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52 Estilos da Clínica, 2011, 16(1), 52-65 RESUMO O presente artigo busca discutir os avanços teóricos de Rosine e Robert Lefort sobre a clínica do autismo sublinhando, sobretudo a formulação de uma clínica onde não há Outro mediante a apresentação de fundamentos da teoria psicanalítica de orienta- ção lacaniana. Para tal, o estu- do de componentes estruturais do autismo torna-se essencial visto que a publicação de Daniel Tammet sobre seu funcionamen- to subjetivo esclarece elementos fundamentais, a saber: encap- sulamento, objetos autísticos, duplos e construção de uma lín- gua própria. Enfim, uma vez que a tentativa da construção de tais componentes pelo sujeito autista opera-se, um tratamen- to do Outro se torna possível. Descritores: objeto autístico; tratamento do Outro; autismo. Dossiê Dossiê Dossiê Dossiê Dossiê A CONSIDERAÇÕES PSICANALÍTICAS SOBRE O TRATAMENTO DO OUTRO NO AUTISMO Luciana Castilho de Souza Rosine e R osine e R osine e R osine e R osine e Rober ober ober ober obert L t L t L t L t Lefor efor efor efor efort: o Outro R t: o Outro R t: o Outro R t: o Outro R t: o Outro Real e eal e eal e eal e eal e a não operação do a não operação do a não operação do a não operação do a não operação do For or or or ort- t- t- t- t-Da Da Da Da Da s pesquisas de Rosine e Robert Lefort, a partir dos anos 60 e, por meio do ensino de Lacan, contribuíram para a construção de uma clínica centrada no tratamento de sujeitos no qual não há Outro, isto é, há um Outro em excesso e sem furo. Do Nascimento do Outro (1980) à Distinção do autismo (2003), o casal Lefort nos apresenta um desenvolvi- mento teórico-clínico até então inédito no que tan- ge ao ensino de Lacan e a clínica de sujeitos autistas. Psicóloga clínica no Epoc – Espace Psychanalytique d’Orientation et de Consultation. Doutoranda em Psicanálise no Département de Psychanalyse de l’Université Paris VIII, França. 3 Estilos 16.pmd 12/9/2011, 15:24 52

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RESUMO

O presente artigo busca discutiros avanços teóricos de Rosine eRobert Lefort sobre a clínica doautismo sublinhando, sobretudoa formulação de uma clínicaonde não há Outro mediante aapresentação de fundamentos dateoria psicanalítica de orienta-ção lacaniana. Para tal, o estu-do de componentes estruturais doautismo torna-se essencial vistoque a publicação de DanielTammet sobre seu funcionamen-to subjetivo esclarece elementosfundamentais, a saber: encap-sulamento, objetos autísticos,duplos e construção de uma lín-gua própria. Enfim, uma vezque a tentativa da construção detais componentes pelo sujeitoautista opera-se, um tratamen-to do Outro se torna possível.Descritores: objeto autístico;tratamento do Outro; autismo.

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CONSIDERAÇÕESPSICANALÍTICAS

SOBRE O TRATAMENTODO OUTRO NO

AUTISMO

Luciana Castilho de Souza

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s pesquisas de Rosine e Robert Lefort, apartir dos anos 60 e, por meio do ensino de Lacan,contribuíram para a construção de uma clínicacentrada no tratamento de sujeitos no qual não háOutro, isto é, há um Outro em excesso e sem furo.Do Nascimento do Outro (1980) à Distinção do autismo(2003), o casal Lefort nos apresenta um desenvolvi-mento teórico-clínico até então inédito no que tan-ge ao ensino de Lacan e a clínica de sujeitos autistas.

Psicóloga clínica no Epoc – Espace Psychanalytique

d’Orientation et de Consultation.

Doutoranda em Psicanálise no Département de

Psychanalyse de l’Université Paris VIII, França.

