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As três vertentes da proteção internacional dos direitos da pessoa humana. Direitos Humanos, Direito Humanitário, Direito dos Refugiados O presente livro apresenta em forma sistemática e atualizada, a essência do que se convencionou considerar como as três grandes vertentes da proteção internacional da pessoa humana o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados em suas interrelações. Prefácio por Antônio Augusto Cançado Trindade Parte I: Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitário e Direito Internacional dos Refugiados: Aproximações ou Convergências por Antônio Augusto Cançado Trindade I. Introdução: As Três Vertentes da Proteção Internacional da Pessoa Humana – Da Compartimentalização À Interação II. Aproximações ou Convergências entre o Direito Internacional Humanitário e o Direito Internacional dos Direitos Humanos 1. Aproximação ou Convergência no Plano Normativo 2. Aproximação ou Convergência no Plano Hermenêutico 3. Aproximação ou Convergência no Plano Operacional 4.“Respeitar” E “Fazer Respeitar”: O Amplo Alcance das Obrigações Convencionais de Proteção Internacional da Pessoa Humana a) O Direito Internacional Humanitário em sua Ampla Dimensão b) O Direito Internacional dos Direitos Humanos em sua Ampla Dimensão 5. A Proteção Erga Omnes de Determinados Direitos e a Questão do Drittwirkung 6. Proteção Das Vítimas em Conflitos Internos e Situações de Emergência 7. Aproximações ou Convergências entre os Direitos Humanos e o Direito Humanitário na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) III. Aproximações ou Convergências entre o Direito Internacional dos Refugiados e a Proteção Internacional dos Direitos Humanos 1. Contribuições do Comitê Executivo do Programa do Acnur 2. A Nova Estratégia do Acnur 3. A Dimensão Preventiva da Proteção Internacional dos Direitos da Pessoa Humana 4. Alguns Desenvolvimentos Recentes no Direito Internacional dos Refugiados a) Da Declaração de Cartagena (1984) à Declaração de San José (1994) b) A Avaliação da Aplicação dos Princípios e Critérios do Processo CIREFA 5. Aproximações ou Convergências entre os Direitos Humanos e o Direito dos Refugiados na II Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993)

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  • As trs vertentes da proteo internacional dos direitos da pessoa humana. Direitos Humanos, Direito Humanitrio, Direito

    dos Refugiados

    O presente livro apresenta em forma sistemtica e atualizada, a essncia do que se

    convencionou considerar como as trs grandes vertentes da proteo internacional da

    pessoa humana o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional

    humanitrio e o direito internacional dos refugiados em suas interrelaes.

    Prefcio por Antnio Augusto Canado Trindade

    Parte I: Direito Internacional dos Direitos Humanos, Direito Internacional Humanitrio e Direito Internacional dos Refugiados: Aproximaes ou Convergncias

    por Antnio Augusto Canado Trindade

    I. Introduo: As Trs Vertentes da Proteo Internacional da Pessoa Humana Da Compartimentalizao Interao

    II. Aproximaes ou Convergncias entre o Direito Internacional Humanitrio e o Direito Internacional dos Direitos Humanos

    1. Aproximao ou Convergncia no Plano Normativo 2. Aproximao ou Convergncia no Plano Hermenutico 3. Aproximao ou Convergncia no Plano Operacional 4.Respeitar E Fazer Respeitar: O Amplo Alcance das Obrigaes Convencionais de Proteo Internacional da Pessoa Humana

    a) O Direito Internacional Humanitrio em sua Ampla Dimenso b) O Direito Internacional dos Direitos Humanos em sua Ampla Dimenso

    5. A Proteo Erga Omnes de Determinados Direitos e a Questo do Drittwirkung 6. Proteo Das Vtimas em Conflitos Internos e Situaes de Emergncia 7. Aproximaes ou Convergncias entre os Direitos Humanos e o Direito Humanitrio na II Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993)

    III. Aproximaes ou Convergncias entre o Direito Internacional dos Refugiados e a Proteo Internacional dos Direitos Humanos

    1. Contribuies do Comit Executivo do Programa do Acnur 2. A Nova Estratgia do Acnur 3. A Dimenso Preventiva da Proteo Internacional dos Direitos da Pessoa Humana 4. Alguns Desenvolvimentos Recentes no Direito Internacional dos Refugiados

    a) Da Declarao de Cartagena (1984) Declarao de San Jos (1994) b) A Avaliao da Aplicao dos Princpios e Critrios do Processo CIREFA

    5. Aproximaes ou Convergncias entre os Direitos Humanos e o Direito dos Refugiados na II Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993)

  • 6. A Prtica dos rgos Internacionais de Superviso dos Direitos Humanos a) Plano Regional: Sistema Interamericano de Proteo b) Plano Regional: Sistema Europeu de Proteo c) Sistema Global (Naes Unidas) de Proteo

    IV. Concluses

    Parte II: Sistemas Internacionais de Proteo da Pessoa Humana: O Direito Internacional humanitrio

    por Grard Peytrignet

    I. Direito Internacional Humanitrio (Dih) Moderno: Fundamentos e Histrico, Princpios Essenciais e

    Mecanismos de Aplicao

    A. Introduo Geral

    1. Direito Da Guerra E Jus Ad Bellum 2. Proibio da Guerra na Carta das Naes Unidas 3. Direito de Genebra, Direito da Haia, Direito de Nova York

    B. Resenha Histrica do Desenvolvimento do DIH Moderno 1. Antecedentes Histricos ao Nascimento do DIH Moderno 2. A Batalha de Solferino 3. Nascimento e Organizao do Movimento Internacional da Cruz Vermelha 4. Da Primeira Conveno de 1864 s Quatro Convenes de 1949 5. ltimos Desenvolvimentos do DIH Moderno: Os Protocolos de 1977

    C. Consideraes sobre os Fundamentos do DIH e os Princpios Essenciais da sua Normativa

    1. Generalidades 2. Princpios Essenciais do DIH

    D. Caractersticas Principais de Aplicao dos Tratados do DIH E. Mecanismos de Aplicao do DIH: Implementao, Preveno, Controle e Sanes F. Concluses

    II. Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV): Estrutura, Mandato e Atividades

    A. Lugar do CICV dentro do Movimento Internacional da Cruz Vermelha 1. Comit Internacional da Cruz Vermelha 2. Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha 3. Federao Internacional das Sociedades Nacionais da Cruz Vermelha e do Crescente Vermelho

    B. Estruturas do CICV, em sua Sede e em suas Delegaes C. Mandato Geral do CICV e Algumas de suas Responsabilidades Principais

    1. Mandato e Personalidade Jurdica do CICV 2. Regime das Potncias Protetoras e sua Substituio Pelo CICV 3. Tarefas Atribudas Pelas Convenes de Genebra 4. Tarefas Atribudas Pelos Estatutos do Movimento 5. Tarefas Atribudas Pelas Resolues das Conferncias Internacionais da Cruz Vermelha

    D. Atividades do CICV em Funo da Tipologia dos Conflitos Armados 1. Conflitos Armados Internacionais 2. Conflitos Armados No-Internacionais 3. Situaes de Violncia Interna no Cobertas pelo DIH

    E. Atividades do CICV de Acordo com os Principais, Programas Humanitrios

  • III. Exemplos de Aplicao do DIH em Conflitos Armados Recentes e Atuao do CICV como Agente de Implementao da sua Normativa

    A. Conflito das Falklands/Malvinas (1982) B. Conflito do Golfo Prsico (1990-1991) C. Conflitos na ex-Iugoslvia (1991-1993) D. Conflito da Somlia (1992-1993)

    IV. Manual de Difuso das Normas Essenciais do DIH para as Foras Armadas

    A. Introduo B. Normas Fundamentais do DIH/Direito da Guerra (Instruo para Militares) C. Normas Especficas

    Anexo I: Proposta de Cdigo de Conduta Universal para um Mnimo de Humanidade nas Situaes de Distrbios e Tenses Internas

    Anexo II: Texto dos Artigos 1, 2, E 3, Comuns s Quatro Convenes de Genebra de 1949

    Anexo III: Declarao Final da Conferncia Internacional para a Proteo das Vtimas da Guerra (Genebra, 01 Set. 1993)

    Anexo IV: Bibliografia e Leituras Recomendadas

    Parte III: O Direito Internacional dos Refugiados em sua Relao com os Direitos Humanos e em sua Evoluo Histrica

    por Jaime Ruiz De Santiago

    I. Preocupao em Proporcionar Proteo Jurdica Pessoa Humana no Direito Internacional Contemporneo

    II. A Proteo Jurdica Internacional da Pessoa Humana em Nvel Universal

    III. A Proteo Jurdica Internacional da Pessoa Humana em Nvel Regional

    IV. Evoluo da Proteo Internacional dos Refugiados em Nvel Universal

    1. Do Passaporte Nansen Conveno de Genebra 2. A Conveno de Genebra de 1951 e o Protocolo de 1967

    V. Evoluo da Proteo Internacional dos Refugiados em Nvel Regional

    Co-Edio INSTITUTO INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS

    COMIT INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA ALTO COMISSARIADO DAS NAES UNIDAS PARA OS REFUGIADOS

  • PREFCIO

    - I -

    A publicao do presente livro vem atender um antigo propsito nosso de preencher uma lacuna na bibliografia ptria especializada, ao apresentar, em forma sistemtica e atualizada, a essncia do que se convencionou considerar como as trs grandes vertentes da proteo internacional da pessoa humana o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos refugiados em suas interrelaes. H muito os trs co-autores deste livro vnhamos contemplando o desenvolvimento e realizao deste projeto. No poderia haver momento mais oportuno do que o presente para sua realizao, mediante o lanamento deste livro, por duas razes bsicas.

    Em primeiro lugar, o esforo de reavaliao universal da matria, empreendido pela II Conferncia Mundial de Direitos Humanos em Viena em 1993, nos proporciona hoje uma oportunidade nica de apresentar um quadro abrangente do atual estado de evoluo e das perspectivas dos sistemas de proteo internacional da pessoa humana, tomando em considerao os resultados da Conferncia de Viena, aos quais se vm somando os resultados pertinentes das mais recentes Conferncias Mundiais sobre Populao e Desenvolvimento (1994), Desenvolvimento Social (1995), Mulher (1995) (infra). Ao nos dedicarmos a esta gratificante tarefa, fazmo-lo a partir de uma viso necessariamente integral dos direitos da pessoa humana.

    E, em segundo lugar, ao chegarmos ao fim de uma etapa, de um perodo de intensa e profcua colaborao interinstitucional no sentido da ampla difuso da matria no Brasil com vistas maior conscientizao do pblico brasileiro para a importncia dos sistemas de proteo internacional para todos, para o quotidiano da vida de cada um, os trs co-autores consideramos de todo oportuno deixar consignada esta sntese de um aspecto central de nossas respectivas reas complementares de atuao. Depois de anos de frutuoso trabalho conjunto no Brasil, encontramo-nos hoje em pases de trs continentes distintos (Costa Rica, Sri Lanka e Itlia, respectivamente); assim sendo, Grard Peytrignete e Jaime Ruiz de Santiago deram-me a honra de confiar-me a coordenao e o prefcio como apresentao desse nosso trabalho conjunto.

    - II -

    Por todos os que h muito atuamos no campo da proteo internacional da pessoa humana, 1993 ser lembrado como o ano da segunda avaliao global da experincia acumulada nas ltimas dcadas, e dos novos rumos a trilhar, na consolidao e fortalecimento dos sistemas de proteo internacional, realizada em Viena em junho daquele ano por ocasio da II Conferncia Mundial de Direitos Humanos das Naes Unidas. O evento, como se sabe, congregou um nmero considervel e sem precedentes de organizaes no-governamentais e movimentos de base de todos os continentes (mais de 800), somados a um contingente cada vez maior de delegaes governamentais (de um total de 171 Estados representados) sensibilizadas pela causa da proteo dos direitos humanos, totalizando cerca de sete mil participantes registrados.

