TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região...

25
TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -UESB Agência Financiadora: FAPESB INTRODUÇÃO A educação e o trabalho são inserções fundamentais pelas quais o indivíduo se articula dentro da sociedade. Segundo Saviani (1998, p.152), a educação é parte inerente da vida humana. Na necessidade de os homens produzirem coletivamente a sua existência, está o trabalho e, nesse processo, educam a si próprios e às novas gerações. O trabalho é princípio educativo, e a educação não só acontece no interior da escola, mas, também, no interior das condições gerais de produção. O trabalho está ligado às necessidades humanas e às condições materiais e políticas de cada momento histórico. A educação acompanha esse processo desde a sua compreensão como uma das maneiras que as pessoas socializam um saber coletivo, passado através das gerações, gestado no dia-a-dia do trabalho de homens e de mulheres, mas, também, como um saber que controla, disciplina e reforça o privilégio de alguns homens. Desse modo, a preocupação central deste texto é compreender como a relação trabalho e educação, especificamente a qualificação profissional, se constitui na agroindústria de leite – laticínio, direcionando as nossas análises para o campo das fabriquetas de queijo e requeijão e das indústrias de laticínios da região Sudoeste da Bahia A redefinição das formas regulatórias mundiais na produção de alimentos, em conseqüência das transformações estruturais do capitalismo, implica em consequências para o processo de trabalho no ramo de laticínios. Neste trabalho, procuramos analisar se essas mudanças ocorreram nas fabriquetas de queijo e requeijão e nas indústrias de laticínios da região Sudoeste da Bahia Para alcançar esse objetivo apresentamos algumas considerações a respeito do processo de trabalho, isto é, as diferentes maneiras de organização da produção, como também descrevemos o modo como os trabalhadores são qualificados nesses espaços.

Transcript of TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região...

Page 1: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia

Ana Elizabeth Santos Alves

e-mail: [email protected] Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia -UESB

Agência Financiadora: FAPESB INTRODUÇÃO

A educação e o trabalho são inserções fundamentais pelas quais o indivíduo se

articula dentro da sociedade. Segundo Saviani (1998, p.152), a educação é parte inerente

da vida humana. Na necessidade de os homens produzirem coletivamente a sua

existência, está o trabalho e, nesse processo, educam a si próprios e às novas gerações.

O trabalho é princípio educativo, e a educação não só acontece no interior da escola,

mas, também, no interior das condições gerais de produção. O trabalho está ligado às

necessidades humanas e às condições materiais e políticas de cada momento histórico.

A educação acompanha esse processo desde a sua compreensão como uma das maneiras

que as pessoas socializam um saber coletivo, passado através das gerações, gestado no

dia-a-dia do trabalho de homens e de mulheres, mas, também, como um saber que

controla, disciplina e reforça o privilégio de alguns homens.

Desse modo, a preocupação central deste texto é compreender como a relação

trabalho e educação, especificamente a qualificação profissional, se constitui na

agroindústria de leite – laticínio, direcionando as nossas análises para o campo das

fabriquetas de queijo e requeijão e das indústrias de laticínios da região Sudoeste da

Bahia

A redefinição das formas regulatórias mundiais na produção de alimentos, em

conseqüência das transformações estruturais do capitalismo, implica em consequências

para o processo de trabalho no ramo de laticínios. Neste trabalho, procuramos analisar

se essas mudanças ocorreram nas fabriquetas de queijo e requeijão e nas indústrias de

laticínios da região Sudoeste da Bahia

Para alcançar esse objetivo apresentamos algumas considerações a respeito do

processo de trabalho, isto é, as diferentes maneiras de organização da produção, como

também descrevemos o modo como os trabalhadores são qualificados nesses espaços.

Page 2: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

2

Para expor os nossos argumentos, teceremos, inicialmente, breves comentários

sobre agroindústria e a cadeia produtiva do leite e, logo em seguida, destacaremos as

fabriquetas e as indústrias.

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE A AGROINDÚSTRIA DE LEITE – LATICÍNIOS

No Brasil, a integração da agricultura com a indústria originou-se no período

colonial, quando os engenhos produziam açúcar para exportação. Já a relação da

agricultura com a indústria para o mercado interno começou no final da década de 1920

quando parte da produção foi dirigida para atender à expansão do setor urbano-

industrial. Até os anos 60, a expansão da agricultura foi de forma horizontal com a

ampliação de fronteiras e a intensificação da produção nos grandes latifúndios,

principalmente nas regiões do Estado de São Paulo. Mais tarde, a partir da década de

1960, com o desenvolvimento do complexo agroindustrial, começou a haver mudança

na dinâmica das relações entre a agricultura e a indústria. “A agricultura passa a se

reestruturar a partir de sua inclusão imediata no circuito de produção industrial, seja

como consumidora de insumos e maquinarias, seja como produtora de matéria-prima

para sua transformação industrial”. (SORJ, 1986, p.11). Segundo Graziano (1998), o

ponto central desse processo histórico é o desenvolvimento do mercado interno

capitalista com a ampliação da divisão do trabalho, transformação da base técnica e

aumento do consumo de bens intermediários necessários à expansão do capitalismo.

A indústria de alimentos foi um dos primeiros ramos da produção industrial no

Brasil, e a sua redefinição ao longo dos anos indica o estreitamento das suas relações

com a agricultura. Essa reciprocidade mostra a dinâmica de cada segmento produtivo

em razão das mudanças nos padrões de desenvolvimento tecnológico. No final das

últimas décadas do século XX, ocorreram profundas mudanças quando esse setor

buscou acompanhar, ainda que em ritmo menor, o processo de reestruturação produtiva

ocorrido nos países desenvolvidos, com a introdução da informática, de uma nova

trajetória tecnológica de produtos (diversidade de produtos) e de processos de

fabricação desenvolvidos por novas técnicas gerenciais. As cadeias produtivas, que,

tradicionalmente, operavam internamente, começam a pensar em crescer em ambiente

competitivo, dadas a abertura comercial, frente a emergência de uma política de

incentivos à exportação de produtos agrícolas semiprocessados e manufaturados, e a

Page 3: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

3

consolidação de um padrão de consumo interno tipicamente urbano que começa a adotar

os hábitos de consumo de produtos industrializados. (BELINK, 1994; FARINA e

ZYLBERSZTAJN, 1991). Em algumas cadeias, segundo FARINA e ZYLBERSZTAJN

(1991, p.15), o dinamismo da indústria processadora ocasionou profundas

transformações, a exemplo da indústria de extrato de tomate e de suco de laranja e a

avicultura; já em outras cadeias, como a do leite, da carne bovina e, até do café, as

transformações foram em menor escala, sendo caracterizadas por “complexos

agroindustrias incompletos”.

A cadeia produtiva do leite é um importante segmento da indústria alimentícia,

responsável por cerca de 12 % do total do valor produzido no ramo industrial de

alimentos (IBGE, 2005). É um setor agroindustrial que, pela ótica do progresso técnico

e estrutura industrial, compreende a junção de diferentes atividades, processando um

único insumo básico e gerando uma gama de produtos. A cadeia envolve um conjunto

de agentes: de um lado, as empresas que fornecem insumos, tecnologias, adubos

químicos, rações e os fabricantes de máquinas para a agricultura; no centro, os

produtores de leite; de outro lado, os laticínios, usinas e indústrias processadoras

transnacionais e nacionais, cooperativas, médio e pequenos produtores e também os

fabricantes de embalagens; mais à frente, a rede de distribuidores, os supermercados.

No meio das relações econômicas e políticas da cadeia, acha-se uma ambigüidade de

interesses e de conflitos entre as empresas. Jogam papel importante os interesses do

grande capital que, na lógica de acumular, buscam controlar os preços, os fornecedores

de matéria-prima e as empresas que comercializam os produtos, enfim, uma cadeia

formada por grupos que ditam as regras e aos quais é restrito o acesso dos pequenos

proprietários de laticínios já que não possuem capital de investimento. A esses pequenos

proprietários também é restrito o acesso às novas tecnologias e à matéria-prima para

aumento de produtividade.

