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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85- 288-0061-6 Um balanço historiográfico: as contribuições de George Rosen e Michel Foucault para análise do discurso médico Gustavo Pinto de Sousa 1 Uma breve introdução da questão: O presente texto tem como objetivo analisar os estudos de George Rosen e Michel Foucault para a historiografia da história da medicina. Resgatando as definições e horizontes das práticas médicas. É interessante antes de discorrer sobre a temática, fazermos algumas considerações. Esse texto surgiu das aulas no curso de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde na Fundação Oswaldo Cruz. Através da disciplina “História da Saúde Pública no Brasil” tive contato com algumas noções teóricas, que atualmente balizam o campo da discussão aqui proposta. Portanto, as obras levadas em consideração são “Da polícia médica à medicina social” de George Rosen e o capítulo do livro “Microfísica do poder” sobre “O nascimento da medicina social” de Michel Foucault. No corpo do trabalho buscaremos problematizar a construção feita por Dorothy Porter na introdução de seu livro “The history of public health and the Modern State”. A autora busca qualificar os trabalhos de Rosen e Foucault como “heróico” e “anti-heróico”, respectivamente. Objetivamos verticalizar a abordagem dela, percebendo que sua análise carece da apreciação de outras noções de Foucault para analisar a questão da produção do discurso médico. Além de introduzirmos a visão de que a medicalização da sociedade proposta pelos autores numa inter- relação, não pressupõe exclusivamente um estudo dos discursos, como assevera uma parte da História Social da Medicina. Em linhas gerais, Rosen e Foucault traçam uma metodologia de comparativismo histórico para descrever as transformações da ordem médica do século XVIII para o XIX. Na obra dos autores é nítido o destaque das mostragem das práticas médicas nos países europeus, tais como Alemanha, França, Inglaterra entre outros. Situar o contexto histórico é oportuno pois a elaboração de medicalização da sociedade é construída pelos autores, no momento em que a 1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Bolsista CAPES e pesquisador do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais (LEDDES). 1

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As Contribuições de George Rosen e Michel Foucault Para Análise Do Discurso Médico

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Um balanço historiográfico: as contribuições de George Rosen e Michel Foucault para

análise do discurso médico

Gustavo Pinto de Sousa1

Uma breve introdução da questão:

O presente texto tem como objetivo analisar os estudos de George Rosen e Michel

Foucault para a historiografia da história da medicina. Resgatando as definições e horizontes das

práticas médicas. É interessante antes de discorrer sobre a temática, fazermos algumas

considerações. Esse texto surgiu das aulas no curso de Pós-Graduação em História das Ciências e

da Saúde na Fundação Oswaldo Cruz. Através da disciplina “História da Saúde Pública no

Brasil” tive contato com algumas noções teóricas, que atualmente balizam o campo da discussão

aqui proposta. Portanto, as obras levadas em consideração são “Da polícia médica à medicina

social” de George Rosen e o capítulo do livro “Microfísica do poder” sobre “O nascimento da

medicina social” de Michel Foucault.

No corpo do trabalho buscaremos problematizar a construção feita por Dorothy Porter na

introdução de seu livro “The history of public health and the Modern State”. A autora busca

qualificar os trabalhos de Rosen e Foucault como “heróico” e “anti-heróico”, respectivamente.

Objetivamos verticalizar a abordagem dela, percebendo que sua análise carece da apreciação de

outras noções de Foucault para analisar a questão da produção do discurso médico. Além de

introduzirmos a visão de que a medicalização da sociedade proposta pelos autores numa inter-

relação, não pressupõe exclusivamente um estudo dos discursos, como assevera uma parte da

História Social da Medicina.

Em linhas gerais, Rosen e Foucault traçam uma metodologia de comparativismo histórico

para descrever as transformações da ordem médica do século XVIII para o XIX. Na obra dos

autores é nítido o destaque das mostragem das práticas médicas nos países europeus, tais como

Alemanha, França, Inglaterra entre outros. Situar o contexto histórico é oportuno pois a

elaboração de medicalização da sociedade é construída pelos autores, no momento em que a

1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade do Estado do Rio de

Janeiro (UERJ). Bolsista CAPES e pesquisador do Laboratório de Estudo das Diferenças e Desigualdades Sociais

(LEDDES).