    Ao nos adentrarmos na fase de implementao dos instrumentos internacionais, em nada surpreende que a nfase da Conferncia Mundial tenha recado, em uma dimenso horizontal, nos meios de se lograr maior coordenao, sistematizao e eficcia dos mltiplos mecanismos de proteo existentes, e, em uma dimenso vertical, na incorporao e nas medidas nacionais de implementao daqueles instrumentos, e no fortalecimento das instituies nacionais diretamente vinculadas vigncia plena dos direitos humanos e ao Estado de Direito. Com efeito, a ratificao universal pelos Estados dos tratados de direitos humanos, que nas Naes Unidas se espera seja concluda at o final do sculo, vem contribuindo para intensificar a aproximao, se no evidenciar a interao, entre os ordenamentos jurdicos interno e internacional no contexto da proteo dos direitos humanos. E o que se pode hoje testemunhar,

  • em meio ao reconhecimento generalizado da identidade dos objetivos do direito pblico interno e do direito internacional no tocante proteo do ser humano.

    A reassero, pela Conferncia de Viena, da universalidade dos direitos humanos, enriquecida pela diversidade cultural, e os esforos envidados no propsito de assegurar na prtica a indivisibilidade de todos os direitos humanos (civis, polticos, econmicos, sociais e culturais), com ateno especial aos mais necessitados de proteo (os socialmente excludos e os segmentos mais carentes e vulnerveis da populao), indicam que, depois de muitos anos de luta, os princpios do direito internacional dos direitos humanos parecem enfim ter alcanado as bases das sociedades nacionais.

    Da mesma forma, a preocupao externada em Viena em assegurar a incorporao da dimenso dos direitos humanos em todas as atividades e programas dos organismos que compem o sistema das Naes Unidas, somada nfase no fortalecimento da interrelao entre os direitos humanos, a democracia e o desenvolvimento (situando como sujeito central deste ltimo o ser humano), apontam para o alentador reconhecimento de que os direitos humanos se impem e obrigam os Estados, e, em igual medida, os organismos internacionais e outras entidades ou grupos (e.g., os detentores do poder econmico, particularmente aqueles cujas decises repercutem no quotidiano da vida de milhes de seres humanos). Os direitos humanos, em suma, em razo de sua universalidade nos planos tanto normativo como operacional, acarretam obrigaes erga omnes.

    O dilogo universal propiciado pela Conferncia de Viena e seu processo preparatrio fez com que, como no poderia deixar de ser, se buscasse desenvolver, como nunca antes, as aproximaes ou convergncias entre o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos refugiados. Os resultados destes esforos se encontram refletidos em passagens relevantes do principal documento adotado pela Conferncia, a Declarao e Programa de Ao de Viena. Mantendo em mente este processo de entendimento universal em torno dos direitos da pessoa humana, de se esperar que nos anos que nos conduzem ao final do sculo venha a se consolidar um amplo sistema de monitoramento, contnuo (abarcando medidas tanto preventivas como de seguimento) da observncia dos direitos humanos nos planos a um tempo nacional e internacional. O reconhecimento da legitimidade da preocupao de toda a comunidade internacional com a promoo e proteo dos direitos humanos por todos e em toda parte constitui um dos principais legados da Conferncia de Viena, que haver certamente de acelerar o processo de construo de uma cultura universal de observncia dos direitos humanos.

    - III -

    Se h um tema que forma um denominador comum do atual ciclo de Conferncias Mundiais patrocinadas pelas Naes Unidas, ele o da legitimidade da preocupao de toda a comunidade internacional com as condies de vida de todos os seres humanos. Assim, um ano antes da Conferncia de Viena, a Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de janeiro, 1992) empenhou-se em situar os seres humanos no centro das preocupaes em lograr o desenvolvimento sustentvel.

    Em seguida Conferncia de Viena, na Conferncia Internacional sobre Populao e Desenvolvimento (Cairo, 1994), as questes populacionais foram pela primeira vez abordadas do prisma dos direitos humanos e do desenvolvimento sustentvel. A Cpula Mundial para o Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995) abordou os temas centrais da erradicao da pobreza (e expanso do emprego produtivo), assim como do fortalecimento da integrao social (em particular dos grupos mais desfavorecidos). A IV Conferncia Mundial sobre a Mulher (Beijing, 1995) adotou uma abrangente Plataforma de Ao para a promoo, proteo e fortalecimento dos direitos humanos da mulher. E em junho de 1996 ter lugar em Istambul a Conferncia Habitat II, que se concentrar nos temas relativos melhoria dos assentamentos humanos e moradia adequada para todos.

  • O dilogo universal propiciado pelo atual ciclo das Conferncias Mundiais gradualmente d forma e contedo agenda internacional do sculo XXI, na qual ocupam posio central os direitos da pessoa humana. Ingressamos, enfim, na era dos direitos humanos, cuja presena hoje reconhecida em todos os domnios da atividade humana, e no quotidiano de cada um, porquanto, mais do que um grande movimento ou doutrina, constituem os direitos humanos em ltima anlise uma forma de vida. De grande importncia resulta, de incio, o conhecimento dos mesmos, a capacitao para o seu pleno exerccio, para que cada ser humano seja capaz de decidir sobre seu prprio destino livre de qualquer forma de dominao. Paralelamente a toda esta evoluo recente no plano global, tm-se voltado os esforos no plano regional ao aperfeioamento dos sistemas existentes de proteo, no mbito da universalidade dos direitos humanos [1]

    H, naturalmente, um longo caminho a percorrer, porquanto as violaes dos direitos humanos continuam a ocorrer em todo o mundo; no obstante, a pronta resposta a tais violaes hoje muito mais decidida e contundente do que no passado.

    O objetivo ltimo da atual considerao, pelas Conferncias Mundiais, dos temas universais de nossa poca, no pode ser outro que o da proteo da vida humana e da melhoria das condies de vida de todos os seres humanos, sem discriminao de qualquer tipo, e em uma perspectiva temporal, abarcando as geraes presentes e futuras. Nunca demais recordar que o exame das trs vertentes da proteo internacional da pessoa humana se d luz de uma viso necessariamente integral dos direitos da pessoa humana. O j mencionado reconhecimento da legitimidade da preocupao de toda a comunidade internacional com a promoo e proteo dos direitos humanos por todos e em toda parte corresponde a um novo ethos, de expresso universal, acarretando obrigaes erga omnes.

    - IV -

    Imbudos deste esprito, pretendemos apresentar neste livro o quadro geral de evoluo, estado atual e perspectivas dos sistemas de proteo internacional da pessoa humana, do que se convencionou considerar, em seu desenvolvimento histrico, como suas trs grandes vertentes, a saber, o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos refugiados, - e de suas interrelaes. Cada um dos trs co-autores se encarregou, respectivamente, de uma das partes do livro. Coube-me escrever a Parte I, relativa ao que denomino de aproximaes ou convergncias entre o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos refugiados. Grard Peytrignet se encarregou da Parte II, atinente ao direito internacional humanitrio como sistema internacional de proteo da pessoa humana. E Jaime Ruiz de Santiago preparou a Parte III, referente ao direito internacional dos refugiados em sua relao com os direitos humanos e em sua evoluo histrica. Desenvolvemos nosso trabalho coma necessria nfase nas interrelaes entre as trs vertentes da proteo internacional da pessoa humana. Deste fenmeno as aproximaes ou convergncias deu testemunho a prpria Conferncia Mundial de Viena de 1993, mesmo por terem as trs referidas vertentes como denominador comum e propsito ltimo a proteo do ser humano. O peso desta identidade de propsito parece-nos determinante e fundamental a um abordamento lcido e atualizado da matria.

    Em matria de proteo dos direitos da pessoa humana impe-se conjugar a doutrina prxis. O conhecimento terico da matria no basta, ele se complementa pela ao esclarecida; assim como a doutrina guia e ilumina a ao, a realidade dos direitos humanos em constante mutao, a seu turno, impulsiona as transformaes e a evoluo da doutrina. esta uma lio que os trs co-autores extraem de sua prpria experincia, ao longo de muitos anos de dedicao ao tema dos direitos da pessoa humana, e particularmente ao final de um perodo de cerca de quatro anos de intenso trabalho conjunto, por uma feliz circunstncia no mesmo pas e na mesma cidade, Braslia, ento como representantes no Brasil de trs entidades internacionais de direitos humanos, quais sejam, o Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), o Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV), e o Alto-Comissariado das Naes Unidas para os Refugiados (ACNUR).

  • - V -

    De nosso trabalho conjunto, no perodo 1990-1994, resultaram inmeros seminrios e eventos acadmicos com a organizao e/ou a participao coordenada do ACNUR, do CICV e do IIDH no Brasil. Assim, nosso grande Seminrio sobre A Proteo dos Direitos Humanos nos Planos Nacional e Internacional: Perspectivas Brasileiras, realizado no Hotel Nacional em Braslia, em julho de 1991, com o apoio da Fundao Friedrich Naumann, contribuiu para mobilizar a opinio pblica nacional para impulsionar o processo de adeso do Brasil Conveno Americana sobre Direitos Humanos e aos dois Pactos de Direitos Humanos das Naes Unidas, o que se concretizou pouco tempo depois. O evento contou com participantes de todo o pas, assim com do exterior, e seus anais encontram-se hoje publicados em forma de livro. Nesse mesmo esprito, realizamos outro grande Seminrio, sobre Os Direitos Humanos Aps Viena: A Incorporao das Normas Internacionais de Proteo no Direito Brasileiro, no Espao Cultural da Cmara dos Deputados, em Braslia, em novembro de 1993: este evento, que igualmente contou com a participao de representantes de todos os setores da sociedade brasileira, e tambm do governo e da oposio, contribuiu para ressaltar a premente necessidade de incorporao no direito interno brasileiro das normas de proteo dos tratados de direitos humanos em que o Brasil Parte. Foi o primeiro grande Seminrio nacional aps a Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993), cujos volumosos anais vm de ser dados a pblico em forma de livro [2]

    Outro evento marcante foi o Seminrio Internacional que realizamos sobre Direitos Humanos, Desenvolvimento Sustentvel e Meio Ambiente, no Hotel Carlton em Braslia, em maro de 1992 (pouco antes da realizao no Rio de janeiro da Conferncia das Naes Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento), com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).O evento contou com a participao de alguns dos principais expoentes sobre a matria dos continentes americano e europeu, e seus anais, publicados em forma de livro (trilinge), so hoje citados como fonte de consulta em trabalhos subsequentes publicados em vrios pases do mundo; a primeira edio esgotou-se em pouco mais de quatro meses, estando hoje em circulao a segunda edio atualizada e ampliada. [3]. Outro Seminrio de que guardamos grata lembrana foi o que realizamos no Ministrio da Justia, em Braslia, em novembro de 1992, sobre A Proteo da Pessoa Humana no Direito Internacional Contemporneo; o evento, que teve lugar um ms aps o massacre de 111 prisioneiros na Casa de Deteno Carandiru em So Paulo, abordou a questo da violncia policial e os direitos dos detidos no Brasil luz das obrigaes internacionais contradas pelo pas, e contou com a participao de Secretrios de Segurana Pblica, Delegados da Polcia Civil e Federal, altos Oficiais da Polcia Militar, e membros do Ministrio Pblico e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), de todo o pas. Foi o primeiro grande Seminrio nacional aps a adeso do Brasil aos tratados gerais de proteo dos direitos humanos (a Conveno Americana sobre Direitos Humanos e os dois Pactos de Direitos Humanos das Naes Unidas) [4]. Ao final deste Seminrio surgiu a idia do presente livro, que os trs co-autores vm agora de concretizar.

