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DOS 5 I Ê TIRANIA E HUMOR NO PAís DO HOMEM CORDIAL A TRADiÇÃO CORDIAL DA CARICATURA BRASIL ISABEL LUSTOSA* RESUMO Uma panorâmica da história da caricatura brasileira, com ênfase na forma como esta tratou os nossos presidentes, notadamente aqueles que marcaram seus governos por políticas autoritárias ou mesmo tirâni- cas, é o tema deste artigo. Sua tese central é a de que como arma de crítica aos políticos e à política a cari- catura brasileira foi, quase sempre, cordial. No pano- rama, evidencia-se que o humor foi sempre uma marca da imprensa brasileira e que, se o século XIX teve como principal caricaturista o italiano Ângelo Agostino, a primeira República conheceu o nascimento da ver- dadeira caricatura brasileira através do traço de J. Carlos, Kalixto e Raul Pederneiras. Cordial, alegre, arejada, a caricatura foi, durante a primeira metade deste século, uma das mais fortes expressões cultu- rais brasileiras. Seus tiranos, para nossa sorte ou azar, jamais assumiram a catadura mais sombria que seria o prêmio natural por suas arbitrariedades. Hoje, estrategicamente menos importante do que foi no seu apogeu, a caricatura se encontra, no entanto, estabelecida como uma das formas de expressão da imprensa. Ela se perpetua enquanto quadro obrigató- rio da pàgina central de quase todos os grandes jor- nais do país. U m notável pensador brasileiro, Sérgio Buarque de Holan- da, escreveu, há mais de cinqüenta anos, um livro que veio a se tornar um clássico do nosso pensa- mento social: Raizes do Brasil. Apesar de, até hoje, ser reconhecido como um marco na for- mulação de concepções so bre as origens e as especificidades do modo de ser brasileiro, Raízes do Brasil veio a ser, nas décadas que se lhe segui- ram, duramente atacado por investir na cristaliza- ção do chamado mito da "cordialidade". Segundo aquele mito, o brasileiro seria homem cordial, hos- pitaleiro, pouco afeito às soluções violentas. As provas estariam na nossa história, onde as grandes mudanças não foram antecedidas por revoluções violentas. Esta teoria foi, durante muitos anos, considerada extremamente ofensiva pelos intelectuais de esquerda. Deve-se a uma in- terpretação literal da expressão "homem cor- dial", a reação contra seu uso para a definição do modo de ser brasileiro. Desta maneira, é que toda a história da violência do Estado contra o cidadão, é sempre recuperada pela bibliografia marxista brasileira para demonstrar a inadequação do concei- to para definir o povo bra- sileiro. No entanto, no próprio texto, Sérgio Buarque a define como um traço na verdade ne- gativo da herança da família patriarcal, que resultaria numa irnper- meabilidade às formas mais impessoais que mar- cam as relações no espa- ço público. São aspectos desta suposta cordialida- de, a tentativa de impri- mir um caráter familiar e intimista a qualquer tipo de relação e uma perma- nente afetividade de ca- ráter superficial intervindo e mediando as relações no universo do tra- balho e na vida pública. Prolongando nesta esfera não só os privilégios e as hierarquias da sociedade patriarcal, o uso da fórmula "você sabe com quem está falando?", como também o chamado jeitinho brasileiro: solu- ções improvisadas que envolvem também Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa - órgão do Ministério da Cultura e autora de Histó- rias de presidentes - a República no Catete; Bra- sil pelo método confuso - humor e boêmia em Mendes Fradique e do livro infantil O Chico eo avô do Chico. Tem artigos publicados sobre o humor e a irreverência como aspectos da história cultural brasileira e defendeu a tese de doutorado Insultos impressos - a guerra dos jornalistas na Independência. LUSTOSA, ISABEL. TIRANIA E HUMOR NO PAis DO HOMEM CORDIAL. P. 73A 83 73

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DOS 5 I Ê

TIRANIA E HUMOR NO PAís DO HOMEM CORDIAL

A TRADiÇÃO CORDIAL DACARICATURA BRASIL

ISABEL LUSTOSA*

RESUMOUma panorâmica da história da caricatura brasileira,com ênfase na forma como esta tratou os nossospresidentes, notadamente aqueles que marcaram seusgovernos por políticas autoritárias ou mesmo tirâni-cas, é o tema deste artigo. Sua tese central é a de quecomo arma de crítica aos políticos e à política a cari-catura brasileira foi, quase sempre, cordial. No pano-rama, evidencia-se que o humor foi sempre uma marcada imprensa brasileira e que, se o século XIX tevecomo principal caricaturista o italiano Ângelo Agostino,a primeira República conheceu o nascimento da ver-dadeira caricatura brasileira através do traço de J.Carlos, Kalixto e Raul Pederneiras. Cordial, alegre,arejada, a caricatura foi, durante a primeira metadedeste século, uma das mais fortes expressões cultu-rais brasileiras. Seus tiranos, para nossa sorte ouazar, jamais assumiram a catadura mais sombriaque seria o prêmio natural por suas arbitrariedades.Hoje, estrategicamente menos importante do que foino seu apogeu, a caricatura se encontra, no entanto,estabelecida como uma das formas de expressão daimprensa. Ela se perpetua enquanto quadro obrigató-rio da pàgina central de quase todos os grandes jor-nais do país.

Um notável pensadorbrasileiro, SérgioBuarque de Holan-

da, escreveu, há mais decinqüenta anos, um livroque veio a se tornar umclássico do nosso pensa-mento social: Raizes doBrasil. Apesar de, atéhoje, ser reconhecidocomo um marco na for-mulação de concepçõesso bre as origens e asespecificidades do modode ser brasileiro, Raízesdo Brasil veio a ser, nasdécadas que se lhe segui-ram, duramente atacadopor investir na cristaliza-ção do chamado mito da"cordialidade". Segundoaquele mito, o brasileiroseria homem cordial, hos-pitaleiro, pouco afeito àssoluções violentas. Asprovas estariam na nossa história, onde asgrandes mudanças não foram antecedidaspor revoluções violentas.

