Tunga Deleuze

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82 concinnitas Tunga. Os Heraldos, 1999 Foto: Ivana Monteiro

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Tunga. Os Heraldos, 1999Foto: Ivana Monteiro

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Instaurando com palavras: as narrativas e fabulações de Tunga

ano 5, número 6, julho 2004

Instaurando com palavras:as narrativas e fabulações de Tunga

Ivana Monteiro*

O artigo tem por objetivo analisar os textos de Tunga,

artista plástico brasileiro contemporâneo. Propõe-se

pensar sua produção enquanto instauração perguntando

sobre qual seria a especificidade de seus textos. Para

responder a essa pergunta são utilizados conceitos como

instauração, fabulação e experimentação. Também são

pensados os “cadernos-livros”, de Artur Barrio, além da

relação entre as narrativas de Tunga e a fotografia.

Tunga, texto de artista, instauração

A fabulação criadora nada tem a ver com uma lembrança mesmoamplificada, nem com um fantasma1 (Deleuze-Guattari)

Instaurar pode ser escrever um texto. A obra do artista ganha corpo em

suas palavras e o discurso poético do artista faz parte de sua obra. Sua

obra poética vem através de carta, livro e voz falada, em entrevistas à

imprensa ou em seus textos publicados, como em Barroco de Lírios. O texto

instaura,2 propõe algo, detona algo, dispara... Cria condições fecundas a

um acontecimento.

Em Barroco de Lírios, Tunga traz essa escrita poética, ele recria mitos

e lendas. O trabalho de Tunga é pensado de uma forma orquestral. Seus

trabalhos não funcionam como um organismo fechado, mas formam um

conjunto de trabalhos em contágio mútuo. E, nesse conjunto, cada

trabalho termina relendo e influenciando outro, passado ou que ainda

vai ser criado.

A narrativa corre paralela à materialização das lendas recriadas em

personagens virtuais vistas apenas em fotos e também em performances.

Lúcido-Nigredo é uma instalação envolta em muitas narrativas: a história

da fuga de São João da Cruz, ajudado por Santa Teresa, e a referência a

objetos de cozinha encontrados pelo caminho. Somadas a essas referências,

há as fotos de ninfas derramando líquidos claros e escuros em vasos

transparentes (Temperance). Em Lúcido-Nigredo há sempre a convivência

de dia e noite, de claro e escuro, de luz e sombra, sobrepostos e

simultâneos, e as sombras de mulheres são vistas apenas em fotografias

que o artista expõe no catálogo de Assalto, e no catálogo Tunga, de sua

exposição em Paris, na Galerie Nationale du Jeu de Paume, em 2001. Há

um labirinto de entradas e saídas difusas, ao se percorrerem essas histórias

* Ivana Monteiro graduou-se em DesenhoIndustrial pela ESDI/UERJ em 1996. Concluiua Especialização em História da Arte eArquitetura no Brasil na CCE/PUC-RJ em 2000com monografia intitulada Imersão na obra deTunga (com orientação da profa. Sheila Cabo).Em 2002 concluiu o mestrado em História Socialda Cultura pela PUC-RJ com a dissertaçãoA experimentação ocasional de Tunga: ainstauração da obra de arte (com orientaçãoda profa. Cecília Cotrim).1 Deleuze, G. e Guattari, F. “Perceptos, Afectose Conceitos” in: O que é a filosofia?. p. 222.2 A discussão sobre o conceito de instauraçãofoi desdobrada por duas autoras, Suely Rolnik eLisette Lagnado, no artigo “Instauração: umconceito entre instalação e performance”,publicado em Arte Contemporânea, Basbaum(org.). Para Rolnik, a operação de umainstauração relaciona-se com a política e com atentativa de se criar resistência aos mecanismoscapitalistas de apropriação de subjetividades.Para Lisette Lagnado, a instauração surge comoum novo conceito que se distingue das categoriasde performance e instalação. E Tunga lança essaproposta como um questionamento dasinstituições, rompendo com as fronteiras queseparam a arte da vida, a arte de outros domíniosdo conhecimento, e propondo um lugar onde anoção de autoria individual dê vez a múltiplasvozes, numa poética coletiva. A instauração éantes de tudo um convite a experimentar.Experimentar esse encontro com uma obraprovocadora de pensamento.

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e narrativas não lineares que costuram as obras. É um verdadeiro Jardim

das Veredas que se bifurcam, para citar Borges, autor muito apreciado

pelo artista.

Tesouro-Besouros é um texto de artista no qual nos deteremos aqui por

um breve momento. Essa narrativa apresenta, entre os seus elementos,

conexões com vários trabalhos de Tunga, incluindo a Tereza.