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Eric Laurent (2007, 2010a, 2010b) nos indica a riqueza destacontribuição e do avanço teórico desenvolvido por tais autores so-bre as variações dos usos do significante sozinho como puro gozo,como orientação na clínica do autismo. Seguindo o ensino de Lacan,Rosine e Robert Lefort encontraram na topologia lacaniana os ins-trumentos que permitem abordar o autismo a partir da formulaçãonão há Outro. Este não há Outro indica um há Outro no seu estatutoReal, ou seja, para o sujeito autista tudo é Real, já que a operação deausência/presença – Fort-Da freudiano – como inscrição simbólicanão opera.

Freud, em seu artigo Além do princípio do prazer (1920) nos indi-ca a incidência do simbólico sobre o corpo. O autor fornece algunsindicativos clínicos ao observar seu neto, Ernst de 18 meses, jogarcom objetos. O famoso jogo da bobina realizado pela própria crian-ça consiste em lançar longe dela uma bobina ligada a um fio. Acriança pode assim pegá-la e relançá-la. Neste movimento, Freudsurpreende-se ao ver Ernst experimentar certo prazer ao lançar esteobjeto fora de sua vista ao invés de experimentar tal prazer justa-mente quando o objeto aparece. No decorrer do jogo, Freud obser-va a criança emitir dois sons diferentes: o-o-o e Da. O primeiro grito,Fort, significa partir e o segundo, Da, significa lá. Assim, “o jogocompleto seria desaparecimento e retorno”1. Uma nota de rodapéesclarece em seguida a presença de um espelho. Assim, na ausênciada mãe, a criança joga fazendo desaparecer e reaparecer sua própriaimagem no espelho e emite ao mesmo tempo os mesmos sons du-rante o jogo da bobina. No retorno de sua mãe, Ernst emite o-o-o,ou seja, “a criança encontrou durante sua longa solidão um modode se fazer desaparecer”2. Ora, o que podemos sublinhar a partirdesta observação freudiana seria que a bobina representa a imagemespecular, já que Ernst estabelece uma relação dual com o pequenooutro, seu semelhante.

Uma última nota de rodapé nos fornece outra informação, asaber: a criança, com a idade de cinco anos e nove meses, a partir dofalecimento de sua mãe não manifestou nenhuma tristeza, Trauer.Sabemos que Freud introduz neste artigo o jogo do Fort-Da vistoque ele questiona sua primeira elaboração sobre o princípio do pra-zer na qual o aparelho psíquico seria dominado pela satisfação. Taljogo leva Freud a analisar diferentes experiências de desprazer re-petidas pelo sujeito inúmeras vezes. Em outras palavras, quandoErnst experimenta o desaparecimento de sua mãe, ele sente prazer

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em reiterar esta ausência pelo viés deobjetos que ele faz desaparecer e apa-recer.

Assim, resta um tipo de trauma-tismo a repetir, experiência despraze-rosa que leva Freud a concluir a exis-tência de uma compulsão de repetiçãoalém do princípio do prazer. O autoradiciona que esta compulsão consis-te em algo de mais originário que opróprio princípio do prazer. Destemodo, Freud dá um passo a mais aoabordar a compulsão de repetiçãoalém do princípio do prazer, devidoao questionamento de sua teoria dalibido introduzindo o conceito depulsão de morte para além dos fenô-menos clínicos. A descrição do Fort-Da elucida não somente o que há alémdo princípio do prazer, mas tambémo acesso da criança à ordem simbóli-ca com a dimensão da perda que essaúltima implica. Segundo Freud, a bo-bina representa a mãe, essa introdu-zida no jogo logo que Ernst repete ovai-e-vem da bobina. Tal fenômenonão será sem consequência para acriança, já que esta experiência é trau-mática. O jogo inaugura assim, umainscrição simbólica, momento cons-titutivo de causação do sujeito.

