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“No Limite do Horizonte”1
Novas agências e mediações na produção de um filme coletivo
Autor: Marcio Blanco2
Resumo: Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua produção e criação. O objetivo desta proposta é apresentar uma cartografia do filme curta-metragem "No Limite do Horizonte", dos coletivos Núcleo de Arte Grécia e Subúrbio em Transe, situados na Zona Norte do Estado do Rio de Janeiro. Ela analisa as possíveis mudanças e novidades que este modelo de produção está trazendo para o cenário audiovisual contemporâneo. Para fazer uma cartografia do filme ele não será analisado como obra fechada em si, mas como desdobramento de agências e mediações presentes em sua construção, mais especificamente nas etapas de produção e direção.
Palavras-chave: audiovisual, coletivo, tecnologia
Abstract: In the last 10 years had been appeared experiences in audiovisual coletives that used explain the colaborative way as a fundamental axis about the movie production and creation. This proposal intend to present a cartografy about the short movie called “No Limite do Horizonte”, produced by the coletives Nùcleo de Arte Grécia and Subúrbio em Transe, located in north of Rio de Janeiro city. It analyses the possible changes and news that its production pratice are bringing out in the contemporany audiovisual scene. In addition, to make a cartografy, the movie should not be analyzed as a closed itself work, but like a deployment of agencies and mediations presents in it construction, more especific in the prodution and direction steps.
Keywords: audiovisual, coletive, tecnology
A produção cinematográfica, incluindo aquela que mais recentemente se
convencionou chamar de audiovisual, sempre privilegiou a autoria atribuindo-a ao
diretor da obra. Apesar do consenso em torno disso, um autor nunca está sozinho. Ele
é atravessado por múltiplas agências e mediações (LATOUR, 2005) de um trabalho
que inclui roteirista, elenco, produtor, câmeras, etc... Dessa forma podemos afirmar
que uma obra audiovisual sempre foi o resultado de um processo, no mínimo,
cooperativo. Nos últimos 10 anos surgiram experiências em coletivos de audiovisual
que fazem questão de explicitar a forma colaborativa como eixo fundamental de sua
produção e criação. Seus integrantes se revezam em todas as funções de produção e a
1 Trabalho apresentado no IV Encontro Brasileiro de Educomunicação 2 Mestrando no Programa de pós-graduação da Universidade do estado do Rio de Janeiro na linha de
Tecnologias da Comunicação e Cultura
direção do filme pode estar reunida em uma marca, na referência explícita a muitos
autores ou simplesmente no anonimato. O objetivo desta proposta é apresentar uma
cartografia do filme curta-metragem "No Limite do Horizonte", dos coletivos Núcleo
de Arte Grécia e Subúrbio em Transe, situados na Zona Norte do Estado do Rio de
Janeiro. Produzido em 2012, trata-se de uma ficção dirigida coletivamente por alunos
do Núcleo de Arte Grécia e integrantes do coletivo Subúrbio em Transe. Este filme é
objeto da pesquisa em curso: "Audiovisual Coletivo: novas agências e mediações na
autoria de três filmes da recente produção brasileira". Ele investiga um fenômeno
recém observado na produção de curta-metragens brasileiros: o crescimento no
número de filmes onde as funções de direção e produção são creditadas como
realização coletiva. Tendo como base os filmes inscritos no Festival Visões
Periféricas e a relevância do número de filmes nele inscritos que possuem essas
características este trabalho aposta nas possíveis mudanças e novidades que suas
práticas de produção estão trazendo para o cenário audiovisual contemporâneo.
Apenas no Visões Periféricas, festival dedicado a exibição de filmes produzidos nas
múltiplas periferias brasileiras, foram inscritos nos últimos 03 anos 101 filmes
creditados como realização coletiva. É um número expressivo que pede um olhar que
sistematize a contribuição teórica que esses filmes e coletivos tem a oferecer para o
campo do Audiovisual.
Neste momento assistimos em todo o mundo reflexos da crise provocada pela
acelerada passagem de um sistema industrial de produção capitalista para um sistema
pós-industrial. Essa mudança de cenário traz uma série de experiências que vem
sendo testadas aqui e ali, ora como linhas de fuga que brotam no interior das
contradições desse novo capitalismo, ora como manobras deliberadas do sistema na
ânsia de sua própria reinvenção. Um valor define bem essa passagem: conhecimento.
