Texto - Violência Na História Por Takeuti

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VIOLÊNCIAS NA HISTÓRIA HUMANA E NA CONTEMPORANEIDADE Profa. Dra. Norma Missae Takeuti (Grupo de Sociologia Clínica em Natal) A violência é uma realidade hoje que não podemos negar na nossa vida social. Falar de violência, nos dias de hoje, parece até um fato banal, na medida em que somos permanentemente assediados, no dia-a-dia, com notícias de acontecimentos violentos, sobretudo através da imprensa escrita e da televisão, que têm a tendência de fazer desses acontecimentos um grande espetáculo. Não podemos negar que um certo marketing da violência no qual ela se torna um produto de consumo visual. Certos programas na TV tendem a ter, mais do que o caráter informativo para esclarecer o espectador, o caráter de produção do espetáculo da violência, baseada principalmente nos dramas que atingem as pessoas das camadas populares (Aqui Agora, Patrulha Policial, etc) e só criando com isso, confusões na mente das pessoas e semeando, muitas vezes, o pânico no espectador 1 . Esse tipo de comunicação faz com que a realidade da violência (perto e longe de nós) se torne tão presente, tão real que acaba sendo explicativa por si só 2 , isto é, os fatos exibidos na tela carecem de explicação porque as imagens acabam falando por si sós 3 . Assim, as pessoas vivem o cotidiano de suas vidas acossadas pelo medo, pela angústia e insegurança: as violências não estão mais só em lugares bens circunscritos - na favela, nos bairros “perigosos”, nas zonas de meretrício, nos corredores do tráfico de drogas - como pareciam estar antes e que bastava, portanto, evitar tais lugares para se viver tranqüilamente. A violência parece estar em todos os lugares, e ninguém está mais imune a ela 4 . É o que eu chamaria de “princípio da violência”: algo latente, possível de explodir (eclodir/emergir) a todo momento e em qualquer lugar. O comportamento das pessoas sendo regido por esse princípio se caracteriza pelo medo e desconfiança permanente do outro, pelo isolamento (para não falar auto-trancafiamento em suas casas gradeadas e/ou guardadas por vigilantes humanos ou caninos) e pelo individualismo exacerbado. Nesse ”estado de coisas” do nosso mundo, o “outro” se tornou não mais um aliado ou amigo, mas um perseguidor possível obrigando cada ser a se proteger pela indiferença, pela rejeição ou pela destruição 5 . A palavra violência está no falar, no ouvir, no ver e no sentir de todos e ela termina sendo a causa e efeito de tantos problemas enfrentados pela humanidade no mundo de hoje. Alguns pensadores falam da banalização da violência (Arendt) e o perigo que isso comporta. Banalização no sentido em que o elemento perverso acaba sendo apresentado como algo natural. Da mesma forma que há o medo, há também o torpor, a anestesia de emoções e sentimentos diante dos excessos de discursos e imagens

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Violência na história

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VIOLÊNCIAS NA HISTÓRIA HUMANA E NA CONTEMPORANEIDADE

Profa. Dra. Norma Missae Takeuti(Grupo de Sociologia Clínica em Natal)

A violência é uma realidade hoje que não podemos negar na nossa vida social. Falar de violência, nos dias de hoje, parece até um fato banal, na medida em que somos permanentemente assediados, no dia-a-dia, com notícias de acontecimentos violentos, sobretudo através da imprensa escrita e da televisão, que têm a tendência de fazer desses acontecimentos um grande espetáculo. Não podemos negar que há um certo marketing da violência no qual ela se torna um produto de consumo visual. Certos programas na TV tendem a ter, mais do que o caráter informativo para esclarecer o espectador, o caráter de produção do espetáculo da violência, baseada principalmente nos dramas que atingem as pessoas das camadas populares (Aqui Agora, Patrulha Policial, etc) e só criando com isso, confusões na mente das pessoas e semeando, muitas vezes, o pânico no espectador1.

Esse tipo de comunicação faz com que a realidade da violência (perto e longe de nós) se torne tão presente, tão real que acaba sendo explicativa por si só2, isto é, os fatos exibidos na tela carecem de explicação porque as imagens acabam falando por si sós3.

