UM EMCERCEAU, Rangel. CASA de OUTRO- Concubinato, Família e Mestiçagem Na Comarca Do Rio Das...

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 7 e-hum Revista Científica das áreas de História, Letras, Educação e Serviço Social do Centro Universitário de Belo Horizonte, vol. 6, n.º 2, Agosto/Dezembro de 2013 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index RESENHA UM EM CASA DE OUTRO – Concubinato, família e mestiçagem na Comarca do Rio das Velhas (1720-1780) - Rangel Cerceau Netto. São Paulo: Ed. Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG, 2008. (Coleção Olhares) 160p. Loque Arcanjo Junior Doutor em História Social da Cultura pela UFMG Professor Adjunto da UEMG e do UNIBH E-mail de contato: [email protected] Sabrina Balthazar Ramos Ferreira Graduanda em História pelo UNIBH E-mail de contato: [email protected] Recebido em: 10/12/ 2013 Aceito em 08/04/2014 É possível dizer que a História, enquanto saber científico, pode ser observada como um organismo vivo, dinâmico, que avança, retrai, se aprofunda ou plana superficialmente sobre as questões humanas. Tal as- pecto se mostra mais latente no estudo das correntes historiográficas. Desse modo, observam-se em cada produção historiográfic a, certas es- pecificidades que conferem a ela uma dada “identidade”, possibilitando, assim, localizá-la no tempo e no espaço. Com isso, tal obra passa a vi- gorar em uma bem estruturada rede, desempenhando , em certos casos, um papel atuante no universo historiográfico. Por se tratarem de constru- ções sociais, essas redes possuem uma dinâmica própria vivenciada por aqueles que a constituem. São articulações internas, que refletem visões de mundo que acabam por conferir a seus componentes uma identidade própria enquanto grupo. Tais indivíduos compartilham das mesmas ex- periências, limitações e expectativas por se localizarem em um mesmo “lugar” de observação – tanto do presente como do passado. Lugar este, apreensível somente através de um olhar minucioso que venha desvendar os elos de ligação de uma dada produção com as demais obras concebidas. Exemplificando tais pressupostos, apresenta-se Um em Casa de Outro, de Rangel Cerceau Netto, resultante de sua apresentação da Dissertação de Mestrado ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Ciente de sua atuação e da contri buição de sua obra, Rangel enfatiza em todo transcorrer da narrativa o lugar de suas análises quantitativas que, aliadas às especificidades obtidas na documentação, refletem suas concepções sobre o concubinato.  Além disso, reforça, com ar gumentações e citações, a conexão do conteúdo com o histórico sobre a temática produzida ao longo das décadas. Mostra-se, portanto, um historiador , sabedor de sua ação no presente e de sua contribuição para o futuro.  Abordando temas já bastante explorados pela História – a escravidão, a família, a miscigena- ção e o concubinato – a referida obra cumpre o script já mencionado, por introduzir no campo de aná- lises uma nova abordagem, que se articula com o crescente movimento da historiografia, de resgate e valorização de sujeitos históricos eclips ados em discursos anteriores. T orna-se claro, no decorrer da narrativa, o processo de legitimação de suas análises ao esquadrinhar as diversas contribuições pas- sadas sobre o tema que propiciaram ao autor transitar em sua pesquisa. Nesse sentido, percebe-se uma extensa bibliografia que oferece um lastro de consistência que logo se faz notar. Logo de início, na apresentação do livro realizada por Eduardo França Paiva – referência nos

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  • 7272e-hum Revista Cientfica das reas de Histria, Letras, Educao e Servio Social do Centro Universitrio de Belo Horizonte, vol. 6, n. 2, Agosto/Dezembro de 2013 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

    RESENHA

    UM EM CASA DE OUTRO Concubinato, famlia e mestiagem na Comarca do Rio das Velhas (1720-1780) - Rangel

    Cerceau Netto. So Paulo: Ed. Annablume; Belo Horizonte: PPGH/UFMG, 2008. (Coleo Olhares) 160p.

    Loque Arcanjo Junior

    Doutor em Histria Social da Cultura pela UFMG

    Professor Adjunto da UEMG e do UNIBH

    E-mail de contato: [email protected]

    Sabrina Balthazar Ramos Ferreira

    Graduanda em Histria pelo UNIBH

    E-mail de contato: [email protected]

    Recebido em: 10/12/2013 Aceito em 08/04/2014

    possvel dizer que a Histria, enquanto saber cientfico, pode serobservada como um organismo vivo, dinmico, que avana, retrai, seaprofunda ou plana superficialmente sobre as questes humanas. Tal as-pecto se mostra mais latente no estudo das correntes historiogrficas.Desse modo, observam-se em cada produo historiogrfica, certas es-pecificidades que conferem a ela uma dada identidade, possibilitando,assim, localiz-la no tempo e no espao. Com isso, tal obra passa a vi-gorar em uma bem estruturada rede, desempenhando, em certos casos,um papel atuante no universo historiogrfico. Por se tratarem de constru-es sociais, essas redes possuem uma dinmica prpria vivenciada poraqueles que a constituem. So articulaes internas, que refletem visesde mundo que acabam por conferir a seus componentes uma identidadeprpria enquanto grupo. Tais indivduos compartilham das mesmas ex-perincias, limitaes e expectativas por se localizarem em um mesmolugar de observao tanto do presente como do passado. Lugar este,apreensvel somente atravs de um olhar minucioso que venha desvendar os elos de ligao de umadada produo com as demais obras concebidas.

