trabalho completo marcio blanco educomunicação

11
“No Limite do Horizonte” 1 Novas agências e mediações na produção de um filme coletivo Autor: Marcio Blanco 2 Resumo: Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua produção e criação. O objetivo desta proposta é apresentar uma cartografia do filme curta-metragem "No Limite do Horizonte", dos coletivos Núcleo de Arte Grécia e Subúrbio em Transe, situados na Zona Norte do Estado do Rio de Janeiro. Ela analisa as possíveis mudanças e novidades que este modelo de produção está trazendo para o cenário audiovisual contemporâneo. Para fazer uma cartografia do filme ele não será analisado como obra fechada em si, mas como desdobramento de agências e mediações presentes em sua construção, mais especificamente nas etapas de produção e direção. Palavras-chave: audiovisual, coletivo, tecnologia Abstract: In the last 10 years had been appeared experiences in audiovisual coletives that used explain the colaborative way as a fundamental axis about the movie production and creation. This proposal intend to present a cartografy about the short movie called “No Limite do Horizonte”, produced by the coletives Nùcleo de Arte Grécia and Subúrbio em Transe, located in north of Rio de Janeiro city. It analyses the possible changes and news that its production pratice are bringing out in the contemporany audiovisual scene. In addition, to make a cartografy, the movie should not be analyzed as a closed itself work, but like a deployment of agencies and mediations presents in it construction, more especific in the prodution and direction steps. Keywords: audiovisual, coletive, tecnology A produção cinematográfica, incluindo aquela que mais recentemente se convencionou chamar de audiovisual, sempre privilegiou a autoria atribuindo-a ao diretor da obra. Apesar do consenso em torno disso, um autor nunca está sozinho. Ele é atravessado por múltiplas agências e mediações (LATOUR, 2005) de um trabalho que inclui roteirista, elenco, produtor, câmeras, etc... Dessa forma podemos afirmar que uma obra audiovisual sempre foi o resultado de um processo, no mínimo, cooperativo. Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua produção e criação. Seus integrantes se revezam em todas as funções de produção e a 1 Trabalho apresentado no IV Encontro Brasileiro de Educomunicação 2 Mestrando no Programa de pós-graduação da Universidade do estado do Rio de Janeiro na linha de Tecnologias da Comunicação e Cultura

Transcript of trabalho completo marcio blanco educomunicação

Page 1: trabalho completo marcio blanco educomunicação

“No Limite do Horizonte”1

Novas agências e mediações na produção de um filme coletivo

Autor: Marcio Blanco2

Resumo: Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua produção e criação. O objetivo desta proposta é apresentar uma cartografia do filme curta-metragem "No Limite do Horizonte", dos coletivos Núcleo de Arte Grécia e Subúrbio em Transe, situados na Zona Norte do Estado do Rio de Janeiro. Ela analisa as possíveis mudanças e novidades que este modelo de produção está trazendo para o cenário audiovisual contemporâneo. Para fazer uma cartografia do filme ele não será analisado como obra fechada em si, mas como desdobramento de agências e mediações presentes em sua construção, mais especificamente nas etapas de produção e direção.

Palavras-chave: audiovisual, coletivo, tecnologia

Abstract: In the last 10 years had been appeared experiences in audiovisual coletives that used explain the colaborative way as a fundamental axis about the movie production and creation. This proposal intend to present a cartografy about the short movie called “No Limite do Horizonte”, produced by the coletives Nùcleo de Arte Grécia and Subúrbio em Transe, located in north of Rio de Janeiro city. It analyses the possible changes and news that its production pratice are bringing out in the contemporany audiovisual scene. In addition, to make a cartografy, the movie should not be analyzed as a closed itself work, but like a deployment of agencies and mediations presents in it construction, more especific in the prodution and direction steps.

