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1 Introdução No atual cenário de integração sul-americana 1 , compreender a natureza das relações existentes entre os países desse subcontinente é, evidentemente, um tema de grande relevância, e destacar alguns desses casos poderá contribuir para uma melhor visão desse processo. Os diversos eventos em curso demonstrarão que o sucesso ou fracasso da integração regional dependerá, em grande parte, das relações de vizinhança entre os países que têm sido seus principais protagonistas. É sob essa perspectiva que este projeto examinará a evolução e a situação atual das relações entre Brasil e Bolívia. Existem alguns fatores históricos e contemporâneos expressivos que nos fazem dedicar especial atenção às relações entre eles. Primeiramente é importante destacar os quase dois séculos de relações históricas, que sempre foram marcados por eventos que refletiram situações de estabilidade e instabilidade entre os vizinhos. Entre os dois países, temos a maior fronteira terrestre nas relações de vizinhança do Brasil, com uma extensão de 3.423,20 km, dividida em três partes: porção Norte, que começa na foz do Yaverija, ponto tripartite Brasil-Bolívia-Peru, até o rio Madeira (Estados do Acre e Rondônia, no Brasil, e Departamento de Pando, na Bolívia); porção Central, que se inicia na região dos rios Madeira, Mamoré e Guaporé (Estados de Rondônia e Mato Grosso, no Brasil, e Departamentos de Beni e Santa Cruz, na Bolívia); e, finalmente, porção Sul: desde a foz do rio Verde (no rio Guaporé) até a Baia Negra (no rio Paraguai), ponto tripartite Brasil-Bolívia-Paraguai (Estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, no Brasil, e Departamento de Santa Cruz, na Bolívia). Como veremos adiante, nessa grande extensão fronteiriça, ocorreu, na primeira metade do século XX, a integração física desses territórios pela construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, que liga a região central do estado de São Paulo, a partir de Bauru, até a fronteira com a Bolívia em Corumbá, Mato Grosso do Sul, fazendo integração com a rede ferroviária boliviana até Santa Cruz de la Sierra. Uma outra experiência de interligação 1 O processo de integração sul-americana vem sendo estudado por vários pesquisadores, como exemplo, pode-se citar os trabalhos publicados pela Fundação Alexandre Gusmão. Ainda sobre esse processo, ver Costa, Wanderley Messias. “O Brasil e a América do Sul: cenários geopolíticos e os desafios da integração”. In: Rizzo, Eliézer (org). Segurança e Defesa Nacional: da Competição à Cooperação. São Paulo: Memorial da América Latina, 2007.

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Introdução

No atual cenário de integração sul-americana1, compreender a natureza das

relações existentes entre os países desse subcontinente é, evidentemente, um

tema de grande relevância, e destacar alguns desses casos poderá contribuir

para uma melhor visão desse processo. Os diversos eventos em curso

demonstrarão que o sucesso ou fracasso da integração regional dependerá, em

grande parte, das relações de vizinhança entre os países que têm sido seus

principais protagonistas. É sob essa perspectiva que este projeto examinará a

evolução e a situação atual das relações entre Brasil e Bolívia. Existem alguns

fatores históricos e contemporâneos expressivos que nos fazem dedicar especial

atenção às relações entre eles. Primeiramente é importante destacar os quase

dois séculos de relações históricas, que sempre foram marcados por eventos que

refletiram situações de estabilidade e instabilidade entre os vizinhos.

Entre os dois países, temos a maior fronteira terrestre nas relações de

vizinhança do Brasil, com uma extensão de 3.423,20 km, dividida em três partes:

porção Norte, que começa na foz do Yaverija, ponto tripartite Brasil-Bolívia-Peru,

até o rio Madeira (Estados do Acre e Rondônia, no Brasil, e Departamento de

Pando, na Bolívia); porção Central, que se inicia na região dos rios Madeira,

Mamoré e Guaporé (Estados de Rondônia e Mato Grosso, no Brasil, e

Departamentos de Beni e Santa Cruz, na Bolívia); e, finalmente, porção Sul:

desde a foz do rio Verde (no rio Guaporé) até a Baia Negra (no rio Paraguai),

ponto tripartite Brasil-Bolívia-Paraguai (Estados de Mato Grosso e Mato Grosso

do Sul, no Brasil, e Departamento de Santa Cruz, na Bolívia).

Como veremos adiante, nessa grande extensão fronteiriça, ocorreu, na

primeira metade do século XX, a integração física desses territórios pela

construção da estrada de ferro Noroeste do Brasil, que liga a região central do

estado de São Paulo, a partir de Bauru, até a fronteira com a Bolívia em

Corumbá, Mato Grosso do Sul, fazendo integração com a rede ferroviária

boliviana até Santa Cruz de la Sierra. Uma outra experiência de interligação

1 O processo de integração sul-americana vem sendo estudado por vários pesquisadores, como exemplo, pode-se citar os trabalhos publicados pela Fundação Alexandre Gusmão. Ainda sobre esse processo, ver Costa, Wanderley Messias. “O Brasil e a América do Sul: cenários geopolíticos e os desafios da integração”. In: Rizzo, Eliézer (org). Segurança e Defesa Nacional: da Competição à Cooperação. São Paulo: Memorial da América Latina, 2007.

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ferroviária foi a construção, também no início do século XX, da ferrovia Madeira –

Mamoré que deveria ajudar a Bolívia no escoamento de sua produção de

borracha através dos rios Madeira e Solimões.

Esta breve descrição da antiga integração física indica a relativa porosidade

existente nessa zona de fronteira, que se acentuou ao longo do século XX, com

as primeiras migrações de seringueiros brasileiros para o território boliviano e de

bolivianos para o Brasil.

Outro aspecto relevante neste estudo são os acontecimentos históricos

envolvendo os dois países que resultaram, no início do século XX, nas

negociações envolvendo a aquisição do território do Acre pelo governo brasileiro,

um fato que, ao lado de outros como a Guerra do Pacífico, até hoje evoca

manifestações de desagrado por parte dos bolivianos.

Com vista no cenário atual, é importante compreender essas relações, uma

vez que a Bolívia ocupa uma posição geopolítica de destaque no subcontinente

americano2 e estratégica na logística sul-americana, conforme já apontava

Travassos em seu livro “A projeção continental do Brasil”, publicado em 1935.

Atualmente, apesar da Bolívia não ser um país membro pleno do Mercosul,

aparecendo apenas como país associado, a intensificação dessas relações de

vizinhança pode ser considerada uma perspectiva positiva para ambos.

Neste contexto, o presente trabalho tem por objetivo destacar as relações,

com predomínio das conflituosas, que se processam na zona de fronteira e em

outras regiões, cujos desdobramentos têm sido observados em várias

dimensões, algumas das quais com possibilidade até de comprometer não

apenas as relações bilaterais, mas também a integração regional como um todo.

Abaixo se encontram relacionados os principais acontecimentos atuais

envolvendo esses dois países.

• Nacionalização, por parte do governo boliviano, das reservas e

atividades de exploração e refino de petróleo, anteriormente

desenvolvidas pela Petrobrás, que negociam novos termos da sua 2 Sob este aspecto destaca-se a posição relevante da Bolívia (ao lado do Paraguai) para a rede de circulação terrestre sul-americana, sobretudo, no que se refere aos corredores bi-oceânicos. Essa posição está refletida nos diversos projetos integrantes do IIRSA – Iniciativa de Integração da Infra-estrutura da América do Sul –, que pretende implantar uma logística para toda a região, envolvendo todos os modais de transporte.

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presença em meio aos impactos da decisão boliviana, a qual culminou

na ocupação das instalações da empresa por tropas do exército;

• Os conflitos na Zona de Fronteira, localizados ao sul, decorrentes da

forte presença de fazendeiros brasileiros – em geral sojicultores – no

Departamento de Santa Cruz3;

• O conflito localizado ao Norte da Zona de Fronteira que está

relacionado à intensificação da expansão de agricultores e pecuaristas

brasileiros na área da Tríplice Fronteira (Brasil-Bolívia-Peru), um fluxo

que parte principalmente de Brasiléia e Assis Brasil, no estado do Acre,

para a direção de Cobija (Bolívia) e Pucalpa/Ibéria (Peru).

Frente ao que foi colocado nesta introdução, este estudo busca compreender

a natureza, a estrutura e a dinâmica das relações entre o Brasil e a Bolívia, com

ênfase nas relações de vizinhança atuais. Numa perspectiva, especificamente,

da geografia política, da geopolítica e da geografia regional, essas relações

deverão ser territorializadas tomando por base as porções do território de ambos

os países que integram a extensa e larga zona de fronteira e suas projeções em

cada país.

1. Breve histórico da Bolívia

A reflexão que buscamos desenvolver neste trabalho exige recuperar um

pouco da história do território boliviano, sendo que este resgate recairá sobre sua

formação, seus aspectos políticos, sociais, econômicos.

Partimos do pressuposto de que a história desse país se entrelaça em vários

momentos com a do Brasil, dando a ambos a semente da integração e, neste

sentido, fica justificada a análise da formação sócio-espacial desse território.

1.1. Sociedades pré-colombianas

Em 1532, os espanhóis dominaram os Incas, ocupando uma área que

corresponderia hoje à porção sul da Colômbia até o norte da Argentina e do

3 Existe a denúncia, oriunda de alguns setores do governo boliviano, de que os sojicultores que atuam na região de Santa Cruz estariam envolvidos politicamente nos movimentos separatistas, também conhecidos como autonomistas, desse e dos demais departamentos das terras baixas da banda oriental do país.

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Chile. A junção dessas terras caracterizava os limites do Império Inca, que era

chamado de Tahuantinsuyu.

As sociedades que antecederam aos Incas foram: em 1400 a.C., os

Chiripas, sociedade que se caracteriza como a mais antiga das culturas

aldeãs; em 400 a.C., surgiu a cultura Pulcara, que se estabeleceu, assim

como os Chiripas, nos arredores do Lago Titicaca. Por volta de 1200 a.C

ainda existiram os Wankarani, ocupando as regiões que hoje abrigam Oruro e

Potosi. Foi nessa sociedade que surgiram as bases dos ayllus - comunidade

camponesa ligada por laços de parentesco, existentes ainda hoje no território

boliviano.

A civilização Tiahuanaco, última sociedade antes do império Inca,

surgiu cerca de 1000 a.C. Sua expansão pelo território andino foi espantosa,

conseguiram homogeneidade cultural, religiosa e econômica, feitos que o

mundo andino somente iria reviver durante o Império Inca4. O declínio de

Tiahuanaco, cerca de 950 d.C., foi determinado por alterações climáticas

profundas na região da bacia do Titicaca. Contudo a maior herança deixada

por esta civilização foi a língua, já que alguns grupos étnicos falavam o “proto-

aymará”, embrião da língua falada na Bolívia até hoje por cerca de 25% da

população.

Surgindo na região de Cuzco, em meados do século XII, os incas, em

pouco mais de um século, construíram um gigantesco império, o

Tahuantinsuyu (ou o Império das Quatro Regiões)5, que, estendendo-se do

sul da Colômbia ao norte do Chile, abrangia população total estimada em

doze milhões de pessoas, compreendendo mais de dez grupos étnicos

distintos. Os imperadores que governaram esse vasto império apresentavam

grande tolerância religiosa e cultural em relação às etnias que compunham o

Tahuantinsuyu. Procuraram não proibir os cultos religiosos e as línguas

regionais, mas sim absorvê-los e incorporá-los sempre que possível aos 4 Para maiores informações sobre civilizações pré-colombianas, ver Camargo, A. J. C. J de. Bolívia - A Criação de um Novo País a Ascensão do Poder Político Autóctone das Civilizações pré-Colombianas a Evo Morales, Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2006 - 404p. 5 O termo “quéchua suyu” significa parte ou quarta parte. A Capital do Império Inca, Cuzco e, por extensão, o Império como um todo, foi dividido, para fins administrativos e rituais, em quatru suyus. Demarcadas a partir da direção noroeste tomada de Cuzco, em sentido horário, as quatro partes eram: Hinchaysuyu, Antisuyu, Collasuyu e Cuntisuyu.

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costumes incas. Como exemplo disto, podemos citar o uso da língua

quéchua, própria do império inca, coexistindo com a aymará6. O quéchua é

atualmente falado por 35% da população boliviana.

O império inca teve uma vida curta. Na primeira metade do século XVI,

inicia-se a dominação desta porção dos Andes pelos espanhóis, que já

tinham dominado o império Asteca.

1.2. A Colônia, a República e a formação da elite boliviana

O fim do Império Inca marca, automaticamente, o início de outra fase

da história boliviana, o período colonial. As primeiras ações dos espanhóis em

território inca foram de reprimir as idolatrias indígenas, as práticas religiosas e

coibir manifestações religiosas e sociais pré-hispânicas, na tentativa de

destruir a religiosidade, as crenças e os cultos, além de matar todos os líderes

do antigo império.

Esses colonizadores ainda tinham a missão de introduzir na

sociedade formas de servidão, buscando se apropriar da mão-de-obra

indígena. Para melhor aproveitamento desta mão-de-obra, os espanhóis

construíram as reducciones – vilas construídas segundo um modelo

arquitetônico castelhano com o intuito de exercer um controle sócio-religioso

das comunidades indígenas. Os índios eram destinados a trabalhos de

mineração da prata, numa relação que era servil ou remunerada.

