Transpondo Barreiras – Alternativas para o teatro em comunidade

8
Transpondo Barreiras – alternativas para o teatro em comunidade Beatriz Angela Vieira Cabral UDESC/UFSC O projeto Teatro em Trânsito (2001-2005) foi assim denominado devido ao trânsito dos espectadores através de cenas distintas e concomitantes baseadas no cruzamento entre locais significantes, histórias e estórias da comunidade.Os espectadores são divididos em cinco grupos e cada grupo segue um roteiro distinto, liderado por um contador de histórias. Os atores – estudantes de teatro e moradores do local – são também divididos em cinco grupos, os quais se reúnem em seus respectivos locais a partir do primeiro encontro. Mas, teatro em Trânsito também representa uma metáfora ao caráter mutante desta forma teatral, que resulta principalmente de suas prioridades: identificar e exercitar diferenças; observar a alteridade através do olhar distanciado; promover um novo olhar à história; associar histórias seminais da comunidade aos locais escolhidos, enfatizando o que está por trás delas (a história não-oficial). 1 Experiências anteriores aconteceram na escola e espaço circundantes, e pretenderam ampliar o engajamento das crianças e as oportunidades de aprendizagem ao transformar o espaço habitual e buscar outras opções ao redor da escola, introduzir personagens inesperados ao longo do que, à época, chamávamos de trilha teatral. A motivação era a falta de espaços alternativos na escola e o potencial da mudança de perspectiva para ampliar a compreensão dos conceitos de ética indicados pelos Parâmetros Curriculares nacionais. (Cabral, 1998, 1999a, 2001). Em uma experiência no espaço comunitário em uma favela, uma sala de 4 por 6 m², a alternativa foi usar a mobília e objetos para construir um túnel e um muro a fim de obter espaços distintos dentro da única sala. O contexto da favela tornou impossível envolver adultos e utilizar o espaço exterior à noite, devido ao índice criminal e tráfego de drogas no local (Cabral, 1999b, 2002b). O desafio de realizar uma montagem baseada em estórias seminais e locais históricos de uma comunidade foi posto por um projeto de intercâmbio com a Universidade de Exeter. John Somers dirigiu The Payhembury Millennium Play em Devonshire (Somers, 2000) e o grupo de pesquisa brasileiro, sob minha coordenação, optou por uma antiga vila de pescadores, hoje um bairro de grande atração turística próximo ao centro de Florianópolis; um local com sítios tombados pelo patrimônio e presença de descendentes dos colonizadores açorianos (Cabral, 2002a). As formas de teatro investigadas nesta experiência foram exploradas em um trânsito posterior em uma pequena cidade colonizada por italianos, e nova experiência está programada para maio, em outra localidade à beira- mar, também antiga vila de pescadores em vias de descaracterização sob o impacto do turismo. O foco atual da pesquisa se relaciona com a implementação da diferença democrática (Giroux, 1986) e seu impacto nos participantes, em termos da mudança de parâmetros de lugar, identidade, história e poder. Os conceitos de habitus e violência 1 O grupo de pesquisa é composto por Beatriz Cabral (coordenadora), Célida Salume Mendonça, Maria Aparecida de Souza, Maria de Fátima Moretti e ZéiaSabino (professoras especializadas em teatro),e dois a três alunos, que variam a cada ano acadêmico. O grupo se reúne uma vez por semana, sendo que os encontros de multiplicam nos meses que antecedem cada evento.

description

Transpondo Barreiras – alternativas para o teatro em comunidade 1 O grupo de pesquisa é composto por Beatriz Cabral (coordenadora), Célida Salume Mendonça, Maria Aparecida de Souza, Maria de Fátima Moretti e ZéiaSabino (professoras especializadas em teatro),e dois a três alunos, que variam a cada ano acadêmico. O grupo se reúne uma vez por semana, sendo que os encontros de multiplicam nos meses que antecedem cada evento.

