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TRILHA MUSICALMsica e Articulao Flmica

Ney Carrasco

Sumrio

Prlogo PARTE 1: A CONSOLIDAO DE UMA LINGUAGEM Captulo 1: A Infncia Muda A INCORPORAO DA MSICA AO FILME MUDO AS FASES DA MSICA NO CINEMA MUDO Captulo 2: O Sonho de Edison O ADVENTO DO SOM SINCRONIZADO OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA SONORO SUSTOS, MEDOS, EUFORIA: A POLMICA DO SOM A EVOLUO DA MSICA DE CINEMA NA DCADA DE TRINTA A QUESTO DO CLICH CARACTERSTICAS DA MSICA DE CINEMA NA DCADA DE TRINTA ALGUMAS QUESTES DE NATUREZA ESTTICA Captulo 3: O Sonho de Eisenstein OS PRECURSORES DO VDEO-CLIP EISENSTEIN E A PARTITURA AUDIOVISUAL OUTRAS PERSPECTIVAS TERICAS

7 11 13 13 17 25 25 30 35 37 39 40 42 45 45 48 58

PARTE 2: MSICA E ARTICULAO FLMICA Captulo 4: Trilha Musical e a Teoria dos Gneros O CINEMA E A TEORIA DOS GNEROS O CUNHO PICO DO CINEMA O CUNHO DRAMTICO DO CINEMA A TRILHA MUSICAL E O GNERO CINEMA

65 67 67 69 71 74

Captulo 5: A Articulao pica A MSICA NOS CRDITOS INICIAIS A FUNO PICA DA CANO CARACTERSTICAS PICAS DA MSICA INSTRUMENTAL A AO DRAMTICA EM SEGUNDO PLANO MSICA E MONTAGEM 1: O CORTE - LIGAES E TRANSIES MSICA E MONTAGEM 2: GRANDES SEES A EVOLUO DO MICKEYMOUSING TRILHA MUSICAL E A ARTICULAO TEMPORAL LTIMAS PALAVRAS SOBRE A ARTICULAO PICA

77 80 82 88 89 90 91 92 93 99

Captulo 6: A Articulao Dramtica ARTICULAO FLMICA: UMA NOVA DIMENSO DRAMTICA O DRAMA NO CINEMA MONTAGEM INVISVEL - MSICA INAUDVEL TRILHA MUSICAL E UNIDADE DE AO MSICA E PERSONAGEM A MSICA COMO "VOZ" DO PERSONAGEM A EVOLUO DO MONLOGO INTERIOR O ASPECTO DIALGICO DA MSICA O USO DRAMTICO DA CANO O USO DRAMTICO DO SILNCIO

101 101 102 103 106 110 112 113 114 116 118

Captulo 7: Momento Lrico A BUSCA DO PATHOS Eplogo Bibliografia

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memria de Valter Krausche, amigo inesquecvel, a quem devo, em grande parte, este trabalho

Prlogo

Quando o profissional de msica passa a atuar na rea de trilhas musicais, seja para o cinema ou para outros veculos dramticos, inevitavelmente se defronta com novos problemas tcnicos e estticos especficos a tais veculos. Mas, alm de compreender essa problemtica, ele tem tambm que adaptar toda a sua terminologia e o modo pelo qual est acostumado a se referir msica. muito provvel, por exemplo, que em seu primeiro encontro com o diretor, para o encaminhamento do trabalho, o dilogo entre os dois comece com a seguinte frase: eu no entendo nada de msica, mas... Esse um problema que os outros profissionais, no mesmo tipo de produo, no enfrentam. No comum o diretor dizer que no entende nada de cenrios, para o cengrafo; que nada sabe de roteiros, para o roteirista; ou que um completo leigo na rea, para o diretor de fotografia. de se esperar que um diretor de cinema conhea, pelo menos, os fundamentos bsicos de cada uma das partes envolvidas na confeco de filmes, e mesmo que ele no tenha um conhecimento muito profundo sobre algumas dessas especialidades, ele no vai assumir isso publicamente, e com tanta naturalidade. Por que, ento, eles o fazem com a msica, sem o menor pudor? Na verdade, esse problema transcende o universo especfico ao cinema. Se observarmos a atitude das pessoas, vamos perceber que existe um certo estigma em relao msica que no encontrado no que diz respeito a outras formas de expresso artstica. Normalmente, em uma conversa casual, quando dizemos que somos msicos, obtemos como resposta a seguinte frase: ah, eu adoro msica, mas no entendo nada. Se insistirmos no assunto, perceberemos que nem sempre isso verdade. Muitas vezes trata-se de uma pessoa que ouve msica assiduamente, que tem um bom conhecimento do repertrio musical. Ora, um ouvinte assduo algum que tem alguma espcie de conhecimento musical. Por que ele insiste em dizer que nada sabe de msica? Por que o mesmo fenmeno no acontece em

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relao a outras formas de expresso artstica? As pessoas discutem filmes, livros, peas e quadros sem se preocuparem em fazer a ressalva: eu no entendo nada de... Ao que parece a linguagem musical carrega uma certa aura de hermetismo, que faz com que o senso comum a veja como algo acessvel apenas a alguns poucos eleitos. Algo assim como uma seita secreta, cujos segredos so guardados a sete chaves pelos iniciados. Em certo sentido, esse estigma tem sua origem na prpria natureza da linguagem musical. Comparando-a com as outras artes, percebe-se que entre elas e a msica existe uma diferena bsica: possvel descrever o contedo de um filme, de uma pea, de um romance e at mesmo de um quadro. Podemos dizer que um quadro figurativo, ou abstrato. Podemos fazer a sinopse de um filme, ou de uma pea e cont-la aos nossos amigos. Mas com a msica no ocorre o mesmo. No possvel falar de msica sem nos remetermos prpria terminologia musical, e isso faz com que o discurso do iniciado em msica possa parecer ao leigo algo totalmente ininteligvel. Assim, s possvel descrever uma obra musical de dois modos distintos. O primeiro aquele que usa a prpria terminologia musical. Com ela, podemos dizer que uma msica tonal, ou atonal, descrev-la sob os pontos de vista harmnico, rtmico, meldico, etc. O segundo modo aquele que faz uso da terminologia subjetiva, pela qual o ouvinte tenta expressar em palavras a sua experincia pessoal na audio musical. Diz-se que a msica tocante, intimista, angustiante, sensual, doce, trgica, etc. Mas tudo isso apenas uma grosseira aproximao daquilo que realmente experimentamos ao ouvir msica. Depois, temos sempre a sensao de que a nossa descrio nem sequer se aproximou daquilo que gostaramos de ter, realmente, exprimido. Essa dificuldade que encontramos quando queremos nos referir linguagem musical no se limita s nossas conversas cotidianas, at mesmo em setores especializados encontramos seus reflexos. No cinema, por exemplo, tal dificuldade pode ser encontrada no apenas na relao entre o msico e os outros profissionais envolvidos na produo de filmes, mas tambm entre os tericos, que evitam claramente se aprofundar nas questes referentes trilha musical. Em contrapartida, h os trabalhos especializados na rea de msica para cinema, que normalmente so escritos por msicos e, em sua grande maioria, partem do ponto de vista musical para a elaborao de sua anlise. Assim sendo, acabou institucionalizando-se uma tendncia a ver a msica de cinema no como um dos fatores integrantes da linguagem cinematogrfica, mas como um discurso paralelo ao filme. Raramente percebe-se que o filme um todo articulado e que a msica um dos fatores envolvidos nessa articulao. Grandes trilhas musicais que esto totalmente inseridas no contexto dramtico de seus respectivos

Prlogo 9

filmes, perfeitamente integradas ao seu fluxo narrativo, muitas vezes passam despercebidas, no porque sejam ruins, mas porque foram pensadas e construdas com este objetivo. Este trabalho tem por objetivos a abordagem da trilha musical como recurso articulatrio da narrativa flmica, bem como demonstrar o modo pelo qual a msica se insere na dramaturgia especfica ao cinema. Sendo dirigido tanto ao cineasta quanto ao msico interessado na atividade especfica de trilhas musicais, procuramos apresentar, sempre, a conceituao necessria para que tanto um quanto outro possam acompanhar o desenvolvimento da argumentao, sem a necessidade de recorrer a outras fontes de informao. Esperamos que, de algum modo, ele possa contribuir para aproximar os discursos e os pontos de vista dos profissionais das diversas especialidades envolvidas na realizao de filmes, de modo que a comunicao entre esses profissionais se torne mais objetiva, com referenciais mais precisos. O trabalho est dividido em duas partes. A primeira, contendo trs captulos, apresenta uma discusso sinttica do referencial terico da literatura especializada em msica de cinema. Essa parte do trabalho tem um carter bastante informativo. Procura situar o leitor em relao ao desenvolvimento da msica de cinema desde o perodo do cinema mudo e, paralelamente, de apresentar-lhe um resumo das principais linhas de abordagem terica encontradas nessa literatura. A segunda parte do trabalho, de carter mais analtico, procura estabelecer os fundamentos para uma discusso da msica como recurso articulatrio especfico dramaturgia do cinema, partindo do referencial da teoria dos gneros. A cada estgio da argumentao so apresentados exemplos extrados de filmes, em sua maioria fceis de obter, para que o leitor possa buscar no prprio repertrio do cinema, a manifestao prtica dos conceitos abordados teoricamente. Cabe ainda ressaltar que toda a anlise foi feita com base na tcnica e nos procedimentos comuns ao cinema industrial, especialmente o norte-americano. Experincias localizadas de cinema, bem como correntes estticas especficas, aquilo que ficou popularmente conhecido como cinema de arte, no so objetos de interesse deste trabalho.

PARTE 1

A CONSOLIDAO DE UMA LINGUAGEM

Captulo 1

A INFNCIA MUDA

A INCORPORAO DA MSICA AO FILME MUDONos primeiros anos a ausncia de som obrigou os realizadores de filmes a desenvolverem uma srie de procedimentos tcnicos e estticos de carter no-verbal que viabilizassem o cinema enquanto arte narrativa. Dentre esses recursos esto o uso de legendas, a explicitao do signo gestual atravs da pantomima dos atores e, especialmente, os recursos de linguagem especficos do cinema, tais como as tcnicas de enquadramento, os movimentos de cmera e a montagem, que viriam a se tornar as principais especificidades da linguagem cinematogrfica. Um outro aspecto que muito poucas vezes tratado com a devida considerao pelos tericos de cinema o fato dos filmes mudos terem sido sempre acompanhados por msica, desde as primeiras exibies comerciais. A questo mais interessante que se nos apresenta em relao a este fato : por que a msica? Por que no atores dialogando ao vivo, preenchendo o vazio de palavras do filme? Por que no um sonoplasta, que pudesse criar a ambientao sonora necessria a cada um dos momentos do filme? sabido que houve algumas tentativas ou experincias neste sentido, contudo no foi essa a prtica que se tornou comum no cinema mudo. O que sobreviveu e se tornou indispensvel em todas as salas de exibio foi a msica, o acompanhamento musical ao vivo.