Esse texto de artista é composto de relatos da viagem de Tunga ao

Norte, o que “resultou” no trabalho Tesouro-Besouros.3 Tunga utilizou

besouros, de uma certa espécie, os necrófilos e coprófilos Scarabacus

Tucurui Sagrado, apelidados de rola-bosta. Dentro dessa narrativa, vários

procedimentos podem ser notados. O texto é uma fabulação, em que há

a mistura de sonho e realidade. A febre, a náusea, narradas pelo artista

em seu texto, entram como parte do trabalho na descrição da experiência

de Tunga em sua viagem à Amazônia. Odores, perfumes, temperaturas

variadas e suas anotações constituem esse texto-obra. Enquanto o

escaravelho é conhecido principalmente como símbolo egípcio, “o

símbolo do Sol e, ao mesmo tempo, da ressurreição”, o escaravelho-

bosteiro estaria ligado ao vício, e, segundo o Dicionário de Símbolos, “o

simbolismo desse animal é tomado na Irlanda, unicamente no sentido

desfavorável”. O solar (escaravelho) e o putrefato (o rola-bosta) são

símbolos ligados a esse trabalho. Também encontramos referências ao

princípio do eterno retorno, uma vez que, no Egito, “os escaravelhos

eram usados como amuletos eficazes – os insetos ocultavam em si o

princípio do eterno retorno”.4

Esses rola-bostas, em especial, se aproveitam da matéria putrefata para

fazer seu alimento. E Tunga usou bolas de sabonete no lugar das malcheirosas

esferas produzidas pelos besouros.Ainda febril, recobrei Manaus, onde uma surpresa me

aguardava. Adentrando meu quarto, fui invadido por uma avalancheodorífera.

A surpresa, no entanto, não vinha dos odores, mas de sua fonte:meus três espécimes de rola-bosta haviam obrado imensas esferas,no tamanho de cabeças humanas. Eles se esforçavam em agregaros três volumes empurrando cada qual uma esfera, em direção àsoutras duas.

Peculiar era o fato, pois as pelotas haviam sido construídas com asaromáticas matérias de meu mostruário.

Pasmo e atônito, após uns minutos saí do torpor. A visão dointumescido triângulo me devolveu a lembrança das febres malárias.Impulsivamente e sem hesitar enchi da ampola de clorofórmio aseringa e, atravessando uma a uma a carapaça dos coliópteros, dei-

3 Tesouro-Besouros foi um trabalho desenvolvidopara a Eco-92.4 Jean Chevalier, Dicionário de símbolos.

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lhes a morte. Passei longas agulhas de que dispunha para, naquelamacabra posição, perpetuar a obra que denominei Tesouro Besouros,que agora vos apresento.5 (Manaus, 8 de fevereiro de 1992. Tunga)

Mas muito da experimentação acontece pela fabulação.6 O fato de haver

várias narrativas circundando a obra permite uma experimentação tanto no

texto quanto nas instaurações, onde essas narrativas ganham outro corpo,

ou “carnação”, como os sinos e caldeirões de Resgate, que são maquiados

de base e batom, ganhando aspecto de carne viva. Em Tunga, há a presença

de espelhos de carne: gêmeas. Por isso, as gêmeas são tão fascinantes,

parecem saídas de livro, e a obra revela-se um livro, uma grande narrativa

cujos capítulos não lineares vão-se revelando por partes, como num livro

de RPG (Role-Playing-Game), em que o leitor pode pular de uma página a

outra sem que a compreensão seja prejudicada – levado por um jogo de

dados, o acaso –, mesmo porque não há nada a compreender, só a

experimentar. E quanto mais se caminha perambulando (como as gêmeas

siamesas no vídeo O Nervo de Prata, de Arthur Omar), mais se encontram

personagens, mitologias, animais e ligações entre esses elementos – ligações

essas que são sempre reformuladas pelo artista que quer nos confundir com

uma das visões de sua obra. No livro Assalto, assim como em outras

publicações do artista, a visão de Tunga é dada por imagens e relações

entre as imagens. Além disso, o artista nos confunde com variações nos

títulos dos trabalhos, que mudam freqüentemente. Por exemplo, em Torus,

aliás Les Bijoux de Mme. Sade, a ênfase é dada ao aliás, ressaltando a

múltipla possibilidade de se nomear um mesmo trabalho.

A fabulação seria um pretexto para a experimentação? Concebemos a

fabulação aqui como sendo ela mesma uma experimentação. Mas

poderíamos ressaltar também que as estratégias nessa obra são às vezes

mais importantes – juntamente com as ações – do que as próprias

narrativas.

Buscando o conceito em Bergson – “(...) toda fabulação é fabricação

de gigantes”7 –, diz Deleuze:Bergson analisa a fabulação como uma faculdade visionária

muito diferente da imaginação, que consiste em criar deuses egigantes, ‘potências semipessoais ou presenças eficazes’. Ela seexerce inicialmente nas religiões, mas desenvolve-se livremente naarte e na literatura.8

Instaurar é uma ação (um gesto) que põe em evidência o momento,

e, em Tunga, isso vem junto com um repertório de ações que por vezes

se repetem: descascar cebolas, despir roupas, martelar muros, quebrar

vidros, besuntar de gelatina e maquiar objetos (sinos, vasos, cálices)

e pessoas, derramar líquidos em vasos transparentes, preparar sopas,

5 Tunga. Tesouro Besouros. In: Alphons Hug (org.)Arte amazonas. Instituto Goethe de Brasília,1992.6 Ver Deleuze, A Imagem-Tempo, p. 264.7 Deleuze. “Percepto, Afecto e Conceito” in: Oque é a filosofia? p. 223.8 Deleuze cita Bergson. “Percepto, Afecto eConceito” in: O que é a filosofia? p. 223.

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trançar, enfim, gestos comuns a várias instaurações de Tunga, formam

um repertório de procedimentos que compõem uma instauração. Nesse

aspecto, a leitura da narrativa fica num outro plano, numa outra

camada, pois os mesmos gestos podem servir a uma ou outra história.

Por exemplo, o trançar cobertores (Tereza,1998) e o trançar charutos

(Barroco de Lírios – Bienal de Havana, 1992) são um mesmo gesto para

duas histórias diferentes que mantêm a ressonância entre essas

fabulações.