Transcript of Transpondo Barreiras – Alternativas para o teatro em comunidade

Transpondo Barreiras – alternativas para o teatro em comunidade Beatriz Angela Vieira Cabral

UDESC/UFSC O projeto Teatro em Trânsito (2001-2005) foi assim denominado devido ao trânsito

dos espectadores através de cenas distintas e concomitantes baseadas no cruzamento entre locais significantes, histórias e estórias da comunidade.Os espectadores são divididos em cinco grupos e cada grupo segue um roteiro distinto, liderado por um contador de histórias. Os atores – estudantes de teatro e moradores do local – são também divididos em cinco grupos, os quais se reúnem em seus respectivos locais a partir do primeiro encontro. Mas, teatro em Trânsito também representa uma metáfora ao caráter mutante desta forma teatral, que resulta principalmente de suas prioridades: identificar e exercitar diferenças; observar a alteridade através do olhar distanciado; promover um novo olhar à história; associar histórias seminais da comunidade aos locais escolhidos, enfatizando o que está por trás delas (a história não-oficial).1

Experiências anteriores aconteceram na escola e espaço circundantes, e pretenderam ampliar o engajamento das crianças e as oportunidades de aprendizagem ao transformar o espaço habitual e buscar outras opções ao redor da escola, introduzir personagens inesperados ao longo do que, à época, chamávamos de trilha teatral. A motivação era a falta de espaços alternativos na escola e o potencial da mudança de perspectiva para ampliar a compreensão dos conceitos de ética indicados pelos Parâmetros Curriculares nacionais. (Cabral, 1998, 1999a, 2001).

Em uma experiência no espaço comunitário em uma favela, uma sala de 4 por 6 m², a alternativa foi usar a mobília e objetos para construir um túnel e um muro a fim de obter espaços distintos dentro da única sala. O contexto da favela tornou impossível envolver adultos e utilizar o espaço exterior à noite, devido ao índice criminal e tráfego de drogas no local (Cabral, 1999b, 2002b).

O desafio de realizar uma montagem baseada em estórias seminais e locais históricos de uma comunidade foi posto por um projeto de intercâmbio com a Universidade de Exeter. John Somers dirigiu The Payhembury Millennium Play em Devonshire (Somers, 2000) e o grupo de pesquisa brasileiro, sob minha coordenação, optou por uma antiga vila de pescadores, hoje um bairro de grande atração turística próximo ao centro de Florianópolis; um local com sítios tombados pelo patrimônio e presença de descendentes dos colonizadores açorianos (Cabral, 2002a). As formas de teatro investigadas nesta experiência foram exploradas em um trânsito posterior em uma pequena cidade colonizada por italianos, e nova experiência está programada para maio, em outra localidade à beira-mar, também antiga vila de pescadores em vias de descaracterização sob o impacto do turismo.

O foco atual da pesquisa se relaciona com a implementação da diferença democrática (Giroux, 1986) e seu impacto nos participantes, em termos da mudança de parâmetros de lugar, identidade, história e poder. Os conceitos de habitus e violência 1 O grupo de pesquisa é composto por Beatriz Cabral (coordenadora), Célida Salume Mendonça, Maria Aparecida de Souza, Maria de Fátima Moretti e ZéiaSabino (professoras especializadas em teatro),e dois a três alunos, que variam a cada ano acadêmico. O grupo se reúne uma vez por semana, sendo que os encontros de multiplicam nos meses que antecedem cada evento.

simbólica estão subjacentes à avaliação contínua da construção do texto performático (Bourdieu, 1982, 2001)2. A suposição é que as formas de interação entre a universidade e a comunidade oferecem uma oportunidade única para investigar o papel da diferença democrática para promover a autonomia, a auto-estima e o pensamento crítico, o que equivale dizer, para transpor barreiras em termos de conhecimento e participação ativa na esfera social.

O Projeto A análise das experiências anteriores, mencionadas acima, mostrou que o impacto

dos participantes foi causado pela forma pela qual o tema foi abordado e o material foi introduzido: a transformação do espaço cotidiano que possibilitou novas formar de ver; a interação entre alunos de teatro e crianças, que trabalharam em pequenos grupos; as trilhas e os personagens inesperados encontrados durante o percurso; a ressonância do contexto teatral com os contextos histórico e social dos participantes; o uso de rituais como uma forma de abrir espaço para as vozes individuais; o sentido de cerimônia em espaços alternativos.