    Algumas de nossas iniciativas e/ou participaes se tornaram possveis graas ao apoio de Procuradorias Gerais dos Estados (PGE) da Federao e de Universidades brasileiras. Recordamos, assim, os dois grandes Seminrios realizados em Fortaleza, em novembro de 1993 e em maio-junho de 1994, com a PGE do Cear, que contaram com a participao de Oficiais da Polcia Militar de vrios Estados da Federao, assim como o Seminrio que teve lugar em So Paulo (da PGE/SP e USP), em dezembro de 1992. Tivemos, ademais, a satisfao de participar do Ciclo de Conferncias sobre a Proteo da Pessoa Humana, organizado pela Polcia Militar do Estado do Rio de Janeiro, naquela cidade, em outubro de 1991, que marcou o incio dos cursos de capacitao em direitos humanos para os Oficiais da Polcia Militar do Rio de Janeiro.

    Nos crculos acadmicos brasileiros, recordamos as Mesas Redondas que organizamos na Universidade de Braslia (UnB), no Departamento de Cincia Poltica e Relaes Internacionais (REL), sobre Problemas Humanitrios Contemporneos, em abril de 1993 e em abril de 1994, como atividades do Programa de Promoo dos Instrumentos Internacionais de Direitos Humanos do REL/UnB. Na mesma linha, recordamos os Seminrios de Joo Pessoa, Paraba, de

  • maro de 1990, e de So Paulo, na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo (USP), em maio de 1991 (com o apoio da Fundao Friedrich Naumann) e em novembro de 1992. Recordamos, outrossim, os dois grandes Seminrios sobre Educao em Direitos Humanos realizados em Belo Horizonte, em setembro de 1990 e em agosto de 1992, ambos na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

    Cabe ainda registrar que, mesmo antes do estabelecimento em Braslia das sedes da Delegao do CICV (em 1991) e da Misso do ACNUR (em 1989), e pouco aps a designao (em 1988) do Representante do IIDH no Brasil (um dos trs co-autores), portanto antes do perodo de 1990-1994 aqui contemplado, [5] j havamos marcado presena em outros eventos, dentre os quais destacaramos dois: primeiro, o Seminrio de Capacitao em Direitos Humanos de Funcionrios Diplomticos dos Ministrios das Relaes Exteriores dos Pases Latino-Americanos, que realizamos (por iniciativa do IIDH), com o apoio do Itamaraty em seu Auditrio em Braslia, em dezembro de 1989, com a participao de diplomatas de toda a Amrica Latina; e segundo, o Simpsio sobre Direito Internacional Humanitrio, realizado no Instituto de Pesquisa de Relaes Internacionais (IPRI/MRE) em Braslia, em outubro de 1988, cujos anais foram posteriormente publicados em forma de livro pelo IPRI.

    Ademais dessa intensa atividade no Brasil, tambm participamos de atividades de capacitao em direitos humanos, direito humanitrio e direito dos refugiados para pblicos distintos, na forma de seminrios e encontros acadmicos conjuntos (para estudantes universitrios, funcionrios pblicos em geral, juizes, membros de Ministrios Pblicos, membros de foras armadas e de segurana, dentre outros), realizadas em outros pases, a saber, Argentina, Bolvia, Chile, Costa Rica, Honduras, Mxico, Paraguai e Uruguai (lista no exaustiva [6].

    Este ciclo de intenso labor representa hoje parte significativa da histria da promoo e difuso dos instrumentos internacionais de proteo da pessoa humana no Brasil. Ao partirem os trs co-autores para o exerccio de outras funes alhures, em prol da causa comum da construo de uma cultura dos direitos da pessoa humana em distintas partes do mundo, e da promoo e proteo desses direitos, seguiram seguros de que cumpriram seu papel, e confiantes em que o Brasil estar cada vez mais inserido no universo dos direitos da pessoa humana, ao qual saber dar sua contribuio.

    Deixam o presente livro como uma sntese de um aspecto central da mensagem de quatro anos de intenso e profcuo labor conjunto, na esperana e certeza de que no futuro outros sabero retorn-lo e lev-lo adiante.

    Notas

    1. Cada sistema regional funciona em seu prprio ritmo e vive seu prprio momento histrico. Assim, no tocante ao sistema interamericano de proteo, busca-se hoje uma coordenao maior entre a Comisso e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. No contexto do sistema europeu, o Protocolo n 11 (de maio de 1994) Conveno Europia de Direitos Humanos dispe sobre a fuso da Comisso e Corte Europias de Direitos Humanos, conducente ao estabelecimento de um nico rgo judicial de controle, uma nova Corte Europia de Direitos Humanos, que no futuro operaria como uma verdadeira Corte Constitucional Europia. No mbito do sistema africano, considera-se hoje a possibilidade da futura criao de uma Corte Africana de Direitos Humanos, para complementar o trabalho da Comisso Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Enfim, aos sistemas regionais existentes vem hoje somar-se a Carta rabe de Direitos Humanos de 1994.

    2. A. A. Canado Trindade (Ed.), A Incorporao das Normas Internacionais de Proteo dos Direitos Humanos no Direito Brasileiro, San Jos da Costa Rica/Braslia, IIDH/ CICV/ ACNUR/ / Comisso da Unio Europia, 1996, pp. 3-845. O livro traz, em seu Anexo V, os resultados do ltimo grande Seminrio do IIDH no Brasil, realizado em Braslia em outubro de 1995,

  • novamente com o apio, inter alii, das representaes do CICV e do ACNUR no Brasil, j sob as novas chefias de Jean-Franois Olivier e de Cristian Koch-Castro, respectivamente. 3. A. A. Canado Trindade (Ed.), Derechos Humanos, Desarrollo Sustentabley Medio Ambiente / Human Rights, Sustainable Development and Environment / Direitos Humanos, Desenvolvimento Sustentvel e Meio Ambiente, 2 ed., San Jos da Costa Rica / Braslia, IIDH / BID, 1995, pp. 1-414. 4. E adeso do Brasil, em 1992, aos dois Protocolos Adicionais s Convenes de Genebra sobre Direito Internacional Humanitrio, e ao levantamento pelo Brasil, em 1989, da reserva geogrfica sob o artigo 1(B)(1) da Conveno de Genebra Relativa ao Estatuto dos Refugiados. 5. Neste perodo inicial, h que deixar registro do trabalho conjunto realizado pelo autor destas linhas com outro aliado histrico, Christophe Swinarski, ex-Consultor Jurdico do CICV em Genebra, e hoje Chefe da Delegao Regional do CICV para o Extremo Oriente (em Hong Kong). 6. Posteriormente, ao assumir a Direo do Instituto Interamericano de Direitos Humanos (IIDH), o autor destas linhas firmou convnios com o ACNUR e o CICV, que levaram realizao de dois grandes Colquios Internacionais (copatrocinados pelo ACNUR/IIDH, e pelo CICV/I1DH, respectivamente, com o apoio dos Governos dos pases anfitries), o primeiro em San Jos da Costa Rica, em dezembro de 1994, que reavaliou e atualizou todo o direito internacional dos refugiados e deslocados no continente americano na ltima dcada, e o segundo em Santa Cruz de La Sierra, Bolvia, em junho de 1995, que fez o mesmo no tocante ao direito internacional humanitrio, um e outro dedicando ateno especial s medidas nacionais de implementao. Os tomos de atas de ambos os Colquios, fontes primrias de pesquisa sobre a matria, j foram dados a pblico em forma de livros pelas trs entidades copatrocinadoras (IIDH, ACNUR, CICV).

  • Parte I

    I. Introduo: As Trs Vertentes da Proteo Internacional da Pessoa Humana

    Da Compartimentalizao Interao.

    Uma reviso crtica da doutrina clssica revela que esta padeceu de uma viso compartimentalizada das trs grandes vertentes da proteo internacional da pessoa humana direitos humanos, direito humanitrio, direito dos refugiados, em grande parte devido a uma nfase exagerada nas origens histricas distintas dos trs ramos (no caso do direito internacional humanitrio, para proteger as vtimas dos conflitos armados, e no caso do direito internacional dos refugiados, para restabelecer os direitos humanos mnimos dos indivduos ao sair de seus pases de origem). As convergncias dessas trs vertentes que hoje se manifestam, a nosso modo de ver, de forma inequvoca, certamente no equivalem a uma uniformidade total nos planos tanto substantivo como processual; de outro modo, j no caberia falar de vertentes ou ramos da proteo internacional da pessoa humana. Uma corrente doutrinria mais recente admite a interao normativa acompanhada de uma diferena nos meios de implementao, superviso ou controle em determinadas circunstncias, mas sem com isto deixar de assinalar a complementaridade das trs vertentes. H. Gros Espiell, Derechos Humanos, Derecho Internacional Humanitario y Derecho Internacional de los Refugiados, tudes et essais sur le droit international humanitaire et sur les principes de Ia Croix-Rouge en lhonneur de Jean Pictet (ed. Christophe Swinarski), Genve/La Haye, CICR/ Nijhoff, 1984, pp. 706 e 711; Csar Seplveda, Derechio Internacional y Derechos Humanos, Mxico, Comisin Nacional de Derechos Humanos, 1991, pp. 98-99; Christophe Swinarski, Principales Nociones e Institutos del Derecho Internacional Hunianitaro como Sistema Internacional de Proteccin de la Persona Humana, San Jos de Costa Rica, IIDH, 1990, pp. 83-88. Talvez a mais notria distino resida no mbito pessoal de aplicao a legitimatio ad causam, porquanto o direito internacional dos direitos humanos tem reconhecido o direito de petio individual (titularidade dos indivduos), o qual no encontra paralelo no direito internacional humanitrio nem no direito internacional dos refugiados. Mas isto no exclui a possibilidade, j concretizada na prtica, da aplicao simultnea das trs vertentes de proteo, ou de duas delas, precisamente porque so essencialmente complementares. E, ainda mais, se deixam guiar por uma identidade de propsito bsico: a proteo da pessoa humana em todas e quaisquer circunstncias. A prtica internacional encontra-se repleta de casos de operao simultnea ou concomitante de rgos que pertencem aos trs sistemas de proteo. A. A. Canado Trindade, Co-existence and Co-ordination op. cit.infra n (25), pp. 1-435; C. Seplveda, op. cit. supra n (1), pp. 105-107 e 101-102.

    No plano substantivo ou normativo, a interao manifesta. Podem-se recordar vrios exemplos. O famoso artigo 3 comum s quatro Convenes de Genebra sobre Direito Internacional Humanitrio, e.g., consagra direitos humanos bsicos (incisos (a) a (d)), aplicveis em tempos tanto de conflitos armados como de paz. Do mesmo modo, determinadas garantias fundamentais da pessoa humana se encontram consagradas nos dois Protocolos Adicionais de 1977 s Convenes de Genebra (Protocolo I, artigo 75, e Protocolo II, artigos 4-6). Esta notvel convergncia no mera casualidade, pois os instrumentos internacionais de direitos humanos exerceram influncia no processo de elaborao dos dois Protocolos Adicionais de 1977. Cf. Y. Sandoz, Ch. Swinarski e B. Zimmermann (eds), Coninientary on the Additional Protocols of 1977 to the Geneva Conventions of 1949, Geneva/The Hague, ICRC/Nijhoff, 1987, pp. 4360-4418.