O território que hoje conhecemos por Bolívia recebeu, na época da

colônia, o nome de Audiência de Charcas. A região possuía um grande

vínculo geográfico, cultural e histórico com o Vice Reino de Lima, atual Peru,

país com quem ainda hoje apresenta fortes relações, sobretudo culturais. Sua

independência foi proclamada em 06 de agosto de 1825, passando a se

chamar Bolívia, em homenagem a Simon Bolívar, figura central no processo

de independência.

6 O quéchua foi amplamente utilizado como língua de evangelização das populações do antigo Tahuantinsuyu. A partir do Vice-reinado de Francisco de Toledo, iniciou-se a publicação em quéchua de catecismos e de algumas versões dos breviários de então, compilados em latim.

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A sociedade republicana continuou, até o século XX, a explorar os

indígenas. Mesmo com o fim da cobrança de impostos nas minas, estes

recaíram sobre as populações que ocupavam as cidades e o campo. Em

1827, a população era formada por 78% de índios pagadores de impostos

para a elite branca republicana e detentora do poder político.

A ocupação das terras bolivianas também demonstra a força da elite

branca. Segundo aponta Camargo, existia na Bolívia do século XIX a crença

de que o índio era de uma etnia que tenderia ao desaparecimento natural. Tal

concepção justificava-se pelo comportamento por eles adotado. A elite

observava os inúmeros casos de alcoolismo, incesto e outras mazelas do

cotidiano indígena7. Neste sentido, entrou em vigor a chamada Lei da Ex-

vinculación em 1880, que severamente restringia a propriedade comunitária

rural. O novo dispositivo legal criou, pela primeira vez, mercado de compra e

venda de terras no altiplano boliviano. Suas conseqüências sociais foram

graduais, mas não por isso menos brutais. Como nos afirma Carlos Mesa, “o

sistema comunitário rural foi profundamente desarticulado, sendo a extensão

das terras comunitárias reduzida a cerca de 25% de sua área original, em

lapso de aproximadamente meio século” (Mesa apud Camargo, 2006, 125). O

novo arcabouço legal do campo expandiu drasticamente o contingente de

colonos semi-escravizados. A nova legislação foi responsável pela

transferência de riquezas de uma classe, já desfavorecida, para outra,

hegemônica, ou seja, os índios viram-se empurrados ainda mais em direção à

indigência, ao passo que parte das classes urbanas, beneficiárias dessas

medidas, capitalizou-se com recursos alheios.

A Guerra do Chaco, entre Paraguai e Bolívia, que durou de 1932 a

1935, foi, sem dúvida, uma mudança no contexto social e político. Marcou o

início da consciência política nacional e iniciou uma fase de transição que

levaria à Revolução de 1952. Como coloca Camargo, “a Guerra marcou

também o encontro de duas geografias: o Altiplano e o Oriente, com todas

suas categorias de diferença e desigualdades regionais” (Camargo, 2006,

139). O fato de perder a guerra gerou uma grande crise política no país, na

7 Ver Camargo, A. J. C. J de. Bolívia - A Criação de um Novo País a Ascensão do Poder Político Autóctone das Civilizações pré-Colombianas a Evo Morales.

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medida em que ficava cada vez mais evidente a negligencia estatal frente às

questões nacionais. Desta forma, o cenário político boliviano passou a ser

marcado pelas duas ideologias dominantes na época, o marxismo e o

fascismo. Para não perder o poder, a oligarquia assumiu um discurso

tipicamente populista; e, na esteira do intervencionismo do Estado e contra o

pensamento liberal, é criada a empresa estatal Yacimientos Petrolíferos

Fiscales Bolivianos (YPFB), em 1936.

Após essa guerra, surgiu o movimento indianista, como forma de

atuação política que, através do ciclo de manifestações que datam de 1910 a

1930, conseguiu grandes conquistas, como o fim do pongo, ou seja, da semi-

escravidão do índio.

1.3. A Revolução de 1952

A revolução de 1952 teve importantes aspectos norteadores,

sobretudo na redefinição política, econômica e cultural do povo boliviano.

Nascidas do esgotamento da república oligárquica e apoiadas em várias

classes e setores – burguesia comercial, intelectuais, operários mineiros e

camponeses –, duas importantes medidas foram expoentes nesta revolução:

o início do voto universal, possibilitando a inclusão política de diversos grupos

sociais e a centralização dos instrumentos decisórios e administrativos do

Estado; e a reforma do sistema educacional, que também se configurou como

prioridade, sobretudo pela criação de inúmeras escolas rurais. No âmbito da

economia, surge o Estado centralizador, que passa a gerenciar as indústrias

de mineração e torna-se responsável por cerca de 70% do PIB (Produto

Interno Bruto) nacional, diversifica a produção, investindo na agroindústria e

na agropecuária, na porção oriental do país.

Outro importante produto da Revolução foi a reforma agrária que

erradicou o latifúndio predominante na região do Altiplano e nos vales de

Cochabamba.

“Punha-se assim ponto final ao sistema de exploração econômica

semifeudal. Concebida em termos de propriedade individual e privada, a

reforma teve como um de seus elementos fundamentais a extinção do

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mercado de terras, já que, com o objetivo de assegurar que os camponeses

não perdessem as propriedades recém-outorgadas, vedava-lhes a venda,

bem como a utilização como garantias para empréstimos.” (Camargo, 2006,

151)

Vale destacar que em outras regiões rurais da Bolívia, como em

extensas áreas dos departamentos de Santa Cruz e Chuquisaca, não ocorreu

reforma agrária, predominando propriedades rurais de grande extensão. No

contexto da reforma, a oligarquia rural de Santa Cruz transformou-se em

burguesia agrária, atuando como empresas agrícolas, cujas propriedades –

que passaram a ser favorecidas por investimentos e por subsídios fiscais –

tornaram-nas mais rentáveis.

A Revolução de 1952 acabou possibilitando um grande processo de

desenvolvimento da região leste do país, em especial do departamento de

Santa Cruz, o que acarretou o deslocamento do eixo de poder econômico do

ocidente andino ao oriente cruceño. Tal processo foi naturalmente acelerado

tanto pela crescente exploração e aproveitamento do gás natural – cujas

reservas estão localizadas predominantemente naquela região – quanto pelo

declínio da importância relativa da indústria de mineração na matriz

econômica nacional.

As marcas de revolução de 1952 logo se apagaram, pois em 1964

iniciou-se o período de Ditadura Militar, que durou até 1982. Após este

período, emerge Gonzalo Sanchez de Lozada no cenário político boliviano

num momento em que a política e a economia encontravam-se

desmoralizadas devido à hiperinflação, associadas ao inchaço urbano

derivado do êxodo rural causado pela contínua marginalização política e

econômica da população rural. O país também apresentava ausência de

mercado interno capaz de integrar produtores e consumidores, além da

rarefação ou ausência do poder do Estado em largas faixas do território; e,

finalmente, clientelismo e fragmentação na ordem política. Junto a este

quadro, a Bolívia ainda apresentava uma altíssima dependência crônica do

país aos organismos financeiros internacionais como FMI (Fundo Monetário

Internacional e Banco Mundial.

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1.4. A abertura da Bolívia ao neoliberalismo

Gonzalo Sanchez de Lozada tinha plena noção das fragilidades

bolivianas e apresentou um grande projeto de reforma, à luz de suas

concepções neoliberais. Suas ações pautaram-se em três importantes pilares:

“a capitalização de empresas estatais, que encerraria o ciclo do Estado-

empresário, herança econômica da Revolução de 1952; a descentralização

administrativa e a ampliação da capilaridade do Estado, mediante a Lei de

Participação Popular; e, por fim, a Reforma Educativa (cuja implementação

esteve a cargo do Vice-presidente).” (Camargo, 2006, 183)

Esteve duas vezes no poder como presidente da república. Seu

primeiro mandato foi de 1993 a 1997. Seu governo foi, sem dúvida, marcado

por reformas neoliberais, também praticadas posteriormente por outros

presidentes, contudo fica claro que o povo boliviano não aprovou plenamente

essas reformas, até por já verem com maus olhos a grande dependência em

relação aos organismos financeiros internacionais. Além disso, tanto esse

governo como o de seu sucessor, Hugo Banzer, foram marcados pela

retomada do nacionalismo e manifestações populares contra investimentos

estrangeiros em áreas estratégicas, como gás, água e recursos minerais em

geral. Os maiores expoentes desses movimentos foram a “Guerra do Gás” e a

“Guerra da Água”, ambos contra as pretendidas privatizações dos recursos

naturais, entendidos pela população como recurso boliviano que deve ser

corretamente explorado pelo povo e não entregue às empresas estrangeiras.

O segundo governo de Lozada não chegou ao fim e, em 2003, frente

a uma grave crise política, ele renunciou. Esta crise estava intimamente ligada

à “Guerra del Gas” (alusão à Guerra del Água de 2000, em Cochabamba)

acima citada. Neste episódio, o que estava em discussão era o projeto de

venda aos Estados Unidos de gás natural em forma liquefeita (GLP).

Somente o fato de exportar gás aos EUA já causava grandes

descontentamentos entre os bolivianos e, aliado a isso, a intenção do

presidente era de exportar via Chile, país para o qual a Bolívia perdera sua

saída para o Pacífico (na guerra de mesmo nome) no século XIX. Este fato

gera, ainda hoje, grande desconforto e fortes sentimentos antichilenos por

parte do povo.

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Desta forma, podemos dizer que Gonzalo Sanchez de Lozada iniciou

e finalizou o ciclo econômico neoliberal, dando abertura ao momento atual

vivido pela Bolívia.

1.5. A Bolívia hoje

No plano da política externa, outras questões que marcaram a Bolívia

desde 1985 foram a do narcotráfico e a da forte pressão norte americana para

coibir as plantações de coca. As relações entre esses dois países foram

muitas vezes chamadas de “cocalização”. O processo permitiu uma forte

intervenção militar, econômica e política por parte dos Estados Unidos, que

deram inúmeros incentivos financeiros às regiões tradicionalmente produtoras

da folha de coca, como o Chapare (zona tropical úmida de Cochabamba),

para melhoria das condições de vida, investindo pesadamente em

eletrificação rural, construção de estradas e investimentos agropecuários.

Contudo é necessário destacar que a plantação de coca tem para os

bolivianos uma raiz cultural, fez parte de rituais religiosos dos incas e é

amplamente utilizada pelas comunidades indígenas tradicionais como

anestésico, na forma de chás com poder calmante. Desta forma, sob o ponto

de vista cultural, o extermínio das plantações de coca é muito mal recebido

pelos bolivianos.

Os produtores de coca já se configuram como um movimento

politicamente organizado, sendo que a principal expressão desta organização

é o MAS – Movimento ao Socialismo –, partido político formado para defender

os interesses desses atores nos centros de poder. O MAS conseguiu sua

máxima visibilidade na cena política boliviana nas eleições presidenciais de

2005, elegendo Evo Morales Aima, índio aymará, produtor de coca da região

do Chapare e filiado do partido. Antes de ser presidente, ele já atuara como

dirigente sindical e deputado.

Basicamente, as idéias norteadoras, tanto do MAS quanto de Evo

Morales, são o anti-imperialismo e a retomada do Estado como o protagonista

em setores estratégicos da economia, como hidrocarbonetos e gás natural.

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Na verdade, como já citado anteriormente, acentua-se nos dias de

hoje uma tendência antiga de se configurarem “duas Bolívias”. Uma branca,

ocidentalizada, cuja língua é o castelhano e a minoria da população total; e

outra indígena, tradicional, que mantém viva suas culturas e línguas –

quéchua e aymará – e que representa a maioria do povo boliviano. É esta

expressiva parcela da população que decidiu romper a ordem imposta pelos

brancos há séculos e iniciou as mudanças de rumos políticos, escolhendo

para presidente em 2005, Evo Morales.

Em contrapartida a essa Bolívia – majoritariamente indígena e dos

altiplanos, que se articula, protesta e que também elege o novo presidente –,

existe a Bolívia branca, liderada por uma casta de grandes empresários,

politicamente conservadora e que está geograficamente distribuída nos

Departamentos de Santa Cruz, Tarija e Beni, onde atuam politicamente

através dos comitês cívicos e câmaras empresariais criadas para discutir e se

mobilizar no cenário político nacional e regional. O setor dos agroindustriais

são os que mais se utilizam destes mecanismos, até pelo fato de serem

beneficiados pelo recente ciclo de expansão das exportações de soja e

derivados, bem como pelo crescimento da agricultura algodoeira e da

pecuária bovina.

Esta região da elite boliviana, marcada pela presença de sojicultores

e agroindustriais em geral, é chamada de “Media Luna” e também é ocupada

por minorias indígenas, sobretudo da etnia guarani, que tradicionalmente são

índios das terras baixas, que vêm reivindicando a redistribuição dessas terras,

num movimento muito semelhante ao brasileiro, o Movimiento Sin Tierra

(MST).

O grande descontentamento frente ao momento político atual,

iniciado desde a queda do Presidente Sanchez de Lozada, acompanhado de

grandes manifestações sociais indígenas em La Paz e emergência de Evo

Morales à presidência, seguido pela nova proposta de constituição política do

Estado, vem gerando na elite conservadora da “Media Luna” um forte desejo

separatista representado pelo movimento de autonomia e autodeterminação

“nación camba” de Santa Cruz.