Esta teoria foi, durante muitos anos,considerada extremamente ofensiva pelosintelectuais de esquerda. Deve-se a uma in-terpretação literal da expressão "homem cor-

dial", a reação contra seuuso para a definição domodo de ser brasileiro.Desta maneira, é que todaa história da violência doEstado contra o cidadão,é sempre recuperadapela bibliografia marxistabrasileira para demonstrara inadequação do concei-to para definir o povo bra-sileiro. No entanto, nopróprio texto, SérgioBuarque a define comoum traço na verdade ne-gativo da herança dafamília patriarcal, queresultaria numa irnper-meabilidade às formasmais impessoais que mar-cam as relações no espa-ço público. São aspectosdesta suposta cordialida-de, a tentativa de impri-mir um caráter familiar eintimista a qualquer tipode relação e uma perma-nente afetividade de ca-ráter superficial intervindo

e mediando as relações no universo do tra-balho e na vida pública. Prolongando nestaesfera não só os privilégios e as hierarquiasda sociedade patriarcal, o uso da fórmula"você sabe com quem está falando?", comotambém o chamado jeitinho brasileiro: solu-ções improvisadas que envolvem também

Pesquisadora da Fundação Casa de Rui Barbosa- órgão do Ministério da Cultura e autora de Histó-rias de presidentes - a República no Catete; Bra-sil pelo método confuso - humor e boêmia emMendes Fradique e do livro infantil O Chico e oavô do Chico. Tem artigos publicados sobre ohumor e a irreverência como aspectos da históriacultural brasileira e defendeu a tese de doutoradoInsultos impressos - a guerra dos jornalistas naIndependência.

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relações pessoais para problemas de natu-reza pública 1•

Sem querer entrar nesse debate, pode-ríamos sugerir que outra fonte que poderiajogar água no moinho da tese de Buarque deHolanda seria a caricatura brasileira. Esta, comoarma de crítica aos políticos e à política foi,quase sempre, cordial. Mesmo os maiores ti-ranos, como Floriano Peixoto, Getúlio Vargase os presidentes militares não chegaram a sermassacrados por ela.

Os chamados "anos de chumbo", dogolpe militar de 1964 à abertura de 1985,foram marcados pela censura prévia, que im-pedia a divulgação de qualquer material crí-tico ao regime. Mesmo assim, não se assistiu,no momento seguinte a uma irrupção de hu-mor mais violento contra os militares. Tal-vez, porque, ainda na linha da tradição decordialidade (da qual, certamente, não fazparte o exército de torturadores de todas asnossas ditaduras) a passagem da ditadura paraa democracia se deu sob a forma de umadistensão lenta e gradual, concedida pelosmilitares. Quando a caricatura voltou aos jor-nais, de fato, a ditadura já havia passado hámuito tempo.

Curiosamente, numa história onde asmaiores violências contra pessoas praticadaspelo Estado por motivos políticos podem sercontabilizadas nos momentos em que o po-der foi empolgado por militares, o presidenteque foi mais diretamente identificado pela ca-ricatura como um tirano, foi um civil, que as-sumiu o poder numa eleição que contrariavaos interesses das forças armadas brasileiras:Artur Bernardes.

Neste artigo, escolhi produzir uma pa-norâmica da história da caricatura brasileira,com ênfase na forma como esta tratou os nos-sos presidentes, notadamente aqueles quemarcaram seus governos por políticas autori-tárias ou mesmo tirânicas.

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A REVISTA ILUSTRADA E O PAPEL DA CARICATURA NAPROCLAMAÇÃO

o humor foi sempre uma marca da im-prensa brasileira. Mesmo as folhas mais tradi-cionais do século XIX, com sua péssimapaginação, seu amontoado de colunas e denotas, sem manchetes e sem fios a destacá-Ias, reservaram sempre um espaço, ainda quepequenino, para a quadrinha, a nota malicio-sa sobre as figuras importantes do tempo, oumesmo para a pura e simples anedota.

A caricatura, no entanto, só começa ase tornar freqüente a partir de 1837, com apublicação da Lanterna Mágica, revista ilus-trada, de Araújo Porto Alegre. Daí em diante,multiplicar-se-ão as publicações do gênero,quase todas de vida efêrnera.

A chegada ao Rio de Janeiro, em 1867,do italiano Ângelo Agostini, representa umaforça nova na arte da caricatura. Agostini, an-tes de criar sua própria revista, colabora comvários periódicos, dos quais o mais famosofoi O Mosquito (1869-1875). Praticamente atéo final do século XIX a caricatura brasileiraserá produzida por estrangeiros ou por suainspiração. Além de Agostini, o Rio acolheoutro italiano, Luigi Borgomaniero (precoce-mente falecido, vítima de febre amarela, em1876) e o português Rafael Bordalo Pinheiro.Nos últimos anos do século, Julião Machado,outro português, promoverá verdadeira reno-vação na caricatura brasileira.

Mas, é com Ângelo Agostini e sua Re-vista Ilustrada (1876-1898) que se constituium estilo, senão nacional, pelo menos carac-terístico de um momento do humor brasileiro.Predomina no desenho litográfico a técnicado esfuminho - resultado da ação do lápisgorduroso sobre a pedra - afeita às nuanças eaos modelados. O estilo Agostini chegará aostrês primeiros anos deste século, quando fi-nalmente o artista encerra a carreira em suaúltima revista: D. Quixote. Agostini fundou

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uma verdadeira escola onde também se des-tacaram seus seguidores: Pereira etto eHilarião Teixeira - cujos desenhos são tãosemelhantes aos do mestre que só um conhe-cedor é capaz de distinguí-los.

