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TRÊS ARTISTAS E SEU FABULÁRIO ANIMAL THREE ARTISTS AND THEIR ANIMAL FABULARY Rosângela Miranda Cherem / UDESC Janaina Fornaziero Borges / UDESC RESUMO Os animais fabulosos são uma característica comum a três artistas do século XX, moradores da Ilha-capital de Santa Catarina, embora apresentem muitas diferenças, em termos de procedência e emergência, tanto em relação ao seu arquivo pessoal, como às soluções poéticas. Franklin Cascaes visibiliza desenhos e textos com seres mitológicos, num esforço para registrar a diversidade cultural do homem litorâneo catarinense. Ernesto Meyer Filho desenha e pinta com a minúcia de um ourives uma coleção de vidas rastejantes, voadoras e andantes, resultante de combinações como sereias anfíbias, anjas, centauros, dragões, unicórnios, rochas antropomórficas, tatus-lagartos, veados-bois, pássaros-borboletas. Eli Heil cria formas assumidas como fruto de sua imaginação, cuja cosmogonia inclui anfisbenas e mandrágoras, além de um pássaro e seu ovo gigante. PALAVRAS-CHAVES Franklin Cascaes; Meyer Filho; Eli Heil; Animais; História da Arte. ABSTRACT The fabulous animals are a characteristic common to three artists of the twentieth century, residents of the island-capital of Santa Catarina, although they have many differences, in terms of provenance and emergence, both in relation to their personal archive, as the poetic solutions. Franklin Cascaes visibilize drawings and texts with mythological beings, in an effort to record the cultural diversity of the coastal man Catarinense. Ernesto Meyer Filho draws and paints with the nicety of a goldsmith a collection of creeping, flying and walking lives, resulting from combinations such as amphibian mermaids, anjas, centauros, dragons, unicorns, anthropomorphic rocks, tatus-lizards, deer-oxen, birds-butterflies. Eli Heil creates forms assumed as the fruit of his imagination, whose cosmogony includes amphisbaenians and mandrakes, in addition to a bird and its giant egg. KEYWORDS Franklin Cascaes; Meyer Filho; Eli Heil; Animals; Art History.

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TRÊS ARTISTAS E SEU FABULÁRIO ANIMAL

THREE ARTISTS AND THEIR ANIMAL FABULARY

Rosângela Miranda Cherem / UDESC Janaina Fornaziero Borges / UDESC

RESUMO Os animais fabulosos são uma característica comum a três artistas do século XX, moradores da Ilha-capital de Santa Catarina, embora apresentem muitas diferenças, em termos de procedência e emergência, tanto em relação ao seu arquivo pessoal, como às soluções poéticas. Franklin Cascaes visibiliza desenhos e textos com seres mitológicos, num esforço para registrar a diversidade cultural do homem litorâneo catarinense. Ernesto Meyer Filho desenha e pinta com a minúcia de um ourives uma coleção de vidas rastejantes, voadoras e andantes, resultante de combinações como sereias anfíbias, anjas, centauros, dragões, unicórnios, rochas antropomórficas, tatus-lagartos, veados-bois, pássaros-borboletas. Eli Heil cria formas assumidas como fruto de sua imaginação, cuja cosmogonia inclui anfisbenas e mandrágoras, além de um pássaro e seu ovo gigante. PALAVRAS-CHAVES Franklin Cascaes; Meyer Filho; Eli Heil; Animais; História da Arte. ABSTRACT The fabulous animals are a characteristic common to three artists of the twentieth century, residents of the island-capital of Santa Catarina, although they have many differences, in terms of provenance and emergence, both in relation to their personal archive, as the poetic solutions. Franklin Cascaes visibilize drawings and texts with mythological beings, in an effort to record the cultural diversity of the coastal man Catarinense. Ernesto Meyer Filho draws and paints with the nicety of a goldsmith a collection of creeping, flying and walking lives, resulting from combinations such as amphibian mermaids, anjas, centauros, dragons, unicorns, anthropomorphic rocks, tatus-lizards, deer-oxen, birds-butterflies. Eli Heil creates forms assumed as the fruit of his imagination, whose cosmogony includes amphisbaenians and mandrakes, in addition to a bird and its giant egg. KEYWORDS Franklin Cascaes; Meyer Filho; Eli Heil; Animals; Art History.