Ao contrário de “complexos agroindustriais completos” que mantêm um vínculo

específico entre a indústria e os produtores, a exemplo do complexo avícola, a cadeia do

leite se dá, de modo geral, por meio de contratos informais entre a indústria e o produtor

rural. “Não há garantia de fornecimento para indústria, assim como não há garantia de

colocação do leite do produtor rural, não há qualquer nível de integração vertical entre

os laticínios e a produção de leite” (FARINA e ZYLBERSZTAJN, 1991, p.16), com

Page 4: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

4

exceção de algumas grandes indústrias e das indústrias geridas por cooperativas de

produtores. A realidade apontada por esses autores em 1991 persiste com poucas

alterações até hoje. A obtenção do leite do produtor para o processamento na indústria é

organizada por meio de contratos informais de “linhas de leite”: sistema que mantém o

produtor ligado a uma determinada empresa. Ainda existem poucas formações de

cluster (pólos de cadeias produtivas horizontais) do leite, a exemplo dos cluters da

suinocultura e avicutura do oeste catarinense, resultado da instalação de grandes

frigoríficos que atraíram granjas, empresas de revendas de máquinas, empresas de

assistência técnica, hotéis, etc. (DIAS, 2006).

A produção leiteira no Brasil é essencialmente atividade secundária da pecuária

extensiva de corte. Atualmente, o Brasil é o 7º país produtor de leite com uma

produtividade média de 23.320 mil t, segundo informações da EMBRAPA gado de leite

referente a 2005, o que corresponde a um nível inferior ao encontrado nos países de

produção altamente intensiva e mecanizada, a exemplo dos EUA. De modo geral, as

características da produção nacional são pobres. A produção de leite é variada entre as

diferentes regiões do país, e, mesmo em uma determinada região, bolsões de eficiência

convivem com áreas de baixa produtividade e dificuldades de integração ao complexo

agroindustrial.

O desnível tecnológico, em relação aos países de pecuária moderna, é menos

dramático nas regiões mais prósperas do Centro-Sul. Mesmo aí, no entanto, o impulso

modernizador é freado pela baixa rentabilidade da produção de leite cru, cujos preços

são vistos pelo produtor rural como insuficientemente compensadores, em confronto

com os custos elevados dos insumos modernos, como rações balancedas e sementes

especiais para pastagens. A baixa produção vem sendo mais do que compensada pelo

crescimento em regiões anteriormente pouco exploradas como o Sudoeste e Nordeste

mineiros, o Sudoeste baiano, o Agreste pernambucano e algumas regiões de Goiás. Em

geral, as empresas do Sudeste constroem uma nova fábrica de leite em pó e dão ao

produtor rural a oportunidade de transformar num artigo comercializável este

subproduto da pecuária de corte que é o leite cru. (PIRES e BIELSCHOWSKY, 1977).

Historicamente, a pecuária leiteira no Brasil é caracterizada pela baixa produtividade,

que, somada à alta sazonalidade da oferta e à falta de qualidade do leite in natura,

influencia nos índices de produtividade.

Page 5: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

5

A sobrevivência de empresas menores num mercado oligopolizado é cada vez

menor quanto à capacidade financeira para enfrentar as transformações dos processos

produtivos. E as pequenas empresas alimentícias tradicionais, além de enfrentarem o

controle e os altos níveis de produtividade das grandes indústrias para se manterem no

mercado, têm de enfrentar as políticas de controle sanitário do governo federal, que

exigem novas maquinarias de pasteurização e maior controle de qualidade, medidas

que, às vezes, as expulsam do mercado1. As normas do governo, desde os anos 80

(SORJ, 1986), vem exigindo qualidade nos processos produtivos, incentivando o

processo de resfriamento do leite na propriedade e o seu transporte a granel. Essa é uma

realidade para determinadas bacias de leite e grandes laticínios, mas não para os

pequenos produtores.

O Estado desempenha um importante papel no jogo competitivo da cadeia do leite,

ajustando e acionando um conjunto de regulamentos para assegurar o padrão de

qualidade dos produtos ou influenciar níveis de demanda, por meio de programas

oficiais de distribuição de leite à população carente. (LOIOLA e LIMA, 1998, p.3).

A indústria de laticínios no Brasil recebeu um grande volume de capital

estrangeiro, ocorrendo, desde 1976, a exemplo dos outros ramos da indústria, um alto

grau de concentração, concorrência oligopólica, controle pelo capital monopólico

estrangeiro e nacional (SORJ, 1986, p.32); no final da década de 80 e meados da década

de 90, aconteceu um processo de reestruturação que pode ser observado nos

movimentos de fusões e incorporações que ocorreram. Alguns segmentos da indústria

de alimentos sofreram uma reestruturação de propriedade e diversificação de mercados:

empresas estrangeiras associaram-se a empresas nacionais ou passaram a atuar no

mercado nacional; empresas nacionais mudaram de foco e diversificaram a produção

para atender a novos mercados. O mercado de equipamentos para a indústria de

laticínios é explorado no mundo inteiro por grandes empresas européias e, segundo

PIRES e BIELSCHOWSKY (1977), a chegada ao Brasil dos principais equipamentos

tecnológicos para esse setor teve início na década de 50 para o leite e, no final da década

de 60, para o queijo. Essa lógica continua até os dias de hoje.

As primeiras indústrias brasileiras de laticínios, segundo Dias (2006, p.86),

surgiram em meados dos anos 1800. “Não eram propriamente uma indústria, mas

1 Essas mesmas observações são feitas por SORJ (1986, p.44) a partir do final da década de 1970.

Page 6: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

6

oficinas caseiras, a maior parte situada em fazendas de municípios que se formaram no

ciclo do ouro de Minas Gerais. Faziam queijo e manteiga de forma rudimentar”. Num

segundo momento, por volta dos anos 1880 a 1900, o país entrou na era do leite

pasteurizado, quando começou a adotar a tecnologia de produção utilizada na Europa e

nos Estados Unidos. Em Minas Gerais, final dos anos 20, já existiam 965 fábricas que

produziam queijo, caseína, leite em pó, condensado e pasteurizado. No Estado de São

Paulo em 1929, havia trinta laticínios e venda domiciliar de leite pasteurizado em

garrafas de vidro na capital e no interior. As principais cooperativas de leite nos grandes

centros surgiram na década de 30, e a produção de leite em pó, nos anos 20, era

executada por uma única empresa, a Nestlé. A vinda dessa empresa marcou o começo

da disputa no mercado por empresas estrangeiras, presença acirrada a partir da década

de 1970. (DIAS, 2006, p. 91)

O leite é um produto perecível, por essa razão deve ser conservado em baixas

temperaturas e submetido a um tratamento térmico para destruição dos

microorganismos. O beneficiamento industrial do leite consiste em torná-lo mais

durável e mais seguro do ponto de vista higiênico, e a pasteurização é o método

utilizado para isso. O leite é a matéria-prima do fabrico de uma série de produtos, como

bebida láctea, leite fermentado, coalhada, queijos, leite em pó, manteiga, creme de leite,

requeijão, iogrute, doce de leite, leite condensado, leite pasteurizado (integral e

desnatado), leite UHT, ricota, sobremesas lácteas, soro de leite, soro de leite em pó.