Há Sereias e sereiA, o texto e a instauraçãoReal, pois, é a existência desses seres, tanto quanto a de

um camundongo ou de uma girafa, por mais bizarros queaparentem. Por longo tempo, temos nos ocupado da hipóteseconstrutiva desses seres, minuciosas investigações, laboriosassuposições, meditação, reflexão e trabalho... É com satisfaçãoque damos a público o parcial resultado do logro. Eis aqui imagense o breve protocolo da experiência. Memorável foi a noite do dia9 de abril de 97. Do bojo dela, por preciosos instantes podemosrealizar, sob rigoroso controle, a tão esperada existência deSEREIAS! Pregnantes pretendentes habilitadas pela luz rendemo acaso. Ingerindo água crua, fazem da pele o véu da tarde.(Tunga: sereiA9)

Neste texto de artista, sereiA, Tunga realiza uma instauração com

palavras: não é um texto sobre a instauração; o próprio texto instaura.

Nele, o artista assume que sereias não são lenda, mas fato. A instauração

que ocorreu no dia 9 de julho de 1997 é descrita como uma experiência

vivida, real, e as imagens são a prova da existência de sereias.

Artifício ou ficção, feitiço, mito que antes era, tornou-se um fato.

Negligenciadas não foram do passado as referências. Um leve desvio

surpreendeu o tal passado.10

Esse leve desvio pode fazer parte do percurso da instauração. O desvio

provoca a queda ou o sobressalto, o susto, o encontro disruptivo. A

instauração provoca um desvio. O desvio nos faz pensar, reatualizar o

mapa de nosso percurso.

Gelatina, sais de prata... Tunga cria um ambiente propício a uma

instauração, à fecundação, ao nascimento de um híbrido, de algo novo.

Nas palavras do artista: “Um orvalho espargido cinge, é o índice dos

plânctons pulverizados, férteis indutores da transmutação”.11

Pergunta: o que, no ambiente de uma exposição de Tunga, induz à

transmutação, à alquimia, à instauração?

Em SereiA, o artista escreve:“É com satisfação que damos a público o

parcial resultado do logro”.

9 Tunga: SereiA.http://mosaic.echonyc.com/~trans/proyecciones/LaOfic ina/Tunga/Tunga02.html.10 Id. ibid.11 Id. ibid.

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Na experiência, a instauração Há Sereias, houve a extirpação do fêmur

das mulheres-modelos-ninfas-sereias. Conforme a descrição do artista, o

osso em seguida foi usado na maceração do enxofre – de onde teria surgido

a cauda prateada. A fórmula seria: sereia = mulher – fêmur + a produção

alquímica da cauda prateada.

Com a instauração, Tunga parece querer mostrar que o mito é uma

realidade outra; todavia, uma das realidades possíveis (mito = realidade),

comprovando com a experiência a existência desses seres. Em outras

palavras, Tunga estaria dizendo que, até prova em contrário, qualquer

realidade é mito, enquanto não se experimenta. Qualquer crença que não

passe pelo crivo da experimentação é pura lenda; ou, quando se leva a

cabo uma experiência, o que estava no papel (mito ou protocolo de

experimentação) passa a ser índice de uma realidade comprovada, e não

mais uma vaga idéia, um sonho, uma lenda... Em sua obra mesmo,

encontramos outros índices de conexões entre esse e outros mitos/

realidades instaurados pelo artista. Por exemplo, os tais ossos (fêmures

retorcidos) encontram-se, por sua vez, em Les bijoux de Mme. Sade. Outra

referência a ossos encontra-se na Odisséia, de Homero, no trecho em que

Ulisses passa pelo prado das sereias. Perto delas há montes de ossos

humanos, provavelmente das “vítimas”, os homens capturados por seu

canto sedutor:Encontrarás primeiro as Sereias que encantam a todos os

homens que se aproximam delas. Aquele que, sem saber, seavizinhar delas e lhes ouvir a voz, esse não voltará para casa, nema mulher, e os inocentes filhos o rodearão alegres; mas seráencantado pelo sonoro canto das Sereias, que estão assentadasnum prado, tendo em volta um grande monte de ossos de homensem putrefação, cujas peles vão desaparecendo. Passa de lado etapa os ouvidos dos teus companheiros com melíflua ceraamolecida, para que nenhum deles as oiça. Mas tu ouve-as, sequiseres, depois de te prenderem na ligeira nave os pés e as mãos,estando direito, junto ao mastro, e de teres sido ligado com cordasa ele, para que te possas deleitar a ouvir a voz das Sereias. Se,porém, pedires e ordenares aos companheiros que te soltem,prendam-te então com mais ligaduras ainda.12

Há Sereias e Semeando Sereias – rochas, recifes, beira do mar, prótese

da cabeça de Tunga, modelos instaurando lendas na passarela; fotos/

figurantes/ “público”/espectadores/o artista momentaneamente

protagonista da ação, fotos, elos de conexão podem estar em qualquer

meio: foto, filme, música – formando um rizoma. O artista delineia um dos

trajetos possíveis. Mas cada um (público, figurantes, “agentes”, etc.) deve

saltar sozinho: spy-hop. Contaminação moda-arte.12 Homero. Odisséia, p. 222.

