolam como ‘vagabundo’. Eu estou bem, mesmo assim”, continuou, sério. “Sou um homem que trabalha duro, só que não consigo encontrar trabalho.”

O major levantou seu rosto pequeno, duro, e seus olhos cruéis. “Eu saí de um reformatório no Wisconsin”, disse, “e acho que deve haver uns guardas esperando por mim em El Paso. Sempre quis matar alguém com uma arma e fiz isso em Ojinaga. Mas ainda não estou satis-feito. Eles disseram que a gente podia ficar se assinasse os papéis de cidadania mexicana. Acho que vou assinar amanhã de manhã.”

“O diabo, que você vai!”, gritaram os outros. “Isso é a pior coisa que pode fazer. Suponha que haja uma in-tervenção e você tenha que atirar em sua própria gente. Você nunca vai me ver assinando meu nome para me tornar um engraxate.”

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76 Retratos mexicanos

“Isso é fácil de arrumar”, disse o major. “Quando eu voltar para os Estados Unidos vou deixar meu nome aqui. Vou ficar aqui até juntar o suficiente para voltar à Geórgia e abrir uma fábrica que utilize trabalho infantil.”

O outro garoto começou a chorar de repente. “Meu braço foi trespassado por uma bala em Ojinaga”, solu-çou, “e agora estão me largando sem dinheiro nenhum, e não posso trabalhar. Quando eu chegar em El Paso os guardas vão me prender e terei que escrever para o meu pai vir buscar-me e levar-me de volta para a Califórnia. Eu fugi de lá o ano passado”, explicou.

“Olhem aqui”, aconselhei, “é melhor vocês não ficarem aqui, se Villa não quer americanos em suas companhias. Ser um cidadão mexicano não vai ajudar se vier a inter-venção.”

“Talvez você esteja certo”, concordou o major, pensa-tivo. “Ah, pare de se lamentar, Jack! Acho que vou me mandar para Galveston e pegar um barco sul-americano. Dizem que começou uma revolução no Peru.”

O soldado tinha uns trinta anos e os outros três es-tavam entre dezesseis e dezoito.

“Para que vocês vieram até aqui?”, perguntei.“Emoção!”, responderam o soldado e o irlandês, sor-

rindo.Os três garotos olharam para mim com rostos ávidos

e sérios, marcados pela fome e pelas dificuldades. “Sa-quear!”, disseram ao mesmo tempo.

Olhei um pouco para suas roupas em pedaços, para os grupos de voluntários esfarrapados desfilando em torno do plaza, sem serem pagos há meses, e contive uma von-tade violenta de rir da cara deles... Pobres desajus-tados em um país passional, desprezando a causa pela qual lutavam, zombando da alegria de um povo empobrecido que eles jamais entenderiam! Quando estava indo embo-

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ra, perguntei: “Por falar nisso, a qual companhia vocês pertencem? Do que vocês eram chamados?”

O jovem ruivo respondeu. “A legião estrangeira.”v

II. Peões(Além de Jiminez)

Entramos no deserto passando por uma série de planícies arredondadas, arenosas e cobertas com alga-ro-beiras pretas, aqui e ali um cacto ocasional... A noite já aparecia no zênite sem nuvens, enquanto todo o hori-zonte estava iluminado por uma luz clara, e depois a luz do dia sumiu e as estrelas surgiram no domo dos céus como um foguete.

Perto da meia-noite, descobrimos que a estrada pela qual viajávamos terminava de repente numa densa mata de algarobeiras. De algum modo havíamos saído do Ca-mino Real. As mulas estavam esgotadas. Não havia nada a fazer senão um “acampamento aberto”.

Já havíamos aliviado as mulas e alimentado-as, e acendíamos uma fogueira quando, em algum lugar da mata densa, passos furtivos soaram.

“Quem vem lá?”, perguntou Antonio.Houve um ruído arrastado nos arbustos, e então uma

voz. “Quem são vocês?”, perguntou, hesitante, a voz.“Maderistas*”, respondeu Antonio. “Siga!”Duas formas vagas materializaram-se no fim da luz da

fogueira, quase sem som. Eram dois peões, vimos assim que se aproximaram, embrulhados em seus cobertores rasgados. Um deles era um homem velho, enrugado, usan-do sandálias feitas a mão, suas calças em farrapos sobre as pernas finas. O outro, um jovem muito alto, descalço.

* Seguidores de Francisco Indalecio Madero (1873-1913), revo-lucionário mexicano. (N. de E.)

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78 Retratos mexicanos

Amigáveis, calorosos como a luz do Sol, avidamente curio-sos, como crianças, aproximaram-se, esticando as mãos. Retribuímos os apertos de mãos de ambos, saudando-os com a elaborada cortesia mexicana.

No início, recusaram educadamente nosso convite para jantar, mas, depois de muito apelo, finalmente os persuadimos a aceitar umas tortillas e chili. Era engraçado e de dar pena ver o quanto estavam com fome e o quanto haviam tentado esconder isso de nós.

Depois do jantar e de nos trazerem um balde de água por pura cortesia, ficaram perto da nossa fogueira, fuman-do nossos cigarros e esticando suas mãos para perto das brasas. Lembro-me de como seus ponchos caíam-lhes dos ombros, abertos na frente para que o grato calor pudesse atingir seus corpos magros. Lembro-me de quão antigas e retorcidas eram as mãos esticadas do velho, e como a luz vermelha brilhava no pescoço do outro e acendia o fogo em seus grandes olhos... De repente, concebi esses dois seres humanos como símbolos do México – corteses, amáveis, pacientes, pobres, escravos por tanto tempo, tão cheios de sonhos, tão próximos de serem livres.

“Quando vimos sua carroça se aproximando”, disse o velho, sorrindo, “nossos corações apertaram-se dentro do peito. Pensamos que vocês fossem soldados vindos, talvez, para tomar nossas últimas poucas cabras. Tantos soldados vieram nos últimos anos… tantos. Na maio-ria os Federais, os maderistas não vêm, a não ser que eles mesmos estejam com fome. Pobres maderistas!”

“É”, disse o jovem, “meu irmão, que eu amava mui-to, morreu na luta de onze dias em volta de Torreon. Milhares morreram no México. E milhares ainda vão cair. Três anos… é muito tempo para uma guerra em um país. Muito tempo.”

O velho murmurou: “Valgame Dios!”

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“Mas virá um dia…”, disse o jovem.“É o que dizem”, comentou o velho, trêmulo. “Que

os Estados Unidos do Norte cobiçam nosso país, que os soldados gringos virão e tomarão minhas cabras no final...”

“Os ricos americanos querem nos roubar da mesma forma que os mexicanos ricos”, disse o jovem.

O velho tremeu e arrastou seu corpo cansado para mais perto do fogo. “Fiquei pensando muitas vezes”, disse suavemente, “por que os ricos, tendo tanto, querem tanto. Os pobres, que não têm nada, querem muito pouco. Só umas cabras...”

Seu compadre levantou o queixo como um nobre, sor-rindo gentilmente. “Nunca saí deste pequeno lugar aqui, nem mesmo para ir a Jiminez”, disse ele. “Dizem-me que há muitas terras ricas ao norte, ao sul e ao leste. Mas esta é a minha terra, e eu a amo. Na minha época e na de meu pai e de meu avô, homens ricos têm se apossado do milho e têm mantido esse milho em seus punhos fechados, bem na frente das nossas bocas. E só o sangue vai fazer com que eles abram as mãos para os seus irmãos.”

O fogo apagou-se...

1914

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Os direitos das pequenas nações

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82 Os direitos das pequenas nações

Eu pegava meu visto no consulado búlgaro, em Buca-reste, quando Frank entrou com o mesmo objetivo. Soube de cara que ele era americano. As marés da imigração haviam lavado seu sangue, os irmãos Leyendecker in-fluenciaram a forma do seu nariz e da sua mandíbula, e seu olhar e andar eram diretos e sem sofisticação. Ele era loiro, jovem, “de boa aparência”. Sob as roupas imitando tweed inglês que alfaiates romenos fabricam, o corpo dele era o de um corredor universitário que ainda não se suavizara, construído de forma tão econômica quanto a de um animal selvagem.

Instintivamente, também como um animal, pois não era observador, viu em mim um compatriota e disse “Alô” com a entonação superior de um anglo-saxão cumpri-mentando outro na presença de povos estrangeiros e inferiores. Era um garoto comunicativo, muito longe de casa para suspeitar de americanos. Se eu fosse pegar o trem da uma e meia da tarde para Sofia, disse ele, pode-ríamos viajar juntos. Ele trabalhava para a Companhia de Petróleo Romano-americana – uma subsidiária, por sinal, da Standard Oil. Estava há dois anos nos campos de petróleo romenos, perto de Ploeshti. E enquanto ca-minhávamos juntos pela rua, disse que estava indo para a Inglaterra alistar-se no exército e lutar.

“Para quê?”, exclamei, embasbacado.“Bem”, disse ele, sério, olhando para mim com olhos

perplexos e sacudindo a cabeça, “há um grupo de ingleses lá em Ploeshti e eles me falaram sobre isso. Eu não ligo. Talvez seja besteira, como todos os outros dizem lá no nosso campo, mas não posso evitar. Tenho que ir. Acho que foi um truque sujo violar a neutralidade da Bélgica.”

“A neutralidade da Bélgica!”, disse eu, com uma sen-sação de assombro em relação às possibilidades despro-positadas da natureza humana.

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“Sim”, apressou-se a dizer. “Fico nervoso só de pen-sar num país pequeno como a Bélgica frente a um país grande e valentão como a Alemanha. É uma vergonha! A Inglaterra está lutando pelos direitos dos países pequenos e eu não entendo como alguém que tenha colhões possa ficar de fora!”

Algumas horas depois vi-o na plataforma da estação conversando com uma garota magra e simples, de vestido de algodão amarelo, que chorava e empoava o nariz ao mesmo tempo. O rosto dele estava vermelho e o cenho franzido, e ele cuspia as palavras como um homem faz quando está irritado com seu cão, seu servo ou sua espo-sa. A garota chorava monotonamente. Às vezes o tocava com um gesto tímido, suplicante, mas ele afastava-lhe a mão.

Avistou-me e bruscamente deixou-a, vindo com uma expressão envergonhada. Estava evidentemente preocu-pado e irritado. “Estarei com você assim que me livrar dessa maldita mulher!”, disse, brutalmente masculino. “Elas não deixam um homem em paz, deixam?”

Acendendo um cigarro, voltou para onde ela estava. A mulher olhava fixamente para os trilhos, o lenço na boca, fazendo um esforço desesperado para se controlar. Usava sandálias de saltos excessivamente altos, como as prostitutas romenas usavam naquele ano, e carregava uma bolsa de couro. Tudo nela era surrado. Seus seios jovens eram retos, desnutridos, e o seu cabelo preso, fino e sem brilho. Eu sabia que só uma garota muito sem graça poderia fazer a vida em Bucareste, onde eles se gabam de ter mais prostitutas por “macho quadrado” que em qualquer outra cidade do mundo.

Seus olhos involuntariamente encontraram o rosto de Frank. Ela começou a tremer. Ele enfiou as mãos nos bolsos rispidamente, tirou um rolo de notas e separou

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84 Os direitos das pequenas nações

duas. A garota endureceu, ficou branca e rígida. Seus olhos brilharam. A mão esticada com o dinheiro era como uma arma carregada. Mas, de repente, o vermelho opaco subiu às faces da moça como uma dor. Pegou as notas e começou a soluçar violentamente. Afinal, tinha que sobreviver.

Meu compatriota lançou-me um olhar cômico, deses-perado, e fitou ameaçadoramente a moça. “O que você quer?”, grunhiu ele num romeno duro, desagradável. “Não lhe devo nada. Por que você está choramingando? Corra pra casa, agora. Tchau.” E deu-lhe um pequeno empurrão desajeitado. Ela deu uns dois ou três passos e parou, como se não tivesse forças para ir mais longe. E algum instinto, ou alguma lembrança, deu a Frank uma faísca de compreensão. Ele pôs as mãos em seus ombros e beijou-a na boca. “Tchau”, disse a garota, engas-gada, e correu.

vChacoalhamos para o sul pela planície quente, passan-

do por cidades miseráveis de cabanas de barro cobertas de palha imunda, esperando por muito tempo em esta-ções onde os dóceis camponeses esquálidos em roupas brancas esfarrapadas embasbacavam-se estupidamente com o trem. A brancura rica e tumultuada de Bucareste convertia-se abruptamente num mundo onde as pessoas morriam de fome, numa miséria sem esperanças.

“Não entendo as mulheres”, dizia Frank. “Você não consegue livrar-se delas quando termina. Eu tive aque-la garota por uns nove meses. Dei a ela uma boa casa para morar, comida melhor que a que ela jamais teve na vida e dinheiro. Ora, ela gastou em vestidos, chapéus e selos uns cento e cinqüenta dólares. Mas você acha que ela ficou agradecida? Não. Quando fiquei cansado dela, achou que tinha uma hipoteca do lugar, disse que não ia

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embora. Tive que pô-la pra fora. Depois disso, começou a me escrever cartas de azar. Nada senão um jogo para tirar dinheiro de mim. Cair nessa? Claro que não caí nessa. Não sou tão trouxa assim! Esta manhã encontrei-a quando estava vindo para o trem e juro que não consegui me livrar daquela saia o dia todo. Chorando… ugh!”

“Onde você a conheceu?”, perguntei.“Ela? Oh, eu só a peguei na rua em Ploeshti... Dava

pra jurar que ela nunca estivera com outro homem! Isso é perigoso.” Olhou para mim e um vago desconforto o fez querer justificar-se. “Veja você, lá nos campos de petróleo cada um tem sua própria casa. E você tem que comer, lavar roupa e ter um lugar limpo pra viver, é claro. Então todo mundo arruma uma garota para cozinhar, lavar, cuidar da casa e viver com ele. É difícil encontrar uma que sirva em tudo. Eu tentei três e conheço caras que tiveram seis ou oito. Põem-nas pra dentro, experimentam, e põem pra fora.

“Pagar?”, prosseguiu. “Ora, você não paga nada pra elas. Em primeiro lugar, elas vivem com você, não vivem? E depois, conseguiram uma casa e comida e você compra roupas pra elas. Nada na linha de salário. É capaz delas fugirem com o dinheiro. Não, é assim que você faz com que elas se comportem. Se elas não fazem o que você manda, você não compra mais roupas.”

Eu quis saber se algum desses ménages durou.“Bem”, disse Frank, “tem o Jordan. Ele tem a casa

mais bonita do nosso campo. Você tem que ver aquele lugar. Mas claro que ele leva uma vida bem solitária, porque só os garotos solteiros vão visitá-lo. Às vezes um homem casado, mas nunca com a mulher. Jordan vive com uma garota há onze anos, uma garota romena que ele pegou como todos nós pegamos as nossas. É claro que ninguém quer ter nada a ver com ele. Ele é o cara

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mais esperto da companhia, aquele lá, mas não podem promovê-lo enquanto ele viver desse jeito. Um oficial lá tem que ser mais ou menos sociável, você sabe. Então, ele está lá há anos e vê homem depois de homem, que não vale um quarto do que ele é, passar por cima da cabeça dele.”

“Por que ele não se casa com a mulher?”“O quê!”, disse Frank, surpreso. “Aquele tipo de mu-

lher? Depois dela ter vivido com ele todo esse tempo? Ninguém se casará com ela. Ela não é decente.

“Não suja as suas possibilidades viver com mulhe-res?”

“Oh, nós! Não, é diferente. Todo mundo acha que tudo bem, contanto que a gente não apareça com as garotas em público. Você vê, somos jovens. É só quando você chega aos trinta que tem que se casar. Eu tenho vinte e cinco.”