A produção industrial do leite em escala utiliza uma tecnologia refinada que

envolve uma sequência de transformações relativamente simples da matéria-prima. Até

meados do século XIX, podem ser destacados alguns grandes momentos da evolução

tecnológica do ramo de laticínios, tomando como base a evolução dessas

transformações nos Estados Unidos, segundo PIRES e BIELSCHOWSKY (1977, p.3):

1) descoberta e difusão da pasteurização de 1860 a 1864; disseminada no final do século

XIX a pasteurização do leite para consumo; 2) difusão da pasteurização por meio de

placas – equipamento introduzido na Inglaterra em 1913, utilizado nos Estados Unidos

por volta dos anos 30 e, logo em seguida, chegou ao Brasil, na cidade de São Paulo; 3)

difusão do leite esterilizado (UHT) pouco antes da segunda guerra, introduzido no

Brasil ainda em pequena quantidade no início dos anos 70; 4) surgimento da automação

nos anos 60 nas grandes plantas industriais da Europa, utilizando processos contínuos e

Page 7: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

7

automáticos para a produção do leite, queijo e manteiga. No Brasil, a automação,

segundo informações de PIRES e BIELSCHOWSK publicadas em 1977, ainda é

incipiente, sendo raras as empresas que se aventuraram a construir plantas integralmente

automatizadas. As inovações têm avançado de modo pontual, sobretudo em

determinados pontos do processo de produção e por imposição legal. Pesquisas mais

atuais (LOIOLA e LIMA, 1998) continuam afirmando que as indústrias de leite são

heterogêneas quanto à questão tecnológica: convive um conjunto moderno de fábricas

em diferentes estágios tecnológicos com unidades artesanais, especializadas na

fabricação de queijo e manteiga.

Dias (2006) explica que a produção do leite pasteurizado foi o primeiro avanço do

processo de industrialização do leite; a produção do leite longa-vida foi a terceira e

última fase do setor, caracterizada como a maior invenção da indústria de alimentos.

Nesta fase, destaca-se também a produção de sobremesas, bebidas lácteas, iogurte em

sabores, produtos diet e light.

No que diz respeito à formação escolar dos trabalhadores que atuam no processo

produtivo, tanto do elo primário como na indústria de laticínios, é precária. Segundo

LOIOLA e LIMA (1998, p.12-13):

As transformações e a competitividade na cadeia do leite indicam uma necessidade de incorporação de um contingente de trabalhadores qualificados. No campo, a especialização das propriedades tem sido acompanhada de um maior nível de tecnificação, a qual demanda níveis maiores de escolarização da mão-de-obra de produção. Na indústria, a digitalização dos processos produtivos aponta na direção, também, de um novo perfil do trabalhador.

O baixo nível de formação, para essa autora, impede a “aquisição de conceitos e

normas de trabalho mais flexíveis e polivalentes mais atualizados” (p.13). As exigências

devem ser, no mínimo, de uma formação escolar básica, entretanto existem poucas

escolas no país que atendam a essa demanda; a formação profissional pelas instituições

de nível técnico é pequena e, no nível superior, existem algumas instituições que

oferecem cursos de Engenharia de Alimentos e Tecnologia de Alimentos. No nível de

treinamento, existem os centros de formação do Sistema S – SENAI e SENAR, e o

SEBRAE, que oferecem cursos eventuais. O principal centro de formação que tem uma

Page 8: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

8

trajetória na área P&D em laticínios é o Instituto de Laticínios Cândido Tostes, em Juiz

de Fora, MG. Alem de desenvolver e difundir pesquisas tanto na área de alimentos à

base de leite, como de processo, fermentos e fluxos industriais, esse Centro promove

treinamento de pessoal, tanto de nível técnico, nível básico, cursos avulsos, como

superior. (MANCINI, 2002).

Na Bahia, a estrutura do ramo leite e laticínios é composta por grandes empresas

transnacionais, cooperativas, pequenos e médios laticínios, granjas leiteiras e

microusinas de beneficiamento. Estas usinas são unidades de pasteurização de leite para

o consumo na própria região, construídas com incentivos do governo, a exemplo do

Programa PRODUZIR (PROGRAMA PRODUZIR 3, 2006). Ao lado disso, convivem

estabelecimentos clandestinos que não são inspecionados, as fabriquetas, que participam

do mercado informal, estimado em 30% a 40% (ROCHA, 2004), e que estão com sua

sobrevivência ameaçada em função do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do

Leite (PNMQL). A produção de leite no estado da Bahia encontra-se em expansão,

destacando-se este estado como o principal produtor do Nordeste. O quantitativo dessa

produção é, na sua maioria, originado de pequenas propriedades com baixo grau de

desenvolvimento técnico, excetuando as propriedades que têm intervenção direta das

indústrias processadoras.

A cadeia produtiva enfrenta as mesmas mudanças ocorridas em outras regiões por

conta da demanda por maior competitividade, produtividade, padronização dos produtos

e exigências de qualidade. Uma das principais mudanças desse processo, segundo

Rocha (2004, p.915), se traduz em “novas relações entre indústria e produtores

primários, destacando-se as tentativas de expansão do sistema de coleta a granel”,

buscando eliminar o papel dos vendedores intermediários de leite e atender o padrão de

qualidade ideal que envolve um conjunto de normas desde a captação, armazenamento e

transporte da matéria-prima, exigido pelo Programa Nacional de Melhoria da Qualidade

do Leite (PNMQL).

TRABALHO E QUALIFICAÇÃO EM FABRIQUETAS DE QUEIJO E REQUEIJÃO E EM INDÚSTRIAS DE LATICÍNIOS

O sudoeste baiano abarca mais de 30 municípios, dos quais se destacam Vitória da

Conquista, Jequié e Itapetinga. Nesses municípios estão concentrados o setor

agroindustrial, empresas especializadas voltam suas atividades para o beneficiamento da

Page 9: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

9

produção regional, especialmente o café, a suinocultura e a pecuária. A bovinocultura é

o forte em Itapetinga e outras cidades. A região ainda concentra a maior bacia leiteira do

estado. O crescimento populacional, o desenvolvimento do núcleo urbano gera uma

demanda por alimentos relacionada a atividade agroalimentar e por essa demanda

desenvolve-se um mercado de trabalho associado à cadeia produtiva do leite.

Atualmente, o país é formado por uma grande bacia leiteira, segundo Dias (2006) é raro

encontrar um município que não tenha currais leiteiros por menores que sejam. A região

sudoeste é um exemplo. A vinda dos laticínios é guiada pelo ditado “Onde tem boi, tem

vaca e onde tem vaca, tem leite” (idem, p.116). A produção leiteira possibilita, por um

lado, a reprodução de um mercado informal, trabalho e renda com a criação de

alternativas para o benefeciamento do leite nas pequenas fabriquetas e, por outro lado, o

desenvolvimento de pequenas e médias indústrias, inclusive o redirecionamento de

plantas produtivas de outras regiões.

Na região Sudoeste da Bahia, segundo informações da Agência de Defesa

Agropecuária da Bahia (Adab), há, aproximadamente, 20 indústrias de laticínios

inspecionadas por essa agência, classificadas entre pequenas e médias empresas. Na

pesquisa de campo, encontramos, sob inspeção federal, três laticínios – duas

cooperativas e uma empresa que rala queijo; uma usina de pasteurização de leite e

algumas fabriquetas de queijo e requeijão2.

AS FABRIQUETAS

As fabriquetas de queijo e requeijão estão presentes em toda a região sudoeste. Em

muitas fazendas, a produção de leite é transformada em queijo, requeijão e manteiga

para consumo próprio e venda nas feiras dos centros urbanos. Trata-se de uma atividade

tradicionalmente ligada à cultura do trabalho do meio rural, que vem sendo reproduzida

no Brasil “desde os anos 1800” (DIAS, 2006, p.86) até os dias de hoje, destacando-se

como alternativa de ocupação de mão-de-obra e de remuneração para o trabalho familiar

de pequenos agricultores e médios proprietários de terra, como também de trabalhadores

urbanos.

As fabriquetas de queijo e requeijão constituem-se em pequenas empresas que

atuam no mercado informal (modo de produção protocapitalista, produção de bens e 2 Não temos ainda dados oficiais sobre a quantidade de laticínios sob inspeção federal, sobre as usinas de pasteurização e tampouco sobre as fabriquetas.

Page 10: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

10

serviços voltados ao mercado capitalista), não são inspecionadas pela vigilância

sanitária, conseqüentemente não são atendidas por políticas públicas capazes de minorar

as carências e estão com sua sobrevivência ameaçada tão logo sejam aplicadas as

exigências do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite. Seus produtos são

comercializados nas feiras livres da região, nos pequenos supermercados e são usados

como matéria-prima para a fabricação de biscoitos, pizzas e bolos.