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As narrativas são atualizadas no momento da instauração. Nesse jogo de

relações mutáveis, intercambiáveis, as novas combinações e a atualização das

narrativas produzem novas histórias, seja pela contaminação, seja pelo choque

que nasce do/no corpo, suscitado pelas sensações. Tunga reconta suas histórias,

reconta o mito das sereias e outras lendas inventadas por ele.

Montes de ossos também estão em ÃO. A imagem do túnel circular de

ÃO pode ser comparada à de um toro. No livro Barroco de Lírios, a imagem

de um toro circular aparece sobreposta à de um crânio, ligado à narrativa

de ÃO. A imagem resultante dessa sobreposição de transparências

fotográficas, no livro, é a de um crânio em que vemos o negativo de um

toro circular: a imagem de uma tautologia, de uma idéia fixa. É nesse

sentido que queremos mostrar aqui como a foto instaura:13 como, em

Tunga, as imagens combinadas, sobrepostas ou rebatidas em seus livros

engendram uma nova – outra, muitas outras realidades. De forma análoga,

no cinema-sem-filme, ou seja, na instauração de Tunga, a combinação de

diversos elementos heterogêneos e o agenciamento de diversas vozes,

pessoas, corpos, idéias e formas (objetos, próteses, gelatinas, elementos,

maquiagem, sinos, trança) criam um “novo mundo” e talvez, assim como

escreve Suely Rolnik, ativem o corpo vibrátil, tragam a experiência da arte

para a vida.

Os procedimentos do artista encontram-se tanto na instauração quanto

em seus livros, esculturas (por exemplo: vasos e esculturas que aparecem

entrelaçados com cobras) e em sua fala.

Fabulação+instauração+experimentação:a narrativa ficcional ganhando corpo na instauração

Em Tunga, se relacionarmos essas duas obras, podemos puxar daí fios de

conexões: True Rouge (performance de 1997): reservatório de sangue. O tesouro

do Nosferatu – corpos pálidos, secos, vítreos, o corpo sem sangue, sem vida;

vidros coloridos, o índice de um encontro; percurso desses corpos. Pode-se

encontrar a ressonância de vida na sopa, true-rouge, e os restos mortais dos

corpos sugados em O tesouro do Nosferatu (Nociferatu, Jeu de Paume, 1999-

2001). Formas cujo percurso é impresso no vidro – índice de um contato. Fica

a marca: a fenda. Permanece para sempre essa abertura – memória sempre

acessível de um contato prévio: a mordida. Uma ligação permanente se

estabelece. As vítimas voltam a oferecer seu pescoço: atração pelo abismo. As

sombras no vidro são índices: memória de um contato oposto ao de True

Rouge=ausência de vermelho. Que cor tem o vidro de Nociferatu? Vidro colorido.

Gelatina e placas de elastrômero. O negativo também em vidro. Os vidros seriam

o espectro de corpos das vítimas, corpos desprovidos de sangue – formas

femininas: cálices, cristais, memória vítrea.

13 Foto que instaura, cria mundos, referênciasna realidade. Tunga apresenta fotos comodocumentos que “comprovam” a realidade domito.

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As conexões são livres – o artista não as detém; a obra está em aberto.

Múltiplas leituras são possíveis; estão em função do corpo que faz o percurso.

Tudo depende de quem salta e de sua relação com os outros membros do

grupo, como fazem os golfinhos. É na relação que se percebe uma ou outra

densidade, que se tecem infinitas conexões. Sempre encontraremos coisas

de um significado especial para nós. A instauração deixa um anzol solto no

espaço, anzóis e esponjas de True Rouge. Os corpos que passarem por ali

desavisados poderão ser capturados e absorvidos ou não. A disponibilidade

é imprescindível, mas o efeito plástico-visual também se oferece e pode

captar o espectador.

O artista compõe com; portanto ecoa outras vozes, dá voz a minorias: a

trabalhos que não vieram à luz antes, ou vêm à luz em estágio embrionário.

A fabulação pode proporcionar uma experiência tal qual sentida no corpo

em tempo “real”. O sonho também elabora. Na fabulação, as experimentações

acontecem na mente e depois chegam ao corpo. Será que somente depois?

Estamos mais próximos ao everything simultaneously present, escreve Guy

Brett. Eco de sua voz, mais um entre vários, várias vozes que há em sua

obra – autoria coletiva.14

Seria então o pensamento – ou o statement, como diz Tunga –

corporificado nas ressonâncias de obras-instaurações que poderá produzir

resultados efetivos.

Aqui lembramos que, em Há Sereias, mitos e lendas são reinstaurados

por Tunga. Existe o encantamento. Assim como O tesouro do Nosferatu,

cujo título remete a histórias de vampiros, esse também é um mito de

sedução – atração pelo abismo. A vítima é presa a seu “malfeitor” por um

elo macabro. Por que as vítimas oferecem seu pescoço? Por atração

magnética. Não há recusa, mas sim um encantamento, um perder-se de si

mesmo no outro... Captura sem resgate.

A foto-instauraçãoPensamos na fotografia – sua presença povoa a obra de Tunga.

Pensamos em instauração: de que modo estes dois procedimentos –

fotografar e instaurar – estão ligados? Seria a fotografia também uma

instauração? De que maneira Tunga faz uso da fotografia? É como um

registro? Não apenas: Tunga também incorpora a fotografia como

mecanismo de fabulação. Ela se insere em sua obra de maneira análoga

aos textos, às narrativas. Promove uma fabulação através de imagens,

imagens que contam histórias entrelaçadas com muitas outras histórias.