Era um desenho pesado e sem muitaagilidade, que guardava muito do acade-micismo nos jogos de sombras e formas, pres-tando-se mais facilmente ao retrato, àhomenagem, à representação do humor sin-gelo de anjinhos barrocos do que à caricatura.As ilustrações da Revista Ilustrada funciona-vam como verdadeiros substitutos da fotogra-fia que ainda não freqüentava as páginas dosjornais. Detalhista, a Revista fazia a crônicados acontecimentos políticos da semana napágina central, em seqüências de desenhosque fazem lembrar as modernas histórias emquadrinho.

É bem provável que o caráter fotográ-fico da caricatura naquele momento, tornan-do familiares rostos e atitudes de políticos ede gente famosa e possibilitando aos menoscultos acompanhar os fatos apenas atravésdas imagens, seja a explicação mais adequa-da para a penetração que a Revista teve nascapitais e no interior, como também para asua longa vida. Este caráter pedagógico tam-bém pode explicar a facilidade com que seimpôs mais fortemente o estilo de desenhofotográfico de Ângelo Agostini do que o tra-ço limpo, sutil e elegante de um RafaelBordalo Pinheiro.

Quando foi proclamada a República noBrasil, Ângelo Agostini estava na Europa. SuaRevista, que se batera pela causa da Aboli-ção, marcava posição ao lado dos republica-nos. Se a magnanimidade de D. Pedro Il, suatolerância com os opositores, seu caráter depríncipe ilustrado, a própria figura patriar-cal, com a barba branca a cair sobre o peito,não estimulavam sátiras mais agressivas, omesmo não se pode dizer de seus ministros.Eram de Pereira Netto as caricaturas onde a

figura antipática e irascível do presidente doúltimo Conselho de Ministros do Império, ovisconde de Ouro Preto, preponderava. Otipo físico do visconde, magro, alto, de per-fil anguloso, marcado pelo nariz adunco, alia-do à sua personalidade autoritária, compunhaa imagem do vilão ideal para os caricaturis-tas críticos do regime. as folhas da RevistaIlustrada, a seqüência dos acontecimentosque culminaram com a queda da coroa vaise reproduzindo nas histórias em quadrinhoda página central e nos agressivos editoriaisassinados por Júlio Verim-.

Com a Proclamação da República, em15 de novembro de 1889, os vilões saemde cena. Começa o ciclo dos heróis e, paraestes, a caricatura não é a expressão maisadequada. O enferrniço marechal Deodoroda Fonseca, por exemplo, se verá, nas pá-ginas da Revista Ilustrada, glamourizado, re-juvenescido e cheio de vitalidade. Oraaparece separando a Igreja do Estado, oraao lado de Benjamin Constant, a cortar ascabeças da hidra das intrigas. Belos tam-bém aparecerão os ministros Rui Barbosa,Quintino Bocaiúva e Campos Sales. A cari-catura cede lugar à outra vocação naturalda Revista. O desenho de origem acadêmi-ca, em esfuminho, encontra sua essência naapologia dos heróis republicanos. Raras sãoas situações caricatas, raros os Deodoros degrande cabeça e corpo pequenino na formatípica da caricatura do tempo>.

A REVELAÇÃO DE FLORIANO, O DISSIMULADO

O marechal Deodoro da Fonseca ocu-pou a Presidência da República de 1889 (datada Proclamação) até novembro de 1891, quan-do foi levado a renunciar sob a ameaça doalmirante Custódio José de Melo que apontouos canhões do navio Aquidaban contra o Riode Janeiro, exigindo a sua deposição.

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Apesar dos inúmeros equívocos quemarcaram a sua passagem pelo poder, Deodoromereceu sempre a consideração da imprensajovem. Esta, freqüentadora das mesas da Con-feitaria Pascoal e das calçadas da rua doOuvidor", tinha em nomes como Olavo Bilac,Guimarães Passos, Pardal Mallet, Luiz Murat,Emílio de Menezes e Coelho Neto? as maisbrilhantes expressões do momento. Boêmiostodos, encontravam abrigo nas folhas do jor-nal de outro boêmio incorrigível, José do Pa-trocínio'' (Cidade do Rio), e na Gazeta deNotícias, de Ferreira de Araújo. Num tempoem que a anedota, o chiste, o trocadilho e asquadrinhas satíricas eram supervalorizados,muitos destes jovens poetas e escritores con-quistavam espaço na imprensa pela capaci-dade de fazê-Ias mais criativas, maisengraçadas.

O presidente Floriano Peixoto (1891-1894) marcou sua passagem pelo governo epela história do Brasil por seu caráter enig-mático. A aparente indecisão nos aconteci-mentos que marcaram a Proclamação daRepública e a sua ascensão ao poder não en-contraram, até hoje, explicadores adequados.Cognominado o Consolidado r da República,mesmo esta denominação é discutível poisse, de fato, o seu governo garantiu a transi-ção para os governos seguintes, não está cla-ramente estabelecido se a transição era projetodo ditador.

Sem um aspecto característico, fisicamen-te inexpressivo, típico caboclo do Nordestebrasileiro, o Major como era então chamado,não se prestava facilmente ao traço dos cari-caturistas. O tipo comum, aliado ao mistériodas suas intenções, à fisionomia onde nada serevelava, não permitia ressaltar pelo exageroo detalhe, a característica de onde os carica-turistas retiram o efeito cômico, essência doseu humor.