“Então em cinco anos…”Ele assentiu com a cabeça loira. “Vou começar a pen-

sar em ter uma mulher. Mas isso é só uma proposta de negócios. Não há por que casar. Claro que um homem de verdade precisa de uma mulher de vez em quando, sei disso, mas quero dizer que não tem por que se amarrar, a não ser que você possa tirar algo de bom disso. Eu vou pegar uma bonita, sem nenhum escândalo a respeito dela e com uma posição social que me ajude com meu emprego. No sul há várias garotas assim. Não preciso do dinheiro delas, devo estar com um salário muito bom em uns poucos anos. E, além disso, se a sua mulher tem uma renda própria, ela pode fazer o que quiser. Você não acha?”

“Acho que é um jeito podre de encarar o assunto”, dis-se eu, irritado. “Se eu vivesse com uma garota, fôssemos casados ou não, faria dela uma igual, financeiramente

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e em todos os outros aspectos.” Frank riu. “E quanto a seus planos de casamento, como você pode casar-se com alguém que não ama?”

“Oh, amor!” Frank estremeceu, incomodado, e olhou para fora da janela. “Diabo, se você for ficar sentimen-tal...”

1915

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A coisa certa a fazer

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Vim da costa do Pacífico no Lucullus Limited, que é, como você sabe, o orgulho de um grande sistema ferro-viário, o brinquedinho de um poderoso corpo de diretores – um trem que perde uma imensa soma em dinheiro a cada viagem que faz. Isso porque oferece todos os confor-tos de um hotel e de um clube – uma barbearia, banho, taquígrafo, aspiradores de pó, jornais gratuitos e chá num vagão de janelas amplas. Por volta das quatro e meia da tarde, um grupo de dignos garçons negros apresenta os bules e xícaras cerimoniais e pede a alguma assustada esposa de um rei do gado para servir um grupo de es-tranhos, literalmente. Assim segue a divisão de classes. A esposa do rei do gado emite um “Como?” surpreso e sai. Seu marido, que roncava em mangas de camisa, com as crianças brincando com as tiras de elástico em seus braços, acorda, luta freneticamente para entrar em seu casaco e leva sua cria para a sala de fumantes. Nesse momento, os educados garçons acabam de che-gar à presidente do Clube das Senhoras de Willow City, Wyoming, que ergue-se nervosamente para a ocasião. Dirigindo seu olhar acidentalmente ao vaqueiro em suas roupas informais, que está sentado no canto, ela grita: “Creme ou limão?” Em vão, ele tenta responder. Uma sombra escura cobre seus olhos quando diz: “Acho que não quero nada!” Indignados, os refinados e distintos correm em socorro. É um prazer vê-los abrir os apetre-chos de seu rito social, com aquela graça ostensiva que é uma repreensão aos não-iniciados. Unidos pelos laços da civilização superior, os tomadores de chá logo estão conversando com tão pouco esforço ou inteligência, como se estivessem em suas próprias salas de estar. E, a partir desse momento, linhas de classe estão bem marcadas, e ninguém que tenha fracassado nessa prova poderá unir-se ao grupo.

Notei o inglês pela primeira vez nessa ocasião. Nor-

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malmente, poucos homens aventuram-se ao chá porque nós, americanos, somos uma raça pouco civilizada, temerosa do ridículo. Quanto mais a oeste se vai, mais tímidas são as pessoas. Contudo, quando as terríveis preliminares terminaram, essa tarde, e a esposa de um militar aposentado aceitou a responsabilidade, o inglês deixou a revista de lado e pareceu esperar, entediado. Era um jovem de boa aparência, de cores agradáveis, roupas que lhe caíam primorosamente e sapatos muito grandes – típico, inquestionável, correto.

A esposa do militar chamava-o com os olhos.“Um ou dois torrões? Creme…?”Reis do gado, barões do trigo, suas esposas, seus filhos,

vaqueiros, caixeiros-viajantes, todos focaram seu olhar so-bre o inglês, suas bocas abertas como que para beber-lhe as palavras. Estavam muito curiosos em saber o que um homem deveria responder sob essas circunstâncias.

“Obrigado”, disse o inglês, sem uma sombra de expres-são na voz ou no rosto. “Um torrão. Creme, por favor.”

Da audiência veio um som de alívio, de admiração. A respiração soltou-se. Algumas crianças deram risadinhas assustadas. O populacho começou a sentir-se um pouco de trop, mas persistiram em ver o que o inglês faria com seu chá quando o recebesse. Depois disso, desapareceram em direção ao corredor ou à plataforma de observação, deixando o lugar para os eleitos que, graças ao exemplo do inglês, somavam agora oito ou mais.

A esposa do militar disse, depois, o quanto ele fora gentil. Tenho certeza de que ele não fazia idéia de ter sido gentil. Não, ele tomara o chá porque fazia parte da imutável lei de seu universo...

Eu o vi várias vezes depois disso. Não falava com quase ninguém – parecia não necessitar de companhia, como o resto de nós. Não que não soubesse como consegui-la,

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ou que se sentisse socialmente superior – estava simples-mente satisfeito consigo mesmo, perfeita e totalmente. Quase nunca lia. Não precisava ler. Sentou-se em uma cadeira no compartimento de fumo por horas, uma vez, fumando um cachimbo – e ruminando.

Quando eu passava por ele no corredor, ou andando por plataformas de estações quando o trem parava por um minuto, ele tirava o cachimbo da boca, balançava a cabeça diagonalmente, sorria brevemente e lançava “Bom dia”. Depois de dois ou três dias, até o surpreendi conversando com a esposa do militar, com quem ele podia conversar porque a conhecera socialmente.

“Sobre o que ele conversa?”, perguntei a ela, curio-so.

“Oh, críquete e Suíça”, disse ela, extasiada. “Ele já esteve uma vez na Suíça. Mas simplesmente adoro ouvi-lo pronunciar as palavras. E é tão calmo… Você sabe exatamente o que ele vai dizer depois!”

Surpreendeu-me que falasse da Suíça porque não é de bom gosto para um inglês mencionar lugares onde esteve. Nem as pessoas que conhece. Nem nada que cheire a teoria. Na verdade, há muito pouco sobre o que um inglês culto possa conversar com um estranho, sem perder a dignidade, com exceção do tempo.

Mas no compartimento de fumantes, especialmente no compartimento de fumantes de um trem como o Lu-cullus Limited, um anglo-saxão pode curvar-se ao ponto de dar sua opinião sobre assuntos que só ele entende. Então, uma noite, fiz-lhe algumas perguntas sobre a grande guerra européia, na qual a Inglaterra acabava de entrar.

“Qual é o motivo da guerra?”, perguntei.Ele perscrutou-me friamente, como que para medir

meu status social.

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“Não faço a menor idéia”, disse afinal, indiferente.Arrisquei a opinião de que era a luta entre os eslavos e

os teutos pela supremacia na Europa. Sacudiu a cabeça, com um sorriso.

“A guerra”, explicou gentilmente, “é entre Áustria e Sérvia.”

“Mas a Rússia estava quase evidentemente apoiando a Sérvia, e a Alemanha, a Áustria…”

“Isso apenas devido ao fato de que algumas nações européias são honradas o suficiente para manter suas promessas.”

Fiquei intrigado por um momento. Talvez suas pala-vras possuíssem uma sutileza que eu perdera.

“E a ação inglesa em relação à Bélgica?”“Ela foi obrigada a entrar na guerra porque a Alemanha

estava ameaçando a França com a invasão da Bélgica.”“E, conseqüentemente, ela mesma?”“De jeito nenhum”, respondeu, e não disse mais

nada.Fitei-o, surpreso.“Mas, quero dizer, as razões por trás da guerra!”“Além das que eu já mencionei, não há nenhuma”,

continuou, plácido.“Mas em que estava baseado o tratado que garantia

a neutralidade da Bélgica?”“Tratado?”, exclamou ele. “Besteira. Não há tratado

algum que garanta a neutralidade da Bélgica. A Inglaterra não faz tratados nunca. Com certeza, nenhum americano é crédulo o bastante para acreditar que haja algo como contratos secretos entre as grandes potências européias.”

“Tudo bem”, disse eu, impacientemente. “Mas o que eles querem dizer? O que está por trás de tudo isso?”

“Política externa”, foi a notável resposta. “Não da minha alçada. Não faço a menor idéia. Coisas teóricas e

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tudo isso.” Insolente, olhou meditando pela janela.“Mas você não acha que há a possibilidade de levantes

populares como resultado dessa guerra?”“Eu acho que não.”“Com os elementos antiguerra e trabalhistas revolu-

cionários tão fortes, posso pensar que o prolongamento da guerra pode exaurir o patriotismo deles.”

“Um partido trabalhista na Europa?” Era uma per-gunta tão cheia de surpresa, tão arrogante, que respondi de forma acalorada.

“Até mesmo na Inglaterra. Vocês não estão de forma alguma livres do temor da revolução lá. Com a Inglaterra sendo levada, como está, a uma guerra ofensiva...”

“Besteira”, devolveu ele num tom afiado, como o que se usa para reprovar um garotinho. “Você evidentemente não sabe coisa alguma sobre o meu país. Por favor, deixe suas especulações para o seu próprio.”

“Você lembra da greve do carvão e a da ferrovia?”, perguntei. “Com certeza nem mesmo um homem de Oxford é tão radical a ponto de recusar-se a reconhecer os sinais dos tempos!”

“Cambridge”, devolveu ele, intocável. “Acontece que eu estava de plantão nas duas greves.”

“Policial?”, perguntei.“Não”, respondeu, com um olhar reprobatório contra ta-

manha estupidez. “Não, tenente dos Territoriais, é claro.”“E você não via como aqueles grevistas se sentiam?”“Não. Não vi nada, com exceção de que eles eram

mais numerosos que nós, numa proporção de cem para um, e nós estávamos receosos de lutar. E, além do mais, você sabe, revoluções só acontecem quando um povo é oprimido.”

“Sim…”, disse eu, já me cansando.“E os trabalhadores ingleses não são oprimidos. Eles

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ganham muito bem para pessoas de sua classe…”Continuou a fumar o cachimbo de sua raça e classe,

de forma regular e plácida.“Você está…”, disse eu, pego por uma idéia, “você

está, por acaso, voltando para a Inglaterra para entrar no exército?”

“Sim”, respondeu ele. Nunca teria me contado por vontade própria, mas eu podia ver que não lhe desagra-dava ser descoberto.

“Qual é a sua idéia, ao lutar?”, perguntei.“Desculpe-me... Não compreendi...” Ele estava fran-

camente intrigado.“Por que você quer lutar com os alemães? É devido a

sua simpatia pelos franceses?”“Que coisa extraordinária para se perguntar a um

inglês! Simpatia pelos franceses! Bom Deus, não!”“Então, por quê? Ódio aos alemães?”“Enfaticamente, não. Gosto muito dos alemães. Luto

porque, bem, meu povo sempre foi um povo lutador.”Depois disso, calou-se. Não pude tirar dele mais que

monossílabos pelo resto da viagem. Ele, evidentemente, considerava que tinha excedido as fronteiras do bom gosto ao revelar-se tanto.

Quanto a sua opinião sobre mim, a esposa do militar disse-me, no dia seguinte, que ele perguntara se eu era um cavalheiro.

E então nossos caminhos separaram-se em Chicago e ele foi procurar passagem para voltar à Inglaterra. Deu-nos uma visão esplêndida ao andar ao longo da plataforma, o máximo da jovem masculinidade inglesa, a quintessência daquela famosa classe dominante que fizera de si mesma o maior império que o mundo já viu – sem a menor idéia do que estava fazendo. Foi para a glória ou para o túmulo, destemido, bonito, sem emoções,

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oitenta quilos de ossos e músculos e sangue de cavalhei-ro, com o interior de sua cabeça como uma sala de visitas vitoriana, cheia de quinquilharias, móveis cobertos de pêlos e janelas fechadas. E eu tive uma idéia momentâ-nea, culpada, de que talvez o espírito que conquistou a Índia fosse o mesmo que avança contra fogo e sangue para tomar um banho frio pela manhã – apenas porque essa é a Coisa Certa a Fazer.

1916

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Na plataforma do vagão de janelas amplas, sentei-me ao lado de um homem pequeno, de peito de pombo, com olhos verdes saltados e um queixo retraído. Ele usava roupas compradas prontas, sapatos com protuberâncias nos dedos e, por baixo da estreita aba do velho cha-péu-coco, apareciam mechas finas de cabelo úmido. No conjunto, era a imagem do fracasso, e seu sorriso fraco, porém amigável, reforçou-me a impressão.

”Desculpe-me”, disse ele, com uma distinção exage-rada, exalando um cheiro de uísque. “Desculpe-me, mas você poderia, por acaso, dizer-me quando o navio Cunard parte de Nova York?”

“Eu não posso.”“Extraordinário”, resmungou. “Muito peculiar. Antes

publicavam as datas de partida do Cunard e do White Star no Examiner, de São Francisco. Mas, nas últimas três semanas, não publicaram uma palavra. Possivel-mente”, olhou para mim com uma expressão ansiosa, “possivelmente Hearst recusou-se a permiti-los em seus jornais, sendo pró-Alemanha e tal. Ou talvez eles tenham retirado suas propagandas… anúncios, eu deveria dizer por aqui.” Sorriu meio malicioso, meio desculpando-se. “Cyvis Romainus summ.”

“Cambridge?”, perguntei. “Deve ser. Lá é o único lugar onde ensinam esse tipo de latim.”

Ele gostou. “Sim”, disse. “O de Cristo.”“Está indo para casa?” Ele concordou. “Para lutar?”“Sim. Quero dizer, Saúde do Exército Real. Sou mé-

dico.” Mexeu, sem muita atenção, com umas cartas ras-gadas e murmurou. “Não podia ficar de fora por muito mais tempo, sabe. Meus dois irmãos estão na frente de batalha. Hubert até já foi ferido. E eu sou o mais velho. Foi difícil decidir. Tenho uma carta aqui em algum lugar”, embaralhou-as inutilmente. “Droga! Não importa. Mas

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escrevi ao meu antigo professor, Sargent é o seu nome, e pedi um conselho. E ele respondeu: ‘Largue tudo e venha imediatamente. A Inglaterra precisa de cada homem’. Então, aqui estou eu.”

Senti como se estivesse sendo seduzido.“É claro”, disse eu, “se você tiver vontade. Casado?”“Sim.”“Filhos?”“Filhos?”, ecoou e sorriu, hesitante. “Não, graças a

Deus. Não sou um canalha desses. Não haverá outros como eu.” Melancolicamente, baixou os olhos para as suas mãos, e elas tremeram.

Não havia nada a dizer depois disso. Ficamos quietos por algum tempo, enquanto abaixo de nós passavam os trilhos brilhantes e o deserto frio desfilava interminavel-mente, morto sob o céu acinzentado.

“Você esteve na América por muito tempo?”, perguntei, finalmente.

Esqueceu-se de si mesmo. “Dois anos e meio. Acho que visitei todos os seus Estados, procurando um lugar para fixar-me. Finalmente fui para a Califórnia. Agora sou médico numa companhia madeireira.” De repente, perdeu o controle. “Meu Deus! Por que converso com você assim? Não diria uma palavra se não estivesse com duas doses de uísque em mim!”, parou e depois disse, numa voz gentil. “Tenho um diploma de Cambridge e um de Londres… e sou médico em uma companhia madeireira!”

