Um livro mu(n)do: o entrecruzamento de artes e mídias em ... · ... ao cinema mudo, ao cartaz de...

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Um livro mu(n)do: o entrecruzamento de artes e mídias em Pathé-Baby, de António Alcântara Machado Lucas da Cunha ZAMBERLAN 1 Deivis Jhones GARLET 2 Cinematógrafo: nova maneira de escrever, logo de sentir. Robert Bresson Resumo Este trabalho objetiva especificar o fecundo intercâmbio entre diferentes artes e mídias no livro Pathé-Baby, de António Alcântara Machado. Para tanto, dividimos metodologicamente o artigo em quatro partes: a) introdução, que apresenta a proposta de análise; b) uma seção na qual investigamos a natureza do trânsito intermidiático no livro; c) um olhar sobre a linguagem cinematográfica e a influência do aprimoramento de técnicas comunicacionais da época na obra; d) por fim, as considerações finais e sugestões para estudos futuros. Como aporte teórico, buscamos em Clüver e Rajevsky a sedimentação dos postulados acerca da intermidialidade. Sobre a relação entre literatura e cinema, lançamos mão, basicamente, de autores como Deleuze, Süssekind, Amiel e Vieira. Além disso, consideramos a fortuna crítica da obra, nos apontamentos de Gomes (2008). A partir dos resultados obtidos, conseguimos compreender, em parte, a complexa imbricação de elementos intermidiáticos em Pathé-Baby, e como esse produto sígnico mimetiza certos procedimentos operacionais do início do século XX. Palavras-chave: Intermidialidade; Pathé-Baby; António Alcântara Machado. Abstract 1 Professor Substituto do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. E-mail: [email protected]. 2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: [email protected].

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Um livro mu(n)do: o entrecruzamento de artes e mídias em Pathé-Baby, de

António Alcântara Machado

Lucas da Cunha ZAMBERLAN1

Deivis Jhones GARLET2

Cinematógrafo: nova maneira de escrever, logo de sentir.

Robert Bresson

Resumo

Este trabalho objetiva especificar o fecundo intercâmbio entre diferentes artes e mídias

no livro Pathé-Baby, de António Alcântara Machado. Para tanto, dividimos

metodologicamente o artigo em quatro partes: a) introdução, que apresenta a proposta

de análise; b) uma seção na qual investigamos a natureza do trânsito intermidiático no

livro; c) um olhar sobre a linguagem cinematográfica e a influência do aprimoramento

de técnicas comunicacionais da época na obra; d) por fim, as considerações finais e

sugestões para estudos futuros. Como aporte teórico, buscamos em Clüver e Rajevsky a

sedimentação dos postulados acerca da intermidialidade. Sobre a relação entre literatura

e cinema, lançamos mão, basicamente, de autores como Deleuze, Süssekind, Amiel e

Vieira. Além disso, consideramos a fortuna crítica da obra, nos apontamentos de Gomes

(2008). A partir dos resultados obtidos, conseguimos compreender, em parte, a

complexa imbricação de elementos intermidiáticos em Pathé-Baby, e como esse

produto sígnico mimetiza certos procedimentos operacionais do início do século XX.

Palavras-chave: Intermidialidade; Pathé-Baby; António Alcântara Machado.

Abstract

1 Professor Substituto do Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal de Santa

Maria (UFSM) e doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM. E-mail:

[email protected].

2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em letras pela Universidade Federal de Santa

Maria (UFSM). Email: [email protected].

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This work aims at specifying the rich exchange between different arts and media in the

book Pathé-Baby, by Antônio Alcantara Machado. Therefore, the article is

methodologically divided into four parts: a) introduction, which presents the proposal

analysis; b) a section that investigates the nature of intermedia traffic in the book; c) a

look at the cinematic language and the influence of improvement of communication

techniques of the time at work; d) finally, the conclusions and suggestions for future

studies. As a theoretical framework, one have searched in Clüver and Rajevsky

consolidation of assumptions about intermediality. On the relationship between

literature and cinema, one has basically used authors such as Deleuze, Süssekind,

Amiel and Vieira. In addition, one considers critical fortune of the work, on the notes of

Gomes (2008). From the results, one can partially understand the complex imbrication

of intermedia elements Pathé-Baby, and how that signic product mimics certain

operating procedures of the early twentieth century.

Keywords: Intermidiality; Pathé-Baby; António Alcântara Machado.