Keywords: audiovisual, coletive, tecnology

A produção cinematográfica, incluindo aquela que mais recentemente se

convencionou chamar de audiovisual, sempre privilegiou a autoria atribuindo-a ao

diretor da obra. Apesar do consenso em torno disso, um autor nunca está sozinho. Ele

é atravessado por múltiplas agências e mediações (LATOUR, 2005) de um trabalho

que inclui roteirista, elenco, produtor, câmeras, etc... Dessa forma podemos afirmar

que uma obra audiovisual sempre foi o resultado de um processo, no mínimo,

cooperativo. Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual

que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua

produção e criação. Seus integrantes se revezam em todas as funções de produção e a

1 Trabalho apresentado no IV Encontro Brasileiro de Educomunicação 2 Mestrando no Programa de pós-graduação da Universidade do estado do Rio de Janeiro na linha de

Tecnologias da Comunicação e Cultura

Page 2: trabalho completo marcio blanco educomunicação

direção do filme pode estar reunida em uma marca, na referência explícita a muitos

autores ou simplesmente no anonimato. O objetivo desta proposta é apresentar uma

cartografia do filme curta-metragem "No Limite do Horizonte", dos coletivos Núcleo

de Arte Grécia e Subúrbio em Transe, situados na Zona Norte do Estado do Rio de

Janeiro. Produzido em 2012, trata-se de uma ficção dirigida coletivamente por alunos

do Núcleo de Arte Grécia e integrantes do coletivo Subúrbio em Transe. Este filme é

objeto da pesquisa em curso: "Audiovisual Coletivo: novas agências e mediações na

autoria de três filmes da recente produção brasileira". Ele investiga um fenômeno

recém observado na produção de curta-metragens brasileiros: o crescimento no

número de filmes onde as funções de direção e produção são creditadas como

realização coletiva. Tendo como base os filmes inscritos no Festival Visões

Periféricas e a relevância do número de filmes nele inscritos que possuem essas

características este trabalho aposta nas possíveis mudanças e novidades que suas

práticas de produção estão trazendo para o cenário audiovisual contemporâneo.

Apenas no Visões Periféricas, festival dedicado a exibição de filmes produzidos nas

múltiplas periferias brasileiras, foram inscritos nos últimos 03 anos 101 filmes

creditados como realização coletiva. É um número expressivo que pede um olhar que

sistematize a contribuição teórica que esses filmes e coletivos tem a oferecer para o

campo do Audiovisual.

Neste momento assistimos em todo o mundo reflexos da crise provocada pela

acelerada passagem de um sistema industrial de produção capitalista para um sistema

pós-industrial. Essa mudança de cenário traz uma série de experiências que vem

sendo testadas aqui e ali, ora como linhas de fuga que brotam no interior das

contradições desse novo capitalismo, ora como manobras deliberadas do sistema na

ânsia de sua própria reinvenção. Um valor define bem essa passagem: conhecimento.

Os dispositivos de poder que foram determinantes para o fortalecimento do estado

liberal são os mesmos que hoje colocam em risco a sua segurança. Eles sempre

tiveram na sua centralidade a criação de uma economia da verdade, necessária para a

boa e justa arte de governar (FOUCAULT, 2008). Foi preciso conhecer os habitantes

dessa entidade chamada estado, escrutinar seus hábitos, gostos, desejos, os mais

secretos. Uma verdadeira máquina de produção da verdade foi colocada em

movimento no século XVIII, como Foucault bem descreve em seu livro “O

Page 3: trabalho completo marcio blanco educomunicação

Nascimento da Biopolítica”. Os meios de comunicação de massa foram um dos

principais os artífices do estado-nação e transformados em questão de segurança

interna, essa mesma segurança que nos anos 60 levaria ao embrião da web. Invenção

de militares americanos para garantir a comunicação em tempos de guerra fria, essa

nascente tecnologia foi assimilada pela academia e transformada no que hoje

conhecemos como a maior via de circulação de informação de todos os tempos, a

internet. Nela qualquer um pode produzir sua verdade, embora a legitimação do

conhecimento ainda passe pelas antigas instituições de saber, a universidade, o jornal,

a televisão, etc... A máquina que produz o conhecimento, tão caro a boa arte de

governar hoje é moto contínuo e organiza a sociedade sob uma lógica distinta daquela

que viu nascer no chão da fábrica o seu maior exemplo de disciplina. O conhecimento

é cada vez menos estático e localizável exigindo uma permanente reciclagem de

saberes. A relação ensino/aprendizado deixou de ser uma competência localizável e

demarcada no tempo e no espaço para integrar todos os setores da sociedade e se

transformar em uma demanda permanente ao longo da vida. Nesse sentido, as

tecnologias de comunicação foram e são essenciais na remodelação dessa relação.