A caricatura privilegiará o enigma comomarca de Floriano. Na capa da Revista Ilustra-

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da, a. 17, nQ 640, março de 1892, sua cabeçaaparecerá encimando o corpo de uma esfin-ge. Mais adiante, quando tem início a repres-são, a Revista apresenta Floriano diante deum espelho onde aparece a imagem deDeodoro": No texto, o caricaturista expressaa perplexidade da opinião pública diante dosdesmandos de um governo que subira ao po-der justamente para acabar com a ilegalidadeem que mergulhara o governo anterior.

Célebre se tornará a caricatura da pá-gina central do nQ 641 da Revista, ondeFloriano aparece caracterizado de Hamletcaboclo. Esta caricatura fora inspirada emparódia satírica publicada por Olavo Bilacno jornal Cidade do Rio. Ali, o marechal apa-recia como o atormentado príncipe dinamar-quês se debatendo em meio a angústias quediziam respeito à vontade de continuar nopoder e às ameaças de deposição. Ofélia éa Constituição que, apaixonada e reconheci-da ao ditador por este ter lhe dado elastici-dade de uma lei de borracha, é convidadapor Hamlet a partir para os EUA, sua verda-deira pátria, após a dramática confissão dopríncipe: nunca te amei! 8.

Enigmático e dissimulado, segundo ascríticas fortes do jovem Olavo Bilac, o ditadoré apresentado em outra paródia do poetacomo o Tartufo, de Moliere, a seduzir Elmira,a Constituição. Com estas e outras paródiasinspiradas, Bilac ia conquistando espaço naimprensa e fazendo-se credor dos cinco me-ses que amargaria preso na Fortaleza de Lagese dos outros tantos de exílio forçado em Mi-nas Gerais.

A liberdade de imprensa fora uma rea-lidade no Império. Falava-se o que se queriado imperador e de seus ministros. ComDeodoro, pouco acostumado a críticas, verifi-cou-se o empastelamento do jornal monar-quista, Tribuna. Mas este foi fruto de açãoparalela, nunca assumida pelo governo. Asdemais folhas, até porque, em sua maioria,

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apoiavam a República, nada sofreram em ter-mos de repressão. Acostumados a este climade liberdade, os jornalistas contrários aFloriano, como Bilac, dão asas à imaginaçãoem busca das imagens mais fortes e capazesde satirizar o marechal.

Em 1892, Olavo Bilac, Pardal Mallet eLuiz Murat fundam O Combate. Através desuas páginas passam a atacar diretamenteFloriano e a pedir a volta de Deodoro aopoder. No aniversário deste, 10 de abril de1892, o jornal convida para manifestação emsua homenagem. A manifestação, reunindotodos aqueles que combatem o presidente,acaba se transformando em movimento sedi-cioso, tentativa de deposição. Floriano, in-formado em casa do que se passava, tomouo trem, saltou na Central do Brasil? e veio apé até o Quartel-General do Exército, noCampo de Santana. Ali, encontrou o generalMena Barreto, um dos sediciosos, dando-lheimediatamente ordem de prisão. O tom comque O Combate narra os acontecimentos éde acrimônia mas, também, de perplexidade.

... Depois, sabe-se o que houve: houvea descida do Sr. Ploriano da Piedade'",fardado, fingindo de herói, disfarçado emSalvador da República, mandando iluminaro Itamarati, mandando tocar o hino ...

E, logo em um dos salões do Itamaraticomeçou a ser organizada a lista das prisões.A oposição tinha caído no laço(. ..)

É necessário que uma vez ao menos oSr. Floriano Peixoto deixe cair do rosto a velhamáscara que usa - máscara que S. EX.a. traziana noite de 14 para 15 de novembro quandotraiu o Sr.Afonso Celso(visconde de Ouro Pre-to) para servir o Sr. Deodoro e na noite de 22para 23 de novembro quando traiu o Sr.Deodoro para servir o Sr. Custódio.

Ao menos uma vez o país precisa sa-ber de que cor é a verdadeira face do Sr.Ploriano.

Presentes neste texto a referência aocaráter dissimulado do marechal e a perspec-tiva equivocada dos que ° combatiam atribu-indo-lhe a intenção de servir ao almiranteCustódio José de MeIo, contra quem Florianocombateria no ano seguinte, para debelar arevolta da Armada.

É ainda igualmente curioso que, quan-do o artigo citado acima foi publicado em OCombate, de 21 de abril de 1892, seus direto-res, Bilac, Mallet e Murat já se encontravampresos, pois é de 12 de abril o decreto quedeterminava a prisão destes dentre tantos ou-tros nomes ilustres da vida pública brasileira.Da mesma forma surpreende a agressividadedos editoriais do jornal de José do Patrocíniocontra o governo, quando este já havia sidodeportado para Cacuí, no Amazonas, por contade sua participação no movimento sedicioso.

Diz Francisco de Assis Barbosa queFloriano, "bom psicólogo, sentia que aquelaelite hostil não era perigosa e que a sua forçarepousava no crescente apoio popular"!'. Le-ôncio Basbaum registra, na História sincerada República, dois chistes atribuídos a FlorianoPeixoto. No primeiro, o marechal, ao saberque o Congresso discutia a legalidade da pri-são de alguns parlamentares, teria comentadoirônico: "Vão discutindo que eu vou mandan-do prender". Em outro, referindo-se ao man-dato de babeas-corpus impetrado por RuiBarbosa junto ao Supremo Tribunal Federalem defesa dos presos, dissera: "Não sei ama-nhã quem dará babeas-corpus aos ministrosdo Supremo"!".

Estes chistes casam à perfeição com umcomentário de Bilac publicado em 1898, empleno governo de Prudente de Morais, sobreFloriano e seus ministros. Bilac recorda que oque mais intrigava a imprensa e a opiniãopública no governo Floriano era a origem ab-solutamente anônima de seus ministros. Diz opoeta que estas nomeações causavam surpresaporque "todo o mundo estava convencido de

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que para o Marechal o cargo de ministro ti-vesse alguma importância ... Puro engano! Parao Marechal de Ferro, ministro era menos quecriado, menos que copeiro'?".