    Exemplificando tais pressupostos, apresenta-se Um em Casa de Outro, de Rangel CerceauNetto, resultante de sua apresentao da Dissertao de Mestrado ao Programa de Ps-Graduaoem Histria da Universidade Federal de Minas Gerais. Ciente de sua atuao e da contribuio de suaobra, Rangel enfatiza em todo transcorrer da narrativa o lugar de suas anlises quantitativas que,aliadas s especificidades obtidas na documentao, refletem suas concepes sobre o concubinato.Alm disso, refora, com argumentaes e citaes, a conexo do contedo com o histrico sobre atemtica produzida ao longo das dcadas. Mostra-se, portanto, um historiador, sabedor de sua aono presente e de sua contribuio para o futuro.

    Abordando temas j bastante explorados pela Histria a escravido, a famlia, a miscigena-o e o concubinato a referida obra cumpre o script j mencionado, por introduzir no campo de an-lises uma nova abordagem, que se articula com o crescente movimento da historiografia, de resgatee valorizao de sujeitos histricos eclipsados em discursos anteriores. Torna-se claro, no decorrer danarrativa, o processo de legitimao de suas anlises ao esquadrinhar as diversas contribuies pas-sadas sobre o tema que propiciaram ao autor transitar em sua pesquisa. Nesse sentido, percebe-seuma extensa bibliografia que oferece um lastro de consistncia que logo se faz notar.

    Logo de incio, na apresentao do livro realizada por Eduardo Frana Paiva referncia nos

  • estudos sobre a temtica ressaltado o flego do trabalho empreendido por Rangel ao vasculhare analisar mais de 1.000 autos de devassa processados na Comarca do Rio das Velhas entre 1727-1756. Alm destes, foram utilizados registros de batismo, inventrios, testamentos, libelos, processoscriminais, termos de bem viver, pedidos de legitimao, cartas e disposies do Reino e da Colnia,relatos de padres e viajantes e registros de visitas pastorais. Quanto s fontes de origem eclesistica,procurou o que transparece em sua narrativa abstrair o contedo moral cristo inerente a elas, porse tratarem de valioso instrumento para pesquisar o passado. No apenas no vulto da documentaoreside a relevncia do trabalho executado por Rangel. Seu rigor metodolgico ao fazer um extensocruzamento de fontes fez com que a obra recebesse os dividendos de um trabalho que segue proe-minente no rol dos estudos sobre o assunto. Diante de um vasto corpus documental o autor no seintimidou, conseguindo por fim, sacar aquilo que o inquieta e que o impulsiona. No caso de Rangel,seu intuito de lanar luz sobre as relaes concubinrias do referido perodo, contemplando a mesti-agem biolgica e cultural, permitiu que novos olhares fossem concretizados sobre a intensa hibri-dao colonial que se efetivou. Ao analisar as relaes concubinrias por um vis distinto dosanteriormente tratados, Rangel, alm de oferecer um vasto quadro de informaes, amplia tambmo leque de possibilidades de se apreender o passado. Dessa forma, busca se desvincular de amar-ras que por vezes obstruram o olhar para um passado possuidor de uma dinmica cultural prpria eacessado apenas por um prisma. Prisma este, ditado e viciado, reflexo de narrativas que valorizavama verdade do colonizador ou do viajante europeu que vinha para os trpicos. Vale ressaltar que opeso de uma historiografia que privilegiava a valorizao de certos padres comportamentais tidoscomo tradicionalmente morais, no presente repercute atravs do olhar para o passado colonial. No en-tanto, trabalhos como este, dinamizam a escrita histrica, assim como a interpretao da moralidade.Afinal de contas, conceitos como famlia, por exemplo, se correlacionam intrinsecamente com a es-trutura moral da sociedade em cada contexto. Dessa forma, a obra se inicia com uma srie de dis-cusses conceituais sobre as definies mais tradicionais de famlia. Pois, pode-se afirmar que,diametralmente opostas famlia tradicional - moralmente aceita - figuravam estruturas familiares queeram veementemente condenadas pelas autoridades coloniais. Nesse caso, foram tais concepesque acabaram por se perpetuar na historiografia sobre o assunto, muito devido s fontes do perodoproduzidas naquela poca. Foram documentos eclesisticos e relatos de viajantes que contriburampara vises historiogrficas que reproduziam ideais morais, assim como preconceitos.