Bem, eu fora criado no oeste e compreendia todo o significado daquilo. O médico de uma madeireira é equi-valente ao médico de um navio a vapor, ou um médico de família, ou de um hotel. Ele não é pago pela madeireira. Recebe um dólar por mês de cada trabalhador, deduzido de seu salário. E com isso o “doutor” serve a suas neces-sidades médicas. É perigoso trabalhar nas serrarias, e

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madeireiras tomam poucas precauções contra acidentes. Quanto ao médico – bem, eu conhecia um que se demi-tira após três meses, devendo uns quatrocentos dólares. Nenhum médico decente, consciente, pode agüentar ser médico de uma madeireira.

“Quando tudo terminar”, continuou, e a nova linha de pensamento fez suas faces se aquecerem, “haverá uma nova placa de metal sobre o túmulo da família na Igreja Ansingham. Eu posso ver todas agora:

“‘Roger Lewellyn, morto em combate a bordo do navio de Sua Majestade Victory, Trafalgar, 1805.’

“‘Capitão Thomas Lewellyn, morto por ferimentos, Sebastopol, 1856.’

“‘Trevor Lewellyn, morto em combate, Ladysmith, 1900.’

“E depois”, segurou-me pelos ombros, olhos faiscan-do, e exclamou sonoramente, “e depois uma nova placa brilhante:

“‘Mortimer Lewellyn, R. A. M. C., morto em serviço ativo, Flanders, 1916.’

“Posso ver meu pai entrando na igreja num domingo de manhã, alguns minutos atrasado, como sempre fez. O chefe da família Lewellyn, a igreja da família Lewellyn… e o sacerdote respeitosamente parando o sermão até que meu pai se sente. E meu pai olhando vagarosamente para a linha de placas de metal que guardam a memória de nossos lutadores mortos, até que seus olhos caem em ‘Mortimer Lewellyn’. Toda a linha está limpa! Toda a linha está limpa! Não vale a pena morrer por isso? O quê?”, enxugou o suor da testa.

“E a sua esposa”, perguntei. “Deve ser difícil para ela ver você partir.”

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Ele levantou os ombros. “Por que ela se importaria?”, perguntou com amargura, gesticulando. “Ela tem dinhei-ro suficiente para três meses de aluguel e vão começar a pagar-lhe a pensão. Oh, isso arruma muitas coisas! Nada mais de preocupações bobas. Nada mais de vergonha. Nada mais de manter as aparências. Três anos de vida miserável tivemos, três anos… Deus!”, ponderou. “Ela dizia que tudo tinha sido um fracasso. E talvez tenha sido. Tal-vez. É tão difícil saber, depois, se você fez certo ou errado. Se eu tivesse que fazer de novo, fico pensando…”

“É perder tempo lamentar-se pelo que se fez”, aven-turei, sem compreender.

Parecia não me ouvir. “Ela é filha de um criador de gado de Devon, veja bem. Minha família não podia permi-tir isso. Eu sou o filho mais velho e um dia serei o chefe da família. Então”, e aqui sua alma miserável e infeliz olhou para fora do corpo, “viemos viver na América. E agora… estou indo para casa. Você não vê?”

“Não, não vejo!”, exclamei, acalorado, embora visse. “Você quebrou aquela maldição infernal uma vez. Por que não persevera? Faça para você um novo lugar, uma nova tradição de família, se você quiser, neste Novo Mundo, e deixe que aquele andaime velho e podre se desfaça sob os pés dos imbecis homens fortes!”

Ele sacudiu a cabeça e sorriu extravagantemente. “Você é americano, não consegue entender. Você não consegue. Quando cheguei aqui pensei que estivesse livre. A Guerra me acordou. A Guerra trouxe tudo até mim. E, afinal, soube que a Família é a coisa mais im-portante. Está no sangue. Não podemos escapar disso. Ora, você sabe, nós somos limpos, intocados, imacula-dos de desonra desde o século XIV! Em 1591, época da rainha Bess, Richard Lewellyn foi o chefe da guarda de Anglesea, Lewellyn de Ansingham. Meu pai é Richard

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Lewellyn também: quando escrevo para ele endereço a carta a ‘Richard Lewellyn, J. P., Carnarvonshire’. É isso que nós significamos para Inglaterra!”

“Por que você não leva sua esposa para a Inglater-ra?”

Ele não gostou da pergunta. Estava ficando sóbrio rapidamente. Mesmo assim, respondeu.

“Não tínhamos dinheiro suficiente para os dois. Para nenhum de nós, na verdade. Tive que pedir a meu pai a passagem para Liverpool. E, além disso, não poderia levá-la a Ansingham. Eu a mandaria de volta a Devonshire e seguiria para casa sozinho? Não posso fazer isso!” Jogou a cabeça para trás com orgulho e, de repente, dirigiu-me uma reverência fria. “Desculpe meu mau gosto imper-doável!”, disse, e desapareceu.

Vi-o novamente várias vezes, andando, incansável, de um lado a outro do trem, ou em seu assento, lendo um artigo numa revista médica intitulada The Pathology of War Surgery. Mesmo no superaquecido vagão Pullman, ele usava seu sobretudo e seu chapéu-coco batido. Não se barbeava havia dias. Cumprimentava-me com a cabeça, numa cortesia distante.

Quando passei por seu assento a caminho do almoço, perguntei se iria ao vagão-restaurante.

“Obrigado”, respondeu, seco. “Irei mais tarde.”Novamente, à hora do jantar, falei com ele.“Lamento muito. Acabei de ir.”Mas nunca o encontrei no vagão-restaurante e agora

sei que ele nunca esteve lá. Quando e como comia é um mistério.

Naquela noite paramos por dez minutos em Helena e caminhei um pouco pela plataforma no ar cortante do inverno. Lewellyn também andava. Passamos um pelo outro várias vezes, e depois ele desapareceu. Quando o

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trem seguiu, fui ao lavatório e a primeira pessoa que vi foi Lewellyn. Estava espalhado no assento, chapéu no chão, casaco tirado pela metade, boca bem aberta, ron-cando. Um frasco de bebida preso em seus braços, que relaxavam aos poucos, tombara pelo balançar do trem e um uísque mal-cheiroso pingava viscoso por seu peito. Coloquei a garrafa na prateleira e sacudi-o.

“O que…”, começou, e engasgou, lutando para ficar sentado. “Olá, oláoláolá!”, olhou de cima a baixo cuida-dosamente e sorriu com grande cordialidade. “Eu bem sabia que era você. Sente-se. Tomei uísque demais.”

“Como vai o futuro chefe da família Lewellyn?”, per-guntei, em tom de pilhéria.

“Oh, tenho sido podre, tudo bem”, disse rindo. “Mas não um podre desse tipo. Hubert será o chefe da Família. Hubert sabe as regras do jogo e ele está noivo da honra-da Mary... E agora, quando eles pensarem em mim, não terão que fechar a boca. Não senhor!” Deu-me um tapa nas costas. “Eles dirão: ‘Mortimer era o mais velho, mas morreu em Flanders’. O quê?”

Por um momento ficou olhando para a frente, ima-ginando coisas. Seu rosto pequeno, fraco, impaciente, de olhos saltados, todo sujo e coberto de pêlos macios e pretos, estava transfigurado.

“Vou sentar-me para jantar em Ansingham. Brooks, o velho Brooks, cujo avô foi mordomo do meu avô, vai se lamuriar por eu estar em casa de novo. Só estarão mamãe e papai. Posso ver o velho como se ele estivesse aqui. Não vai perguntar por que voltei. Vai simplesmente sentar e olhar para mim com aqueles olhos carrancudos. E mamãe estará toda de preto, na outra cabeceira da mesa, com um rosto tão vazio quanto… quanto aquela cadeira de encosto de couro ali. Posso ouvi-la dizer, com aquela voz quieta, baixa: ‘Hubert está com seu regimento

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em Salonika. Dick está treinando em Whitchurch. O que você vai fazer, Mortimer?’” Aqui Lewellyn levantou-se e seu rosto tomou uma expressão séria. “Estou saindo pela manhã, mamãe!”

E sem outra palavra para mim, caminhou para a porta e saiu. Mais tarde vi um sorridente condutor do Pullman levantando uma forma inerte, que eu sabia ser Lewellyn, ao beliche superior.

Regularmente, todas as noites depois daquela, ele ficou bêbado e conversou. Tive imagens vívidas da vida que conheceu e amou. Do banquete em Ansingham, quando os juízes de Sua Majestade foram ao condado para a se-mana de julgamentos. De sua mãe visitando os doentes do vilarejo como uma castelã medieval. Da cerveja servida na cozinha na véspera de Natal e dos inquilinos bêbados. De um clube de estudantes em Cambridge. Certa vez, divagou sobre sua experiência como interno do hospital de Londres, sobre pálidas orgias com estudantes de me-dicina, sobre uísque incessante e uma mão que tremia, e problemas no hospital e em casa. Depois veio seu caso de amor, a regeneração, o aspecto da cura em sua vida – parecia agarrar-se a isso como um remédio desesperado para todo esse turbilhão. A oposição inflexível da família – evasão –, América. Tive de organizar esses fragmentos, pois nunca falava algo com sentido. Mas, no geral, isso deu a imagem impressionista de uma vida.

Em Chicago pegamos trens separados, e o perdi.v

Cinco dias depois bateram à porta de meu quarto em Nova York e lá estava Lewellyn. Barbeara-se, mas seu chapéu e casaco estavam ainda mais desbotados que antes e seu colarinho nos últimos estágios de decência. Cheirava a uísque.

“Desculpe-me”, começou, entrando com um ar humil-de. “Lembra-se que me deu seu endereço no trem e disse

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que se pudesse ser útil…”“Pensei que você estivesse no navio. Já houve dois

navios.”“É, sei disso”, respondeu vagamente. “Mas… bem… é

um pouco humilhante, mas eu mandei dois telegramas e não houve resposta. Já é tempo suficiente, você não acha?”

Disse-lhe que, com toda a certeza, as condições daque-les tempos de guerra estavam atrasando os telegramas e perguntei o que poderia fazer por ele.

“É uma coisa que odeio pedir”, hesitou. “E quero que você acredite que eu não deveria nem sonhar em pensar uma coisa dessas, a não ser porque você é um homem da Universidade, você sabe, e eu também sou, e somos uma classe distinta, por assim dizer… irmãos, certo? Quero contatar meu pai de novo, mas… mas… estou temporariamente embaraçado. Você poderia…?”

Disse que enviaria o telegrama para ele. Ele sorriu.“Muito obrigado. Certamente que o pagarei quando

meu dinheiro chegar. Mesmo que não chegue, telegrafei a minha esposa pedindo-lhe vinte dólares do dinheiro do aluguel…”

“Se não chegar?”, ecoei. “Mas com certeza seu pai…”“Talvez não.” Lewellyn sorriu e balançou a cabeça, em

dúvida. “Ele é um velho miserável, meu pai. Pôs-me porta afora uma vez, sabe? Nós somos uma família teimosa.”

“Mas o que você fará se ele não mandar?”, perguntei. “De volta à Califórnia?”

“Não”, respondeu, cuidadosamente. “Creio que não. Imagino que eu vá ficar aqui. Está tudo acabado por lá. Ela estará melhor sem mim.”

“Mas como você pode ficar aqui? Não tem dinheiro. Você não tem…”, eu ia dizer que ele não tinha a mínima chance de conseguir emprego. A Inglaterra pode precisar

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de cada homem, mas a América, não. “Uma cidade é tão boa quanto a outra”, disse Lewellyn,

enigmaticamente.“Bem”, trocamos um aperto de mãos, “se você não

receber resposta, avise. Talvez eu possa fazer alguma coisa…”

Uma semana depois recebi uma nota de cinco dólares num envelope que não continha mais nada. Telefonei para os escritórios dos navios, mas nenhum doutor Mortimer Lewellyn partira em nenhum navio para a Inglaterra. Fi-nalmente, depois de muita procura, descobri o hotel onde estivera – um albergue antigo bem no centro da cidade, muito freqüentado por atacadistas de roupas.

“Lewellyn?”, disse o recepcionista. “Diga, você é amigo dele? Ele saiu daqui há seis dias, não pagou a conta. Nós temos a mala dele, mas não há nada nela além de camisas sujas.”

vFico pensando se eu deveria escrever para o irmão

Hubert, o futuro chefe da Família Lewellyn, Ansingham, Carnarvonshire, Inglaterra.

1916

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O capitalista

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Você sabe como a Washington Square fica em meio à névoa úmida das noites de novembro. Aquela atmosfera cinza, luminosa, suavizando incrivelmente as duras si-lhuetas das árvores nuas e dos trilhos de metal, apagando os contornos das sombras e colocando uma aura prateada acima de cada globo da iluminação. Todas as calçadas retas de concreto são de ônix negro, coroado em cada pequena reentrância com poças reluzentes de água de chuva. Uma garoa imperceptível enche o ar. As faces e as costas das mãos das pessoas ficam úmidas e frias. E ainda assim você pode dar três voltas na praça com sua capa de chuva aberta sem ficar nem um pouco molhado.

Foi numa dessas noites que William Booth Wrenn, indo de algum lugar a lugar nenhum, parou sob os dois postes perto do Arco de Washington para contar sua riqueza. Era quase meia-noite. William Booth Wrenn acabara de receber sua compensação por ter feito… não importa o quê. Somava sessenta e cinco centavos no total. Era a terceira vez que os contava.

Um olhar rápido para o senhor Wrenn, se você não é particularmente observador, o teria convencido de que ele era um jovem comum em circunstâncias comuns, talvez um atendente, em ascensão, numa loja de armarinhos. Seus sapatos de couro pareciam ter sido engraxados recentemente, seu chapéu era de algo que já fora um tecido inglês e sua capa de chuva era do comprimento correto. Havia nele um ar distinto, como o de um jovem que sabe vestir suas roupas. A névoa indulgente reforçava essa impressão. Uma pessoa tem que ter essa aparência se está procurando um emprego em Nova York. Mas, se você olhasse mais de perto, notaria seu colarinho puído e sujo e, se você pudesse olhar sob o casaco, veria que o colarinho estava ligado a um mero trapo sem mangas que não era uma camisa. E se você examinasse as solas

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de seus sapatos, descobriria ali dois buracos e um par de meias encharcadas aparecendo. Como você poderia saber que a capa de chuva estava “levemente estragada pelo fogo” por dentro? Ou que o chapéu inglês descolava rapidamente se molhado?

Depois de recontar seus recursos, William jogou uma moeda para cima. Saiu cara. Pegou o caminho da direita através da praça, balançando as moedas alegremente em seu bolso.

Entre dois postes, naquela calçada, há uma fila de duros bancos de madeira. Na luz tênue, viu duas pes-soas ocupando lados opostos do caminho. Uma trouxa ensopada e um bêbado desconfortavelmente deitado por cima dos braços de ferro que a cidade colocara ali para impedir que sem-tetos cansados dormissem. Seu rosto inchado estava voltado cegamente para o céu e ele roncava asperamente. Pequenas gotas de água encrus-ta-vam-se nele, brilhando conforme seu peito subia e descia. O outro ocupante era uma velha. Um cheiro forte de uísque vinha dela. Um cachecol amarelo, úmido de orvalho, cobria seu ralo cabelo branco e estava amarrado sob seu queixo. Ela cantava:

“Oh, eu conheço o meu amor (hic) pelo seu jeito de andar (hic),

E eu (hic) conheço o meu amor pelo seu jeito de (hic) falar,

E eu conheço meu (hic) amor pelo seu casaco azu-u-u-u-u-l,

E se meu amor me deixasse (hic)…”

Nesse ponto, ela pareceu ouvir o balançar das moedas de William e, de repente, parou, gritando: “Vem cá!”

William parou, voltou-se, levantou seu chapéu num gesto cortês.

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“Pois não, senhora!”“Vem cá, eu disse!” Sentou-se ao lado dela no banco

e olhou curioso para seu rosto. Era extraordinariamente desenhado e cheio de linhas, murcho como os rostos de faxineiras muito velhas que às vezes vemos depois do horário comercial em prédios de escritório. Seu lábio inferior tremia senilmente. Ela se virou para ele, um par de olhos vidrados, desbotados.