Ao partirmos do primeiro ensi-no de Lacan, sabemos que o jogo doFort-Da inscreve-se numa ordem sim-bólica. Não se trata apenas do desa-parecimento ou do aparecimento damãe, presença/ausência, mas sim dofantasma do próprio desaparecimen-to da criança estabelecendo concomi-tantemente a primeira manifestação

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de linguagem, já que o jogo acompa-nha-se de uma vocalização. Se tiver-mos a representação, o objeto real nãoé necessário, ou seja, no que tange aouso do significante na neurose a ma-terialidade do objeto não é necessáriacontrariamente ao que se observa napsicose no qual o uso do significantepresentifica a materialidade do obje-to. É justamente neste ponto que aelaboração da presença e da ausêncianuma noção estrutural do sujeito re-pousa. A ausência da mãe reenvia àcriança seu próprio desaparecimento,como a experiência do espelho nosmostra. Assim, esta imagem que apa-rece é justamente a da criança que sereconhece no campo do Outro.

O automatismo de repetição(Wiederholungszwang) – no lugar decompulsão de repetição, termo freu-diano – proposto por Lacan (1956-1957), consiste na instância de umacadeia significante, ou seja, de umaautonomia do simbólico e da morti-ficação do significante que não deixade ter consequências no corpo dosujeito.

Porém, do que se trata no autis-mo justamente? O jogo do Fort-Danão opera, já que precisamente oOutro é Real, não barrado, S (A). “Eleé sem equivalente com o significanteque falta”3. A ausência da alienaçãono significante do Outro exclui a iden-tificação, significando assim que oespelho do Outro no estádio do es-pelho não opera entre i(a) e i’(a). Lem-bremos que justamente a partir dessanão identificação, já o Outro é Real,

o casal Lefort avança e elabora o du-plo e sua estranheza no autismo. “Tra-ta-se de um componente fundamen-tal e estrutural no autismo”4. Destemodo, o duplo, ao ir à contra corren-te daquilo que se passa no jogo dabobina, consiste na falta da diferen-ciação entre ausência e presença doobjeto, objeto esse que permanecenão simbolizado, falta da ausência doOutro. Aqui, a divisão do sujeito nãose faz, mas o duplo pode aparecercomo uma saída diante deste OutroReal, ou seja, no Real do duplo. É oque mostra os autores a partir do casode Marie Françoise e Nadia. EsteOutro permanece absoluto e Real,não furado e ameaçador.

PPPPPerspectiva sobre aerspectiva sobre aerspectiva sobre aerspectiva sobre aerspectiva sobre ainvenção no autismoinvenção no autismoinvenção no autismoinvenção no autismoinvenção no autismo

Em seu último livro, os Lefort(2003) expõem questões fundamen-tais a partir deste Outro massivocomo particularidade do autismo ar-ticulando os diferentes tratamentosdeste Outro, ou seja, a invenção decada sujeito autista a partir deste purogozo, gozo como prévio, por meio doestudo da invenção singular, comopor exemplo, a de Temple Grandin, ade Donna Williams e a de BirgerSellin.

Neste contexto, a questão quepoderíamos colocar seria a seguinte:como esta passagem – de puro gozoà invenção – poder-se-ia operar já que

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a passagem de S1 a S2 não é possível devido justamente a não ope-ração do Fort-Da? Para poder respondê-la, nos apoiaremos paralela-mente na indicação de Eric Laurent (2010) ao considerar o gozo noautismo como um encapsulamento, cápsula esta que pode deslocar-se em direção à construção de uma borda e de uma invenção. As-sim, esta invenção dar-se-ia a partir do encapsulamento singular acada sujeito autista. Dentro da clínica diferencial das psicoses, estegozo diferenciar-se-ia daquele do paranoico no qual é localizado noOutro, Outro em sua versão maligna, assim como daquele do esqui-zofrênico no qual é localizado no próprio corpo despedaçado.