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Existem muitas hipteses a respeito do impulso inicial que teria levado os primeiros exibidores a acompanhar de msica as projees de seus filmes. Dentre estas hipteses, as mais conhecidas so a de Kurt London1 e a de Hanns Eisler e Theodor Adorno2. Segundo London, a msica teria sido incorporada, inicialmente, com o intuito de abafar o rudo bastante proeminente e desagradvel dos primeiros projetores. Levando-se em conta que tais projetores eram ainda bastante primitivos e que ainda no haviam sido isolados em uma sala especial, pode-se supor que, de fato, tal rudo no era apenas incmodo, mas se constitua em um fator permanente de disperso para o pblico espectador. A hiptese de Eisler/Adorno, embora tenha sido formulada com o intuito de antagonizar a de London, no descarta-a, e hoje podemos tom-las como complementares. Segundo eles, a sala de projeo era um ambiente bastante inspito para o pblico de ento: uma sala escura onde as pessoas se sentavam para assistir projeo de imagens virtuais. De certo modo era como assistir a fantasmas agindo. Isso, ocorrendo em absoluto silncio, se constituiria em uma verdadeira tortura psicolgica. A msica teria servido, ento, como uma espcie de antdoto para esse mal-estar causado pelo ambiente. Apesar destas duas hipteses serem citadas em praticamente todos os textos sobre a msica no cinema mudo, elas no esgotam as possibilidades de questionamento a respeito do assunto. Recentemente, a discusso foi estendida por Claudia Gorbman3. Segundo ela, os motivos que explicam a adoo do acompanhamento musical no cinema mudo poderiam ser classificados em quatro nveis distintos: a) Argumentos histricos b) Argumentos pragmticos c) Argumentos estticos d) Argumentos psicolgicos e antropolgicos

1. London, Kurt foi o autor de um dos primeiros trabalhos tericos sobre msica de cinema: Film music, publicado originalmente em 1936. 2.Eisler, Hanns e Adorno, Theodor: El cine y la musica. 3. Claudia Gorbman professora da Universidade de Indiana, E.U.A.. Uma argumentao detalhada sobre o assunto em questo pode ser encontrada em seu livro Unheard melodies.

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Do ponto de vista histrico, o uso da msica para acompanhar filmes segue a tradio do melodrama, bastante comum no final do sculo passado e no qual a msica era usada em quantidade muito grande. Segundo a autora, a msica no melodrama chega a ser mais importante que os dilogos. A presena do pianista, ou da orquestra era indispensvel nos teatros, em uma poca em que os gneros de teatro musicado eram muitos, e responsveis por uma grande porcentagem da produo dramtica do perodo. Ento, o que os exibidores de cinema teriam feito seria, apenas, seguir a tendncia dominante nas casas de espetculo de ento, incorporando o pianista, ou formaes musicais mais extensas s primeiras sesses comerciais de cinema. O argumento dos pragmticos, ou seja, aquele decorrente da hiptese de que a msica serviria para ocultar o rudo do projetor, questionado a partir do seguinte ponto de vista: por que a msica era mais eficiente para disfarar o rudo dos projetores? Se esse rudo era um fator de disperso para o pblico, por que a msica no provocaria uma disperso ainda maior em relao ao filme que estava sendo exibido? E ainda mais: por que a msica permaneceu mesmo depois dos projetores terem se tornado menos barulhentos, e sido isolados do pblico em cabines de projeo? Estas questes nos levam aos argumentos estticos. Segundo Claudia Gorbman, um dos fatores que teria levado incorporao da msica nas exibies de filmes seria o fato do acompanhamento musical intensificar a impresso de realidade do filme. Quando assistimos a um filme, no estamos assistindo representao de uma ao real, tal como acontece no teatro. Este o motivo que levou Eisler e Adorno a descreverem a impresso inicial do cinema como fantasmagrica. Esse carter sobrenatural do cinema seria agravado pelo fato do filme ser projetado em uma superfcie bidimensional, no possuindo uma profundidade real, mas apenas uma iluso de profundidade. Com base nestes argumentos, a msica teria servido para sanar dois problemas. Em primeiro lugar ela seria responsvel pelo preenchimento do espao vazio do filme, suprindo acusticamente o sentido de profundidade que visualmente o filme no possua. Em segundo lugar, a msica serviria para simular uma atmosfera de realidade para a ao representada, na linha do melodrama ou da mmica, que eram formas de expresso s quais o pblico estava habituado. Um outro fator esttico importante, aquele que diz respeito ao ritmo e que j havia sido abordado por Kurt London:

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A razo mais essencial para explicar esttica e psicologicamente a necessidade da msica como acompanhamento do filme mudo, sem dvida o ritmo do filme enquanto arte do movi-mento. Ns no estamos acostumados a perceber o movimento como forma artstica sem o acompanhamento de sons, ou, pelo menos, ritmos audveis.4 Podemos perceber, pela afirmao de London, que a msica serviria como um suporte rtmico para o movimento do filme, paralelizando, contrapondo, explicitando ou justificando o ritmo das imagens. No ltimo tpico de sua anlise Claudia Gorbman retoma a argumentao de cunho mais psicolgico da hiptese de Eisler e Adorno e complementa-a com argumentos de carter antropolgico. Segundo ela, a msica seria capaz de evocar o sentido comunitrio, a sensao de coletividade que torna o pblico uma comunidade de ouvintes participantes. Todos esses argumentos possuem fundamento, e bastante difcil dizer qual deles foi o mais decisivo em todo o processo. mais vivel supor que todos estes fatores tenham contribudo para o fato da msica ter sido incorporada s exibies de filmes de tal modo, que o cinema no iria jamais coloc-la aparte em todo o seu desenvolvimento subseqente, exceto claro, em alguns casos isolados. O mais importante em toda esta discusso perceber que a msica no perodo do cinema mudo teve um papel relevante. Outro dado importante o de que o desenvolvimento da linguagem narrativa no cinema passa inevitavelmente pela via musical. A partir do momento em que as exibies de filmes eram sempre acompanhadas de msica, a prpria formao do cdigo narrativo do cinema, bem como do referencial que, paralelamente, o pblico desenvolveu para decodificar esse cdigo, no se deram exclusivamente pela dimenso imagtica do cinema, mas sim pela soma desta com a dimenso musical. Desde o princpio, a articulao flmica d-se com a presena da msica. Em outras palavras, o cinema comercial pode no ter nascido falado, mas com certeza nasceu musical.

4. Kurt London, em Gorbman, Claudia: op. cit. pg. 38.

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AS FASES DA MSICA NO CINEMA MUDOO casamento entre msica e cinema bastante antigo. Consta que a primeira exibio comercial de filmes, realizada pelos irmos Lumiere no Grand Caf do Boulevard des Capucines, em 28 de dezembro de 1895, contou com o acompanhamento de uma seleo musical ao piano. Em torno de abril de 1896 tem-se notcia de diversas exibies de filmes em salas de Londres que j contavam com o acompanhamento de orquestras.5 So poucas as informaes sobre o repertrio executado nessas primeiras exibies, contudo possvel supor que no houvesse uma preocupao muito grande entre o contedo dos filmes e o material selecionado. Os filmes eram ainda meras curiosidades e as exibies pblicas tinham muito mais o intuito de apresentar ao pblico o novo veculo e testar o seu potencial comercial do que objetivos estticos ou artsticos. No possvel tambm referir-se msica do cinema mudo como trilha musical, mas apenas como acompanhamento musical de filmes. Esta distino tem, por um lado, um carter tcnico: o conceito de trilha musical, tal como o entendemos hoje, surge apenas depois do advento do som sincronizado, quando tornou-se possvel estabelecer relaes precisas entre som e imagem. Durante todo o perodo do cinema mudo, por mais detalhada que fosse a elaborao da msica para um filme ela estaria sempre sujeita impreciso inerente execuo ao vivo e a todo o conjunto de variveis envolvidas nesse processo. Assim, por no estar ainda sincronizada s imagens, por no estar contida na pelcula, toda a msica do cinema mudo deve ser entendida como acompanhamento musical e no como trilha. A evoluo do acompanhamento musical no cinema mudo caminha sempre no sentido de uma maior interao entre os discursos imagtico e musical e pode ser, genericamente, dividida em trs fases. A primeira fase6 caracterizada pelo fato de no existir ainda uma preocupao muito grande entre o contedo musical e o contedo narrativo dos filmes. Normalmente, esse5. A esse respeito ver Prendergast, Roy: Film Music - A neglected art, pg. 5 6 A classificao dos tipos de acompanhamento musical no cinema mudo em fases um tanto artificial e no pode ser entendida como algo rgido e estanque. O mais importante ter em mente que, ainda que haja uma sucesso cronolgica das fases, o mais correto seria entend-las como diferentes modos de pensar o acompanhamento musical que se sobrepe ao longo da histria do cinema mudo. Assim, possvel que enquanto uma sala de primeira classe em um grande centro urbano estivesse realizando sua msica nos moldes da terceira fase, uma pequena sala do interior ainda pudesse ter sua msica realizada nos moldes da primeira ou segunda fase.

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acompanhamento era feito atravs de uma seleo musical extrada do repertrio tradicional, com nfase nas msicas do perodo romntico, particularmente as da segunda metade do sculo XIX. A seleo musical era feita pelos msicos responsveis pelas salas de exibio. Em salas mais modestas, um nico msico, normalmente um pianista ou um organista. Em salas mais abastadas, uma orquestra completa. Esses msicos executavam o seu repertrio sem maiores preocupaes. Em muitos casos, as msicas eram ouvidas integralmente, sem o cuidado de buscar uma correspondncia direta com aquilo que era visto na tela. Nessa poca os filmes eram em sua grande maioria de curta durao e as sesses pblicas normalmente apresentavam um grande nmero deles. Existem informaes sobre sesses de cinema nas quais cada filme curto era acompanhado por uma pea musical distinta. muito provvel que isso fosse uma prtica comum, visto que se encaixa perfeitamente no tipo de acompanhamento musical realizado nos espetculos de variedades, tal como, por exemplo, os que aconteciam nos Music Halls7. muito provvel que uma sesso de filmes curtos apresentasse para o msico acompanhador o mesmo tipo de problemas que o espetculo de variedades, com sua sucesso de nmeros independentes. Assim sendo, no estranho que ele fosse buscar nesse universo o referencial para o acompanhamento dos filmes. Ainda nessa primeira fase surgem as primeiras tentativas no sentido de integrar a msica narrativa do filme. As msicas continuam a ser extradas do repertrio tradicional, mas cada vez mais procura-se estabelecer um princpio associativo entre elas e as imagens. Curiosamente, nesse momento essa associao se d mais ao nvel do ttulo da msica do que do contedo musical propriamente dito. Segundo relatosde, era comum acompanhar cenas luz do luar com o Adagio da Sonata ao Luar de Beethoven. As cenas beira de um lago com trechos da Sute do Balet O Lago dos Cisnes de Tchaikovsky, e assim por diante. De certo modo, era esperado que o pblico estabelecesse o mesmo tipo de associao, desde que se tratavam de msicas bastante conhecidas. Ao estudarmos essa prtica quase um sculo depois, em um primeiro momento temos a impresso de que, por um lado, os msicos no haviam ainda descoberto o potencial narrativo da msica em relao ao filme e, por outro, os realizadores de cinema, no haviam incorporado a linguagem musical aos seus filmes, apesar de fazerem uso do acompanhamento7

Em "Music and the silent film", Martin Miller Marks apresenta uma descrio detalhada da msica do espetculo de filmes curtos que Max Skladanowsky realizava com seu Bioscpio no final do sculo XIX.