Homem de pouco falar, Floriano não atri-buía grande valor às palavras. Para um incré-dulo como ele, desprovido de qualquerromantismo, as leis eram meros jogos de pa-lavras, passíveis de múltiplas interpretaçõese, ao fim e ao cabo, derivavam sua força daespada dos militares. Sua atitude com relaçãoaos jornais que lhe fazem oposição, que con-tinuam a atacá-lo em pleno estado de sítio, équase de indiferença. Pois sabe que não se-rão as belas palavras dos jornalistas parna-sianos que irão arredá-Io do poder.

Esta indiferença parece, da ótica dehoje, torná-I o mais próximo do povo que as-sistira "bestializado'r" ao advento da Repú-blica. Ao povo analfabeto, que não participarados acontecimentos, também pareciam indi-ferentes não só as leis que, como sempreserviam mais aos poderosos, como tambémas belas palavras dos poetas e jornalistas queescreviam para o pequeno público da elite.

É, no entanto, através das críticas da im-prensa, que vem expressa em editoriais rai-vosos, em quadrinhas humorísticas e nascaricaturas que, pouco a pouco, vai se cons-truindo a imagem de Floriano e de seu gover-no. Leitura parcial que seja, essas notas dão otom do período. A esfinge, o mascarado, oHamlet, o Tartufo vão deixando entrever oscontornos do grande ditador. O humor per-manece na linguagem da imprensa enquanto.arma alternativa contra a violência do regime.

A CARICATURA BRASILEIRA NA VIRADA DO SÉCULO

Raul Pederneiras, Kalixto e J. Carlos es-tréiam na imprensa quase ao mesmo tempo:na virada deste século. Pode-se dizer que acaricatura genuinamente brasileira surge a

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partir desta estréia. Com eles nasce a carica-tura de autor, cada um mantendo um estilopróprio que se evidenciava inclusive na es-colha das temáticas.

Ao mesmo tempo, a incorporação denovas técnicas de impressão libertava a cari-catura do traço litográfico. Passa a predomi-nar nas páginas o desenho ligeiro, deapreensão rápida. Nas capas, os artistas aindase dão a requintes de elaboração. Mas estanão se vale mais do pesado jogo de sombrase formas, vai ser antes o privilégio do uso dacor o que predominará nas composições.

O marechal Hermes da Fonseca, presi-dente do Brasil entre 1909 e 1915 ficariamais conhecido pelo apelido que lhe deu aimprensa, "Dudu", e por sua enorme urucu-baca" (azar). O governo Hermes sob a tute-la do caudilho gaúcho, Pinheiro Machado, éapenas a caricatura do que fora o governodos militares nos primeiros anos da Repúbli-ca. Incompetência e azar se unem contra omarechal-trapalhão, personagem prediletodos caricaturistas (visto que perdeu apenaspara Getúlio Vargas). Predileto não só doshumoristas do traço mas também dosirreverentes da música popular, dos carna-valescos de 1915 que lhe faziam marchinhase que se mascaravam de "Dudu", saindo pe-las ruas a imitar a sua fala característica.

Na imprensa da época, o registro quepermaneceu não foi o das insurreições edos bombardeios nos Estados. Estes foramsuperados de longe pela imagem caricatado marechal-presidente. Na revista Careta,a mais popular naquele período, toda a se-mana se publicava a "última do marechal".Magistralmente ilustrada por J. Carlos, a "úl-tima do marechal" dizia respeito à burrice eà ignorância que lhe atribuíam os adversári-os. Foi na cara de perplexidade diante damá sorte; no ar risonho e feliz de noivo de

air de Teffé " e na alegria com que dan-çou o "corta-jaca'?? no Catete que a carica-

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. ra perpetuou as imagens de Hermes e deseu governo.

Artur Bernardes 0922/1926) gover-aando sob estado de sítio e restringindo aberdade de imprensa, não tratou com bom

mor os que o satirizaram na crise que.•.•tecedeu à posse. Tão logo esta aconte-ceu foram chamados a depor pelo chefe de

lícia, Geminiano Franca, os compositores::eire Júnior e Careca, autores da- pularíssima "Ai, seu Mé", que terneraria--::ente preconizava que o "seu Mé", apeli-

de Artur Bernardes, "lá no Palácio das•.. ías'", olé" não haveria de pôr o pé. Pre-

, também, entre muitos outros, foram ornalista Mário Rodrigues, diretor de A Ma-ã, e seu caricaturista, o célebre paraguaio

__-: rés Guevara, que trouxera para a cari-_ ra brasileira um estilo novo. A virulên-

dos ataques da Manhã contra Bernardes.eram a Mário Rodrigues dois processos:L uns meses como hóspede car cerárioEstado.

Durante o ano de 1927, depois que- _.•ardes deixou o governo, a imprensa pro-- -eu a grande revanche. Bernardes se reti-

_ sob o fogo cerrado das sátiras e das. ruras. Através de versinhos, charges e

. todas fortes, algumas rebarbativas, jor-- e revistas se esmeravam em fazer em_-o tempo o que não puderam fazer du-.., quatro anos.

, .otabilizou-se nesta empreitada a revistauixote, fundada por Bastos Tigre, que

, va em seu corpo de ilustradores com a--:...::.vv.raçãodos já célebres Kalixto e Raul e

o desenho mais jovem de Théo (forte-•., influenciado por J. Carlos). Colaborava

::...,. om o D. Quíxote um paulista genial:- ate. São dele as melhores caricaturascresídente mineiro. a capa da Careta,

rase em que dela se afastou J. Carlos, o..-.....:"- •••'1 o de Storni, compara Bernardes aos

::. res da Europa.