“Deus amaldiçoe sua alma!”, disse. “Cê (hic), cê num tem melhores maneiras que balançar sua grana na frente daquele cara e eu?”

William riu.“Mas, minha boa senhora…”, começou ele, com suas

melhores maneiras.“Boa senhora (hic) é a mãe!”, disse a velha senhora.

“Eu conheço vocês, seus caras ricos. Aposto que você nunca trabalhou um minuto pelo seu dinheiro. Seu pai deixou procê, num foi? Eu achei mesmo. Eu conheço vo-cês…”, procurou pela palavra certa: “vocês, capitalistas!” Uma agradável sensação de satisfação invadiu William. Ele assentiu, complacente.

“Como você adivinhou?”“Adivinhou!”, riu a mulher, de forma desagradável.

“Adivinhei! (hic). Cê acha que não trabalhei em casas finas? Cê acha que eu não tive uns caras jovens e ricos, quando eu era jovem? Conhecer você? Com sua grana balançando e suas maneiras delicadas! E um d’ocês tiraria esse chapéu (hic) pra uma velha como eu, sem tá brincando?”

“Madame, eu lhe asseguro…”“Meu Deus! Ouve só ele! Ah, sim, muitos foram os

jovens amantes ricos (hic) que eu tive quando era jovem. Naquela época eles tiravam o chapéu…”

William ficou pensando se aquela ruína horrorosa já

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havia sido bonita um dia. Isso estimulou sua imagina-ção.

“Quando eu era uma garota (hic)… “Oh, eu sei meu amor… “Digaaaaaa... eu estava pensando quando ouvi aquele

dinheiro balançando… Não é engraçado como a gente balança tudo que a gente tem? Você balança, eu balanço, todo mundo balança. Quero dizer. Eu tava pensando (hic), você não gostaria de vir comigo e se divertir um pouco?” Inclinou-se e olhou para ele, maliciosa, numa recordação horrível de sua juventude. O cheiro de uísque barato en-cheu as narinas dele. “Vamos! Te dar uma bo… (hic) boa diversão, querido. Quer ir a algum lugar se divertir?”

“Não, obrigada, não esta noite”, respondeu William, gentilmente.

“Claro”, resmungou a velha. “Eu conheço vocês, seus capitalistas! Dão trabalho pra gente quando a gente não quer. Mas não dão trabalho pra gente quando a gente (hic) quer. Tire a mão do bolso, eu não quero a sua ca-ridade suja... Já tive caridade demais. Eu trabalho pelo que ganho. Viu? (hic) Nenhuma mulher decente aceitaria sua caridade... Vamos lá, eu vou te…”

“Por que você está aqui? Vai pegar um resfriado…”“Por que você… Por que você acha que estou aqui?

Eu não posso ficar aqui no meu passeio nesta agradá-vel noite de verão! Se eu ganhasse pelo que fiz, cê acha que eu ia tá aqui? Jesus!”, olhou para ele, furiosa. “Cê é daqui da cidade?”

William sacudiu a cabeça. Tirou do bolso um maço de cigarros baratos e abriu-o. Havia dois cigarros.

“Você se importa que eu fume?”, perguntou, educa-damente.

“Se eu me importo que você fume! Que diabos cê quer,

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mocinho? Por que cê pergunta se cê pode fumar? Como se fosse meu problema se cê… Claro, eu quero um…” Ele riscou um fósforo.

“Cê é um capitalista”, continuou ela, o cigarro tremen-do em seus lábios. “Cê não ia ser tão educado comigo se não quisesse alguma coisa... eu conheço vocês... Cê não é da cidade. Se fosse, cê ia tá ganhando. Eu não ganho nada e (hic) sou da cidade. Olha isso aqui.” Ela mexeu sob o vestido e mostrou um cartão marrom. Levantando-se para pegar os raios de luz do poste, ele leu:

“Passe a senhora Sara Trimball por um mês a partir desta data em Randall’s Island. Para visitar a filha.”

“Essa sou eu”, disse a senhora Trimball, com um tipo de orgulho alcoólatra. “Trabalho lá na Randall’s Island, tipo de vai-ali-faz-isso-faz-aquilo para enfermeiras e médicos (hic). A gente recebe diariamente. E eu vou até a prefeitura. Chego lá às três e cinco e não ganho nada! Entendeu? Dinheiro nenhum até a outra sexta (hic). É o diabo. As enfermeiras e os médicos ganham o dinheiro deles até as cinco horas. Por que eu não ganho o meu? Eles sabem que não tenho lugar pra dormir... Por quê? Então eu digo (hic) ‘tá bom’ e vou dormir no parque. Logo antes de você chegar, um guarda grandão falou ‘sai daí!’. A cidade não me paga o que eu trabalho... Eu vou dormir no parque... O guarda da cidade vem e me manda embora... Pra onde eu vou? Pro inferno! Não é uma boa (hic)?”

“Você tem uma filha lá?”“Claro que eu tenho uma filha... Dezesseis anos. Taí

outra coisa engraçada (hic). Se eu não trabalhasse lá, eu podia manter ela lá por nada. Mas eu trabalho lá, então me custa dois dólares por semana pra manter ela lá.”

“Por que você trabalha lá?”, protestou William, altiva-mente. “É uma extravagância criminosa com uma pessoa pobre como você.”

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“Ouça eles falarem, os sujos!”, respondeu ela caloro-samente. “Cê acha que eu não quero vê ela de vez em quando? Oh, Deus, pra que que eu faço isso? Ela deveria estar nas ruas ganhando o suficiente pra cuidar de mim na minha velhice.”

“Claro que ela deveria. É ridículo…”“Não sei por que mantenho ela fechada daquele jeito...

Não faz (hic) sentido. Cê deveria me perguntar por que eu não quero que a minha garota seja como eu. Eu sempre me diverti, sempre vivi feliz. Por que não queremos que as nossas crianças sejam como nós? Ela deveria estar trabalhando por mim, mas continuo mantendo ela lá, en-tão ela não vai ser como eu... que diferença isso faz (hic)? Quando eu me for ela vai ter que ser, mesmo...” A senhora Trimball começou a tossir, de leve primeiro, e depois mais violentamente, até que seu corpo todo estava retorcido. A névoa abaixava, cada vez mais espessa. William sentiu o frio súbito penetrando seu corpo. O homem que dormia do outro lado engoliu, de repente, um ronco prodigioso, espirrou e sentou-se devagar.

“Por que cês não podem deixar um cara dormir?”, resmungou. “Essa tosse maldita…”

“Oh, Deus”, disse a senhora Trimball, fraca, passado o acesso. “Eu queria um trago.”

“Quanto custa um quarto?”, perguntou William, de repente.

“Vinte e cinco centavos. Cê quer um quarto? Eu conhe-ço um bom lugar na Rua 4... Não, o que cê tá dizendo? Cê não quer nenhum quarto...”

“Não, mas você quer. Espere um minuto, por favor! Não vou lhe oferecer caridade.” Ele esticou uma moeda de vinte e cinco centavos. “Você pode pegar emprestado comigo. Eu faria o mesmo com você, você sabe, e pode me pagar quando receber.” Colocou a moeda na mão trê-

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mula. Ela tentou agarrar e não conseguiu. A moeda caiu na calçada e rolou. Rápido como a luz, um braço longo, esfarrapado, veio do banco do outro lado e o homem saiu andando pelo caminho com seu precioso achado.

A senhora Trimball levantou-se de seu assento. “Seu bêbado!”, gritou, estridente. “Volte aqui com isso, seu bandido sujo!”

“Não importa”, disse William, seu braço sobre o dela. “Há várias outras em casa iguais àquela. Aqui está outra.” Dessa vez ela agarrou.

“Eu agradeço muito”, disse a senhora Trimball com dignidade. “Entre amigos está tudo bem emprestar (hic). Vou pedir pr’ocê me dar o seu nome e endereço, e eu devolvo.” Ela vasculhou na bolsa e encontrou um lápis todo comido e uma carta. “Talvez cê possa me dar outros dez centavos, pra eu poder tomar um trago pra esquentar meu estômago.”

William hesitou por um só momento. “Certamente”, concordou. Então colocou todo o seu cérebro para traba-lhar, juntando todas as lembranças que tinha da coluna social dos jornais de domingo. Escreveu na carta:

“Courcey de Peyster Stuyvesant – Hotel Plaza”

“Eu não disse?”, gritou a velha senhora. “Eu conheço você (hic). Eu não vou ter negócio nenhum com você! Cê ganha o dinheiro do seu pai e eu trabalhando de joelhos sete dias por semana. Esse não é um nome dos diabos que cê tem? Cê tem vergonha de andar uns passos com uma velha bêbada como eu, senhor Cursey Dee Pyster Stuyvesant?”

“De forma alguma, é um prazer, eu lhe asseguro.” William levantou-se firmemente e tomou o braço dela. Tremeu. Ao levantar-se, expunha outras partes de seu

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corpo, que se mantinham aquecidas enquanto estava sentado, ao frio.

“Olhe para nós!”, comentou a senhora Trimball. “Aqui todos nós elegemos um presidente dos Estados Unidos... O mesmo cara que promete deixar tudo bem (hic). Eu digo, aqui a gente elege um presidente e tudo que a gente tem em troca é… polícia...”

William respirou magnificamente. “Mas, minha queri-da senhora, nós temos que salvaguardar a sociedade...”

A senhora Trimball voltou-se. “Cê é um jovem legal, pra um capitalista. Você tem um negócio em você. Tudo que quer é um pouco de trabalho duro...”

“Se vocês, trabalhadores, não fossem tão extravagan-tes, guardariam dinheiro suficiente para terem conforto na velhice...”

vWilliam Booth Wrenn caminhou de volta para a praça.

Seus pés estavam insensíveis, mas a umidade penetrara por suas roupas finas e todo seu corpo estava úmido e frio. Procurou o banco que acabara de deixar, tocando o níquel em seu bolso. Num canto seco sob o assento, entre o ferro e a madeira, encontrou o toco de seu cigarro. Depois de quatro tentativas, um fósforo úmido acendeu uma labareda azul. Acendeu o cigarro, puxando uma longa tragada para dentro dos pulmões e aqueceu as mãos com o fósforo.

Nesse momento, um policial bem nutrido, envolto por uma capa, apareceu, mexendo com seu cacetete.

“Ande”, disse ele, breve. “Você não pode sentar aqui.”

William deu outra tragada em sua bituca e, sem se mover, soltou, insolente: “Meu senhor, você sabe quem eu sou?”

O policial analisou o colarinho sujo, o chapéu barato,

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116 O capitalista

os sapatos úmidos. Olhos de policiais são mais astutos que os de velhas senhoras. Então, inclinou-se para a frente e olhou dentro dos olhos de William.

“Sim”, disse, “eu sei quem você é. Você é o cara que eu expulsei duas vezes daqui ontem à noite. Agora vá, ou acabo com você!”

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Onde o coração está

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“Dois!”, late para a bilheteria o gigante vestido com um velho smoking. Ele é grisalho e encorpado, com um rosto de senador romano. Sua mão se fecha, beligeran-te, sobre os ingressos enquanto examina as pessoas cuidadosamente para ver se estão bêbadas. Então, você abre as portas de vaivém de vidros coloridos e as luzes, o movimento e o ruidoso ritmo do Haymarket atingem-no quase fisicamente.

Bill, o Grandão, vestido informalmente, está encostado no corrimão de metal que separa você da pista principal, e sorri como um boxeador, se você o conhece. Se não, mede você com um movimento de cabeça. Bill defende a propriedade. Pobre do jovem colegial que começa a can-tar. Pobre velho cujas maneiras fogem do convencional. Pobre do dançarino que brinca, ou da garota que ultraja a decência fumando cigarros em público*. O Haymarket é o lugar mais respeitável da cidade.

Também é cheio de luzes, refletidas em espelhos ao longo das paredes. O som da orquestra de metais é pra-ticamente ininterrupto, misturado a tons metálicos de conversas, tons curiosamente desafinados da voz hu-mana comum. Como figuras femininas em caricaturas im-possíveis e extremadas, homens e mulheres valsam vagarosamente na pista lotada em todas as posturas antinaturais... Há mesas redondas de madeira em to-dos os cantos, e a corrente contínua de chapéus-coco entran-do e saindo do lugar. Quando você pára e tenta colocar essas impressões variadas numa certa ordem, sente, de repente, olhos sobre você. Em todo o salão, de mesas próximas aos corrimãos, de assentos nas galerias, garotas observam cada nova chegada. Garotas bonitas, feias, mal-vestidas, bem vestidas, mas nunca pobremente

* 1912.

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vestidas. Eles não convidam, esses olhos nem desafiam, nem dizem coisas más. Simplesmente olham para você, firmes, famintos, como um gato olha um rato.

Foi assim que entrei no Haymarket, depois de muitos meses. Continuava o mesmo de sempre. “Bill”, disse eu, “é bom ver você.” E era mesmo. “Martha está?”

Bill fez que sim – ele é um homem de poucas pala-vras –, e apontou em direção à sala dos fundos. Mas mesmo lá – num lugar cheio de cartazes amarelados e fotografias de artistas mortos, e com as inevitáveis mesas, cada uma com sua garota – não consegui encontrá-la. Claro que ela devia ter mudado... Não subi para o balcão, contudo, e sim entrei por uma das portas que dão para a pista de dança e sentei-me a uma mesa. Um garçom veio e sussurrei para ele. Poucos momentos depois vi uma mulher levantar-se e mover-se através do salão em minha direção. Era Martha, esbelta, vestida de azul escuro, com uma pluma amarela estúpida em seu chapéu.

“Olá, querido”, disse ela. É assim que se cumprimenta no Haymarket. Então ela esticou a mão pequena, sorriu decorosamente e sentou-se. Notei que seu cabelo ainda era macio e escuro, seu rosto oval e delicadamente corado, seus olhos honestos e límpidos.

Ela pediu cerveja.“Ora”, disse, de repente, “eu já vi você.”“Não nos últimos quatro anos”, respondi. “Eu conheci

você.”“Oh, sim”, seus olhos iluminaram-se como os de uma

velha amiga. “Nos velhos tempos. May Munro estava aqui então, e Laura Chevalier e Babe Taylor. Toda a velha tur-ma. Acho que sou a única que sobrou do grupo.”

“Diga-me o que você tem feito esse tempo todo.”Ela levantou os ombros. “Não muito. O mesmo... Ah,

não, espere! Acho que estive na Europa desde a última vez que o vi.”

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“Europa!”, disse eu, pensativo. Ela assentiu, sorrindo. A dança parara um pouco e no palco espalhafatoso dois homens e uma mulher cantavam uma canção sobre o “Turkey Trot”, gritando muito alto e batendo em tambores e pratos. Os acordes sórdidos e óbvios da música chia-vam, assustadores, com as vozes quebradas. O barulho era ensurdecedor. Os corpos dos cantores moviam-se a partir dos quadris num ritmo grotesco, nervoso. Havia algo brutalmente abandonado e não de todo desagradável a respeito disso – algo que combinava com aquelas mu-lheres artificiais de olhos duros e com os espelhos. Eles cantavam “It’s a bear! It’s a bear! It’s a beat!”.

“Essa música é muito boa”, murmurou Martha, com olhos sonhadores. “Bem, sobre a Europa, você já esteve lá?”

“Sim”, sorri. “Imagino que você viu o Moulin Rouge, o Abbaye... E o Globe em Londres...”

“Não, não fui a muitos dos lugares de diversão. Já vi demais disso.”

“Martha”, disse eu, curioso, “por que você foi ao exterior?”