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Refletindo sobre a diferença entre origem e começo a partir de Nietzsche, Michel

Foucault destaca que enquanto um termo remete ao entendimento de que se pode

chegar a um princípio primordial, ponto a partir do qual todo enredo passa a existir e

se desdobrar, o outro termo considera a origem como uma empreitada impossível,

uma vez que este ponto é inapreensível e sempre será arbitrário, sendo que só o

que se pode apreender são as tramas discursivas, as quais vão depender das forças

em jogo na determinação dos recortes e começos. Como fazer uso deste

entendimento e que proveitos o mesmo ainda pode render, considerando o campo

de História da arte?

Tomemos um exemplo: existem abundantes e variadas representações de animais

desde um período muito remoto das experiências humanas. Tais figurações estão

desenhadas nas paredes pré-históricas, esculpidas nos palácios da antiguidade,

coloridas nas iluminuras medievais e assim por diante. Ora estão marcadas por uma

vitalidade realista, ora estão imaginadas como formas híbridas e metamorfoseadas.

Conforme as circunstâncias são dotadas de caráter mais simbólico e religioso ou

meramente ornamental. De todo modo, estão presentes nas mais diferentes

sociedades e tempos. Na atualidade os artistas continuam recorrendo às formas

animais, seja para pensar a vida humana, a relação com a natureza, com a ciência

ou qualquer outra temática que considere conveniente dentro de seu leque poético e

processo investigativo. Assim, se é verdade que as formas animais possuem

enquadramentos cronológicos e sociais específicos, também é verdade que elas

escapam destas molduras e talvez seja este um bom motivo para pensarmos o

quanto elas ainda nos afetam, apesar de sua origem imprecisa em termos de

significados e perturbadora em termos de significantes.

No sentido de considerar as complexidades do pensamento plástico, longe de contar

uma história universalizante, capaz de tudo abarcar sobre a iconologia ou a

imagética animal, um recorte mais delimitado pode ser bastante proveitoso. Vejamos

se tal afirmação é procedente quando o tema se refere aos animais na Ilha-capital

de Santa Catarina, tal como registrado por três artistas aqui destacados: Franklin

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Cascaes (1908 – 1983, Florianópolis/SC), Ernesto Meyer Filho (1919, Itajaí – 1991,

Florianópolis/SC) e Eli Heil (1929, Palhoça – 2017, Florianópolis/SC). Embora

tenham se empenhado para abordar a temática animal, se observados com maior

acuidade, seus trabalhos guardam enormes diferenças. Comecemos por observar

as singularidades de cada um.

Registrar o conhecido e testemunhar o espantoso

Franklin Cascaes não possuía o ensino médio, mas sua formação básica esteve

voltada para ser professor de artes, considerando uma trajetória formada pelas aulas

de desenho, modelagem e escultura na Escola de Aprendizes Artífices, sendo que

uma parte desta bagagem também foi adquirida por correspondência, depois

ampliada nos cursos de desenho e de museologia, ambos feitos no Rio de Janeiro.

Em sua biblioteca pessoal encontram-se alguns livros de mitologia medieval

(dragões e bruxaria), história da Bíblia, mitos e lendas de Roma Antiga, além de

revistas científicas vendidas para leitores leigos. Desde 1931 apresentou seus

trabalhos, notadamente esculturas, em igrejas, escolas, cines e clubes, quer em

bairros da cidade em que nasceu, como Estreito e Itaguaçu, ou os municípios

próximos, como Imaruí e São José, além de cidades como Criciúma, Tubarão,

Tijucas, Blumenau. Em 1959, finalmente, apresentou-se no Museu de Arte de

Florianópolis.