São pequenas indústrias, que combinam diversas formas de trabalho (relações

informais de trabalho, envolvendo trabalho autônomo, trabalho assalariado e trabalho

familiar), demonstrando as contradições e precariedade da realidade brasileira, em que,

de um lado, estão aqueles que sobrevivem nos subterrâneos da economia e, de outro, os

proprietários de terra que complementam a sua renda com a produção de produtos

clandestinos e exploração de mão-de-obra barata. Os trabalhadores dessas fabriquetas

tem baixo nível de escolaridade e a qualificação profissional é adquirida no cotidiano do

trabalho. Os proprietários aprenderam o ofício com pessoas da família ou com outros

proprietários.

Segundo Menezes (apud ROCHA, 2004, p.80), os produtos originários das

fabriquetas são, na sua maioria, consumidos por pessoas de baixa renda ou por uma

fração da classe média influenciada por “sua identidade cultural demandando alimentos

que tem significativas ligações com os traços culturais”3

Para ilustrar o modo como são qualificados os profissionais dessas fabriquetas,

relatamos, a seguir, três casos. O primeiro exemplo refere-se a um pequeno proprietário

de terra da região, com 20 anos de experiência no ramo. Ele possui algumas vaquinhas,

tira de 30 a 40 litros diários de leite, vende dez litros e transforma o restante em

requeijão e manteiga de garrafa. A sua rotina de trabalho consiste em ordenhar as vacas

a partir das 5 horas da manhã, preparar a massa e guardá-la, para produzir o requeijão na

sexta-feira, e trabalhar o resto do dia em outras atividades. Comercializa o produto no

sábado e no domingo na feira do Bairro Jequiezinho, em Jequié. Estudou até a quarta

série do ensino fundamental e exerce a profissão por falta de opção.

3 Existem no Brasil várias fábricas de queijos finos e especiais que, apesar do componente artesanal (o queijo é um dos derivados lácteos que menos demandam alta tecnologia), utilizam “novas tecnologias e ferramentas de qualidade para atendimento das exigências governamentais e de outros elos da cadeia”. (REZENDE, WILKINSON E REZENDE, 2005, p. 244). Não é o caso das fabriquetas da região sudoeste da Bahia.

Page 11: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

11

Meu pai colocava a gente pra estudar e, quando aprendia um pouquinho, já tava bom. Botava pra trabalhar. Saí da escola para trabalhar. Aprendi a trabalhar com o meu pai. Vendo o meu pai fazer requeijão, aprendi a fazer. O meu pai ensinou a vários filhos. O meu avô também fazia requeijão. Os meus filhos estão aprendendo a trabalhar. Eu precisava de mais estudo para trabalhar aqui.

A atividade desenvolvida pelo entrevistado é considerada marginal, do ponto de

vista do capital produtivo industrial, “em particular do ponto de vista da reprodução da

classe trabalhadora”. (SILVA, 1998,p. 169). Do ponto de vista cultural, constitui-se uma

empresa comercial, artesanal, única fonte de renda e de trabalho para muitos

agricultores no Nordeste4.

O trabalho está presente na vida do entrevistado desde cedo, desempenhando um

papel educativo por meio da prática produtiva reproduzida pela família, onde a escola

tem um caráter secundário. A prática parece, como explica Ferreti (1988, p.102), ser o

procedimento mais eficiente para a “aquisição de algum nível de qualificação

profissional” e, conseqüentemente, o saber teórico é desvalorizado, embora o

entrevistado reconheça “que precisava de mais estudo”. Por mais que se esforce, sofre

um sério processo de proletarização, vítima de um desenvolvimento excludente.

De acordo com Silva (2001, p. 8), para uma parte significativa da população rural,

principalmente os mais pobres, a única alternativa de trabalho continua sendo as

atividades em torno das possibilidades oferecidas pelo trabalho no campo. Esse autor

esclarece que “parcela da força de trabalho agrícola que vai se tornando excedente pelo

progresso tecnológico e pela reestruturação produtiva (…) não encontra

automaticamente ocupações não-agrícolas nas quais se engajar. E isso se deve

fundamentalmente à inadequação dos atributos pessoais dos trabalhadores agrícolas que

são dispensados (homens e mulheres de meia idade sem qualificação profissional e sem

escolaridade formal)”.

O segundo caso refere-se a uma fabriqueta de queijo numa fazenda da região de

Vitória da Conquista. A tradição da propriedade é a criação de gado; a produção do

queijo representa, para os proprietários, uma oportunidade de aproveitamento do leite. O

queijo é produzido por um trabalhador rural, treinado pelo filho do proprietário. O

4 Menezes e Almeida (2006) explicam “as redes de sociabilidade” que se formam na relação entre a cadeia produtiva do leite e as fabriquetas de queijo no sertão sergipano.

Page 12: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

12

queijeiro dessa fabriqueta tem 30 anos, é analfabeto e trabalhava anteriormente na

lavoura cafeeira. Exerce a atividade na fazenda havia um ano e três meses5. O processo

de trabalho inicia-se às 5h da manhã no curral na atividade de ordenha das vacas. Por

volta das 9h, já ordenhou todas as 50 vacas que estão produzindo leite na fazenda. Após

a ordenha, os 200 litros de leite (produção diária na entressafra) são despejados no

tanque para a produção do queijo, de acordo com a fala do queijeiro:

(…) após meia hora, deposita-se 3 litros de iogurte; passados 30 minutos, acrescenta o coalho, ficando o leite sobre o efeito do mesmo durante 45 minutos. Depois do leite coalhado, é dividido em pequenos pedaços que se separam do soro. Joga-se 30 litros de água fervendo, mexe durante 4 minutos. Em seguida, o soro é liberado. A massa separada do soro deve ser novamente amassada e quebrada, levando-a para a prensa onde é retirado o restante do soro por duas horas. Passado este processo, a massa é fatiada e colocada na água quente por um minuto, sendo retirada e depositada no balde para ser novamente amassada e depositada nas formas até a manhã seguinte. O queijo pronto é depositado por uma hora na salmoura para depois ser embalado. Diariamente são produzidos 20 kg de queijo comercializados na região.

O terceiro caso é bem semelhante ao anterior. Visitamos uma fabriqueta de

requeijão numa fazenda em Iguaí, bonita propriedade, localizada a poucos minutos do

centro da cidade. Os proprietários residem na sede, a fábrica funciona ao lado. A

produção do requeijão é feita por dois trabalhadores analfabetos, orientados pela esposa

do proprietário. Um deles é reconhecido como o “requeijoeiro”, o melhor da cidade,

segundo a proprietária: “Este requeijoeiro trabalhava em outra fazenda e já tinha uma

certa prática, e eu também tinha um certo conhecimento”. No fabrico do requeijão, há

algumas etapas diferentes da produção do queijo, mas o ritmo e a intensidade do

trabalho é o mesmo.

É interessante destacar alguns elementos desses casos descritos: a forma de

organizar o trabalho pressupõe uma polivalência ou multifuncionalidade do trabalhador,

constituindo-se uma estratégia para diminuir os custos de produção e elevar a

produtividade por meio da eliminção dos tempos mortos. O queijeiro, o requeijoeiro e o

ajudante se ocupam de uma série de atividades de grande responsabilidade, que não

5 Visita realizada em Setembro de 2006.

Page 13: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

13

podem ser interrompidas. Como o leite é uma matéria-prima de fácil deterioração e

qualquer deslize pode inviabilizar a produção, a atividade, exclusivamente manual,

envolve destreza e habilidade em identificar o ponto da massa. Esses trabalhadores

estão expostos a longa jornada de trabalho em pé, distante de qualquer fiscalização

trabalhista, correndo o risco de queimar as mãos pelo fato de terem que lidar com água

quente sem qualquer proteção. Manuseiam certa quantidade de leite e, para isso, é

necessário o uso de força física para levantar os baldes, despejar no tanque, mexer, etc.,

dado que a atividade é desenvolvida essencialmente por homens. Quem visita uma

fabriqueta de laticínios observa a falta de infra-estrutura e o pouco cuidado com o

manejo do leite. Sente o odor forte do leite penetrar pelas narinas. Com relação ao

significado de qualificação profissional, observa-se que corresponde à concepção que

privilegia a aprendizagem pela experiência prática. São trabalhadores que não tiveram

acesso à escola. E isso parece não ter importância alguma, pois, para a empresa, o que

interessa é o trabalho prático, simplificado.