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musical para as exibies pblicas dos mesmos. Contudo, observando mais atentamente percebemos que o cinema ainda no havia se desenvolvido como linguagem narrativa e o acompanhamento musical era totalmente compatvel com o tipo de filme que se realizava na poca. Uma outra caracterstica da msica na primeira fase do cinema mudo a total ausncia de uniformidade. A produo do acompanhamento musical era uma responsabilidade da sala de exibio e no da equipe de produo do filme. Sendo assim, duas exibies do mesmo filme em salas diferentes contavam com acompanhamentos musicais totalmente distintos. Alm disso, a excessiva carga de trabalho dos msicos e maestros responsveis pela seleo musical fazia com que, muitas vezes, no houvesse tempo, sequer, para que eles assistissem ao filme antes de sua exibio pblica, o que, inevitavelmente, resultava em selees musicais concebidas sem nenhum vnculo direto com o contedo narrativo dos respectivos filmes. Outro recurso bastante usado no perodo era o da improvisao. Os bons improvisadores ao piano costumavam, inclusive, obter melhor remunerao por seu trabalho. A improvisao era usada como transio entre os diversos momentos da seleo musical e tambm para preencher todo e qualquer tipo de lacuna que pudesse vir a ocorrer entre o filme e o seu acompanhamento musical. Nas salas maiores, onde o acompanhamento era feito por uma orquestra, essas transies eram escritas pelo maestro responsvel ou tambm improvisadas pelo pianista ou organista da orquestra. O prximo passo no sentido de aproximar o acompanhamento musical do que se passava na tela vem atravs da fragmentao da seleo musical. Gradualmente passa-se a no mais executar as msicas integralmente. Assistindo ao filme de antemo, o msico passou a selecionar trechos musicais mais curtos, correspondendo a cada um dos momentos do filme. O nmero de transies, improvisadas ou escritas, cresceu substancialmente. Aos poucos comeava-se a estabelecer uma nova relao entre as imagens e o seu acompanhamento musical. Como conseqncia inevitvel desse processo chegamos a um outro modo de produo de msica para os filmes que poderamos classificar como a segunda fase da msica no cinema mudo. A principal caracterstica dessa segunda fase est no fato de que os realizadores de cinema comeam a se interessar pelo acompanhamento musical de seus filmes. O grande potencial comercial do cinema atrai tambm a ateno dos editores musicais que, cientes do

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mercado e dos interesses da indstria cinematogrfica, passam a editar em larga escala partituras musicais exclusivamente voltadas ao acompanhamento musical de filmes. A primeira iniciativa por parte da indstria do cinema que demonstra alguma preocupao com o acompanhamento musical foi tomada pela Edison Film Company, que a partir de 1909 comeou a distribuir sugestes especficas de msica para acompanhar os filmes por ela produzidos8. Os editores musicais, por sua vez, passaram a publicar coletneas musicais direcionadas ao acompanhamento musical de filmes. Nessas coletneas as partituras musicais eram catalogadas de acordo com o potencial dramtico que, segundo seus editores, as faziam adequadas ao acompanhamento de situaes pr-determinadas. O mtodo de classificao seguido por esses editores era bastante especfico e a concepo que ento se fazia do acompanhamento musical era a da msica descritiva9. Assim, podia-se encontrar msica para qualquer tipo de situao: msica para catstrofe, msica misteriosa, msica para incndio, msica para navio afundando. Uma parte dessas msicas era composta especialmente para integrar as coletneas e outra parte era extrada do repertrio tradicional, na maioria dos casos adaptadas para terem seu apelo dramtico intensificado. Dentre essas coletneas, as duas mais citadas na literatura especializada so a The Sam Fox moving picture volumes de J.S. Zamecnik, publicada em 1913 e a Kinobibliothek de Giuseppe Becce ou Kinothek, nome pelo qual ficou conhecida. Tendo sua primeira edio datada de 1919, a Kinothek viria a se tornar a mais famosa publicao musical do perodo do cinema mudo. As coletneas musicais foram decisivas no que diz respeito interao entre a indstria, produtora de filmes, e os exibidores, ou msicos, responsveis pela elaborao do acompanhamento musical. Atravs delas, se tornou muito mais fcil para o realizador indicar8. A este respeito ver Prendergast, op. cit. pg. 6 e tambm Manvell, Roger e Huntley, John: The technique of film music, pg. 22. 9. O conceito de msica descritiva , por si s, bastante discutvel. O que significa, de fato, descrever musicalmente uma ao? Se quisermos ser rigorosos veremos que esta uma questo bastante complexa. Contudo, o termo tem sido bastante usado e, ao que se pode observar, ele se refere a dois tipos de procedimento bastante comuns em msica de cinema. O primeiro deles aquele onde existe um paralelismo rtmico entre a msica e a ao filmada. Trata-se de uma prtica que evoluiria no sentido daquilo que nos anos 30 viria a ser chamado pelos compositores de msica de cinema de mickeymousing. O segundo aquele onde se faz uso de unidades musicais bastante sedimentadas no ouvido cultural ocidental e que, associadas s imagens podem sugerir significados especficos. Assim, o canto gregoriano provocaria uma idia associativa de religiosidade; a marcha militar estaria associada idia de luta, guerra, vitria, e assim por diante.

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as msicas desejadas para o acompanhamento de seus filmes. Foi um primeiro passo no sentido da padronizao da msica no cinema. Contudo, persistia ainda a diversidade de formaes musicais, que variavam muito de uma sala de exibio para outra, e tambm da prpria execuo. A padronizao do material temtico musical foi o mximo de definio que se conseguiu atingir naquele perodo. Deste modo, chegamos terceira fase da msica no cinema mudo, que aquela onde os filmes j so distribudos com uma planilha de indicao de seu acompanhamento musical. Paralelamente, a crescente sofisticao da indstria do cinema vai fazer com que, gradualmente, as partituras originais, msica especialmente composta para um determinado filme, comece a tomar o lugar das planilhas de indicao. A primeira partitura original composta para um filme data de 1908 e foi assinada pelo compositor francs Camille SaintSans. Posteriormente transformada em pea de concerto com o nome de Opus 128, a partitura foi encomendada ao compositor pela companhia parisiense de cinema Le Film d'Art e serviu como acompanhamento musical para o filme L'Assassinat du Duc de Guise. Todavia, alguns anos iriam se passar at que esta se tornasse uma prtica comum no cinema. Em muitos casos a partitura distribuda com o filme no se tratava de uma msica original, mas sim, de arranjos especficos de msicas j existentes, especialmente trabalhadas para atender s necessidades expressivas do filme. Uma das partituras mais importantes do perodo a de O Nascimento De Uma Nao de D. W. Griffith, composta por Joseph Carl Breil. A msica desse filme no totalmente original. Uma grande parte foi composta originalmente para o filme por Breil e outra foi adaptada por ele, sob a rigorosa superviso de Griffith, e constituda por temas do repertrio orquestral e temas tradicionais do sul dos Estados Unidos. No que diz respeito estrutura de sua msica, Breil antecipa prticas que se tornariam comuns no cinema, tal como a recorrncia temtica. Nesse momento, quando os recursos narrativos do cinema encontramse bastante desenvolvidos, o referencial musical imediato deixa de ser o do espetculo de variedades e passa a ser a pera. O prprio Breil declarou que entendia O Nascimento de Uma Nao como uma ...pera sem libreto11.10

Sobre a partitura deste filme, encontramos a seguinte passagem:

10. Birth of a Nation (E.U.A. - 1915). 11 Em Miller Marks, Music and the silent film, pg. 138.

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A partitura trabalho conjunto de D. W. Griffith (que estudou composio em Louisville e New York) e um compositor e regente chamado Joseph Carl Briel. Ela consistia de uma seleo elaboradamente orquestrada de material original; um conjunto de pequenas citaes, eventualmente mescladas, de Grieg, Wagner, Tchaikovsky, Rossini, Beethoven, Lizst, Verdi e toda a srie de compositores isentos de copyright; e vrias canes tradicionais famosas dos Estados Unidos, tais como Dixie e The StarSpangled Banner.12 Curiosamente, apesar de sua importncia para a histria, muitas so as informaes distorcidas sobre a partitura de O Nascimento de Uma Nao. Na passagem acima, alm do erro de grafia no nome de Breil existe uma insinuao de que as msicas escolhidas apenas por serem isentas de direitos, enquanto sabido que Griffith e Breil sabiam exatamente o que queriam e realizaram um trabalho muito meticuloso para selecionar os temas no originais do filme. O prprio Griffith, na reedio sonora do filme, realizada em 1933 com a sua msica original ento sincronizada pelcula, omite o nome de Breil. Da mesma maneira que o nome de Griffith ficou marcado para sempre na histria do cinema pelas inovaes tcnicas que introduziu em seus filmes, especialmente pelo desenvolvimento das tcnicas de montagem e, conseqentemente, da narrativa flmica, tambm no que diz respeito msica de cinema a sua contribuio indiscutvel. Junto com Breil, ele foi um dos primeiros a fazer uso de unidades musicais temticas de forma recorrente, ou seja, de algo prximo ao leitmotivs, o que viria a se tornar uma das prticas mais comuns at hoje nas trilhas musicais de filmes. Se Breil tem o mrito de ter criado a msica de O Nascimento de Uma Nao, Griffith tem o mrito de ter sido um dos primeiros diretores a perceber a importncia da msica na narrativa flmica. Outro grande nome na msica nesta terceira fase do cinema mudo o do compositor Edmund Meisel, responsvel pela partitura dos filmes O Encouraado Potemkin e Outubro13 de Sergei Eisenstein. Os autores de trabalhos especializados so unnimes em afirmar que uma das maiores tragdias da histria da msica de cinema foi o irremedivel extravio da partitura original de O Encouraado Potemkin.

12. Em Manvell, Roger e Huntley, John: op. cit. pg. 25. 13. Bronienosets Potemkin (U.R.S.S. - 1925) e Oktiabr (U.R.S.S. - 1928).