Segundo bem explicita Camargo, para a direita empresarial:

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“As duas Bolívias são agora a Bolívia que trabalha conformada pelo

empresariado e pelos setores ‘modernos’ do país e a outra Bolívia, a

andina, a que protesta e bloqueia estradas Metáfora com distintos

significados para os dois pólos do espectro político, a dicotomia das duas

Bolívias resume, porém, fenômeno sócio-econômico concreto: a

transferência, a partir, sobretudo dos anos oitenta, do eixo econômico do

país do ocidente ao oriente, materializada por um lado pelo declínio da

indústria de mineração, associada à Bolívia andina, e, por outro, pelo

concomitante desenvolvimento da região oriental do país.” (Camargo, 2006,

222)

O crescimento econômico desta porção oriental do território boliviano

é, sem dúvida, inegável, pois um terço do PIB boliviano advém desta região.

Santa Cruz, por exemplo, encarrega-se de 25% da arrecadação tributária

nacional e de 60% das exportações. Tais estatísticas conferem ao oriente

boliviano a possibilidade de forte articulação política.

A Bolívia encontra-se já há algum tempo mergulhada numa profunda

crise econômica. Seu extremo foi em 2003, no governo de Sanchez de

Lozada, com a implantação de pacote de medidas fiscais impostas pelo FMI.

O déficit fiscal em 2004 chegou a representar cerca de 6% do PIB e os novos

empréstimos contraídos foram para o pagamento de salários e bonificações

na administração pública, bem como de juros e do serviço de amortização da

dívida. Um dos agentes causadores desse déficit, em 2004, foi a medida de

congelamento dos preços do diesel e da gasolina para não comprometer a

produção em Santa Cruz. Assim, a classe dos agroindustriais foi mais uma

vez privilegiada pelas políticas praticadas pelo governo. Uma possível forma

de resolver o dilema econômico é o aumento das exportações de gás. O setor

bancário também se retraiu neste processo, que demonstrou um exponencial

crescimento da informalidade econômica no país.

O gás natural da Bolívia configura-se como um grande impasse para

o governo, pois tecnicamente este país não apresenta condições de atuar no

ciclo produtivo que o envolve mesmo com a reativação e os inúmeros

investimentos na Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos, YFPB. Em

contrapartida, a política do governo atual visa a resgatar o Estado-empresário

e a retirar das mãos de investidores estrangeiros a atribuição de investir em

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setores estratégicos, como o gás natural e os hidrocarbonetos. Neste sentido,

a nacionalização das reservas de gás e a retirada de capitais externos da

cadeia produtiva foram medidas que corroboraram com as políticas praticadas

pelo governo. As atuais manchetes de jornal sinalizam para o não

cumprimento dos termos originais dos contratos firmados entre a Bolívia, o

Brasil e a Argentina, o que evidencia uma crise de transição na gestão desses

recursos pelo governo.

Além do gás natural, outros temas expressam grande efervescência

no cenário político interno e externo. É o caso da proposta da nova

“Constitución Politica del Estado”, que gerou no oriente boliviano profundo

descontentamento, sobretudo pelos aspectos vinculados à propriedade

fundiária, uma vez que a idéia do governo é proibir a venda e ocupação das

terras na chamada zona de fronteira, local onde se concentram grandes

empresários da agroindústria, inclusive brasileiros que investem pesadamente

nesta região. Outro ponto de desavença reside na proposta de reforma

agrária com o intuito de beneficiar os índios das terras baixas. Esse

desconforto acentua cada vez mais a busca por autonomia dos

departamentos que compõem a “meia lua”.

1.6. A Bolívia e seus vizinhos

Com derrota na Guerra do Pacífico (1879 – 1883) para o Chile e

conseqüente perda de sua saída para o mar, a Bolívia viu-se cercada por

cinco países, sendo dois deles potências regionais (Brasil e Argentina). As

relações com esses países são, em geral, pacíficas, à exceção do Chile, país

que ainda gera sentimentos amargos no povo boliviano.

Com relação ao Peru, além de uma fronteira extensa, também divide

com este o lago Titicaca, que é para ambos os países uma importante reserva

de água. Esta fronteira apresenta grande porosidade devido ao altíssimo fluxo

de pessoas e forte herança cultural advinda do processo de colonização.

Como já foi mencionado, o país conta também com fronteira de mais

de 3.400km com o Brasil, que no passado funcionou como contenção da

expansão lusitana, e hoje vem intensificar o processo de integração

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binacional física e econômica, com o desenvolvimento de projetos, como o

gasoduto e os eixos rodoviários, que permitem a acessibilidade dos bolivianos

ao território brasileiro, além das questões energéticas que exigem da Bolívia

boas relações diplomáticas com o Brasil.

Na fronteira com o Paraguai, a região do Chaco é despovoada, mas

abriga em seu subsolo importantes recursos energéticos, como petróleo,

todavia cabe destacar que este recurso ainda é importado de outros países.

Na porção sul do território boliviano, encontra-se a fronteira com a

Argentina, região que guarda inúmeras semelhanças culturais, como as

tradições indígenas diversas. Finalmente, a fronteira com o Chile na qual,

apesar da história de contenciosos, há hoje um claro processo de

dinamização, na medida em que a produção boliviana é, basicamente,

escoada pelos portos de Antofagasta, Iquique e Arica.

1.7. Política externa atual

Na condução da política externa, a Bolívia vem, devido à atuação de

Evo Morales, afastando-se de uma política unilateral concentrada nos

Estados Unidos e, aos poucos, firma suas alianças com países como a

Venezuela, o Brasil e, devido a uma confluência de fatores positivos,

aproxima-se timidamente do governo da presidente do Chile, Michelle

Bachelet, na tentativa de buscar novas soluções para o contencioso mais

antigo entre países latino-americanos com duração de 121 anos8.

De acordo com Morales, “O Estado boliviano nunca desenvolveu uma

política internacional coerente”9. Historicamente, a Bolívia focou sua política

externa nos países europeus, desprezando continentes como a Ásia e a

África e voltando-se mais ao continente americano, sobretudo com uma

orientação unilateral centrada nos Estados Unidos da América, ignorando,

muitas vezes, a América Central. Segundo ele, esse modelo de política

8 Ver Maira, Luis. “Perspectivas das relações entre Chile e Bolívia”. In Revista DEP: Diplomacia Estratégia e Política, n° 05 (janeiro/março/2007), Brasília: FUNAG, pp 40 – 56 9 Ver Morales, Evo. “Bolívia, fator de integração”. In. Revista DEP: Diplomacia Estratégia e Política, n° 04 (abril/junho/2006), Brasília: FUNAG, pp 16 – 27.

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externa boliviana encontra sua raiz na elite branca, de origem espanhola, que

governou a Bolívia durante séculos.

Com a nova forma de organização econômica baseada na formação

de blocos regionais e nas mudanças políticas em curso na Bolívia, surgem a

necessidade e a possibilidade de diálogo entre os vizinhos do subcontinente,

permitindo o desenvolvimento de uma política externa de alcance regional.

2. Brasil: formação do Centro-Oeste brasileiro

Compreender a vida de relações que se processam na zona de fronteira entre

o Brasil e a Bolívia exige-nos desenvolver uma trajetória histórica que dê conta

de explicar a formação do centro-oeste e, por conseqüência, que nos permita

compreender por que a zona fronteiriça existente ganhou forte dinamismo

permitindo a transferência de brasileiros para o território boliviano e de bolivianos

para o Brasil.

A complexidade do centro-oeste brasileiro é tamanha que nos obriga fazer

uma análise em alguns dos seus aspectos principais. Assim sendo, o esforço

recairá sobre os aspectos físico-naturais, sociais e econômicos mais relevantes.

2.1. Aspectos físico-naturais

É necessário traçar um perfil dos aspectos físico-naturais para explicar

o interesse de agricultores pela região. Os solos do Centro-Oeste são

basicamente compostos por terra roxa, latossolos e argilossolos. Os solos de

terra roxa apresentam as melhores condições para a agricultura e têm um

elevado potencial produtivo, já os latossolos são mais pobres e menos

produtivos que a terra roxa, entretanto é um tipo de solo muito importante

para a agropecuária. Apesar de não terem muitos nutrientes e serem ácidos,

esses solos são passíveis de correção e podem ser usados para cultivo de

algumas culturas perenes, pastagens e reflorestamento. Os argissolos

ocupam cerca de 15% de toda a área de cerrado brasileiro, entretanto não

aparecem de maneira contínua e muita vezes estão dispostos em área de

encostas.

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Segundo Ab’Saber, o clima da área nuclear do Cerrado e, por

conseqüência, do centro-oeste “comportam de cinco a seis meses secos,

opondo-se a seis ou sete meses relativamente chuvosos. As temperaturas

médias anuais variam de amplitude, de um mínimo de 20 a 22° C até um

máximo de 24 a 26° C” (Ab’Saber, 2003, 122). O autor aponta para a baixa

umidade relativa do ar, que atinge níveis muito baixos durante a seca, entre

38 e 40%, e níveis muito elevados na época de chuvas, entre 95 e 97%. As

estações do ano dividem-se em duas: a seca e a chuvosa.

A vegetação original apresenta uma fisionomia bem variada, é pouco

densa, com a característica de ser atrofiada, com troncos tortuosos e galhos

retorcidos, com folhas grandes e grossas.

A associação entre geologia, geomorfologia e clima permite

compreender a aptidão agrícola da região do centro-oeste. Segundo aponta

Diniz em sua análise de aptidão agrícola do Cerrado (Diniz, 2006, 29),

podemos inferir que o centro-oeste apresenta aptidão de média para baixa e

desta forma, o que explica ocorrência de soja, algodão e pecuária nesta

região é a possibilidade de correção desses solos.

2.2. Condicionantes históricos do centro-oeste brasileiro

A região central do Brasil não foi objeto de levas migratórias

colonizadoras relevantes durante o período colonial. Somente no início do

século XVII, ela começou a despertar interesse dos bandeirantes, que

buscavam ouro e prata, já que a cana-de-açúcar dava os primeiros sinais de

estagnação. Além da busca pelos metais, existia interesse em aprisionar e

catequizar índios para trabalhar como mão-de-obra nas fazendas paulistas.

Somente em 1722, foi encontrado ouro em Goiás e Mato Grosso, fato que

gerou o primeiro grande fluxo migratório para a região. A partir deste

momento, começaram a surgir vilas e povoados e, no ano de 1744, devido ao

grande número de jazidas encontradas, foi criada a capitania de Goiás e, em

1748, a de Mato Grosso.

Essa atividade no centro-oeste brasileiro teve vida curta, pois, durante

todo o século XVIII, Goiás produziu cerca de 28.500 kg e Mato Grosso

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apenas 10.900 kg (Diniz, 2006, 42). Entretanto, apesar da baixa produtividade

se comparado à produção de Minas Gerais (cerca de 119.000kg), essa

ocupação do oeste teve o importante papel de demarcação definitiva da

fronteira entre os territórios coloniais português e espanhol.

Com a decadência do extrativismo, essas regiões conheceram a

estagnação econômica e o retrocesso urbano. A pecuária extensiva foi o que

garantiu o mínimo de dinamismo, a agricultura só entrou para o contexto da

produção do centro-oeste em meados do século XIX. Poucas eram as

indústrias implantadas nessas terras, à exceção daquelas ligadas ao

beneficiamento da produção agropecuária.

Os principais fluxos migratórios que povoaram o centro-oeste foram

compostos de paulistas, mineiros e nordestinos, sendo que os dois primeiros

instalaram-se, predominantemente, na porção sul-sudeste da região,

enquanto que o último ocupou a porção norte.

Com o fim do Império e o advento da República, as relações

econômicas regionais foram dinamizadas graças, dentre outros fatores, ao fim

do trabalho escravo e à expansão da agropecuária (principalmente do café no

Sudeste).

A construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil motivada pela

expansão da economia cafeeira de São Paulo privilegiou o sul do Mato

Grosso (atual Mato Grosso do Sul), permitindo que os municípios da região

fornecessem produtos primários às lavouras de café.

O centro-oeste mantinha sua tradição pecuária, mas emergia no

cenário econômico como importante produtor de arroz, tendo o estado de

Goiás se transformado num grande exportador. Com o desenvolvimento das

estradas de ferro, surgiram inúmeros povoados novos. Segundo indica Diniz:

“O crescimento populacional da área do cerrado foi lento e irregular até

meados do século XX. Em 1872, segundo os dados do primeiro Censo

Demográfico feito no Brasil, os estados de Goiás e Mato Grosso (atuais

Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Rondônia) tinham

uma população de 220 mil habitantes, ou cerca de 2% da população

brasileira. Em 1920, a população desta região já era três vezes maior,

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acompanhando o ritmo de crescimento do país, cuja população atingiu mais

de 3 milhões de pessoas. Esse ritmo se manteria, tendo a população da

região atingido mais de um milhão de pessoas em 1950, ritmo semelhante

ao observado para o Brasil. A partir da década de 1950, este quadro se

alteraria em função da construção de Brasília e do início de um projeto de

expansão mais vigoroso para o oeste, por meio da construção da malha

rodoviária nacional, que integraria as regiões Norte e Centro-Oeste ao

restante do país” (Diniz, 2006, 57)

Um novo boom migratório e de caráter colonizador iria ocorrer no

Centro-Oeste com o governo de Getúlio Vargas, como resultado das novas

teorias geopolíticas que, no Brasil, tiveram como importante representante o

General Mário Travassos, que, em seu livro “Projeção Continental do Brasil”,

aborda como uma das importantes questões a manutenção da unidade

nacional. Com isso, as iniciativas políticas de povoamento do interior do Brasil

eram estimuladas pelas políticas territoriais do “Estado Novo”.