Introdução

Pathé-Baby é um livro publicado em 1926 pelo escritor e jornalista António de

Alcântara Machado. O título da obra constitui-se em uma alusão à câmera

cinematográfica de 9,5mm produzida pela Pathé Brothers Company, empresa de

máquinas e produção cinematográfica, além de produtora fonográfica de maior projeção

no cenário mundial no final do século XIX e início do século XX. Tecido com recursos

estéticos que enfatizam um diálogo fecundo entre texto, imagem e som, o livro consiste

na apresentação das impressões individuais do escritor acerca do universo cosmopolita

europeu. Essa visão subjetiva engendra-se, primeiramente, pela sua sensibilidade de

artista e representa-se por uma técnica narrativa cinematográfica que se formata e se

molda à projeção visual de uma câmera Pathé-Baby.

Considerando esse conjunto de elementos audiovisuais circunscritos em um

produto sígnico complexo – o texto literário em questão – o presente trabalho busca

analisar os mecanismos estéticos utilizados pelo autor e como ele os organiza no corpo

da obra, com a intenção de verificar a natureza híbrida dessa narrativa, aproximando-a,

nos parâmetros dos estudos comparados, dos filmes mudos da década de 1920.

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1. Ponto de convergência entre mídias: o cinema com cheiro

Maria Eugênia Boaventura (1997) revela, na apresentação de Memórias

sentimentais de João Miramar, que a obra de Oswald de Andrade havia sido concebida,

originalmente, como um relato de viagens de uma longa incursão do escritor à Europa,

no ano de 1917. O tempo passou e o livro foi remodelado, sendo publicado apenas na

década posterior, em 1924, consagrando-se, assim, como o primeiro romance brasileiro

verdadeiramente modernista (CAMPOS, 1997, p.5).

Entretanto, a ideia da elaboração de um objeto artístico que evidenciasse uma

visão verde-amarela de uma Europa movimentada por grandes transformações culturais

parecia permanecer na intelectualidade dos escritores modernistas brasileiros. Afinal,

dois anos depois, em 1926, o escritor paulistano António Alcântara Machado estreou na

literatura com Pathé-Baby, uma obra singular que apresenta particularidades discursivas

e visuais que remetem, concomitantemente, à reportagem, à crônica de viagem, ao

romance, ao cinema mudo, ao cartaz de propaganda ou, como afirma o próprio Oswald

de Andrade, na ouverture da obra, ao “cinema com cheiro” (ANDRADE, 2002, p.12).

A riqueza de componentes estéticos e extraestéticos, amalgamados ao arcabouço

da obra, possibilita uma abordagem teórica de voga intermidiática, uma vez que a

unicidade de Pathé-Baby só pode ser apreendida a partir do casamento entre os

diferentes recursos que se organizam como partes de uma engrenagem narrativa

formatada pela multiplicidade. Tal possibilidade de análise encontra-se salvaguardada

pela perspectiva de Clüver, pois,

Minhas observações sobre intertextualidade e intermidialidade devem

ter indicado, entre outras coisas, que um texto isolado – seja lá em que

mídia ou sistema sígnico – pode representar um rico objeto de

pesquisa para os Estudos Interartes, da mesma forma que um texto

literário isolado, considerando suas implicações intertextuais, já se

oferece ao comparativista, frequentemente, como objeto de pesquisa

promissor (CLÜVER, 2006, p.16).

Seguindo a visão comparativista de Clüver, o livro de Alcântara Machado

aponta para a manipulação de diferentes estratégias amplamente utilizadas por veículos

de comunicação artística que se mostram de forma ora mais, ora menos evidentes. O

intuito, nessa primeira seção do artigo, é debater justamente a manifestação e fusão

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entre as artes/mídias – ou seja, intermídias – ressaltando, notadamente, seus aspectos

audiovisuais.

O primeiro contato interacional que ocorre entre o livro e a obra antecipa, como

uma síntese, o caráter intersemiótico da obra. A capa de Pathé-Baby, em arte de 1926 e

reproduzida em edições fac-símiles posteriores, entrelaça intrinsecamente literatura,

cinema, pintura e música.

Em uma primeira análise, o frontispício, em preto-e-branco (curiosamente, as

iniciais de Pathé-Baby), comunica o nome do escritor, o título do livro e uma estampa

xilogravada com assinatura de Antônio Paim Vieira, artista também vinculado ao

primeiro grupo dos modernistas brasileiros. Sendo assim, nessa soma de elementos,

percebe-se que António Alcântara Machado parece interessado não apenas em fornecer

essas informações essenciais contidas na apresentação da obra, mas também em arranjar

esses dados a fim de relacionar diferentes tipos de arte em: a) uma imagem que contém

palavras; e b) um discurso verbal que traz consigo uma imagem.