Desde o surgimento do cinema até a popularização da Internet, todas as tecnologias

criadas nesse meio tempo estão hoje englobadas no que se convencionou por

Tecnologias de Informação e Comunicação ou simplesmente TIC.

Hoje a produção do conhecimento de si não é mais privilégio das empresas de

comunicação, da academia, de pesquisas, questionários, gráficos, estatísticas, ela se

oferece quase que compulsivamente, como direito e dever de existência, circulando

livremente nas redes mundiais interconectadas, sendo utilizadas para o escrutínio do

público ou colocando em xeque essa mesma noção. É como nova etapa do

capitalismo ou linha de fuga que hoje nos encontramos em suspensão, acompanhando

as diversas crises que se espalham pelo mundo, crises que exteriorizam os limites à

que a velha ordem chegou, mas também fazendo renascer as esperanças que toda crise

irremediavelmente provoca. O fenômeno da exclusão das riquezas sociais impingida à

três quartos da população no século XX explode no mundo inteiro no alvorecer deste

milênio, anunciando que a história não acabou e cobra furiosa seus dividendos. A

distribuição de riqueza nunca se fez tão urgente e o novo capitalismo sabe disso, mas

a riqueza hoje não se obtém pela disciplina dos corpos, pelo modelo da fábrica. Ela se

Page 4: trabalho completo marcio blanco educomunicação

dá por meio da criação subjetiva desses três quartos da população excluída. A

explosão dos guetos e favelas no mundo inteiro é o sintoma da falência do capitalismo

e ao mesmo tempo sua única salvação. Podemos dizer que esse é um fenômeno

inserido na passagem de um regime de trabalho material para outro imaterial. Este

não se reproduz na forma de exploração, mas na forma de reprodução da

subjetividade por meio de um modelo comunicacional existente. O conhecimento não

se constitui da mesma maneira que as outras mercadorias. Estas valem por sua

raridade e a sua produção e o seu consumo implicam alienação e despojamento. Já

o conhecimento e o afeto baseiam-se na emanação, na adição recíproca em seu

processo produtivo e de socialização. Suas fontes de valor são a invenção e a

cooperação e não o sobre-trabalho e a utilidade (LAZZARATO; NEGRI, 2001).

É nesta passagem do material ao imaterial, a que se referem Negri e Lazzarato,

que podemos localizar o tempo onde o filme em questão se encontra inserido. Muito

já se afirmou sobre a importância do audiovisual nos processos de produção de

subjetividade. No que tange à produção audiovisual brasileira, crescemos

acostumados a um determinado padrão estético ditado pelos meios de massa, em

especial a televisão. O cinema também impõe um modelo e é dependente da televisão

para se fazer valer. De um lado, temos um pequeno grupo de empresas ocupando o

espectro de transmissão de sinais televisivos e, de outro, temos uma indústria

cinematográfica norte-americana ocupando a maioria das salas de exibição do país.

Nesse cenário de alta concentração de mídia, as imagens e sons responsáveis pelas

representações sobre nossa cultura, ou pelo menos sobre a formação do imaginário do

que vem a ser uma cultura brasileira, está nas mãos de muito poucos. Isso também

não é novidade. Há pelo menos 50 anos é assim e muito já se falou sobre o papel da

comunicação nos recentes momentos históricos e políticos do país, tanto na ditadura

quanto no processo de redemocratização. Nesse último, a partir dos anos 80, a

televisão já havia tomado o espaço do cinema como artífice de uma nova nação e a

tecnologia do vídeo, até então restrita ao sistema broadcasting, começava a ser

consumida pela classe média, através da fabricação de câmeras portáteis de fácil

manuseio e, principalmente, do videocassete. A complexa equação da cadeia

produtiva audiovisual simplifica-se, pelo menos no que se refere à possibilidade de