Ao retomarmos a obra lefortiana, daremos seguimento ao estu-do de adultos autistas que puderam testemunhar, por meio de pu-blicações, suas próprias invenções. Tais testemunhos são publica-dos, sobretudo nos países anglo-saxões, por sujeitos autistas, inclusossob a categoria nosográfica de Síndrome d’Asperger como exten-são do autismo.

Autismos: KAutismos: KAutismos: KAutismos: KAutismos: Kanner e Aspergeranner e Aspergeranner e Aspergeranner e Aspergeranner e Asperger

Se em 1943, Kanner descobriu o autismo infantil precoce, em1944 o austríaco Hans Asperger descreveu o comportamento parti-cular de um grupo de crianças autistas em sua clínica em Viena. Ocontemporâneo de Kanner sublinha a presença de performances ex-traordinárias em tais sujeitos, “autômatos da inteligência”5, comoconsequência de uma originalidade de pensamento segundo nosmostra Harro L, uma das crianças acompanhadas por Asperger emsua clínica pedopsiquiátrica. Sabemos, porém, que o termo autismoaparece pela primeira vez em 1911 por meio de Bleuler. À luz dodesenvolvimento da psicanálise freudiana, Bleuler descreve a sín-drome dissociativa na psicose adulta, particularmente na esquizo-frenia. Neste estudo, o autor emprega o termo de esquizofrenia aoinvés de dementia praecox utilizado por Kraeplin em 1896 e consideraao mesmo tempo o autismo como uma perda de contato da realida-de em pacientes esquizofrênicos. Diante deste quadro e a partir danosografia psiquiátrica da época, o termo autismo designa o fato deo sujeito esquizofrênico voltar-se para si próprio em uma forma defechamento autístico, fechamento este voltado para suas própriassatisfações corporais. Ora, a descrição deste fechamento autístico

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em sujeitos esquizofrênicos seria umaresposta frente à invasão de gozo doOutro, que aparece aqui no Real docorpo despedaçado. No caso de su-jeitos autistas, este fechamento autís-tico aparece como encapsulamento,encapsulamente como uma saída sub-jetiva frente ao Outro Real. Todavia,esse encapsulamento pode vir a des-loca-se em direção a uma construçãode borda, como a construção deduplo(s) e o superinvestimento emcertos domínios do saber como sãoos casos apresentados por Aspergere pela publicação de sujeitos autistas– conhecidos também como autistasde alto nível – em voga nos paísesanglo-saxões. Justamente, devido aoestudo de tais sujeitos, autômatos dainteligência ou portadores de ilhas de com-petência, que a nosografia de Síndro-me de Asperger é criada posterior-mente, como consta atualmente nosmanuais de psiquiatria, CID 10 eDSM-IV (1996).

Apesar das descrições patogno-mônicas propostas pelos manuaissupracitados, nossa proposta consis-te em retornar à obra do casal Leforta partir da formulação não há Outroassim como a partir da via aberta portais autores ao estudar as biografiasou testemunhos publicados pelos di-tos autistas de alto nível. Essa clínicado autismo, precisamente clínica dosautismos, nos permite assim enfati-zar o tratamento do Outro dentro dasvicissitudes encontradas neste trata-mento pelo próprio sujeito. Para tal,partiremos da publicação de Daniel

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Tammet 6 e sua singularidade frente ao insuportável do encontrocom o Outro Real, a ausência do Outro enquanto barrado.