As imagens têm seu próprio meio de comunicar. Falam por si. Dispensam

legendas. As legendas são os títulos dos trabalhos, que, por sua vez, são

mutáveis. Entrelaçam-se os fios de histórias contadas por texto (palavras)

14 Questão da autoria, ver também: Deleuze, G.e Guattari, F., Mil Platôs vol.1, cap.1; Kafka, poruma literatura menor e Crítica e Clínica.

Tunga. Muro, Nova Orlândia, 2001Foto: Ivana Monteiro

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com os fios de histórias contadas por imagens (foto-instaurações). A foto-

instauração se dá quando essas novas conexões se estabelecem por

imagens, quando a fotografia revela um novo elo entre os trabalhos

(rizoma).

A presença da fotografia na obra de Tunga pode ser pensada enquanto

instauração. Visto que a instauração não diz respeito aos materiais, nem às

técnicas, mas à operação em jogo, quase qualquer gesto pode instaurar. A

maneira de apresentar uma foto pode instaurar. Nesse caso, aconteceria o

fenômeno da foto-instauração.

A foto-instauração seria o click – o ato – e mais seu efeito no tempo: a

ressonância. Em Tunga, há fotos instauradas em livros do artista – onde

rebatimentos/espelhos contam a versão do artista para uma possível leitura

de sua obra; em Barrio, há os Registros, e as fotos coladas nos cadernos-

livros; em Cabelo, a fotografia às vezes aparece em potes de vidro15

(semelhantes aos molotovs,16 vidros com materiais orgânicos que o artista

conserva há anos).

Na obra de Cabelo, apontamos uma situação poética próxima a uma

reatualização de um mapa. Na performance-show-exposição (realizada na

Rua do Rosário, em frente à Galeria Paulo Fernandes, onde estavam expostos

os desenhos de Suíte Volátil, em março de 2002), Cabelo, em dado momento,

mostrou uma foto levada por um “carteiro” que, segundo o moço, era “a

foto do Cabelo amanhã”. A foto, nesse caso, funcionou como uma cartografia

futura, mostrando o artista com uma tesoura na língua. Esse é apenas um

detalhe de uma conexão, possível, entre a fotografia e a instauração.

Migrando para a obra de Barrio, uma possível ramificação dessa discussão

– sobre foto-instauração e sobre a própria expansão do conceito de

instauração – seriam os registros – Cadernos-livros. Cadernos-livros são

foto-instauração? Expandindo o conceito de instauração, podemos encontrar

ressonâncias entre esses dois procedimentos. Seriam os mesmos

procedimentos os usados por Tunga e Barrio (nas instaurações e nos

cadernos-livros, ou ainda nas T.E.?). A experiência ressoa tanto nas

instaurações quanto nos cadernos-livros.

Na foto-instauração, a maneira como essa fotografia é apresentada

acaba valendo mais do que o simples registro. Em Barrio, o que está em

jogo é a contaminação dessas fotos com a linguagem do caderno-livro e o

reprocessamento poético dessa experiência que ressurge, entendida como

imagem. Em seu trabalho, os registros são mais do que uma memória. O

eco/a ressonância dessa foto, filme em um quadro só. Cadernos-livros evocam

blocos de sensação.17

Em Desígnio, por exemplo, havia fotos fazendo parte da instalação/

instauração, e posteriormente essas fotos apareceram instauradas no

15 O trabalho de Cabelo apresentado junto coma música Pedaço de mim, de Chico Buarque, foiuma fotografia com pedaços de cabelo. A imagemsom de Chico Buarque. Paço Imperial, 2001.16 Alguns desses molotovs contêm até mesmocavalos-marinhos. Em outros trabalhos do artista,a fotografia aparece recoberta por fios de cabelos,como nos trabalhos feitos para a exposição Aimagem do som de Chico Buarque, com a músicaPedaço de mim, e na “foto do Cabelo amanhã”,mostrada durante a performance simultânea àinauguração da exposição Suíte Volátil, em marçode 2002.17 Deleuze-Guattari entendem por blocos desensação: “O que se conserva, a coisa ou a obrade arte, é um bloco de sensações, isto é, umcomposto de perceptos e afectos”. Ver: O que éa filosofia?. p. 213.

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caderno-livro da exposição. Em Sub – uma homenagem a Pierre Vogel,

fotografias aparentemente “inofensivas” de peixes no fundo do mar,

clicadas em Búzios quatro anos antes da exposição, foram reinstauradas

por Barrio num momento de recriação. Um agenciamento: foto + maneira

como foram expostas + visitantes + ausência de um livro de visitas, tudo

isso faz com que essas fotos sejam um novo momento, uma ressonância

do momento do click (fotografia X cinema sem filme), mas já com outro

valor, com outra carga.

Cadernos-livros são uma instauração silenciosa, porém eloqüente.

Tomemos como exemplo os cadernos-livros de 4 dias 4 noites: estão em

branco. Surto poético? A emoção não se traduz em palavras. Nem a

experiência.

Barrio utiliza café, sal, saliva e outros materiais em seus desenhos. Não

há desenhos, propriamente; o que, de fato, existe são os cadernos-livros,

que são o seu “ateliê”,

onde crio, projeto (Desígnio) etc., etc., e etc.________ Euescrevo, anoto, pondero, desenho, rasgo, lambo, e penso, penso(etc e etc......).............minha ação é o próprio trabalho em si,no fazer,.......faço intervenções no espaço ou ações, e as situaçõessão simples e banais situações numa tentativa de desorganizarpor um pouco que seja o cotidiano........ (Barrio18).