Entretanto este novo processo migratório não seria ainda o início da

agricultura moderna, pois a verdadeira ‘marcha para o Oeste’, que é o

embrião da agricultura e pecuária moderna vivenciada nos dias atuais,

começou a se formar somente com a criação de Goiânia, quando os novos

fluxos migratórios começaram a sair das pequenas cidades e a chegar a esse

novo pólo, ou seja, um fluxo urbano-urbano.

Aos olhos dos que pensavam a geopolítica, era necessário integrar o

Brasil e, para isso, a construção de uma nova capital federal mostrava-se bem

pertinente. As discussões sobre este tema pairavam na esfera política desde

antes do Brasil tornar-se uma república, entretanto as medidas efetivas

começaram a ser tomadas somente em 1946.

A escolha do local para a instalação desta nova capital passou por

inúmeras discussões de ordem geopolítica, como viabilizar a integração do

espaço nacional, permitir a construção de meios de transportes que

beneficiassem a circulação de produtos e pessoas, etc.

Segundo Diniz, “o processo de construção da nova capital no final da

década de 1950, e sua inauguração em 1960, alterou radicalmente o

panorama do Brasil central e marcou a criação de um sistema de

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planejamento” (Diniz, 2006, 75). A criação de Brasília permitiu não apenas o

desenvolvimento de uma significativa malha rodoviária, mas também de

telecomunicações e energia elétrica, além de proporcionar um efetivo

crescimento da região.

É possível utilizar a teoria de Von Thüner para explicar a expansão da

fronteira agrícola, que sai de São Paulo, Paraná e segue em direção a Mato

Grosso e Goiás, esta teoria nos pareceu dar conta de explicar, em parte, este

processo. Ela toma, segundo Diniz, como princípios básicos a localização da

atividade agrícola em torno de um único centro urbano – modelo

monocêntrico –, a relação mercantil básica que os produtores mantêm com o

centro urbano, a uniformidade das condições de fertilidade, as condições

uniformes de transporte e a existência de n mercadorias agrícolas. Assim,

frente todas as exigências necessárias para o desenvolvimento de culturas

próximas de centros urbanos, a soja, a pecuária e a monocultura de maneira

geral não poderiam mais localizarem-se nas franjas desses centros. Além

dessas culturas não atenderem aos requisitos necessários fatores como valor

da terra, que ficava cada vez mais proibitivo, as novas demandas das cidades

por variedades de produtos primários demandavam novas áreas de produção.

Ocupar o oeste brasileiro se caracterizou como uma boa opção, os

únicos entraves seriam: o escoamento da produção e a baixa qualidade do

solo em algumas partes do cerrado; entretanto, com a criação de Brasília, a

questão da infra-estrutura foi superada e os solos, com o grande

desenvolvimento tecnológico alcançado nas últimas décadas, foram

corrigidos, permitindo, portanto, a penetração da agricultura no cerrado

brasileiro.

2.3. O Centro-Oeste brasileiro hoje

A expansão da fronteira agrícola rumo ao Oeste só foi possível pela

forte presença do governo brasileiro, que promoveu inúmeras políticas de

incentivo financeiro e tecnológico, além da criação de centros de pesquisa

voltados para a agricultura. Com as inovações tecnológicas, o que era

impossível deixou de ser e a agricultura no cerrado brasileiro virou realidade,

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atraindo sulistas e paulistas que se viam impossibilitados de expandir a

produção nas áreas tradicionais de cultivo. A organização desses produtores

deu-se pela formação de cooperativas que já atuavam em seus estados,

abrindo novas filiais no cerrado. Conforme expõe Diniz,

“Parte deste processo ficou conhecido como ‘gauchização’ da fronteira

agrícola brasileira, havendo transferência não só de conhecimentos técnicos

e habilidades, como também valores culturais, a exemplo da reprodução dos

CTG`s (Centros de Tradições Gaúchas) em várias localidades na região do

Cerrado” (Diniz, 2006, 94)

O expressivo crescimento da agroindústria impulsionado pela forte

presença da agricultura e pecuária no centro-oeste também exige uma

contextualização, pois apesar de historicamente existirem algumas indústrias

de beneficiamento de produtos agrícolas, como erva-mate e charqueado, na

atualidade elas ganharam nova roupagem tecnológica e contam com o uso de

mão-de-obra mais qualificada. O que se coloca como mais expressivo nesse

processo é a mudança no perfil dessas indústrias, que agora são,

majoritariamente, de grande porte, pertencentes a grandes grupos

internacionais e atuam no processamento da soja, difusão de frigoríficos e

complexos sucroalcooleiros.

Podemos apontar dois fatores que aparentemente são distintos, mas

que se complementam e permitem desenvolvimento desta região: a expansão

da fronteira agrícola e a construção de Brasília.

Recentemente, além das importantes funções econômicas e

agroindustriais que o centro-oeste vem cumprindo no cenário nacional, ele é

uma das peças-chave no processo de integração sul-americano, assim como

a Bolívia, ocupa uma posição estratégica na integração física do

subcontinente. No IIRSA, Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura

Regional Sul-americana, por exemplo, três de seus projetos são de especial

importância para o centro-oeste brasileiro, pois permitirão o escoamento da

produção regional, sobretudo da soja, para os portos do Pacífico e posterior

comercialização com os mercados asiáticos. Um deles é o Eixo bi-oceânico,

que ligará São Paulo aos portos do norte chileno, passando por Mato Grosso

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do Sul e Santa Cruz; outro importante Eixo é o Brasil – Bolívia – Peru e, por

fim, o Eixo da Hidrovia Paraguai – Paraná.

3. As relações de vizinhança Brasil-Bolívia

Conforme já citado no início deste trabalho, as relações de vizinhança que

envolvem esses dois países são históricas e, no cenário atual, elas revelam

grande importância para o futuro da integração subcontinental. Nesse sentido,

cabe retroagir na história dessas relações buscando recuperar aspectos como o

Tratado de Petrópolis, a construção da Noroeste do Brasil, assim como analisar a

atual dinâmica da zona de fronteira. É certo que, ao tratarmos das questões de

fronteiras, procuraremos trazer ao debate aspectos relacionados à migração,

uma vez que constata-se um aumento do fluxo de bolivianos para o Brasil e vice-

versa a partir do final do século passado.

3.1. A aquisição do Acre e a integração ferroviária

Reafirmando uma idéia já desenvolvida em momento anterior do

presente trabalho, o oriente boliviano ficou durante muitos anos à margem

dos acontecimentos vividos no Altiplano, o que gerou forte sensação de

isolamento. Tal fato explica, parcialmente, a formação da “Media Luna”

boliviana. Já no início do século passado, existiam entre os bolivianos desta

região intenções separatistas, agravadas e vivenciadas na atualidade10. Tal

situação acentuou a interação desta região com o Brasil e Argentina.

Como vimos, ainda, a fragilidade boliviana, no que diz respeito à sua

coesão nacional e territorial, ocasionou a perda quase que ao mesmo tempo

de três regiões de seu Estado, a saber: o litoral do Pacífico para o Chile, o

Chaco Boreal para o Paraguai e a região do Acre para o Brasil.

Com o início do ciclo da borracha entre o final do século XIX e início do

XX, a região norte do Brasil atraiu milhares de migrantes que foram trabalhar

nos seringais. A disseminação dos chamados seringueiros pelo território de

10 Ver cópia dos artigos de jornais publicados pelo Estado de São Paulo e Folha de São Paulo entre os meses de dezembro de 2007 e janeiro de 2008, que tratam dessa efervescência política na Bolívia, nos anexos deste trabalho.

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floresta amazônica acabou alcançando inclusive as áreas que se

encontravam fora da fronteira brasileira e, desta forma, foi ocupado o território

acreano que até então pertencia à Bolívia desde os tratados de limites

assinado em 1867. Devido ao fato da região apresentar difícil acesso, a

ocupação quase não existia nessas terras, com pouquíssimos bolivianos na

região. Assim, quando o governo deste país tomou conhecimento do que

vinha se passando nessa porção do território, enviou, imediatamente, tropas

do exército. Em 1902, seringueiros brasileiros e o exército boliviano travaram

uma guerra que durou aproximadamente um ano. Nesta disputa, o Brasil saiu

vitorioso e então se iniciaram as negociações para a aquisição deste território

pelo governo do Brasil.

A obtenção do Acre deu-se, oficialmente, pela assinatura, em 1903, do

Tratado de Petrópolis11, pondo fim às disputas entre os dois países. Como

parte da negociação, o país pagou, pelo Acre, ao governo boliviano uma

indenização de 2 milhões de libras esterlinas, além de se comprometer com a

construção da ferrovia Madeira-Mamoré, que seria usada para o escoamento,

via oceano Atlântico, da borracha produzida na Bolívia. A referida ferrovia foi

construída entre 1907 e 1912 às custas de inúmeras vidas, mas nunca operou

regularmente por não terem construído os canais fluviais necessários para o

escoamento da produção. Além disso, com o fim do ciclo da borracha, os

interesses de integração física concentraram-se ao sul da fronteira, dando

origem a novos projetos que visavam a oferecer à Bolívia uma saída pelo

Atlântico via Porto de Santos. É nesse contexto que surge a Estrada de Ferro

Corumbá – Santa Cruz, que fez ligação com a Ferrovia Noroeste do Brasil e

contou com os recursos previstos no Tratado de Petrópolis que inicialmente

seriam destinados integralmente à construção da Ferrovia Madeira-Mamoré.

A Noroeste do Brasil foi de extrema importância no processo da

integração física subcontinental, o início de sua construção foi em 1905. Seu

traçado iniciava na cidade de Bauru/SP, seguindo em direção ao Noroeste.

Em 1910 cruzou o Rio Paraná, em seguida no ano de 1914 atingiu Porto

Esperança, à beira do Rio Paraguai e chegou a Corumbá, na divisa com a

Bolívia em 1952.

11 Ver cópia do Tratado de Petrópolis nos anexos deste trabalho, material obtido no site do Ministério das Relações Exteriores, acessado em 06/02/2008 – www.mer.gov.br

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Mapa 1 Traçado da Antiga Estrada de Ferro Noroeste do Brasil

Fonte: Ministério dos Transportes, http://www.transportes.gov.br/

O fato da Noroeste do Brasil, via Mato Grosso do Sul, terminar em

Corumbá constitui uma evidente estratégia geopolítica, expressando, desta

forma, a intenção política brasileira de estabelecer conexões físicas com a

região que Travassos denominava de “centro geográfico de nossa massa

continental” (Travassos, 1935, 175). Nesta perspectiva geopolítica

desenvolvida no Brasil, estava sinalizada a importância política dessa

iniciativa, assim, “deve ser particularmente enfatizada a circunstância de que

as grandes obras de ampliação e conclusão da Noroeste, ocorridas depois da

Guerra do Chaco relacionaram-se mais diretamente com a política exterior

então seguida pelo Estado brasileiro” (Queiroz, 1999, 183).

Após o fim da Guerra do Chaco, a Bolívia saiu profundamente

prejudicada e buscou novas alianças com a Argentina e o Brasil, sendo que

com este último negociou duas formas de integração/cooperação bilateral.

Uma foi pela via do petróleo boliviano, que poderia, a partir de investimentos

brasileiros, ser exportado para o Brasil, que já dava os primeiros sinais de

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dependência energética. A outra via seria pela integração física, também

contando com investimentos brasileiros, com a construção de uma ferrovia

que interligasse Santa Cruz de la Sierra a Corumbá. Dessa forma, o

escoamento da produção boliviana poderia ser feito via Porto de Santos,

aproveitando-se a Noroeste do Brasil. Beneficiando-se da reestruturação

política vivida pela nação boliviana, o Brasil assinou, em 25 de fevereiro de

1938, na cidade do Rio de Janeiro, o Tratado sobre Ligação Ferroviária12, que

tinha um caráter de cooperação econômica entre os países envolvidos, sendo

que o Brasil faria adiantamentos para cobrir gastos excedentes, a serem

reembolsados pela Bolívia em dinheiro ou em petróleo (Queiroz, 1999, 188).

Foi neste mesmo tratado que ficou estabelecido que, ao Brasil, caberia

construir o trecho entre Porto Esperança e Corumbá da Noroeste do Brasil.

Os projetos, a construção e a existência da ferrovia constituem uma

verdadeira epopéia com inúmeras dificuldades e mudanças de roteiro. As

primeiras idéias sobre a ferrovia remontam a meados do século XIX e seu

traçado foi modificado diversas vezes inclusive durante as obras.

Abaixo segue uma aproximação cronológica do surgimento da

Noroeste do Brasil 13.

Quadro 1: Cronologia da Noroeste do Brasil - NOB

DATA EVENTO

06/1890 O Governo Federal decreta a concessão de várias ferrovias. Uma delas era a que ligaria a cidade de Uberaba (MG) à vila de Coxim (MT), concedida ao “Banco União de São Paulo”.

06/1904 Criação da sociedade anônima “Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil” com o objetivo de construção e exploração de uma ferrovia no trecho entre a região de Uberaba (MG) e Coxim (MT).