Para re-trabalhar estas questões na comunidade foi necessário transformar a trilha numa rede de cinco roteiros distintos, cada qual cruzando os demais e seguindo uma seqüência diferente de cenas a fim de facilitar o trânsito. Isto também facilitaria a acomodação do público, não mais que 25 espectadores para cada cena. Os contadores de histórias seriam os guias, conduzindo os espectadores. A intenção foi intensificar e salientar o caráter de cerimônia através da rotação do público – os ir e vir dos encontros sociais; a presença dos espectadores no espaço cênico; o sentido de pertencer; o contador de histórias como mestre de cerimônia. O planejamento desta nova etapa do projeto inclui algumas tarefas a serem desenvolvidas pelo grupo de pesquisa antes do primeiro encontro com os atores:

• Escolha dos locais associados à memória histórica da comunidade • Investigação dos eventos históricos que ocorreram nestes locais no passado • Entrevistas com moradores idosos da comunidade, a fim de fazer um levantamento das

estórias relacionadas com aqueles eventos • Dramaturgia, pelo grupo de pesquisa, para associar história e estórias, ou distintos

eventos históricos a fim de salientar suas implicações e contradições

As decisões referentes a estas tarefas levaram em conta uma preocupação central com a diferença democrática, uma vez que o Trânsito reuniria um grupo heterogêneo (níveis de idade, extrato social e origem diversos) em um processo criativo onde as vozes individuais representam empowerment e apropriação do texto – criando história e significância. Outra preocupação se relacionou com a necessidade de manter abordagens controvertidas e/ou irônicas ao status quo a fim de aumentar a perspective crítica e rejeitar

2 Habitus é entendido como a estrutura interna, os valores, as formas de percepção dominantes incorporadas pelo indivíduo, através das quais ele percebe o mundo social, e as quais regulam sua prática social..Violência simbólica representa o meio estruturante e estruturado da comunicação e conhecimento através dos quais o sistema simbólico faz uso de seu poder simbólico para impor a classe dominante sobre as demais. Minha tradução livre da versão portuguesa dos conceitos de Bourdieu. Vide bibliografia.

noções tidas como certas, referentes a `significações universais’, `consenso’ e `celebração’, as quais, juntas, acarretam uma leitura simplista dos contextos e circunstâncias históricos.

A junção de história e estórias possibilita abordar a história oficial de forma irônica ao se construir a narrativa. Além de levantar as contradições e ambiguidades embutidas nos eventos históricos, a ironia representa uma das formas mais poderosas de produzir tensão, a qual é um dos elementos-chave da ação dramática. A identificação de lugares em vez de espaços tem a ver com a distinção antropológica entre lugar, associado às significações individuais e/ou históricas, e espaço, a area física disponível. Ao propor lugar como ponto de partida, pretende-se intensificar o engajamento emocional dos participantes (moradores tradicionais e recém chegados) com a apropriação do texto teatral – uma fusão do texto histórico com estórias locais. A relação entre o texto resultante e o contexto social local traz à tona hábitos culturais e acentua a diferença, uma vez que estes estão profundamente enraizados na vida comunitária. Assim sendo, tornar visível as diferenças e problematizar os aspectos éticos e políticos que informam as suposições dos participantes permitem construir perspectivas dramáticas que incluem múltiplas vozes. O impacto deste procedimento nos participantes relaciona-se com a contínua quebra de expectativas, a introdução de abordagens incomuns aos eventos e locais históricos, o desenvolvimento de situações que propõem problemas a serem solucionados os quais permitam desmascarar questões tidas como inquestionáveis. O rompimento de barreiras em termos de conhecimento e experiência pode ser então observado pela mudança de perspectivas, códigos e contextos que giram o conhecido de cabeça para baixo.

Perspectiva Teórica De acordo com Giroux, ao se combinar os melhores insights do modernismo com