Ela franziu a testa. “Bem, queria aprender alguma coisa. Sabe, você tem um monte de coisas na sua cabeça que vieram dos livros de escola, quando você era criança. Como a Torre de Londres e a casa de Shakespeare, em Stratford. Bem, você acredita que eles estão lá e tal, mas tem que ver para ter certeza.”

Aquilo foi um choque. Mas, afinal, por que uma garota do Haymarket não podia querer ver a casa de Shakespe-are como as outras pessoas?...

Ela prosseguiu: “Eu sempre guardei o meu dinheiro. Não sei por que, talvez para comprar uma casinha no campo algum dia e criar galinhas. Farei isso quando acertar tudo. Na primavera passada comecei a pensar. E

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então um dia tirei meu dinheiro do banco, comprei um vestido novo e tomei o Lusitânia, cabine de primeira. Não, você pode ter certeza que não sou barata”.

“Mas você tinha dinheiro suficiente?”Martha riu. “Só o suficiente para chegar a Londres e

ficar lá como uma verdadeira turista por uma semana. Não, claro que eu não sabia o que aconteceria comigo depois disso. Só confiei em Deus. No navio, conheci um casal de velhos cabeças-duras, um pastor e a esposa, eu acho, e fui para Londres com eles. Ah, eles eram mesmo gente boa. Pensaram que eu fosse uma garota de colégio. Sempre me visto discretamente, você sabe. Eu gosto. Uma garota que se veste extravagantemente já começa se dando mal. Ficamos no Waldorf em Londres, um lugar quieto e respeitável como o diabo. Nós três, com certeza, fizemos aquela cidade. A ponte de Londres, Westminster, Palácio de Cristal. Dividimos a cidade em seções. Que tu-ristas, acredite! Oh, claro que fui ao Alhambra e ao Globe, quando os velhinhos estavam tirando um ronco. Mas as garotas inglesas são umas esnobes horrorosas.”

Ela ponderou, pensativa. “Nunca vou esquecer aquela semana. Divertir? Ah, comportei-me como uma criança de dois anos. Vendo todas as coisas sobre as quais se ouve falar.”

Ao fundo, a banda entrou na áspera “Gaby Glide”. Bill, o Grandão, apoiava-se ameaçadoramente sobre o corri-mão. Uma vez, vi-o arrastar, pela pista, uma garota que atacara um garçom com seu alfinete de chapéu, e jogá-la pela porta da rua. Bem perto de nós havia uma mesa à qual uma garota bem jovem conversava timidamente com um chapéu-coco – enrubrescendo e empalidecendo. Uma novata... Mas eu estava interessado na aventura de Martha. Sozinha em Londres, aprendendo.

“Mas o que você fez a respeito de dinheiro?”, pergun-

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tei, realista.“Estou chegando lá. Uma manhã acordei com sete

xelins. E naquele dia um jovem americano conversou comigo enquanto eu estava matando tempo no Hyde Park. Estava ficando cheia de Londres, de qualquer forma. En-tão, naquela noite, disse boa noite para a velha senhora, subi para o meu quarto e fiz as malas. Nós fugimos às duas da manhã. Muitas vezes fiquei imaginando o que ela pensou no dia seguinte. Foi assim que fui a Paris. Nós vivemos como reis no Grand Hotel. Diga, você algu-ma vez sentou-se na calçada na frente daqueles cafés lá pelas cinco horas, e viu os pássaros desfilando para cima e para baixo? Isso era tudo o que eu queria. Você se sente meio preguiçoso. Eu acho que acabei com três pares de sapatos andando pra lá e pra cá pelo Loover, com um catálogo na mão. O cara? Ah, ele era legal. Com-prou uns vestidos alinhados pra mim, seda preta. Nada chamativo, porém. Muitas garotas americanas em Paris têm que fazer a vida. Fiquei duas semanas em Paris e um dia meu amigo sumiu. Eu estaria na rua em um dia se não tivesse encontrado o inglês...

“Ele tinha uns sessenta anos e era barrigudo. Mas me tratava bem. Viajamos pela Bélgica e Holanda. Bru-xelas, o Hague, Ostend, depois fomos para a Alemanha. Eu não perdi nada. Em Waterloo, passei um dia inteiro lendo um livro de história. Acho que eu morreria de coceira se não visse tudo em Baydicker. Mas, depois de um tempo, quando chegamos a Strassburg, ele começou a ficar chato. ‘Olhe aqui’, ele disse pra mim, ‘corta essa de turista de excursão, tá bom?’ Então eu simplesmente peguei tudo e deixei o homem. Eu não ia ser o cachorro de ninguém, pode acreditar! Só tinha dinheiro suficiente para chegar a Paris... Mas eu sabia que nada poderia me acontecer, com a minha sorte. Na primeira noite mesmo

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John Reed 123

eu subi a Monmarter e encontrei uma garota americana que me deixou dormir na cama dela. Todas nós, garotas americanas, nos unimos, você sabe. Monmarter é como Nova York, porém não é tão honesto, se você me enten-de. Mas há toda sorte de coisas! Na noite seguinte, no Pigalle’s, dancei com um homem que parecia meio negro, só que não era. Ninguém é, por ali. Ele me deu seu cartão e convidou-me a ir para o Brasil com ele. O cartão tinha uma pequena coroa e ‘Conde Manuel da Portales’.

“Eu já tinha ouvido falar muito sobre falsos condes, armando para cima de garotas pobres. Então, quando vi Mabel mostrei o cartão pra ela e perguntei se era falso. ‘Vai nessa’, disse ela. ‘Arrisque!’ Mas mesmo assim eu não estava satisfeita. Não dormi aquela noite, pode acreditar em mim. Suponha que ele me levasse a algum lugar onde eu não conhecesse a língua e ninguém falasse inglês, e me deixasse? Mas eu confiei em Deus e fui. Ficamos duas semanas no barco, e então, Rio. Acho que o Rio é o lugar mais lindo do mundo. Me diverti muito lá. Toda sexta à noite íamos ao clube da alta sociedade para jantar e no sábado à noite todos colocavam fantasias, roupas chiques, sabe, e andavam para cima e para baixo em carros de aluguel. Eu fiquei quatro meses lá...

“Não, eu não estava muito feliz. Você vê, você fica can-sada de pensar nas coisas. Tudo em países estrangeiros é muito mais fino do que você jamais pensou que poderia ser. Então, você fica excitada quando vê uma coisa da qual sempre ouviu falar. Isso começa a dar nos nervos, e cansa. Eu ia ficar no Rio um ano. Mas não fiquei...

“Lembro-me muito bem. Uma noite, chegamos bem altos depois de uma festa no clube. Manuel caiu na cama e dormiu, mas eu não conseguia fechar os olhos. Era abril, a janela estava aberta e eu podia ver bem acima um milhão de milhas no céu. As estrelas brigavam lá em-

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124 Onde o coração está

baixo. Não sei o que me fez ficar pensando na Broadway, mas bem ali eu parecia vê-la, torcendo e retorcendo-se com luminosos. Com todos os ignorantes saindo dos ci-nemas, e os engomadinhos saindo do teatro… os realejos tocando o Rag irlandês do momento. Eu estava sedenta como um cão pela velha, honesta, ignorante Nova York! Você sabe, em países estrangeiros todo mundo é de alto nível. Depois eu vi o velho Market, com todas as garotas sentadas, as manchas de cerveja na mesa e a fumaça do cigarro Sweet Cap. Por aquela época todos os garotos de faculdade deveriam estar de férias e, é claro, vindo vagar pelo Market. Comecei a sentir ternura pelo Grande Bill ali. Então, cutuquei Manuel. ‘Qual é o problema?’, disse ele. ‘Recebi um telegrama de Nova York. É muito impor-tante. Coney Island vai abrir no dia primeiro. Quando é o próximo navio?’, disse eu. ‘Eu vou correndo.’

“Devo dizer que o conde ficou bem. Comprou-me uma primeira classe. ‘Quando é o próximo navio?’, disse eu. ‘Eu vou no ano que vem.’ Aquela viagem subindo a costa foi a melhor coisa que eu já fiz na vida. Estava totalmente sozinha e não deixei que homem nenhum a bordo chegas-se perto. Só li livros. Não conversei com ninguém...

“Bem, assim que comecei a ver a velha cidade surgindo na baía fiquei tão excitada que mal podia falar. Doía. Não esperei nada. Quando aportamos, levei minhas coisas para a Estação Erie e peguei uma balsa. Depois peguei o L para a Rua 28 e saí aqui. O velho idiota lá fora dis-se, ‘Ei, você não pode entrar aqui sem um ingresso…’, aí ele olhou mais de perto. ‘Oh, mas o que... Diga, por onde você andou?’ Não consegui responder-lhe. Fiquei lá parada como uma cabeça-dura, surda, burra e cega… eu estava totalmente fora de mim. Ele abriu a porta e eu meio que caí pra dentro. Lá estava o Bill, e atrás dele toda a multidão dançava, e as mesinhas. Lar! Era isso!

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Lar! Eu ouvi o Grandão gritando ‘Martha! Por Deus! A Esperança Branca Feminina está de volta!’ Oh, Deus! Você não pode entender. Eu só caí em uma mesa e me soltei... Venha, vamos dançar.”

1913

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Um gosto de justiça

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128 Um gosto de justiça

Assim que escurece, jovens garotas começam a passar por aquela esquina. Figuras esquálidas, rostos duros, garotas “baratas”, como passarinhos empoeira-dos desconfortáveis em suas penas. Elas sobem a Irving Place vindo da Rua 14, viram em direção à Union Squa-re na 16, passeiam pela 15 (passando pela esquina de novo) para a Terceira Avenida, e por assim vão – sempre voltando à esquina. Por algum magnetismo misterioso, a esquina da Rua 15 com a Irving Place as fascina. Talvez esse lugar em particular signifique Aventura, ou Fortuna, ou mesmo Amor. Como é que chegou a tal signi-ficância? Os homens sabem que é assim. À noite, cada sombra na vizinhança contém seu chapéu-coco, e alguns espíritos audaciosos até param sob a luz total do poste. Esbarrando contra eles, seduzindo com seus quadris balançantes, murmurando com lábios imóveis intimidades que o Negócio emprestou do Amor, a garota passa.

O lugar tem o seu guarda inevitável. Ele segue a mesma ronda geral que as garotas, mas num passo mais lento, mais majestoso. Faz isso para manter as garotas sempre andando – criando a ilusão de que elas estão indo a algum lugar. A sociedade não dá descanso ao vício. Se as mulheres ficassem paradas, o que seria de nós todos? Quando o guarda aparece na esquina, as mulheres que se demoram por lá espalham-se como um cardume de peixes. E até que ele continue, elas esperam nas escu-ras ruas laterais. Já pensou se ele pegasse algumas? “A Ilha para elas! Esse é o lugar onde eles cortam o cabelo de uma garota!” Mas o policial é um cara legal. Não usa nenhuma ameaça, mas simplesmente pára um momento, girando seu cacetete orgulhosamente, e depois continua em direção à Rua 14. Ele tem uma satisfação imensa em ver as garotas se espalharem.

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John Reed 129

Suas costas largas somem na escuridão e as garotas voltam – atravessando e reatravessando, passando e repassando com pés incansáveis.

Parado naquela esquina, olhando a pequena comédia, meus ouvidos estavam cheios de murmúrios baixos e do andar macio dos pés das garotas. Xingavam-me, ou zombavam de mim, dependendo se haviam jantado ou não. E então veio o guarda.

Seus grandes ombros vinham saindo da escuridão da Rua 14 com a arrogância satisfeita de um monarca absoluto. Em silêncio, algumas garotas desapareceram e a esquina continha apenas três coisas vivas: o poste zumbindo, o guarda e eu.

Ele parou por um momento, brincando com seu cacetete e olhando em volta, mal-humorado. Parecia descontente com alguma coisa. Talvez sua consciência o estivesse perturbando. Então seu olho caiu sobre mim e ele franziu a testa.

“Vá andando!”, ordenou, com um movimento impe-rial da cabeça.

“Por quê?”, perguntei.“Não interessa por quê. Porque eu disse vá. Agora

vamos”, moveu-se devagar em minha direção.“Não estou fazendo nada”, disse eu. “Não sei de lei al-

guma que impeça um cidadão de ficar parado na esquina, a não ser que ele atrapalhe o trânsito.”

“Corta essa!”, disse o guarda, balançando o cacetete sugestivamente para mim. “Agora vá andando, ou pego você!”

Percebi um homem de meia-idade passando apressado com um pacote embaixo do braço.

“Espere um pouco”, disse eu. E para o estranho: “Com licença, mas o senhor se importaria de testemunhar esta questão?”

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130 Um gosto de justiça

“Claro que não”, disse ele, entusiasmado. “Qual é o problema?”

“Eu estava parado, inofensivo, nesta esquina, quando este oficial disse-me que andasse. Não vejo por que deve-ria andar. Ele diz que vai me bater com esse cacetete se eu não for. Agora, quero que você testemunhe que não estou oferecendo resistência. Se eu não estava fazendo nada de errado, exijo ser preso e levado à delegacia noturna.” O guarda tirou o capacete e coçou a cabeça, em dúvida.

“Isso parece razoável”, o estranho sorriu. “Quer meu nome?”

Mas o guarda viu o sorriso. “Vamos, então”, grunhiu, pegando-me desajeitadamente pelo braço. O estranho desejou-nos boa noite e partiu, ainda sorrindo. O guarda e eu subimos a Rua 15, nenhum de nós dizendo coisa alguma. Podia ver que ele estava perturbado e que con-siderou deixar-me ir. Mas cerrou os dentes e continuou, teimosamente.

Entramos na respeitabilidade encardida da delegacia noturna, passamos por um corredor lateral e chegamos à porta que leva ao lugar cercado em frente ao banco. A porta estava aberta e eu podia ver além da barra umas poucas pessoas espalhadas nos bancos – visitantes, os mórbidos curiosos, uma velha judia com uma peruca castanha, esperando, esperando, com os olhos fixos na porta da qual surgem os prisioneiros. Havia as usuais poucas luzes no teto alto, a forração escura e feia de imitação de mahogany, que deveria impressionar mas só consegue escurecer o ambiente. Parece que a Justiça deve sempre esquivar-se da luz.

Havia outra prisioneira antes de mim, uma figura esbelta, feminina, que não chegava ao ombro do policial que segurava seu braço. Sua saia era enrugada e comum, e muito apertada nos quadris. Seus sapatos estavam

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rachados e eram muito grandes. Uma pluma enorme e vacilante a coroava. O juiz, vestido de preto, levantou o braço – não conseguia ouvir o que ele dizia.

“Corrompendo”, disse a voz rouca do policial. “Sexta Avenida perto da Rua 23.”

“Dez dias na Ilha. Próximo caso.”A garota jogou a cabeça para trás e riu, insolente.“Seu…”, disse, estridente, e riu de novo. Mas o guarda

colocou-a violentamente diante de si e saíram pela outra porta.

E eu fui para a frente, com a risada soando em meus ouvidos.

O juiz estava escrevendo alguma coisa em um pedaço de papel. Sem levantar a cabeça, disparou:

“Qual a acusação, oficial?”“Resistência a um oficial”, disse o guarda rispidamen-

te. “Eu disse a ele para andar e ele disse que não ia.”“Humm”, murmurou o juiz, abstraído, ainda escre-

vendo. “Não ia, hein? Bem, o que você tem a dizer em sua defesa?”

Eu não respondi.“Não quer falar, hein? Bem, creio que você vai pe-

gar…”Então ele levantou a cabeça e sorriu.“Olá, Reed!”, disse. Olhou venenosamente para o guar-

da. “A próxima vez que você pegar um amigo meu…”, su-gestivamente, não terminou a ameaça. Então, para mim: “Quer sentar aqui em cima, no banco, um pouco?”