Daniel TDaniel TDaniel TDaniel TDaniel Tammet: de uma coberammet: de uma coberammet: de uma coberammet: de uma coberammet: de uma coberta numérica àta numérica àta numérica àta numérica àta numérica àinvenção de uma língua própriainvenção de uma língua própriainvenção de uma língua própriainvenção de uma língua própriainvenção de uma língua própria

Nascido no leste de Londres em 1979, Daniel Tammet, filhoprimogênito de uma numerosa família, foi criado entre três irmãs edois irmãos, entre os quais um autista. Sua vida, composta de deta-lhes complexos e confusos para o leitor, é constituída de elementosclínicos fundamentais que nos permitem extrair a lógica de seu fun-cionamento subjetivo, a saber: crises de cólera, encapsulamento au-tístico, presença de objetos autísticos, invenção de duplos, lógicavisual de números e letras, aprendizagem de várias línguas, partici-pação em concursos diversos e por fim a invenção de uma línguaprópria. Seu reconhecimento mundial dar-se-á por meio do recordeeuropeu alcançado em 2004, no qual recita 22 514 decimais do nú-mero pi sem fazer nenhum erro.

Durantes seus primeiros anos de vida, o cotidiano de Daniel émarcado por consultas médicas sucessivas visto que ele era consi-derado como “um bebê difícil” devido a seus choros intermináveise excessivos assim como a dificuldade em dormir.

Em breve não havia mais nem dia e nem noite já que meus pais se organizavamem função de meus choros ... poderia acontecer que por desespero eles me colo-cassem em volta de uma coberta para me balançar, minha mãe de um lado e meupai do outro (Tammet, 2007, pp. 25-26, tradução nossa).

Em meio a esse cenário, sua mãe dá à luz uma segunda criança,Lee, momento no qual Daniel começa então a bater sua cabeçacontra a parede de forma repetida tendo por vezes crises de cólerainsuportáveis, segundo ele mesmo descreve. Neste momento, Danielentra na creche e seus choros são aos poucos espaçados, devidojustamente à sua primeira fascinação por objetos, as ampulhetas deareia. Em seu relato, ele descreve detalhadamente o movimento dosgrãos de areia, assim como suas formas em detrimento da presençade outras crianças que ali se encontravam. “Eu era uma criança nomeu mundo” (Tammet, 2007, pp. 29-30). Tal encapsulamento nos

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permite voltar à formulação de Rosi-ne e Robert Lefort (2003) anterior-mente desenvolvida no qual o sujei-to autista encontra como respostaalgo que lhe permite tratar o OutroReal, como Tammet (2007) sublinhano final de seu livro: “Eles (meuspais) não faziam parte de meu mun-do” (p. 225).

Após as ampulhetas de areia, oslivros infantis tornam-se então o cen-tro de suas “obsessões”. Ele passahoras folheando as ilustrações colo-ridas, pressionando, por vezes, con-tra seus ouvidos suas mãos, no intui-to de parar os barulhos externos queo perturbavam. Daniel descreve as-sim as sensações corporais experi-mentadas a partir de tal movimentocomo uma forma de “condensaçãode silêncio”. Essa “condensação desilêncio”, Daniel encontrará tambémao observar seus pais “decifrarem” –ao invés da utilização do verbo ler –jornais, livros e revistas.

Ora, é justamente nesta épocaque Daniel começa a empilhar suces-sivamente livros em torno de seu cor-po numa tentativa de construir umenvelope corporal. Ele adiciona ain-da que o fato de estar coberto porpáginas numeradas e letras o permiteconstruir o que ele nominará “cober-tura numérica”. Podemos apontaraqui a tentativa de construção de umaborda a partir de seu próprio encap-sulamento, isto é, a construção deuma “cobertura numérica” a partir da“condensação de silêncio”. Nestecontexto, os números e letras passam

a ocupar um lugar essencial paraDaniel. Vale ressaltar que um pontoobscuro permanece para o leitor emtorno das circunstâncias que o levoua passar da obsessão das ampulhetasde areia à obsessão de livros. Entre-tanto podemos acrescentar o fato deque sozinho ao cair bruscamente daescada com um livro pesado ele foiinvadido por sensações enigmáticasque o levaram em seguida a visualizarcores ligadas a números e letras. Dian-te disso, poderíamos deduzir que atentativa de construção de um enve-lope corporal, por meio de númerose letras, permanece aqui articuladacom essa invasão de gozo enigmáticacomo puro Real.