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Como pudemos notar, a msica no perodo do cinema mudo percorre um caminho que parte de uma situao inicial onde ela no passava de um mero fundo musical para o filme e termina por alcanar um status de parte integrante do produto final, a partir do momento em que passa a ser distribuda junto com a pelcula. Foi um caminho onde a cada estgio tornouse mais claro o imenso potencial significativo que a msica possui e que pode emprestar aos filmes, especialmente naquele momento, quando no era ainda possvel contar com o recurso do dilogo. interessante tambm notar como a cada estgio cumprido pelo cinema no sentido de sua consolidao enquanto linguagem, especialmente no que diz respeito ao seu aprimoramento como linguagem narrativa, a msica torna-se cada vez mais uma pea fundamental do modo de produo. No por acaso que no momento em que a estrutura narrativa do cinema comea a se consolidar - e o marco dessa consolidao , indiscutivelmente, o trabalho de Griffith - a msica passa a ser cada vez mais definida pelos prprios realizadores dos filmes. No era mais possvel deixar o acompanhamento musical a critrio de cada um dos exibidores, pois isso comprometeria o resultado do filme como um todo. Mas naquele momento o cinema no poderia chegar ao destino que lhe estava reservado. Isto porque apenas uma parte do filme podia ser classificada como produto industrializado. O fato da msica ser ainda executada ao vivo nas salas de exibio fazia com que o cinema ainda fosse obrigado a manter um forte vnculo com o espetculo teatral. Na pelcula, que reprodutvel e, conseqentemente, passvel de industrializao, estavam contidas apenas as imagens, o que representa apenas uma das faces do filme. Enquanto linguagem audiovisual, o cinema era apenas semi-industrializado. A outra metade mantinha ainda as caractersticas da produo artesanal e estava sujeita a todas as variveis inerentes a esse tipo de produo. Uma execuo musical nunca exatamente igual a outra, assim como a representao de um espetculo teatral varia a cada sesso. A preocupao em definir a msica que serviria de acompanhamento musical para seus filmes uma tentativa da indstria de limitar o nmero dessas variveis, no sendo contudo possvel reduzi-las a zero. uma tentativa de levar a perspectiva de uniformizao da indstria, o conceito de padro de qualidade, para o domnio do artesanal. A tentativa intil de controlar, ainda que precariamente, o incontrolvel. Por tudo o que foi dito, encontramo-nos diante de um paradoxo. Por um lado a impossibilidade tcnica de sonorizao no permitiu que a msica no perodo do cinema mudo se alasse em vos mais ousados e pudesse alcanar um estgio muito alm do que ela

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chegou. Por outro, essa mesma impossibilidade, que inviabilizava a incorporao dos dilogos aos filmes, fez com que a linguagem narrativa do cinema se desenvolvesse independentemente deles, mas apoiada sobre o discurso musical. Assim, da mesma forma que o indivduo no esquece jamais a lngua aprendida na infncia, a msica passou a ser uma linguagem imprescindvel ao cinema, desde que ele teve todo o seu aprendizado na infncia ligado a ela.

Captulo 2

O SONHO DE EDISON

O ADVENTO DO SOM SINCRONIZADODesde o surgimento do cinema tentava-se, experimen-talmente, desenvolver um dispositivo que permitisse a sincronizao dos sons com as imagens. A idia, com certeza, era bastante antiga. O prprio Edward Muybridge1 na introduo de seu trabalho Animal locomotion apresenta o seguinte relato: (...)Deve ser aqui observado que em 27 de fevereiro de 1888, tendo o autor contemplado vrios aperfeioamentos do zoopraxiscpio, consultou o Sr. Thomas A. Edison sobre a praticabilidade de se usar esse instrumento associado ao fongrafo, para assim combinar e reproduzir, simultaneamente, na presena do pblico, aes visveis e palavras audveis. quele tempo o fongrafo no estava apto a alcanar os ouvidos de uma grande audincia, assim o projeto foi temporariamente abandonado2. Ao que tudo indica, a idia de sincronizar o som do fongrafo s imagens em movimento era uma obsesso para o prprio Edison, que em maro de 1893 patenteia o seu

1. Edward Muybridge: fotgrafo ingls radicado nos Estados Unidos. Foi um dos primeiros pesquisadores a obter resultados prticos com o registro e sntese do movimento atravs da fotografia instantnea no final do sculo XIX. considerado um dos pais da cinematografia. 2. Em Guidi, Mario: De Altamira a Palo Alto - A busca do movimento, pg. 141.

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famoso Kinetoscpio3. Uma outra experincia de sincronizao foi na Frana por Lon Gaumon, que antes de 1900 produziu uma srie de pequenos filmes sonoros com atores famosos, dentre eles a grande estrela Sara Bernhardt. Basicamente, todos esses dispositivos usavam o recurso da sincronizao mecnica do som s imagens, ou seja, eram dispositivos que, por meio de eixos e engrenagens, procuravam coordenar em simultaniedade a rotao da pelcula e a do cilindro - posteriormente disco - no fongrafo. Obviamente, pelo simples fato de sons e imagens estarem registrados em sistemas independentes e serem reproduzidas por mquinas diferentes, era muito difcil obter um resultado preciso, e com bastante frequncia o precrio sistema de sincronizao entrava em colapso. Um simples risco ou um sulco deteriorado no cilindro, um pequeno lapso da pelcula na grifa, ou fotogramas quebrados, eram motivos suficientes para comprometer todo o sistema de som sincronizado. A soluo para esse problema s se tornaria possvel no momento em que som e imagem fossem impressos na mesma pelcula. O primeiro sistema registro sonoro por meios fotogrficos que se tem notcia veio da Alemanha4 e foi chamado de Tri-Ergon5 Demonstraes deste sistema foram realizadas em 1919 e 1920. Paralelamente, Lee De Forest pesquisava nos Estados Unidos um sistema similar. J em 1923, De Forest exibia filmes de curta durao, por ele chamados Phonofilms, como uma atrao extra em salas de cinema americanas. O sistema de De Forest o antecessor do sistema Movietone6 desenvolvido por Theodore W. Case, assistente de De Forest, por encomenda de William Fox, e que viria a se tornar o primeiro sistema comercial de som tico para cinema7.3. O Kinetoscpio de Edison era uma mquina que permitia a exibio de filmes curtos, mudos ou sonoros, para um nico espectador. Seu desenvolvimento foi possibilitado pelo surgimento do filme em pelcula de nitrocelulose cuja produo por George Eastman teve incio em 1889. 4. A literatura registra que os fundamentos tcnicos de tal sistema j eram conhecidos antes mesmo da virada do sculo e teriam sido aplicados em 1911 por um francs de nome Lauste. 5. Segundo Eric Rhode, o Tri-Ergon era um sistema bastante superior aos seus similares. Caso a indstria de cinema alem no tivesse passado por tantas flutuaes, eles teriam estado em condies de produzir filmes sonoros de qualidade muito antes dos americanos. 6. Tambm chamado de sistema Fox-Case. Foi com este sistema que a Fox Films produziu o primeiro cinejornal sonoro, o Fox Movietone News em abril de 1927. 7. Basicamente, o sistema criado por De Forest, e posteriormente aperfeioado, consiste em um dispositivo que converte as ondas sonoras em impulsos eltricos que podem ser fotografados como variaes de luz em uma pelcula em preto e branco. Posteriormente, uma clula foto-eltrica instalada na mquina de projeo converte essas variaes de luz em impulsos eltricos que, amplificados, reproduzem as ondas sonoras originais.

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Em vista disso, a pergunta que se nos apresenta : se no incio da dcada de vinte j haviam sido superadas as dificuldades tecnolgicas para a sincronizao do som, por que apenas no final dessa dcada os filmes sonoros entram no circuito comercial? H vrios aspectos envolvidos neste fato. O primeiro deles diz respeito situao de estabilidade que viveu a indstria do cinema nos anos vinte. O pblico comparecia cada vez mais aos cinemas. O Star System j havia transformado em mitos diversos mortais. Apesar do rdio, em pleno desenvolvimento, o cinema ia bem, e era mudo. Embora a incorporao do som fosse inevitvel, ningum parecia disposto a arriscar seu bem estar em uma aventura cujo fim era imprevisvel. Assim, criou-se uma situao de estabilidade inercial na indstria do cinema de ento. Por outro lado, se o problema tcnico relativo sincronizao de sons e imagens estava resolvido, restava ainda o problema da amplificao desses sons8 . Estes dois motivos, bastante objetivos, normalmente so abordados pela literatura especializada. Mas havia ainda um terceiro aspecto na resistncia da indstria em tornar o cinema sonoro que normalmente no muito discutido: o fator esttico. Como foi dito anteriormente, o cinema - tal como havia se consolidado nas primeiras dcadas do sculo XX - mantinha um carter de espetculo ao vivo que era dado pelo acompanhamento musical. Para o senso-comum o cinema era uma arte muda, acompanhada de msica ao vivo. Era sabido que nenhum sistema de amplificao disponvel naquela poca poderia competir em termos de qualidade de som com a execuo da msica ao vivo. Isso fazia com que o risco da aventura do cinema sonoro se tornasse muito maior. O que os grandes estdios no perceberam que a sua pretensa estabilidade era muito mais frgil do eles poderiam supor. Em certo sentido todos sabiam que o cinema se tornaria sonoro, mas apostou-se em uma transio gradual. Ningum esperava o choque que iria ocorrer em 1927. Muitos estavam envolvidos em pesquisas para viabilizar o cinema sonoro. Todos sabiam que a incorporao do som ao filme seria inevitvel. Mas era preciso um motivo de fora maior para que algum se entregasse ao risco dessa aventura. Esse motivo foi econmico.

8. Este problema s veio a ser resolvido com a introduo das vlvulas eltricas, mais especificamente os diodos. A produo em escala comercial destes dispositivos tem incio por volta da metade da dcada de vinte, data esta que coincide com as primeiras experincias comerciais de cinema sonoro.

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Por volta da metade da dcada de vinte a Bell Telephone havia desenvolvido um sistema de som sincronizado para cinema no padro mais primitivo, ou seja, o som gravado em disco era sincronizado mecanicamente com a mquina de projeo. Tendo sido denominado Vitafone, o novo sistema apresentava como novidade o fato de comportar discos de 13 a 17 polegadas, o suficiente para sonorizar um carretel completo de filme. Foi esse o sistema usado pela Warner Brothers para introduzir o filme sonoro no circuito comercial. Para entender os motivos que levaram a Warner Brothers a apostar no novo modo de produo do cinema, preciso saber a situao econmica em que se encontrava esse estdio naquele momento. Um relato sobre essa situao dado por Eric Rhode: Por toda a dcada de 20 os quatro irmos Warner - Harry, Sam, Albert e Jack - foram tolhidos pela falta de capital. (...) Segundo Jack Warner, apenas as atuaes de animais salvaram-lhes da falncia: gorilas, tigres, chimpanzs - e Rin Tin Tin.9 Em vista disso, a aposta no cinema sonoro era um dos ltimos recursos disposio da Warner para sair da crise financeira em que havia mergulhado. O teste do sistema Vitafone foi feito no filme Don Juan, estrelado por John Barrymore, cuja estria ocorreu em 26 de agosto de 1926. Curiosamente, tratava-se ainda de um filme mudo cujo acompanhamento musical havia sido gravado em disco e sincronizado pelcula. A novidade passou despercebida, pois no havia nenhuma mudana de carter esttico no filme, se comparado aos outros filmes mudos. Pelo contrrio, a qualidade sonora do acompanhamento musical era bastante inferior da execuo ao vivo. O choque no mercado vai ocorrer, de fato, em 6 de outubro de 1927, quando a voz de Al Jolson sai da tela e inunda a audincia de canes. Era a estria de O Cantor de Jazz10. Comea a a febre dos talking pictures, como passaram a ser chamados. O Cantor de Jazz no um filme genuinamente falado11 Trata-se na verdade de um filme mudo com quatro interldios falados e cantados. Mas isso bastou para provocar uma verdadeira revoluo na indstria do cinema. O pblico queria mais e mais talking pictures. Aos estdios cabia a tarefa de produzi-los.9. Em Rhode, Eric: A history of the cinema. pg. 262. 10. The Jazz Singer (E.U.A. - 1927). 11. O primeiro filme integralmente falado produzido nos Estados Unidos foi The Lights of New York (1928), da prpria Warner Brothers.