De modo geral o que diferencia as fabriquetas entre si é o nível de renda dos

proprietários e a quantidade de leite disponível para a fabricação nos laticínios. Esses

fatores interferem na variedade dos produtos, no aumento do número de trabalhadores,

na maior divisão do trabalho e na aquisição de algum tipo de maquinaria, a exemplo de

batedeiras. O processo de produção entre elas é semelhante, e a qualificação profissional

é adquirida na prática. Vale ressaltar a presença na região de laticínio com investimento

em maquinário e infra-estrutura, porém sem registro na vigilância sanitária.

AS INDÚSTRIAS DE LATICÍNIOS

As indústrias de laticínios da região sudoeste conservam um modelo de produção

que mescla o arcaico e o tecnológico na maioria das atividades. Observamos uma

junção de trabalho manual versus monitoramento do trabalho desenvolvido pelas

máquinas. Na produção do leite pasteurizado, do leite em pó, leite condensado e parte

da produção de iogurte, as máquinas desenvolvem todo o processo de beneficiamento

do leite (da recepção à transformação); a intervenção humana apenas regula a máquina.

Na produção do queijo, ainda permanece uma presença forte do trabalho manual. É

importante destacar a diversidade das indústrias no que diz respeito à variedade de

Page 14: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

14

produtos, uso de tecnologias e divisão do trabalho, quantidade de captação de leite e

número de funcionários. A indústria de laticínios apresenta um potencial gerador de

empregos maior do que alguns setores da construção civil, indústria têxtil e indústria

automobilística (MARTINS & GUILHOTO apud MARTINS, 2004). Entretanto, os

segmentos que apresentam um maior índice de automação, demandando larga escala

produtiva e número reduzido de produtos na linha de produção, como o leite UHT (leite

longa vida) e o leite em pó, são geradores de menores postos de trabalho e exigência de

qualificação (MARTINS, 2004).

A seguir, descreveremos cinco indústrias sintetizando as nossas observações sobre

o trabalho e a qualificação. Distinguiremos cada uma delas pelas letras A, B, C, D e E e

destacaremos os pontos mais relevantes no que diz respeito ao ambiente físico aos olhos

do visitante, o processo de trabalho e as formas como os trabalhadores são qualificados.

Vale ressaltar que não pretendemos comparar as fábricas analisando-as do ponto

de vista do investimento em tecnologias, tamanho da planta, volume da produção,

padrão de competitividade e poder de barganha tanto na compra da matéria-prima como

na distribuição e comercialização dos produtos. Se o que interessa é conhecer o

processo de trabalho e a forma como os trabalhadores são qualificados, é possível

observar essas questões pelas semelhanças no modo como o trabalho se desenvolve.

As indústrias

A indústria A fica na cidade de Itapetinga, coleta, nas fazendas de toda a região,

em torno de 120 a 200 mil litros de leite a granel6 ao dia em caminhões isotérmicos. É

proprietária da maioria dos tanques para acondicionar leite nas fazendas. Produz leite

em pó, creme de leite, leite UHT e leite condensado. O grosso da produção é escoado

para todo o Nordeste e parte da região Norte. Possui 178 empregados, a maioria com o

ensino médio completo, que se alternam em três turnos de funcionamento. Entre esses

empregados, estão três engenheiros de alimento, um agrônomo, um veterinário e um

técnico laticinista. A operação dos processos é 90% automatizada.

6 Leite granelizado é um leite acondicionado em recipiente apropriado de 4 a 6 graus centígrados. Quando o leite não é granelizado, ele tem que ser coletado diariamente nos currais; é um leite sem qualidade. O carreteiro, por mais que saia cedo, aproximadamente às 7 horas, até que ele percorra todos os pontos, ele conclui a coleta mais ou menos às 11:30 h. Já que, geralmente, o leite na fazenda começa a ser tirado às 5 horas, há uma infração à norma do Ministério da Agricultura que exige que o leite, após a ordenha, fique fora do processo de resfriamento por, no máximo, duas horas. Cada ponto de coleta tem que ter um tanque, o que não impede, pela proximidade entre as fazendas, de haver um recipiente coletivo.

Page 15: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

15

A indústria B fica na cidade de Maiquinique7, capta de 20.000 a 22.000 litros de

leite por dia8 em caminhões isotérmicos em fazendas de 120 produtores associados, em

7 linhas (uma linha é o percurso que o caminhão faz para coletar o leite granelizado nas

fazendas). Produz leite pasteurizado, queijo parmesão e outros tipos, iogurte, bebida

láctea e manteiga, enroladinho de presunto, enroladinho de mussarela. A produção é

vendida para Salvador, Itapetinga e Vitória da Conquista. Possui 50 funcionários e um

engenheiro de alimentos que fica a disposição. Segundo o gerente de produção, a

maioria tem o ensino médio completo, e, àqueles que não o têm, a empresa está dando

oportunidade para estudar, além de treinamento em parceria com o Sebrae e a Agência

Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab). A operação dos processos é semi-

automática.

A indústria C fica na cidade de Itapetinga9. É uma pequena empresa familiar. Nela

trabalham um técnico laticinista (formado pelo Instituto Cândido Tostes), com

experiência no ramo por já ter atuado em uma grande empresa que encerrou as suas

atividades na cidade, a sua esposa, que também trabalhou nessa empresa, o seu filho que

é administrador de empresas e mais sete funcionários – seis homens e uma mulher.

Captam, a depender da época, às vezes 1.500 litros, em outro momento de 2.900 a

3.00010. Compram o leite da região e têm uma linha de fornecedores que abastecem o

laticínio por meio de dois caminhões terceirizados. Produzem uma variedade de tipos de

queijo, iogurte e manteiga, apesar de não captar a mesma quantidade de leite da

anterior. Os seus produtos são vendidos na própria fábrica e fornecidos a pequenos

supermercados de outras cidades. Segundo o proprietário, a maioria dos funcionários

tem o ensino fundamental completo. A operação dos processos é semi-industrial.

A indústria D fica na cidade de Nova Canaã11, tem a mesma estrutura física da C,

capta aproximadamente a mesma quantidade de leite, segundo dados da Adab12, a

diferença está na produção concentrada em um só tipo de queijo, na produção da

manteiga e do requeijão, cujo proprietário aprendeu a produzir de maneira prática nas

7 Visita realizada em dois momentos: Março e Junho de 2007. 8 Segundo informações da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), esse laticínio captou 225.000 litros de leite no mês de Março de 2007. 9 Visita realizada em março de 2007. 10 Segundo informações da Agência Estadual de Defesa Agropecuária da Bahia (Adab), esse laticínio captou 44. 199 Litros de leite no mês de Março de 2007. 11 Visita realizada em setembro de 2006. 12 Recebeu 44.300 litros de leite no mês de Março de 2007.

Page 16: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

16

fazendas da região. Ele tem o ensino médio completo e nunca fez nenhum curso

específico sobre produção de queijos. Iniciou a sua produção com apenas 50 litros

diários e atualmente processa 8.000 litros. A produção é escoada (com o auxílio de

pessoas conhecidas) para Vitória da Conquista, Salvador e São Paulo. A fábrica possui

12 trabalhadores (homens).