    C. Swinarski, Principales Nociones e Institutos..., op. cit. supra n (1), pp. 86-87; C. Seplveda, op. cit. supra n (1), pp. 105-106. A isto devem-se agregar as normas relativas aos direitos inderrogveis (e.g., Pacto de Direitos Civis e Polticos, artigo 4(2); Conveno Americana sobre Direitos Humanos, artigo 27, Conveno Europia de Direitos Humanos, artigo 15(2); quatro Convenes de Genebra de 1949 sobre Direito Internacional Humanitrio, artigo comum 3),

  • aplicveis concomitantemente e com contedo anlogo s normas humanitrias, e em situaes bem similares. C. Swinarski, Principales Naciones Unidas/Centro de Derechos Humanos, Los Derechos Humanos y los Refugados, Ginebra, ONU, 1994, pp. 3,11-14 e 20-21. Na mesma linha de pensamento, hoje amplamente reconhecida a interrelao entre o problema dos refugiados, a partir de suas causas principais (as violaes de direitos humanos), e, em etapas sucessivas, os direitos humanos: assim, devem estes ltimos ser respeitados antes do processo de solicitao de asilo ou refgio, durante o mesmo e depois dele (na fase final das solues durveis). Os direitos humanos devem aqui ser tomados em sua totalidade (inclusive os direitos econmicos, sociais e culturais). No h como negar que a pobreza se encontra na base de muitas das correntes de refugiados. Dada a interrelao acima assinalada, em nada surpreende que muitos dos direitos humanos universalmente consagrados se apliquem diretamente aos refugiados (e.g., Declarao Universal dos Direitos Humanos, artigos 9 e 13-15; Pacto de Direitos Civis e Polticos, artigo 12) Ibid., p. 14.. Do mesmo modo, preceitos do direito dos refugiados aplicam-se tambm no domnio dos direitos humanos, como o caso do princpio da no-devoluo (non-refoulement) Ibid., p. 14. (Conveno sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, artigo 33; Conveno das Naes Unidas contra a Tortura, artigo 3; Conveno Americana sobre Direitos Humanos, artigo 22(8) e (9).

    E inquestionvel que h aqui um propsito comum, o da salvaguarda do ser humano. A Conveno sobre Direitos da Criana de 1989, e.g., d testemunho pertinente desta identidade de propsito, ao dispor, inter alia, sobre a prestao de proteo e assistncia humanitria adequada s crianas refugiadas (artigo 22). Ibid., pp. 20 e 12. Na verdade, a prpria evoluo histrica no h como neg-lo das distintas vertentes da proteo internacional da pessoa humana revela, ao longo dos anos, diversos pontos de contato entre elas. Cf. Jaime Ruiz de Santiago, El Derecho Internacional de los; Refugiados en Su Relacin con los Derechos Humanos y en Su Evolucin Histrica, in Derecho Internacional de los Refugiados (ed. J. Irigoin), Santiago de Chile, Instituto de Estudios Internacionales/Universidad de Chile, 1993, pp. 31-87. As convergncias no se limitam ao plano substantivo ou normativo, mas tambm se estendem ao plano operacional. A atuao do ACNUR na atualidade se insere em um contexto nitidamente de direitos humanos. E o CICV, a seu turno, ao longo das duas ltimas dcadas, tem estendido sua atuao protetora bem alm do disposto nas Convenes de Genebra de 1949: baseado em princpios humanitrios, o CICV tem prestado assistncia a detidos ou prisioneiros polticos, inclusive quando no esto encarcerados como conseqncia de um conflito armado, mas em decorrncia de uma represso poltica, transcendendo desse modo as disposies tradicionais do mbito material e pessoal do direito internacional humanitrio convencional. H. Cros Espiell, op. cit. supra n (1), p. 707.

    As convergncias anteriormente assinaladas tambm se verificam entre o direito internacional dos refugiados e o direito internacional humanitrio. Com efeito, ao longo de toda a sua histria, o CICV, ao dedicar-se proteo e assistncia das vtimas de conflitos armados, tambm se ocupou de refugiados e pessoas deslocadas. A partir da criao do ACNUR, passou o CICV a exercer um papel complementar ao daquele; o CICV tem prestado apoio ao ACNUR desde seus primeiros anos, e tal cooperao tem-se intensificado com o passar do tempo em relao a novas e sucessivas crises em diferentes partes do mundo. Na verdade, diversas clusulas das Convenes de Genebra e seus Protocolos Adicionais lidam especificamente com refugiados (e.g., Conveno IV, artigos 44 e 70(2), e Protocolo I, artigo 73), ou a eles se relacionam indiretamente (Conveno IV, artigos 25-26, 45 e 49, e Protocolo I, artigo 33, e Protocolo II, artigo 17). F. Bory, The Red Cross and Refugees, Aspects of the Red Cross and Red Crescent, Geneva, ICRC, [1988], pp. 1, 4-6 e 10. Ademais, diversas resolues adotadas por sucessivas Conferncias Internacionais da Cruz Vermelha tm disposto sobre a assistncia a refugiados e deslocados. A comear por uma resoluo adotada pela X Conferncia Internacional da Cruz Vermelha (Genebra, 1921), seguida pela resoluo XXXI da XVII Conferncia (Estocolmo, 1948); resoluo da XVIII Conferncia (Toronto, 1952); resoluo XXI da XXIV Conferncia (Manila, 1981), contendo diretrizes intituladas Assistncia Internacional da Cruz Vermelha aos Refugiados; resolues XVII, XIII, XV e XVI da XXV Conferncia (Genebra, 1986); in ibid., pp. 12-13 e 19-20.

  • Nem o direito internacional humanitrio, nem o direito internacional dos refugiados, excluem a aplicao concomitante das normas bsicas do direito internacional dos direitos humanos. As aproximaes e convergncias entre estas trs vertentes ampliam e fortalecem as vias de proteo da pessoa humana. Na II Conferncia Mundial de Direitos Humanos (Viena, junho de 1993), tanto o ACNUR como o CICV buscaram, e lograram, que a Conferncia considerasse os vnculos entre as trs vertentes de proteo, de modo a promover uma conscincia maior da matria em benefcio dos que necessitam de proteo. O reconhecimento, pela Conferncia Mundial, da legitimidade da preocupao de toda a comunidade internacional com a observncia dos direitos humanos em toda parte e a todo momento constitui um passo decisivo rumo consagrao de obrigaes erga omnes em matria de direitos humanos.

    Estes ltimos obrigam e se impem aos Estados, e, em igual medida, aos organismos internacionais, aos grupos particulares e s entidades detentoras do poder econmico, particularmente aquelas cujas decises repercutem no quotidiano da vida de milhes de seres humanos. A emergncia das obrigaes erga omnes em relao aos direitos humanos, ademais, desmistifica um dos cnones da doutrina clssica, segundo o qual o direito internacional dos direitos humanos obrigava s aos Estados, ao passo que o direito internacional humanitrio estendia suas obrigaes em determinadas circunstncias tambm aos particulares (e.g., grupos armados, guerrilheiros, entre outros). Isto j no certo; felizmente j superamos a viso compartimentalizada do passado, e hoje constatamos as aproximaes ou convergncias entre as trs grandes vertentes da proteo internacional da pessoa humana. Ternos passado da compartimentalizao interao, em benefcio dos seres humanos protegidos. Com estas consideraes gerais em mente, passemos ao exame dos desenvolvimentos recentes concernentes em particular s interrelaes entre o direito internacional dos direitos humanos e o direito internacional dos refugiados.

    II. Aproximaes ou Convergncias entre o Direito Internacional Humanitrio e o Direito Internacional dos Direitos Humanos.

    1. Aproximao ou Convergncia no Plano Normativo. Em perspectiva histrica, o direito internacional humanitrio (mais particularmente, o chamado direito da Haia ou o direito dos conflitos armados) cobre questes tratadas h bastante tempo no plano do direito internacional, ao passo que o direito internacional dos direitos humanos compreende os direitos que vieram a ser consagrados no plano internacional mas que haviam sido anteriormente reconhecidos (muitos deles, particularmente os direitos civis e polticos) no plano do direito interno. Embora o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos direitos humanos tenham diferentes origens e distintas fontes histricas e doutrinrias, consideraes bsicas de humanidade so subjacentes a um e outro; embora historicamente tenha o primeiro se voltado originalmente aos conflitos armados entre Estados e o tratamento devido a pessoas inimigas em tempo de conflito, e o segundo s relaes entre o Estado e as pessoas sob sua jurisdio em tempo de paz, mais recentemente o primeiro tem-se voltado tambm a situaes de violncia em conflitos internos, e o segundo a proteo de certos direitos bsicos tambm em diversas situaes de conflitos e violncia. D. Schindler, El Comit Internacional de a Cruz Roja y los Derechos Humanos, Revista Internacional de Ia Cruz Roja (ene.-feb. 1979) pp. 5-7 e 15 (separata); Th. Meron, op. cit. infra n (13), pp. 10-11, 14,26-27 e 142; cf. tambm M. El Kouhene, op. cit. infra n (23), p. 1. Se, por um lado, o direito internacional humanitrio parece ter sido sistematizado e aceito mais amplamente (em termos de nmeros de ratificaes de seus instrumentos) do que o direito internacional dos direitos humanos, por outro lado h que se levarem conta que este ltimo mais recentemente em processo de ampla expanso tem se aplicado normalmente a relaes do cotidiano ao passo que o primeiro tem regido usualmente situaes de conflito excepcionais. Th. Meron, Human Rights in Internal Strife: Their InternationaI Protection, Cambridge, Grotius Publ., 1987, pp. 4-5.

    A influncia do movimento contemporneo em prol da proteo internacional dos direitos humanos, desencadeado pela Declarao Universal de 1948, veio a fazer-se sentir nas prprias Convenes de Genebra sobre Direito Internacional Humanitrio de 1949 que estabeleceram, a par das obrigaes estatais, direitos individuais de que gozam as pessoas protegidas, D. Schindler, op. cit. supra n (12), pp. 8-9. e, de modo marcante, nos dois Protocolos Adicionais

  • (de 1977) s Convenes de Genebra, ao consagrarem determinadas garantias fundamentais (cf. infra), adentrando-se tambm no mbito tradicional dos direitos humanos das relaes entre o Estado e as pessoas sujeitas a sua jurisdio. Em contrapartida, tratados de direitos humanos vieram a ocupar-se da proteo daqueles direitos tambm em tempos de crise e de situaes excepcionais (e.g., Pacto de Direitos Civis e Polticos, artigo 4; Conveno Europia de Direitos Humanos, artigo 15; Conveno Americana sobre Direitos Humanos, artigo 27).

    Cristalizaram-se princpios comuns ao direito internacional humanitrio (mais precisamente, ao chamado direito de Genebra) e ao direito internacional dos direitos humanos; na anlise de Pictet, tais princpios so: o princpio da inviolabilidade da pessoa (englobando o respeito vida, integridade fsica e mental, e aos atributos da personalidade), o princpio da no-discriminao (de qualquer tipo), e o princpio da segurana da pessoa (abarcando a proibio de represlias e de penas coletivas e de tomadas de refns, as garantias judiciais, a inalienabilidade dos direitos e a responsabilidade individual). Jean Pictet, Dveloppement prncipes du Drot internatonal Inntanitare, Cenve/Paris, Inst. H. Dunant/Pedone, 1983, pp. 78-83. H uma identidade entre o princpio bsico da garantia dos direitos humanos fundamentais em quaisquer circunstncias e o princpio fundamental do direito de Genebra segundo o qual sero tratadas humanamente e protegidas as pessoas fora de combate e as que no tomem parte direta nas hostilidades. Jacques Morefilon, The Fundamental Principles of theRed Cross, Peace and HumanRights, SthRound Tableon Current ProblenisofInternatonal Huntanitarian Law and Red Cross Symposium (San Remo, setembro de 1979), p. 11 (separata). significativo que, em seu julgamento de 27 de junho de 1986 no caso Nicargua versus Estados Unidos, tenha a Corte Internacional de Justia considerado a obrigao de fazer respeitar o direito humanitrio (artigo 1 comum s quatro Convenes de Genebra) como um principio geral (inelutavelmente ligado ao contedo das obrigaes de respeitar), esclarecendo assim que os princpios gerais bsicos do direito internacional humanitrio contemporneo pertencem ao direito internacional geral, o que lhes d aplicabilidade em quaisquer circunstncias, de modo a melhor assegurar a proteo das vtimas. Rosemary Abi-Saab, Les 'principes gnraux' du droit humanitaire selon Ia Cour Internationale, de justice, Reme nternatonale de Ia Croix-Rouge (julho-agosto de 1987) n 766, pp. 388-389. Com efeito, a aproximao entre o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos direitos humanos vem da mesma forma fortalecer o grau da proteo devida pessoa humana. Cf. Th. Meron, op. cit. stipra n (13), p. 28.