1913

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Ver é crer

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134 Ver é crer

Se a garota era correta ou não, George ainda não sabe. Isso é uma coisa que você pode normalmente detectar numa conversa de cinco minutos – ou, pelo menos, Ge-orge pode. E esse caso é mais importante porque George tem idéias bem definidas sobre tal tipo de coisa. Ele é um rapaz atraente, mais bondoso que o normal, conhecido por render-se à nossa comum fraqueza por mulheres, e que, no entanto, tem idéias estritas sobre a posição dessas criaturas na escala social. Posso acrescentar que ele é muito sensível a atentados a seu dinheiro e a sua compaixão e conhece todos os truques.

Parece que ele saía do seu clube na Rua 44 exatamente quando uma garota passava. Era uma garota muito pe-quena, com cabelo fofo, usando um conjunto azul barato e um chapéu redondo pequeno com uma pena apontando bem para cima. É comum que mulheres passeiem pela 44. Mas, certamente, não é uma área apropriada para garotas pequenas e pobres, vestindo roupas compradas por correspondência. Admira-me que um policial não a tenha parado.

De qualquer forma, ali estava ela. E quando George passou pela porta, ela manifestamente diminuiu o pas-so e sorriu para ele. Agora vem a parte mais incrível da história: George começou a andar ao lado dela e assim continuou. Isso pode não parecer extraordinário para você – mas, também, você não pertence a um clube da Rua 44. Ora, nós nunca pegamos uma garota na frente do nosso clube. Era a primeira vez que George fazia isso, também. E agora, quando ele olha para trás, diz que a garota deve tê-lo hipnotizado desde o início.

“Indo a algum lugar em especial?”, perguntou ele, seguindo a fórmula.

Ela olhou-o com franqueza e ele notou, de repente, como seus olhos eram extraordinariamente inocentes.

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“Sim”, respondeu ela, rindo de leve. “Estou indo com você.” Ela prendeu a respiração e George pensou pela primeira vez se algum de seus amigos o veria. “Andei quase a noite inteira, com exceção de quando fui ao toa-lete das senhoras na Macy’s, e lá dormi por duas horas antes que me vissem.”

“O que você quer?”, perguntou George, colocando a mão no bolso, e a essa altura bem envergonhado por andar pelas ruas com a moça. Ela não respondeu e Ge-orge levantou os olhos para encontrar os dela cheios de lágrimas. Ela parou bem no meio da calçada e encarou-o, balançando a cabeça solenemente.

“Não”, disse ela. “Não, eu não quero que você me pague para que eu deixe você ir. Quero conversar com você.”

Agora, se George fosse dessas pessoas racionais, teria ou ido embora indignado, ou levado-a para um desses ho-téis que existem em abundância na região. Eles estavam a poucos passos da Sexta Avenida. Mas um sentimento totalmente novo fê-lo corar (George corando!) e, ao invés disso, ele se ouviu dizer: “Vamos à sala de espera da Estação Central. Podemos conversar lá”. Então voltaram-se e caminharam, passando pelo clube novamente, em direção à Quinta Avenida. De matar, não é?

Posso vê-los caminhando silenciosamente – George desconfortável com o pensamento de ser visto com ela e desmesuradamente irritado consigo mesmo por sentir-se assim, e talvez pensando que tipo de mulher ela era. E ela com o queixo levantado, parecendo beber do ar e do alvoroço em torno de si, seu olhar fixo no alto dos prédios. Começava um daqueles dias azuis, robustos, do início do inverno.

George ficava olhando para ela com o canto do olho. Estava curioso e, no entanto, poucas perguntas poderia fazer a essa garota.

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136 Ver é crer

“Mora em Nova York?”, perguntou. Era evidente que não morava.

“Be-e-e-m”, hesitou ela. “Não exatamente. Vim pra cá de Chillicothe, Ohio. Mas gosto daqui, muito. Os arranha-céus realmente coçam, não é?”

“Coçam?”“Oh, você sabe”, explicou ela. “Quando você se curva

pra trás e olha pra eles lá em cima, com suas torres altas todas de ouro, acima dos pássaros mais altos, alguma coisa formiga e borbulha em você, e você ri”, e ela deu um tipo de pio.

“Entendo”, murmurou ele, mais perplexo que nun-ca.

“Sabe, foi só por isso que vim”, continuou. “Isso e os milhões de pessoas.”

“Você quer dizer que veio a Nova York para ver as multidões e os arranha-céus?”, perguntou George, sar-casticamente. Você vê, George era muito esperto para esse tipo de conversa.

Ela fez que sim com a cabeça. “Parece-me que minha vida inteira só ouvi falar de Nova York. Toda vez que um caixeiro-viajante chegava a Simond’s… Simond’s era onde eu trabalhava, sabe… ou quando o Senhor Petty veio para o Leste para o estoque de outono, eles costumavam conversar sobre a Elevated, o metrô, a Broadway, e… oh, costumavam conversar tanto que eu não conseguia dormir pensando nas torres, no barulho e nas luzes. E então, aqui estou eu…”

“Mas, como…”“Oh, sei que parece engraçado para você que uma

garota como eu tenha dinheiro suficiente para vir”, disse ela, com a cabeça balançando como se fosse um passa-rinho. “Mas veja você, eu tenho dezessete anos agora. E comecei a economizar quando tinha onze. Eu economizei

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John Reed 137

cinqüenta dólares.”Nesse momento, passaram pela porta leste para a

Estação Central.George disparou para ela, rudemente: “Quanto dinhei-

ro você tem agora?”“Nada”, respondeu ela. E então o terraço de mármore,

o gracioso conjunto de degraus e o teto poderoso de céu estrelado, com a procissão mística do zodíaco cruzando-o, entraram em sua visão. “Oh!”, gritou ela, e segurou forte na balaustrada de mármore com seus dedos cur-tos. “Esta é a coisa mais maravilhosa que já vi em toda minha vida!”

“Não ligue para isso!”, disse George, pegando-a pelo braço. “Você vem comigo. Quero conversar com você.” Mas não conseguia tirá-la do terraço. Parecia ter esquecido de tudo, maravilhada com o lugar. Queria saber o que era. O que todas as pessoas estavam fazendo, aonde estavam indo, por que andavam esbarrando umas nas outras e nunca se falavam? Se aquilo era uma estação de trem, onde estavam os trens, e por que era tão linda? O que era o zodíaco, e por que não era visto no céu lá de fora? De repente pareceu particularmente estranho a George que uma garota que dizia ser de Chillicothe, Ohio, não soubesse nada sobre a Estação Central.

“Por falar nisso”, disse ele, “o seu trem de Ohio não veio para esta estação?”

“Oh, querido, não”, soltou ela, despreocupadamente. “Eu atravessei o rio numa balsa.” Saíra-se bem daquela. George guiou-a o mais rápido possível para a sala de es-pera. Estava muito irritado. Disse a si mesmo que nunca havia sido vítima de uma invenção tão óbvia.

“Olhe aqui!”, disse ele quando se sentaram lado a lado. “Há quanto tempo você está em Nova York?”

“Mais ou menos duas semanas, mas eu não vi me-

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138 Ver é crer

tade…”“E suponho que você tenha tentado encontrar um

emprego em todos os lugares”, zombou George. “Mas não havia trabalho. E agora você foi posta para fora do seu quarto e eles tomaram a sua bagagem!”

“Oh, sim”, assentiu a garota, um pouco confusa. “Eles fizeram tudo isso. Mas você está errado, não é que não consegui encontrar um emprego. Eu não tentei encontrar um emprego. Você sabe, eu tenho andado nos carros de tour por Nova York todos os dias, o dia inteiro, e isso custa um dólar por viagem, e há tantos lugares aonde eles não vão...”

George estava irado. “Ora, vamos”, disse ele. “Você não pode esperar que eu acredite nisso tudo. Eu moro aqui, sabe. (George tem muito orgulho de ser nova-ior-quino.) Talvez, se você me falasse a verdade, eu pudesse ajudá-la.”

A garota soltou uma risadinha repentina, surpresa, e pousou os olhos redondos nele.

“Ora, mamãe sempre disse que eu era uma péssima mentirosa. E talvez tenha feito algumas coisas parecerem piores do que realmente são. Mas acho que sei o que você quer dizer”, prosseguiu, gentilmente. “Você acha que eu… que eu… Mas não, não, não”, ela sacudiu a cabeça. “Eu sei das coisas, mas sou uma boa garota.”

George sentiu uma dor aguda em seu coração. Ele havia se machucado. Quanto à garota, ela parecia ter esquecido o incidente. Houve uma pausa.

“O que você vai fazer?”, perguntou ele, afinal, com uma voz tensa.

“Era sobre isso que eu queria conversar com você”, voltou-se para George, excitada. “Você vê, ontem quando voltei para o meu quarto, ela não quis me deixar entrar, e disse por uma fresta da porta que não me daria minhas

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roupas. Então, eu andei por aí pensando no que fazer. Era tão divertido descer as ruas quietas à noite e na manhã cinzenta que esqueci de pensar muito no que eu faria. E dormi um pouco na Macy’s… e… e… Bem, eu havia acabado de decidir quando vi você.”

“Bem, o quê?”, perguntou ele, impaciente.“Bom, acho que tenho que ver o resto de Nova York.

Só que acho que isso vai custar dinheiro. Você vê, eu tenho que comer e dormir. Comer, pelo menos.” Aqui ela franziu a testa de uma maneira adorável. “E é sobre isso que eu quero pedir o seu conselho.”

A simplicidade dessa imprudência certamente tirou os pés de George do chão. Sempre levando em conta que a história não era uma grande mentira. E, oh Deus, como ele queria duvidar daquela história!

“Olhe aqui!”, disse ele. “Você vai voltar para Chillico-the. Esse é o meu conselho. Você vai para casa. Nossa, você não sabe os riscos que corre nesta cidade! (Nova-iorquinos adoram sua Sodoma e Gomorra.) Você poderia morrer de fome. E quanto às outras coisas, bem, é sorte você não ter encontrado alguns dos homens que vivem nesta cidade. Ugh! (George tremeu ao pensar em alguns dos monstros que infestam Babilônia.) Suponha que não fosse eu. Você sabe o que qualquer homem teria pensado?”

“Sim”, disse ela sem sorrir. “Exatamente o que você pensou. E ele estaria fazendo justo o que você está fa-zendo agora. Não tenho medo de homens. Sempre confiei em todos e ninguém jamais me fez mal. Oh, já passei por muita coisa, e sentir fome não me assusta muito. Alguém sempre me ajuda e é porque eu tenho fé.”

“Você vai para casa!”, disse George, bruscamente. “Você não sabe o que está dizendo! Eu vou comprar uma passagem e dar-lhe dinheiro suficiente para sua comi-

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da. Vá para casa, para sua mãe, rápido, antes que você seja pega pelo redemoinho. (George tem muito orgulho das suas metáforas.) Agora, eu sei que você não quer ir e que é uma garota corajosa. Mas, se você não prometer eu vou…”, ele ia ameaçá-la com a Sociedade Injusta quando, de repente, viu seu rosto enterrado nas mãos e os ombros tremendo. Ela estava rindo dele? Ele puxou-lhe o braço brutalmente. Parecia abalada por soluços, embora não houvessem lágrimas. O pobre George não sabia o que pensar.

“Oh!”, disse ela, engasgada. “Você está certo. Eu quero ir para casa. Só tenho ficado nervosa. Oh, mande-me para casa.”

George perguntou quanto era a passagem e, no final, somava-se mais ou menos vinte dólares, de acordo com ela. Também aconteceu que em quinze minutos saía um trem que a levaria a seu destino.

“Agora”, disse George, “vamos lá. Vamos comprar sua passagem.”

A garota parara de chorar com uma rapidez incrível, diz George, e não havia o menor traço de que houvesse chorado antes. A esse comentário, ela levantou-se e co-locou sua mãozinha no braço dele.

“Não”, disse, “dê-me o dinheiro e deixe-me comprar eu mesma.” George riu, sarcástico. “Você não acreditou em mim, e você deve, ou então tenho que encontrar outra pessoa. Vamos dizer adeus aqui.”

George hesitou por um momento. Então disse a si mesmo, “Bem, e se ela estiver me provocando? E se tomar o meu dinheiro e sair pela porta da Rua 42? Já sou um maldito tolo agora, mesmo”. E deu o dinheiro a ela.

Ela deve ter desconfiado sobre o que George estava pensando, pois fixou seus olhos firmemente nos dele, balançando a cabeça daquele jeito pitoresco.

“Você não tem fé”, disse ela. “Mas não importa. Você

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é bom para mim, e por isso vou dizer-lhe onde eu vivia em Nova York, e você pode ir lá…”

vDepois que ela saiu, deixando-o na sala de espera,

ele veio para casa e foi indiscreto o bastante para contar a todos nós sobre isso. Claro que zombamos tudo que pudemos do imbecil sentimental e ele ficou muito enver-gonhado de sua façanha de cavalheiro errante. Principal-mente porque não era nem um pouco desse tipo.

Durante o jantar Burgess discutiu o assunto com ele.

“Eu conheço o tipo”, disse Burgess, arrogante. “Su-ponho que ela tenha beijado você com pureza antes de vocês se separarem.”

“Não”, respondeu George. “E isso foi engraçado, por-que eu queria. Você pensaria em agradecimento…”

“Bem, então ela tomou seu nome e endereço e prome-teu que um dia pagaria de volta!”

“Pelo contrário. Ela me deu o dela, o lugar onde sua bagagem estava presa. E eu, quando pude reagir, fui até lá, sabendo que não encontraria coisa alguma.”

“E não encontrou?”George tremeu. “Está tudo lá na recepção. Aquela

mala. Tudo… tudo como ela disse.”“Eu francamente vou ter que admitir”, disse Burgess,

“que nunca ouvi nada parecido. Mas não existe a garota, nem o homem, que sairia desta cidade com vinte dólares. Não, senhor. A explicação é que ela estava fora do seu distrito. Agora que ela se entusiasmou, vai voltar para lá. Vou apostar que, se você procurar bem, vai encontrá-la qualquer noite na Sexta Avenida perto da Rua 33.”

E eles apostaram cinco dólares, embora eu não visse nenhum sentido nisso.

Uma noite, umas três semanas depois, George en-

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142 Ver é crer

trou e foi direto ao Burgess, dizendo: “Aqui estão os seus cinco!”

“Por quê?”, perguntou Burgess, que se esquecera tão completamente do assunto quanto qualquer um de nós.

“Vi a garota”, murmurou George, sem olhar para nin-guém nos olhos. “Sexta Avenida com a Rua 33.”

“Conte”, disse Burgess, que era um verdadeiro cama-rada, afinal. E então, ouvimos a seqüência.

George passara o feriado em Long Island com os Wins-lows e, na volta, pegara o trem das oito e dez. Chegou à Estação Pennsy umas nove e quinze e pensou em ir andando. Na esquina da Rua 33 com a Sexta Avenida, quem tropeçou nele senão a garota! George disse que não estava prestando atenção em nada além de seus próprios pensamentos quando alguém gritou para ele:

“Indo a algum lugar em especial?”Levantou a cabeça de repente e reconheceu-a. Ela

deu uns passos diante dele, virou-se bem no meio da calçada e pôs as mãos nos lábios como uma lavadeira. Uma pequena onda de raiva tomou-o – mas já se passara muito tempo desde o incidente, e ele decidiu sentir-se cinicamente divertido.

“Eu vou com você”, imitou-a calmamente, e juntou-se a ela. “Aonde você quer ir?”

Como resposta, ela parou a sua frente, segurou seus ombros e olhou em seus olhos, balançando a cabeça devagar.