07/1904 O Governo Federal decreta a transferência de concessão da Estrada de Ferro Uberaba-Coxim; anteriormente pertencente ao “Banco União de São Paulo”, ela passa para a “Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil”.

10/1904 Atendendo ao pedido anterior da Companhia Paulista de Vias Férreas e Fluviais, o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro emite parecer sobre o traçado da linha Uberaba-Coxim e sugere mudanças: a linha deveria sair “das imediações de São Paulo dos Agudos” e chegar à região de Cuiabá.

10/1904 Decreto do Governo Federal redefine o traçado da Uberaba-Coxim,

12 Veja cópia do Tratado sobre Ligação Ferroviária nos anexos deste trabalho, material obtido no site do Ministério das Relações Exteriores, acessado em 06/02/2008 – www.mer.gov.br 13 Essas informações foram obtidas nos trabalhos publicados por LOSNAK, Célio José . Trajetória Histórica da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Bauru: Portal Tvtem na Net, 2004 (Coluna em portal da internet acessado em 05/02/2008)

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apontando como ponto de partida as linhas da Estrada de Ferro Sorocabana e criando o trecho Bauru-Itapura-Cuiabá.

07/1905 É iniciada a construção das linhas da NOB no trecho Bauru-Itapura. 09/1906 Entregue ao tráfego os primeiros 48 Km da via. 04/1907 Decreto do Governo Federal altera o traçado Bauru-Cuiabá da NOB para

Bauru-Corumbá, passando pelas corredeiras de Jupiá, no Rio Paraná. 03/1908 Decreto do Governo Federal altera também a concessão da linha Bauru-

Corumbá, criando duas ferrovias: o trecho Itapura-Corumbá passa a ser propriedade da União, denominada de “Estrada de Ferro Itapura-Corumbá”, mas construída pela Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil e arrendada, por esta Companhia, durante 60 anos. O trecho Bauru-Itapura continua concedido à “Noroeste do Brasil”

05/1908 É iniciada a construção do trecho Itapura-Corumbá nos dois sentidos. Eles partem de Itapura para Corumbá e também, no sentido inverso, de Porto Esperança para Itapura.

12/1908 Inaugurada a chegada do trem em Araçatuba, no quilômetro 202. 02/1910 A estação de Itapura é incorporada ao tráfego. 10/1913 O Governo Federal cancela o contrato com a “Companhia de Estradas de

Ferro Noroeste do Brasil” referente à construção e ao arrendamento do trecho Itapura-Corumbá.

10/1914 Inaugurada e entregue ao tráfego a linha entre Itapura e Porto Esperança. 12/1917 O Governo Federal encampa a Estrada de Ferro Bauru-Itapura, até então

concedida à “Companhia de Estradas de Ferro Noroeste do Brasil”. 11/1918 A “Estrada de Ferro Bauru-Itapura” e a “Estrada de Ferro Itapura-Corumbá”

foram fundidas pelo Governo Federal formando a “Estrada de Ferro de Bauru a Porto Esperança”.

1919 A Estrada de Ferro de Bauru a Porto Esperança, propriedade da União, passa ser denominada de “Estrada de Ferro Noroeste do Brasil”.

10/1926 Inauguração oficial da ponte sobre o Rio Paraná, com extensão de 1024 m. Até então, os trens atravessavam o rio em cima de balsas apropriadas.

07/1938 São iniciadas as obras do ramal ligando Campo Grande à Ponta Porã, na divisa com o Paraguai.

10/1938 Início da construção da ponte sobre o Rio Paraguai. 09/1947 Concluídas as obras da ponte sobre o Rio Paraguai, mas ainda sem a

instalação dos trilhos. 01/1952 Finalização da instalação dos trilhos no trecho Rio Paraguai-Corumbá. 12/1952 A primeira composição atravessa a ponte sobre o Rio Paraguai e chega a

Corumbá. 04/1953 Inaugurada a finalização do ramal Campo Grande-Ponta Porã. 03/1957 A União cria a Rede Ferroviária Federal com a reunião de todas as

companhias de sua propriedade, dentre elas a “Estrada de Ferro Noroeste do Brasil”.

Fonte: Losnak, Célio. Trajetória histórica da estrada de Ferro Noroeste do Brasil, Bauru: Portal TVtem, 2004, adaptado por Vivian Merola

3.2. Particularidades da Zona de Fronteira Brasil-Bolívia

As fronteiras foram caracterizadas de diferentes maneiras na história

do pensamento geográfico e importantes autores debruçaram-se sobre esse

tema e, por diferentes contribuições, deixaram-nos significativas abordagens

teóricas acerca desta questão que na atualidade ganha relevância.

Uma primeira distinção envolve o que seria fronteiras naturais e

artificiais, as discussões sobre esta classificação perduraram durante toda a

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primeira metade do século XX. A primeira vincular-se-ia às barreiras naturais,

como os rios e cadeias montanhosas que imporiam uma divisão territorial

natural. Já as artificiais seriam produzidas pelos homens, levando em conta

aspectos significativos de cada sociedade e momento histórico. Contudo,

segundo Costa, está comprovado historicamente que:

“Não existem fronteiras naturais nem naquela sua versão mais ingênua, que é

a tentativa de associar ‘naturalmente’ o seu traçado a uma dada característica

do relevo ou da hidrografia, por exemplo, nem naquela que pretende

perenizá-la e sacralizá-la com argumentos diversos, tais como a

ancestralidade das relações da comunidade com determinado território, ou os

direitos consuetudinários sobre o mesmo, adquiridos ao longo da história ou,

no limite, o presumido direito divino que legitimaria tais discursos”. (Costa,

2005, 14)

Assim, todas as fronteiras seriam artificiais por sua existência estar

intimamente relacionada à constituição dos Estados soberanos e por ser

resultado de um consenso, legitimado mediante tratados específicos

envolvendo as partes interessadas. Pode-se concluir, então, que a utilização

de formas de relevo ou hidrografia é apenas um meio de demarcação da linha

de fronteira.

Conforme coloca Hartshorne, os limites internacionais estão ligados a

um contexto histórico e cultural e “podem ser classificados de acordo com a

paisagem cultural no momento de sua formação” (Hartshorne apud Steiman e

Machado, 2002, 3).

Existem ainda, outras diferenciações e, neste sentido, uma importante

observação recai sobre a definição de ‘limites’ que, segundo Martin:

“É reconhecido como linha e não pode, portanto, ser habitada, ao

contrário da fronteira que, ocupando uma faixa, constitui uma zona,

muitas vezes bastante povoada onde os habitantes de Estados

vizinhos podem desenvolver intenso intercâmbio” (Martin, 1992, 47)

As opiniões dos autores que tratam deste tema convergem no sentido

de que a fronteira linear passou a existir com o advento do Estado Moderno

desejoso de demarcar e controlar seu território.

Outra observação é em relação às fronteiras internas e externas que

muitas vezes sinalizam para um jogo no qual, dependendo dos interesses dos

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Estados, pode torná-las mais ou menos rígidas, chegando mesmo ao ponto

de transformarem-se completamente. Assim, “as ‘fronteiras externas’ podem

tornar-se ‘internas’ a partir de esforços unionistas” e “as ‘internas’ podem

tornar-se ‘externas’, a partir de movimentos secessionistas” (Martin, 1992,

53).

Normalmente, os estudos sobre fronteiras internacionais tratam mais

da Europa e da América do Norte. Entretanto essa perspectiva tem se

alterado devido às mudanças atuais na vida de relações cotidianas existente

nas áreas fronteiriças. Hoje já presenciamos casos de dinamização das

cidades gêmeas e grandes aglomerados urbanos bi-nacionais e tri-nacionais,

como é o caso de Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad del Este (Paraguai) e Puerto

Iguazu (Argentina), que juntas formam um expressivo pólo econômico e

populacional14. Associado a este novo cotidiano vivido nas escalas regional

local, ainda devemos destacar o papel da integração regional em curso que

redefinem as fronteiras, além do intenso processo migratório mundial. Todos

esses fenômenos parecem afrouxar esses limites, conferindo um maior grau

de permeabilidade na relação de vizinhança e na condução de política

externa em geral.

As fronteiras no passado tinham uma característica puramente

geopolítica, mas na atualidade acrescentam-se novas roupagens, com um

fortíssimo caráter econômico, cultural e estratégico, do ponto de vista das

novas logísticas regionais.

A idéia de que as fronteiras estão deixando de existir pode parecer,

num primeiro momento, verdadeira, entretanto, olhando de forma mais

criteriosa, vemos que:

“As novas fronteiras estão surgindo, as ‘inter-blocos’, e

acrescente-se, sem que as ‘nacionais’ tenham deixado de existir.

Talvez apenas estejam deixando de ser externas para se tornar

internas”. (Martin, 1992, 60)

Para Guichonnet & Raffestin, a linha – utilizada por eles como sinônimo

de fronteira e esta entendida como uma construção do espírito, ou seja, uma

abstração – é menos interessante que a Zona de Fronteira, visto que uma 14 Ver Roseira, Antonio Marcos. Foz do Iguaçu: cidade rede sul-americana, Dissertação de Mestrado, São Paulo, FFLCH/USP, 2006

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linha imaginária não permite que se vislumbrem os contrastes, as diferentes

estruturas demográficas, econômicas e sociais. Para esses autores, a

fronteira é um instrumento geográfico de diferenciação e, por conseqüência,

de organização do espaço. (Guichonnet & Raffestin, 1974, 7 e 9)

Posto isto, podemos dizer que a dinâmica atual existente nas zonas

fronteiriças deve ser analisada sob alguns aspectos, sendo eles: terra,

trabalho, capital, prestação de serviços públicos ou privados, migração, etc.

Nessa perspectiva, é correto apontar que, quando temos uma relação

binacional ocorrendo entre países com mesmo grau de desenvolvimento, a

dinâmica vivida nessas zonas é menor do que em relações entre países que

apresentam grau de desenvolvimento diferenciado (Steiman & Machado,

2002, 12). Assim, a migração de pessoas15 e de capital obedecerá a este

critério sendo mais intensa nos modelos indicados no segundo caso. Este é o

quadro presente nos países que apresentam alto índice migratório como os

Estados Unidos, que exercem a atração dos latino-americanos, sobretudo dos

mexicanos. Esta configuração também vem se confirmando nas relações de

vizinhança entre o Brasil e a Bolívia.

Podemos citar o caso de Guarajá-mirim a oeste de Rondônia, onde as

agências bancárias recebem remessas de dinheiro dos bolivianos e

brasileiros que residem na cidade gêmea de Guayaremerín. Tais remessas

são justificadas pelo fato da economia brasileira ser, em comparação com a

boliviana, mais equilibrada e por isso apresentar segurança, além do mercado

financeiro brasileiro ser mais organizado, com melhores perspectivas de

investimentos.

Já o movimento de brasileiros para a Bolívia justificar-se-ia por fatores

como valor das terras e baixo custo da produção, da mão-de-obra e as

menores restrições ambientais, atraindo, assim, principalmente os

empresários.

As zonas de fronteira nos países da América do Sul não apresentam

uma uniformidade na legislação, desta forma, a regulamentação existente

num país não necessariamente ocorrerá em outro, sendo que alguns nem

apresentam legislação. O Brasil rediscutiu esta questão desde a legislação de

15 A questão migratória será tratada isoladamente no decorrer deste estudo

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1988, na qual determinou que a faixa de fronteira passasse de 100 para de

150 km a partir da linha. Já a Bolívia inseriu esse ponto em sua legislação em

1967, retomando o debate na reforma de 1994, e adotou como faixa 50 km a

partir da demarcação16.

Abaixo segue o mapa 2 com destaque para a zona de fronteira,

marcando os 50 km de faixa boliviana e os 150 km de faixa em território

brasileiro e destacando também a ocorrência das cidades gêmeas na fronteira

entre os dois países.

Mapa 2 Zona de Fronteira e Cidades Gêmeas

16 Informações extraídas do texto Brasil e América do Sul: Questões Institucionais de Fronteira de Rebeca Steiman no site www.igeo.ufrj.br acessado em 24/01/2008.

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Definir a faixa de fronteira é importante por proporcionar o

desenvolvimento nessas áreas de políticas públicas, que vão desde repasse

de verba para melhoria de infra-estrutura, visando às melhores condições da

população, até construções de eixos rodoviários e estudos para planejamento

regional.

Atualmente, o Ministério da Integração Nacional mantém o Programa

de Desenvolvimento para a Faixa de Fronteira – PDFF –, que desenvolve um

importante papel político e econômico atuando interna e externamente, uma

vez que os projetos em execução visam também à integração do

subcontinente americano. O PDFF abrange 11 estados, 588 municípios e

aproximadamente 10 milhões de pessoas e conta com financiamentos do

Governo Federal, BNDES, Banco do Brasil e bancos estaduais17.

O Governo Federal entende a Faixa como área indispensável à

Segurança Nacional e estabeleceu uma série de restrições ao uso das terras

e recursos nessa região. Uma das linhas de atuação prioritária do programa é

o desenvolvimento integrado das regiões que contêm cidades-gêmeas por

apresentarem as maiores interações em aspectos como trabalho, fluxos de

capital, terras, recursos naturais e serviços de consumo coletivo. Esta atuação

beneficia as cidades de Brasiléia no Acre, Guajará-mirim no Amazonas,

Cáceres no Mato Grosso e Corumbá no Mato Grosso do Sul. Todas

apresentam sua correspondente em território boliviano, sendo Corumbá a

porta de entrada dos imigrantes bolivianos, sobretudo dos ilegais.