Os dispositivos de poder que foram determinantes para o fortalecimento do estado
liberal são os mesmos que hoje colocam em risco a sua segurança. Eles sempre
tiveram na sua centralidade a criação de uma economia da verdade, necessária para a
boa e justa arte de governar (FOUCAULT, 2008). Foi preciso conhecer os habitantes
dessa entidade chamada estado, escrutinar seus hábitos, gostos, desejos, os mais
secretos. Uma verdadeira máquina de produção da verdade foi colocada em
movimento no século XVIII, como Foucault bem descreve em seu livro “O
Nascimento da Biopolítica”. Os meios de comunicação de massa foram um dos
principais os artífices do estado-nação e transformados em questão de segurança
interna, essa mesma segurança que nos anos 60 levaria ao embrião da web. Invenção
de militares americanos para garantir a comunicação em tempos de guerra fria, essa
nascente tecnologia foi assimilada pela academia e transformada no que hoje
conhecemos como a maior via de circulação de informação de todos os tempos, a
internet. Nela qualquer um pode produzir sua verdade, embora a legitimação do
conhecimento ainda passe pelas antigas instituições de saber, a universidade, o jornal,
a televisão, etc... A máquina que produz o conhecimento, tão caro a boa arte de
governar hoje é moto contínuo e organiza a sociedade sob uma lógica distinta daquela
que viu nascer no chão da fábrica o seu maior exemplo de disciplina. O conhecimento
é cada vez menos estático e localizável exigindo uma permanente reciclagem de
saberes. A relação ensino/aprendizado deixou de ser uma competência localizável e
demarcada no tempo e no espaço para integrar todos os setores da sociedade e se
transformar em uma demanda permanente ao longo da vida. Nesse sentido, as
tecnologias de comunicação foram e são essenciais na remodelação dessa relação.
Desde o surgimento do cinema até a popularização da Internet, todas as tecnologias
criadas nesse meio tempo estão hoje englobadas no que se convencionou por
Tecnologias de Informação e Comunicação ou simplesmente TIC.
Hoje a produção do conhecimento de si não é mais privilégio das empresas de
comunicação, da academia, de pesquisas, questionários, gráficos, estatísticas, ela se
oferece quase que compulsivamente, como direito e dever de existência, circulando
livremente nas redes mundiais interconectadas, sendo utilizadas para o escrutínio do
público ou colocando em xeque essa mesma noção. É como nova etapa do
capitalismo ou linha de fuga que hoje nos encontramos em suspensão, acompanhando
as diversas crises que se espalham pelo mundo, crises que exteriorizam os limites à
que a velha ordem chegou, mas também fazendo renascer as esperanças que toda crise
irremediavelmente provoca. O fenômeno da exclusão das riquezas sociais impingida à
três quartos da população no século XX explode no mundo inteiro no alvorecer deste
milênio, anunciando que a história não acabou e cobra furiosa seus dividendos. A
distribuição de riqueza nunca se fez tão urgente e o novo capitalismo sabe disso, mas
a riqueza hoje não se obtém pela disciplina dos corpos, pelo modelo da fábrica. Ela se
dá por meio da criação subjetiva desses três quartos da população excluída. A
explosão dos guetos e favelas no mundo inteiro é o sintoma da falência do capitalismo
e ao mesmo tempo sua única salvação. Podemos dizer que esse é um fenômeno
inserido na passagem de um regime de trabalho material para outro imaterial. Este
não se reproduz na forma de exploração, mas na forma de reprodução da
subjetividade por meio de um modelo comunicacional existente. O conhecimento não
se constitui da mesma maneira que as outras mercadorias. Estas valem por sua
raridade e a sua produção e o seu consumo implicam alienação e despojamento. Já
o conhecimento e o afeto baseiam-se na emanação, na adição recíproca em seu
processo produtivo e de socialização. Suas fontes de valor são a invenção e a
cooperação e não o sobre-trabalho e a utilidade (LAZZARATO; NEGRI, 2001).