Assim, as pessoas vivem o cotidiano de suas vidas acossadas pelo medo, pela angústia e insegurança: as violências não estão mais só em lugares bens circunscritos - na favela, nos bairros “perigosos”, nas zonas de meretrício, nos corredores do tráfico de drogas - como pareciam estar antes e que bastava, portanto, evitar tais lugares para se viver tranqüilamente. A violência parece estar em todos os lugares, e ninguém está mais imune a ela4. É o que eu chamaria de “princípio da violência”: algo latente, possível de explodir (eclodir/emergir) a todo momento e em qualquer lugar. O comportamento das pessoas sendo regido por esse princípio se caracteriza pelo medo e desconfiança permanente do outro, pelo isolamento (para não falar auto-trancafiamento em suas casas gradeadas e/ou guardadas por vigilantes humanos ou caninos) e pelo individualismo exacerbado. Nesse ”estado de coisas” do nosso mundo, o “outro” se tornou não mais um aliado ou amigo, mas um perseguidor possível obrigando cada ser a se proteger pela indiferença, pela rejeição ou pela destruição5.

A palavra violência está no falar, no ouvir, no ver e no sentir de todos e ela termina

sendo a causa e efeito de tantos problemas enfrentados pela humanidade no mundo de hoje.

Alguns pensadores falam da banalização da violência (Arendt) e o perigo que isso comporta. Banalização no sentido em que o elemento perverso acaba sendo apresentado como algo natural. Da mesma forma que há o medo, há também o torpor, a anestesia de emoções e sentimentos diante dos excessos de discursos e imagens de violência. Eles nos incapacitam a fazer interrogações pertinentes que possam conduzir a problematizações devidas para a busca de soluções adequadas. A sucessão de fatos e imagens da violência cotidiana não mais espanta e mobiliza as pessoas.

Banalização ou não, o fato é que todos têm a sensação de estarem vivendo em um mundo mais violento que nunca.

Mas será que a violência é um fato novo na vida dos homens em sociedade? Vamos tentar ver isso para ver se chegamos a responder a uma questão de origem: o que é violência hoje?

Outrora, as sociedades eram mais harmoniosas mesmo? Ou a sensação de o mundo estar mais violento advém dos grandes avanços tecnológicos da sociedade moderna onde a comunicação se tornou generalizada?

Sem dúvida, a violência está mais transparente na medida em que a tecnologia moderna relativa aos meios de comunicação pode nos trazer cenas de violência de tão longe, que não são só ficções e de imediato, como aquilo que ocorre aqui bem perto de nós. Há uma maior visibilidade, transparência dos fenômenos da violência devido à comunicação extensiva contínua e simultânea! Por um lado, isso é bom, pois isso nos informa, mas por outro lado, o excesso de informações sem uma estrutura teórica ou seja sem uma reflexão adequada de todas essas informações só tendem a criar confusões, pânicos e paralizações nas pessoas.

Mas quero voltar à questão de como se dá a violência no tempo ou seja na história da humanidade. Não posso e nem pretendo fazer uma historiografia da violência nos tempos históricos determinados. Vou ressaltar só alguns pontos, que eu acho relevantes, sobre a violência nas sociedades antigas e tradicionais, sem adentrar pelos detalhes (pois o tempo de fala não me permite e eu não sou suficientemente esclarecida nesses detalhes, mesmo porque estudar as diferentes modalidades de violência no tempo não parece contribuir para o avanço efetivo de nossas reflexões).

Se voltarmos a um passado bem remoto, até os tempos primordiais da história dos homens, podemos ver através dos mitos de

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origem que eles retraçam os ciclos de violência inicial onde os deuses heróis fundadores se afrontavam até a morte (Balandier). Até onde podemos revolver a história da espécie humana, ela é marcada por guerras ou rivalidades periódicas entre povos, nações, tribos ou hordas primitivas, e que foram acompanhadas, muitas vezes, de suplícios e torturas, acometidos sobre os adversários vencidos6.