os do pós-modernismo, pode-se aprofundar e estender a pedagogia crítica: “Nós precisamos combinar a ênfase modernista na capacidade dos indivíduos usar a razão crítica para focalizar a questão da vida pública com a preocupação pós-moderna com como seria possível tornar-se agente em mundo constituído por diferenças” (1991:27). Este entendimento está subjacente ao planejamento coletivo do trânsito e à busca de uma abordagem metodológica que vise ambas a transformação e a emancipação. O papel do grupo de pesquisa na execução deste projeto é o de abrir oportunidades para envolver os participantes com as múltiplas referências que constituem os diferentes códigos culturais, experiências e linguagens – cada pesquisador com um olhar estranho ao seu colega, o que torna possível recontar e refocalizar o texto sendo construído. O objetivo é tornar as diferenças explícitas, não apenas para acordos informados, mas também para observar a história e os locais com novos olhos. Como Brecht costumava dizer, quando algo parece “a coisa mais óbvia do mundo”, isto significa que já se desistiu de qualquer tentativa para entender o mundo. A parceria estudantes de teatro – moradores locais estabeleceu a dimensão intercultural desde o primeiro encontro. O contexto multicultural é evidente tanto na comunidade (número crescente de migrantes e imigrantes) quanto na universidade (estudantes de outros estados e origens étnicas distintas). Em termos educacionais isto chama por organizar as referências múltiplas que formam as diferentes culturas e experiências. A mídia, diz Janet Murray, aponta para a forma mosaica e não linear de ler o mundo (…) chama a nossa atenção para muitas histórias compostas por um mosaico de

tomadas individuais (…) cria um padrão mosaico de pensamento, o qual nós agora aceitamos sem questionar (Murray, 1996:156-158).

Este novo paradigma traz consigo uma cultura de escolhas – nós crescemos entre uma variedade de vozes culturais; é possível dizer que nós somos feitos de diferentes vozes, e como tal nos identificamos com aspectos particulares de cada uma delas em épocas distintas de nossas vidas. Em vez de identidade, identificação torna-se o centro do processo de aprendizagem; em vez de considerar a ‘diferença’ como objeto de opressão, a noção de ‘diferença democrática’ torna-se central à educação.3 Nestas circunstâncias enquadramento e estrutura são fundamentais como princípios organizadores do trânsito, tanto ao nível individual (para visualizar mudanças de parâmetros de lugar, identidade, história e poder) quanto ao nível coletivo (para mediar as interações dentro dos grupos e entre todos os participantes)4. O conceito de diferença democrática é assim a base para as diversas interações individuais e coletivas. É também um conceito familiar para a maioria dos participantes, uma vez que os parâmetros curriculares locais enfatizam o seu triplo aspecto: acesso à escola, ao conhecimento e aos códigos culturais de elite – como a principal meta da inclusão. Neste contexto os rituais e as cerimônias foram consideradas como formas privilegiadas para investigar e visualizar as vozes individuais sob uma perspectiva coletiva. A associação Cerimônia & Teatro é aqui focalizada na perspectiva de Duvignaud, para quem “teatro é uma cerimônia social distinta e distinguível”. Para ele, a representação teatral não é um reflexo da realidade, mas sim uma outra realidade; um produto artístico que incorpora uma experiência real.

Em termos de Teatro em Comunidade, o espaço para cerimônias mantém a dimensão social apontada por Duvignaud, e a dimensão ficcional ressaltada pelo como se de um texto em construção (subscrevendo a idéia de work in progress, discutida por Cohen, 1997). As interações sociais dos participantes, em locais históricos, representam uma experiência real; o envolvimento com os jogos teatrais visando uma abordagem crítica à história oficial (e ao poder) reduz a distância entre as cerimônias social e teatral e acentua o compromisso com a produção coletiva. A dimensão cerimonial do teatro funciona como resistência cultural – afirma o indivíduo e as vozes grupais.

Entre as diferentes abordagens antropológicas ao ritual, a de Victor Turner (1988) é particularmente interessante ao teatro em comunidade, por associá-lo a uma forma teatral em processo, o que atualiza o processo cultural dos participantes. Assim, em vez da ênfase na comunicação de aspectos culturais, Turner vê o ritual como uma possibilidade de lidar com o poder, quando não há outra maneira de fazê-lo. As teorias do espetáculo descrevem rituais, de maneira geral, como manifestações coletivas, nas quais o comportamento cotidiano é transformado por meio da condensação,

3 A noção de diferença democrática é um aspecto central da pedagogia crítica, que chama atenção para as formas de subordinação (usualmente baseadas na idéia de concenso) e rejeita perspectivas educacionais e culturais que relegam a diferença como um objeto de condenação. Em vez disso, pretende equacionar o problema da aprendizagem ao considerer a “diferença” como central à organixzação do currículo e ao desenvolvimento da prática. Sobre este assunto ver Giroux, 1988; 1991. 4 Os princípios organizadores do trânsito e a metodologia que promove e amplia suas formas de interação foi o foco de um artigo anterior (Cabral, 2001b).