“Eu quero comer alguma coisa”, foi tudo o que ela disse. George levantou os ombros e mencionou o Baber’s. Aquele olhar perscrutador da garota deixava-o bastante descon-fortável, e enquanto caminhavam olhou-a disfar-çadamen-te. Pareceu-lhe mais magra, menos nutrida, menor, mais desbotada – mas igualmente inocente. Essa era outra

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prova de sua culpa. Porque ninguém podia ficar pelas ruas por cinco semanas e continuar intocada. Portanto, ela deveria ter sido sempre impura. E sua expressão cândida, despreocupada, enquanto andava ao lado dele – qualquer garota comum teria começado a se explicar. (George é um raro analista da natureza humana.)

“Sabe”, disse ela, “é sorte eu tê-lo encontrado. Não comi nada hoje.”

“Por que eu em particular?”, zombou George. “Os outros não serviam?”

“Oh, sim, alguém sempre me leva para almoçar ou algo assim. Mas eu simplesmente não senti fome o dia todo. Estive nas docas vendo os navios. É como um retrato do mundo, lá. Cada navio cheira a um lugar diferente.” Ge-orge decidiu vingar-se dela não mencionando a questão do encontro anterior. Se ela tivesse consciência, sentiria-se culpada. “E, oh”, lembrou-se de repente. “Você é meu amigo e não me importo de pedir: preciso de dez dólares para pagar um vestido que encomendei. Você vê, ainda estou vestindo minhas velhas roupas, e elas não são quentes o suficiente.”

“Bem!”, suspirou George. “De todas as ousadias!”“Bem, talvez tenha sido bem ousado encomendar”,

concordou a garota.Pobre George, com suas boas resoluções. Depois que

o desconfiado garçom do Baber’s sentiu-se seguro pela brancura da camisa de George, a curiosidade impaciente do pobre rapaz consumiu todo seu corpo. O que ela diria? Como explicaria? Ou será que ela simplesmente continu-aria com a fraude? Ou contaria uma história maravilhosa e incrível como a de antes? O objeto de suas conjecturas olhava calmamente ao redor da sala, contente, auto-su-ficiente, distante. Ele não podia mais agüentar.

“Pensei que você tivesse voltado para Chillicothe.” George foi muito irônico. Ela fitou-o e ele pensou ter de-

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144 Ver é crer

tectado um leve brilho de diversão em seus olhos e uma leve sombra de tristeza.

“Esqueci que você quer ouvir sobre isso primeiro”, disse ela. “Bem, quando deixei você, eu peguei o trem”, ela parou, analisando o rosto dele, e então repetiu. “Pe-guei o trem e fui até Albany. E então um homem muito simpático veio sentar-se a meu lado e nós conversamos. Era um homem alto, vermelho, com um bigode louro, muito mais velho que você. Seu nome era Tom, disse ele. E então, estava pensando comigo mesma, ‘Aqui está você voltando para casa com as roupas do corpo, depois de sua mãe ter trabalhado o inverno inteiro para fazer-lhe roupas. Você nunca deveria ter deixado Nova York sem pegar suas coisas naquela pensão’. Estava preocupada por voltar a Chillicothe sem elas, então contei isso a Tom. Ele disse: ‘Vamos descer em Utica. Vou levar você de volta para Nova York e tirar suas roupas da pensão.’”

“Essa bate a outra história”, disse George.“Você vê?”, respondeu ela, radiante. “Eu disse a você

que precisava conhecer o resto de Nova York. E lá estava Tom quando precisei dele. Bem, voltamos aqui e ele fez tudo o que disse que faria. Mas, quando chegamos à pensão, as roupas não estavam mais lá. Disseram-me que um jovem as havia pego, e soube imediatamente que era você. Mas não sabia onde encontrá-lo”, prosseguiu, sorrindo para ele, “a não ser que ficasse andando para cima e para baixo em frente àquele lugar onde o encontrei a primeira vez. E Tom não queria que eu fizesse isso. Você vê, Tom era muito bom para mim. Ele me arrumou um quarto e pagou adiantado duas semanas de aluguel. E comprou-me uns vestidos bonitos. Nós costumávamos sair para jantar todas as noites.”

“E o que aconteceu com Tom?”, perguntou George, cínico.

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No entanto, a garota parecia não notar, porque con-tinuou, com uma voz mais suave: “Pobre Tom. Ele não entendia. Não sei por que, mas acho que ele não conseguia entender. Acho que ficou doente, ou algo assim. Porque, depois de ter sido tão bom para mim, por tanto tempo, ele de repente começou a… oh, bem, você sabe o que ele queria. Pobre Tom!”

“Oh, essa é linda”, soltou George, balançando.Ela olhou para George meditativamente. “Não sei se

mesmo você entende... Não era culpa dele, eu sei disso. Ele era muito legal comigo para ser tão mau. Só não entendia. Mas, é claro que eu não podia ficar lá. E não podia continuar com os vestidos dele. Então, saí uma noite, e isso foi há uma semana.”

“Onde você está vivendo agora?”“Bem, eu não tenho um quarto…”“O quê?”, disparou ele, sem perceber. “Uma semana

inteira? Mas…”A garota sorriu misteriosamente, ou talvez malicio-

samente. “Quando a noite chega”, disse ela, baixinho, “escolho uma casa bonita e toco a campainha. E digo às pessoas ‘Estou cansada, não tenho aonde ir e quero dormir aqui’.”

“E?”, perguntou George, seguindo as regras.“Bem, é só de vez em quando que eles não entendem.

Então, tenho que ir a outra casa.”George apontou um dedo para ela por cima da mesa.

“Não sei por que escuto suas histórias”, disse, com uma voz dura. “Mas acho que é porque penso que, lá no fun-do, você deve ser boa. Vamos, agora conte-me a verdade absoluta. Sei que é difícil para uma garota conseguir um emprego. Mas você tentou, realmente?”

“Tentar conseguir um emprego? Eu? Ora, não!”, ela pareceu surpresa. “Eu não quero trabalhar aqui. Eu que-

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ro ver coisas. E há tantas coisas aqui para ver e sentir! Ontem caminhei, caminhei muito, desde manhã cedo até quase o meio-dia. Subi uma rua brilhante que chegava ao topo das casas, entre enormes teias de aranha de aço, até que, ao fim, pude olhar para milhas e milhas de cidade fumacenta espalhada, onde todas as ruas ferviam de crianças. Pense nisso! Tudo isso para ver, e eu não sabia que estava lá!”

George diz que teve um sentimento estranho, total-mente irracional – por um momento ele acreditou na garota. Ela parecia olhar para um mundo com cuja existência ele nunca havia sonhado – um mundo do qual estava eternamente excluído, por saber muito! Doeu. A garota devia ser uma pequena chama branca queimando nele. E em sua dor, teve que dizer-lhe tudo isso. Mas ela só balançou sua cabecinha solenemente.

“Não”, disse ela. “É porque você sabe muito pouco.”Mas é claro que esse estado curioso durou só um se-

gundo. Seu bom senso voltou e George disse exatamente o que pensava dela, e deixou-a.

Mas aconteceu uma das coisas mais peculiares da história toda quando se separaram. Ele diz que ela ouviu tudo que disse com a cabeça pendendo para um lado como um passarinho e, quando ele terminou, ela inclinou-se para a frente, tomou uma de suas mãos com ambas as suas e apertou-a contra o peito. Seus olhos encheram-se de lágrimas e, exatamente quando pensou que ela ia chorar, começou a rir.

“Vamos nos encontrar de novo”, disse ela, estridente. “Vou vê-lo quando mais precisar de você…”

E então o indignado George foi para casa.“Bem”, disse Burgess, dobrando a nota de cinco dó-

lares mais e mais, quando a história terminou. “Bem, é uma história tão boa que quero pagar por ouvi-la. Vou

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John Reed 147

dar cinco daqueles dez…”“Que dez?”, perguntou George.“Os dez que você deu a ela para pagar pelo vestido”,

e Burgess esticou a nota para ele.George parou ali, ficando mais e mais vermelho, olhan-

do para nós para ver se ríamos dele. Disse “Obrigado” com uma voz abafada e pegou a nota.

1913

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Outro caso de ingratidão

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150 Outro caso de ingratidão

Caminhando à noite pela Quinta Avenida, vi-o em minha frente num trecho de calçada entre dois postes de luz. Fazia um frio cortante. A cabeça enfiada entre os ombros levantados, mãos nos bolsos, arrastava-se em frente, nunca tirando os pés do chão. Enquanto eu o observava, voltou-se, como que tonto, e encostou-se na parede de um edifício, num ângulo escondido do vento. A princípio pensei que procurava um abrigo, mas conforme me aproximava, percebi a firmeza pouco natural de suas pernas, a maneira como sua face estava pressio-nada contra a pedra fria e o facho de luz que brincava sobre seus olhos fundos, fechados. O homem dormia! Dormia – o vento frio explorando suas roupas finas e os furos em seus sapatos sem forma. Reto contra a parede, com as pernas rígidas como as de um epiléptico. Havia algo de bestial em tal apetite por sono.

Sacudi seu ombro. Ele abriu um olho devagar, enco-lhendo-se como se fosse muitas vezes perturbado por mãos mais grosseiras que as minhas, e olhou para mim quase sem compreender.

“Qual é o problema? Doente?”, perguntei.Fraca e estupidamente, murmurou algo e ao mesmo

tempo deu um passo, como que para ir embora. Pergun-tei-lhe o que dissera, curvando-me para ouvir.

“Não durmo há duas noites”, veio a voz espessa. “Nada pra comer em três dias.” Ficou ali parado, obedientemen-te, sob o toque de minha mão, balançando um pouco, olhando de forma vaga para mim, com olhos que pendiam desanimadamente entre abrir e fechar.

“Bem, venha”, disse eu. “Vamos pegar alguma coisa pra comer e arrumar uma cama pra você.” Docilmente, seguiu-me. Cambaleando como um homem sonhando, caindo para a frente e então equilibrando-se com um passo. De tempos em tempos, seus lábios grossos solta-

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John Reed 151

vam palavras e frases roucas, irrelevantes. “Tenho que dormir andando por aí”, dizia e repetia. “Eles continuam me fazendo andar.”

Peguei seu braço e guiei-o pela porta branca de uma lanchonete que funciona a noite inteira. Sentei-o numa mesa, onde caiu num sono mortal. Coloquei a sua frente rosbife, purê de batatas, dois sanduíches de presunto, uma xícara de café, pão e manteiga e um grande pedaço de torta. Acordei-o. Olhou para mim com uma expressão de recomeço. O olhar de humilde gratidão, amor, devoção, era quase canino em sua intensidade. Senti um tremor quente de irmandade cristã em todas as minhas veias. Sentei-me e olhei-o comer.

No início, agiu estranhamente, como se tivesse perdido o hábito. De maneira mecânica, empregou pe-quenos truques de maneiras à mesa – talvez sua mãe lhe tenha ensinado. Desajeitadamente, trocava garfo e faca da mão direita para a esquerda. Depois abaixou a faca e pegou, delicado, um pedaço de pão com a mão esquerda. Tirou a colher da xícara de café antes de be-ber e espalhou a manteiga fina e uniformemente sobre o pão. Seus movimentos eram tão sonâmbulos que tive a estranha sensação de olhar para uma encarnação anterior do homem.

Conforme prosseguiu o jantar, uma mudança ma-ravilhosa aconteceu. O calor e a nutrição, aquecendo e alimentando seu corpo magro, inundaram os centros nervosos daquele corpo faminto. Suas faces coraram rapidamente, cada parte dele acordou por completo, seus olhos brilhavam. Os pequenos refinamentos de boas maneiras sumiram, como se nunca houvessem existido. Mergulhou seu pão grosseiramente no molho e enfiou grandes quantidades de comida na boca. O café desapareceu em grandes goles. Tornou-se um indivíduo

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152 Outro caso de ingratidão

em vez de um descendente. Se fora um animal, um dia, um espírito vivia. Ele era um homem!

A metamorfose era tão excitante que eu mal podia esperar para saber mais sobre ele. Agüentei, no entanto, até que terminasse o jantar.

Quando o último pedaço de torta desapareceu, estendi um maço de cigarros, colocando-o a sua frente. Ele pegou um e aceitou um dos meus fósforos. “Obrigado!”, disse.

“Quanto vai custar uma cama? Um quarto de dólar?”, perguntei.

“É”, respondeu ele. “Obrigado!”Ele olhava nervosamente para a mesa, inalando gran-

des nuvens de fumaça. Era a minha oportunidade.“Qual é o problema, nada de trabalho?”Olhou nos meus olhos, pela primeira vez desde que

o jantar começara, surpreso. “Claro”, disse brevemente. Notei, com um certo choque, que seus olhos eram cinza… pensava que eram castanhos.

“No que trabalha?”Não respondeu por um momento. “Pedreiro”, grunhiu.

Qual era o problema com o homem? “De onde você vem?”Meme jeu. “Albany.”“Faz tempo que está aqui?”“Diga”, disse o meu convidado, inclinando-se para a

frente. “Que que cê pensa que eu sou, um fonógrafo?”Por um momento fiquei sem palavras, pela surpresa.

“Ora, eu estava apenas perguntando para começar uma conversa”, disse debilmente.

“Não, não tava. Cê pensou que só porque me deu uma mão, eu ia contar uma história triste. Que direito cê tem de me fazer um monte de perguntas? Eu conheço vocês. Só porque têm dinheiro acham que podem me comprar com uma refeição...”

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“Besteira!”, gritei. “Não faço isso por egoísmo. O que você acha que eu ganho em alimentá-lo?”

Ele acendeu outro dos meus cigarros.“Cê consegue tudo que quiser”, sorriu. “Vamos, não

se sente bem por salvar a vida de um bêbado pobre e faminto como eu? Deus! Você está puro e santo por uma semana!”

“Bem, você é um espécime estranho”, disse eu, irrita-do. “Creio que não há um pingo de gratidão em você.”

“Gratidão o diabo!”, disse, facilmente. “Por quê? Eu tô agradecendo a minha sorte, não você. Vê? Podia ter sido eu como qualquer outro bêbado. Se não tivesse me achado, ia procurar outro em outro lugar. Vê”, inclinou-se por sobre a mesa, explicando. “Cê só tinha que salvar alguém esta noite. Eu entendo. Tenho um apetite como esse também. Só que o meu é por mulher.”

Depois disso, deixei aquele pedreiro ingrato e fui acor-dar Drusilla, que é a única que me entende.

1913

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Vinhetas revolucionárias

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I. NO OLHO(Não uma história, mas fragmentos de um relato de visita ao front

Riga, logo antes da revolução bolchevique.)

1. A caminho do front

O comandante da estação báltica reservou um com-partimento de primeira classe para a “Missão Americana”, como ele nos chamava. Um pastor ortodoxo, em serviço voluntário nas trincheiras, humildemente pediu a honra de viajar em nossa companhia. Era um homem grande, saudável, com um rosto russo largo e simples, um sorriso gentil, uma barba avermelhada enorme e um insaciável desejo por conversação.

“Eto Vierno! É verdade!”, disse ele, com um suspiro desconfiado. “A revolução* enfraqueceu o poder da Igreja sobre as massas. Nos bonés das reservas costuma-va haver uma cruz e as palavras ‘Za verou, tsaria, i oteches-tvo’, ‘Pela fé, pelo czar e pela pátria’. Bem, eles riscaram o ‘fé’ junto com o resto...”, sacudiu a cabeça. “Nos an-tigos textos de orações da Igreja, Deus era citado como o ‘Czar do Céu’, e a Virgem como ‘Czarina’. Nós tivemos de deixar isso para trás. O povo não quer insultar Deus, eles dizem...”

Continuamos conversando sobre seu trabalho no exército e seu rosto ficou numa suavidade infinita.