Até antes do advento do Estado, as lógicas da violência eram outras. Nas sociedades antigas e tradicionais predominavam dois códigos7, inseparáveis um do outro: o código de honra e o código da vingança. É claro que estamos nos referindo àquelas sociedades onde reinavam a prioridade da vida coletiva em relação ao interesse individual/pessoal, contrariamente à sociedade moderna, a nossa era que é a do individualismo.

O código de honra significava dar valor absoluto ao prestígio e à estima social ou pública; nesse universo a força física, a coragem, o desprezo da morte e o desafio eram virtudes altamente valorizadas. Entre os gregos, p.e., a arte épica (as epopéias gregas, as façanhas heróicas que implicavam em combates violentos que depois eram contadas por poetas) era um modo de se buscar a imortalidade, o prestígio e a glória, para além da vida, e também um modo de estar em contato permanente com os deuses, pois a glória vinha deles8.

Assim também, nas sociedades primitivas, em numerosos casos, a violência era guerra pelo prestígio, sendo o combate e a bravura um meio de adquirir reputação. A vingança aí é um modo de pagar tributo aos deuses e aos mortos, integrados à vida dos seres vivos, e também um modo de alicerçar a rede das alianças e das gerações entre os seres vivos e entre os vivos e os mortos, uma maneira de expressar a subordinação de um indivíduo aos interesses superiores do clã ou da linhagem a que pertenciam.

É claro que em nome da honra e da vingança, e também da solidariedade do grupo, praticavam-se as maiores atrocidades (olhadas do nosso ponto de vista): escalpes, esquartejamentos, devoramentos, suplícios cruéis e sacrifícios humanos ímpares que podemos conhecer dos relatos sobre os rituais primitivos.

Há autores que mostram que a vingança, nesse universo, está para além da culpa ou responsabilidade individuais, ela tem muito mais a função de colocar em ordem o cosmos e a vida coletiva. Ou seja, a vingança faz parte de uma lógica social em que se busca através dela equilibrar o mundo, as relações entre os homens e a relação entre os homens e a natureza. Através

da violência da vingança ou da guerra, buscava-se então restabelecer a paz e a aliança com os mortos e os deuses e se regulava a vida social entre os homens de uma mesma clã.

Podemos inferir que na vida dos primitivos havia uma clara distinção do sagrado e do profano, e a importância do primeiro na regulação da vida social dos homens. Havia um sentido, uma significação dada, numa relação de totalidade com o cosmos, com a natureza para explicar até os atos mais atrozes e sanguinários.

Nessa sociedades, não conheciam a indiferença pelo outro, tampouco relações neutras como conhecemos na nossa sociedade individualista moderna: com a guerra, com a vingança, com os sacrifícios humanos, com a troca, a feitiçaria, a apercepção do mundo deles era inseparável do conflito e da violência. A violência era natural, fazia parte da socialidade dos primitivos.

Agora vou dar um salto grande na história e vou até a Idade Média, quando surge a figura do Estado-soberania. As primeiras formas de Estado não se emanciparam totalmente dessa lógica social anterior, mas a guerra, por exemplo, já passa a ter outra conotação: expansão, conquista. A instituição do Estado não consegue eliminar a honra e a vingança, tampouco a crueldade dos costumes. Aponta-se que na Idade Média, a crueldade passou de um ritual sagrado para ser uma prática bárbara. O autor Gilles Lipovetsky (o qual eu consultei para pinçar alguns dados históricos) diz que: “os registros judiciários da Baixa Idade Média confirmam ainda o lugar considerável que as violências, rixas, ferimentos, homicídios, ocupavam na vida quotidiana das cidades” (173). Vê-se que os costumes ferozes persistem da Antiguidade à Idade Média. O que muda é a relação do homem com a crueldade (do ritualístico à barbárie).