A ERA VARGAS

A primeira República conheceu o nasci-mento da verdadeira caricatura brasileira. Co-nheceu também o seu apogeu. Com o governoVargas, começa um novo período, a imprensavai mudando, ampliando-se em jornais e revis-tas, onde a fotografia prepondera. O espaçoda caricatura tende a se reduzir. Poucas, daíem diante, serão as revistas especializa das nogênero. A Careta e O Malho, que alcançaram asegunda metade do século, mudam de roupa-gem, ampliando o espaço da crônica sobremoda, do comentário político mais sisudo, dacrítica de cinema, dos concursos de misses.

Getúlio Vargas ocupou a presidência daRepública entre ]930 e 1945 e voltou ao po-der, pelo voto popular, em 1951. Vargas as-sumiu o governo provisório em 1930, em meioa uma revolução. Era um político cheio demanhas, de poucas palavras, muito simpáticoe que sabia ser duro com os adversários ecom os aliados na hora da necessidade. Go-vernou em regime autoritário a partir de 1937,quando, adotando o modelo das ditaduras eu-ropéias de direita, deu o golpe de estado quefundou o Estado ovo. Durante o seu primei-ro governo, principalmente após as fracassa-das tentativas de golpe dos comunistas em1935 e dos Integralistas'? em 1938, houvemuitas prisôes e violências indescritíveis fo-ram praticadas contra os presos políticos. Noentanto, essa imagem negativa de Vargas nãofoi a que ficou na caricatura. Talvez por queela estivesse mais ligada ao período em quehouve censura prévia à imprensa (entre 1935e 1945) ou talvez porque à imagem do Getú-lio ditador se sobrepunha a do político ladi-no, sempre driblando os adversários com"carradas" de bom humor. Não se pode es-quecer também que Vargas teve a seu favor aação de um Departamento de Imprensa e Pro-paganda que, além de fazer a censura préviaaos jornais e revistas publicados no país, con-

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tribuiu, junto com os programas sociais, paracriar a imagem do Vargas "pai do pobres", opolítico populista que criou a primeira legis-lação trabalhista implantada no Brasil.

Figura de contornos fáceis de captar ecaricaturar, Getúlio mereceu a atenção de qua-se todos os caricaturistas do período. Se acomplexidade do personagem escapava, mui-tas vezes, aos políticos e mesmo ao povo, elaera perfeitamente apreendida pela imprensa,através de seus desenhistas de humor. DizHerman Lima:

o que ressalta, antes de mais nada,além da interpretação física do modelo, notraço de Théo, Storni, j. Carlos, Nássara e namoderníssima Hilda Weber, em suas linhasirônicas ou maliciosas, é a personalidade sin-gular do estadista consumado que, por maistempo, dominou o cenário político nacional,mercê da sua insuperável tática deenvolvimento e anulação de todos os poderesaruagõnicos".

Por Gip (Luís Peixoto), é ele apresenta-do ora como mágico, ora como domador deferas, mas sempre como o personagem docirco da política, hábil e maroto. Todavia, acharge que melhor o define é a de J. Carlos,publicada na revista Careta, em janeiro de1937. Nela, aparece Getúlio em frente ao Pa-lácio do Catete, pondo cascas de banana nacalçada e indagando: - Para que arame farpa-do se é possível arranjar tudo com as habitu-ais cascas de banana? Ou seja, para que aforça se posso fazê-los escorregar e cair comas minhas mesmas velhas armadilhas?

As melhores caricaturas de Vargas seri-am as que mencionavam o seu continuísmo,a vontade de permanecer na presidência mes-mo depois de 1945, mesmo depois da ade-são do Brasil aos Aliados, quando sua imagemestava definitivamente identificada com a dosditadores europeus. A melhor é a de Théo,

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para o jornal O Globo, onde se faz um troca-dilho com a palavra passageiro, no sentidode pessoa que viaja no transporte coletivo eno sentido de coisa que tende a passar. Domesmo gênero é outra de J. Carlos, ondeVargas está no barbeiro, que faz sobre o pen-teado escolhido o comentário: ..O freguês écaprichoso. Ele quer ondulado, mas "perma-nente".

A CARICATURA DOS ANOS DE CHUMBO

Sob a influência do desenho modernodo paraguaio Guevara, que chegou ao Brasilainda na década de 20, a caricatura se tornamais angulosa, estilizada, econômica de tra-ços. Surgem novos nomes como Ãlvarus,Augusto Rodrigues e Nâssara. Um desenhistacomo Théo, que surgira com um traçomarcadamente influenciado por J. Carlos, soba nova influência, adota o traço duro, quebra-do. Em Guevara, especialmente, muitas ve-zes o humor cede lugar à denúncia e algumasde suas imagens sombrias, fazendo lembrarGuernica de Picasso, menos convidam ao risodo que à reflexão. De qualquer maneira,Guevara é um estrangeiro e, os seus seguido-res, se apreendem muito do seu estilo, docaráter inovador do seu traço, acabam sem-pre por voltar ao veio nativo, ao humor maisdebochado, mais benevolente, humor de paísdo carnaval, o humor do homem cordial.

Herdeiro do estilo de Guevara, mas logoseguindo trilha própria, Antônio GabrielNássara foi o melhor caricaturista dessa gera-ção. ássara que além de caricaturista foi umgrande compositor popular, autor de músicasque marcaram muitos carnavais, é a síntesemais perfeita da cultura carioca da década de30 à de 50, no que esta cultura tem de maisboêmio, irreverente, musical. Seu traço angu-loso, sempre representou de forma alegre,bern-humorada as situações mais críticas, sem

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que com isto se prejudicasse o potencial dedenúncia da caricatura que fazia. O tempo sócontribuiu para aprimorar sua capacidade desíntese. Quando morreu, em dezembro do anopassado, aos 86 anos, era ainda um artistaatuante e atual.