O nome do escritor surge, em letras maiúsculas, como informação primeira.

Entre “António de Alcântara Machado” e o nome do livro, a palavra “apresenta”

direciona um entendimento da obra como arte cinematográfica, haja vista que essa

organização (nome do autor + “apresenta” + título) remonta ao começo de uma

narrativa fílmica, o que é reforçado pelo acompanhamento sonoro sugerido pela

orquestra de câmara, desenhada por Paim Vieira. Sob essa ótica, o autor modernista

atuaria como escritor/produtor de um livro/filme. Ademais, outra interpretação se faz

necessária. O retângulo que emoldura as palavras pode ser visualizado como tela de

reprodução de imagens. Dessa forma, as palavras lidas pelo leitor seriam projetadas

cinematograficamente, enquanto que os músicos representariam os responsáveis pelo

andamento sonoro do filme/livro in loco, dividindo o mesmo “espaço” que o espectador.

Nas páginas subsequentes de Pathé-Baby, os capítulos da narrativa se dividem

nas cidades retratadas pelo artista. Com a intenção de apresentá-los, Alcântara Machado

mimetiza um cartaz de um espetáculo. Embora o “Programa” estabeleça a estetização de

um gênero textual que apela mais pelo seu aspecto comercial do que propriamente

artístico (mas sem desconsiderar essas manifestações na esfera das artes antes mesmo de

Pathé-Baby, vide o valor artístico de um Toulouse-Lautrec), os estudos intermidiáticos

estão, cada vez mais, alargando seu escopo. Desenvolve-se, assim, uma preocupação

com a relevância valorativa dessas formas comunicativas:

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Intermidialidade no sentido mais restrito de combinação de mídias,

que abrange fenômenos como ópera, filme, teatro, performance,

manuscritos com iluminuras, instalações em computador ou de arte

sonora, quadrinhos etc.; usando-se outra terminologia, esses mesmos

fenômenos podem ser chamados de configurações multimídias,

mixmídias e intermídias. A qualidade intermidiática dessa categoria é

determinada pela constelação midiática que constitui um determinado

produto de mídia, isto é, o resultado ou o próprio processo de

combinar pelo menos duas mídias convencionalmente distintas ou,

mais exatamente, duas formas midiáticas de articulação

(RAJEWSKY, 2012, p. 9).

A articulação a que Rajewsky se refere destaca ainda mais a pluralidade estética

de Pathé-Baby. No cartaz/sumário da obra, encontram-se elementos intercambiantes

que abrem um número ilimitado de vias analíticas pelas quais a intermidialidade assume

um papel fundamental.

O “cartaz” reproduz os programas que comumente eram entregues nas sessões

de cinema na época, com a intenção de orientar o espectador. Além das vinte e três

sessões, subdivididas em acordo com cada cidade, anuncia-se a ouverture de Oswald de

Andrade. Esse termo em francês aponta para um gênero musical, de caráter

instrumental, executado na apresentação de um filme, com o propósito de criar uma

ambientação inicial para a obra.

As sessões, todas elas numeradas, são representadas com fontes e tamanhos

diferentes, acusando a diversidade visual da página. Gomes (2008) observa, em uma

apreciação crítica da obra, que além da visualidade, há um estreitamento dessas sessões

com a Sétima Arte: “Nesse “programa”, é de notar-se a exploração dos recursos gráficos

que lança mão de vários tipos de letras e também da distribuição dos títulos de cada

capítulo/fita pelo espaço da folha” (GOMES, 2008, p.100 – grifo do autor).

Alguns capítulos/fita fazem alusão a procedimentos de projeção de filmes, como

a cidade de Paris, apresentada em “Super especial película de grande metragem” ou

Sevilha, “Super-Produção em 5 partes, com astros e estrelas”. Essa última, ao

propagandear atores para a película, também enriquece o debate intermidiático. Os

“astros” e “estrelas” aos quais o cartaz se refere são atores/personagens de um filme

árabe, rodado pela Paramount Pictures com artistas norte-americanos. O

narrador/diretor os descreve com seus cigarros Ariston, mas não esquece de acompanhar

o trabalho cinematográfico que é realizado pelos profissionais, acarretando em um

processo metalinguístico que se bifurca em duas veredas: um filme que mostra a

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realização de um outro filme; e uma narrativa que conta a ação de personagens

representando personagens criadas por um roteiro de cinema:

Nos jardins verdes do Alcázar, a Paramount Pictures fabrica uma

película árabe. Nas janelas do Pabellón de Carlos V sultanas de pele

loira e olheiras azúes fumam Ariston.