    Esta aproximao tem encontrado expresso em resolues adotadas em Conferncias internacionais, tanto de direitos humanos como de direito humanitrio. Talvez a mais celebrada destas resolues, vista hoje como tendo aberto o caminho para situar o direito humanitrio em uma perspectiva mais ampla de direitos humanos, tenha sido a Resoluo XXIII, intitulada Direitos Humanos em Conflitos Armados, adotada em 12 de maio de 1968 pela Conferncia de Direitos Humanos de Teer. Texto in Final Act of the International Conference on Human Rights (Teheran, 1968), doc. A/CONF. 32/41, p. 18. A esta resoluo, que marcou o incio da preocupao das Naes Unidas com o desenvolvimento da matria, seguiram-se vrias outras resolues voltadas tambm ao direito humanitrio (particularmente ao chamado direito de Genebra); E. g., inter alia, resolues 2444 (XXIII), de 1969, e 2597 (XXIV), de 1970, da Assemblia Geral da ONU; cf. Rosemary Abi-Saab, Droit hunianitaire et conflits internes, Geneve/Paris, Inst. H. Dunant/Pedone, 1986, pp. 95-96. logo a Assemblia Geral das Naes Unidas, como veremos mais adiante, iria examinar os relatrios do Secretrio Geral das Naes Unidas sobre o tema Respeito dos Direitos Humanos nos Conflitos Armados, encomendados pela resoluo 2444 (XXIII) de 1969 da Assemblia, para implementara resoluo XXIII da Conferncia de Teer de 1968 (cf. infra).

    Concomitantemente, resolues adotadas pelas Conferncias Internacionais da Cruz Vermelha tambm passaram a referir-se aos direitos humanos. O caminho aqui foi aberto pelas resolues invocando o respeito dos direitos humanos adotadas pela XXI Conferncia Internacional, realizada em Istambul em 1969; a estas se seguiram, mais recentemente, e.g., a resoluo XIV (sobre a Tortura) adotada pela XXIII Conferncia em 1977, e a resoluo II (sobre Desaparecimentos Forados ou Involuntrios) adotada pela XXIV Conferncia em 1981. Moreillon, op. cit. supra n (16), pp. 10-11; Th. Meron, op. cit. supra n (13), p. 143. Com efeito, a aproximao, e mesmo convergncia, entre o direito internacional humanitrio e o

  • direito internacional dos direitos humanos tem se manifestado no plano normativo em relao a matrias como proibio de tortura e de tratamento ou punio cruel, desumano ou degradante; deteno e priso arbitrrias; garantias de due process; proibio de discriminao de qualquer tipo. Cf., a respeito, o estudo de Th. Meron, op. cit. supra n (13), pp. 13-14 e 1722.

    A adoo do artigo 3 comum s quatro Convenes de Genebra de 1949, contendo padres mnimos de proteo em caso de conflito armado no-internacional tambm contribuiu para a aproximao entre o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos direitos humanos em razo de seu amplo mbito acarretando a aplicao das normas humanitrias igualmente nas relaes entre o Estado e as pessoas sob sua jurisdio (como ocorre no campo prprio dos direitos humanos); ora, justamente nos conflitos armados no-internacionais, e nas situaes de distrbios e tenses internos, pondo em relevo precisamente as relaes entre o Estado e as pessoas sob sua jurisdio, que a convergncia entre o direito humanitrio e os direitos humanos se torna ainda mais claramente manifesta. M. El Kouhene, Les garanties fondamentales de la personne em droit humanitaire et droits de l'homme, Dordrecht, Nijhoff,1986, pp. 8, 63, 87 e 155.

    Determinados direitos, consagrados nos mbitos de um e de outro, recebem um tratamento particularmente detalhado e preciso nas Convenes de direito humanitrio e.g., direitos vida e liberdade, como o requerem os prprios conflitos armados que elas visam regulamentar. D. Schindler, op. Cit. Supra n (12), pp. 10-11. Outra etapa importante no processo de aproximao ou convergncia no plano normativo entre o direito humanitrio e os direitos humanos marcada pela consagrao de determinadas garantias fundamentais nos dois Protocolos de 1977 adicionais s Convenes de 1949. O artigo 75 do Protocolo Adicional I s Convenes de Genebra Relativo Proteo das Vtimas dos Conflitos Armados Internacionais enuncia em detalhes garantias fundamentais mnimas de que gozam todas as pessoas afetadas por tais conflitos, protegendo direitos individuais destas pessoas oponveis a seu prprio Estado. D-se, assim, a clara aproximao entre o direito humanitrio e os direitos humanos, sem no entanto confundi-los, porquanto permanecem intactas as condies de aplicao de um e de outro; isto significa que um e outro podem aplicar-se tambm simultnea ou cumulativamente, assegurando a complementaridade dos dois sistemas jurdicos (quando os mesmos Estados forem Partes tanto nas Convenes de direito humanitrio quanto nas de direitos humanos), M. El Kouhene, op. cit. supra n (23), pp. 97-98; recorda o autor que, no caso de Chipre, embora a Turquia tivesse se recusado a aplicar de jure o direito humanitrio, viu-se obrigada a aplicar a Conveno Europia de Direitos Humanos. Sobre a complementariedade dos mltiplos mecanismos de proteo prprios ao direito internacional dos direitos humanos, cf. o estudo de A. A. Canado Trindade, Coexistence and Coordination of Mechanisms of International Protection of Human Rights (At Global and Regional Levels), 202 Recueil des Cours de lAcadmie de Droit International (1987), pp. 1-435. e ampliando assim o alcance da proteo devida.

    O Protocolo Adicional II s Convenes de Genebra Relativo Proteo das Vtimas dos Conflitos Armados No-Internacionais, a seu turno, tambm enuncia em detalhes, no artigo 4, garantias fundamentais mnimas de que gozam todas as pessoas que no participam, ou tenham deixado de participar, em tais conflitos, esteja ou no privadas de liberdade. Tais garantias so complementadas pelas consagradas no artigo 5, como proteo mnima s pessoas privadas de liberdade por motivos relacionados com tais conflitos, estejam elas internadas ou detidas. Cf. M. El Kouhene, op. cit. supra n (23), p. 65, para a relao entre o regime do Protocolo II e o artigo 3 comum s quatro Convenes de Genebra. A aproximao ou convergncia entre o direito humanitrio e os direitos humanos no se limita ao plano normativo: faz-se igualmente presente nos planos da interpretao e implernentao dos instrumentos de proteo, como veremos a seguir.

    2. Aproximao ou Convergncia no Plano Hermenutico. Ponto central da convergncia entre o direito internacional humanitrio e a proteo internacional dos direitos humanos reside no reconhecimento do carter especial dos tratados de proteo dos direitos da pessoa humana. A especificidade do direito de proteo do ser humano, tanto em tempo de paz como de conflito armado, inquestionvel, e acarreta conseqncias

  • importantes, que se refletem na interpretao e aplicao dos tratados humanitrios (direito internacional humanitrio e proteo internacional dos direitos humanos). Na implementao de tais instrumentos internacionais detecta-se o papel proeminente exercido pelo elemento da interpretao na evoluo do direito internacional dos direitos humanos, que tem assegurado que aqueles tratados permaneam instrumentos vivos. Com efeito, da prtica dos diversos rgos de superviso internacionais emana uma convergncia de pontos de vista quanto interpretao prpria daqueles tratados, uma jurisprudence constante quanto natureza objetiva das obrigaes que incorporam e quanto a seu carter distinto ou especial em comparao com outros tratados multilaterais do tipo tradicional, como tratados celebrados para a proteo da pessoa humana e no para o estabelecimento ou a regulamentao de concesses ou vantagens interestatais recprocas. Para um estudo jursprudencial recente da interpretao prpria dos tratados de direitos humanos, cf. A. A. Canado Trindade, Co-existence and Coordination..., op. cit. supra n (25), captulo III, pp. 91-103, e cf. pp. 402-403.

    A interpretao e aplicao dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos do testemunho do ocaso da reciprocidade e da proeminncia das consideraes de ordre public no presente domnio. Com efeito, a proibio da invocao da reciprocidade como subterfgio para o no-cumprimento das obrigaes convencionais humanitrias foi corroborada em termos inequvocos pela Conveno de Viena sobre Direito dos Tratados de 1969, que, ao dispor sobre as condies em que uma violao de um tratado pode acarretar sua suspenso ou extino, excetua expressa e especificamente os tratados de carter humanitrio (artigo 60(5)). Assim, como ressaltamos em recente estudo sobre a matria, o prprio direito dos tratados de nossos dias, como o atesta o artigo 60(5) da Conveno de Viena, descarta o princpio da reciprocidade na implementao dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos e do direito internacional humanitrio, em razo precisamente do carter humanitrio desses instrumentos. Abrindo uma brecha em um domnio do direito internacional como o atinente aos tratados to fortemente impregnado do voluntarismo estatal, o disposto no referido artigo 60(5) da Conveno de Viena constitui uma clusula de salvaguarda em defesa do ser humano. A. A. Canado Trindade, A Proteo Internaconal..., op. cit. infra n (54), p. 12.

    A superao da reciprocidade tambm se manifesta no tocante questo da extino das obrigaes convencionais, como ilustrado pela clusula de denncia das quatro Convenes de Genebra de 1949. Segundo esta clusula (artigo comum 63/62/142/158), a denncia notificada enquanto a potncia denunciante estiver envolvida em um conflito no surtir efeito at que a paz tenha sido concluda e at que as operaes relativas a libertao e repatriao das pessoas protegidas pelas Convenes de Genebra tenham terminado. Ficam, assim, nesse meio tempo, asseguradas, em quaisquer circunstncias, as obrigaes das Partes, em prol da salvaguarda das pessoas protegidas. Ademais, as disposies das Convenes de Genebra, tais como as do artigo comum 3, atinentes s obrigaes do Estado vis--vis seus prprios habitantes, tampouco tm sua aplicabilidade condicionada por consideraes de reciprocidade. Cf. estudo de De Preux sobre a matria, cit. in Th. Meron, op. M. supra n (13), p. 11.

    Cabe, enfim, aqui ressaltar que a interao interpretativa dos tratados de direitos humanos tem gerado uma ampliao do alcance das obrigaes convencionais. Assim, os avanos logrados sob um determinado tratado tm por vezes servido de orientao para a interpretao e aplicao de outros mais recentes instrumentos de proteo. Ibid., p. 12. hoje ponto pacfico, por exemplo, na jurisprudncia convergente de rgos de superviso internacional, que se impe uma interpretao necessariamente restritiva das limitaes ou restries permissveis ao exerccio dos direitos garantidos e das derrogaes permissveis. A. A. Canado Trindade, op. cit. supra n (25), pp. 101-103.