Em Barrio, a fusão entre desenho, fotografia e texto se dá nos

Cadernos-Livros, que, segundo o artista, são outro suporte para suas

“situações”. As fotografias, coladas em páginas já amareladas, ressoam

um tempo passado de uma experiência. Nessas páginas, elementos se

combinam: memória, escrita, imagem e rabiscos do artista. Há um híbrido

de linguagens. Os procedimentos do artista, ao criar seus cadernos-livros,

assemelham-se aos de Tunga em suas instaurações. As fotografias ali

ganham um outro status: elas interagem com as garatujas, com a escrita

do artista, com seu modo peculiar de grafar e com suas anotações. O

que temos em mãos, ao manusear esses cadernos, é bem mais do que um

simples registro. Neles, a obra parece se completar, se autovisitar, se

auto-elaborar. É um processo quase antropofágico, de reprocessamento

de experiências e anotações da própria obra. Quando uma imagem entra

em contato com outra que se avizinha, o que apreendemos dali? Contato-

superfície: as obras dialogam entre si, no silêncio desses cadernos que

gritam. O poeta-arqueólogo Barrio sabe escavar em sua memória, no

corpo de sua obra, elementos de força plástica, e nos oferece esses

elementos recombinados, mais densos ainda, quando nos mostra essa

grande mistura rica, que são os cadernos-livros. O peso de um caderno-

livro chega a incomodar,19 pois vem com a visceralidade que permeia

18 Entrevista concedida por Artur Barrio a IvanaMonteiro, via fax. Rio de Janeiro/Porto, 2000.19 Na entrevista do 4 dias 4 noites, publicada nolivro da Mostra Panorama 2001, Barrio contacomo a noção de peso mudou para ele, por estarcom a saúde debilitada: ”Eu peguei umlivro...pesava 20kg, um livro comum. Daí vêm,talvez, esses livros pesadíssimos...que têm 20folhas”.

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sua poética. Nesse ponto, lembra uma T. E.:20 as vísceras estão ali,

amarradas por uma corda, mas a trouxa está se abrindo e revela o que

tem dentro: carne crua. O folhear um caderno-livro pode ser uma

experiência bem forte. São vísceras de papel, impregnadas da crueza de

um passado experimentado até os ossos. Chegamos à cartilagem. Carne

crua: uma sensação. O artista nos deixa à beira desse abismo de

sensações.

Barrio acerta no grito. Os compostos de sensações são violentos. O

silêncio abafado dessas páginas chega a doer, ao saber que esses

cadernos-livros se encontram guardados em museus, sendo quase

impossível manuseá-los.21 “Cadernos-livros não são diário de artista”,

escreveu Barrio.22

Cadernos-livros promovem esse encontro (feixes de relações), assim como

as instaurações. São as relações entre, que criam e produzem sensações. É

por isso que pensamos os agenciamentos de Tunga e os cadernos-livros de

Barrio como um procedimento ressonante.

As fotografias, normalmente, são lidas como registro, documento.

Consideradas como instauração, são agentes elas mesmas, pois provocam

mudanças na leitura da obra, possibilitam novas leituras, novas

ressonâncias. Fotografias podem funcionar como “prova” da existência

de sereias (após ser realizado o experimento). Enquanto agentes,

instauram novos territórios e evocam blocos de sensações. Segundo

Deleuze-Guattari:As sensações, perceptos e afectos, são seres que valem por

si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência dohomem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado napedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio umcomposto de perceptos e afectos. A obra-de-arte é um ser desensação, e nada mais: ela existe em si.23

Para sair das percepções vividas, não basta, evidentemente,memória que convoque somente antigas percepções, nem umamemória involuntária, que acrescente a reminiscência, como fatorconservante do presente. A memória intervém pouco na arte. Éverdade que toda obra-de-arte é um monumento, mas o monumentonão é aqui o que comemora o passado: é um bloco de sensaçõespresentes que só devem a si mesmas sua própria conservação, e dãoao acontecimento o composto que o celebra. O ato do monumentonão é a memória, mas a fabulação.24

Cadernos-livros e instaurações são procedimentos que evocam esses

blocos de sensações, e não apenas uma memória. A fabulação cria. Objetos

de Tunga também podem assumir esse procedimento: um dente, um molar,25

evoca todo um bloco de sensações, fabulações e narrativas, que

20 As Trouxas Ensangüentadas, da década de1970, foram jogadas ao acaso e permaneceramincomodando muito tempo depois da ação inicialdo artista de jogá-las na rua, num processo deinterferência urbana que atingiu em cheio asegurança do MAM à época da ditadura. Barrioconta, na entrevista do 4 dias 4 noites, publicadano livro da Mostra Panorama 2001, que seusdocumentos foram até confiscados.21 Durante pesquisa para o livro da MostraPanorama 2001, MAM-São Paulo, tive aoportunidade de ver e fotografar algunsimportantes cadernos-livros de Barrio que estãono MAM-Rio (e fazem parte da Coleção GilbertoChateaubriand), incluindo os já citados cadernosI e II do 4 dias, 4 noites. Essas imagens podemser encontradas no livro citado, junto com aentrevista histórica do 4 dias, 4 noites.22 Fonte: Barrio. Acervo Roberto Pontual,Funarte. Agosto de 1978, mimeo.23 Deleuze, G. e Guattari, F. “Percepto, afecto econceito” in: O que é a Filosofia? p. 213.24 Deleuze, G. e Guattari, F. “Percepto, afecto econceito” in: O que é a Filosofia? p. 218.25 Tunga relata em Barroco de Lírios que o dentemolar, presente de seu dentista, continha o relevode antimônio de Revê-la antinomia. A Pinturasedativa, por sua vez, era impressa com o mesmopadrão do molar, e Tunga une os elementos dessafabulação no texto-narrativa que inclui a históriade sua ida ao dentista e as coincidências que daísurgiram.