Entre as colunas de mármore branco, o diretor toma chá e morde o

cachimbo. Albornozes. Sandálias. Punhais. Véus.

Para duas objectivas, a favorita trai o sultão de barbaças com o jovem

cheik. Mas o espião entra.

O diretor berra:

- No! (MACHADO, 2002, p. 190-191).

Outrossim, chama a atenção, pelos próprios recursos do gênero, as últimas três

linhas da página. Nelas, constam: a) o preço das sessões; b) uma nota restritiva,

suspendendo as entradas de favor; e c) a propaganda do livro de contos Brás, Bexiga e

Barra Funda, obra lançada no ano posterior, que consagrou, definitivamente, o escritor

modernista como o cronista da cidade de São Paulo par excellence. Apesar de esses

elementos estarem em profunda harmonia com os cartazes da época, eles também

oferecem uma pequena demonstração de dois ingredientes estético-culturais

amplamente valorizados pelos primeiros modernistas brasileiros: a mescla de gêneros

(panfleto/propaganda/sumário) e o humor crítico (incluindo o imposto na entrada e

cancelando a entrada sem pagamento).

Além da capa e do sumário, as xilogravuras de Antônio Paim Vieira, já citadas

anteriormente, cumprem uma função intermidiática. Elas funcionam, não só na capa,

mas também ao longo da obra, como um ponto de encontro interartes, aproximando

literatura, pintura e cinema.

A cada capítulo/fita/sessão, encontram-se os intertítulos que demonstram o nome

da cidade a ser projetada pela narrativa. A maneira de construção técnica apreende, mais

uma vez, procedimentos comuns na feitura de películas, como o cutting e o editing,

Em inglês, por exemplo, chama-se cutting a etapa material que

consiste em cortar, e depois colar os pedaços de película (ou, mais

recentemente, em manipular os cursores dos computadores para

montar virtualmente, escolhendo os pontos de corte), é editing, à

concepção geral do alinhamento, à ordenação narrativa, à escolha da

forma global da montagem (AMIEL, 2011, p. 8).

A montagem apresenta, após o nome da cidade, uma estampa. Na parte de cima,

reproduzindo uma tela de cinema, um desenho com características culturais da cidade

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representada e, abaixo, novamente a orquestra de câmara que conduz, ritmicamente, a

sonoplastia do livro/filme. Os sons são sugeridos pela presença/ausência dos músicos

nas gravuras. No capítulo Londres, por exemplo, todos os instrumentistas estão

presentes, enquanto que em Milão e Veneza, o violinista desaparece e a pianista

descansa languidamente. Já em Córdoba e Barcelona, só o Violoncelista trabalha.

Dessa maneira, fica explicitada a polivalência dessas estampas inserida no corpo do

Pathé-Baby: da mesma forma que a xilogravura se constitui, per se, uma materialização

da arte pictórica, o seu conteúdo firma laços com a música, mesmo que apenas por

insinuação sensória.

Com isso, o fluxo intermidiático em Pathé-Baby revela-se constante e intenso,

cheio de novidades. Analisar as particularidades de uma obra com essa riqueza estética

torna-se necessário, pois ela possibilita, pela primazia da palavra, uma discussão teórica

de extrema relevância no que concerne aos estudos sobre a literatura, outras artes e

mídias.

2. Linguagem cinematográfica: a mimetização estética das técnicas midiáticas

Pathé-Baby aproxima-se do cinema mudo, principalmente, pelo seu modus

operandi. As imagens xilogravadas, o acompanhamento sonoro, os intertítulos e a

linguagem utilizada pelo autor são imbricadas de modo a fazer com que o leitor se sinta

diante de um filme dos anos 1920. Basta folhear as primeiras páginas para se sentir

inserido na atmosfera das principais cidades europeias. A passagem de uma para outra

ocorre de forma rápida e assim, de chofre, completa-se uma viagem que contempla

vinte e três centros urbanos marcados por profundas matizes identitárias e culturais.