A indústria E fica na cidade de Vitória da Conquista13. Não manipula o leite,

compra queijo parmesão proveniente da região de Maiquinique14, rala e embala o

produto. Segundo o gerente de produção, eles compram o produto mais barato e, com

isso, aumentam a produtividade da fábrica. A operação dos processos é 90%

mecanizada. A fábrica possui dez funcionários. A maioria dos funcionários tem o ensino

fundamental incompleto. A produção é vendida para São Paulo e sete estados do

Nordeste.

O ambiente físico aos olhos do visitante

As visitas que fizemos às indústrias aguçaram os nossos sentidos para o barulho

das máquinas, o cheiro forte do leite adentrando as nossas narinas, o calor provocado

pelas caldeiras e pela estrutura física dos galpões dotados de pouca ventilação, e a visão

do chão molhado.

O barulho das máquinas em funcionamento é ensurdecedor, principalmente nas

fábricas A e B. Na fábica A, os trabalhadores usam protetor auricular. Qualquer diálogo

nos locais de produção exige elevação do tom da voz. Como nessa fábrica o trabalho é

quase todo automatizado, processo contínuo, a planta da fábrica é montada em amplos

galpões com tubulações, por onde passa o fluxo de leite, acima das nossas cabeças. Não

se sente o cheiro do leite, e o chão não é molhado. A tarefa dos trabalhadores é

inspecionar o funcionamento das máquinas. No momento das nossas observações,

verificamos que eles pouco se comunicavam, andavam de um lado para o outro em

silêncio. Na fábrica B, os trabalhadores não usam protetores de ouvido. Sempre há

necessidade de conversar um com outro pela própria exigência de parte do processo que

é manual. No setor de embalagem, por exemplo, fora da linha de produção, mas que

funciona na mesma planta, pudemos observar a conversação alta entre os funcionários

por conta do barulho das máquinas. Ruguê (2001) constatou, na sua pesquisa em uma 13 Visita realizada em Março de 2007. 14 Os proprietários dessa indústria produzem queijo parmesão em Maiquinique.

Page 17: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

17

indústria de alimentos, que o barulho constante leva o trabalhador a sentir-se cansado e

pouco produtivo. Outro aspecto a ser comentado é a exposição dos empregados a

variações climáticas – zonas quentes e frias. Esse aspecto não foi observado na indústria

A. O forte calor exalado das caldeiras e a falta de ventilação no ambiente foi

sensivelmente detectado na indústria B, e é um fator de insatisfação dos trabalhadores.

A alta temperatura no ambiente é ocasionada pelo telhado de zinco, pouca ventilação no

galpão e pelo vapor liberado pelas caldeiras que aquecem os tanques para o cozimento

da massa do queijo e para a pasteurização do leite e do creme. Durante o período da

nossa visita, observamos que os rostos e os corpos dos trabalhadores estavam lavados

de suor, as roupas molhadas e que alguns deixavam as máscaras abaixo do nariz para

facilitar a respiração, interrompiam a atividade para respirar, lavar o rosto e beber água.

Próximo a esse ambiente, estão as câmaras frias; por vezes alguns trabalhadores eram

obrigados a entrar e sair.

O processo de trabalho

O trabalho na indústria de laticínio acontece de modo diverso. Nas plantas de

processos contínuos, 90% automatizadas, como é o caso das fábricas A e E, o

trabalhador acompanha a operação da máquina sem nenhuma interação, salvo quando

acontece algum problema e há necessidade de manutenção, que é feita pelos técnicos,

ou limpeza das tubulações e das máquinas. Na fábrica A, o trabalho manual aparece no

momento da recepção do leite na plataforma quando são analisadas as condições do

produto, temperatura, só então o leite é encaminhado para a estocagem. Todas as linhas

de produção interagem com a recepção do leite. O trabalho manual está presente no

início da linha de produção do leite condensado, no momento de adicionar o açúcar ao

leite, exigindo, inclusive, força física, no final da linha de produção do leite em pó,

quando o produto vai ser acondicionado em sachês de 5 kg, e no final de todas as linhas,

na atividade de transporte das mercadorias. As atividades são inspecionadas pelo

engenheiro de produção. A quantidade de trabalho humano para a realização das tarefas

é bastante limitada, consistindo basicamente em pôr em funcionamento os

equipamentos, controlar tempos e temperatura, verificar a incidência de alguma falha.

Na fábrica E, o processo de produção é bem mais simplificado, incipiente, se

comparado com o da fábrica A. A planta da fábrica é pequena, produz queijo ralado e

embala. Uma das funções dos operários é armazenar o queijo inteiro em prateleiras de

Page 18: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

18

madeira para esperar o momento de serem ralados. Outra função é lavá-los e depositá-

los na máquina para serem ralados. Depois de ralados, os queijos são transferidos para a

máquina de embalar em pequenos pacotes de 50 gramas. Esses pequenos pacotes são

ensacados em sacos maiores de 10 kg e guardadas em caixas pelos trabalhadores. Outra

função dos operários é embalar o queijo ralado manualmente em pacotes de 1 a 2 kg. A

maior quantidade de trabalho é empregada nas tarefas de limpeza e acondicionamento

das embalagens.

Nas plantas das fábricas B, C e D, o que as difere umas das outras é a capacidade

instalada (quantidade e tamanho das máquinas), infra-estrutura e o número de

trabalhadores da B ser superior ao da C e D. Em razão disso, o nível de stress é maior

pelo ritmo da produção, incidindo em maior barulho e aumento da temperatura do

ambiente físico proveniente da caldeira. No entanto, a forma como o trabalho se

desenvolve é bem aproximada. Embora essas indústrias fabriquem vários tipos de

produtos lácteos, vamos deter a nossa análise na produção do queijo.

Dos derivados lácteos, o queijo, segundo REZENDE, WILKINSON e REZENDE

(2005), ainda tem um caráter acentuadamente manual. É um produto que demanda

menos tecnologia e mais habilidade dos “mestres queijeiros”. Nos países europeus, a

sua produção é baseada no feeling dos queijeiros, que lhe conferem charme e valor.

Nas fábricas pesquisadas, a sequência das diversas operações desenvolvidas na

produção do queijo é semelhante à das fabriquetas. O que as diferencia? O auxílio da

tecnologia e uma maior preocupação com a qualidade do produto. Várias etapas do

processo, a exemplo do corte e modelamento da massa, transferência do leite de um

local para outro, que nas fabriquetas são feitas manualmente, as indústrias são utilizadas

tecnologias para execução dessas tarefas. Mas, a intervenção do trabalho humano é

fundamental. O trabalho dos queijeiros e dos seus auxiliares junto às máquinas está

presente quase todo o tempo, só se separam no momento da entrega do produto pronto

para o processo de cura (aqui na região somente o queijo parmesão passa por esse

processo) e embalagem. São os queijeiros quem definem o ponto da massa pela sua

experiência adquirida na prática.

O que predomina no desenvolvimento do processo de produção das fábricas

analisadas é um misto entre as formas de gestão e organização do trabalho taylorista-

fordista e traços dos novos paradigmas da produção. Cabe-nos destacar que o modo

Page 19: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

19

como o trabalho é dividido e a forma como as tarefas são executadas nas indústrias de

laticínios não são novidades. Pires e Bielschowsky (1977) descrevem a estrutura de

funcionamento da indústria de laticínios nos anos 1970 e nos parece que a realidade

atual não é muito diferente. Nas fábricas onde os processos são mais mecanizados,

sobretudo no processo de pasteurização de produção do leite em pó, leite condensado,

creme de leite, o grosso do trabalho humano é desenvolvido pelas máquinas, o aumento

da produtividade é determinado. As tarefas são rotineiras, monótonas, os trabalhadores

têm participação limitada na preparação das máquinas, a tarefa é apenas de alimentação

do processo no início da linha e vigilância. Nas fábricas onde os processos são semi-

industrializados, especificamente na produção do queijo, é necessária uma maior

participação dos trabalhadores na preparação das máquinas, no preparo e cuidado com o

alimento; várias atividades exigem força física. Uma das características marcantes da

indústria de laticínios, também presente nas indústrias de alimento em geral (RUGUÊ,

2001), é a pressão temporal da produção que exige um ritmo de trabalho intenso e

repetitivo (tempo usado para mexer a massa no tanque) por conta da perecibilidade do

insumo principal – o leite e os seus derivados, como a necessidade de cuidados

especiais para a manipulação dos produtos. As rigorosas normas de higiene da

vigilância sanitária e a especificidade do produto que é fabricado não permitem uma

maior flexibilidade do trabalho. A atividade no ramo de alimentos requer “atenção,

agilidade, concentração e movimentos repetitivos, podendo causar, além de desconforto,

fadiga muscular, formação de edemas, varizes e problemas lombares” (RUGUÊ, 2001,

p. 32). Nas indústrias pesquisadas, foram relatados casos de pessoas com problemas na

coluna que tiveram de ser remanejados para áreas que exigem menor condicionamento

físico e de pessoas que, às vezes, se queimam com soda cáustica utilizada para limpeza

das tubulações e dos maquinários. Exercício das atividades de força física, atenção

redobrada para não perder a qualidade do produto, participação do trabalho humano têm

importância decisiva principalmente nas plantas B, C e D.