    3. Aproximao ou Convergncia no Plano Operacional.

    Os mecanismos de implementao prprios do direito internacional dos direitos humanos resumem-se nos mtodos de peties ou comunicaes, de relatrios de diversos tipos, e de determinao dos fatos ou investigaes, com variantes; j o direito internacional humanitrio (Convenes de Genebra) conta, como mecanismos de controle, com a atuao do Comit Internacional da Cruz Vermelha, das potncias protetoras e das prprias Partes Contratantes

  • (artigos 8-11 comuns s quatro Convenes de 1949). No havendo uma coincidncia total entre o mbito de aplicao material (situaes abarcadas) e pessoal (pessoas protegidas) de um e de outro, no surpreende que os mecanismos de superviso sejam distintos. Assim, por exemplo, enquanto a proteo internacional dos direitos humanos pode ser desencadeada tanto pela ao ex officio dos rgos de superviso quanto pelas peties ou reclamaes das prprias vtimas, os mecanismos distintos de implementao do direito humanitrio, voltados proteo de seres humanos desarmados e indefesos em situaes de conflito, tm almejado, em razo do contexto em que se aplicam, surtir efeitos e resultados particularmente rpidos. D. Schindler, op. cit. supra n (12), pp. 13-15. No entanto, a ausncia de paralelismo entre o direito internacional humanitrio e o direito internacional dos direitos humanos antes aparente do que real.

    A aproximao ou convergncia entre um e outro no plano normativo tem-se refletido at certo ponto tambm no plano operacional. No h que perder de vista que os distintos mecanismos de implementao inspiram-se em princpios comuns que os vinculam e interrelacionam, em consideraes bsicas de humanidade, formando um sistema internacional geral, com setores especficos, de proteo da pessoa humana. H. Gros Espiell, op. cit. supra n (1), pp. 703-711. Assim, a aplicao recente do direito humanitrio tem se voltado a problemas de direitos humanos, e a da proteo internacional dos direitos humanos tem se ocupado igualmente de problemas humanitrios. As necessidades de proteo tm aproximado um ao outro.

    sabido que o Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV) tem desenvolvido atividades de proteo e assistncia em situaes e.g., de distrbios e tenses internos no abrangidas pelo direito internacional humanitrio convencional. Suas bases de ao tm sido, alm da prpria tradio ou prtica inquestionada, as resolues das Conferncias Internacionais da Cruz Vermelha (da resoluo XIV, da X Conferncia, em Genebra em 1921, Resoluo VI, da XXIV Conferncia, em Manila em 1981), e os Estatutos da Cruz Vermelha Internacional (artigos VI-VII) e os do prprio CICV. CICV, O Comit Internacional da Cruz Vermelha e os Distrbios e Tenses Interiores, Genebra, 1986, pp. 621; C. Swinarski, Introduo ao Direito Internacional Humanitrio, Braslia, CICV / IIDH, 1988, pp. 61-71. Tem- se, assim, estendido a proteo humanitria a, alm de prisioneiros em decorrncia de conflitos armados, tambm detidos e prisioneiros polticos em decorrncia de distrbios e represso poltica internos. Cf. Jacques Moreillon, The International Committee of the Red Cross and the Protection of Political. Detainees, International Review of the Red Cross (nov.. 1974 e abril 1975) pp. 123 (separata). Esta proteo humanitria se baseia igualmente nos direitos da pessoa humana consagrados em instrumentos internacionais de direitos humanos a partir da Declarao Universal de 1948. R. AbiSaab, op. cit. supra n (17), p. 86.

    Assim, ao ocupar-se, em casos de distrbios e tenses internos, de questes como a melhoria das condies de deteno, da assistncia material aos detidos da luta contra a tortura, Cf. The International. Committee of the Red Cross and Torture, International Review of the Red Cross (dez. 1976) pp. 17 (separata). contra os desaparecimentos forados, contra a tomada de refns e contra outros atos de violncia contra pessoas indefesas, o CICV tem efetivamente contribudo para fomentar o respeito aos direitos humanos. J. Moreillon, The Fundamental Principles, op. cit. supra n (16), pp. 11-14. Tudo indica que no futuro o CICV intensifique ainda mais sua ao em favor de detidos polticos; a tendncia do CICV de tornar mais freqentes suas visitas a prises em geral, no limitadas a uma determinada categoria de presos ou detidos. J. Moreillon, The International Committee..., op. cit. supra n (36), pp. 22-23. Alm de afigurar-se o CICV, desse modo, como um ator tambm no campo dos direitos humanos, Cf. D. P. Forsythe, Human Rights and the International Committee of the Red Cross, 12 Human Rights Quarterly (1990) pp. 265-289. tal tendncia contribuir a fortalecer a proteo internacional da pessoa humana.

    4. Respeitar e Fazer Respeitar: O Amplo Alcance das Obrigaes Convencionais de Proteo Internacional da Pessoa Humana.

    a) O Direito Internacional Humanitrio em Sua Ampla Dimenso.

  • Nos ltimos anos vem-se dando maior ateno questo da natureza jurdica e do alcance de determinadas obrigaes prprias tanto do direito internacional humanitrio quanto da proteo internacional dos direitos humanos. No mbito do direito internacional humanitrio, so importantes as implicaes decorrentes da formulao do artigo 1 das quatro Convenes de Genebra de 1949 e do artigo 10) do Protocolo Adicional I de 1977 s Convenes de Genebra, segundo a qual, as Altas Partes Contratantes se comprometem a respeitar e a fazer respeitar (to respect and to ensure respect/respecter et faire respecter), em todas as circunstncias, aqueles tratados humanitrios.

    O binmio respeitar/fazer respeitar significa que as obrigaes dos Estados Partes abarcam incondicionalmente o dever de assegurar o cumprimento das disposies daqueles tratados por todos os seus rgos e agentes assim como por todas as pessoas sujeitas a sua jurisdio, e o dever de assegurar que suas disposies sejam respeitadas por todos, em particular pelos demais Estados Partes. Tais deveres situam-se claramente no plano das obrigaes erga omnes. Trata-se de obrigaes incondicionais, exigveis por todo Estado independentemente de sua participao em um determinado conflito, e cujo integral cumprimento interessa comunidade internacional como um todo; as prprias Convenes de Genebra de 1949 cuidam-se de dissociar tais obrigaes de consideraes de reciprocidade, e.g., ao proibir a excluso de responsabilidades relativas a infraes graves (artigo 51/52/131/148) previstas no artigo 50/51/130/147, e ao determinar a inalienabilidade dos direitos protegidos (artigo 7/7/7/8). L.Condorelli e L. Boisson de Chazournes, Quelques remarques propos de l obligation des tats de respecter et faire respecter le droit international humanitaire en toutes circonstances, tudes et essais sur l droit international humanitaire et sur les principes de Ia Croix Rouge en lhonneur de Jean Pictet (ed. Ch. Swinarski), Genve/La Haye, CICR/ Nijhoff, 1984, pp. 24,29 e 3233; B. Zimmermann, Protocol I: Articie1 - General Principles and Scope of Application, Commentary on the Additional Protocols of 1977 to the Geneva Conventions of 1949 (de J. Pictet et alii, Geneva/The Hague, CIRC/ Nijhoff, 1987, pp. 35-38.

    Na mesma linha de pensamento, as Convenes de Genebra de 1949 estipulam que nenhum acordo especial poder prejudicar a situao das pessoas protegidas (artigo 6/6/6/7). dada assim proeminncia aos imperativos de proteo. O artigo 89 do Protocolo Adicional 1 de 1977 a ser lido em combinao com a obrigao do artigo 1 das Convenes de Genebra prev a ao conjunta ou individual dos Estados Partes em cooperao com as Naes Unidas e em conformidade com a Carta das Naes Unidas, em situaes de Molaes graves do Protocolo ou das Convenes de Genebra. E j se sugeriu que, luz do disposto no artigo 48/49/128/145 comum s quatro Convenes de 1949, os Estados Partes poderiam, com base na obrigao geral de fazer respeitar o direito humanitrio consagrada no artigo 1, reclamar que lhes sejam transmitidas as leis nacionais de aplicao das Convenes. n Levrat, Les consquences de lengagernent pris par le Hautes Parties Contractantes de faire respecter les Conventions humanitaires, Mise en oeuvre du droit international humanitaire (ed. F. Kalshoven e Y. Sandoz), Dordrecht, Nijhoff, 1989, p. 291, e cf. pp. 286-288.

    Em virtude do referido dever geral de fazer respeitar o direito humanitrio, configura-se a existncia de um interesse jurdico comum, em virtude do qual todos os Estados Partes nas Convenes de Genebra, e cada Estado em particular, tm interesse jurdico e esto capacitados a agir para assegurar o respeito do direito humanitrio (artigo 1 comum s quatro Convenes de 1949), no somente contra um Estado autor de violaes de uma disposio das Convenes de Genebra mas tambm contra os demais Estados Partes que no cumprem a obrigao (de conduta ou de comportamento) de fazer respeitar o direito humanitrio. Ibid., pp. 271 e 275, e cf. 277-279. Tal obrigao possui ademais uma dimenso preventiva, ao requerer dos Estados as medidas necessrias que os possibilitem assegurar o respeito do direito humanitrio: estas medidas adoo de leis, instrues e ordens pertinentes, em suma, conformidade do direito interno em todos os nveis com o direito humanitrio ho de ser tomadas pelos Estados atravs de sua ao legislativa e regulamentada interna no apenas em tempo de conflito mas tambm preventivamente em tempo de paz (um aspecto ainda no suficientemente examinado do direito internacional humanitrio contemporneo). L. Condorelli e L. Boisson de Chazournes, op. cit. supra n (42), pp. 25-26.

  • O sentido prprio e o amplo alcance das obrigaes de direito internacional humanitrio (supra) foram invocados e afirmados em dois casos recentes dignos de meno e destaque, a saber, o conflito Ir/Iraque e o contencioso NicargualEstados Unidos. No tocanteao primeiro, significativo que em determinado estgio do conflito Ir/lraque maio de 1983 e fevereiro de 1984 o Comit Internacional da Cruz Vermelha (CICV) houve por bem dirigir -apelos a todos os Estados Partes nas Convenes de Genebra urgindo-os a intervir consoante o artigo 1 comum s Convenes, de modo a estender proteo a cerca de 50 mil prisioneiros deguerra iraquianosno Ir; o CICV solicitouaos Estados Partes apoiarem-no no desempenho de suas funes e auxiliarem-no a assegurar a aplicao do direito internacional humanitrio. R.Wiernszewski,Application of lnternational Humanitarian Law and Human Rights Law: Individual Complaints, Mise en oeuvrere du droit international humanitaire (ed. F. Kalshoven e Y. Sandoz), Dordrecht, Nijhoff, 1989, p. 454. Paralelamente, o Conselho de Segurana das Naes Unidas condenou todas as violaes do direito internacional humanitrio cometidas neste conflito, a exemplo, interalia, do emprego de armas qumicas em violaes do Protocolo de Genebra de 1925. Resoluo 548, de 31.10.1983, e declarao de seu presidente, de 30.03.1984; cit. in L. Condorelli e L. Boisson de Chazournes, op. cit. supra n (42), p. 28. Se os referidos apelos de 1983-1984 do CICV no conflito Ir/lraque no surtiram os efeitos desejados, isto se deveu sobretudo ao desconhecimento puro e simples do contedo e alcance da obrigao de fazer respeitar as Convenes humanitrias, que impediu os Estados de agir consoante aquela sua obrigao. n Levrat, op. M. supra n (43), p. 292. No obstante, no deixa de ser significativo que no caso o CICV tenha reclamado dos Estados o cumprimento da obrigao de fazer respeitar o direito humanitrio, o que poder abrir caminho para que o contedo e o alcance de tal obrigao venham no futuro prximo a ser precisados.