Em 1964, aconteceu no Brasil um gol-pe militar que implantou um regime de ex-ceção que se estenderia até 1985. Duranteeste período, muitos brasileiros foram pre-sos, torturados e mortos pelo aparelho re-pressivo do Estado.

A partir de 1968, driblando com dificul-dade a censura, o humor e a irreverência comomarca da tradição cultural brasileira, seriampreservados através de O Pasquim, editado,como não poderia deixar de ser, no Rio deJaneiro, a antiga capital do Brasil, que perma-nece sendo, até hoje, sua capital cultural. Umgrupo do primeiro time de jornalistas e cari-caturistas começou, justamente quando a re-pressão iniciava sua marcha ascendente, apublicação desse periódico iconoclasta que,através da irreverência, atacaria os setores daselites e da sociedade mais francamente iden-tificados com o regime. Destaque merece otraço de um grafismo elaborado mas tambémde um humor genuinamente brasileiro deZiraldo, que reinterpretava a natureza do bra-sileiro e debochava da repressão e doconservadorismo das elites; o texto genial deMillôr Fernandes, o papa do humorismo naci-onal, que estabelecia correlações entre ononsense do regime de arbítrio e a veia hu-morística nacional e as tirinhas de Jaguar, cri-ador do personagem símbolo do jornal, o ratoSig (de Sigmund Freud) que deixou impressa,através da caricatura, a crônica dos costumescariocas daquelas duas décadas.

Uma outra expressão da caricatura queestreou na imprensa nos anos 70, é CássioLoredano. Loredano foi um dos grandes ino-vadores da caricatura brasileira daquele perí-odo. Com ele, a caricatura perdeu em humor

e ganhou em sofisticação intelectual, aproxi-mando-se das artes plásticas como forma deexpressão. Loredano é o nosso intelectual dacaricatura. Nele, a distorção inteligente daimagem cria figuras, por vezes intrigantes, deum grafismo elaborado, onde o artista, menosque buscar conquistar seu público pelo hu-mor fácil, obriga o espectador a trabalhar nosentido de reconhecer as analogias. Loredanoconseguiu, num conjunto extremamente ex-pressivo e sem palavras, produzir a imagem-síntese do período, representação precisa dotirano quase sem rosto, escondido atrás doaparelho da repressão. Pois, durante aqueleperíodo, menos do que a figura do "generalde plantão", como então se dizia, a tirania eraidentificado pelos vitimados com o próprioregime. Agrupar os generais que ocuparam opoder durante aqueles anos foi um exercícioa que se dedicaram tanto o jovem Loredano,quanto o veterano Nãssara.

Os irmãos Chico e Paulo Caruso, queestrearam na imprensa também na décadade 70, trabalhando separadamente mas comgrandes identidades no traço e na concep-ção, recuperaram para a caricatura brasileiraum pouco de seu papel de registro quasefotográfico que tivera no tempo de Agostini.Ao invés do traço duro, da excessiva econo-mia de detalhes, a caricatura dos irmãosCaruso, quando de sua estréia, retomava embico de pena, o compromisso com o traçoelaborado, com a composição detalhada dospersonagens.

Cordial, alegre, arejada, a caricatura bra-sileira foi uma das mais fortes expressôes cul-turais brasileiras. Seus tiranos, para nossa sorteou azar, jamais assumiram a cata dura mais som-bria que seria o prêmio natural por suas arbi-trariedades. Ao contrário disto, os presidentesna República Velha seriam chamados na re-presentação afetiva do Zé-Povo, de PapaiGrande. Tratamento recorrente nas caricatu-ras do tempo, que era a continuidade da re-

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presentação paternal que se fazia, durante oImpério, de D. Pedro lI.

Tratamento que se prolongaria, comoutras expressões, até o último governo Vargas.Após o seu suicídio, em agosto de 1954, suaimagem paternal seria evocada nas cenas quea fotografia guardou, do povo em prantos,por todas as capitais do Brasil. A violenta co-moção popular que então tomou as ruas, atestaa continuidade do mesmo sentimento afetivo,de natureza familiar em relação a persona-gens da vida pública que Sérgio Buarque iden-tificara como marca da brasilidade. Ao invésdo tirano e das cenas mais tenebrosas dosporões de sua ditadura a imagem que ficou,elaborada pela imprensa e pela caricatura foida político simpático, risonho e esperto. Al-guém muito familiar, um velho conhecido,quase um parente.

Hoje, estrategicamente menos impor-tante do que foi no seu apogeu, a caricatu-ra se encontra, no entanto, estabelecidacomo uma das formas de expressão da im-prensa. Ela se perpetua, até hoje, enquantoquadro obrigatório da página central de qua-se todos os grandes jornais do país. O cari-caturista, ao registrar o momento histórico,o fato político significativo do dia, compõe,de certa maneira, um aspecto da personali-dade de seu jornal, identifica uma tendên-cia, firma uma posição.

NOTAS

Sobre estas práticas sociais que caracterizam atéhoje a sociedade brasileira ver o importante tra-balho de Roberto da Mata, Carnavais, malandrose heróis.Pseudônimo de Luís de Andrade, que a partir de1890 se toma o principal articulista da Revista.Seu prestígio de jornalista garante-lhe a vaga dedeputado na Assembléia acional ConstituinteRepublicana.