É nesta passagem do material ao imaterial, a que se referem Negri e Lazzarato,
que podemos localizar o tempo onde o filme em questão se encontra inserido. Muito
já se afirmou sobre a importância do audiovisual nos processos de produção de
subjetividade. No que tange à produção audiovisual brasileira, crescemos
acostumados a um determinado padrão estético ditado pelos meios de massa, em
especial a televisão. O cinema também impõe um modelo e é dependente da televisão
para se fazer valer. De um lado, temos um pequeno grupo de empresas ocupando o
espectro de transmissão de sinais televisivos e, de outro, temos uma indústria
cinematográfica norte-americana ocupando a maioria das salas de exibição do país.
Nesse cenário de alta concentração de mídia, as imagens e sons responsáveis pelas
representações sobre nossa cultura, ou pelo menos sobre a formação do imaginário do
que vem a ser uma cultura brasileira, está nas mãos de muito poucos. Isso também
não é novidade. Há pelo menos 50 anos é assim e muito já se falou sobre o papel da
comunicação nos recentes momentos históricos e políticos do país, tanto na ditadura
quanto no processo de redemocratização. Nesse último, a partir dos anos 80, a
televisão já havia tomado o espaço do cinema como artífice de uma nova nação e a
tecnologia do vídeo, até então restrita ao sistema broadcasting, começava a ser
consumida pela classe média, através da fabricação de câmeras portáteis de fácil
manuseio e, principalmente, do videocassete. A complexa equação da cadeia
produtiva audiovisual simplifica-se, pelo menos no que se refere à possibilidade de
transmissão e recepção audiovisual. A mesma câmera que capta sons e imagens
também é capaz de exibi-las sem precisar passar por um laboratório químico. O
videocassete leva o cinema pra dentro de casa mas também faz daquele com
possibilidades financeiras um cineasta amador, ou melhor, um videomaker, produtor
autônomo de imagens e sons. Rapidamente essa tecnologia é enxergada pelos
movimentos sociais que a essa altura se rearticulavam para atender as exigências de
uma nova ordem política no país. A câmera é vista como uma ferramenta
indispensável de divulgação de idéias, reivindicação e mobilização. Essa idéia
atravessou toda a década de 80 e 90, resultando na criação da Associação Brasileira
do Movimento do Vídeo Popular (ABMVP), que se extinguiu em 2003. Esse
movimento e o contexto social, histórico e tecnológico que permitiu o seu surgimento
guarda semelhança com o fenômeno atual de boom da produção audiovisual pela
sociedade civil organizada. Hoje esse boom está em todas as partes e não se restringe
apenas aos movimentos sociais. Ele também está na classe média e se reflete na
produção cinematográfica “mainstream”. Os festivais já aceitam sessões onde o filme
película e digital recebem a mesma atenção. A tecnologia digital, como se diz, está
democratizando o acesso aos meios de produção e exibição de audiovisual, alargando
a faixa de realizadores e do público.
Mais uma vez, os movimentos de base estão atentos a esse fenômeno e há
cerca de dez anos iniciou-se uma curva ascendente no número de organizações que
trabalham na linha da formação nessa linguagem. Hoje, esse movimento altamente
plural e atravessado por características as mais variadas possíveis, dependendo da
faixa etária, região, metodologia e mesmo do que se entende por periferia no Brasil,
possuem espaços privilegiados para sua manifestação. Um deles é o Festival Visões
Periféricas que desde 2007 reúne filmes e realizadores vindos de diversas partes do
país e da região Iberoamericana. O festival recebe inscrições de filmes feitos em
diversos contextos: filmes produzidos por ONGs, escolas públicas, coletivos de
periferia, diretores independentes. “No limite do horizonte”, o filme que dá nome a
este artigo, foi inscrito na 6ª edição do festival. Trata-se de um filme produzido dentro
de uma oficina de vídeo que funciona desde 2001 no Núcleo de Arte Grécia,
vinculado a Secretaria Municipal de Educação e coordenado por Luiz Claudio.
Gravado e finalizado em 2011, o filme, em seus créditos, indica que a direção foi
coletiva e por isso ele se encontra inscrito entre os 100 filmes levantados nos últimos
03 anos que possuem essa característica. O que chamou a atenção nele é que ele é
uma ficção, algo raro dentro do perfil majoritário de documentários que os filmes
coletivos possuem.