Distanciado das principais interlocuções e do que então eram considerados

epicentros artísticos, seus registros não apresentam referências relacionadas a um

repertório europeu, mas prioriza a clave litorânea mais próxima, cujo palco era,

sobretudo, a cidade em que nasceu. Trata-se menos de buscar a representação

visual realista e mais de um local que servia como cenografia para os procedimentos

paródicos, de um artista que se reconhecia como um antropólogo-amador, ou um

colecionador de costumes e crenças, sendo possível observar uma sensibilidade

voltada para o tema do primitivo, muito próxima de certas nuances surrealistas do

período do entre guerras. Todavia, aqui parece necessário ponderar uma importante

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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diferença: a perturbadora convicção e proximidade de Franklin Cascaes com o

objeto, processado mais como verdade inquestionável do que como licença poética

ou ficção artística. Em seus 476 manuscritos avulsos e em seus quase 150

cadernos, além de cartazes feitos para suas próprias exposições, ele insiste no

caráter folclórico e enfatiza a dimensão do imaginário litorâneo de seus desenhos

feitos com grafite e bico de pena, frequentemente refeitos da primeira para a

segunda fatura, validando seu interesse, ora pelo repertório de uma cultura iletrada,

ora por criar um repertório ótico para seu Estado.

A partir da vasta documentação pertencente à coleção Elizabeth Pavan Cascaes no

Museu de Antropologia da UFSC, é possível constatar duas maneiras a que recorria

para levar a cabo suas sensibilidades e percepções: os desenhos silenciosos que

não eram replicados, estendidos e/ou acompanhados por textos escritos e os

desenhos que eram rebatidos em produção textual. Do primeiro grupo, destaca-se

uma série de seres marinhos e do segundo, os seres antropozoomórficos,

frequentemente acompanhados de escritos sob forma de explicação rascunhada e

complementar. Em ambos os casos, trata-se de seres entendidos como mitológicos,

delineados pelo esforço de elaborar um sentido simbólico, cujos signos pudessem

ser partilhados numa abrangência de caráter pedagógico sobre a diversidade

cultural do homem litorâneo catarinense. Deve ser ressaltado que, para fins desta

apresentação, estão excluídas as representações humanas e as bruxas. Apesar de

que em sua biblioteca constassem revistas como Conhecer, Naturama e Realidade,

Franklin Cascaes preferia afirmar um território com uma diversidade de formas

híbridas, tal como se observa no desenho intitulado Olho-tesoura ou no desenho

Boi-guaçu, para o qual acrescenta tratar-se de uma mistura de cobra e boi que

conforme a mitologia indígena devorava as pessoas, fazendo com que os olhos

comidos iluminassem seu corpo à noite.

Na série de mitologia marinha, realiza o gesto imaginar seres num território desviado

da natureza, embora baseado nas próprias denominações conhecidas, tal como no

caso de O fundo do mar com sereia, dragão e cérbero; Rádio oceanográfica, Peixe

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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bocica (Figura 1); Galinha do mar; Peixe porco; Peixe simoníaco; Bagre-morcego;

Peixe espada; Peixe cana; Peixe marreco. Na série de seres antropozoomórficos

merece destaque o gesto compulsivo presente nos desenhos feitos sobre todo tipo

de papel, incluindo pedaços reaproveitados e colados, deslindando uma espécie de

pensamento que opera por extensão e acumulação, produzindo um deslocamento

que segue do pilhado ao imaginado, ao desenhado, ao escrito e assim por diante.

No registro que encena uma língua iletrada e nativa, é possível reconhecer menos

uma história infantil e mais um estado delirante que contamina ou concilia ancestral-

sideral, bruxa-pombo, local-universal, mito-ciência.

Figura 1. Franklin Cascaes, Peixe bocica, 1974. Nanquim sobre papel, s/d.

Fonte: Acervo do Museu Universitário Professor Oswaldo Rodrigues Cabral-Secretaria de Cultura e Arte/ Universidade Federal de Santa Catarina.

Em Baleia Cabeluda merece destaque um desenho-colagem com três tipos de papel

emendados, os quais incluem no verso um desenho de carro de boi sobre rascunho,

onde o artista reflete sobre argila e lodo, deixando a pista para alcançar seu próprio

pensamento plástico que opera pelo princípio de metamorfose e contra-forma “Da

tua ciência ó homem/Não quero obter nem um naco/ Tu és um homem de

lama/Descendente do macaco” (faltou referenciar). Cabe ressaltar que o artista possuía

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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dois cadernos onde montou um dicionário, ou seja, elegeu palavras e atribuiu-lhes

significado, seguindo uma ordenação de palavras na língua tupi-guarani e outra em

português. Suas criaturas recebiam denominação conforme uma composição

silábica, frequentemente extraída destes cadernos. É ali que se pode compreender

sua série com bois, cabras, vacas, bodes complementados pelo nome de tatás,

sinônimo de fogo na língua tupi, observando assim Figura 2 logo abaixo:

Figura 2. Franklin Cascaes, O Boitatá, 1968. Nanquim sobre papel, 47,8 x 64,0 cm.