transmissão e recepção audiovisual. A mesma câmera que capta sons e imagens

Page 5: trabalho completo marcio blanco educomunicação

também é capaz de exibi-las sem precisar passar por um laboratório químico. O

videocassete leva o cinema pra dentro de casa mas também faz daquele com

possibilidades financeiras um cineasta amador, ou melhor, um videomaker, produtor

autônomo de imagens e sons. Rapidamente essa tecnologia é enxergada pelos

movimentos sociais que a essa altura se rearticulavam para atender as exigências de

uma nova ordem política no país. A câmera é vista como uma ferramenta

indispensável de divulgação de idéias, reivindicação e mobilização. Essa idéia

atravessou toda a década de 80 e 90, resultando na criação da Associação Brasileira

do Movimento do Vídeo Popular (ABMVP), que se extinguiu em 2003. Esse

movimento e o contexto social, histórico e tecnológico que permitiu o seu surgimento

guarda semelhança com o fenômeno atual de boom da produção audiovisual pela

sociedade civil organizada. Hoje esse boom está em todas as partes e não se restringe

apenas aos movimentos sociais. Ele também está na classe média e se reflete na

produção cinematográfica “mainstream”. Os festivais já aceitam sessões onde o filme

película e digital recebem a mesma atenção. A tecnologia digital, como se diz, está

democratizando o acesso aos meios de produção e exibição de audiovisual, alargando

a faixa de realizadores e do público.

Mais uma vez, os movimentos de base estão atentos a esse fenômeno e há

cerca de dez anos iniciou-se uma curva ascendente no número de organizações que

trabalham na linha da formação nessa linguagem. Hoje, esse movimento altamente

plural e atravessado por características as mais variadas possíveis, dependendo da

faixa etária, região, metodologia e mesmo do que se entende por periferia no Brasil,

possuem espaços privilegiados para sua manifestação. Um deles é o Festival Visões

Periféricas que desde 2007 reúne filmes e realizadores vindos de diversas partes do

país e da região Iberoamericana. O festival recebe inscrições de filmes feitos em

diversos contextos: filmes produzidos por ONGs, escolas públicas, coletivos de

periferia, diretores independentes. “No limite do horizonte”, o filme que dá nome a

este artigo, foi inscrito na 6ª edição do festival. Trata-se de um filme produzido dentro

de uma oficina de vídeo que funciona desde 2001 no Núcleo de Arte Grécia,

vinculado a Secretaria Municipal de Educação e coordenado por Luiz Claudio.

Gravado e finalizado em 2011, o filme, em seus créditos, indica que a direção foi

coletiva e por isso ele se encontra inscrito entre os 100 filmes levantados nos últimos

03 anos que possuem essa característica. O que chamou a atenção nele é que ele é

Page 6: trabalho completo marcio blanco educomunicação

uma ficção, algo raro dentro do perfil majoritário de documentários que os filmes

coletivos possuem.

Para fazer uma cartografia do filme ele não será analisado como obra fechada

em si, mas como desdobramento de agências e mediações (LATOUR, 2005) presentes

em sua construção, mais especificamente nas etapas de produção e direção. Tal

análise, inspirada pela TAR (Teoria-Ator-Rede), foi feita através de entrevistas com