Curiosamente, um elemento im-portante aparece em seguida no seurelato, a saber: um pesadelo repetidoonde ele é devorado por um dragãoseguido de seu próprio desapareci-mento. Aqui, observamos o encon-tro com o Outro ameaçador e semfuro. O que corrobora para tal refle-xão são justamente as sucessivas cons-truções de duplos e os sucessivos usosde objetos autísticos que Daniel reali-zará em seguida e durante vários anospermitindo-o tratar este estatuto doOutro. “Eu continuava a ter pesade-los, mas eles se tornaram menos fre-quentes e menos angustiantes. A gen-te pode dizer que eu consegui vencero dragão” (Tammet, 2007, p. 31).

Este uso posterior de outros ob-jetos autísticos e a construção de seusduplos ocorrerão concomitantemen-te com o uso privado de algumas pa-

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lavras até a invenção de uma línguaprópria, o Mänti, língua com mais demil palavras. Todavia, o uso queDaniel fará das letras e dos númerosnão deixa de ser surpreendente e fun-damental em sua invenção singular.Em outras palavras, na tentativa deconstruir uma língua própria, eleaprenderá vários idiomas no intuitode criar um vocabulário que lhe é pró-prio. “Criança, eu tentei construirdurante vários anos uma língua pró-pria” (Tammet, 2007, p. 180). Fenô-meno neologístico por excelência, aprocura de uma pronúncia e sintaxefazem também parte de sua invenção.“Eu nomeei minha língua o Mänti(pronuncia-se “maen-ti”.) segundo apalavra finlandesa mânty, pinheiro. Pi-nheiro significa também “amizade” e“comunidade”. (Tammet, 2007, p.180). Esta construção articula-se a suaimpossibilidade de compreender seussemelhantes, visto que ao ouvi-los,Daniel tinha a impressão de que eleestava procurando ao mesmo tempouma estação de rádio em sintonia comos sons emitidos por estes.

Todavia, tal fenômeno acompa-nhava-se do processo que ele chamade “sinestésico”, isto é, de imagens ede sensações, a saber: o termo ladder(escada) é azul e brilhante, enquantoque hoop (cérebro) é branco e suave.Daniel pode assim memorizar tantoa língua do outro, como sua próprialíngua por meio de imagens. Justa-mente o título de seu livro, Je suis néun jour bleu [Eu nasci em um dia azul],recai sob tal processo sinestésico. Sua

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fascinação pelo estudo de letras e pa-lavras vai de encontro com sua fasci-nação por números. Lembremos jus-tamente a sua construção inicial de“cobertura numérica” englobandonão só as letras como também osnúmeros. No que tange aos númerosacompanhados de imagens, a estessão atribuídos certa vivificação per-mitindo a Daniel se relacionar comseus semelhantes.

Se um amigo me diz que se sente triste oudeprimido, eu me imagino sentado na cavi-dade negra de um 6, e isto me ajuda a sentir ea lhe compreender. Quando eu leio um arti-go na qual uma pessoa foi intimidada por algoou alguém, eu me imagino em pé ao lado donúmero 9 (Tammet, 2007, p. 16).

Ou ainda em relação à data deseu nascimento, ele nos diz:

Eu nasci no dia 31 de janeiro de 1979. Umaquarta-feira. Eu sei porque no meu espírito,o dia 31 de janeiro de 1979 é azul. As quar-tas-feiras são sempre azuis assim como onúmero 9 ou o barulho de uma disputa(Tammet, 2007, p. 9, tradução nossa).