exagêro, repetição e ritmo. Os rituais envolvem gestos, cantos ou sons, cores ou luzes, e vozes, todos orquestrados em torno de um tema comum. De acordo com Schechner (1993:12-13), Pavis (1996:1-21) e Counsell (1996:143-178), as principais características dos rituais teatrais são: se constituem como uma experiência, contém status simbólico, são um processo de ações performáticas, e apresentam estruturas com qualidades formais e relacionamentos definidos.5

Procedimentos Metodológicos Uma análise contínua das diferenças que emergiram da interação participantes - texto – lugar foi concretizada através da apresentação de rituais observados na perspectiva de cerimônia. Em primeiro lugar, estas diferenças foram estimuladas pela abordagem dialética à história e estórias – ao criar a dramaturgia o grupo de pesquisa salientou as ações e atitudes contraditórias, deixando o texto aberto a interpretações distintas. Em segundo lugar, os atores foram convidados a contar suas próprias histórias e aquelas que eles ouviram sobre eventos passados e situações correntes similares. Finalmente, cada cena apresentou um ou mais momentos coletivos, onde ‘o povo’, ‘o grupo partidário’, ‘os eleitores’, ‘os vizinhos’, tinham algo a dizer sobre o confronto ou o desafio. A prática de registrar o processo através de protocolos (Koudela, 1992) já uma tradição em Teatro Educação, e foi aqui utilizada nos encontros iniciais – aqueles que definiram o texto teatral. Através de protocolos o relator do encontro registra as atividades e/ou as contribuições significativas ao trabalho, ou os problemas enfrentados, além de sua própria interpretação do evento, a qual é então confrontada com as opiniões dos colegas que devem também ser inseridas no protocolo antes deste ser aprovado. O objetivo é chagar a um documento que represente, segundo o grupo, um relato acurado do que ocorreu. Outro recurso que permitiu manter distanciamento e observar a situação sob nova perspectiva foi a rotatividade dos pesquisadores nas cenas. Para os estagiários que as dirigiam, a troca de idéias com diferentes professores, um por vez, ampliou a dimensão intercultural do processo e o papel central da diferença. Processo e produto foram registrados em vídeo e fotos para análise posterior. Este registro foi a base para as entrevistas informais com participantes da comunidade, duas a três semanas após o evento. O fato de que o Trânsito deu prosseguimento a uma pesquisa anterior realizada pelo mesmo grupo, e está aprovado para mais dois anos, possibilita ao grupo rever e ampliar o processo de análise, além de adicionar referências coletivas de uma etapa para a outra.

Questionamento Para a pesquisa em curso a questão central foi a diferença – como grupos tão heterogêneos responderam e solucionaram os desafios do roteiro e da estrutura que lhes for a introduzidos. A decisão quanto ao seu planejamento prévio, pelo grupo de pesquisa, pressupunha que este promoveria uma experiência densa e intensa em um período curto de tempo, uma vez que os participantes seriam impactados ao celebrar o verso e reverso de momentos significativos da vida de sua comunidade. A primeira experiência mostrou que os elencos das diversas cenas mantiveram intactos o roteiro e estrutura oferecidos e a apresentação buscou e priorizou efeitos cômicos. Uma vez que trama e roteiro estavam baseados em lugar – história – estórias a comicidade como 5 A investigação sobre rituais está relatada em artigo anterior (Cabral, 2001 a)

resposta dos atores e diretores às situações de opressão tornou-se o foco das discussões sobre autoria. Qual seria a origem do apelo à comédia: o entendimento de que ela funciona melhor em termos de teatro popular, ou a leitura que os grupos fizeram das circunstâncias históricas? Neste caso, esta leitura poderia revelar algum nível de naturalização da corrupção ou da trapaça? Poderia isto ser compreendido como violência simbólica? Isto é, estariam os efeitos cômicos afirmando o discurso hegemônico que descreve o Brasil como a terra do football e samba, onde a população apela ao jogo de cintura para resolver seus problemas? Ou, ao contrário, estas soluções revelariam o habitus dos participantes que vieram à tona com as improvisações? O questionamento centrado em habitus e violência simbólica permite aprofundar a reflexão sobre a relação entre os textos dramático e teatral; leva os participantes a perceber que ações e atitudes, em improvisações, usualmente vão além da intenção do ator porque traz à tona formas de comportamento incorporadas sem maiores questionamentos, que espelham àqueles predominantes no grupo social do qual o sujeito faz parte. Entretanto, estender este debate à comunidade ou às crianças iria requerer maior tempo e treinamento; a alternativa, neste caso, foi considerar estas questões durante o planejamento do segundo trânsito, a fim de preparar os atores e diretores para a recepção crítica do texto teatral. Em ambos os trânsitos rituais e cerimônias foram introduzidos para reunir pessoas de origem, idade e gênero distintos em cenas coletivas, permitindo focalizar ambiguidades e contradições, ao mesmo tempo favorecendo o ‘empowerment’ e a dimensão de protagonista dos participantes. O processo cultural tornou-se assim o centro do evento, pois os rituais e as cerimônias fizeram emergir a expressão de pontos de vista diversos delimitadas historicamente, além de uma perspectiva de grupo:

• A ambientação cênica marcada por tochas, máscaras, figuras humanas, ajudou a incluir o morador local na cena e promoveu um face-a-face com o espaço estético.

• A incorporação de cerimônias, rituais, danças, demandas públicas, etc., ampliou a interação ator – espectador e abriu espaço para as vozes individuais.

• A identificação e a representação das diferenças. • A limitação do tempo, a fim de incluir um grand-finale que celebrasse as

diferenças.

A análise de ambos os trânsitos mostra o impacto da transgressão de códigos e regras, e da ressonância do texto teatral com o contexto social dos participantes em cinco áreas distintas: desenvolvimento pessoal (aumento de auto-confiança, novos relacionamentos e habilidades); coesão social (identificação de novos parceiros e interesses comuns); auto-imagem e identidade (descoberta de liderança e popularidade); identificação cultural (de imagens e costumes); percepção (do teatro como forma privilegiada de expressão). Este impacto social e cultural é causado pela dimensão metafórica da produção. O cruzamento de narrativas, a apropriação e transformação de antigas estórias, tornou possível a leitura do trânsito como metáfora da maneira pela qual vivemos. Barthes (1988:79) lembra como as narrativas se alimentam da cultura e da comunidade para explicar ou confirmar nossa identidade cultural. As estórias que os participantes recuperaram e incluíram neste processo foram sobre personagens locais, hábitos e comportamentos coletivos, estórias para impressionar os outros ou chocá-los, ou, como diz

Goffman “estórias que mostram como uma pessoa se auto-apresenta através de narrativas em seus encontros diários no palco social” (Goffman, 1969:118).6 A pedagogia crítica (aqui, de acordo com Giroux) é um suporte eficaz para compreender as implicações de envolver um grupo heterogêneo com as referências múltiplas que constituem as diferentes linguagens, experiências e códigos. A primeira delas é que educar não deve ser apenas preparar para ler estes códigos criticamente, mas também levar o aluno a aprender como construir suas próprias narrativas e história. Ao considerar a noção de diferença democrática como foco para a organização da nova etapa do projeto, a atenção se concentrou na articulação entre memórias e fatos históricos, como uma forma de resistência. Esta articulação permite, em primeiro lugar, questionar as atitudes e ações relacionadas com cultura, poder e conhecimento (habitus). Em segundo lugar, representa um apoio para a resistência do grupo aos discursos historicamente construídos e socialmente organizados, que limitam as identidades particularizadas e as capacidades individuais (violência simbólica). Sob este ponto de vista, a dialética torna-se o princípio estético natural para vincular os participantes aos parâmetros de transformação de lugar, identidade, história e poder. Uma forma de fazer isto, pedagogicamente falando, é exercitar o que Giroux denominou (subscrevendo Foucault) “Contra-Texto” e “Contra-Memória”. O foco no contra-texto implicar ler dentro, sobre e contra um texto. Ao cruzar textos distintos, o que requer lê-los criticamente e aprender seus limites, revela-se sua agenda oculta, ou seja, revela-se o que está por trás da história oficial. Além disso, o contra-texto sugere a revisão do texto oficial ou das formas tradicionais de apresentação, através de modos alternativos de associar lugar, história e cultura popular (aqui estórias e memórias). De acordo com Giroux, a contra-memória resiste a comparações quer com a noção humanista de pluralismo ou com a celebração da diversidade por si só (1991:32). Como prática pedagógica, ela transforma a história, do julgamento do passado em favor de uma verdade presente, para uma contra-memória que combate nossos modos atuais de ler o mundo ao colocá-lo sob nova perspectiva. Como tal, torna possível re-escrever a história através do poder daqueles que tradicionalmente tem sido silenciados e estão agora envolvidos em afirmar suas identidades (ou construí-las) através da produção de diferentes narrativas históricas. As interações lugar – história – memórias (estórias) funcionam internamente como contra-texto e contra-memória. Ao reunir elementos de fontes distintas, cada cena provoca novos insights sobre as razões atrás dos fatos e suas implicações. Em algumas cenas do trânsito, história e lugar estavam co-relacionados, mas um fato de outro período histórico foi adicionado a eles a fim de introduzir tensão dramática – esta ‘collage’ indicou uma possibilidade, isto é, uma ação que poderia ter acontecido se as circunstâncias políticas tivessem sido outras. Ao nível externo, a interpretação também pode funcionar como contra-texto ou contra-memória – o deslocamento de ações e atitudes, ou a introdução de um personagem deslocado, chamam a atenção para o que está por trás da cena histórica e levam o espectador a perceber as possibilidades daquilo que não ocorreu. Finalmente, o desafio de focalizar diferença democrática parece ser renovado a cada evento e estar baseado no equilíbrio entre celebração e crítica.