Fonte: Acervo do Museu Universitário Professor Oswaldo Rodrigues Cabral-Secretaria de Cultura e Arte/ Universidade Federal de Santa Catarina.

Além das formas femininas abordadas como bruxas, inúmeros seres masculinos e

híbridos frequentam seu repertório imagético, tais como: Demo-surfista (1981);

Ferrabrumi, Hobarra (referências antropofágicas); Hobarcu, Abahurupur, Mocobrupe

(abrangência cósmica: terra, ar-céu, mar-profundezas-infernos); Monsbarfo: trinóculo

Crinisparso, Mons/tro bar/co foguete. Em todos estes, Franklin Cascaes coloca em

cena dados e registros conforme uma pesquisa de campo, incluindo explicações

complementares. Mas ao fazer isto, frequentemente carnavaliza as formas, como no

caso de: Procissões, conjuntos bem humorados e específicos de produtos locais

como tainha, café, laranja, mandioca; além de Peruando; Cabeça sem mula; Cobra

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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com duas cabeças; Cactos voadores (com asas). Bule, associado a vértebras de

baleia ou em um desenho sem titulo com o corpo de leme de lancha de baleeira

como identificamos na Figura 3.

Figura 3. Franklin Cascaes, Sem título, 1969. Nanquim sobre papel, 52,5 x 36,7 cm.

Fonte: Acervo do Museu Universitário Professor Oswaldo Rodrigues Cabral-Secretaria de Cultura e Arte/ Universidade Federal de Santa Catarina.

Maquinar o delírio e (des-) conjuntar as formas

Seguindo na contramão do realismo, nelas vigora uma potência imaginativa que se

multiplica incessantemente e cuja geração de seres híbridos resulta em invenções

surpreendentes e inversões perversas, produzindo uma coleção de vidas

rastejantes, voadoras e andantes, resultante de combinações entre os reinos animal,

vegetal e mineral e/ ou compostos orgânicos e inorgânicos, tais como sereias

anfíbias na Figura 4, anjas, centauros, dragões, unicórnios, rochas antropomórficas,

tatus-lagartos, veados-bois, pássaros-borboletas.

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Figura 4. Meyer Filho, A sereia anfíbia, 1974. Nanquim sobre papel, 37 x 32.3 cm.

Fonte: Livro, Meyer Filho: (exercício de imaginação). Sandra Meyer, Kamilla Nunes e Teresa Siewerdt (organizadoras), Florianópolis: Instituto Meyer Filho, 2011.

Meyer Filho inventa novas taxionomias, originárias da botânica e da zoologia, da

agricultura e da astronomia, da história da arte e da mineralogia. Registrando

espécies e variedades diferentes das encontradas, tanto no macro como no

microcosmo, opera através de cortes e desmontes, acabando por produzir novas

sínteses e composições, formas e conteúdos. Concebendo a arte em sua articulação

planetária e como ponto luminoso que ocupa seu lugar no universo, em seus

trabalhos comparece um bestiário antropozoomórfico, cujo parentesco remete ao

antigo oriente e ao mundo medieval, à mitologia dos viajantes e às experimentações

científicas mais atuais. Para além das referências de seu meio como o imaginário

ilhéu e a cultura popular, as lendas e as crendices ou dos eventos de seu tempo,

filtrados pelos meios de comunicação e relativos às experiências atômicas e à

conquista espacial, aos conhecimentos derivados do microscópio eletrônico e dos

satélites, impossível ignorar a frontalidade egípcia recombinada anacronicamente

com a gramática surrealista, o psicodelismo casado com a arte-pop. De modo

impremeditado, rearmam-se os gabinetes de curiosidades e as coleções, as quais

desde o renascimento se constituíam numa espécie de relicário profano e cujos

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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critérios constelares e operações obsessivas faziam fluir estranhas classificações e

combinações entre naturalias e artificialias. Prefigurações da natureza inventada

pela relação entre ciência e arte na contemporaneidade, seus corpos perturbadores

e com elevada dose de ambiguidade despontam como reproduções desordenadas

e/ ou como máquinas esplendorosas, aberrações maravilhosas da engenharia

genética e/ ou da arquitetura ecológica. Podemos ver alguns desses exemplos na

Figura 5.