Este caso permite verificar a hi-pótese inicial de um deslocamento doencapsulamento de “condensação desilêncio” e aqui se entende o encap-sulamento como gozo, em direção auma construção de uma borda, a “co-bertura numérica” para enfim trataro Outro, Outro com uma uma línguaprópria. Neste sentido, atualmenteDaniel por meio de seu site internet7

divulga o aprendizado do Mänti e deoutras línguas e participa de concur-

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sos ou recordes numéricos fazendo assim um uso singular de suainvenção que o vivifica no Outro, Outro por sua vez menos amea-çador. Paralelamente, no ano de 2009, Daniel publica seu segundolivro, Embrasser le ciel immense: Le cerveau des génies [Abraçar o imensocéu: O cérebro de gênios], no qual ele próprio faz a tradução doinglês para o francês juntamente com um outro tradutor e explicaao longo desse livro o seu funcionamento subjetivo por meio dospressupostos neurocientíficos.

Ora, vemos precisamente o que um sujeito autista pode cons-truir como tratamento do Outro algo que o conduz a um apazi-guamento de gozo por meio do superinvestimento de números ede letras, fora da metáfora paterna, mas por meio de uma vivificaçãono Outro. Ao contrario do que nos propõe o casal Lefort na suaobra intitulada O nascimento do Outro (1980), poderíamos utilizarcomo título O nascimento para o Outro, como nos sugere EricLaurent (1981).

PSYCHOANALYTICAL CONSIDERATIONS ON THE TREATMENT OFTHE OTHER ON THE AUTISM

ABSTRACT

The current article has the aim to discuss the theoretical advances of Rosine and Robert Lefortwhere there isn’t Other based on the fundaments’ presentation of psychoanalyses’ theory oflacanien orientation. For that, the study of structural components of autism becomes essentialdue to the discussion of a clinical study case – the recent publication of Daniel Tammet and itssubjective functionality – based on fundamental elements such as: self-absorbed, autistic objects,doubles and construction of a single and own language. To conclude, once the construction ofsuch components is tried and done by the person itself, an Other’s treatment is possible.

Index terms: autistic object; autism; Other’s treatment.

CONSIDERACIONES SOBRE EL TRATAMIENTO PSICOANALÍTICODEL OTRO EN EL AUTISMO

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir los avances teóricos de Rosine y Robert Lefort en laclínica del autismo destacando la formulación de una clínica en la que no hay Otro, basada enla presentación de las fundaciones de la teoría psicoanalítica de orientación lacaniana. Así, elestudio de los componentes estructurales del autismo es esencial ya que la publicación de DanielTammet y su funcionamiento subjetivo clarea elementos básicos: encapsulado, objetos autistas,

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duplos y la construcción de un lenguaje propio. Porúltimo, si la construcción de estos componentes porsujeto autista opera, el tratamiento del Otro se haceposible.

Palabras clave: objeto autistico; autismo;tratamiento del Otro.

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NOTAS

1 Sigmund Freud. « Au-delà du principe de plaisir » (2001), Essais de psychanalyse(A.Bourguignon et al, trads., 2a ed., p. 159). Paris: Editions Petite BibliothèquePayot. (Trabalho original publicado em 1920).

2 Cf. Sigmund Freud, Essais de psychanalyse, Petite Bibliothèque Payot, 2001, p.59.

3 Formalização desenvolvida por Rosine e Robert Lefort ao longo de Naissancede l’Autre (1980) sobre o Outro como Real no autismo.

4 Rosine & Robert Lefort (2003). La distinction de l’autisme. Paris: Editions duSeuil, p. 27.

5 Hans Asperger (1988). Les psychopathes autistiques pendant l’enfance (ElizabethWagner et al, trad.). Paris: Les empêcheurs de penser en rond. (Trabalho originalpublicado em 1944).

6 Daniel Tammet (2007). Je suis né un jour bleu (Nils C. Ahl, trad.). Paris: Arènes.(Trabalho original publicado em 2006).

7 (www. optimnen.co.uk/about.php)

[email protected]

Recebido em maio/2011.Aceito em junho/2011.

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