    No tocante ao segundo caso, o contencioso Nicargua/Estados Unidos (1984/1986) perante a Corte Internacional de justia, a referida obrigao de fazer respeitar o direito humanitrio foi expressamente sustentada pela Corte da Haia em seu julgamento de, 27 de junho de 1986. A Corte Internacional de justia condenou os Estados Unidos por violaes do direito internacional humanitrio por haver encorajado, atravs da difuso pela CIA de um manual sobre Operaes Psicolgicas em Lutas de Guerrilha a realizao pelos contras e outras pessoas engajadas no conflito na Nicargua, de atos em violao de disposio do artigo 3 comum s Convenes de Genebra de 1949. Ainda que no caso a Nicargua tivesse se abstido de referir-se s quatro Convenes de Genebra, mesmo assim a Corte determinou que em razo dos princpios gerais do direito internacional humanitrio os Estados Unidos estavam obrigados a se abster de encorajar pessoas ou grupos de pessoas engajadas, no conflito na Nicargua a cometer violaes do artigo 3 comum s Convenes de Genebra.

    Nas palavras da Corte da Haia, os Estados Unidos tm a obrigao, nos termos do artigo 1 das quatro Convenes de Genebra, de respeitar e mesmo de 'fazer respeitar' estas Convenes em todas as circunstncias, pois tal obrigao no deriva apenas das prprias Convenes, mas dos princpios gerais do direito humanitrio aos quais as Convenes simplesmente do expresso concreta. De modo particular os Estados Unidos tm a obrigao de no encorajar pessoas ou grupos de pessoas engajadas no conflito na Nicargua a agir em violaes das disposies do artigo 3 comum s quatro Convenes de Genebra de 1949. CJ Reports (1986), p. 114, par. 220, e cf. p. 113, par. 218, e pp. 129130 pars. 255-256. Para um estudo dos aspectos jurisdicionais do caso, cf. A. A. Canado Trindade, Nicargua versus Estados Unidos: Os Limites da jurisdio Obrigatria da Corte Internacional de Justia e as Perspectivas da Soluo judicial de Controvrsias Internacionais, 67/68 Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (19851986) pp. 71-96. A obrigao de respeitar e fazer respeitar o direito humanitrio obteve, enfim, no caso Nicargua versus Estados Unidos, reconhecimento judicial, fator importante para que seu contedo e alcance venham a ser precisados no futuro prximo.

    Outros casos recentes podem ser mencionados. Em nvel global, no tocante ao caso da ex-Iugoslvia, o Conselho de Segurana das Naes Unidas recordou as obrigaes impostas pelo direito internacional humanitrio (resoluo 764, de 1992), tomou nota do relatrio do rapporteu r especial sobre a matria revelando as violaes macias e sistemticas dos direitos humanos assim como as graves violaes do direito internacional humanitrio na Repblica da Bsnia e

  • Herzegovina (resolues 787 e 780, de 1992), e decidiu estabelecer um tribunal internacional para processar os responsveis por violaes do direito internacional humanitrio cometidas no territrio da ex-lugoslvia a partir de 1991 (resoluo 808, de 1993). D. Weissbrodt e P.L. Hicks, Aplicacin de los Derecho Humanitrio en Caso de Conflicto Armado, 116 Revista Internacional de Ia Cruz Roja (1993) pp. 134135; L. DoswaldBeck e S. Vit, Derecho Internacional Humanitario y Derecho de Ios Derechos Humanos, 116 Revista Internacional de Ia Cruz Roja (1993) p. 20. No caso do Kuwait sob a ocupao iraquiana a Comisso de Direitos Humanos das Naes Unidas considerou o relatrio de 1992 do rapporteur especial sobre a matria, que se referiu interao entre os direitos humanos e o direito humanitrio, e a normas do direito humanitrio que poderiam ser consideradas como normas de direito consuetudinrio da proteo dos direitos humanos, aplicveis ocupao do Kuwait (a saber, o artigo 3 comum s Convenes de Genebra de 1949, o artigo 75 do Protocolo Adicional 1 de 1977, e disposies da Declarao Universal de Direitos Humanos e dos Pactos de Direitos Humanos das Naes Unidas). L. DoswaldBecke e S. Vit, op. cit. supra n (50), v. 121.

    No plano regional interamericano, no caso da invaso de Granada (1983), a Comisso Interarnericana de Direitos Humanos declarou admissvel a demanda (denunciando o bombardeio pelos Estados Unidos de um hospital psiquitrico, matando a vrios pacientes), a qual solicitava uma interpretao do artigo 1 da Declarao Americana de Direitos e Deveres do Homem de 1948 luz dos, princpios do direito humanitrio, o que tambm implicava, em outras palavras, a aplicao dos direitos humanos a um conflito armado. Ibid., p. 122. Com efeito, j a partir de fins da dcada de setenta, a Comisso Interamericana invocou disposies das Convenes de Genebra de 1949 em alguns de seus Relatrios. No caso dos ndios miskitos, relativo a Nicargua (cf. infra), por exemplo, a Comisso Interamericana obteve do governo que se admitisse a atuao concomitante do ACNUR e do CICV. C. Seplveda, Estdios... op. cit. infra n (199), pp. 101-102.

    b) O Direito Internacional dos Direitos Humanos em Sua Ampla Dimenso. Como tivemos ocasio de observar em recente livro sobre a matria, nos tratados e instrumentos de proteo internacional dos direitos da pessoa humana, a reciprocidade suplantada pela noo de garantia coletiva e pelas consideraes de ordre public. Tais tratados incorporam obrigaes de carter objetivo, que transcendem os meros compromissos recprocos entre as partes. Voltam-se, em suma, salvaguarda dos direitos do ser humano e no dos direitos dos Estados, na qual exerce funo-chave o elemento do 'interesse pblico' comum ou geral (ou ordre public) superior. Toda a evoluo jurisprudencial quanto interpretao prpria dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos encontra-se orientada nesse sentido. Aqui reside um dos traos marcantes que refletem a especificidade dos tratados de proteo internacional dos direitos humanos. A. A. Canado Trindade, A Proteo Internacional dos Direitos Humanos Fundamentos Juridcos e Instrumentos Bsicos, So Paulo, Ed. Saraiva, 1991, pp. 1011, e cf. p. 12.

    Tais ponderaes, calcadas na constatao da superao da reciprocidade pelos imperativos de ordre public, aplicam-se tanto aos tratados de proteo internacional dos direitos humanos propriamente ditos quanto aos tratados de direito internacional humanitrio. Com efeito, namesma linha, afrmula respeitar/fazer respeitar utilizada, como vimos, no direito internacional humanitrio (supra) marca igualmente presena no campo da proteo internacional dos direitos humanos. Assim, no plano global, em virtude do artigo 2(1) do Pacto de Direitos Civis e Polticos das Naes Unidas de 1966 os Estados Partes assumem a obrigao de respeitar e assegurar. Cto respect and. to ensure) os direitos protegidos. Em um comentrio geral (sob o artigo 40(4) do Pacto) a respeito, o Comit de Direitos Humanos (estabelecido pelo Pacto) clarificou a natureza da obrigao geral sob o artigo 2 do Pacto: ponderou o Comit que a implementao de tal obrigao no dependia apenas de disposies constitucionais ou legislativas, que Ireqentemente no so suficientes per se, mas competia ademais aos Estados Partes assegurar (to ensure) o gozo dos direitos protegidos a todos os indivduos sob sua jurisdio. No entendimento do Comit, este aspecto requer atividades especficas dos Estados Partes de modo a capacitar os indivduos a gozarem de seus direitos, o que se aplica a todos os direitos consagrados no Pacto. General Comment 3/13, in U.N.,

  • Report of the Human Rights Committee, G.A.O.R. XXXVI Session (1981), p. 109. Assim esclareceu o Comit o amplo alcance do dever dos Estados Partes de respeitar e assegurar Cto respect and to ensure) os direitos protegidos pelo Pacto. Cf. T. Opsahl, The General Comments of the Human Rights Committee, Des Menschen Recht zwischen Freiheit und Verantwortung Festschrift fur K. J. Partsch, Berlim, Duncker & Humblot, 1989, p. 282.

    Sob o artigo 2 do Pacto, desse modo, os Estados Partes se comprometem, primeiramente, a respeitar os direitos consagrados, ao no viol -los; e, em segundo lugar, a assegurar tais direitos, o que deles requer todas as providncias necessrias pa. ra possibilitar aos indivduos o exerccio ou gozo dos direitos garantidos. Estas providncias podernincluira eliminao de obstculos governamentais e possivelmente tambm privados~'ao gozo daqueles direitos, podem requerer a adoo de leis e outras medidas (administrativas) contra a interferncia privada, por exemplo, no gozo daqueles direitos. Th. Buergenthal, To Respect and to Ensure: State Obligations and Permissible Derogations, The International Bill of Rights The Covenant on Civil and Political Rights (ed. L. Henkin), n Y., Columbia University Press, 1981, pp. 77-78.

    A frmula consagrada no artigo 2(1) do Pacto de Direitos Civis e Polticos volta significativamentea figurar na mais recente Conveno sobre os Direitos da Criana (1989): em virtude do artigo 2(1) desta ltima, os EstadosPartes respeitaro easseguraro Cshall respectand ensurel os direitos da criana nela enunciados. Significativamente, o artigo 38(1) da Conveno de 1989 acrescenta que os Estados Partes se comprometem a respeitar e fazer respeitar as normas do direito internacional humanitrio aplicveis em casos de conflito armado no que digam respeito s crianas.

    No h de passar despercebido que os tratados de direitos humanos voltados em especial preveno de discriminao ou proteo de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulnerveis consagram um elenco de direitos no raro tidos como pertencentes a diferentes categorias. Assim, a Conveno sobre a Eliminao de Todas as Formas de Discriminao Racial de 1965, em um nico dispositivo, o artigo 5, por exemplo, dispe sobre a proteo de determinados direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais. A Conveno sobre a Eliminao de TodasasFormas de Discriminao contra a Mulher de 1979 estende proteo a direitos civis, polticos, econmicos, sociais e culturais (artigos 7-16). E a Conveno sobre os Direitos da Criana de 1989 consagra direitos civis (mas no polticos stricto sensu), econmicos, sociais e culturais (artigos 3-40).

    Estes tratados, desse modo, fornecem testemunho eloqente da indivisibilidade dos direitos humanos, todos inerentes ao ser humano nas distintas esferas de sua vida e suas atividades. No h tampouco de passar despercebido o grande nmero de ratificaes que estas trs Convenes obtiveram, em perodo de tempo relativamente curto desde sua adoo: isto vem a sugerir um consenso internacional, se no virtualmente universal, em prol de tais tratados a incorporarem um amplo elenco de direitos de distintas categorias voltados preveno de discriminao e proteo de pessoas ou grupos de pessoas particularmente vulnerveis e em necessidade premente de proteo especial.

    No plano regional, cabe destacar o sentido de que se revestem e que tem sido dado na prtica s obrigaes constantes da Conveno Europia de Direitos Humanos de 1950 e da Conveno Americana sobre Direitos Humanos de 1969. A seu turno, a Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos de 1981 dispe (artigo 1) que os Estados Partes reconhecem os direitos nela enunciados e se comprometem a adotar medidas legislativas ou outras para implementlos. Consoante o artigo 1 daConveno Europia, as Partes contratantes asseguraro (shall secure/reconnaissenf) a qualquer pessoa sob sua jurisdio os direitos nela consagrados. O enunciado do artigo 1 estabelece no s a/obrigao dos Estados Partes de assegurar que seu direito interno seja compatvel com a Conveno Europia, mas tambm a obrigao de remediar qualquer violao das disposies da Conveno. J. E. S. Fawcett, The Application of the European Convention on Human Rights, Oxford, Clarendon Press, 1969, p. 3.