Figura 5. Meyer Filho, Sem título, 1982. Acrílica sobre Eucatex, 110 x 80 cm.

Fonte: Acervo Adriano Pauli.

Assim, suas pinturas contemplam um sol com brilho lunar, as rochas são ainda

adornos dormentes e amolecidos aguardando o toque para despertar,

apresentando-se como blocos polimórficos, enquanto as nuvens se formam como

maciços que se abrem para a alteridade do cosmos. Por sua vez, a água do mar

emerge como um muro de vidro espelhando um céu fosco, enquanto as penas dos

pássaros surgem como lantejoulas e as folhagens como pétalas-escamas-ovos-

olhos. Híbridos, anfíbios, esfinges e seres alados portam ora estranhas tatuagens,

ora surpreendentes e contrastantes penugens-plumas. E mesmo que possuam

chifres ou cristas, há em seus rostos uma estranha familiaridade humana. Em certas

ocasiões uma referência brota do tocado em forma de coroa faraônica ou do

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capacete em forma viking, mas como ignorar o rabo bifurcado numa mão-flor e as

estampas corporais que multiplicam corações-ocelos e remetem aos traços do pós-

humano? Do mesmo modo, faisões-lagartos e peixes-homens são apresentados

através das minúcias do precioso e pelo artifício de uma aleatoriedade calculada

com a mesma desenvoltura da flor-casulo, da cabeça-chapéu, da árvore-vitral, da

boca-cachimbo, da cauda-mosaico, dos falos-torpedos ou de assoalhos-ladrilhos e

bordados de flores-estrelas.

No registro de um mundo orgíaco, compósito e andrógeno, cuja potência

ambivalente e desmedida afeta todos os seres, implicando numa indistinção

licenciosa e cômica é que surgem galos-sereios, pássaros-pênis, corpos-vasos,

rostos-testículos, glandes-corações, pedras-nádegas. Mascarada do humano e do

animal, os atributos da sexualidade guardam suas ambivalências e derivações. Um

cachimbo acomodado na boca é, ao mesmo tempo, extensão e orifício; enquanto

um dos testículos contém um rosto que remete aos traços masculinos, o outro

sugere o feminino; por sua vez, o barco que avança é penetrado pela cabeça e a

língua gulosa que se lança para fora é a mesma que suga e absorve. Enquanto um

enorme pênis jorra seu líquido feito torneira para saciar o minúsculo animal que o

aguarda embaixo, sua ponta com o olho invertido é uma cabeça amolecida de cobra

que repousa sobre uma muleta, recolocando um falo desfalecido.

Espécie de catarse ótica que domestica o sinistro ou cilada astuciosa que pretende

driblar a putrefação e triunfar sobre a finitude, a alteração das formas encontra aqui

sua impagável importância. Se o acaso é a fonte geradora da vida, a distribuição de

suas forças é contingente, bem como os motivos que levam a medi-las. Assim,

através dos detalhes sutis pode-se reconhecer que o paraíso já nasceu babélico,

sendo portador de uma inexorável beligerância desde seu alvorecer. Se por vezes o

pecado e a maldade se insinuam, em certas ocasiões são indisfarçáveis, sendo as

disputas e lutas indicadas pela presença de aljavas, caveiras, lanças, cavaleiros,

caçadores e/ou galos que pinicam. Segundo com a lógica de Nietzsche (1987) no

mundo em que a natureza é farsa e burla pouco valem os recursos de advertência e

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pregação, pedagogia e lei, sendo que os mesmos podem apenas restabelecer os

jogos de força através de disfarces, recolocando e confirmando os atributos

constitutivos desta natureza irresoluta.