“Durante a oração regimental o pastor reza pela paz de todas as nações. E os soldados gritam, ‘Acrescente: sem anexações ou indenizações!’ Então rezamos por todos os que estão viajando, pelos doentes e pelos que sofrem. E os soldados gritam: ‘Rezemos também pelos

* Trata-se da revolução de fevereiro de 1917, que derrubou o

czarismo. (N. de E.)

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John Reed 157

desertores!’ Pobre do pastor que se recusa a rezar a ora-ção dos soldados!”

A cada estação o trem fazia uma longa parada para permitir aos passageiros tempo para muitos copos de chá e uma grande refeição na alegre e fumacenta algazarra das salas de espera lotadas. De tempos em tempos, es-tranhos absolutos, oficiais e civis, entravam.

O pastor vivia em Tashkent, na TransCaspia, onde tinha mulher e cinco filhos. Contou sobre a singular instituição do escritório dos ladrões, onde pessoas que haviam sido roubadas podiam ir e recobrar suas pro-priedades pagando seu valor, com vinte por cento de desconto em dinheiro. Uma professora primária pequena e magra descreveu a Convenção dos Ladrões realizada em Rostov-on-Don naquele verão, com representantes de toda a Rússia, que despacharam um protesto formal ao governo contra a voracidade e a venalidade da polícia. E um gordo polkovnik falou da Convenção dos Prisioneiros de Guerra Austríacos e Alemães, em Moscou, que exigiu o dia de trabalho de oito horas – e conseguiu!

Havia rumores de que os exércitos no front sairiam das trincheiras e iriam para casa, para a festa de Pakrov, em primeiro de outubro – tendo apenas quatro dias livres. Todos estavam preocupados com essa imensa ameaça de dissolução... E se os milhões de soldados russos simples-mente parassem de lutar e fossem em direção às cidades, à capital, às suas antigas vilas? O velho polkovnik res-mungou: “Estamos perdidos. A Rússia está derrotada. E, além disso, a vida é tão desconfortável agora que não vale a pena viver. Sem terminar tudo?” Com quem o oficial falan-do francês, revolucionário na teoria, debatia acalorada mas cortesmente? O pastor contou uma história ra-belaisiana sobre um soldado que seduziu uma garota camponesa, prometendo que o filho dela seria general...

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158 Vinhetas revolucionárias

Ficou tarde, as luzes eram tênues e intermitentes e não havia aquecimento no vagão. O padre tremia. “Bem”, disse ele, finalmente, seus dentes batendo, “está muito frio para ficar acordado!” E, com isso, deitou-se como estava, sem nenhuma coberta a não ser sua longa batina e imediatamente começou a roncar...

Bem cedo, de manhã, acordamos duros e entorpeci-dos. O Sol brilhava nas janelas frias. Um garotinho veio com chá – balinhas de chocolate no lugar de açúcar. O trem cortava o rico Leste...

2. A Iskosol* em Venden

Numa sala grande e vazia no segundo andar, entre as conversas de taquígrafos ocupados e o ir e vir de mensa-geiros e delegados, funcionava o centro nervoso do 12o Exército, a espontânea organização democrática criada pelos soldados no início da revolução. Um belo jovem tenente, com traços judeus, estava atrás de uma mesa passando a mão nos cabelos de mechas cinza preo-cupa-damente. Uma agitada torrente de reclamação o atingia. Quatro delegações dos regimentos nas trincheiras, na maioria soldados, com uns poucos oficiais misturados, apelavam à Iskosol ao mesmo tempo. Um regimento esta-va quase sem botas – a Iskosol tinha prometido seiscentos pares e entregue apenas sessenta. Um porta-voz privado e muito esfarrapado de um outro comitê reclamava que a artilharia recebera seus casacos de inverno, mas a cavalaria ainda estava em seus uniformes de verão... Um suboficial, não mais que um menino, ficava gritando irritado que a Iskosol falava muito, mas nada parecia estar sendo realizado...

* A organização revolucionária autogovernada dos soldados, então em seus primeiros estágios.

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“Da, da!”, respondia o oficial, vagamente. “Sim, sim. S’chass, S’chass. Eu escreverei imediatamente ao co-missariado...”

Numa mesinha estavam pilhas de panfletos e jornais, entre os quais reconheci Anarchy and the Church, de Elisée Réclus. Um soldado estava sentado numa cadeira quebrada ali perto, lendo alto o Isvestia – órgão oficial do Comitê Executivo de Petrogrado dos Russos Sovié-ticos – sobre a formação do novo governo. E, conforme declamava os nomes dos ministros cadetes, os ouvintes soltavam risadas e “urras” irônicos. Perto da janela estava Voitinsky, comissário-assistente do 12o Exército, com seu casaco semimilitar abotoado até o queixo – um homem pequeno cujos olhos azuis brilhavam atrás de óculos grossos, de cabelos e barba ruivos arrepiados. Ele, que era um famoso exilado na Sibéria e o autor de Smertniki, um livro mais terrível que The Seven Who Were Hanged.

“Meu trabalho”, disse-nos, “é construir uma máqui-na militar que retome Riga. Mas as condições aqui são desesperadoras. Falta tudo para o exército: comida, roupas, botas, munição. As estradas estão horríveis e tem chovido sem parar nas últimas duas semanas. Os cavalos de transporte estão desnutridos e cansados, e é tudo com que contam para garantir pão suficiente para não morrermos de fome. Mas a maior falta no front, mais séria que a falta de comida e roupas, é a falta de botas, panfletos e jornais. Vocês vejam, desde a revolução o exército absorveu toneladas de literatura, propaganda, e tem fome disso. E agora tudo isso lhes foi retirado. Nós não apenas permitimos, mas encorajamos todos os tipos de literatura no exército. É necessário para manter o ânimo das tropas elevado. Desde o caso Kornilov, e em especial desde o congresso democrático, os soldados es-tão inquietos. Sim, muitos simplesmente deixaram suas

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armas e foram para casa. O exército russo está cansado de guerra...”

Voitinsky não dormia há trinta e seis horas. No en-tanto, irradiou uma centelha de energia ao despedir-se. Correu escada abaixo para seu carro coberto de lama. Iria dirigir por quarenta milhas pela lama funda, sob a sombra de uma tempestade que se aproximava, para julgar uma disputa entre oficiais e soldados...

3. Em Venden

Chovia lá fora e a lama nas ruas fora levada para as calçadas por milhares de botas, até ser difícil de andar. A cidade fora escurecida para proteger-se de aviões hos-tis. Apenas raios de luz saíam pelas fendas das janelas, e persianas brilhavam com um vermelho suave. A rua estreita fazia curvas inesperadas. No escuro, cruzamos com soldados que não paravam de passar, reluzindo à luz dos cigarros. Perto vinha uma série de grandes caminhões, algum transporte do exército, descendo na escuridão com um barulho de trovão, espalhando lama como ventiladores. Logo à minha frente, alguém riscou um fósforo e vi um soldado colando um papel branco na parede. Nosso guia, da Iskosol, soltou uma exclamação e correu, ligando uma lanterna. Lemos:

“Camaradas soldados!

“Os Representantes dos Trabalhadores e Soldados Sovié-

ticos de Venden marcaram para quinta-feira, 28 de setembro,

às quatro horas, no parque, uma REUNIÃO...”

vNo pequeno hotel, o proprietário, meio hostil, meio

ganancioso, disse que não havia quartos.“E quanto àquele quarto?”, perguntou nosso amigo,

apontando.

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“Aquele é o quarto do comandante”, respondeu, ris-pidamente.

“A Iskosol toma”, disse o outro. Ficamos com ele.Foi uma velha camponesa letã que nos trouxe chá e

olhou-nos com seus olhos turvos, esfregando as mãos e gaguejando em alemão. “Vocês são estrangeiros”, disse ela. “Glória a Deus. Esses russos são um povo sujo, e eles não pagam”, abaixou-se e sussurrou, rouca. “Oh, se os alemães se apressassem. Nós todos, as pessoas respei-táveis, queremos que os alemães venham aqui!”

E pelas persianas fechadas, quando nos ajeitamos para dormir, podíamos ouvir o longínquo som abafado dos canhões alemães batendo nas magras, mal-vestidas, subnutridas linhas russas, divididas por dúvidas, medos, desconfianças, morrendo e apodrecendo lá na chuva por-que disseram-lhes que a revolução seria salva ali...

4. O caminho de volta do front

Quando estávamos sentados na plataforma esperando pelo trem para Petrogrado, ocorreu a (Albert Rhys) Willia-ms que poderíamos doar nossos cigarros supér-fluos. De acordo, sentamo-nos sobre uma mala e oferecemos vários maços, demonstrando generosidade. Devia haver setecentos soldados em volta. Alguns vieram, hesitantes, e serviram-se, mas outros mantiveram-se distantes e logo Williams estava sentado sozinho no meio de um círculo cada vez mais largo. Os soldados estavam em grupos, conversando baixo.

De repente, vimos vindo em sua direção um comitê de três soldados, carregando rifles com baionetas fixas e parecendo perigosos. “Quem é você?”, perguntou o líder. “Por que está distribuindo cigarros? Você é um espião alemão, tentando subornar o exército revolucio-nário russo?”

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162 Vinhetas revolucionárias

Por toda a plataforma a multidão amontoou-se em torno de Williams e do comitê, soltando palavras nervosas – pronta para fazê-lo em pedaços.

vEstávamos muito apertados dentro do trem para

nos movermos. Em compartimentos para seis pessoas, doze eram comprimidas e havia tamanha multidão nos corredores que ninguém podia passar. No teto do vagão, uma centena de soldados batia os pés e entoava canções estridentes no ar gelado da noite. Dentro, todas as janelas estavam fechadas, todos fumavam, todos conversavam.

Em Valk, algumas enfermeiras da Cruz Vermelha, jovens e alegres, e jovens oficiais subiram pelas janelas, com doces, garrafas de vodca, queijo, salsichas e todo o equipamento para uma festa. Por algum milagre, jun-taram-se a nossa volta e começaram a fazer uma festa. Tornaram-se amorosos, beijando e afagando uns aos outros. No nosso compartimento dois casais começaram a se abraçar, quase caindo sobre os bancos. Alguém cobriu as luzes com uma cortina preta. Um outro fechou a porta. Foi uma orgia, com o resto de nós olhando...

No beliche de cima estava um jovem capitão, tossindo incessante e terrivelmente. A pequenos intervalos, levan-tava seu rosto cansado e cuspia sangue num lenço. E mais uma vez gritava: “Os russos são uns animais!”

Acima do ronco do trem, tosse, gritos bêbados, bri-gas. Durante toda a noite podiam-se ouvir os pés de soldados esfarrapados andando sobre o teto e seu canto nasalado...

Setembro de 1917v

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John Reed 163

II. O PRIMEIRO JULGAMENTO DA GUERRA MUNDIAL EM CHICAGO

Pequeno, na grande cadeira está sentado um homem cansado, com cabelos brancos desarrumados, um rosto castigado onde dois olhos ardentes colocavam-se como pedras preciosas, e a pele ressecada que se partia numa abertura para a boca. O rosto de um Andrew Jackson morto há três anos. Esse é o juiz Kenesaw Mountain Landis... A esse homem cabia o papel histórico de julgar a Revolução Socialista.

Em muitos aspectos, um julgamento incomum. Quan-do o juiz entra na corte após o recesso ninguém se levanta – ele mesmo aboliu a pomposa formalidade. Senta-se sem a toga, vestindo um terno comum, e muitas vezes deixa o banco para descer e pisar no degrau do júri. Por sua ordem pessoal, escarradeiras estão ao lado dos assentos dos prisioneiros para que possam amenizar o longo dia mascando fumo. E lhes é permitido, também, tirar os casacos, andar, ler jornais.

Quanto aos prisioneiros, duvido que tenha havido na História uma visão como essa. Cento e um madeireiros, ceifeiros, mineiros, editores. Cento e um que acreditam que a riqueza do mundo pertence a quem a cria.

A maioria dos nossos revolucionários socialistas ame-ricanos estão nos negócios sedentários – trabalhadores de confecções, da indústria têxtil, impressores. Pelo menos é o que nos parece, nas grandes cidades. Nossos mineiros, nossos trabalhadores do aço e do ferro, da construção, trabalhadores das ferrovias – todos esses pertencem à A. F. L.*, que acredita no sistema capitalista tanto quanto J. P.

* American Federation Labour, federação sindical reformista.

(N. de E.)

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164 Vinhetas revolucionárias

Morgan. Mas esses cento e um são homens que trabalham ao ar livre, lenhadores, atadores de trigo, estivadores, os meninos que fazem o trabalho pesado do mundo. Estão cheios de cicatrizes dos cortes do trabalho – e dos cortes do ódio da sociedade. Não têm medo de coisa alguma. São o tipo de homem para quem o capitalista aponta quando passa de carro perto de uma construção enorme que es-tejam fazendo, ou de alguma grande ponte que estejam construindo por cima de um rio.

“Lá”, diz ele, “aquele é o tipo de homem que queremos neste país. Homens que sabem seu trabalho e trabalham nele, ao invés de sair por aí falando besteiras sobre a luta de classes.”

Eles sabem seu trabalho e trabalham nele. Mas, mui-to estranhamente, acreditam na Revolução Socialista também...

Eles entram em fila, os noventa e tantos que ainda estão na cadeia, cumprimentando seus amigos enquanto passam. E lá, juntam-se aos outros, os que estão fora sob fiança...

Lá vai o grande Bill Haywood, com seu chapéu preto logo acima de um rosto que parece uma montanha de cicatrizes. Ralph Chaplin, parecendo-se com Jack London quando jovem. Reddy Doran, de doce fisionomia bri-guenta, uma mecha de cabelo ruivo caindo por sobre a viseira verde que sempre usa. Harrison George, cuja testa é enrugada por pensamentos fortes. Sam Scarlett, que deve ter sido um soldado da cavalaria em Crécy. George Andreytchine, seus olhos cheios de tempestade eslava. Charley Ashleigh, fastidioso, sofisticado, com a expressão de um Puck bem-educado. Grover Perry, jovem, com um rosto de pedra à maneira do oeste. Jim Thompson, John Foss, J. A. Mac-Donald, Boose, Prancner, Rothfisher, Johanson, Lossiev...

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Dentro da área cercada da corte, juntos e amontoados, muitos em mangas de camisa, alguns lendo jornais, um ou dois esticados dormindo, alguns sentados, alguns em pé. Rostos de trabalhadores e lutadores, em sua maio-ria, mas também os rostos de oradores, de poetas, os sensíveis e apaixonados rostos de estrangeiros. Porém, todos ros-tos fortes, todos rostos de homens inspirados, de alguma forma. Muitos cheios de cicatrizes, poucos amargos. Não poderiam juntar na América cento e um homens mais apropriados para entender a Revolução Socialista. As pessoas entrando naquela corte diziam: “Parece mais uma convenção do que um julgamento!”

Para mim, recém-chegado da Rússia, a cena era estra-nhamente familiar. Por um longo tempo fiquei intrigado com o sentimento de já ter visto tudo aquilo antes. De repente, ficou claro.

O primeiro julgamento da Grande Guerra na Corte Fe-deral de Chicago parecia uma reunião do Comitê Executivo Central dos Representantes dos Trabalhadores Russos Soviéticos em Petrogrado! Não conseguia me convencer de que aqueles homens estavam sendo julgados. Eles não estavam sequer um pouco tímidos, ou amedrontados, mas sim confiantes, interessados, humanamente compreensi-vos... Como o Tribunal Bolchevique Revolucio-nário... Por um momento, pareceu-me estar vendo o Comitê Central dos Americanos Soviéticos julgando o juiz Landis por... Bem, digamos contra-revolução.

1918