    No esteio das recentes produes historiogrficas sobre a temtica, a obra se debrua sobreconceitos consolidados ao longo do tempo tais como famlia utilizando-se para isso, de estudoscomo o do dicionarista Raphael Bluteau. Suas anlises foram fruto da articulao de dados quantita-tivos - obtidos por meio dos testamentos, inventrios, autos de batismo e devassas eclesisticas - ecasos particulares especficos obtidos atravs de um preciso cruzamento de fontes e ligaes nomi-nativas. Rangel apresenta ao leitor uma extensa seqncia de dados estatsticos que ganham inteli-gibilidade por meio de sua conduo que problematiza o passado, legitimados por casos especficosexplicitados no texto. Evidencia-se assim, um trnsito entre o globalizado e o individual que permiteum olhar estrutural da sociedade sem perder de vista suas especificidades. Tais anlises possibilita-ram desconstruir a idia de marginalizao que acompanhava o conceito de concubinato ao com-provar o significado cultural e social que o mesmo possua em seu contexto. Alm disso, emergemoutros modelos familiares que, ao longo do tempo na historiografia, no foram devidamente aborda-dos por no se enquadrarem no padro social cristo vigente.

    O autor desmistifica o concubinato, podendo-se observar que a adoo desta prtica no foifruto de dificuldades de adequao dos envolvidos quanto ao modelo moral vigente. Trata-se sim deuma opo de organizao familiar por diversos grupos sociais que constituam a sociedade sete-centista na Comarca do Rio das Velhas. Tal aspecto foi amplamente ressaltado pelo autor ao de-monstrar nas particularidades dos casos estudados, a longevidade e permanncia do concubinato -

    7373e-hum Revista Cientfica das reas de Histria, Letras, Educao e Servio Social do Centro Universitrio de Belo Horizonte, vol. 6, n. 2, Agosto/Dezembro de 2013 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index

  • o que acaba por nos revelar a imbricada dinmica social e cultural que se fazia presente. Para isso,muitos foram as estratgias adotadas pelos concubinos para resistirem s imposies eclesisticase legais que buscavam homogeneizar culturalmente a sociedade colonial. O prprio ttulo da obra Um em Casa de Outro - faz meno ao recurso empregado pelos praticantes no intuito de burlarema ao repressora das autoridades eclesisticas. Trata-se de uma das formas encontradas para res-guardar a existncia de unies entre sujeitos moral e socialmente impedidos de se relacionarem pu-blicamente. O que se observou, foram as dificuldades prticas na tentativa de nivelamento cultural emoral diante da diversidade tnica e cultural existente na Amrica Portuguesa. Diversidade esta, pre-sente, por exemplo, onde havia participao de indivduos de etnias africanas, na qual suas culturaspossuam uma dinmica distinta do padro ocidental com prticas poligmicas e matriarcais. Ta-manha diversidade abriu precedente para a existncia de modelos familiares que escapavam ao pa-dro portugus, notadamente patriarcal. Atravs das inmeras devassas consultadas pelo autor,nota-se a intensa ao eclesistica de represso s condutas desviantes. O que se pode apreender a resposta das autoridades devido existncia em larga escala de modelos familiares considera-dos imorais. Para tanto, Rangel se baseia em incontveis tabelas que demonstram os processossobre os desvios cometidos, detalhando desta forma, o perfil dos sujeitos envolvidos. O que pode severificar foi a atuao de diferentes tipos, segmentos e etnias atuando na prtica do concubinato.Alm disto, dados quantitativos acerca dos tipos de concubinato, situao scio-jurdica, sexo e qua-lidade de origem dos praticantes foram expostos no livro. Desse modo, uma verdadeira radiografiasobre o concubinato na Comarca do Rio das Velhas foi apresentada, permitindo assim, se concluirsobre a abrangncia significativa de tais unies naquela sociedade.

    Em sua empreitada, o autor parte da historicidade dos conceitos abordados, levantando ques-tionamentos quanto aos padres morais instaurados, mapeando em seguida, os principais tipos e ca-ractersticas das relaes de amancebamento existentes. Dentre os tipos destacam-se o concubinatosimples onde os envolvidos eram solteiros ou vivos e o concubinato duplo com a participaode indivduos poligmicos. Havia ainda o concubinato clerical, onde um dos integrantes pertencia estrutura da Igreja. Para alm destes, se observam os concubinatos adulterinos, incestuosos e mis-tos todos amplamente abordados na obra. A complexidade social vem tona, abrindo caminhospara um aprofundamento mais detalhado das variadas famlias mestias que se constituram. Pode-se destacar ainda, o carter de estabilidade que acompanhava estas estruturas familiares, ainda querepresentassem condutas condenadas pela moral catlica. Abre-se caminho, portanto, para inme-ras discusses a respeito de valores consolidados que, durante muito tempo foram transmitidos comoverdades inquestionveis. Muitas destas, diga-se de passagem, embasadas por relatos de viajantese pela historiografia do sculo XIX que por muito tempo aliceraram a memria do perodo colonial ea formao da identidade brasileira.

    Nesse nterim, realiza-se o verdadeiro papel do historiador que, incansavelmente, faz e refazos caminhos percorridos anteriormente, sempre iluminando o passado atravs da luz do presente.

    7474e-hum Revista Cientfica das reas de Histria, Letras, Educao e Servio Social do Centro Universitrio de Belo Horizonte, vol. 6, n. 2, Agosto/Dezembro de 2013 - www.http://revistas.unibh.br/index.php/dchla/index