Para fazer uma cartografia do filme ele não será analisado como obra fechada
em si, mas como desdobramento de agências e mediações (LATOUR, 2005) presentes
em sua construção, mais especificamente nas etapas de produção e direção. Tal
análise, inspirada pela TAR (Teoria-Ator-Rede), foi feita através de entrevistas com
os principais envolvidos na sua produção, escolha feita a partir das informações
contidas na ficha de inscrição do filme no festival. Segundo a definição de Latour (1997b), a TAR é uma teoria do espaço e fluidos circulantes numa situação não-moderna. É, antes de tudo, um método, um caminho para seguir a construção e fabricação dos fatos, que teria a vantagem de poder produzir efeitos que não são obtidos por nenhuma teoria social. Um dos efeitos propiciados por esta teoria-método é o de, através do Parlamento das coisas, permitir aos mais diferentes atores uma forma de se expressarem sobre uma mesma questão já que se parte de uma relação simétrica entre os mesmos. Nesse sentido, todos estes atores, que diretamente interferem e são atravessados pela questão, teriam algo a dizer sobre ela, devendo suas falas ser igualmente consideradas. Pelo fato do filme em questão se tratar de uma obra coletiva, o que pressupõe ausência de hierarquias, entende-se que esta metodologia é a que melhor responde a situação do objeto. Um dos atores envolvidos certamente é o Festival Visões Periféricas, considerado aqui como um ator indispensável na metodologia de pesquisa. Os filmes que serão analisados na pesquisa, dentre eles “No Limite do Horizonte”, devem necessariamente ter sido inscritos no Festival. Existem três motivos principais nessa demarcação. O primeiro é empreender uma reflexão sobre a “estética da periferia” dentro do audiovisual que vá além do sentido territorial e sócio-econômico. Desde que essa produção realizada por ONGs, coletivos e produtores independentes começou a ganhar, corpo, volume e visibilidade ela recebeu o nome de “cinema de periferia”, uma clara alusão aos territórios onde essas obras eram produzidas e aos quais seus autores estavam vinculados, em geral por razão de moradia. O segundo motivo é a facilidade de organização de informações que o banco de dados do festival oferece para demarcar quais obras são feitas coletivamente. Neste caso o projeto considera obra coletiva aquela que indica em seus créditos a função “direção” realizada explicitamente como tal, ou seja, nominalmente indicada como “coletiva”. Em terceiro lugar está um fato de que o autor deste projeto é também o idealizador do festival, ou seja, existe a clara intenção dele se colocar como um dos atores envolvidos na rede sócio-técnica de análise das obras, responsável pela demarcação de limites do objeto e suas relações.
Um objetivo mais geral deste trabalho é pensar a relação entre a autoria coletiva dos filmes e as práticas colaborativas que ganham força com o advento da internet. A quantidade de filmes observados que se assumem como criação coletiva sugere o desgaste de um regime de criação audiovisual, ainda em vigor, afeito ao
modelo industrial de produção e a sua passagem para um regime colaborativo de
criação em sintonia com um modelo econômico e estético influenciado pela noção de
rede. O primeiro modelo é marcado por um regime jurídico que valoriza a
propriedade intelectual, a hierarquização rígida de funções e a autoria única. O
segundo modelo é caracterizado pela produção por pares (o commons), a auto-
organização de funções e a co-autoria. Aqui as obras são marcadas pela generosidade
intelectual e pelos afetos que conectam o grupo. O crescimento do número de
coletivos de audiovisual e filmes colaborativos em todo o Brasil pode ser considerado
um dos reflexos das mudanças sociais, culturais e econômicas trazidas pelas novas
tecnologias de comunicação, em especial a internet (CASTELLS,2001). Essas
práticas artísticas não estão necessariamente inseridas no universo online, mas
assumem a noção de rede (MUSSO, 2004) na medida em que refletem a emergência
de modos novos de perceber, de sentir, e de conhecer impulsionados pela internet.
É interessante notar que o filme em questão vai ganhando, segundo os
entrevistados, o caráter de coletivo durante as filmagens. Ele não nasce pensado como
tal. Não existem estratégias previamente pensadas ou um conceito ideal de coletivo a
ser alcançado. O coletivo surge no embate entre o desejo de algumas pessoas de fazer
um filme e os diversos atores envolvidos na sua materialização, sejam eles pessoas ou
objetos. Nas palavras de Luiz Claudio, orientador e um dos integrantes dessa
experiência de direção coletiva: “Não sou eu que faço o filme, é o filme que me faz”.