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Foi uma verdadeira revoluo no modo de produo do cinema. Quem no se adaptou, foi posto de lado - desde atores at exibidores. Em relao a estes ltimos, especialmente, o cinema sonoro foi impiedoso. O grande investimento necessrio adaptao das salas de exibio para os filmes sonoros praticamente eliminou os independentes. As pequenas salas de projeo que no estavam vinculadas aos grandes estdios foram engolidas por eles: O advento do som possibilitou uma reformulao no apenas da produo, como tambm da exibio. A partir dos anos trinta, os equipamentos dos cinemas precisaram ser trocados. A projeo no poderia mais utilizar a velocidade de 16 fotogramas por segundo. O novo padro estabeleceu como norma tcnica a velocidade de 24 fotogramas por segundo, alm da necessidade de tratamento acstico das salas, com amplificadores, autofalantes e a prpria concepo arquitetnica. Com isso, os grandes estdios norte-americanos mais uma vez se aproximaram do capital financeiro, que passou a fornecer financiamentos para a adaptao ou construo de novas salas, desde que houvesse contratos de garantia com os estdios. Vale dizer que a maioria das grandes produtoras j possua salas de exibio, que foram as primeiras a serem adaptadas. Mesmo os exibidores independentes continuaram atrelados ao fornecimento de filmes atravs de contratos com os estdios. Pode-se dizer que, na prtica, o capital financeiro para a exibio foi avalizado pelos estdios, que optaram pelos exibidores que concordassem com as normas de distribuio que as grandes companhias impunham.12

A converso do cinema mudo em sonoro foi to brusca, que muitos filmes que haviam sido inicialmente planejados como filmes mudos foram subitamente reelaborados para se adequar nova realidade sonora. Em alguns casos isto foi feito aps o incio das filmagens.

OS PRIMEIROS ANOS DO CINEMA SONORO

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Em Capuzzo, Heitor: Twilight Zone - Combinatrias narrativas e intertextualidades.

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Em vista da forma abrupta pela qual se deu a transio entre o cinema mudo e o cinema sonoro, todos os envolvidos na realizao de filmes foram obrigados a se adaptar muito rapidamente. Nesse processo diversos recursos da linguagem, desenvolvidos ao longo de muitos anos de experimentao, tiveram que ser temporariamente postos de lado. Em termos de refinamento esttico e acabamento, os primeiros filmes sonoros estavam bem abaixo do padro de qualidade do cinema mudo. Ironicamente, todos os problemas advinham do prprio sistema de sonorizao. Naquele momento, era necessrio que o som fosse gravado ao vivo, na forma que hoje conhecemos por som direto. As cmeras at ento em uso eram bastante ruidosas e tinham de ser colocadas, junto com seu operador, em um cubculo isolado, de modo que esse rudo no fosse registrado junto com os dilogos do filme. Em outras palavras, a introduo do som roubou ao realizador de filmes no apenas o mundo de sonhos das imagens silenciosas, mas roubou-lhe tambm quase que todos os movimentos de cmera13. No que cabe musica de cinema, foi tambm um momento de muitas dificuldades. O registro sonoro, tal como era feito ento, permitia apenas duas sadas: ou se gravava msica, ou se gravava dilogo. Qualquer tentativa de se gravar msica simultnea ao dramtica exigia esforos desmedidos. Max Steiner14 relata os problemas que enfrentou nesse perodo: Nos velhos tempos um dos maiores problemas era a gravao direta, j que a mixagem e a dublagem eram desconhecidas naqueles dias. Era necessrio ter permanentemente a orquestra inteira e os vocalistas no set de filmagem, dia e noite. Era uma despesa imensa. (...) Era impossvel trabalhar com rapidez. Muitos ensaios e muitas tomadas (takes) eram necessrios antes que se pudesse obter um resultado satisfatrio. Eu soube de casos em que um pequeno nmero, de dois ou trs minutos de durao, teria levado dois dias para ser gravado15 . A precariedade dos equipamentos de gravao afetava tambm a qualidade da execuo musical. O prprio Max Steiner descreve uma situao onde isso ocorreu:

13. Em Prendergast, Roy: Film Music - A neglected art, pg. 20. 14. Steiner, Max (1888-1971). Compositor austraco, emigra para os Estados Unidos em 1924. Participa de espetculos teatrais na Broadway e em 1929 muda-se para Hollywood onde se tornar um dos mais frteis, produtivos e importantes compositores para o cinema. 15. Em Prendergast, Roy: op. cit. pgs. 22/23.

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Durante as filmagens de uma certa pelcula... levamos dois dias para encontrar um lugar adequado para o contra-baixo, j que as condies acsticas do palco eram tais que todas as vezes que o contrabaixista tocava o seu instrumento a pista de som era saturada (distorcida ou borrada). Esta experincia com toda a companhia - atores, cantores e msicos - no set, custou companhia setenta e cinco mil dlares.16 A inexistncia de recursos de ps-produo sonora, tais como o sistema de pistas sonoras, a regravao, a dublagem e a mixagem17, no permitia uma manipulao sofisticada da pista de som. Sendo assim, no havia o que hoje conhecemos por edio sonora. Dilogos, msica e sons naturalistas (rudos), tinham que ser realizados ao vivo durante a filmagem. Se, como foi dito por Max Steiner, o som de um contrabaixo era suficiente para saturar a pista de som, rudos mais intensos, tais como os tiros, por exemplo, tinham que ser forjados, pois era absolutamente impossvel grav-los a partir da fonte sonora real. Assim, de uma hora para outra, a msica, que antes era a responsvel por preencher todo o espao sonoro do filme, tornou-se um problema, e teve que conviver com os dilogos e os rudos. Na impossibilidade de inteirar-se com a nova sonoridade, ela se viu em situao de concorrer com ela. Uma concorrncia na qual a msica entrava em grande desvantagem. Em primeiro lugar preciso levar em conta todas as dificuldades tcnicas e o alto custo envolvido na produo de msica para os filmes naquela poca. Em segundo lugar vem a questo da estratgia de marketing da indstria cinematogrfica. Somos obrigados a reconhecer que, por este ponto de vista, a msica no era de modo algum uma novidade. Aquilo que foi visto como novidade realmente significativa na incorporao do som aos filmes foi a possibilidade do dilogo. O prprio termo usado ento para designar os filmes sonoros, talking pictures, um smbolo disso. Do ponto de vista musical, essa sndrome realista, que teve incio com o advento do som sincronizado, vai se constituir tambm em um dado de limitao. Objetivamente falando,16. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 23. 17. O termo mixagem j era usado no perodo mas se referia ao ato de coordenar os diversos microfones usados na gravao, de modo que houvesse equilbrio das diversas fontes sonoras na pista de som final. Atualmente, o termo mixar significa combinar as diversas pistas de som j gravadas e montadas em uma nica gravao. Todo o processo feito magneticamente ou, em sistemas mais recentes, digitalmente. A converso para o sistema de som tico o ltimo estgio da produo sonora do filme.

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havia apenas duas maneiras bsicas de utilizao da msica nos filmes de ento. A primeira delas era utiliz-la como acompanhamento musical, abolindo assim os dilogos e sons naturalistas. Esse tipo de utilizao da msica possibilitava a produo de musicais, onde os nmeros tinham que ser gravados ao vivo, som e imagem simultaneamente. Como vimos, isso era bastante dispendioso para os estdios18. Por outro lado, o uso da msica como acompanhamento, tal como era feito no cinema mudo, ia contra a necessidade comercial de se explicitar o novo recurso da sincronizao, e tambm contra a nsia por efeitos de carter realista que tomou conta de Hollywood. Isso acabou levando a situaes curiosas, como relembra o prprio Max Steiner: Mas eles (diretores e produtores) achavam que era necessrio explicar a msica visualmente. Por exemplo, se eles queriam msica para uma cena de rua, era mostrado um realejo. Era fcil usar msica em cenas de nightclubs, sales de baile e teatros, j que neles as orquestras necessariamente desempenham um papel no filme. Vrios procedimentos estranhos eram usados para introduzir a msica. Por exemplo, uma cena de amor poderia estar alocada em um bosque e para justificar a idia musical necessria ao seu acompanhamento, um violinista errante seria apresentado sem nenhuma razo objetiva. Ou, ainda, um pastor deveria ser visto conduzindo sua ovelha e tocando sua flauta, para o acompanhamento de uma orquestra de cinquenta instrumentos.19 A segunda opo era a de no usar msica no filme, ou no mximo utiliz-la quando fosse inevitvel faz-lo pelos moldes do realismo de ento. Na literatura podem ser encontrados diversos exemplos de filmes que fizeram pouqussimo uso da msica, concentrando seus esforos no apelo provocado pelos dilogos e pelos sons naturalistas20. H dois dos filmes desse primeiro perodo do cinema sonoro que merecem ser citados. O primeiro deles Chantagem e Confisso21, primeiro filme sonoro de Alfred Hitchcock, cuja estria ocorreu em junho de 1929. Chantagem e Confisso um daqueles filmes18. Apesar das dificuldades, h trs musicais que so sempre citados pela literatura como os primeiros exemplos do musical americano no cinema. So eles Broadway Melody (1929), King of Jazz (1930) e Forty-Second Street (1933). 19. Em Prendergast, op. cit. pg. 23. 20. Alguns desses filmes so Little Caesar (E.U.A. - 1930), Quick Millions e The Front Page (E.U.A - 1930). 21. Blackmail (Inglaterra - 1929).

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originalmente planejados para serem mudos e que durante a sua produo foram convertidos em sonoros. Assistindo a esse filme hoje, notamos claramente que se trata, na verdade, de um filme mudo com alguns momentos falados e alguns sons naturalistas. H, inclusive, alguns truques, na tentativa de forjar uma ambientao de cinema sonoro com material filmado originalmente sem som. Todo o primeiro rolo do filme acompanhado por msica ininterrupta e apresenta apenas seis efeitos sonoros, todos eles no sincronizados, sobrepostos msica. Tais so, por exemplo, o rudo da portinhola da carroceria do caminho e a cena dos detetives no toalete, onde ouve-se o rudo ambiente, inclusive dilogos, mas nota-se claramente que os sons no correspondem sua suposta fonte. Apesar de ser este o seu primeiro filme sonoro, Hitchcock demonstra j uma certa ousadia com o novo recurso. Segundo ele: A atriz alem, Anny Ondra, mal falava ingls e, como a dublagem tal como praticada hoje ainda no existia, contornei a dificuldade apelando para uma jovem atriz inglesa, Joan Barry, que ficava em uma cabina colocada fora do enquadramento e recitava o dilogo diante de seu microfone enquanto a Srta. Ondra fazia a mmica das palavras.22 Assim, Hitchcock inventou um mtodo de gravao que possui caractersticas do play-back e da dublagem. H tambm uma cena onde feito um jogo sonoro bastante interessante, um primitivo efeito especial com a palavra knife (faca). A msica de Chantagem e Confisso bastante prxima do cinema mudo. Essa sua caracterstica ressaltada pelo fato da msica nunca ser ouvida junto com dilogos e sons naturalistas. Quando h msica, h apenas msica. A msica em si uma verso exata do tipo de som usado para acompanhar filmes na maioria dos cinemas do ocidente no final dos anos vinte. Ela repetitiva, de contedo simples, altamente atmosfrica e quase toda baseada em um simples tema com variaes padro.23 Outro filme que vale a pena comentar o famoso O Anjo Azul24. Assinada por Friedrich Hollaender, a trilha musical desse filme um timo exemplo de como as22. Em Hitchcock - Truffaut: Entrevistas, pg. 44. 23. Em Manvell, Roger e Huntley, John: The Technique of film music, pg. 32. 24. The Blue Angel (Alemanha - 1930).