As inovações acontecem em decorrência das exigências com a qualidade dos

produtos, levando os proprietários de laticínios a buscar inovações nos padrões de

embalagem, logística dos produtos, redução de custos para aumentar a competitividade.

As novas normas de qualidade para a coleta do leite a granel têm forçado os fazendeiros

a também a se preocuparem com a qualidade, e isso tem dificultado a sobrevivência dos

Page 20: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

20

pequenos produtores. A aceleração das inovações tecnológicas abriu a distância no

tempo e na acumulação de conhecimentos tecnológicos entre a posição relativa das

empresas no mercado, constituindo um dos aspectos centrais para mostrar o processo de

acumulação capitalista. A ação do estado regula essa dinâmica (SORJ, 1980). As

políticas de controle sanitário do governo federal e estadual exigem novas maquinarias e

controle de qualidade, expulsando do mercado as pequenas empresas e, ao mesmo

tempo, oferecendo incentivos fiscais para as grandes empresas se expandirem. A

produção do leite depende de condições climáticas, produtividade do gado, e o seu

processamento desde o curral depende do controle de qualidade uma vez que exige

armazenamento e manipulação adequados. O trabalhador da indústria sofre pressão

quanto ao ritmo e à qualidade do trabalho.

Por último, é importante destacar que os laticínios não empregam mulheres no

processo de produção. É tradição do setor leiteiro, segundo um gerente de produção

entrevistado, não admitir mulheres, pois algumas atividades exigem força física.

Quando há mulheres, elas ocupam, às vezes, funções no laboratório (nas fábricas

visitadas, esta função era ocupada por homens), no controle de qualidade. De modo

geral, entretanto, elas estão nas atividades mais repetitivas e subalternas: no setor de

embalagem e na limpeza.

Como os trabalhadores são qualificados.

No que diz respeito à qualificação profissional, aprendizagem do ofício, em

todas as indústrias visitadas, esse item consiste em observar e repetir a prática dos

trabalhadores mais experientes. A fábrica A possui técnico laticinista, engenheiros de

alimentos e trabalhadores experientes que já trabalharam em outras indústrias. Quando a

empresa compra uma máquina nova, um técnico é encaminhado para a empresa e ensina

aos funcionários como operar com a máquina. Nas fábricas semi-industrializadas, há o

caso do proprietário da fábrica D que aprendeu a produzir queijos de maneira prática

nas fazendas da região, quando montou a sua fábrica e passou o conhecimento para os

trabalhadores. Segundo ele, a sua empresa tem sido uma multiplicadora de queijeiros,

pois muitas pessoas de outras cidades e regiões têm se deslocado pra lá com o objetivo

de aprender a fazer queijos. Na fábrica C, os trabalhadores aprenderam a trabalhar no

ramo com o próprio patrão, que é técnico laticinista. A fábrica B costuma trazer técnico

Page 21: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

21

de outras regiões para dar assistência e contratou um funcionário com experiência no

ramo adquirida em outra empresa.

Diante dessas considerações, podemos caracterizar a qualificação como um

conjunto de habilidades e conhecimentos adquiridos no dia-a-dia para exercer

determinadas atividades. Sabemos que a qualificação profissional não acontece num só

momento, em um determinado tempo, “está em constante movimento em razão do

permanente acúmulo de experiências concretas de trabalho e de vida em geral e da

aquisição de novos conehcimentos e habilidades, tanto por vias formais quanto

informais, no trabalho, na escola, na vivência social”. (DICIONÁRIO DA

EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, 2000, p.273). A qualificação dos trabalhadores no

ramo de laticínios pode ser considerada como “qualificação tácita”, isto é,

conhecimentos que são adquiridos implicitamente, passados por meio de experiências

profissionais. Fartes (2002) lembra que, no ambiente de trabalho, “circulam saberes

adquiridos, continuamente renovados (…) eminentemente subjetivos, posto que o que

caracteriza a aprendizagem no acontecendo do cotidiano de trabalho é o aprender-com-

o-outro, não susceptível de mensurações e nem tampouco passível de codificações”.

Em que pese à importância das “qualificações tácitas” e à vivência prática dos

operários, a exemplo dos queijeiros que são conhecedores dos “macetes” da produção,

observamos que esses trabalhadores tiveram pouco acesso a um tipo de saber mais

sistematizado. Um exemplo pontual: a manipulação do alimento requer conhecimento

de normas rígidas de higiene e, às vezes, exige soluções imprevistas. Esse conhecimento

não se esgota no local de trabalho, como também não está somente na escola ou em

cursos específicos de formação profissional, mas “no conjunto das relações sociais

através da prática política e produtiva exercida em todas as instâncias que compõem a

vida social” (KUNZER, 1992, p.110). Essa concepção, segundo Kuenzer (1992, p. 110),

deve ser compreendida por dois lados distintos e contraditórios: o lado do trabalhador e

o lado do sistema produtivo. Do lado do trabalhador, “as capacidades de pensar,

planejar, refletir, criar, avaliar são inseparáveis da capacidade de agir, na medida em

que pensamento e ação são diretamente inseparáveis do trabalho humano”. Para atender

as demandas da sociedade atual, os indíviduos devem se apropriar de uma qualificação

mais ampla. E as possiblidades de aquisição do conhecimento historicamente produzido

pela humanidade estão abertas por meio de inúmeras alternativas, citadas por essa

Page 22: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

22

autora: “ampliação do sistema do ingresso no sistema de ensino nos diversos níveis,

ampliação da participação em experiências culturais em suas distintas formas de

manifestação, desenvolvimento do sistema de comunicação, diversificação das formas

de interação e participação social e política”. Pelo que pudemos observar, os

trabalhadores das indústrias de laticínios da região sudoeste não têm acesso a essas

possbilidades educativas. A maioria tem baixo nível de escolaridade e raras

oportunidades de freqüentar algum curso de treinamento. As políticas de educação

profissional implantadas nos 90, a exemplo do Planfor, com propósito de formação

humana e promessas de resgatar “a grande dívida social que o país vem acumulando em

vastos segmentos da população jovem e adulta, por causa da persistência de altos

índices de analfabetismo e baixos níveis de escolaridade” (MANFREDI, 2002, p.151),

não chegaram até os trabalhadores do ramo de laticínios; eles foram excluídos desse

processo, em que pese ao fato de elas abrirem a possibilidade de superação das

deficiências da escolarização e às críticas ao fato dessa formação ser em uma rede de

cursos de curta duração, dissociados da educação básica e de uma política de formação

continuada.

Do lado do sistema produtivo, a simplificação do trabalho em virtude das novas

tecnolgias tem diminuído as exigências de qualificação, apesar do discurso apontar para

uma necessidade de re-significação dos processos de formação dos trabalhadores no

contexto da reestruturação produtiva, divulgando uma ideologia em que o aumento de

qualificação profissional torna-se a “chave” da responsabilidade pelo emprego,

indicando que as mudanças no mundo do trabalho passam a exigir ampliação da

educação básica e integração da formação profissional. O gerente de produção

(engenheiro de alimentos) de uma das indústrias deixou bem claro que “um cara

inteligente” com o ensino fundamental e a prática dentro da empresa opera qualquer

máquina.