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circularmente povoam Barroco de Lírios. São fragmentos que não são parte,

mas um inteiro, um bloco.

Cinema sem filme: o momento da instauraçãoEu sempre concebi esse tipo de obra, como a Tereza, a partir de umanoção de teatralidade que remete a Freud e a Wittgenstein. Para serum pouco mais simples, a idéia seria como dizer que se trata de umcinema sem filme, onde você faz parte da cena, ou um teatro semplatéia, sem público, sem nada. Essa concepção de teatralidaderemete à noção freudiana de teatralidade, à cena onde a coisaacontece, onde acontecem os fenômenos psíquicos. (Tunga26)

O tempo da instauração deve ser concebido como intensidade, e o espaço,

como imersão. E o cinema sem filme seria esse clímax de um agenciamento

coletivo, em que o texto ganha corpo, e novas fábulas se inventam nos

corpos presentes, nas relações entre esses corpos.

No cinema sem filme, há a articulação de imagens que são ações e

movimento. Cada “fragmento” de instauração é uma imagem que também

compõe a obra, juntamente com sons,27 “mantras”, e essas seqüências de

imagens de performances privadas são, enfim, reveladas nos livros do artista

que contam histórias através de imagens. Por vezes, um ou outro poema

as costura com linha trêmula. Por exemplo, no catálogo Assalto, o texto

do pai do artista, o poeta Gerardo Mello Mourão, “costurou” parte da obra

– unindo a Tereza aos utensílios de cozinha mostrados em Lúcido-Nigredo.

O cinema sem filme funciona com a contribuição de vários colaboradores

(músicos, poetas, bailarinos, figurantes, modelos, etc.).

A instauração atualiza a narrativa no tempo de um gerúndio. É narrativa

ou acontecimento? A narrativa seria algo linear, e o tempo de Tunga

parece ser o descrito por Guy Brett:28 everything simultaneously present,

ou “tudoaomesmotempoagora”.

A idéia de simultaneidade ligada a uma narrativa aparece também no

quase-cinema29 de Hélio Oiticica. Em QUASI-CINEMA, Block-Experiments, Hélio

Oiticica descreve como o acaso intervém na projeção dos slides:

2- Cada slide segue para o próximo na ordem numérica indicadana parte externa. Essa ordem resulta de uma semichanceoperation: a ordem em q foram batidos vem na ordem da caixa:os slides são retirados da caixa na ordem em q se encontram: àsvezes idêntica à das batidas: outras ligeiramente modificadas.Os slides não são “fotos dos arranjos de NEVILLE”: sãosimultâneos com eles – neles – q acidentalmente (os slides)hão de variar na duração projetada de acordo com quem projetae juntar-se à música q tem fita-track sempre maior q ½ hora(figure out!): SÃO MOMENTOS-FRAMES.30

26 Tunga-Luiz Camillo: entrevista publicada emAssalto, 2001.27 Reinaldo Laddaga ressalta o caráter de DJ deTunga, que estaria em sintonia com essasquestões.28 Brett, Guy. Everything Simultaneously Presentin:Tunga, 1977-1997. New York, Bard College,1997.29 Poderíamos tecer relações com o Quasi-cinemade Hélio Oiticica, NY, 1974. Hélio Oiticica criacom Neville de Almeida a experiência que intitulaos quasi-cinema, blocos de experiências, work inprogress, seqüência de espaços fílmicos. (...)Trashiscapes é a CC1. temos na capa da revistaNew York Magazine a foto de Buñel com umanavalha sobreposta à linha branca que corta oolho do cineasta como o olho cortado em ChienAndalou. O mesmo corte que Hélio e Nevillepropõem para a experiência cinema. Um corteque instaura uma outra forma cinema. Instaurano sentido do conceito de Lisette Lagnado.Lisette relaciona instalação e performance a partirda análise de obras que se constituem do espaço,com o espaço ao mesmo tempo que se atualizamno corpo do espectador. Espaço + corpo. KátiaMaciel in: ”O Quase-cinema de H.O.”. (http://www.estacaovirtual.com/eureka/).30 Hélio Oiticica, in: Hélio Oiticica (cat.), p. 178.

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Também pensamos que o cinema sem filme encontra ressonâncias no transe,

inventado por Glauber Rocha.31 Como diz Deleuze, Glauber fezO maior cinema de agitação que se fez um dia: a agitação não decorre maisde uma tomada de consciência, mas consiste em fazer tudo entrar emtranse, o povo, seus senhores, e a própria câmera, em levar tudo à aberração,tanto para pôr em contato as violências quanto para fazer o negócio privadoentrar no político, e o político, no privado (Terra em Transe).32

Pensamos que o cinema sem filme se aproximaria da noção de transe. Em

Tereza, por exemplo, encontramos o mantra-rock, que parece provocar um transe

coletivo. Próxima a essa idéia de colocar tudo em agitação, está a instauração.