6 Minha tradução da versão portuguesa da publicação do trabalho de Goffman.

Referências Bibliográficas Bourdieu, Pierre. O Poder Simbólico. 2001a.4a Edição. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. _______. Meditações Pascalianas. 2001b.Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. Bourdieu, P. e Passeron, J.C. 1982. A reprodução. Elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro, Francisco Alves. Brook, Peter. “The Culture of Links”, in Pavis (1996:63-67). Cabral, Beatriz A V. 1998. “Plantas da Ilha – a História de Marina”, in Arte em Foco (Florianópolis, DAC/UFSC), Vol. 1, No 1, pp: 77-94. _____. (Org.). 1999a. Ensino do Teatro – experiências interculturais. Florianópolis, DAC/UFSC. _____. 2001. “Rituals and Ethics - structuring participation in a theatrical mode”, in Research in Drama Education (Inglaterra, Carfax Publishing Company), Vol. 6, No 1, pp 105-117. _____. 2002b.“Impact and Risk in Drama in Education”, paper presented at the International Conference Researching Drama and Theatre Education, Exeter/UK, 2002b. _____. 1999b. “Teatro em Trânsito”, in Memória ABRACE I – anais do I Congresso Brasileiro Pesquisa e Pós - Graduação em Artes Cênicas, pp 651-653. _____. 2002a. “Interconnected scenarios for ethical dialogues in drama”, in Playing Betwixt and Between – the IDEA Dialogues 2001 (Eds B. Rasmussen e Anna-Lena Ostern). Bergen/Noruega, IDEA Publications. Cohen, Renato. 1997. Work in Progress na Cena Contemporânea. São Paulo, Perspectiva. ______. 1989. Performance como Linguagem. São Paulo, Perspectiva. Epskamp, Kees P.1989. Theatre in Search of Social Change - the relative significance of different theatrical approaches. Holanda, CESO. Erven, Eugene van. 2001. Community Theatre - Global Perspectives. Londres, Routledge. Giroux, Henri. 1986. Teoria Crítica e Resistência em Educação. Petrópolis, Vozes. _____. 1997. Os Professores como Intelectuais - rumo a uma pedagogia crítica da aprendizagem. Porto Alegre, Artes Médicas. ____. 1991. “Border Pedagogy and the Politics of Postmodernism”, in Education and Society (James Nicholas Publishers), Vol. 9, No 1, pp 23-37. Kershaw, Baz. 1992. The Politics of Performance: Radical Theatre as Cultural Intervention. Londres, Routledge. Murray, Janet H. 1997. Hamlet on the Holodeck – the Future of Narrative in Cyberspace. New York, The Free Press. Pavis, Patrice.The Intercultural Performance Reader. London, Routledge, 1996. Schechner, Richard. The Future of Ritual. New York, Routledge, 1993. Somers, John. 2000. The Payhembury Millennium Play. Occasional Paper. Turner, Victor. From Ritual to Theatre. The human seriousness of play. New York, PAJ Publications, 1988.