os principais envolvidos na sua produção, escolha feita a partir das informações

contidas na ficha de inscrição do filme no festival. Segundo a definição de Latour (1997b), a TAR é uma teoria do espaço e fluidos circulantes numa situação não-moderna. É, antes de tudo, um método, um caminho para seguir a construção e fabricação dos fatos, que teria a vantagem de poder produzir efeitos que não são obtidos por nenhuma teoria social. Um dos efeitos propiciados por esta teoria-método é o de, através do Parlamento das coisas, permitir aos mais diferentes atores uma forma de se expressarem sobre uma mesma questão já que se parte de uma relação simétrica entre os mesmos. Nesse sentido, todos estes atores, que diretamente interferem e são atravessados pela questão, teriam algo a dizer sobre ela, devendo suas falas ser igualmente consideradas. Pelo fato do filme em questão se tratar de uma obra coletiva, o que pressupõe ausência de hierarquias, entende-se que esta metodologia é a que melhor responde a situação do objeto. Um dos atores envolvidos certamente é o Festival Visões Periféricas, considerado aqui como um ator indispensável na metodologia de pesquisa. Os filmes que serão analisados na pesquisa, dentre eles “No Limite do Horizonte”, devem necessariamente ter sido inscritos no Festival. Existem três motivos principais nessa demarcação. O primeiro é empreender uma reflexão sobre a “estética da periferia” dentro do audiovisual que vá além do sentido territorial e sócio-econômico. Desde que essa produção realizada por ONGs, coletivos e produtores independentes começou a ganhar, corpo, volume e visibilidade ela recebeu o nome de “cinema de periferia”, uma clara alusão aos territórios onde essas obras eram produzidas e aos quais seus autores estavam vinculados, em geral por razão de moradia. O segundo motivo é a facilidade de organização de informações que o banco de dados do festival oferece para demarcar quais obras são feitas coletivamente. Neste caso o projeto considera obra coletiva aquela que indica em seus créditos a função “direção” realizada explicitamente como tal, ou seja, nominalmente indicada como “coletiva”. Em terceiro lugar está um fato de que o autor deste projeto é também o idealizador do festival, ou seja, existe a clara intenção dele se colocar como um dos atores envolvidos na rede sócio-técnica de análise das obras, responsável pela demarcação de limites do objeto e suas relações.

Page 7: trabalho completo marcio blanco educomunicação

Um objetivo mais geral deste trabalho é pensar a relação entre a autoria coletiva dos filmes e as práticas colaborativas que ganham força com o advento da internet. A quantidade de filmes observados que se assumem como criação coletiva sugere o desgaste de um regime de criação audiovisual, ainda em vigor, afeito ao

modelo industrial de produção e a sua passagem para um regime colaborativo de

criação em sintonia com um modelo econômico e estético influenciado pela noção de

rede. O primeiro modelo é marcado por um regime jurídico que valoriza a

propriedade intelectual, a hierarquização rígida de funções e a autoria única. O

segundo modelo é caracterizado pela produção por pares (o commons), a auto-

organização de funções e a co-autoria. Aqui as obras são marcadas pela generosidade

intelectual e pelos afetos que conectam o grupo. O crescimento do número de

coletivos de audiovisual e filmes colaborativos em todo o Brasil pode ser considerado

um dos reflexos das mudanças sociais, culturais e econômicas trazidas pelas novas

tecnologias de comunicação, em especial a internet (CASTELLS,2001). Essas

práticas artísticas não estão necessariamente inseridas no universo online, mas

assumem a noção de rede (MUSSO, 2004) na medida em que refletem a emergência

de modos novos de perceber, de sentir, e de conhecer impulsionados pela internet.

É interessante notar que o filme em questão vai ganhando, segundo os

entrevistados, o caráter de coletivo durante as filmagens. Ele não nasce pensado como

tal. Não existem estratégias previamente pensadas ou um conceito ideal de coletivo a

ser alcançado. O coletivo surge no embate entre o desejo de algumas pessoas de fazer

um filme e os diversos atores envolvidos na sua materialização, sejam eles pessoas ou

objetos. Nas palavras de Luiz Claudio, orientador e um dos integrantes dessa

experiência de direção coletiva: “Não sou eu que faço o filme, é o filme que me faz”.

Neste ponto é fundamental este trabalho se reportar ao pensamento de Bruno Latour

sobre as capacidades de agência que os objetos possuem: A principal razão pela qual os objetos não tinham possibilidade alguma de cumprir um papel antes não era somente a definição de social usada por sociólogos, senão também a definição mesma dos atores e agências que se elege com mais assiduidade. Se a ação está limitada a priori ao que os humanos com intenções e com significado fazem , é difícil ver como um martelo, uma cesta, um parafuso, um gato fazem. Poderiam existir no domínio das relações “materiais” e “causais” mas não no domínio “reflexivo” e “simbólico” das relações sociais. Em troca, se nos mantivermos em nossa decisão de partir de nossas controvérsias sobre atores e agencias, então qualquer coisa que modifica com sua incidência um estado de coisas é um ator ou, se não tem figuração nenhuma, um actante. (LATOUR, 2005, p.106)