E aqui dou outro salto histórico para entrar na era moderna: no espaço de alguns séculos, as sociedades de sangue regidas pela honra, pela vingança e crueldade deram, pouco a pouco, lugar a sociedades profundamente ‘policiadas’, onde atos de violência inter-individual não pararam de diminuir, mas que o uso da força passa a ser mal vista e a crueldade e as brutalidades começam a provocar indignação e o horror. A partir do século XVIII aproximadamente, o Ocidente passa a ser governado por um processo de civilização ou de suavização dos costumes...”(Lipovetsky,176)

Surge a figura do aparelho repressivo de Estado que só pôde desempenhar o seu papel de pacificação social na medida em que também se instaurava um novo tipo de relação social, uma nova lógica social e também, uma nova

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significação da violência (p.e., horror a ela).Aliada ao Estado moderno, surge

também a economia de mercado que contribuem para fazer aparecer uma nova lógica social, uma nova significação da relação social dos homens que vai fazer com que haja, no longo do tempo, um declíneo da violência privada (pelo menos da forma como existiam nas sociedades pré-modernas, como vimos acima).

Nessa nova lógica social, prima o individualismo e não mais a solidariedade coletiva. Correndo o risco de ser redutora na definição do ser individual moderno só vou apontar aqueles pontos essenciais em que ele vai se diferenciar do homem das sociedades tradicionais: ele deixa de se definir pela relação com a natureza e o cosmos e vai se definir cada vez mais pela relação com as coisas (posse de bens, busca do dinheiro, busca do bem-estar).

A vida torna-se o valor supremo: combater até a morte em nome do prestígio social, em nome da honra e da vingança, já não significa mais nada nesse novo universo de significações sociais novas. Ou seja, o reconhecimento social dissocia-se da força, do sangue e da morte, da violência e do desafio9.

Com a ordem individualista, os códigos de sangue são desinvestidos, a violência perde toda a dignidade ou legitimidade social. Nesse contexto, o Estado policial é desejado pelos indivíduos. A multiplicação das leis penais, o aumento dos efetivos dos poderes da polícia, a vigilância sistemática das populações são efeitos inelutáveis de uma sociedade em que a violência é desvalorizada e em que simultaneamente aumenta a necessidade de segurança pública.

O Estado moderno cria nos indivíduos o medo da violência (ela deve ser punida incontestavelmente pois só ao Estado cabe o uso legítimo da força e da violência). É a esse processo, alguns historiadores chamam de processo de civilização e suavização dos costumes (N. Elias) que vai de par com a colocação de toda a sociedade sob a tutela do Estado e o desenvolvimento gradativo de desinteresse pelo Outro.

As estatísticas apontam que no Ocidente (visto como um processo geral) a partir do sec. XVIII há uma forte diminuição dos crimes de sangue, homicídios, rixas, golpes, ferimentos. Em lugar da criminalidade de violência passa a existir mais a criminalidade de fraudes (na Europa).

Resumindo: a “suavização dos costumes” que o Ocidente vai conhecer na era moderna é que ela vai se dar pela presença de alguns fatores: - a presença de um Estado forte (e também

credível);- a instituição de novas significações sociais da vida, novos ideais sociais que moviam os homens à luta mas pelo trabalho, pelo progresso social e por uma sociedade mais justa;- a existência de um mercado de consumo onde cada um buscava satisfazer suas necessidades e seus desejos pessoais à medida dos seus esforços individuais;- desenvolvimento de uma nova relação à violência: indignação por ela, não mais um meio de obtenção de prestígio, mas bem um empecilho no culto à vida.

Se hoje está claro para nós que no início da era moderna houve essa transformação na relação à violência e seu deslocamento para uma entidade única (o Estado) que resultou numa “suavização dos costumes”, está também claro que esse processo não seguiu seu caminho na linha direta para a pacificação total dos homens e da sociedade.

Se paramos de realizar duelos ou combates de sangue por injúrias desonrosas destinadas aos nossos antepassados ou nossos irmãos de tribo, se paramos de escalpelar ou esquartejar os adversários para depois devorá-los num rito canibalístico, hoje assistimos a certas violências degradantes que colocam o homem pós-moderno (que assim chamo só para diferenciar daquele homem do início da era moderna ou seja do início do processo “civilizador”) no mesmo patamar daqueles que são chamados de povos primitivos (não por serem pertencentes às organizações tradicionais, mas por serem representados como primários/arcaicos no sentido corrente).