Neste ponto é fundamental este trabalho se reportar ao pensamento de Bruno Latour
sobre as capacidades de agência que os objetos possuem: A principal razão pela qual os objetos não tinham possibilidade alguma de cumprir um papel antes não era somente a definição de social usada por sociólogos, senão também a definição mesma dos atores e agências que se elege com mais assiduidade. Se a ação está limitada a priori ao que os humanos com intenções e com significado fazem , é difícil ver como um martelo, uma cesta, um parafuso, um gato fazem. Poderiam existir no domínio das relações “materiais” e “causais” mas não no domínio “reflexivo” e “simbólico” das relações sociais. Em troca, se nos mantivermos em nossa decisão de partir de nossas controvérsias sobre atores e agencias, então qualquer coisa que modifica com sua incidência um estado de coisas é um ator ou, se não tem figuração nenhuma, um actante. (LATOUR, 2005, p.106)
Em entrevista Luiz Claudio diz que é formado em geografia e que desde a
graduação se interessou em juntar os conhecimentos adquiridos nessa área com uma
antiga paixão, o cinema. Três filmes do diretor Nelson Pereira foram objeto de
pesquisa de Luiz, filmes que abordam diferentes espaços geográficos do Rio e
desenrolam suas tramas através da vida de personagens que vivem nesses espaços:
Rio 40º, Rio Zona Norte e El Justiciero. Luiz afirma retirar dessas obras e de toda
uma geração pertencente ao Cinema Novo que veio posteriormente inspiração para
fazer os seus próprios filmes. No “Limite do Horizonte” é uma criação que junta
moradores da região, alunos e ex-alunos integrantes dos Núcleo Arte Grécia e do
Cineclube Subúrbio em Transe, ambos localizados na região de Vila da Penha,
subúrbio do Rio de Janeiro. O filme se passa todo ele em locações da região. Isso já
estava previsto no roteiro, cuja primeira versão partiu de Luiz Claudio. Taíris
Oliveira, uma das atrizes, descreve em entrevista os lugares que ela considera típicos
da Vila da Penha e que figuram no filme: Feira, Lona Cultural, Avenida Oliveira
Belo, Largo do Bicão. Segundo ela, no roteiro estava prevista a gravação de uma de
suas cenas em um Chafariz. O planejado é que a cena fosse gravada em Irajá, mas
dois dias antes da filmagem os realizadores descobriram que o Chafariz estava
desativado, o que os obrigou a mudar de locação. Então eles escolheram a Rua
Oliveira Belo, onde estava acontecendo uma feira de carros para fazer a cena. Esse é
apenas um dentre os vários casos relatados por Luiz e Taíris onde se percebe o
agenciamento de objetos nos rumos estéticos do filme, o próprio bairro podendo ser
considerado um objeto técnico. Esse exemplo dá uma dimensão do processo criativo
do filme que delega aos objetos um agenciamento sobre as decisões tomadas. O
Chafariz se insere nesse coletivo.
Outro caso de agenciamento inesperado, neste caso não de um objeto, mas de
um vínculo social local entre os humanos envolvidos na carpintaria do filme é o do
personagem do Homem-livro que aparece literalmente vestido de livro no filme. Ele
aparece no meio da rua interpelando Marta, nome da personagem de Taíris. Neste
acaso não se trata de um personagem ao modo do gênero ficção, onde um ator assume
uma persona pelo período em que o filme está sendo feito, mas de um morador da
região chamado Evandro dos Santos que possui um projeto de estímulo à leitura na
região e criou o personagem do homem-livro para servir a esse propósito. Esse
personagem existe de fato, é conhecido na região, sendo uma figura típica do bairro.