Page 8: trabalho completo marcio blanco educomunicação

Em entrevista Luiz Claudio diz que é formado em geografia e que desde a

graduação se interessou em juntar os conhecimentos adquiridos nessa área com uma

antiga paixão, o cinema. Três filmes do diretor Nelson Pereira foram objeto de

pesquisa de Luiz, filmes que abordam diferentes espaços geográficos do Rio e

desenrolam suas tramas através da vida de personagens que vivem nesses espaços:

Rio 40º, Rio Zona Norte e El Justiciero. Luiz afirma retirar dessas obras e de toda

uma geração pertencente ao Cinema Novo que veio posteriormente inspiração para

fazer os seus próprios filmes. No “Limite do Horizonte” é uma criação que junta

moradores da região, alunos e ex-alunos integrantes dos Núcleo Arte Grécia e do

Cineclube Subúrbio em Transe, ambos localizados na região de Vila da Penha,

subúrbio do Rio de Janeiro. O filme se passa todo ele em locações da região. Isso já

estava previsto no roteiro, cuja primeira versão partiu de Luiz Claudio. Taíris

Oliveira, uma das atrizes, descreve em entrevista os lugares que ela considera típicos

da Vila da Penha e que figuram no filme: Feira, Lona Cultural, Avenida Oliveira

Belo, Largo do Bicão. Segundo ela, no roteiro estava prevista a gravação de uma de

suas cenas em um Chafariz. O planejado é que a cena fosse gravada em Irajá, mas

dois dias antes da filmagem os realizadores descobriram que o Chafariz estava

desativado, o que os obrigou a mudar de locação. Então eles escolheram a Rua

Oliveira Belo, onde estava acontecendo uma feira de carros para fazer a cena. Esse é

apenas um dentre os vários casos relatados por Luiz e Taíris onde se percebe o

agenciamento de objetos nos rumos estéticos do filme, o próprio bairro podendo ser

considerado um objeto técnico. Esse exemplo dá uma dimensão do processo criativo

do filme que delega aos objetos um agenciamento sobre as decisões tomadas. O

Chafariz se insere nesse coletivo.

Outro caso de agenciamento inesperado, neste caso não de um objeto, mas de

um vínculo social local entre os humanos envolvidos na carpintaria do filme é o do

personagem do Homem-livro que aparece literalmente vestido de livro no filme. Ele

aparece no meio da rua interpelando Marta, nome da personagem de Taíris. Neste

acaso não se trata de um personagem ao modo do gênero ficção, onde um ator assume

uma persona pelo período em que o filme está sendo feito, mas de um morador da

região chamado Evandro dos Santos que possui um projeto de estímulo à leitura na

região e criou o personagem do homem-livro para servir a esse propósito. Esse

Page 9: trabalho completo marcio blanco educomunicação

personagem existe de fato, é conhecido na região, sendo uma figura típica do bairro.

O personagem não existe no roteiro, ele é incorporado ao filme porque Luiz um dia

encontra casualmente com ele nas ruas do bairro e ao conversarem sobre o filme

decidem juntos por inserir o homem-livro na história. No momento em que ele surge

no filme o homem-livro aparece como um elemento ligado ao gênero documentário,

mas o filme não deixa isso bem claro. Ele contém cenas oníricas da ordem de um

sonho/alucinação vivenciada pela personagem de Taíris que podem induzir o

espectador a interpretar a presença do homem-livro na história como um dado de

fantasia, “perturbação mental” de Marta. Esse é outro exemplo de camada de

realização do filme que pode atribuir aos vínculos sociais locais a agência pela sua

criação coletiva, inclusive confundindo as fronteiras entre o gênero documentário e

ficção. Uma terceira camada do “coletivo” que poderíamos encontrar no filme é o

revezamento entre seus integrantes de diversas funções criativas. Taíris também fez o

making of do filme, captação de som e ajudou na composição de figurino dos demais

personagens nas cenas em que sua presença em cena não era necessária. Hugo

Labanka, uma terceira pessoa presente na realização do filme, faz a direção de

fotografia, edição e colaboração no roteiro. Uma quarta camada até então não

mencionada, mas que está presente a priori não somente nesses filmes mas em outros

filmes que possuem a direção coletiva é a falta de uma fonte financiadora para

produzir. Praticamente tudo é feito na base da colaboração entre pessoas que giram

em torno do universo do Núcleo de Arte Grécia e do Cineclube Subúrbio em Transe.