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dificuldades tcnicas eram contornadas com um pouco de criatividade. Em sua grande maioria, os momentos musicais so inseridos na prpria ao filmada, aquilo que na terminologia especializada recebe o nome de source music25. Dessa maneira foi possvel contornar o problema da edio sonora. Ainda no havia a possibilidade de executar um mixagem dos diversos sons, mas a possibilidade do corte seco foi utilizada com grande criatividade, de forma que a porta do camarim de Lola Lola (Marlene Dietrich) funcionasse como elemento de abertura e corte da fonte sonora. No que diz respeito organizao da trilha musical, Friedrich Hollaender foi extremamente meticuloso, combinando a ria Ein Mdchen oder Weibchen, da pera A Flauta Mgica de Mozart com canes de cabar, separando assim os universos do Prof. Rath (Emil Jannings) e Lola Lola. H uma diferena interessante entre as verses alem e americana desse filme. A verso alem possui uma abertura musical no sentido estrito do termo, na qual so combinados e transformados os temas da ria operstica e de Falling In Love Again, principal cano do filme. J a verso americana possui seus crditos iniciais apenas acompanhados por uma verso instrumental de Falling In Love Again. O balano desses primeiros anos do cinema sonoro demonstra que, se por um lado a msica foi como que posta em segundo plano pela indstria, por outro, o que h de melhor na produo cinematogrfica dessa poca de uma forma ou de outra envolve a linguagem musical. Apesar da msica no ser o foco das atenes, o cinema no conseguiu se sustentar enquanto linguagem sem fazer uso dela. Vale dizer que, mais uma vez, foi reforada a idia de que a msica havia se tornado parte indispensvel do texto flmico. Se as limitaes tcnicas impediram que nesse momento a trilha musical de cinema desse o salto qualitativo permitido pela incorporao da totalidade das sonoridades, so essas mesmas limitaes tcnicas que apontaram para a necessidade de uma evoluo nos equipamentos que permitisse um uso menos restrito da msica. Foi a tambm que se descobriu que o texto falado no cinema no tem a mesma importncia que o texto no teatro. Para incorporar os dilogos, a linguagem do cinema foi obrigada a se reestruturar, se adaptar s novas condies. A msica sempre havia estado l.

SUSTOS, MEDOS, EUFORIA: A POLMICA DO SOMAs limitaes tcnicas e estticas provocadas pela introduo do som sincronizado no cinema desencadearam uma grande polmica em torno da nova tcnica. Como sempre ocorre25. Entende-se por source music todo tipo de interveno musical no qual a fonte sonora claramente identificvel na imagem. Por exemplo, uma orquestra, um disco que posto a tocar, o rdio, e assim por diante.

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nessas ocasies, havia o grupo dos que estavam a favor do som e o grupo dos ferrenhos defensores do cinema enquanto arte muda. Havia o grupo dos puristas, que viam no som uma ameaa prpria linguagem do cinema. Segundo eles, o som viria destruir todas as conquistas obtidas at ento pelo cinema enquanto linguagem. Havia tambm aqueles que assumiam uma postura corporativista, protestando contra o imenso nmero de profissionais que se viram, ento, desempregados, desde atores, que no conseguiram se adaptar ao texto falado, at os msicos, diretamente ligados s salas de exibio, que do dia para a noite tornaram-se totalmente desnecessrios. Mas havia tambm os otimistas, os visionrios. O compositor Ernst Toch, escrevendo para o The New York Times, declarou que o foco de ateno da msica de cinema deveria ser o filme-pera26. E ele no estava se referindo a adaptaes de peras famosas, mas sim da criao de uma linguagem operstica peculiar ao cinema. O Dr. Toch chega, inclusive, a afirmar que o primeiro filme-pera, uma vez escrito e produzido, ir despertar muitos outros27. Em agosto de 1928 foi publicada pela primeira vez a famosa Declarao - Sobre o futuro do cinema sonoro.28 Assinada por Sergei Eisenstein, V. I. Pudovkin e G. V. Alexandrov, esse texto apresenta uma sria apreenso sobre os possveis usos do novo recurso tcnico que, segundo eles, poderia comprometer de modo irreversvel as conquistas obtidas at ento pela arte cinematogrfica. Em primeiro lugar, preciso refletir um pouco sobre a poca e o contexto em que tal declarao foi escrita. O cinema sovitico, naquele momento, estava cotado entre os melhores do mundo, no apenas por suas realizaes, mas tambm pelo alto grau de desenvolvimento que havia alcanado no plano terico. Foram eles, por exemplo, que sistematizaram as teorias de montagem. Seus textos, de uma forma ou de outra, so at hoje leitura obrigatria para os estudantes e os profissionais de cinema. Foi tambm um perodo onde a arte, a teoria e a ideologia revolucionria caminhavam lado a lado, unidas e indissociveis. Em vista disso, os textos tericos produzidos naquele perodo pelos soviticos tendem a ser extremamente afirmativos, decididos e, impregnados de uma grande carga ideolgica.26. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 21. 27. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 22. 28. Publicada originalmente nas revistas Sovietski Ekran e Zhizn Iskusstva em agosto de 1928. Posteriormente includa no livro A forma do filme.

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Acima de tudo, por trs das declaraes dos trs soviticos pode-se perceber o medo de que o cinema sonoro viesse destruir todo o trabalho desenvolvido por eles e por um grande nmero de cineastas ao longo de muitos anos. Havia o receio de que o cinema viesse a se tornar um teatro filmado. Havia o medo de que o som, novidade por si mesmo, passasse a ser o foco decisivo de toda a produo cinematogrfica. Nas entrelinhas dos argumentos dos soviticos percebe-se, tambm, o medo de que o cinema sovitico no consiga aparelhar-se a tempo de entrar no novo meio de produo junto com a indstria cinematogrfica norteamericana, o que levaria, inevitavelmente, a uma mudana na privilegiada posio que ocupava o cinema sovitico no contexto internacional. Como vimos, eles tinham razo no que diz respeito aos resultados obtidos pelo cinema sonoro a curto prazo. O que eles no puderam prever que o cinema sonoro passaria por uma evoluo to rpida em seus primeiros anos de existncia. No era possvel prever que as limitaes tcnicas seriam superadas com tanta velocidade e que no s o cinema no seria obrigado a abrir mo de suas especificidades de linguagem e articulatrias, como iria tambm incorpor-las a todo o complexo que integra a banda sonora do filme. Assim, o som no desarticulou a linguagem do cinema, mas trouxe a ela toda uma nova dimenso, cujas possibilidades narrativas e articulatrias s fizeram aumentar sobremaneira o lxico da linguagem cinematogrfica. Por outro lado, o texto dos soviticos apresenta uma soluo bastante lcida para o problema. Em um exerccio de futurismo quase visionrio, eles prope que a nica maneira do cinema incorporar o som sem ser obrigado a abrir mo de suas especificidades seria fazer um uso polifnico desses sons em relao s imagens. Em msica, o termo polifonia usado para descrever o tipo de construo musical onde vrias vozes se desenvolvem simultaneamente, articuladas umas com as outras, mas mantendo o carter de independncia meldica, ou de individualidade, de cada uma dessas vozes29. Em outras palavras, a idia dos soviticos a de que o discurso sonoro no pode ser subjugado pelas imagens, ou seja, que ele no pode ser usado apenas para corresponder ao29. O termo polifonia usado em msica em duas acepes distintas. A primeira delas, mais genrica, aquela em que ele se refere a qualquer tipo de construo musical que faa uso de sons sobrepostos, em oposio ao termo monofonia, que significa o tipo de msica onde apenas um som ouvido a cada vez. Assim, diz-se que o piano um instrumento polifnico, enquanto a flauta um instrumento monofnico. A segunda acepo do termo diz respeito idia de construo contrapontstica do discurso musical, a somatria de vozes independentes, e se ope ao conceito de homofonia, que o tipo de construo musical que faz uso de blocos sucessivos de sons, ou acordes, sem se preocupar com a individualidade meldica de cada uma das vozes.

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que est sendo visto. Som e imagem so complexos sgnicos paralelos, que devem interagir, mas conservando um grau de independncia que lhes oferea um grande nmero de possibilidades de articulao e, conseqentemente, de resultados significativos. Algo assim como ocorre com as diversas vozes de um contraponto. Nesse aspecto, os soviticos tinham razo. Tanto, que no iria demorar muito para o cinema descobrir toda essa outra dimenso representada pelo som. Passado o furor provocado pela novidade, os realizadores de filmes vo comear a buscar todas as possibilidades narrativas permitidas pelas combinaes de texto falado, sons naturalistas e msica. No era mais necessrio ser fiel ao realismo do primeiro momento. Esse foi o passo decisivo na consolidao do cinema. Foi tambm com isso que deu-se a consolidao do filme enquanto produto industrializado. Pela primeira vez o cinema se viu em uma posio de no possuir mais nenhum vnculo com as artes ao vivo. S ento ele est apto a explorar ao mximo sua potencialidade. Realizado o sonho de Edison, o cinema vai entrar em uma fase muito importante de sua histria e nesse contexto a msica vai exercer um papel fundamental.