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medicina mantém diretamente um diálogo com as diferentes forças do Estado. E eles chamam a

atenção, que tal relação se concatena de diferentes maneiras, ou seja, de acordo com o processo

histórico.

Por fim, toda operação historiográfica como lembra Michel de Certeau merece ter

apontado os “lugares de fala” dos objetos. Em nosso caso, situamos George Rosen como um

historiador da medicina, tendo em suas especializações a preocupação com a história da saúde

pública e a medicina preventiva. Já Michel Foucault com seu corte tênue entre história e filosofia,

concentra sua formação na perspectiva em analisar as relações de poder produzidas a partir da

produção de discursos, como formas de saber.

Um balanço historiográfico: o desenvolvimento da medicina em Rosen e Foucault.

Da Polícia médica à Medicina Social é o livro de George Rosen produzido na década de

1950. O livro encontra-se dividido em 14 capítulos, que buscam tratar das práticas médicas e sua

relação com a História. Entretanto, em nosso texto analisaremos de forma mais direcionada o

capítulo 4 “o que é medicina social?”. Rosen como “filho de seu tempo” está escrevendo no

período da Guerra Fria, onde a História Mundial sofria com os resultados da II Guerra. Além dos

países envolvidos no jogo da Guerra Fria, que procuravam aglutinar seus determinados

interesses. Assim, podemos considerar o estudo do autor como pioneiro na área de História da

Saúde Pública. O mote do livro é examinar a afirmação da institucionalização da polícia médica –

coercitiva e controladora – para a moralização da medicina social. A construção socializante da

medicina assume em Rosen uma perspectiva de História Política. Nas palavras do autor: “ a

história da medicina social é, em grande parte, a história da política e da ação social em relação

aos problemas da saúde.”(ROSEN, 1979:1) Notamos nele, a preocupação com uma abordagem

histórica para se estudar às novas relações instauradas com a medicina social. Em sua obra, existe

a preocupação com a historicidade da medicina, ou melhor, há no livro uma perspectiva

historicista (MEINECKE, 1982: 12) para identificar as especificidades das práticas médicas de

acordo com o tempo histórico. Pois para Rosen: “O cuidado com a saúde sempre esteve

relacionado às condições políticas, econômicas e sociais de grupos específicos, mas em épocas

passadas estas relações não eram objeto de investigação sistemática.” (ROSEN, 1979: 2)

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Assim sendo, o foco do trabalho de George Rosen como Michel Foucault, está centrado

no apogeu da institucionalização da medicina no século XIX. Uma tríade relacional entre

“Medicina- Estado- Sociedade”. Para entender a ligação entre a doença e a saúde, Rosen

argumenta que a articulação dessas duas premissas se dava por meio de dois ambientes: social e

cultural. Para ele:

“A doença e a saúde são aspectos desta instabilidade onipresente, são expressões das

relações mutáveis entre os vários componentes do corpo, entre o corpo e o ambiente

externo no qual ele existe. Como fenômeno biológico, as causas da doença são procuradas

no reino da natureza; mas no homem a doença possui ainda uma outra dimensão: nele a

doença não existe como “natureza pura”, sendo mediada e modificada pela atividade

social e pelo ambiente cultural que tal atividade cria.” (ROSEN, 1979: 77)

Assim, a mudança na área da medicina inicia-se a partir do momento, em que a doença

assume um valor social. É dessa forma, que Rosen busca identificar a relação, que os diferentes

Estados europeus operacionalizam a adoção de políticas higiênicas. No caso alemão, o autor

analisa a constituição de uma ciência social no ano de 1848. Tal corte temporal é primordial para

compreender certas mudanças na Europa, principalmente no que tange aos projetos de

movimento nacionalista. Segundo Eric Hobsbawm o nacionalismo no século XIX assume uma

perspectiva governamental. Transformando e sistematizando as execuções dos projetos nacionais.