Desde a permissão para gravar na casa de uma pessoa que trabalha no Núcleo até

produção de lanches para a equipe de filmagem, feita pela esposa de Luís.

Todas essas dimensões do coletivo encontradas na realização do filme indicam

a importância da investigação realizada neste trabalho. Ele se oferece como um

espaço de reflexão sobre uma experiência local que representa um fenômeno

contemporâneo e abrangente, que pode contribuir para ampliar o escopo de reflexão

sobre a produção de uma linguagem que nasceu sob o signo da industrialização e da

consolidação do Estado e que atualmente sofre transformações no contexto de ampla

distribuição da comunicação e avançado processo de globalização. A produção da

estética audiovisual não pode ser separada da economia e da política e, portanto, se

existir uma real intenção de desmistificar o conceito de periferia, seja ela favela ou

sertão, e democratizar de fato a cultura do audiovisual, é preciso estar aberto a novas

Page 10: trabalho completo marcio blanco educomunicação

formas de produção da linguagem, distante dos cânones que a consagraram. Ainda se

ensina e produz audiovisual como uma linguagem fragmentada em etapas que devem

ser cumpridas linearmente – roteiro, produção, gravação, edição –, obedecendo a uma

lógica produtiva subordinada à indústria. Nada mais frustrante para o jovem ou adulto

da periferia que está entrando em contato pela primeira vez com essa linguagem do

que medir esforço em um terreno onde está em franca desvantagem. Todos os dias, o

“alto padrão de qualidade” que a TV brasileira produz entra em sua casa e é

impossível não se pegar comparando a produção realizada em um contexto de

formação com as novelas, seriados, telejornais e filmes cujo investimento ultrapassa

em muito a cifra do milhão. Pode ser uma comparação desproporcional, mas que não

deve ser ignorada. O impacto que esses produtos têm na formação do imaginário da

população e sua associação a padrões de qualidade repercutem e muito na relação

aprendizagem-produção da linguagem audiovisual. É preciso desnaturalizar essa idéia

de que a produção do audiovisual é para poucos, para os iluminados ou para os que

têm muito dinheiro. O que esses coletivos de audiovisual localizados nas periferias,

como é o caso do Núcleo Arte Grécia e Subúrbio em Transe vêm realizando, é uma

verdadeira deseducação do olhar. É preciso empreender uma análise crítica da estética

audiovisual a partir da diversidade de contextos sócio-culturais e econômicos onde ela

é criada e produzida. Compreender a forma a partir do embate com a vida, com o

lugar onde se vive, com o próprio círculo de amizades, parentescos, trabalho, lazer.

Perceber que essa mediação operada pela linguagem não se dá sem conflitos,

questionamentos, diálogo e que essa tensão deve permear a linguagem, caso contrário

a forma ganhará mais valor que a vida.

BIBLIOGRAFIA

BERNARDET, Jean-Claude. O Autor no Cinema. São Paulo: Brasiliense, 1994. CASTELLS, Manuel. A Galáxia da Internet: Reflexões sobre a internet, os negócios e asociedade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003. FESTIVAL AUDIOVISUAL VISÕES PERIFÉRICAS, 2007, 2008, 2009, 2010, Rio de Janeiro. Catálogo. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008. GONÇALVES, F. N. Poéticas políticas, políticas poéticas: comunicação e sociabilidade nos coletivos artísticos brasileiros. E-Compós (Brasília), v. 13, p. 01-17, 2010. LATOUR, Bruno. Reensemblar lo social. Una Introdución a teoria del actor-red. Buenos Aires: Manantial, 2005

Page 11: trabalho completo marcio blanco educomunicação

LAZZARATO.M.; NEGRI, A. Trabalho imaterial: Formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MIGLIORIN, C. Por um cinema pós-industrial: notas para um debate. Revista Cinética, Rio de Janeiro, 17 fev. 2011. MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. Em Parente, A. (org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004