O personagem não existe no roteiro, ele é incorporado ao filme porque Luiz um dia
encontra casualmente com ele nas ruas do bairro e ao conversarem sobre o filme
decidem juntos por inserir o homem-livro na história. No momento em que ele surge
no filme o homem-livro aparece como um elemento ligado ao gênero documentário,
mas o filme não deixa isso bem claro. Ele contém cenas oníricas da ordem de um
sonho/alucinação vivenciada pela personagem de Taíris que podem induzir o
espectador a interpretar a presença do homem-livro na história como um dado de
fantasia, “perturbação mental” de Marta. Esse é outro exemplo de camada de
realização do filme que pode atribuir aos vínculos sociais locais a agência pela sua
criação coletiva, inclusive confundindo as fronteiras entre o gênero documentário e
ficção. Uma terceira camada do “coletivo” que poderíamos encontrar no filme é o
revezamento entre seus integrantes de diversas funções criativas. Taíris também fez o
making of do filme, captação de som e ajudou na composição de figurino dos demais
personagens nas cenas em que sua presença em cena não era necessária. Hugo
Labanka, uma terceira pessoa presente na realização do filme, faz a direção de
fotografia, edição e colaboração no roteiro. Uma quarta camada até então não
mencionada, mas que está presente a priori não somente nesses filmes mas em outros
filmes que possuem a direção coletiva é a falta de uma fonte financiadora para
produzir. Praticamente tudo é feito na base da colaboração entre pessoas que giram
em torno do universo do Núcleo de Arte Grécia e do Cineclube Subúrbio em Transe.
Desde a permissão para gravar na casa de uma pessoa que trabalha no Núcleo até
produção de lanches para a equipe de filmagem, feita pela esposa de Luís.
Todas essas dimensões do coletivo encontradas na realização do filme indicam
a importância da investigação realizada neste trabalho. Ele se oferece como um
espaço de reflexão sobre uma experiência local que representa um fenômeno
contemporâneo e abrangente, que pode contribuir para ampliar o escopo de reflexão
sobre a produção de uma linguagem que nasceu sob o signo da industrialização e da
consolidação do Estado e que atualmente sofre transformações no contexto de ampla
distribuição da comunicação e avançado processo de globalização. A produção da
estética audiovisual não pode ser separada da economia e da política e, portanto, se
existir uma real intenção de desmistificar o conceito de periferia, seja ela favela ou
sertão, e democratizar de fato a cultura do audiovisual, é preciso estar aberto a novas
formas de produção da linguagem, distante dos cânones que a consagraram. Ainda se
ensina e produz audiovisual como uma linguagem fragmentada em etapas que devem
ser cumpridas linearmente – roteiro, produção, gravação, edição –, obedecendo a uma
lógica produtiva subordinada à indústria. Nada mais frustrante para o jovem ou adulto
da periferia que está entrando em contato pela primeira vez com essa linguagem do
que medir esforço em um terreno onde está em franca desvantagem. Todos os dias, o
“alto padrão de qualidade” que a TV brasileira produz entra em sua casa e é
impossível não se pegar comparando a produção realizada em um contexto de
formação com as novelas, seriados, telejornais e filmes cujo investimento ultrapassa
em muito a cifra do milhão. Pode ser uma comparação desproporcional, mas que não
deve ser ignorada. O impacto que esses produtos têm na formação do imaginário da
população e sua associação a padrões de qualidade repercutem e muito na relação
aprendizagem-produção da linguagem audiovisual. É preciso desnaturalizar essa idéia
de que a produção do audiovisual é para poucos, para os iluminados ou para os que
têm muito dinheiro. O que esses coletivos de audiovisual localizados nas periferias,
como é o caso do Núcleo Arte Grécia e Subúrbio em Transe vêm realizando, é uma
verdadeira deseducação do olhar. É preciso empreender uma análise crítica da estética
audiovisual a partir da diversidade de contextos sócio-culturais e econômicos onde ela
é criada e produzida. Compreender a forma a partir do embate com a vida, com o
lugar onde se vive, com o próprio círculo de amizades, parentescos, trabalho, lazer.
Perceber que essa mediação operada pela linguagem não se dá sem conflitos,
questionamentos, diálogo e que essa tensão deve permear a linguagem, caso contrário
a forma ganhará mais valor que a vida.
BIBLIOGRAFIA
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LAZZARATO.M.; NEGRI, A. Trabalho imaterial: Formas de vida e produção de subjetividade. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. MIGLIORIN, C. Por um cinema pós-industrial: notas para um debate. Revista Cinética, Rio de Janeiro, 17 fev. 2011. MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. Em Parente, A. (org.) Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004