O galo surge como um ser poderoso e capaz de impor sua potência seminal, eleito

pelo artista como o emblema da virilidade. Assim, no território onde ele habita

resplandecem em luz solar ou brilho noturno as árvores, flores e pedras, revelando

uma natureza afetada pela sua nobreza galática e podendo se fazer acompanhar

por uma corte de dóceis querubins, disfarçados de minúsculos pássaros, lagartos e

tartarugas ou mini-bois, dragões e assim por diante. Reconfigurando variados

elementos, tais como unhas, pétalas, ovos, folhas, pedrarias e vidrilhos, o efeito é

suntuoso e luxuriante. Mesmo quando se revestem com economia de cores, suas

asas se parecem com um manto plumário e sua roupagem não abandona o

dispêndio das minúcias bordadas por um exímio joalheiro. Como Zeus em suas

aparições inusitadas, observa-se sua elevada capacidade mutante: a crista pode se

tornar chifre, cocar ou coroa, as penas escamas-jardim e o papo bolsa escrotal-

nádegas. Senhor do império do ornamento, sua vestimenta real, extravagante e

esplendida, afirma-se nas penas multiformes e multicoloridas, tecida com diversos

materiais, os quais aparecem pelo recurso de colagens e sobreposições de selos,

conchas, anotações e carimbos, como na figura 6 abaixo:

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Figura 6. Meyer Filho, Galo filatélico nº 5 – arte postal e colagem, 1985. Nanquim e selo sobre papel,

45 x 32 cm. Fonte: Livro, Meyer Filho: (exercício de imaginação). Sandra Meyer, Kamilla Nunes e Teresa Siewerdt (organizadoras), Florianópolis: Instituto Meyer Filho, 2011.

Engendrar o vínculo primordial e processar a fabulação

Eli Heil foi pintora, desenhista, escultora, ceramista, tapeceira e poeta. Inventou as

mais diversas soluções técnicas a partir do uso de materiais como saltos de sapato,

tampos de bacio, caixas de fósforo, tubos de tinta e canos de PVC, etc. Participou

de inúmeras exposições individuais e coletivas no Brasil, incluindo cidades como

Florianópolis, Blumenau, Criciúma, Joinville, Curitiba, Brasília e São Paulo, bem

como países no exterior: França, Holanda, Espanha, Marrocos, dentre outros.

Segundo Amarante (1989), entre suas mais de duzentas participações, consta

também a XVI Bienal Internacional de São Paulo em 1981, cabendo uma sala

especial para um tipo catalogado como arte incomum.

Sem nenhuma formação especializada, sua atividade criadora se revelou aos 33

anos, após uma carreira com professora de educação física numa escola primária,

uma entrevista concedida ao Jornal O Estado (1984): “sou uma artista cuja mente

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ficou grávida durante cinco anos para depois renascer e produzir aos borbotões (...)

sou uma maternidade artística”. No catálogo da exposição Eli Heil, 85 anos, seu

curador e médico, Ylmar Corrêa Neto (2014) chama atenção para “sua copiosa

produção, cujos detalhes contemplam pequenas epifanias”. Lembrando

denominações como outsider e marginal, o curador também remete ao termo

primitivo e bruto para reconhecer um tipo de artista com um repertório visual

proliferante, cujas técnicas e vocabulário se desenvolvem de modo muito

espontâneo e perturbador, à maneira das crianças e loucos. (p.11)

Tal aspecto se explicita no seu livro de crônicas e poesias Vomitando os

sentimentos (2000), onde constam seus desenhos e poemas com teor muito

biográfico, sendo que a relação recorrente com a palavra poética pode ser

reconhecida em inúmeros de seus quadros. Vaso Cérebro, datado de 1970,

Vomitando Criações, de 1974, Mulheres Bicho, de 1990, Olhos D’Alma, de 2008 são

alguns títulos que permitem estabelecer um elo entre a realidade e um mundo

imaginário ao qual só a artista tem acesso. Destaque para o fato de que o tema da

ave e seu ovo gigante aparecem desde seu primeiro quadro: “A arte é a expulsão

dos seres contidos, doloridos, em grande quantidade, num parto colorido (...) o

mundo ovo é a explosão do meu cérebro e do meu ovário” (p.17). Em diversas

entrevistas registra que, logo após os primeiros meses em que decidiu pintar,

sonhou que era uma bailarina com seu cérebro na mão e, em outra ocasião, sonhou

com um pássaro que pousou no seu telhado e gritou: estou caído! (p.19).