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Deodoro da Fonseca (1827/1892) foi o primeiropresidente do Brasil (1889/1891). BenjaminConstant (1836/1891) foi um militar positivistade grande influência sobre a juventude do Exér-cito, contribuindo diretamente para a Proclama-ção da República, da qual foi ministro Guerra eda Instrução no primeiro gabinete. Rui Barbosa,(1849/1923), intelectual e político liberal de gran-de atuação durante o final do Império e a Pri-meira República (1889/1930), foi ministro daFazenda de Deodoro, duas vezes candidato àPresidência e Senador. Quintino Bocaiúva (1836/1912), político, jornalista e escritor , conspiroupela queda do Império e foi Ministro da Agricul-tura e Relações Exteriores do primeiro gabinete.Várias vezes eleito Senador. Campos Sales (1841/1913), foi Ministro da Justiça no mesmo gabine-te dos outros e, presidente da República (1898/1902), quando implementou uma política eco-nômica extremamente austera, que minou suapopularidade.O melhor da vida social, cultural e mesmo políticado Rio de Janeiro, durante boa parte do séculopassado e início deste, acontecia numa rua docentro da cidade chamada rua do Ouvidor. Láfica-vam os cafés, os bares, as sedes dos grandes jor-nais e as melhores lojas de moda feminina. Erauma artéria muito agitada e inspirou uma infinida-de de artigos e alguns livros. Era moda entre afina flor da boêmia intelectual da nossa belleépoque freqüentar as Confeitarias da rua doOuvidor, As mais famosas foram a Pascoal, aCailtaux e a Colombo (esta na rua Gonçalves Dias,existe até hoje).Nomes do grupo boêmio que liderou a vida cultu-ral da cidade no Rio de Janeiro da virada do sécu-lo. Olavo Bilacera então considerado o maior poetabrasileiro e foi eleito o Príncipe dos Poetas. Seuamigo, Coelho Neto, era o escritor mais reconhe-cido e aclamado pela crítica e pelo público. Deestilo pesado, extremamente acadêmico, poucosde seus livros sobreviveram ao tempo. Emílio deMenezes foi o maior dos satíricos do tempo, autorde inúmeras anedotas e quadrinhas que passaram

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a fazer parte de um repertório humorístico entãomuito em voga.

6 José do Patrocínio (1854/1905) foi uma das maio-res figuras da vida política e intelectual do Brasildaquele período. Negro, ativista da campanha pelaAbolição, jornalista polêmico era também um bo-êmio inveterado, mais velho que Bilac e CoelhoNeto, era ligado ao grupo liderado por eles.É curioso comparar esta com outra caricaturapublicada em 26/04/1927, por Guevara no Ma-nhã. Sob o título "É ou não é", o autor apresentaWashington Luiz diante de um espelho onde apa-rece a imagem de Bernardes. Também como nacaricatura da Revista Ilustrada, aludindo ao fatode que os atos do novo governo se iam asseme-lhando muito aos do anterior.

8 Citado por Eloy Pontes in: A vida exuberante deOlavoBilac. Rio de Janeiro, LivrariaJosé OlympioEditora, 1944, p. 209-21I.

9 A Central do Brasil é a gare de onde partem echegam os trens de subúrbio no Rio até hoje.

io Ploriano Peixoto morava no subúrbio cariocada Piedade, e vinha de trem para o centro dacidade, onde ficava o Palácio do Itamarati, en-tão sede do Governo. A Central do Brasil fica apoucas quadras do Itamarati. Depois que a Pre-sidência foi transferida para o Palácio do Catete,em 1897, lá funcionou a sede do Ministério dasRelações Exteriores, até 1960, quando a capitaldo Brasilpassou a ser Brasília.A diplomacia do marechal. Intervenção estran-geira na revoltadaArmada, SérgioCorrêa da Costa.Rio de Janeiro, Ed. Tempo Brasileiro, 1979, prefá-cio de Francisco de Assis Barbosa.

- História sincera da República - de 1889 a 1930.São Paulo, Edições LB, 1962, 2ª edição, p. 34.

., In: A Bruxa, a. 1, nQ 21, 26/6/1898.

.• A expressão é de Aristides Lobo, que fora minis-tro de Deodoro e, depois apoiaria Floriano. Dis-se ele que "O povo assistira bestializado à

Proclamação da República." No sentido de que opovo estivera totalmente alheio ao acontecimen-to. O cientista político e historiador, José Murilode Carvalho, recuperou-a em seu livro OsBestializados, 1989, onde analisa a reação dopovo diante daquele episódio e da Monarquiaque findara.

15 Urucubaca foi uma palavra inventada pelo cari-caturista Yantok para nomear o tremendo azar doPresidente Hermes da Fonseca. Hoje, definitiva-mente incorporada ao vocabulário nacional, temo mesmo sentido de "azar, falta de sorte, infortú-nio involuntário". Quem tem urucubaca, não sótem azar como também atrai azar para qualquerpessoa ou empreendimento a que se associar.

16 Segunda mulher de Hermes da Fonseca, Nair deTeffé era 30 anos mais nova que ele, bonita e boacaricaturista. O casamento aconteceu em 1912,em pleno governo do Marechal.

17 O corta-jaca foi um ritmo da música popularbrasileira, divulgado pela famosa maestrina ca-rioca do começo do século, Chiquinha Gonzaga.O corta-jaca foi tocado no Palácio do Catete,sede da presidência, para deleite do Marechalpresidente, da primeira dama e de seus convi-dados, o que motivou um escândalo na socie-dade brasileira do tempo que via a música deorigem popular como manifestação inferior dasartes.

18 Paláciodas Águiasera um dos nomes populares quese costumava dar ao Palácio do Catete. V.nota lI.

19 A Ação Integralista Brasileira foi um movimen-to de direita, surgido em 1932, que se inspirouno fascismo italiano, arregimentou milhares demilitantes por todo o Brasil e reunia, na sua li-derança, inúmeros intelectuais, escritores e po-etas brasileiros de tendências nacionalistas.

20 LIMA,Herman. História da Caricatura no Bra-sil. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1963, 4 volu-mes. p. 346.

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