Para Hauser (1995), o cinema, assim como as outras grandes inovações datadas

do final do século XIX e início do século XX reconfiguram a noção de tempo e espaço e

despertam, consequentemente, um fascínio da consciência do tempo presente. Essa

realização dos eventos simultâneos que se multiplicam em tempo real cria uma nova

concepção de tempo que (des)norteia o sujeito e forja as suas relações interpessoais. Na

obra de Alcântara Machado essa nova relação se mostra evidente. Em uma velocidade

ímpar, o leitor/espectador interage com lugares distantes e variados, quase que de forma

simultânea. A despeito de a literatura tradicional permitir esses passeios imaginários

desencadeados pelo discurso, a maneira cinematográfica pela qual Pathé-Baby realiza o

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itinerário evidencia a acuidade desse fenômeno característico de uma nova apreensão do

mundo.

Estendendo essa questão espaço-temporal para o âmbito da estética, Pellegrini

afirma que

As profundas transformações efetivadas nos modos de produção e

reprodução cultural, desde a invenção da fotografia e do cinema – que

alteraram, antes de tudo, as maneiras pelas quais se olha e se percebe

o mundo -, estão impressas no texto literário. Tratando-se do texto

ficcional, é a observação das modificações nas noções de tempo,

espaço, personagem e narrador, estruturantes básicos da forma

narrativa, que ajuda a entender um pouco melhor a qualidade e a

espessura dessas modificações. (PELLEGRINI, 2003, p.16).

Além do tempo e do espaço, outra instância narrativa sofre significativa

influência pelos inovadores métodos de produção e reprodução cultural: o narrador. No

capítulo Barcelona, na representação de uma tourada, percebe-se como esse aspecto

formal se articula:

O touro abaixa a cabeça deante do homem azul que caminha. E pula

como um autômato. A capa resvala sobre os chifres.

- Olé!

Vai e vem deante do focinho espumante.

- Olé!

O toucador é um pião roçando a nuca peluda.

- Olé!

O delírio levante vinte e cinco mil entusiasmos. As palmas sacodem o

anfiteatro ondeante (MACHADO, 2002, p.180-181).

O narrador preocupa-se, nessa passagem como em muitas outras, em descrever

um cenário, recrutando os sentidos do narrador. Embora o autor adote um estilo

sincopado, ele não despreza os componentes sinestésicos. A visão é acionada pela ação

plástica do touro, do homem que o enfrenta, da multidão entusiasmada e também pelo

jogo cromático entre o azul do toureiro com o vermelho da sua capa; o tato é despertado

pelos verbos que sugerem movimentos suaves, como o resvalar da capa e o roçar do

toucador; já a audição revela-se nos gritos de olé e nas palmas. Necessário ressaltar, em

adição, que esse pequeno trecho destaca o uso de uma metáfora e uma símile, recursos

que empregam expressividade ao texto literário.

A linguagem cinematográfica é, em verdade, uma técnica narrativa que mimetiza

os procedimentos de captação da realidade (VIEIRA, 2007, p.20-21). O narrador, sob

este ponto de vista, procura registrar cenários e ações com ênfase na visibilidade do

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espaço, contudo sem restringir pequenas intervenções de caráter subjetivo – e por vezes

poéticas – que torna essa instância narrativa, com matizes de câmera de cinema, ainda

mais complexa e versátil. Essa técnica, como afirma Gomes,

fornecerá processos de construção atrelados a uma linguagem, a um

estilo, que lançará mão do corte, da montagem, do close de planos de

enquadramento, traços tomados ao cinema e sua linguagem, que são

associados a uma linguagem metonímica (às vezes de feição cubista),

elíptica, sem ligaduras, em processos de síntese proporcionados pela

câmara eye, que associa a visualidade a uma sintaxe que não vem do

ordenamento lógico do discurso, mas da montagem (GOMES, 2008,

p.97-98).

A quebra da sintaxe lógica do discurso, como observa o teórico, registra-se em

frases extremamente sintéticas – por vezes com apenas uma palavra – que, por uma

espécie de montagem narrativa, são conectadas, oferecendo um sentido temporal ao

movimento. Alfredo Bosi vê, nessa sequencialidade cronológica, a natureza mais

genuína do discurso verbal, pois: A expressão verbal em si mesma, ainda quando

reduzida a blocos nominais, atômicos, é serialidade (BOSI, 2000, p.24).

Deleuze (1985) enriquece esse debate sobre o tempo, e o insere na seara do

cinema, ao aprofundar-se nas reflexões do filósofo Henry Bergson, organizando uma

intrincada categorização das imagens cinematográficas. Para ele, a imagem e o

movimento não estão isolados na narrativa fílmica. Elas se coordenam a partir da

ligação íntima que ambas mantêm com o tempo, compondo uma cena marcada pela

integralidade.