A EVOLUO DA MSICA DE CINEMA NA DCADA DE TRINTAA introduo da gravao de bandas ticas independentes possibilitou banda sonora o mesmo grau de manipulao das imagens. Dilogos, msica e sons naturalistas poderiam, a partir de ento, ser gravados individualmente e posteriormente mixados em uma nica pista, com seus volumes devidamente balanceados. Torna-se tambm possvel editar a banda sonora, da mesma forma que era feito com as imagens. A sincronizao no precisava mais ser feita durante as gravaes, e as pelculas contendo o material sonoro podiam ser colocadas, junto com as imagens, na moviola, e sincronizadas mecanicamente. nesse momento que surge a edio sonora. a partir da, tambm, que podemos passar a nos referir msica de cinema como trilha musical, e ao complexo de trs pistas (dilogos, efeitos sonoros e msica) como trilha sonora. O incio da dcada de trinta assistiu tambm ao surgimento dos primeiros departamentos de msica nos grandes estdios de Hollywood. Nessa poca, era muito comum que as trilhas musicais dos filmes no fosse composta por um nico profissional. A velocidade com que eram feitos os filmes no permitia que se

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assumisse uma postura individualizada de artista perante a obra. Era preciso trabalhar na velocidade da indstria, no esquema das linhas de montagem. O compositor David Raksin conta que no dia que um novo filme chegava s suas mos, toda a equipe se reunia de manh para assisti-lo. Segundo ele: hora do almoo ns havamos separado o filme em seqncias que presumivelmente necessitavam de msica, determinado o tipo de material temtico necessrio e quem iria escrev-lo. Aps o almoo, enquanto eram preparadas as planilhas de tempo que nos permitiriam sincronizar nossa msica com o filme, Buttolph, Mockridge e eu nos dirigamos a nossos estdios para compor qualquer material especfico do qual estivssemos encarregados. Ns nos encontraramos de novo, rapidamente, com muitas verses de cada tema, para decidir quais em cada categoria seriam de melhor serventia aos nossos propsitos, que normalmente eram bastante claros porm nunca definidos; esses temas eram fotocopiados e cada um de ns ficava com um conjunto de todo o material para esse filme. A essa altura as planilhas de tempo j estavam prontas, assim ns dividamos o trabalho em trs partes, e cada um voltava para sua casa para compor o seu tero. s vezes havia tempo para cada um orquestrar a sua prpria seqncia, mas normalmente a urgncia era tanta, que na manh seguinte ns j estvamos entregando esboos para os orquestradores, e ao meio-dia eles estavam distribuindo pginas de partituras aos copistas. Na manh do quarto dia comearia a gravao; o estdio tinha uma refinada orquestra sob contrato, e disponvel a qualquer momento. As partituras tinham de trinta a quarenta minutos de durao, sempre incluindo perseguies em andamento muito rpido - os quais implicavam em muitas notas para serem escritas, isso tornava o trabalho lento; mesmo com a habilidade e o profissionalismo de todos os envolvidos era bem provvel que enquanto ns estivssemos gravando uma seqncia a outra estivesse ainda sendo copiada. No quinto dia, deveria comear um par de dias de mixagem (colocar todas as pistas de dilogo, msica e efeitos sonoros juntos para o preview ou a transcrio final). Depois disso haveria uma breve pausa e ento o processo comeava novamente.3030. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 31.

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Em vista dessa mecnica de produo da trilha musical, caracterstica aos grandes estdios naquela poca, muito comum encontrarmos os crditos de msica assinados pelo diretor musical31 do filme, que era o responsvel pela coordenao da equipe.

A QUESTO DO CLICHEm vista da excessiva carga de trabalho imputada aos departamentos de msica, natural que muitos filmes dessa poca apresentem uma srie de procedimentos similares em suas trilhas musicais. O senso-comum costuma definir esses procedimentos por clichs. Todavia, bom que seja feita aqui uma distino. O prprio termo clich tem um sentido bastante pejorativo e traz consigo uma idia de limitao criativa, de frmula prestabelecida. Num sentido mais estrito, pode ser considerado como clich o uso de uma mesma unidade mecanicamente. Isso, de fato, acontecia na poca, especialmente em produes mais baratas, tais como os seriados de cinema. Em muitos casos, inclusive, no havia a preocupao em se requisitar ao departamento de msica, j to sobrecarregado, que escrevesse uma msica original para essa categoria de filmes. O que se fazia era recolher material de arquivo j gravado e edit-lo com vista s necessidades do filme. claro que nesses casos a organizao da trilha musical era um trabalho muito mais mecnico e sujeito a todos os tipos de clichs. Mas preciso estar atento ao fato de que nem sempre o uso de um mesmo tipo de idia musical, ou de um mesmo procedimento significa um clich. de se levar em conta que havia um padro esttico no que diz respeito msica de cinema da poca, e at que ponto tais procedimentos podem ser classificados como clichs, difcil dizer.

CARACTERSTICAS DA MSICA DE CINEMA NA DCADA DE TRINTAA partir do momento em que o uso da msica nos filmes deixou de ser limitado por questes tcnicas, parece ter havido uma grande euforia. Passou-se a usar msica para quase31. O termo tambm usado para designar o profissional responsvel pela organizao de trilhas musicais montadas a partir de material em arquivo.

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tudo. De certa forma o que se v nessa poca um resgate da velha tradio do acompanhamento musical contnuo, nos moldes do cinema mudo. Esse fato pode ser explicado por duas vias distintas e complementares. A primeira delas diz respeito tradio do cinema, que era justamente a do acompanhamento musical contnuo. Essa tradio foi temporariamente abandonada por motivos tcnicos. Porm, ao que parece, assim que esses problemas tcnicos foram resolvidos e abriu-se o leque de possibilidades para o uso da msica, o referencial que se possua ento era o da tradio. A outra via de argumentao parte da idia de que a trilha musical de cinema, tal como a conhecemos hoje, onde a msica age interativamente no apenas com as imagens, mas com todo o complexo sonoro do filme, ainda no existia. Era preciso aprender a usar a msica, desenvolver uma nova disciplina. Passou-se, ento, a experimentar, e essa fase de experimentao caracteriza-se por um certo exagero. Por ltimo, preciso tambm lembrar que naquela poca havia entre os produtores o mito de que a msica teria o poder de conduzir o filme, funcionando como uma espcie de amlgama capaz de uniformizar defeitos de construo e oferecer-lhe progressividade rtmica. Nisso tambm possvel perceber um forte resqucio da tradio do cinema mudo e de como essa tradio foi decisiva na formao da linguagem do cinema. Esse tipo de trilha musical que ocupa quase que a totalidade do filme gerou um termo que at hoje bastante conhecido na rea: o mickeymousing32. Por mickeymousing entende-se o tipo de construo onde a trilha musical est diretamente vinculada ao filmada. um tipo de trilha musical que tem um carter bastante descritivo, parece estar sempre comentando as imagens. O vnculo se d, numa primeira instncia, pelo aspecto rtmico, ou seja, msica e imagem se desenvolvem com um andamento similar e possuem o mesmo grau de atividade rtmica33. Mas apesar da instncia rtmica ser primordial, tambm nos nveis meldico e de instrumentao pode dar-se a correspondncia.32. Obviamente o termo foi derivado do nome do famoso ratinho de Walt Disney. 33. O conceito de andamento na linguagem musical diz respeito velocidade do pulso sobre o qual a msica se desenvolve. Dizemos que um determinado movimento musical um adagio, por exemplo, quando seu andamento lento; j o allegro de um andamento rpido. Em termos absolutos o andamento medido por unidades metronmicas. Um andamento 60, por exemplo significa que cada minuto contm sessenta pulsos (ou unidades de tempo) daquela msica, trata-se de um andamento lento. Um metrnomo 240, por sua vez um andamento rpido, pois a cada minuto duzentos e quarenta pulsos sero percorridos. J o termo atividade rtmica refere-se ao nmero de figuras de durao (ou valores rtmicos) executados no espao de cada um desses pulsos. Um pulso pode ser subdividido, por exemplo, em quatro ou seis ataques, o que significa uma atividade rtmica intensa. Por outro lado, uma nica figura rtmica pode durar vrios pulsos, ou seja, pouca atividade rtmica.

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Um filme que exemplifica muito bem tudo o que foi dito acima E O Vento Levou34. Em seus duzentos e vinte e dois minutos de durao, nada mais nada menos que cento e noventa e dois apresentam alguma espcie de msica, ou seja, apenas trinta minutos do total do filme no possuem msica35. O tipo de relao entre som e imagem em E O Vento Levou tambm um exemplo bastante fiel da tcnica do mickeymousing, tal como era usado naquela poca. Parece haver uma concordncia entre os autores na rea de que o dado estilstico da msica do cinema na dcada de trinta tem como referencial a msica sinfnica e operstica europia do final do perodo romntico mais especificamente, a da segunda metade do sculo XIX. Essa influncia torna-se ainda mais explcita se notarmos o nmero de compositores europeus, ou de formao europia, que se instalaram em Hollywood naquele perodo36. A respeito desse dado estilstico, Prendergast diz o seguinte: Foi durante esse perodo (dcada de trinta), que os compositores solidificaram as formas e os estilos que seriam usados pelos compositores de filmes por quase todo o tempo que estava por vir. Max Steiner, Erich Wolfgang Korngold e Alfred Newman foram mais responsveis por estabelecer este estilo que quaisquer outros compositores. Impe-se a questo: por que esses compositores escolheram o estilo que eles escolheram, a saber, o idioma sinfnico da metade para o final do sculo XIX assim exemplificados nos trabalhos para o palco de Wagner, Puccini, Verdi e Strauss? Uma resposta que tem sido dada que o pblico entende esse idioma mais facilmente que outro. Esta resposta, todavia, meramente reflete um equvoco fundamental sobre a relao da msica e das artes dramticas. Quando confrontados com o tipo de problemas dramticos que os filmes lhes apresentavam, Steiner, Korngold e Newman apenas olharam (no importa se consciente ou inconscientemente) para aqueles compositores que haviam, em grande parte, resolvido problemas quase idnticos em suas peras.37 Em princpio possvel concordar com Prendergast. Porm, h questes que ficam ainda sem reposta: por que o cinema incorporou o modo de tratar o problema desses compositores e no um estilo musical totalmente diferente? Por que o referencial buscado por34. Gone With The Wind (E.U.A. - 1939). Msica de Max Steiner. 35. Ver em Bazelon, Irwin: Knowing the score, pg. 22. 36. Por exemplo : Max Steiner, Erich Korngold, Franz Waxman e Dimitri Tiomkin. 37. Em Prendergast, Roy: op. cit. pg. 39.

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eles no foi, por exemplo, o dos bals de Stravinsky? A, somos obrigados a voltar quela explicao que ele considera um equvoco fundamental. No possvel desconsiderar o fato desse estilo musical ser bastante acessvel ao pblico de cinema daquele perodo. O fato dos grandes estdios terem incorporado justamente esse estilo musical um dado significativo da aceitao desse tipo de msica por parte do pblico. No devemos esquecer, tambm, que a tradio musical do cinema, desde o perodo do cinema mudo, est ligada ao estilo romntico. Neste sentido, poderamos dizer que h uma progresso evolutiva natural, que faz com que a linguagem musical do cinema mudo permanea na primeira dcada do cinema sonoro. A transformao dessa linguagem e a incorporao de novos estilos algo que vai ocorrer gradualmente ao longo dos anos subseqentes38.

ALGUMAS QUESTES DE NATUREZA ESTTICATendo em mente tudo o que foi discutido no item anterior, torna-se possvel chegar a alguns pontos muito interessantes sobre a consolidao da linguagem da trilha musical no cinema. Em primeiro lugar h um dado bastante curioso: a partir do momento em que o cinema sonoro se consolida, o caminho que percorrem os profissionais envolvidos com a criao e a realizao de filmes no vai no sentido da gradativa incorporao da msica ao cinema, mas exatamente no sentido inverso, ou seja, o da gradativa economia no uso da msica. Esta constatao nos leva a um questionamento importante: no que diz respeito msica, o que mudou de fato com o advento do cinema sonoro? E a partir da: qual o papel da msica na composio desse novo discurso? Um aspecto importante do cinema sonoro aquele que diz respeito iluso de realidade. Sobre isto h um fragmento de Jean-Louis Comolli que diz o seguinte: A fala e o Sujeito da fala entram em cena. To logo eles so produzidos, som e fala so geralmente decretados a verdade, a qual estava38. O jazz e a msica atonal, por exemplo, s viriam a ser incorporadas pelo cinema na dcada de cinqenta, com os filmes: Um Bonde Chamado Desejo (A Street Car Named Desire - E.U.A. - 1951), msica de Alex North e Vidas Amargas (East of Eden - E.U.A. - 1955), msica de Leonard Rosenman. Coincidentemente, esses dois filmes foram dirigidos por Elia Kazan, o que faz deste diretor uma importante personalidade no que diz respeito evoluo da linguagem musical do cinema.