Então, qual seria a especificidade de Tunga? (Há fabulação, ação,

continuidade, experimentação, interação...)

A instauração prevê a ressonância no outro, o devir. A instauração

inclui o devir (nesse agenciamento com outros corpos) e não se fecha;

abre-se para um novo momento.

Usando uma idéia presente no mito de Nosferatu, a instauração seria essa

primeira mordida que marca a vítima num elo contínuo. A mordida abre uma

fenda onde passa a existir uma conexão perigosa, semelhante ao contágio mútuo

31 Ver Deleuze. Imagem-Tempo, p. 265.32 Deleuze, Gilles. “Cinema, corpo e cérebro epensamento”. In: A Imagem-Tempo. p. 261.

1234567890123456789012345678901212345678123456789012345678901234567890121234567812345678901234567890123456789012123456781234567890123456789012345678901212345678123456789012345678901234567890121234567812345678901234567890123456789012123456781234567890123456789012345678901212345678123456789012345678901234567890121234567812345678901234567890123456789012123456781234567890123456789012345678901212345678

Tunga, Lucido Nigredo et son ombre,fotomontagem, Bienal de Lyon, 2000Foto: Ivana Monteiro

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(expressão de Tunga). A experiência não exclui a ressonância. O tempo está

suspenso e, como o instant past (de Cildo Meirelles33 ), temos aqui o present

continuous, o gerúndio, a permanência do ato inaugural – a instauração – no

que vem depois. Os “restos de performance” mantêm a carga magnética, imantados

com os efeitos desse ato inicial. Na instauração de Tunga feita em conjunto com

as crianças do Projeto Axé, A quietude da Terra, os tais “restos de performance”,

que ficaram expostos no museu após a instauração com os tambores, continuaram

a ecoar a bagunça daquele momento inicial, em que os meninos instauraram sons

de seu interior/exterior.

Por onde circulam as vibrações desse som? O ecoar do gongo, o batuque dos

tambores. Nas ladeiras contaminadas pelo ritmo do Olodum, a algazarra dos

meninos...?34 Seu trajeto desenha o mapa da experimentação, assim como a sutileza

dos véus líquidos das sereias. A memória líquida faz parte dessa trajetória vislumbrada

por golfinhos, que se percebem em salto: uma cartografia momentânea que se

congela num trajeto, um mapa que fica quando a experiência se completa. Mas é

evidente que em Tunga a experimentação nunca se completa, nunca se torna um

mapa fixo, cristalizado, apenas se redesenha constantemente, num mapa-líquido,

que evapora, em sendo nuvem, em configurações de nuvens, reaparecendo em

ferro fundido, em vidro e onde mais a fabulação permitir.

Immersions L. N.35 – nesse trabalho, a foto entra dando corpo a narrativas

ainda não reveladas. Corpos imersos se misturam aos vasos transparentes de

Lúcido-Nigredo.

BibliografiaBARRIO, Artur. Registros. Porto, Fundação Serralves, 2000 (cat.).

DELEUZE, G. A imagem-Tempo. São Paulo, Brasiliense, 1990.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? São Paulo, Ed. 34, 1992.

HÉLIO Oiticica. Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 1992 (cat.).

HOMERO. Odisséia. Lisboa, Livraria Sá da Costa-Editora, 1938. (Tradução do grego,prefácio e notas dos P.es E.Dias Palmeira e M. Alves Correia).

LAGNADO, Lisette: “A instauração: um conceito entre a instalação e a performance”,In: Arte Contemporânea Brasileira: texturas, dicções, ficções e estratégias. Basbaum(org.).Rio de Janeiro, Editora Contra Capa / Rios Ambiciosos, 2001.

OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986.

ROLNIK, Suely. “Despachos no museu: sabe-se lá o que vai acontecer...”, In: MORIN,France (org.). A Quietude da Terra (cat.). MAM/Bahia, Salvador, 2000.

TUNGA. Barroco de Lírios. São Paulo, Cosac & Naify, 1997.

TUNGA e BRITO, Ronaldo. O mar a pele. Ed. Pano de Pó - Coleção História do olho (s/d).

TUNGA. Galerie Nationale du Jeu de Paume, Paris, 2001 (cat.).

TUNGA. 1977-1997. Bard Publication Office, NY, 1997 (cat.).

ASSALTO. Tunga. CCBB-Brasília, Brasília, 2001 (cat.).

33 O trabalho Disappearing element/Disappearedelement (Imminent Past) de Cildo Meirellesapresentado na Documenta 11, em Kassel, 2002,– picolés de água – seria uma instauração? Umpicolé de água é muito digestivo, um poucodecepcionante. Tem-se a sensação do gelo, mashá ausência de sabor. Picolé de água (poético) =Gelo (vida, consumo, efêmero – a idéia doimminent past). Cildo Meirelles une os dois emais a questão política, ecológica, pois ofereceemprego – um gesto mais simbólico – aosdesempregados de Kassel, nas suas carrocinhasde sorvete – chamadas de Documento 11 –, eainda alerta para a questão da água – que estáameaçada de extinção no planeta. Cildo Meirellestambém convoca “figurantes”/desempegados deKassel e o “público” e oferece um alimento. Assimcomo Tunga e Barrio em Há Sopas. Além disso,em Cildo há também fabulações.34 A Quietude da Terra/ Projeto Axé, instauraçãode Tunga em Salvador, em julho de 2000.35 Tunga, Rio de Janeiro, 2001.