No fragmento Paris, por exemplo, é possível identificar adequadamente essas

imagens, evocadas por palavras, que se unem com o intuito de descrever o tumulto

frenético da Place de l’Étoile. O episódio narrado, por sua vez, como afirma Deleuze

(1985), apresenta uma ação onde a imagem e o movimento se fundem, inscrevendo tais

conceitos em um tempo específico, definido por esse discurso preocupado em registrar

todos os detalhes da paisagem dinâmica:

Place de l’Étoile. Em torno do Arco do Triunfo magotes de

automóveis giram. As avenidas são doze bocas de asfalto que comem

gente e veículos, vomitam gente e veículos. Insaciáveis.

Ruído. Pó. E gente. Muita gente. O soldado apita, levanta o seu

bastão, e a circulação para para que se possam passar, tranquilamente,

a ama e seu carrinho(...) Paris que passa (MACHADO, 2002, p. 49).

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Os “blocos atômicos” aos quais Bosi faz referência, que nada mais são que a

potência de significação da(s) palavra(s), interligados pela linguagem cinematográfica,

brotam em toda a materialidade de Pathé-Baby. Em Lisboa, encontra-se, talvez, o

capítulo em que essa estética, pautada pela plasticidade e deslocamento, se exibe com

mais nitidez: Lama no Tejo. Manhã horrível de céu cinzento. Chuvinha fina que cai.

Frio. Vento. A lancha pula nas vagas; desce, sobe, desce, sobe. Uma bola de borracha

saltando (MACHADO, 2002, p.29).

Flora Süssekind (2006) entende o fenômeno da estetização da técnica

cinematográfica como uma ocorrência histórica e cultural característica do contexto de

produção da obra. Segundo a autora, a literatura transpôs, para o campo das artes, as

mudanças técnicas trazidas pelos novos meios de comunicação e interação entre as

pessoas. Com isso, o telégrafo, o fonógrafo a fotografia, bem como o automóvel e o

avião constituíram o sujeito que João do Rio, em uma de suas crônicas, datada do ano

de 1909, nomeou de “homem cinematógrafo”. O escritor Mário de Andrade, em

harmonia à constatação de Süssekind e Rio, também assinala essa influência do período

no mundo das artes: “Rapidez e síntese. Congregam-se intimamente. Querem alguns

filiar a rapidez do poeta modernista à própria velocidade da vida hodierna. Está certo”

(ANDRADE, 2010, p.64).

Dessa forma, pelo conjunto dos elementos levantados, constatamos, claramente,

que a linguagem cinematográfica não só integra o arcabouço de Pathé-baby como forma

discursiva que imita os procedimentos técnicos do cinema, mas também se manifesta

como fenômeno cultural que estabelece vínculos análogos aos mecanismos processuais

de outras máquinas e mídias. Elas modificaram a maneira de viver e fizeram o ser

humano enxergar a realidade com olhos de criança.

Considerações finais

A partir dos aspectos que foram trazidos à baila nas duas partes do artigo,

principalmente no que tange ao aporte teórico utilizado, o que fica explicitado como

fundamento incontestável de Pathé-Baby é a exuberância de elementos estéticos, de

cunhos diversos, dispostos na obra. Pela análise que construímos, pelo viés

intermidiático, a literatura, o cinema, a pintura e a música se interligam de forma única,

a conclusão mais evidente, entre muitas possíveis, é a manipulação, por parte do autor,

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de artes e mídias, que concorrem com o fito de produzir um produto sígnico híbrido,

irrepetível, que se filia com as novidades mais notáveis de sua época.

Em Pathé-Baby, António Alcântara Machado firma-se, acima de tudo, como

escritor modernista, contemporâneo na acepção mais aguda do termo. Esse estudo é

apenas uma visão da obra. Outras muitas podem e devem ser pensadas. Dentro da

discussão intermidiática, por exemplo, é permitido: traçar paralelos comparativos entre

os mecanismos da obra e os procedimentos técnicos utilizados em determinados filmes

mudos; estudar os cartazes de propaganda da câmera Pathé-Baby e relacioná-los com as

artes visuais encontradas no livro; identificar as diferenças culturais entre as cidades

descritas no livro, confrontando com dados empíricos desses locais naquele período.

Enfim, as possibilidades de abordagens são inesgotáveis. Elas multiplicam-se em

conformidade com a beleza estética dessa obra imprescindível do modernismo

brasileiro.

REFERÊNCIAS

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