Como já disse no início da minha fala: o sentimento de insegurança aumenta a cada dia, aqui e também nos países ditos do primeiro mundo. E estamos hoje às portas do terceiro milênio embasbacados com o terror que se propaga, tanto pela violência do Estado contra a sociedade (na pessoa de seus agentes policiais no que diz respeito à violência física e na pessoa de seus governantes no que diz respeito à violência moral/ética), quanto pela violência no intestino próprio da sociedade. No cinema, no teatro, na literatura, na música e na arte assistimos a uma profusão de cenas e expressões de violência. São nada mais que uma expressão do que ocorre na sociedade!

O autor que mencionei (Lipovetsky), fala do desenvolvimento paralelo à sociedade individualista (processo de personalização), a emergência de um estilo hard de violência (violência dura). É a violência sem fim, nem sentido, apenas uma violência impulsiva e nervosa. Sem querer fazer apologia aos costumes

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sanguinários dos primitivos, lá eles se davam toda uma significação social da violência que estava de um certo modo associada à ordem social, ao equilíbrio da comunidade, à defesa dos seus próprios entes.

E a violência de hoje, visa o quê? O que visa o crime da violência sexual, por exemplo, quando no mundo inteiro assiste-se à prostituição de crianças e adolescentes cada vez mais jovens? A violência criminosa estende-se para faixas etárias cada vez mais jovens: aqui, nos USA ou na França a escalada estatística envolvendo jovens na criminalidade violenta tem aumentado nos últimos anos. Que sentido tem para os jovens que se agrupam para práticas de vandalismo (uma das formas contemporâneas da violência) onde nessa raiva hard não se vislumbra um sinal de protesto simbólico, senão o fim do respeito pelas coisas e pelos seres humanos, senão a indiferença pelo real, vazio de sentido? É suficiente constatar que a delinquência juvenil está mais violenta hoje? Mas por que ela está mais violenta? E não se trata somente dos jovens das camadas submetidas ao processo de exclusão social. Recentemente, nosso país assistiu à barbárie dos jovens da classe A em Brasília. E o que dizer então da violência policial que por anos a fio acomete de pavor a população brasileira com sua chacinas, blitz-torturas, que permanecem impunes em nome da legitimidade da violência do Estado?

Eu diria como o autor (Lipovetsky): a violência hard de hoje, desesperada, sem projeto, sem consistência no plano simbólico (tanto por parte do Estado como da sociedade), incarna a imagem de um tempo que os indivíduos pós-modernos sentem como sem futuro e onde a maior parte das pessoas valorizam só o “aqui e agora’ e importam-se por ‘tudo’, sem no entanto dar valor a nada.

Para finalizar, quero só apontar alguns aspectos da violência na sociedade brasileira10:1- vivemos num país onde a cidadania não se consolidou como valor e onde os mecanismos “democráticos” não contemplam uma ampla parcela da população;2- o nosso sistema cultural encontra-se cada vez esvaída de conteúdos, sobretudo éticos, tão fundamentais para o alicerçamento das relações sociais;3- o país não escapa às grandes e aceleradas transformações, em todas as esferas da vida humana, que caracterizam o mundo contemporâneo e o processo de modernização vem afetando seriamente o sistema de valores e relações sociais;4- o individualismo sobrepuja as formas de sociabilidade tradicionais no espaço cotidiano da

vida urbana;5- tornam-se cada vez mais substantivas (substancialização) de novas formas de criminalidade, como o tráfico de drogas, seqüestros, gangues de jovens (adesão, cada vez maior, de jovens à transgressão, independentemente da camada social);6- incapacidade do poder público em administrar e atender às necessidades básicas da população pobre, que cresce aceleradamente;7- descrença da população no poder público, sobretudo no campo da segurança pública onde sedimenta a idéia de participação da polícia em todos os tipos de crime e onde a população de baixa renda é a vítima preferencial dos diversos tipos de banditismo, que vai do traficante ao policial (truculência e arbitrariedade);8- clima de insegurança e sentimento generalizado de injustiça social (impunidade dos criminosos e “ladrões de gravatas”, ineficácia do Judiciário).