Assim nas palavras do autor observamos:

“As revoluções de 1848 deixaram claro que a classe média, o liberalismo, a democracia

política, o nacionalismo e mesmo as classes trabalhadoras eram, daquele momento em

diante, presenças permanentes no panorama político.”(HOBSBAWM, 1962: 50)

É evidente que em 1848 a Alemanha ainda não tinha sistematizado seu processo de

unificação. Porém, é fundamental compreender o “papel das juventudes” no bojo do processo de

construção nacional. Para tal, o autor concentra sua análise no Regulamento de Higiene de

Berlim em 1849. Em relação a tal regulamento Rosen aponta que em sua distribuição existiam

três diretrizes básicas: “I A Saúde Pública tem como objetivos; II A Saúde Pública deve

preocupar-se com; III A Saúde Pública pode atender a estes deveres.” (ROSEN, 1979: 86) O

autor quer mostrar como a medicina vai se apropriando do Estado, com finalidades de construção

de um ordenamento social.

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A preocupação da medicina em marcar seu espaço no cerne do Estado, vincula-se a

diferentes projetos e uso das práticas médicas. Para Rosen a industrialização e os conseqüentes

problemas sociais levaram vários investigadores a estudar a influência de fatores como pobreza e

profissionalização da medicina no estado de saúde. E como podemos notar na colocação de

Rosen, a questão urbana é primordial para as particularidades na concepção de uma política de

saúde pública. Chegamos à afirmação de que a medicina também assume um valor pedagógico,

pois para ele:

“Mas sendo a saúde e a educação condições de bem-estar, é tarefa do Estado providenciar

para que o maior número de pessoas tenha acesso, através da ação pública, aos meios de

manutenção e promoção tanto da saúde quando da educação... Assim, não é suficiente que

o Estado garanta a cada cidadão o necessário a sua existência e dê assistência a todo

aquele cujo trabalho não é suficiente para a obtenção do necessário. O Estado deve fazer

mais: deve assistir todos para que tenham as condições necessárias para gozar uma

existência saudável.” (ROSEN, 1979: 82)

Ao estudar a acessibilidade dos cidadãos ao serviço básico de saúde, nos aproximamos da

definição conceitual, que Virchow, médico estudado por Rosen, busca empreender sobre a Saúde

Pública em seu processo de legitimação. Para Virchow a Saúde Pública tinha como carro chefe o

estudo das várias condições de vida nos diferentes grupos sociais. Sendo assim, Rosen sintetiza

que o alcance da medicina social pode ser delimitado através de três aspectos sociológicos, a

saber: “saúde em relação à comunidade; saúde como valor social; e a saúde e política social.”

(ROSEN, 1979: 138) Dessa maneira, a ligação política da medicina com o Estado como propõe

Rosen faz parte das tecnologias instaladas pelo Estado Moderno, a fim de melhoras as condições

higiênicas da população européia. Pois como assevera Dorothy Porter a perspectiva de Rosen é

considerada heróica, pela seguinte definição:

“Rosen, então observa que partir do século XVIII para o século XX,as medidas tomadas

no sentido social e cultural do Iluminismo, estabeleceram a saúde como um direito de

cidadania democrática. Conduzido em um processo acelerado e por sanções de uma

urbanização e industrialização estimulada, que foi radicalmente pelo desenvolvimento de

laboratório com base experimental da ciência. A história da saúde pública foi, para Rosen,

um triunfo do conhecimento ao longo de ignorância, barbárie e esclarecimento cultural

sobre a emancipação da sociedade moderna, a partir da primitiva relação com

doença."(PORTER, 1994: 2) [tradução livre]

É a partir da idéia de vitória entre “civilização” e “barbárie”, que Porter enxerga o caráter

heróico da medicina em Rosen. Entretanto, Porter ao criticar Rosen leva em consideração apenas

a análise no longo tempo histórico, como definia Fernand Braudel. Essa mesma definição de

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crítica empregada por Porter em relação a Rosen, é utilizada para criticar Michel Foucault, tema

que trataremos adiante. Podemos sintetizar, que Rosen é de fato um historicista, no sentido

empregado por Friedrich Meinecke, no qual todo objeto deve ser analisado dentro de sua

especificidade. Pois ao analisar a introdução da medicina social alemã relacionado a formação do

Estado, ele busca correlacionar às forças políticas em torno do processo nacionalista germânico.

No caso francês, o fio condutor reside nas condições de cidadania, que o Estado oferece a

população. Já na perspectiva da Inglaterra, no decorrer do século XIX e XX as políticas de saúde

pública estão associadas ao interesse econômico da latente Revolução Industrial. Sendo assim,

George Rosen ainda é fortuito para análise da questão médica, pois o autor, apesar de não se

definir dessa maneira, apresenta um historicismo muito caro como ferramenta do historiador. E

não apenas heróico como define Dorothy Porter.