Palavras Finais

O processo de expansão da agroindústria na economia capitalista é marcado pelo

apronfundamento das relações entre diferentes ramos industriais e a agropecuária. Essa

relação tem se estabelelcido pela dinâmica própria de cada setor e pelas possibilidades

de mudnaças nos padrões tecnológicos e organizacionais. A cadeia produtiva de

Page 23: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

23

alimentos no mundo está se distanciando do modelo fordista de consumo de massa para

se voltar para a produção diversificada com uso de novas tecnologias e pessoal mais

qualificado – realidade que está crescendo no Brasil (FARINA e ZYLBERSZTAJN,

1991). A realidade da cadeia de leite ainda é muito heterogênea: ao lado de um grupo

moderno de indústrias em diferentes estágios tecnológicos funcionam fábricas semi-

industrias e artesanais. Na Bahia, especificamente na região sudoeste, marca presença

uma grande indústria com a planta mecanizada, que capta leite de toda a região, ao lado

de indústrias semi-industrializadas a exemplos de cooperativas, médios e pequenos

laticínios, como também as microusinas e fabriquetas.

As relações entre a educação e o trabalho nesse contexto analisado neste trabalho

são acentuadas pela separação entre a teoria e a prática·. Nas Fabriquetas, os

trabalhadores são analfabetos, o processo de trabalho é precarizante e essencialmente

artesanal. Nas indústrias, em que pese aos seus diferentes níveis tecnológicos, o

conjunto dos trabalhadores possui baixo nível de escolaridade15, a aprendizagem do

ofício acontece na prática, e é incomum a participaão deles em qualquer curso de

treinamento. A divisão de trabalho que se estabelece entre os diferentes tipos de

indústrias e as fabriquetas é a condição de acesso a tecnologias, ação regulada pelo

estado, que implica investimento financeiro, privilégio de poucos, constituindo-se

adequação da nova ordem à manutenção da velha lógica capitalista. Mesmo nas

empresas em que há maiores investimentos em infra-estrutura e novos equipamentos

utilizados para a manipulação do leite, o que predomina é o modo de gestão e

organização do trabalho fordista. A novidade é o uso da tecnologia para aumentar a

produção, a qualidade e a diversidade dos produtos.

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA ESTADUAL DE DEFESA AGROPECUÁRIA DA BAHIA, RELATÓRIO DE ATIVIDADES 2005, Salvador, BA: ADAB, 2006, p.54. BELIK, Walter. Agroindústria e reestrturação industrial no Brasil: elementos par uma avaliação. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.11, n.1/3, p 58-75, 1994. Disponível em: http://atlas.sct.embrapa. Acesso em : 21/05/2007. DIAS, João C. 500 Anos de Leite no Brasil. São Paulo: Calandra, 2006.

15 Lombardi, Lucena e Feri (2003) realizam pesquisas (Caçador, SC) em indústrias do ramo metalúrgico, madeireiro e produtores rurais integrados à Perdigão e também comprovam a precariedade dos dados educacionais nas indústrias brasileira.

Page 24: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

24

DICIONÁRIO DA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL. BH, MG: FIDALGO, F & MACHADO, L, 2000. FARINA, Elizabeth Q. M.; ZYLBERSZTAJN, Décio. Relações Tecnológicas e Organização dos Mercados do Sistema Agroindustrial de Alimentos. Cadernos de Ciência & Tecnologia, Brasília, v.8, n. 1/3, p. 9-27, 1991. Disponível em: www.atlas.sct.embrapa.br. Acesso em 22/09/2006. FARTES, Vera Lúcia Bueno. Trabalhando e Aprendendo: adquirindo qualificação em uma indústria de refino de petróleo. Educação e Sociedade, n. 78, p. 225-254, abr., 2002. Disponível em : FERRETTI, Celso João. Opção Trabalho: trajetórias ocupacionais de trabalhadores das classes subalternas. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988. IBGE. Anuário Estatístico. Dados Gerais, v.65, 2005. p 4-13. KUENZER, A. Z. Ensino de 2º grau: O Trabalho como Princípio Educativo. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1992. LOIOLA, Elizabeth; LIMA, Juvêncio B. Avaliação das Condições de Competitividade Dinâmica da Cadeia Brasileira do Leite. In: XXII Encontro da ANPAD, 1998, Foz do Iguaçú / PR. Anais … Foz do Iguaçú / PR: EnNANPAD, 1988, p. 1-16. Disponível em: http://www.anpad.org.br. Acesso em: 10/05/2007. LOMBARDI;LUCENA; FERI. Educação, Trabalho e Qualificação profissional: considerações preliminares. In: VI Seminário Nacional de Estudos e Pesquisas hsitória, Sociedade e Educação no Brasil, 6., 2003, Aracaju, SE. Anais …Sergipe: UFSE; Campinas: HISTEDBR, 2003. MANCINI, Regina Célia. Pedagogia da Diferença: o caso do Instituto de Laticínios Cândido Tostes de Juiz de Fora. Juiz de Fora, MG: CT/ILCT, 2002. MANFREDI, Sílvia. Educação Profissional no Brasil. SP: Cortez, 2002. MARTINS, Paulo do Carmo. Políticas públicas e mercado deprimem o resultado do sistema agroindustrial do leite. 2004. Tese (Doutorado em Ciências Econômicas Aplicadas). USP, 2004. MENEZES, Sônia de S. M.; ALMEIDA, Mª Geralda. Um olhar sobre as redes de sociabilidade construídoras do território das fabriquetas de queijo. Revista NERA, Presidente Prudente, Ano 9, n.8, p.133-150, jan/jun, 2006. PIRES, Eginardo; BIELSCHOWSKY, Ricardo. Estrutura Industrial e Progresso Técnico na Produção de Laticínios.. FINEP- Centro de Estudos e Pesquisas, Rio, set, 1977. PROGRAMA PRODUZIR 3. Beneficiamento de Leite, Unidade de Pasteurização. Companhia de Desenvolvimento e Ação Regional – CAR, SEPLAN, Governo da Bahia, 2006. REZENDE, D; WILKINSON, J; REZENDE, C. F. Coordenação da qualidade em cadeias produtivas de alimentos: O caso dos queijos finos no Brasil. Econômica, R.J., v.7, n.2, p.233.253, dez, 2005. Disponível em: www.uff.br/cpgeconomia/economica. ROCHA, Alynson dos Santos. A agroindústria de leite e laticínios da Bahia: inserção e reestruturação da atividade. Revista Bahia Análise & Dados, Salvador, v.13, n.4, p.907-919, mar. 2004. Disponível em: www.sei.com.br. RUGUÊ, Maria Bernadete Serravalle. Qualidade das condições de trabalho X produtividade- Estudo de Caso: Indústria de alimentos em Goiânia, GO. 2001.Dissertação (Mestrado em Engenharia de Produção) - Programa de pós-graduação em Engenharia de produção, UFSC, Florianopólis, SC, 2001.

Page 25: TRABALHO E QUALIFICAÇÃO NA AGROINDÚSTRIA DE LEITE … · – LATICÍNIOS: um estudo na região sudoeste da Bahia Ana Elizabeth Santos Alves e-mail: ana_alves183@hotmail.com ...

25

SILVA, José Graziano. A nova dinâmica da agricultura brasileira. 2.ed. Campinas, S.P.:Instituto de Economia – IE, UNICAMP, 1998. SILVA, José Graziano da. Velhos e novos mitos do rural brasileiro. Estudos Avançados, v.15, n.43, S.P., set/dez. 2001. p. Disponível: http://www.scielo.br SORJ, B. Estado e classes sociais na agricultura brasileira. RJ: Guanabara, 1986.