A presença de bolivianos abrange, por exemplo, o estado de Rondônia,

onde há estrutura fundiária de pequenas e médias propriedades ligadas à

produção agropecuária e madeireira, que extrapola o limite internacional em

busca de madeiras nobres (Bolívia). O principal produto comercial é o café,

seguido da extração de madeira em tora e do arroz. Abriga rebanho bovino,

principalmente voltado para a produção de leite “in natura” destinada ao

mercado local e secundariamente como matéria-prima para os pequenos

laticínios dispersos pela região. Outro potencial desta região é a produção

especializada de banana e melancia.

17 Informações extraídas de Ministério da Integração Nacional. Cartilha do Programa de Desenvolvimento para a Faixa de Fronteira, Secretaria de Programas Regionais, Brasília, 2007 pelo site www.integracao.gov.br acessado em 14/02/2008.

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Na porção central da fronteira ocupada pelo estado do Mato Grosso, a

base produtiva é caracterizada pela diversidade, com destaque para o cultivo

da soja, seguido do algodão e do extrativismo vegetal. E, finalmente, no Mato

Grosso do Sul, a predominância econômica é da soja e do ecoturismo.

Segundo classificação desenvolvida pelo Grupo de pesquisa RETIS da

Universidade Federal do Rio de Janeiro as cidades gêmeas Brasil/Bolívia

dessa faixa apresentam as seguintes características:

Quadro 2: Cidades-gêmeas e formas de interação Cidade brasileira

Cidade boliviana

Tipo de articulação Tipo de interação

Brasiléia Cobija Fronteira fluvial com ponte

Apresenta alto grau de troca entre as populações fronteiriças. Os Estados têm atuado nesta região, beneficiando as trocas na fronteira, o maior exemplo desta intervenção foi a inauguração, em 2004, da Ponte Wilson Pinheiro.

Guarajá-Mirim

Guayaramerín Fronteira fluvial sem ponte

As interações são do tipo local, com a ocorrência de feiras. O Estado atua pouco e a região não apresenta infra-estrutura de articulação transfronteiriça.

Cáceres San Matias Fronteira seca As interações são do tipo local. O Estado atua pouco e a região não apresenta infra-estrutura de articulação transfronteiriça.

Corumbá Puerto Saurez Fronteira seca As interações são do tipo local. A zona conta com infra-estrutura de articulação transfronteiriça, sendo a NOB e a E.F. Santa Cruz – Corumbá os maiores expoentes desta interação. Corumbá funciona como porta de entrada dos imigrantes bolivianos legais e ilegais.

Fonte: Ministério da Integração Nacional e Grupo Retis/UFRJ, adaptado por Vivian Merola

Estas são as características marcantes da zona de fronteira Brasil-

Bolívia. Caso se concretizem, os projetos previstos para a definitiva

integração subcontinental dará a essas cidades maior dinamismo e interação.

Conforme o IIRSA, corredores bi-oceânicos atravessarão esta faixa facilitando

ainda mais as trocas de mercadorias, capitais e pessoas.

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Mapa 3 Eixos de Integração Física na América do Sul – Projetos IIRSA

3.3. Integração Energética

A integração energética é, atualmente, uma importante conexão entre

Brasil e a Bolívia. A materialização desta integração pode se conferir na

realização do gasoduto Brasil-Bolívia, o GASBOL, que começou a ser

construído em 1997 e o início de suas atividades datam de 1999. O GasBol

tem uma extensão de 3.150 km, seu traçado inicia-se em Santa Cruz de La

Sierra e estende-se até o Rio Grande do Sul. O valor investido foi de US$ 1,7

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bilhões. Os financiamentos do gasoduto foram contratados pela Petrobrás

junto a Agências de Crédito à Exportação, como o Japan Bank for

International Cooperation, do Japão, o Mediocredito, da Itália e o

BNDES/FINAME, do Brasil. Posteriormente, com a criação da TBG, empresa

que administra a porção brasileira do gasoduto, estes financiamentos foram

repassados e novos recursos foram contratados junto a instituições como o

Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),

Corporación Andina de Fomento (CAF) e o Banco Europeu de Investimentos

(BEI).

O gasoduto tem capacidade de transportar 30 milhões de m3 de gás

por dia, segundo a Petrobrás, contudo esta capacidade ainda não foi atingida,

estando prevista para 2019.

Mapa 4 Gasoduto Brasil – Bolívia

Fonte: GasNet, http://www.gasnet.com.br/gasnet_br/gasoduto/Gasbol.ASP

Em maio de 2006, o governo boliviano, visando a cumprir suas metas

de campanha, nacionalizou as reservas de gás natural e as atividades de

exploração e refino de petróleo, atividades anteriormente desenvolvidas pela

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Petrobrás e outras concessionárias. Contudo a postura adotada pelo governo

boliviano não se traduziu em expropriação e expulsão, mas visou a redefinir a

forma como vinha sendo extraído o recurso natural. Os resultados diretos

desta ação foram: 1) a renegociação dos contratos entre governo e empresas

com estabelecimento de novas regras para manterem sua presença em

território boliviano; e 2) Aumento significativo na arrecadação tributária, pois

antes da medida o governo arrecadava cerca de 300 milhões de dólares pela

a exploração do gás e do petróleo e em 2007 alcançou a cifra de 1,6 bilhão.18

É certo que a falta de tecnologia adequada e também de investimentos

têm revelado uma incapacidade da empresa estatal Yacimientos Petrolíferos

Fiscales Bolivianos YFPB em cumprir os contratos firmados com o Brasil e

Argentina no abastecimento de gás, obrigando o governo a pedir mais ajuda e

investimentos da Petrobrás na liberação do gás para o consumo19.

18 Informações extraídas do artigo “Bolívia: o contra ataque das elites”, publicação eletrônica do Le Monde Diplomatique, edição de 15 fevereiro de 2008, site: http://diplo.uol.com.br. 19 A Bolívia também conta com expressiva ajuda da estatal venezuelana de petróleo, a PDVSA, que está firmando acordos para a implantação de refinarias e usinas de processamentos na Bolívia, na Argentina e no Brasil

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Mapa 5 Integração Energética na América do Sul

Fonte: Atlas du Mercosur (http://www.iheal.univ-paris3.fr/mercosur_fr/)

3.4. Relações de vizinhança – as migrações

As migrações entre o Brasil e a Bolívia não se configuram como

fenômeno recente, entretanto vemos, a partir da década de 1990, uma

intensificação deste processo. Conforme mencionamos em momento anterior,

a migração está intimamente relacionada à condição econômica existente

entre o país de origem e o de destino. No caso boliviano, vemos uma

expressiva disparidade econômica em comparação com seus vizinhos, o que

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faz que a Bolívia seja, para a América do Sul, um grande emissor de mão-de-

obra, não apenas de trabalhadores não qualificados, como também de

profissionais formados em nível superior. Entretanto devemos destacar que

atualmente este país também tem se configurado como pólo de atração de

capitais e pessoas, principalmente no setor agroindustrial e energético.

Segundo o censo boliviano de 2001, existiam na Bolívia, em condição

legal, cerca de 30.196 imigrantes oriundos da América do Sul. Deste total,

7.740 eram brasileiros e representavam o segundo maior grupo de migrantes

no país, ficando atrás apenas dos argentinos, que contavam com 15.271

migrantes, conforme indicação do gráfico1.

Gráfico 1

Migrações sul-americanas para Bolívia

ArgentinaBrasilColombiaEcuadorGuayana FrancesaGuineaGuyanaParaguayPeruUruguayVenezuela

Fonte: Instituto Nacional de Estatísitca da Bolívia - INE (www.ine.gov.bo), adaptado por Vivian Merola

Hoje, a Bolívia conta com a presença de brasileiros dos ramos agrícola

e pecuarista em quase todos os municípios da “Media Luna”, os quais

apresentam condições propícias para o desenvolvimento das atividades

relacionadas, principalmente, à soja e à pecuária. Os maiores índices de

ocupação são registrados nos Departamentos de Santa Cruz, Pando e Beni.

No mapa 6, fica destacada a grande presença de brasileiros nesses

departamentos que estão na fronteira com o Brasil.

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Mapa 6 Distribuição Espacial dos brasileiros na Bolívia

Como já mencionado, muitas são as motivações que geram esses

deslocamentos, entretanto, quando se trata dos empresários do setor

agroindustrial, elas estão ligadas primeiramente à expansão da fronteira

agrícola brasileira, que encontra, no país vizinho, áreas com potencial

produtivo pouco ocupadas, ou seja, com baixíssima densidade populacional,

seguido por aspectos como preço da terra, baixo custo da mão-de-obra e

maior flexibilidade na legislação (trabalhista, ambientas, etc.). Entretanto a

Bolívia não tem atraído apenas os grandes produtores de soja e gado, mas

também uma população pobre do norte do Brasil que vem ocupando,

principalmente, as terras de Pando, atingindo o território boliviano através da

fronteira entre Brasiléia e Cobija. Segundo o Estado de São Paulo20, esta

região abriga cerca de mil famílias, a maioria em condição ilegal. Para essas

famílias que vivem em situação de miséria, as novas políticas de Evo Morales

20 Ver o artigo do Estado de São Paulo de 11/03/2007 nos anexos deste trabalho.

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que visam a “resgatar a soberania na fronteira” também proíbem estrangeiros

vizinhos de terem terras nessa área, fato que significa uma ameaça constante

de expulsão e retorno ao Brasil. Percebe-se que as tensões entre brasileiros

e o governo central têm se concentrado, sobretudo, no departamento de

Pando, onde vivem os brasileiros sem recursos e terras. Já em Santa Cruz,

conflitos dessa natureza são menos evidentes, sendo comuns acusações, por

exemplo, de que empresários brasileiros apoiariam movimentos separatistas

nesse departamento.

O número de brasileiros vivendo na Bolívia aumentou muito no início

dessa década. Segundo dados da CEPAL, entre a década de 70 e 90, essa

migração foi estável. O censo boliviano de 1976 indicava a presença de 8.492

brasileiros, em 1991 esta quantidade subiu para 8.586 e em 2001 foram

contabilizados 14.428 brasileiros em território boliviano. Obviamente,

devemos ter em conta que estas são as estatísticas referentes aos brasileiros

que estão em condição legal, contudo existe ainda uma quantidade de

brasileiros não contabilizados em condição ilegal.

Gráfico 2

Presença de brasileiros na Bolívia

0

2000

4000

6000

8000

10000

12000

14000

16000

1976 1992 2001

Brasileiros

Fonte: CELADE/IMILA, adaptado por Vivian Merola

Como visto, o Departamento de Santa Cruz é o mais importante do

país. Ele apresentava em 2001 uma população de 2.029.471 pessoas, das

quais 1.135.526 residiam na capital Santa Cruz de la Sierra, situada no oeste

do departamento, a quase 600 km de distância da fronteira com o Mato

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Grosso do Sul/Brasil. De maneira geral, a população de Santa Cruz

concentra-se na parte ocidental do departamento, deixando uma fronteira

muito pouco ocupada e integrada. A província de Germán Busch, que faz

divisa com o Mato Grosso do Sul, tem somente 33.006 habitantes. Dentro

desta província, observa-se uma concentração na linha da fronteira, nas duas

cidades, Puerto Suárez e Puerto Quijarro, em que se contam respectivamente

11.594 e 8.963 habitantes21.

É importante destacar que, de maneira geral, na “Media Luna” existe a

maciça predominância de latifúndios, fato que se repete em Santa Cruz, pois

a zona intermediária, entre a capital e o vasto vazio da fronteira, apresenta

uma extensão de 100 a 200 km a leste e é um espaço de colonização

internacional, sobretudo de brasileiros e japoneses, que se especializaram na

produção de soja.

Segundo o trabalho “Mobilidade Populacional e Migração no Mercosul:

a fronteira do Brasil com Bolívia e Paraguai” de um grupo de pesquisa do

NEPO/UNICAMP, temos que:

“No caso da migração brasileira na Bolívia, o departamento de Santa

Cruz concentra 50,3% da migração total brasileira (INE, Censo 2001). A

concentração se repete dentro do departamento em duas aéreas

distintas: na província ocidental de Andrés Ibañez, onde se encontra a

capital Santa Cruz de la Sierra, e nas duas províncias da fronteira,

Germán Busch e Angel Sandóval.” (Carmo, Souchaud & Fusco,

2007,10).

21 Dados obtidos pelo censo boliviano de 2001, disponível no site www.ine.gov.bo

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Gráfico 3

Brasileiros na Bolívia - Divisão por Departamentos

BENI

CHUQUISACA

COCHABAM BA

LA PAZ

ORURO

PANDO

POTOSÍ

SANTA CRUZ

TARIJA

BENI CHUQUISACACOCHABAMBA LA PAZ ORURO PANDO POTOSÍ SANTA CRUZ TARIJA

Fonte: Instituto Nacional de Estatísitca da Bolívia - INE (www.ine.gov.bo), adaptado por Vivian Merola

O censo de 2001 indica que, no departamento de Santa Cruz, havia

2.963 brasileiros e, desses, 2.338 estão no município de Santa Cruz de La

Sierra, conforme indica o mapa 7:

Mapa 7 Concentração de brasileiros em Santa Cruz

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Outro expressivo fluxo migratório ocorre da Bolívia para o Brasil.