Encerro esta fala dizendo como o “velho” G. Velho: “a consciência da gravidade dessa situação pode ajudar, através da mobilização e criatividade, a mudar e reverter os aspectos mais cruéis e dramáticos” presentes na nossa sociedade, (e acrescento) começando a olhar mais perto de nós aquilo que se passa em nossa própria localidade que não está, de forma alguma, distante de todos esses problemas, ao contrário, vivenciando talvez de maneira mais aguda e sofrida, por uma grande parte da população, pois a pobreza e a miséria e o descaso dos governantes daqui, a impunidade dos criminosos, a violência policial, a proliferação de jovens de gangues com práticas de vandalismos (violência juvenil e envolvimento com drogas), o crescimento da exploração no trabalho de crianças e adolescentes, bem como a sua exploração sexual, são apenas mestres de figura da violência urbana em Natal, dentre tantas outras...

(Texto produzido para o SBPC 98)

1 É o que denomina de violência estilizada (kitsch): tendência a transformar fatos em patologias sociais e/ou individuais e apresentá-las de forma estilizada. Nesse tipo de mecanismo, não se faz diferença entre representação e fato, entre imagem e realidade; a aparência e a realidade são confundidas (Revistas Imagens - Violência)2 Com isso, a realidade torna-se hiper-real e parece teorizar-se por si mesma (auto-teorização da realidade que trivializa e banaliza a realidade... (Boaventura)3 A onipresença da imagem traz riscos de subversão da relação ao real e ao imaginário, faz surgir um outro real, imediato e imaterial, fugaz e incerto, por ser um portador de um grande número de possíveis e leva a

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uma outra experiência do tempo, do espaço e do objeto (Balandier)

4 Na 6a. feira passada - 9/05/97, assistindo o Globo Repórter “As faces da violência” pudemos ver a fala de uma senhora da classe média que diz que a violência que antes ela via pela TV, hoje está dentro da sua própria casa, na pessoa de seu filho envolvido com a droga. 5 E. Enriquez, Figures du Maître, 273/4,6 “Durante milênios, através de formações sociais bem distintas, a violência e a guerra foram valores (grifo do autor) dominantes, a crueldade manteve-se como legitimidade tal que pôde funcionar como “ingrediente” dos prazeres mais requintados”(Lipovetsky, A era do vazio-ensaio sobre o individualismo contemporâneo,161)7 Ao longo de todos os milênios que viram as sociedades funcionarem de modo selvagem, a violência dos homens, longe de explicar a partir de considerações utilitárias, ideológicas ou econômicas, organizou-se em função de dois códigos estritamente corolários um do outro, a honra e a vingança, cuja significação exata temos dificuldade em compreender, de tal modo foram eliminados inexoravelmente da lógica do mundo moderno (Lipovetsky, 162)8 Não se deve comparar a arte épica e a bravura dos

guerreiros primitivos. Na Ilíada, na Odisséia há um modelo de comportamento buscado que era o da individualização (noção de indivíduo), enquanto nos primitivos havia o primado do conjunto coletivo (apenas uma nota de rappel para outros textos mais elaborados!)9 “O indivíduo atomizado se empenha cada vez menos em discussões, rixas, confrontos sangrentos, não por ser mais auto-controlado, masi disciplinado do que os seus avós, mas porque a violência já não tem um sentido social, já não é meio de afirmação e de reconhecimento do indivíduo num tempo em que a sacralização investiu a longevidade, a poupança, o trabalho, a prudência e a medida” (Lipo, 180/1). Nessa nova significação das relações sociais, o outro não tem o mesmo valor que nas sociedades tradicionais. “A uma moral da honra, fonte de duelos, de belicosidade permanente e sangrenta, substituiu-se uma moral da utilidade própria, da prudência, em que o encontro do homem com o homem se faz essencialmente sob o signo da indiferença” (180)10 Baseamo-nos (embora tenhamos efetivado, alguns adendos que resultam já de nossas próprias observações de campo), em grande parte, nas análises de G. Velho, Violência, reciprocidade e desigualdade: uma perspectiva antropológica, in Cidadania e Violência, org. G. Velho eM. Alvito, RJ, Ed. UFRJ/Ed. FGV, 1996.