Agora outra possibilidade de se pensar a relevância da medicina para a análise do discurso

histórico, está em Michel Foucault. Diferente de Rosen, Foucault mantém seus escritos a

ambiência da dita crise da História. Na França, da década de 1960/1970 surge no cenário dos

estudos historiográficos a ruptura entre um modelo sociológico-estruturalista para uma análise

político-cultural, onde os hospitais, as prisões, as escolas, a morte, os “indesejáveis” vão assumir

a elaboração de objetos da História. Foucault, portanto, propõe uma nova maneira de se pensar a

relação da medicina com a Sociedade e o Estado.

Assim sendo, a tese de Michel Foucault para analisar a aproximação da medicina com

Estado parte da idéia da medicalização da sociedade. Esse processo pode ser compreendido

quando as relações médicas extrapolam a concepção individualista do corpo e do tratamento

médico e passam a valorizar a aproximação do médico com o doente. O enfermo passa ser objeto

da medicina e não o contrário, a medicina como objeto do enfermo. Pois para ele, em termos de

economia o capitalismo contribuiu para a divulgação das práticas de uma medicina oficial.

Apresentando sua hipótese de trabalho, podemos atentar:

“Minha hipótese é que com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina

coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário: que o capitalismo,

desenvolvendo –se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um

primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. O controle

da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela

ideologia, mas começa no corpo, com o corpo.”(FOUCAULT, 2002: 80)

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Antes de avaliarmos as palavras do autor, é pertinente situar o lugar de fala e espacial de

onde a análise de Michel Foucault se concentra. No estudo o autor está pensando as sociedades

européias, que passaram ou estão em fase de desenvolvimento de práticas industriais e

capitalistas consolidadas. Essa observação, já evita de antemão a generalização da aplicação de

suas noções sobre a medicina. A partir dessa explicitação, podemos redigir que o epicentro de

estudo do autor está em perceber a construção de mecanismos ou dispositivos de poder, que

façam valer as orientações da medicina. Pois como pode a figura do médico ganhar notoriedade,

em relação à mudança dos hábitos e habitus (ELIAS, 2001: 85-86) na sociedade contemporânea?

O discurso médico se constrói para Foucault de diversas maneiras, não sendo propriedade

do Estado “iluminar” a classe médica a partir da valorização dos cursos e faculdades de medicina.

Da medicina popular, praticada por diferentes ordens, à medicina social podemos notar que existe

a produção de mecanismos, que buscaram consolidar a última forma de medicina no século XIX.

Foucault, assim como Rosen, limita a discutir o caso da afirmação da medicina social em

três países europeus: Alemanha, França e Inglaterra. A partir do estudo desses três lugares,

Foucault mostra as especificidades e singularidades da afirmação médica dos espaços, hábitos e

práticas sociais. Apresentando a linha de raciocínio do autor, colocamos as três noções para

formação da medicina social, a saber:

1. Medicina de Estado – Alemanha

2. Medicina Urbana – França

3. Medicina da Força de Trabalho - Inglaterra

A partir da orientação proposta acima, buscaremos mostrar as peculiaridades do saber

médico, que inter-perpassam a realidade político-social. Em relação à Alemanha, Foucault não

negligência a contribuição de George Rosen, ao afirmar, que na Alemanha do oitocentos existiu

uma estatização da medicina. Como nas obras de Foucault o Estado não é revestido de poder

concentrado, o autor argumenta que a construção do saber médico estatal produziu a gênese de

diferentes micro-poderes. Para ele:

“Com a organização de um saber estatal, a normalização da profissão médica, a

subordinação dos médicos a uma administração central e, finalmente, a integração de

vários médicos em uma organização médica estatal, tem-se uma série de fenômenos

inteiramente novos que caracterizam o que pode ser chamada a medicina do

Estado.” .”(FOUCAULT, 2002: 84)

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Como vemos, a medicalização da sociedade, não define, a priori, uma ditadura dos

médicos contra as artes de curar vigentes da sociedade. A medicalização da sociedade é a

maneira institucional do segmento médico da sociedade sobrepor seu saber sobre as demais artes

de curar. Nesse ponto, a medicina do Estado planeja instaurar “quadros de verdade”, como forma

oficial de se implantar a profilaxia de uma época. Em linhas gerais, nas sociedades onde ocorre

um processo de legitimação da medicina e do ofício do médico preexiste a vontade de verdade,

criada pelos médicos em desautorizar as práticas não oficiais.