Normalmente os bolivianos partem de La Paz, de Santa Cruz de la Sierra e

de pequenas comunidades de tradição agrícola e viajam até a cidade de

Corumbá/MS para pegar um ônibus que os trarão até São Paulo. Chegando

aqui, vão trabalhar nas confecções de roupas localizadas nos bairros do

centro da cidade e em outras regiões.

Em 1960, contabilizavam-se no Brasil 8.049 bolivianos em situação

regular. Em 1980, este número era de 12.980 e, no censo de 2000, o IBGE

registrou 20.374. Entretanto é sabido que, desde o início do ano 2000, a

comunidade boliviana não pára de crescer em alguns estados. São os

imigrantes ilegais que vão trabalhar, sobretudo, nas máquinas de costura das

confecções pertencentes a coreanos e bolivianos. Uma das representantes

da comunidade em São Paulo calcula a existência de cerca de 85 mil

bolivianos só na RMSP, sendo que desses, somente metade encontra-se em

situação legal22.

Gráfico 4

Presença de bolivianos no Brasil

0

5000

10000

15000

20000

25000

1960 1970 1980 1991 2000

Bolivianos

Fonte: CELADE/IMILA, adaptado por Vivian Merola

Os bolivianos espalham-se por outras regiões e estados,

principalmente nos que fazem fronteira com a Bolívia. Conforme indicação do

gráfico 5, eles estão, majoritariamente, no Sudeste, mas 19% ocupam as

22 Informações obtidas em entrevista realizada em 18/02/2008 com Ruth Kabdala, advogada, brasileira, filha de imigrantes bolivianos. A entrevista foi realizada no escritório da advogada, situado na Rua Voluntários da Pátria, 2335, Santana, São Paulo.

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terras da região Norte e 16% estão no Centro-Oeste. A distribuição espacial

desses migrantes também pode ser conferida no mapa 8. Estão em maior

número no estado de São Paulo, mas podemos identificá-los em Rondônia,

Rio de Janeiro, sobretudo na RMRJ, Mato Grosso do Sul, Acre e Mato

Grosso.

Gráfico 5

Bolivianos no Brasil por Região Geográfica

59%19%

16%

4% 2%

Sudeste

Norte

Centro-Oeste

Sul

Nordeste

Fonte: IBGE - Censo Demográfico 2000, adaptada por Vivian Merola

Dentro de São Paulo, os imigrantes concentram-se nas cidades que

abrigam oficinas de confecções, como Americana, Araçatuba, Bauru,

Indaiatuba, Nova Odessa, Santa Bárbara D’Oeste, São Roque e Sumaré,

além da ocupação em toda a grande São Paulo.

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Mapa 8 Bolivianos no Brasil

Atualmente, a mídia brasileira tem divulgado várias informações acerca

da situação de trabalho desses bolivianos, apontando para a exploração a

que esses trabalhadores são submetidos, uma vez que trabalham de 15 a 17

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horas por dia de segunda a sábado, recebendo alguns centavos por peça de

roupa produzida.

A organização do trabalho nas oficinas de costura que pertencem a

bolivianos segue uma configuração muito semelhante aos ayllus23 tradicionais

da Bolívia. De acordo com a explicação dada pela Dra. Ruth Kabdala24, os

bolivianos residentes no Brasil não vêem sua situação de trabalho como

escrava ou exploratória. Acreditam que trabalham em cooperação com os

demais bolivianos e não aceitam que pessoas os apontem como escravos,

semi-escravos ou explorados.

Conforme relatado em entrevista, o conceito de família dos bolivianos é

muito amplo, eles entendem por família, primos de todos os graus, esposas

de primos, cunhados, sobrinhos, tios, etc. Desta forma, a imigração se dá

primeiro pela vinda de um casal, ou somente do homem e à medida que

começa a obter êxito, ganhar um pouco de dinheiro ele traz o restante da

família para ajudar no trabalho, visando a aumentar a renda familiar.

Recentemente, o jornal Folha de São Paulo25 reservou um caderno

especial para tratar dessas questões, o artigo teve a intenção de denunciar as

condições de moradia, trabalho e remuneração praticadas, tais colocações e

relatos chocaram os leitores, entretanto a comunidade boliviana ressentiu-se

e conseqüentemente os bolivianos fecharam-se na comunidade. Segundo

apontou a Dra. Ruth, os maiores desconfortos residiram na visibilidade

gerada, que não é positiva, pois quanto maior a exposição pior será para os

indocumentados e também pelo fato de que, para eles, a organização do

trabalho é justa, sendo o empregador um parente que deseja contribuir com o

empregado para alcançar uma condição de vida diferente da realidade

boliviana, muitas vezes de miséria.

Visando a resolver os problemas migratórios entre os dois países, os

governos da Bolívia e do Brasil assinaram, em 15 de agosto de 2005, um

23 Ayllus - organização tradicional que se caracterizam por ser uma comunidade camponesa ligada por laços de parentesco e conta com a unidade família como força de trabalho 24 Entrevista realizada em 18/02/2008, com a Dra. Ruth Kabdala. Atualmente, presta serviços de assessoria jurídica na Pastoral do Migrante em São Paulo. 25 Ver o artigo da Folha de São Paulo de 16 de dezembro de 2007 nos anexos deste trabalho.

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Acordo sobre a Regularização Migratória26. Este acordo não se configurou

como anistia, mas uma forma de legalizar a situação de migrantes de ambas

as partes que entraram no país vizinho até a data do acordo. Não se têm

dados de quantos bolivianos beneficiaram-se desse acordo, mas estima-se

que foram aproximadamente 15 mil. Se pensarmos que existe só em São

Paulo um número de 30 a 40 mil ilegais, podemos inferir que a medida

beneficiou poucos. Tal situação justifica-se, pois nenhum dos dois governos

aceitou retirar as multas e taxas cobradas para o processo, só a multa por

estar ilegal no Brasil é de R$ 828,00 mais as taxas, todo o procedimento

custaria cerca de R$ 1.000,00, valor proibitivo para a renda dos que ganham

por peça de roupa produzida. Do lado boliviano, de acordo com as

informações obtidas em entrevista, a multa gira em torno de US$ 1.000,00,

mais taxas.

No Brasil, existem duas formas para o boliviano obter o visto

permanente. Uma é através de casamento com brasileiros, fato raro de

acontecer, sobretudo entre a população de trabalhadores não qualificados. A

outra é tendo filhos em território brasileiro, contudo, segundo estimativas

feitas pela Dra. Ruth Kabdala a partir da consultoria jurídica prestada na

Pastoral do Migrante, de cada 10 casais bolivianos com filhos brasileiros, 2

buscam regularizar sua situação até o primeiro ano de vida da criança, 6

esperam até o quarto ou quinto ano e 2 nem procuram a regularização.

Este é o panorama das migrações que vivenciamos entre o Brasil e a

Bolívia, ambos apresentam relações de trabalho extremamente gratificantes

para alguns grupos, como os agroindustriais no oriente boliviano e, em

alguma medida, desumanos para outros, como os costureiros da região

central de São Paulo. Acentuam-se as divergências sociais e econômicas

presentes nos dois países, mas respondendo às dinâmicas geradas pelos

diferentes graus de desenvolvimento de ambos os países.

Acreditamos ser a migração o nó mais difícil nas relações de

vizinhança dos dois países, pois não existem meios de sanar completamente

essa situação, assim o que pode ser feito são acordos diplomáticos que

tornem o processo migratório legalizado. Outra possível solução, mas de

26 Ver cópia do Acordo nos anexos deste trabalho

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longo prazo, seria apoiar o desenvolvimento econômico boliviano para tornar

a condição de vida da população mais equilibrada em relação aos países da

América do Sul, diminuindo, naturalmente, o fenômeno migratório.

4. Considerações Finais

Este trabalho teve como objetivo compreender as relações de vizinhança, no

âmbito da integração sul-americana, que envolve o Brasil e a Bolívia. Para

apreender tal questão, foi necessário fazer um levantamento bibliográfico

diversificado, lançando mão de materiais com as mais diversas origens. Assim,

fomos levados a usar autores da geografia, da geografia política, da história,

cientistas políticos, diplomatas, jornalistas, enfim, uma série de trabalhos que nos

dessem subsídios para compreender a pluralidade envolvida no tema pretendido.

Todos esses processos aqui examinados estão intimamente ligados ao

processo de integração em curso na América do Sul e o envolvimento entre

esses dois países parece ganhar maior peso na atualidade devido a fatores

estratégicos para a consolidação desse bloco regional.

A abordagem histórica destinada à Bolívia e ao Centro-Oeste evidenciou o

quanto as relações sempre tiveram uma função estratégica, uma vez que os

pensadores da geopolítica brasileira viam na ocupação do centro-oeste e na

interação com o vizinho formas de assegurar a influência do país na região.

A questão energética também estimulou a aproximação entre esses dos

países, consolidando mais um importantíssimo referencial nas suas relações. A

integração energética ainda é um tema quente e em pauta na política externa de

ambos, pois existe uma mútua dependência, do Brasil pelo gás boliviano e da

Bolívia pelo conhecimento tecnológico e investimentos de capital. Tal situação

exige que os países atuem no cenário político com expressiva cautela, visando

sempre à Integração em andamento no subcontinente.

Por fim, a análise acerca do fluxo migratório nos leva a constatar que a

pretendida integração não apresenta um dimensão apenas econômica e política,

acrescentando-se a estas uma dinâmica social. A migração revela-se como

fenômeno pulsante na vida de relações entre os dois países e revelam,

sobretudo, as suas enormes desigualdades que são, em ambos os casos,

internas e externas.

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Anexo A: Artigos publicados em jornais.

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15 de fevereiro 2008

AMÉRICA LATINA

Dispostas a manter poder e privilégios, elas escoram-se nas autonomias regionais e alardeiam uma suposta "ameaça autoritária". Para superar o impasse, o governo Evo poderia manter a idéia de refundação nacional, mas estabelecer também uma ponte com os setores médios

Franck Poupeau, Hervé Do Alto

Ainda que seja de bom tom entre a esquerda internacionalista querer “mudar o mundo sem tomar o poder”, para citar o título do famoso livro de John Holloway [1], a Bolívia escolheu uma outra via. Ao fim de um ciclo conflituoso no país [2], vivido entre 1999 e 2005, Evo Morales consagrou-se o “primeiro presidente indígena” da América [3]. Eleito em 18 de dezembro de 2005 com 53,72% dos votos, ele prometeu defender os direitos das populações indígenas, oprimidas desde a colonização, além de acabar com vinte anos de políticas liberais e colocar em ação a ”agenda de outubro” – um conjunto de reivindicações firmado em outubro de 2003 em torno das demandas de nacionalização dos hidrocarbonetos e de refundação do Estado com uma nova Constituição.

Desde sua chegada ao poder, o governo produziu relatórios econômicos muito pragmáticos. Negociou a saída da multinacional francesa Lyonnaise des Eaux da companhia de distribuição de águas de La Paz [4], e ao mesmo tempo, garantiu a continuidade da exploração dos hidrocarbonetos pelas empresas brasileiras, argentinas e espanholas, apesar da “nacionalização” espetacularmente anunciada em 1º de maio de 2006 [5]. Enquanto alguns ministérios sofreram renovação profunda de seu pessoal, o da Economia foi mantido em sua quase totalidade. Toda essa enorme prudência na elaboração das políticas públicas é conseqüência do espectro da desestabilização orquestrada pelas elites econômicas do país.

Apesar dos esforços, dois anos após a eleição de Morales a situação política está atravancada. O projeto da nova Constituição é muito contestado e as ricas regiões petrolíferas e agro-industriais da “media luna” [6] coração econômico do país, proclamaram, “de fato”, sua autonomia. No Senado, onde a direita tem maioria, ao contrário da Câmara dos Deputados, a promulgação de grande parte das medidas sociais foi barrada. Em novembro de 2006, a reforma agrária só foi aprovada graças a uma mudança de voto de muitos oposicionistas. O mesmo aconteceu com a Renda de Dignidade, um benefício semelhante ao Bolsa-Família brasileiro, dirigido aos idosos. Outra medida central do programa do MAS (Movimento ao Socialismo, partido de Morales), a nacionalização dos hidrocarbonetos, teve de ser instituída por decreto em maio de 2006.

A principal dificuldade do governo, no entanto, provém de sua própria gestão. O MAS, nascido do sindicalismo camponês dos cocaleros [7], é menos um partido e mais uma federação de organizações sociais. Nem todos os seus congressistas eleitos dispõem do mesmo “capital de militância” para as negociações tácitas da democracia representativa. Essa dinâmica sociológica permite compreender porque os parlamentares e dirigentes provenientes do mundo rural tendem a adotar posições duras e utilizam, freqüentemente, a técnica do “fato consumado” para afrontar a oposição. Assim, a impressão que fica, principalmente para as classes médias urbanas, é de que o governo só se preocupa com as comunidades indígenas do altiplano, os altos platôs andinos.

Bolívia: o contra-ataque das elites

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As elites aparecem como defensoras da autonomia. E utilizam a bandeira contra a nova Constituição

Em 2 de julho de 2006, dois eventos concomitantes contribuíram com o agravamento desse quadro: a eleição dos representantes na Assembléia Constituinte e um referendo sobre as autonomias departamentais. No caso desta última, o “não” venceu em nível nacional com mais de 56% dos votos [8], mas, para o conforto das tendências anti-Morales, o “sim” foi aprovado em quatro dos nove departamentos (Beni, Pando, Santa Cruz e Tarija), todos situados no leste do país. Chamando o voto no “não” e qualificando as autonomias departamentais como um “projeto das elites da media luna”, o MAS permitiu que a oposição renascesse das cinzas eleitorais [9], deixando-lhe o monopólio dessa temática.