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faltando ao filme mudo... a verdade que subitamente anunciada, no sem alarme e resistncia, como tendo faltado ao filme mudo. E simultaneamente essa verdade torna no mais vlidos todos os filmes que no a possuem, que no a produzem. O suplemento decisivo, o lastro de realidade (Bazin) constitudo por som e fala ocorrendo simultaneamente, portanto, como aperfeioamento e redefinio da impresso de realidade.39 O conceito de iluso de realidade bastante til para se analisar o cinema sonoro sob o ponto de vista da incorporao do dilogo, basta ver que, de fato, houve um surto realista nos primeiros anos do cinema sonoro. Mas isso durou muito pouco e, depois, de que modo isso se aplica questo da trilha musical? Notamos que, no que diz respeito msica, o som sincronizado permitiu a incorporao da interveno musical de carter naturalista, aquela que possui uma justificativa na ao filmada40. Da a insistncia, nos primeiros anos do cinema sonoro, para que a msica fosse sempre justificada nas imagens. Mas, passada a novidade da incorporao do universo sonoro realista ao filme, o cinema volta a usar a msica sem se preocupar em justific-la visualmente. De certo modo, a herana do acompanhamento musical do cinema mudo estava enraizada a tal ponto na linguagem do cinema, que ele no poderia desfazer-se dela. A partir disso, pode-se dizer que a iluso de realidade no implica, necessariamente, no emprego de recursos naturalistas. O universo real do filme, construdo a partir de recursos articulatrios de carter naturalista ou no, envolve o espectador em seu prprio espao-tempo e, desde que esse universo seja verossmil, ou narrativamente consistente, a iluso de realidade estar criada. A msica , indiscutivelmente, parte desse universo real do filme, e como parte dele aceita pelo pblico, independente do fato de existir ou no alguma justificativa visual para ela. No toa que Hollywood j foi chamada de indstria de sonhos. O sonho o que o pblico espera do cinema e a msica um fator indispensvel para a construo desses sonhos. Partindo por esta via de anlise, percebemos que os compositores de msica para cinema da dcada de trinta se viram diante de todo um complexo sgnico a ser desvendado. Todo o referencial de msica aplicada s artes dramticas - teatro, pera, dana, mmica 39. Em Gorbman, Claudia: op. cit. pg. 43. 40. A literatura especializada chama esse tipo de interveno musical de source music ou de realistic music.

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podia ser aplicado apenas em parte ao cinema. Em todas as outras artes acima citadas h uma separao entre a msica e os outros complexos sonoros ou, no mnimo, eles se desenvolvem paralelamente. O cinema, ao contrrio, inaugura o conceito de linguagem audiovisual. O sonoro e o imagtico so concebidos e articulados como um todo. A msica v-se, ento, como uma das faces desse universo sonoro e torna-se necessrio engendrar todo um sistema de articulao para ela, tanto com os outros elementos sonoros, quanto em relao ao universo das imagens. A coexistncia com dilogos e sons naturalistas tambm permitiu ao compositor de cinema a descoberta da msica enquanto sonoridade no filme, e no apenas como discurso. O leque de possibilidades de texturas e contrastes sonoros foi largamente ampliado. Ironicamente, foi essa mesma coexistncia que possibilitou a incorporao do silncio enquanto sonoridade integrante desse universo. A dcada de trinta serviu como laboratrio para esse processo de descoberta e organizao de toda a dimenso sonora do filme. Nela surgem procedimentos que subsistem at hoje. Quando ela termina, o cinema sonoro, est consolidado. Mas, como sabemos, muito ainda estava por acontecer.

Captulo 3

O SONHO DE EISENSTEIN

O cinema sonoro no despertou apenas o interesse da indstria, dos grandes estdios. To logo tornou-se vivel a sincronizao de sons e imagens, comearam as tentativas no sentido de se estabelecer princpios tericos que pudessem explicar a relao entre ambos. Surgiram, tambm, os primeiros textos, crticos, que procuravam avaliar o uso que o cinema fazia da msica no nvel de sua produo comercial. Paralelamente, houve quem se dispusesse, atravs da experimentao prtica, descobrir as novas possibilidades significativas oferecidas pelo novo veculo, que poderiam, posteriormente, ser incorporadas pela produo industrial de filmes.

OS PRECURSORES DO VDEO-CLIPO compositor Edmund Meisel, colaborador de Eisenstein na msica dos filmes Encouraado Potenkim e Outubro, era um verdadeiro aficionado pela busca de relaes entre som e imagem. Partidrio da opinio de Eisenstein, de que a msica e o cinema possuem similaridades estruturais, desde o perodo do cinema mudo Meisel pesquisava um

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meio de explicitar essas similaridades. Em um texto de 1934, Ernest Borneman descreve um dos experimentos realizados por Meisel: Meisel analisou a montagem de diversos filmes mudos no que refere ao ritmo, intensidade, clmax emocional e carter. Para cada plano isolado ele designou um determinado tema musical. Em seguida ele combinou diretamente os temas isolados, usando o ritmo, intensidade e clmax da montagem visual para a organizao de sua msica. Ele desejava mostrar, com este experimento, que a montagem de um bom filme baseada nas mesmas leis e se desenvolve do mesmo modo que a msica. O resultado deste experimento foi que muitos dos assim chamados bons filmes de modo algum produziram msica, mas apenas um caos de vrios temas, desordenados e desorganizados. Outros dos filmes que ele escolheu, contudo, resultaram em um tipo de rapsdia, inusitada e extraordinria para os ouvidos, mas no entanto, no sem uma certa continuidade musical.1 Os experimentos de Meisel serviram de base para um projeto experimental bastante amplo que viria a ser desenvolvido pelo Instituto Alemo de Pesquisa Flmica em Berlin. Infelizmente, Meisel veio a falecer antes que tal instituio adquirisse cmeras sonoras, que lhe permitiriam pr em prtica diversas de suas hipteses. Trabalhando com a tcnica conhecida, ento por montagem sonora2, os pesquisadores desse instituto partiam da premissa que o cinema sonoro tornaria possvel - graas absoluta preciso na sincronia entre sons e imagens - o desenvolvimento de novos mtodos de construo de filmes. Dentre os aspectos estruturais que serviram de ponto de partida para as experincias as questes relativas ao pulso e ao ritmo ocuparam uma posio de destaque. A partir de uma msica pr-estabelecida, os pesquisadores passaram a executar a montagem de planos e1. Em Manvell, Roger e Huntley, John: The technique of film music: pg. 27. 2. Aqui o termo montagem sonora (sound montage) usado numa acepo diferente da usual e significa o mtodo de construo de filmes pelo qual a montagem das imagens determinada pelas leis estruturais da linguagem musical. Basicamente, trata-se do mtodo descrito no experimento de Meisel.

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seqncias de acordo com a estrutura temporal da msica. Sincronizando os cortes segundo o pulso e as figuras rtmicas da msica, procuravam chegar a um resultado onde o ritmo pudesse ser visualizado, em simultaniedade com a percepo auditiva. As experincias com o aspecto temporal da msica no se limitaram pura e simples juno de planos. Logo elas tinham atingido o domnio da montagem interna ao plano: panormicas, travellings, outros movimentos... Segundo Ernest Borneman: Pulso e ritmo, por exemplo, poderiam ser agora exprimidos por movimentos horizontais e verticais de um lado para outro; crescendo e decrescendo por aproximaes e retraes da cmera; a curva meldica por movimento em curva correspondente da cmera. Cmera lenta e cmera rpida eram usadas para representar variaes musicais de tempo; fade-in e fade-out para aumento e decrscimo de intensidade musical; one-turn onepicture para as sncopas; prismas para acordes; planos compostos e duplaexposies para vrios tipos de harmonias e dissonncias.(...) (...) Refres, por exemplo, poderiam ser exprimidos pela frequente repetio de uma certa srie de planos, ou temas recorrentes poderiam ser representados pelo realce de certas imagens. Truques de instrumentao tais como surdinas poderiam ser claramente interpretados por gazes, distores de espelhos e de lentes especiais.3 Apesar do imenso trabalho exigido na execuo de tais experimentos, os resultados no foram to significativos quanto seus idealizadores esperavam. Ao longo dos anos eles descobriram que as similaridades entre a linguagem musical e a articulao flmica no eram to exatas ou, pelo menos, que aquele no era o caminho para chegar-se essncia ltima dessa similaridade. Ao contrrio do que esperavam, suas experincias no iriam resultar em um novo princpio, ou uma nova norma esttica para o cinema sonoro. O prematuro estgio em que se encontravam naquele momento os meios de comunicao audiovisuais no lhes possibilitou perceber o verdadeiro potencial esttico de suas pesquisas. Muitos anos depois, j

3. Em Prendergast, Roy: Film music: A neglected art: pg. 27.

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na dcada de oitenta, os mesmos princpios viriam a ser aplicados novamente, agora sim com finalidade artstica, nos moldes estticos dos grandes veculos de comunicao de massa, a ponto de se tornar quase uma coqueluche. Eles no sabiam, mas estiveram muito prximos de inventar o vdeo-clip.

EISENSTEIN E A PARTITURA AUDIOVISUALNo mesmo perodo em que as pesquisas acima descritas eram executadas na Alemanha surgem as primeiras tentativas de tratamento da msica de cinema sob o ponto de vista terico. Por tratar-se, ento, de uma prtica muito recente, h muito de especulao nessas primeiras tentativas, no no sentido pejorativo do termo, mas no sentido de que no havia ainda o tempo suficiente para que ela pudesse ser avaliada com um maior distanciamento crtico. Uma das primeiras tentativas no sentido de se estabelecer um mtodo que pudesse orientar a relao da msica com as imagens pode ser encontrada nos primeiro e terceiro artigos da trilogia intitulada Montagem Vertical4 de Sergei Eisenstein. Eisenstein, assim como Meisel, acreditava na existncia de muitas similaridades entre os princpios articulatrios do cinema e os da linguagem musical. Desde seus primeiros textos tericos pode-se notar a insistncia com que ele se utiliza de exemplos e paralelismos musicais para explicar processos especficos do cinema. Em certo momento de seu trabalho, Eisenstein chega mesmo a apropriar-se de termos tcnicos musicais. Em sua famosa teoria dos mtodos de montagem, por exemplo, ele apresenta a seguinte classificao: montagem mtrica, montagem rtmica, montagem tonal, montagem atonal e montagem intelectual5. Basta olhar para esta lista para perceber-se que as comparaes de Eisenstein no eram apenas metforas, mas que ele realmente acreditava na correlao entre as duas linguagens.

4. Publicados pela primeira vez na revista Iskusstvo Kino (Arte do Cinema) entre os meses de setembro de 1940 e janeiro de 1941. Posteriormente includos no livro O sentido do filme. 5. Para maiores detalh