  • O alcance das obrigaes convencionais luz do artigo 1 foiobjeto de ateno tanto da Comisso quanto da Corte Europias de Direitos Humanos no caso Irlanda versus Reino Unido. Em uma passagernde seu volumoso relatrio de 25 de janeiro de 1976 sobre o caso Irlanda versus Reino Unido, a Comisso Europia comentou que o disposto no artigo 1 da Conveno deixou claro que aquele tratado, por sua ratificao, criou direitos dos indivduos sob o prprio direito internacional e o dever dos Estados de assegurar os direitos humanos ao incorporar a Conveno em seu direito interno. European Commission of Human Rights, Application N 5310/71, Ireland versus United Kingdom Report of the Commssion (25.01.1976), Strasbourg, p. 484. Aprofundando-se na questo, um dos membros da Comisso, Sperduti, salientou, em explicao de voto, o amplo alcance da obrigao geral do artigo 1 da Conveno: no seu entendimento, os Estados Partes tm no s o dever de abster-se de qualquer ato envolvendo uma violao dos direitos consagrados na Conveno, mas igualmente o dever de assegurar o gozo de tais direitos em seus ordenamentos jurdicos internos de modo a proibir qualquer ato, da parte de rgos e agentes do Estado ou de indivduos ou organizaes privadas, que infrinja aqueles direitos; Ibid., Separate Opinion of Mr. C. Sperduti, Joined by Mr. T. Opsahl, on the Interpretation of Art. 1 of the Convention, p. 498. ademais, em virtude da obrigao do artigo 1 da Conveno (em combinao com outras disposies) os Estados Partes assumiram um dever em relao a todos os demais conjuntamente de garantir o respeito da Conveno atravs de seus ordenamentos jurdicos internos. Ibid., p. 499. Outro membro da Comisso, Mangan, em voto dissidente, distinguiu no artigo 1 o dever tanto de no infringir os direitos humanos consagrados quanto de assegurlos (garantir o seu respeito); ibid., Dissenting Opinion of Mr. K. Mangan on Art. 1 of the Convention, p. 500.

    Em seu julgamento de 18 de janeiro de 1978 no mesmo caso Irlanda versus Reino Unido, a Corte Europia advertiu que, ao substiturem os termos comprometem-se a assegurar (undertake to secure/sengagent reconnaltre por asseguraro (shall secure/reconnaissenV') no texto do artigo 1, os redatores da Conveno pretenderam deixar claro que os direitos nesta consagrados seriam assegurados diretamente a qualquer pessoa sob a jurisdio dos Estados Partes. Cit. in A. Z. Drzemezewski, European Human Rights Convention in Domestie Law - A Comparatim Study, Oxford, Clarendon Press, 1983, pp. 5556 e 2526;e in C. CohenJonaffian, La Conveirtion europMinedes droits de 1'honime, AixenProvence/Paris, Pr. Univ. d'AixMarseille/Economica, 1989, p. 244. Em outra ocasio, em sua deciso de 1975 no caso Chipre versus Turquia, a Comisso Europia insistiu no amplo alcance da obrigao consagrada no artigo 1 da Conveno Europia. European Commission of Human Rights, Decisiopis apid Reports, vol. 2, Strasbourg, C. E., 1975, pp. 125 e 136-137. de se esperar que no futuro prximo se venha a dar maior preciso ao contedo ealcanceda obrigao de assegurar os direitos consagrados na Conveno Europia, a partir particularmente dos esclarecimentos desenvolvidos pela Comisso e pela Corte no caso Irlanda versus Reino Unido. A. Z. Drzemczewski, op. cit. supra n (63), p. 55 n 6.

    Ainda no plano regional, em virtude do artigo 1(1) da Conveno Americana sobre Direitos Humanos os Estados Partes se obrigam a respeitar e a garantir (undertake to respect (...) and to ensure) os direitos nela consagrados. Em dois dos trs casos hondurenhos em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos concluiu que ocorreram violaes da Conveno Americana (casos Velsquez Rodrguez, 1988, e Godnez Cruz, 1989), a natureza e o alcance da obrigao prevista no artigo 10) da Conveno foram objeto de esclarecimentos desenvolvidos pela Corte, ainda que a Comisso Interamericana de Direitos Humanos no tivesse levantado expressamente a questo da violao do artigo 1 (1) da Conveno nos referidos casos.

    Tanto na sentena de 29 de julho de 1988 no caso Velsquez Rodriguez quanto na sentena de 20 de janeiro de 1989 no caso Godnez Cruz, a Corte Interamericana considerou o artigo 1(1) da Conveno essencial para determinar a imputabilidade de violao dos direitos humanos (por ao ou omisso) ao Estado demandado. Corte Interamericana de Derechos Humanos (Ct.I.D.H.), Caso Velsquez Rodrguez, Sentencia de 29.07.1988, Srie C, n 4, p. 67, par. 166; CtID.H., Caso Codnez Cruz, Sentencia de 20.01.1989, Srie C, n 5, p. 71, par. 173. Em decorrncia do amplo alcance da obrigao consagrada no artigo 1 (1) da Conveno de respeitar e garantir o livre e pleno exerccio dos direitos reconhecidos na Conveno, advertiu a Corte, os Estados Partes esto obrigados a organizar todo o aparato governamental e, em

  • geral, todas as estruturas atravs das quais se manifesta o exerccio do poder pblico, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exerccio dos direitos humanos. Como conseqncia desta obrigao os Estados devem prevenir, investigar e sancionar toda violao dos direitos reconhecidos pela Conveno e procurar, ademais, o restabelecimento, se possvel, do direito violado e, nesse caso, a reparao dos danos produzidos pela violao dos direitos humanos. Ibid., Srie C, n 4, p. 6869, par. 166; Srie C, n 5, p. 72, par. 175 (nfase acrescentada).

    Esta obrigao, de to amplo alcance, abrange todo e qualquer ato ou omisso do poder pblico violatrio dos direitos consagrados; volta-se ela prpria conduta do Estado de modo a assegurar com eficcia o livre e pleno exerccio dos direitos humanos consagrados. Ibid., Srie C, n 4, p. 69 par. 167; Srie C, n 5, p. 72, par. 176. Ademais, acrescentou a Corte, mesmo uma violao dos direitos humanos perpetrada por um simples particular ou por um autor noidentificado pode acarretar a responsabilidade internacional do Estado, no pelo ato em si, mas pela falta da devida diligncia para prevenir a violao ou para trat-la nos termos requeridos pela Conveno. Ibid., Srie C, n 4, pp. 7071, par. 172; Srie C, n 5, pp. 7374, pars. 181-182 (nfase acrescentada). O decisivo determinar se a violao ocorreu com o apoio ou a tolerncia do poder pblico, ou se este deixou que aviolao ocorresse impunemente ou no tomou medida de preveno. Ibid., Srie C, n 4, p. 71, par. 173; Srie C, n 5, pp. 74-75, par. 183.

    A Corte foi peremptria ao ressaltar o dever jurdico do Estado de prevenir, investigar e sancionar as violaes de direitos humanos no mbito de sua jurisdio, assim como assegurar s vtimas uma adequada reparao. Ibid., Srie C, n 4, p. 71, par. 174; Srie C, n 5, p. 75, par. 184. Explicou a Corte que o dever de preveno abarca todas as medidas de carter jurdico, poltico, administrativo e cultural que promovam a salvaguarda dos direitos humanos e assegurem queaseventuais violaes dos mesmos sejam efetivamente consideradas e tratadas como um fato ilcito, sancionvel como tal; o dever de prevenir afigura-se, pois, como um dever de meio ou comportamento, o mesmo ocorrendo com o dever de investigar, que h de ser cumprido com seriedade e no como simples formalidade. Ibid, Srie C, n 4, p. 71-73, pars. 175 e 177; Srie C, n 5, pp. 75-76, pars. 185 e 188. Este ltimo deve ser assumido pelo Estado como um dever jurdico prprio e no como uma simples gesto de interesses particulares, que dependa da iniciativa processual da vtima ou de seus familiares ou da apresentao privada de elementos probatrios, sem que a autoridade pblica busque efetivamente a verdade. Ibid., Srie C, n 4, p. 73, par. 177; Srie C, n 5, p. 76, par. 188.

    Quer a violao dos direitos humanos reconhecidos tenha sido cometida por agentes ou funcionrios do Estado, por instituies pblicas, quer tenha sido cometida por simples particulares ou mesmo pessoas ou grupos no-identificados ou clandestinos, se o aparato do Estado atua de modo que tal violao permanea impune e no se restabelea vtima a plenitude de seus direitos o mais cedo possvel, pode afirmar-se que o Estado deixou de cumprir com seu dever de assegurar o livre e pleno exerccio de seus direitos s pessoas sob sua jurisdio. Ibid., Srie C, n 4, p. 72, par. 176; Srie C, n 5, p. 76, par. 187.

    Em suas judiciosas ponderaes nos dois casos hondurenhos acima referidos, a Corte Interamericana sustentou a responsabilidade do Estado hondurenho pelo desaparecimento forado de pessoas (mesmo que no perpetrado por agentes do Estado em sua capacidade oficial), em violao da Conveno Americana, do duplo dever de sua preveno e punio. As ponderaes da Corte constituem reconhecimento judicial inequvoco do amplo alcance do disposto no artigo 10) da Conveno, a abranger, no apenas a obrigao do Estado de respeitar, de no violar, os direitos consagrados, mas tambm a obrigao do Estado de tomar todas as providncias e medidas positivas no sentido de assegurar o respeito dos direitos protegidos, no somente por parte de seus agentes e rgos, mas igualmente por parte de simples particulares ou mesmo pessoas ou grupos no-identificados ou clandestinos (dever jurdico do Estado de preveno, investigao e sano).

    5. A Proteo Erga Omnes de Determinados Direitos e a Questo do Driftwirkung.

  • As consideraes acima nos conduzem a um ponto de capital importncia para os desenvolvimentos futuros dos mecanismos de proteo internacional da pessoa humana: a questo de sua proteo erga omnes. Os distintos instrumentos de proteo internacional incorporam obrigaes de contedo e alcance variveis: algumas normas so suscetveis de aplicabilidade direta, outras afiguram-se antes como programticas. H, pois, que prestar ateno natureza jurdica das obrigaes. A esse respeito surge precisamente a questo da proteo erga omnes de determinados direitos garantidos, que levanta o ponto da aplicabilidade a terceiros simples particulares ou grupos de particulares de disposies convencionais (denominado Drittwirkung na bibliografia jurdica alem).

    Com efeito, o fato de os instrumentos de proteo internacional em nossos dias voltarem-se essencialmente preveno e punio de violaes dos direitos humanos cometidas pelo Estado (seus agentes e rgos) revela uma grave lacuna: a da preveno e punio de violaes dos direitos humanos por entidades outras que o Estado, inclusive por simples particulares e mesmo por autores noidentificados. Cabe examinar com mais ateno o problema e preencher esta preocupante lacuna. A soluo que se vier a dar a este problema poder contribuir decisivamente ao aperfeioamento dosmecanismos de proteo internacional da pessoa humana, tanto os de proteo dos direitos humanos stricto sensti quanto os de direito internacional humanitrio.

    De incio, cabe observar que a obrigao de respeitar e fazer respeitar ou assegurar todos os direitos garantidos, consagrada em alguns tratados de proteo dos direitos da pessoa humana (P