Já em relação ao ambiente francês, a medicina social está atrelada essencialmente as

transformações urbanas, no século XVIII. Em sua concepção as modificações da urbe são fatores

das esferas econômicas e políticas, respectivamente. Para compreendermos o desenvolvimento de

tal prática médica na França, propomos a seguinte indagação: Para que serve uma medicina

urbana dentro do modelo francês? Para facilitar a visão do autor, apresentamos três conjunto de

respostas para a problemática, a saber:

1. “Analisar os lugares de acúmulo e amontoamento de tudo, que no espaço urbano,

pode provocar doença, lugares de formação e difusão de fenômenos epidêmicos ou

endêmicos.” .”(FOUCAULT, 2002: 89) Notamos nas palavras do autor, que para a

medicina urbana, a doença passa a ter lugar, fortalecendo a teoria da doença pela

concepção miasmática. Onde a exemplo, a criação dos cemitérios deve ser controlada,

para que não contamine o ambiente social. Muito semelhante as políticas dos leprosários

estudada por Jacques Le Goff na Idade Média, que ficavam numa estratégia de “nem tão

longe, porém não perto”, para criar no imaginário coletivo o medo da doença.

2. “A medicina urbana tem um novo objeto: o controle da circularização. Não da

circularização dos indivíduos, mas das coisas ou dos elementos, essencialmente a

água e o ar.” .”(FOUCAULT, 2002: 90) Outro imperativo da teoria miasmática, é que as

cidades precisam de “pulmões” para respirar. O fechamento, as pequenas ruelas são

obstáculos para o bem-estar da saúde pública. Vejamos, que o século XIX adere os

hábitos dos boulevard, ou seja, grandes avenidas para que a cidade respire de forma

adequada. Novamente, a doença passa ter um caráter de climatério e mesológico.

3. “Outro grande objeto da medicina urbana é a organização do que chamarei

distribuição e sequências.” .”(FOUCAULT, 2002: 91) Nessa visão, abordaremos a

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distribuição dos espaços na cidade. Como projetar os meios hidráulicos potáveis longe

dos espectros infectos do meio? Essa indagação é o fio condutor das políticas higiênicas

do século XIX, pois logo, não esqueçamos que a idéia de miasma é prova epistemológica

para asseverar a propagação de doenças.

Em suma, podemos concluir em relação a medicina urbana, que seu escopo reside em se

preocupar com os impactos que o meio social, físico e urbano podem acarretar a saúde da

população. O que faz com que medidas, como a criação de uma medicina de caráter policial,

passem a vigorar no controle das populações da cidade. Por fim, passamos a apresentar a

medicina do modelo inglês.

A medicina da Força de Trabalho terá como objeto a pobreza. Segundo Michel Foucault a

pobreza na segunda metade do século XIX passa ser vista como perigo. São as “classes

perigosas” como conhecemos na historiografia dos “excluídos” da história. Para analisar a

questão da pobreza, tomamos como base a idéia de controle estudada por Jeremy Bentham. A

idéia do panóptico esboçada por Bentham, ainda no século XVIII, mostra como o conceito de

vigilância é instrospectada no sujeito. Segundo Bentham como função pragmática o panóptico se

apresenta com a seguinte desempenho:

“A moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução difundida; os

encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve ser, sobre uma rocha: o nó

górdio da Lei dos Pobres não cortado, mas desfeito – tudo por uma simples idéia de

arquitetura.” (BENTHAM, 2000: 15)

Retomando as palavras do utilitarista Bentham, os pobres passam a ser vigiados pelo

Estado, como uma forma de controle, que se dá através de diferentes mecanismos. Para Foucault

a partir do advento da medicina social por meio da força de trabalho, uma nova relação é criada

entre médicos e enfermos. Segundo o autor cria-se um sistema de assistência da medicina para a

população menos abastada. Numa assistência que permite e objetiva a sujeição dos corpos aos

vários controles do médico.