Tinha cerca de 58 anos quando finalmente construiu o espaço definitivo que lhe

serviu como ateliê, moradia e acervo expositivo, após 25 anos de vida artística. Sua

obra constitui-se em mais de dois mil trabalhos e seu acervo pode ser visitado no

museu O Mundo Ovo de Eli Heil, criado em 1987 no bairro de Santo Antônio de

Lisboa, lado norte da Ilha-capital de Santa Catarina, transformado em Fundação

Mundo Ovo em março de 1994. Imagem cosmogônica e forma originária, a partir

desta imagem- forma Eli Heil foi capaz de realizar, tanto uma inflexão em relação ao

seu meio, como passou a se reconhecer enquanto artista.

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Na sua cosmologia mágica a figura do animal emerge com as mais inusitadas

formas. O pássaro principalmente é seu bicho predileto, como podemos ver na

Figura 7. Três vidas, 1974 consiste num mural divido em três partes coloridas, sendo

que cada uma representa um tipo de espécie de vida:

vegetal, animal e a humana. Flores/amebas, dinossauros, cérebro, formas signicas, emblemísticas, quase um código. Embora tenha reservado uma faixa para cada reino, nota-se como em Eli a simbiose deste três níveis é constante, o que sempre percebemos em seus bichos e pessoas que desdobram-se em flores, em personagens que parecem bichos, e vice-versa. (LORENZ, 1984, P.79).

Figura 7. Eli Heil, O pássaro, 1999. Esferográfica sobre papel, 44 x 62 cm. Fonte: Coleção particular do Museu Mundo Ovo.

No seu quadro Furna (1976) encontra-se a forma cilíndrica de onde surgem seres

prontos para voar. Trata-se de figurações relacionadas a um bestiário muito

particular: dragões, anfisbenas e mandrágoras, todos muito coloridos: “estes bichos

não assustam, quanto mais terríveis na aparência, para mim são mais doces, mais

eu gosto” (LORENZ, 1984, P.81). A forma cilíndrica da furna aparece também em

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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outros quadros como se o animal estivesse tentando sair dessa geometria, mas que

ao mesmo tempo integra seu corpo. Como percebemos na Figura 7:

Figura 8. Eli Heil, Sem título, 1979. Acrílica sobre tela, 157 x 290 cm.

Fonte: Acervo do Masc, tombo n.º0525.

Para a artista, tratam-se de seres reais, que dançavam em seu cérebro, formas

hibridas em incessante metamorfose. Trata-se de pássaros, minhocas, peixes,

amebas, gatos sempre prontos a voar, rastejar, copular e/ ou terem suas caras

assemelhadas ao rosto humano, ver figura 9. Com seus olhos esbugalhados, muitas

vezes são montados e incorporam diferentes materiais, incluindo dentes humanos.

Assim, essas massas que saltam para fora da área pictórica são como aparições,

ora familiares, ora personagens de acidentes e fatalidades. Em seus quadros e

esculturas tornam-se viventes e recebem as mais distintas denominações:

Jacaré-ovo, Animal-ovo, Bicho-ovo, Animal ovíparo. Bicho-folha, Mãe cobra no ninho, Bicho-flor, Galinha chocada, Comedor de ovos, Animal cobra, Pedras, cobra e flores, Cobrinha, Bicho fêmea, Bicho- ovíparo, Enrolado, Galinha cheia de ovos, Peixe pássaro, Cobra-peixe ovíparo, etc. “Os pássaros? São momentos, são tudo que me vêm (ideias); as vezes, acho que estou voando, como pássaro. Estão tão alta, em relação às pessoas, que me duplico, me divido. Eu mesmo sou como diversos pássaros. Daí os animais todos botam ovos. Não vê como eu faço animais carregando ovos?” (Eli, apud LORENZ, 1984, p. 94).

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Figura 9. Eli Heil, Sobrevoando, 1991. Óleo sobre tela, 60 x 90 cm.

Fonte: Acervo do Masc, tombo n.º1601.

De volta ao princípio (do texto)

Muito já se disse sobre o fato de que a Arte, como a Filosofia, remete sempre às

mesmas questões e que toda obra se constitui num universo ou labirinto portátil que

guarda uma profusão de incontáveis refrações e inumeráveis inquietações, numa

espécie de projeção infinita. Próximo deste ponto chega-se ao entendimento de que

a obra de arte é, ao mesmo tempo, clausura e escapatória, sendo que seu alcance

tem menos a ver com os encadeamentos cronológicos e mais com a reinstauração

de enigmas, potencializados pela conexão entre descontinuidades e pelas

particularidades de certos detalhes irredutíveis que retornam.

Neste sentido, enquanto para Bataille (2003) o animal consiste no primeiro espelho

humano e no mais antigo e próximo vestígio de nossa ancestralidade, para Derrida

(2002) o animal é a imagem do humano que ali se reconhece em sua semelhança-

alteridade, posto que se trate de um ser que produz linguagem. E porque se percebe

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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nu e em falta, nomeia e se faz autobiogáfico. Pressentindo uma perda e elaborando

um luto, aquele animal que se denominou humano produziu uma zoosfera povoada

por um bestiário com assobrado parentesco, carnavalizando a morte desde os

tempos da caverna. Fazendo-se animot, ou seja, animal que se percebe múltiplo e

produz pensamento-palavra, seu ancestral sobrevive na imagem do gato pelas

poesias de Baudelaire, do corvo pelos contos de Poe ou no tigre pelos escritos de

Borges. Dentre tantas possibilidades também se tornou bode pelas telas de Chagal

e touro pelas tintas de Picasso. Eis o ponto que incide a imagem do humano-animal:

figura que se faz no mundo, encenação e sonho, delírio e ficção.

Tanto os trabalhos de Franklin Cascaes, como os de Eli Heil e de Meyer Filho

oferecem diversas questões para pensar a imagem do animal e sua relação com a

História, a Teoria e a Crítica da Arte. Através do repertório ímpar e intransferível de

cada um é possível refletir sobre as diferentes noções operatórias que trouxeram ao

mundo suas figuras híbridas, desproporcionadas e jocosas, capazes de realizar

travessias para além dos limites do meio em que viveram. Assim, se a arte é

linguagem e, portanto fala, é preciso lê-la nos seus próprios termos.

Referências

AMARANTE, Leonor. As bienais de São Paulo, 1951-1987. São Paulo: Projeto, 1989. BATAILLE, G. Lascaux o el nacimiento del arte. Argentina: Ed. Alción, 2003. CORREA NETO, Ylmar. Eli Heil, 85 anos. Florianópolis: FCC, 2014, p. 11. DERRIDA, J.O animal que logo sou. São Paulo: Ed. UNESP, 2002. HEIL, Eli. Vomitando os sentimentos. Florianópolis: Fundação, 2000. LORENZ, Jandira. A obra plástica de Eli Heil. Florianópolis: FCC, 1984. MALLMANN, Regis. Eli Heil. Florianópolis: Tempo Editorial, 2010, p.14. NIETZSCHE, F. Para a genealogia da moral. In: Os pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. JORNAL O ESTADO. 08-07-1984.

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CHEREM, Rosângela Miranda; BORGES, Janaina Fornaziero. Três artistas e seu fabulário animal, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 763-780.

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Rosângela Miranda Cherem

Doutora em História pela USP (1998) e Doutora em Literatura pela UFSC (2006); Profa. Associada de História e Teoria da Arte no Curso Artes Visuais e Programa de Pós-graduação em Artes Visuais no Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina; coordenadora do Grupo Imagem-acontecimento; orienta, possui pesquisas e publicações sobre História das Sensibilidades e Percepções Modernas e Contemporâneas; atualmente desenvolve pesquisa intitulada Acervos e Arquivos artísticos em Santa Catarina, implicações e conexões.

Janaina Fornaziero Borges

Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Estadual de Maringá (2016); Mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais pela Universidade do Estado de Santa Catarina no Centro de Artes CEART/UDESC na linha de Teoria e História das Artes Visuais (2018); integrante da Equipe Editorial da Revista Palíndromo do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais e do grupo de Pesquisa História da arte: Imagem-Acontecimento.