Por fim, a medicina da força de trabalho cria as condicionantes do que poderíamos

estabelecer como um incipiente dispositivo para o favorecimento de uma medicina do trabalho,

onde a pedagogia não está centrada de fato na saúde para o trabalhador, mas no trabalhador com

saúde para o trabalho. A mão-de-obra deve está apta para a produção, sem fornecer prejuízos aos

avanços da lucratividade e deficiência do mercado. É por isso, que o Foucault afirma, que a

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medicina da força de trabalho foi a mais profícua entre as demais, pois tem a figura do

proletariado se afirmando ao longo do século XIX. Sendo assim, podemos sintetizar, que a

medicina proposta pelo modelo inglês tinha como interesse o controle da saúde e do corpo das

classes pobres, para persuadi-los e domesticá-las para o trabalho.

Considerações Finais

Resolvemos concluir nosso texto, a partir das problematizações que Dorothy Porter faz ao

identificar as noções de Rosen e Foucault como heróico e anti-heroíco. Para isso colocaremos a

interpretação do historiador André Luiz Vieira de Campos, que se insere nos estudos da Saúde

Pública no âmbito das relações internacionais. Campos estuda em seu trabalho a atuação do

Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), no qual insere a questão da saúde e medicina no plano

internacional. Mas o que nos interesse nessa análise é a sua leitura das colocações da Porter.

Segundo ele:

“A crítica tanto da tradição roseniana quanto da foucaultiana também se faz nos Estados

Unidos e Europa e recentemente foi sistematizada por Dorothy Porter numa coleção de

ensaios cujo objetivo era exatamente “testar” algumas teses fundamentais de Rosen e

Foucault em diferentes tempos e realidades histórico-geográficas. Tais ensaios mostram

que certas teses de Rosen – [...] - não são verdades que possam “aplicar” a qualquer

época ou realidade cultural 2 . Da mesma forma, a noção foucaultiana [...]”(GOMES, 2000:

196)

A crítica que fazemos ao trabalho de Porter é que nenhuma teoria pode ser aplicada a

qualquer época, para isso existe a noção de historicidade dos objetos da História. George Rosen

tanto como Michel Foucault analisaram localidades delimitadas – Alemanha, França e Inglaterra.

Logo a idéia de medicina instaurada pelo século XIX não dará conta dos objetos de uma História

da Medicina e dos discursos médicos do século XX. Foi carente na abordagem da autora não

considerar a historicidade dos objetos, o que acabou produzindo uma generalização. Como

colocamos na introdução de nosso artigo, Rosen e Foucault foram apontados aqui, como

possibilidades de construção para o campo epistemológico de composição de análises do discurso

médico. Assim ainda temos, a contribuição dos historiadores da História Social da Medicina, que

levam em consideração as práticas ou artes de curar dos médicos oficiais e dos praticantes de

uma medicina não oficial. Em termos de historiografia brasileira, ressaltamos o estudo de Tânia

Salgado Pimenta no artigo, “Transformações no exercício das artes de curar no Rio de Janeiro

2 Grifos nossos

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durante a primeira metade do Oitocentos”, ao analisar a atuação dos terapeutas não-oficializados

exercendo sua arte de curar, em pleno momento de normatização da prática médica oficial. Ainda

sem esquecer a relevância dos trabalhos de Sidney Chalhoub e Flávio Edler em relação a

contribuição da profissionalização da medicina no Brasil.

Por fim, o objetivo desse artigo é chamar a atenção de que a utilização de George Rosen e

Michel Foucault deve implicar para o trabalho do historiador uma série de precauções

metodológicas, para não cair na crítica – infundada ou não – de que o estudo de Rosen é visto

como a vitória do moderno, civilizado contra a barbárie criada antes do Estado Moderno.

Enquanto as leituras a partir de Foucault são taxadas como privilégio do discurso perante a

prática. O que nesse ponto, consideramos infundado, pois só existe saber e disseminação de

conhecimento se ele é praticado. Chamamos atenção aos críticos de Foucault, que façam uma

arqueologia do seu texto, é perceber que suas obras possuem fases, ou melhor dito, lugares de

fala: um momento arqueológico, genealógico e um estudo aprofundado do bio-poder. É preciso

situar, portanto, de que Michel Foucault está se trabalhando.

Referências Bibliográficas:

Referências utilizadas na elaboração do artigo:

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Horizonte,2000.

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MEINECKE, Friedrich. El historicismo y su génesis . México: Fondo de Cultura

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