No mesmo momento, a convocação da Assembléia Constituinte ratificou um sistema de voto muito próximo daquele já em vigor, sem que fosse assegurada uma representação mais forte dos setores sociais. Apesar de obter maioria, com 133 dos 255 eleitos, o MAS não atingiu os dois terços necessários para a aprovação da nova Constituição. Ao longo de muitos meses, uma fração moderada tentou chegar a um acordo com a oposição. A linha radical finalmente triunfou em novembro de 2006 e substituiu a “regra dos dois terços“ pelo voto de maioria simples. A oposição aproveitou esse pretexto para mais uma mobilização contra o governo, acusando-o de “desvio autoritário” inspirado em Hugo Chávez, presidente venezuelano.

Os governadores das províncias do leste encontraram a ocasião perfeita para reforçar a demanda de autonomia departamental contra “a ditadura do Estado central”. As mobilizações antigovernamentais culminaram, em 12 de dezembro de 2006, no cabildo del million, uma manifestação de um milhão de pessoas em Santa Cruz, ironicamente rebatizada pelos partidários de Morales de cabildo de los milliones (manifestação dos milhões), em referência à quantidade de dólares investidos nela pelas grandes empresas locais.

Em seguida, os debates se radicalizaram. Primeiro com os enfrentamentos de janeiro de 2007, em Cochabamba, entre sindicalistas camponeses e partidários do governador de oposição Manfred Reyes Villa, que queria convocar um novo referendo sobre a autonomia de seu departamento, onde o “não” havia ganhado. Depois, em torno da questão da sede do governo. A súbita proposta dos comitês cívicos do leste [10] de fazer de Sucre a capital da Bolívia, em detrimento de La Paz [11] não tinha sido incluída pelo MAS na Constituinte. Isso porque o partido achou que tinha um amplo apoio da população neste ponto, após manifestações que reuniram mais de um milhão de pessoas em La Paz e El Alto [12].

Porém, os comitês cívicos de Sucre decidiram impedir, a força, a continuidade dos debates. De 23 a 25 de novembro, enfrentamentos mortais opuseram estudantes e empregados municipais às forças da ordem, que defendiam a escola militar onde estava refugiada a Constituinte. Na madrugada de 25 de novembro, esses deputados votaram um novo projeto de Constituição, que foi imediatamente deslegitimada pela oposição, ausente do processo. Os oposicionistas tiveram a mesma reação em 9 de dezembro de 2007, quando a Assembléia Constituinte concluiu seus trabalhos aprovando, por 165 votos, o texto constitucional esperado pelas organizações sociais [13].

Para voltar os pobres da media luna contra os índios, apelo a uma suposta "identidade" regional

A intensidade dos boicotes que sobrevieram neste fim de 2007 explica-se: os governadores da media luna empreenderam uma batalha decisiva. Eles tinham de vencer, sob pena de ver desaparecer a autonomia departamental que garante seu projeto político. De fato, a decisão do governo de modificar a repartição dos benefícios vindos dos impostos sobre os hidrocarbonetos, financiando a Renda de Dignidade e atribuindo mais dinheiro aos municípios, em detrimento dos departamentos, não deixava aos governadores outra alternativa além de concentrar seu poder para preservar as entradas financeiras.

Nessa perspectiva, o conflito a respeito da capital não foi mais que um pretexto para a oposição. Tratava-se, antes de qualquer coisa, de frear uma reforma constitucional que tinha por objetivo

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reconhecer as populações indígenas e repartir de forma mais equânime as riquezas da nação, sobretudo as terras. Ora, entre os porta-vozes da direita figuram os proprietários mais importantes do setor agro-industrial do país, como Branko Marinkovic. Presidente do Comitê Cívico Pró-Santa Cruz, ele também está à frente de uma grande empresa nacional de produção de óleo. Morales acusa esses dirigentes da oposição de empreender uma verdadeira “guerra econômica”, favorecendo a inflação sobre os bens de consumo elementares, principalmente a carne, setor controlado pelas agroindústrias do leste boliviano. Como da direita também fazem parte os proprietários das grandes mídias privadas – o canal de televisão de maior audiência, o Unitel, pertence a uma riquíssima família de latifundiários de Santa Cruz –, os enfrentamentos trágicos deram lugar a um furor contra o governo.

Para além dos aspectos conjunturais, os atuais boicotes colocam em questão a orientação geral da política governamental. Desde sua fundação nos anos 1990, o MAS caracteriza-se por um discurso anticapitalista, promovendo o exercício da soberania nacional graças à reapropriação dos recursos naturais contra a exploração das empresas estrangeiras. Com sua vitória eleitoral, o partido começou a implementar seu principal objetivo: a “descolonização” do Estado e da sociedade. Se a retórica indigenista do governo apela essencialmente ao sindicalismo camponês na definição de suas orientações principais, isso se deve à necessidade de contar com apoios sólidos, em um período marcado por profundas mudanças. Porém, o descontentamento em relação ao processo em curso, perceptível na fração do eleitorado que não se identifica a um grupo étnico-cultural, é exacerbado em uma grande parte do oriente boliviano. Esse afastamento acontece no momento em que as elites propõem um princípio de identificação muito mais acessível: uma identidade regional, que representa dinamismo econômico e modernidade. Isso não se estabelece sem um esforço de deslegitimação dos novos ocupantes do aparelho de Estado, e apela, eventualmente, para um racismo mal disfarçado. Certa vez, o prefeito de Santa Cruz, Percy Fernández declarou: “Logo, logo será preciso vestir penas para se fazer respeitar neste país”. A “radicalização indigenista” do governo tem duas conseqüências. A primeira é que a afirmação incondicional da legitimidade histórica e política da causa indígena sugere que ela se situa em um nível superior ao da legalidade democrática. Nessas condições, se forças políticas se opõem a essa causa, não seria mais necessário respeitar regras constitucionais. E quando a oposição utiliza as técnicas de mobilização – fechamento de estradas, assembléias públicas, etc – que eram outrora privilégio dos movimentos sociais anticapitalistas ou indigenistas, o poder encontra-se diante de uma contradição insuperável: como governo popular, ele não pode reprimir pela força. Só pode, então, tachar essas resistências de “facções sediciosas” a serviço das “velhas oligarquias”, o que impede os partidários do MAS de compreenderem as razões do aprofundamento da crença coletiva no valor das identidades regionais.

Possível saída: manter a idéia da refundação do país, acenando também às camadas médias urbanas

A segunda conseqüência da radicalização indigenista do governo reside em sua incapacidade de definir um projeto que inclua os setores não indígenas da população. Apesar de os votos do MAS apresentarem um crescimento progressivo, as classes médias urbanas e a região leste do país não parecem ter se beneficiado da política de redistribuição das riquezas, que valorizou os dividendos do meio rural. No projeto de nova Constituição, a promulgação da wiphala, bandeira multicor símbolo das populações indígenas, como emblema com mesmo valor da bandeira nacional, contribui para apartar, do projeto de transformação social do governo grandes setores mestiços das regiões orientais ou das cidades. Nesse sentido, a recomposição da esquerda boliviana em torno de temáticas identitárias, privilegiando a reabilitação da diversidade étnica em detrimento da consideração das desigualdades entre classes e da crítica ao capitalismo, mostra seus limites. E torna mais difícil o alargamento da base social do governo. A conversão massiva e freqüentemente oportunista dos intelectuais de esquerda a esse discurso “pós-colonial”, particularmente nas cidades de La Paz e El Alto, identificadas como o coração do poder central, permite também compreender a força da questão da transferência da capital: fazer a sede do governo voltar de La Paz para Sucre é contestar a hegemonia das regiões do altiplano. Isso justifica as teses da direita quando ela não hesita em falar, com uma boa dose de má fé, em “racismo às avessas”.

Resta, entretanto, saber se, em um país como a Bolívia – marcado pela força das desigualdades sociais, pela discriminação étnica e pelo racismo anti-indígena –, o governo de esquerda poderia sustentar um outro discurso, e se seria concebível evitar uma expressão tão convulsiva das formas de ressentimento acumuladas ao longo da história colonial. O “atropelo” do MAS, em dezembro de 2007, corre o risco de provocar a rejeição de uma nova Constituição que comporta avanços

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históricos na construção de um “Estado plurinacional comunitário”, descentralizado, autônomo e democrático, e que reconhece os direitos das populações “originárias” [14]. Mais ainda, o texto constitucional legitima a pluralidade econômica (comunitária, estatal e privada), a garantia dos direitos fundamentais pelo Estado (educação, acesso aos serviços básicos, direito ao trabalho, amparo aos idosos, sistema universal de saúde etc.), a existência de muitos níveis de autonomia (departamentos, províncias, municípios e territórios indígenas originários) e a afirmação da soberania nacional sobre as riquezas naturais.

Os eventos recentes mostram que, sob pretexto de denunciar o “desvio autoritário” e a “suspensão da democracia”, um “populismo conservador” pode utilizar as regras democráticas para impedir qualquer tentativa de mudança. O problema é saber se é possível impulsionar na Bolívia uma “revolução sem revolução”, ou seja, um processo radical de transformação social pelas vias “democráticas”, ao mesmo tempo fundado sobre a legitimidade de um voto e sobre uma ação governamental que respeite as regras constitucionais.

O MAS confronta-se com um delicado dilema: à medida que reforça o lugar específico do mundo rural, ele corre o risco de se alienar de uma população urbana cada vez mais seduzida pela retórica anti-indigenista de elites regionalistas que têm tudo a perder com o novo texto constitucional. Se ele não agregar gestos mais visíveis em direção às classes médias, a vontade de instaurar, paralelamente aos direitos cívicos, direitos econômicos e sociais para os setores mais despossuídos, corre o risco de alimentar uma dinâmica de enfrentamento sócio-étnico. Nessa hipótese, não se poderia excluir um confronto fora dos quadros legais, destinado a romper o status quo.

A exacerbação das lutas atuais ameaça assim colocar em questão uma das conquistas mais significativos da “revolução democrática” boliviana: a concessão de uma verdadeira cidadania política às populações subalternas que começam a ser representadas nas esferas de governo e nos círculos decisórios.

[1] John Holloway, Mudar o Mundo sem Tomar o Poder: o Significado da Revolução Hoje. Boitempo, São Paulo. [2] Ler Maurice Lemoine, “Puissant et fragmenté, le mouvement social Bolívian” [“Poderoso e fragmentado, o movimento social boliviano”], Le Monde Diplomatique, novembro de 2005. [3] É preciso relativizar essa fórmula repetida mil vezes recordando que o indígena zapoteca Benito Juárez foi presidente do México de 1867 a 1872. [4] Epílogo de 3 de janeiro de 2007 da mobilização popular que, em El Alto, exigiu e obteve (13 de janeiro de 2005) o fim da concessão de trinta anos concedida à transnacional Águas de Illimani – Lyonnaise des eaux. [5] Nem expropriação nem expulsão: trata-se fundamentalmente de um aumento dos impostos das multinacionais e de uma renegociação de seus contratos. Conseqüência: enquanto em 2005 o Estado havia recolhido menos de 300 milhões de dólares em receitas ligadas à exploração do gás e do petróleo, ele apropriou-se de 1,6 bilhão em 2007. [6] Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando: os quatro departamentos do leste que formam uma meia-lua no mapa do país. [7] Produtores de coca, essencialmente da região do Chapare. [8] O “não” venceu massivamente nos departamentos de La Paz, Oruro, Potosi, Chuquisaca, e mais moderadamente em Cochabamba. [9] O principal partido de oposição, Poder Democrático e Social (Podemos), obteve 28% dos votos nas eleições presidenciais de 2005, e 15% na eleição dos representantes na Assembléia Constituinte. [10] Comitês reunindo as organizações patronais e sociais que são relacionadas em nível departamental. [11] Sucre é a capital constitucional, mas, desde o fim do século XIX e da Guerra Civil que opôs Sucre e La Paz, esta última tornou-se sede do governo e abriga notadamente os poderes executivo e legislativo. [12] Imensa aglomeração popular na região metropolitana de La Paz. [13] Mais de dois terços dos participantes, mas não do conjunto dos constituintes (255). [14] “Considera-se como nação ou povo indígena originário qualquer coletividade humana que partilhe identidade cultural, língua, tradição histórica, instituições, território e cosmovisão, cuja existência é anterior à colônia espanhola” (art. 30).

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Artigos do Estado de São Paulo, selecionados entre março de 2007 e janeiro

de 2008.

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

Brasileiros na Bolívia vêem sua 'terra prometida' ameaçada São 10 mil famílias que vivem na região da fronteira e que, pela nova Constituição, serão obrigados a ir embora. Fausto Macedo Há dois Brasis na Bolívia de Juan Evo Morales Ayma. Um adoecido, filhos infelizes e descalços, sem água nem luz, sem Bolsa-Família, nem Renda Cidadã. Outro que produz de sol a sol, até debaixo de temporal, que planta e colhe arroz, milho e feijão, constrói no braço pontes sobre riachos no Estado do Pando e cria gado Nelore para corte e venda a 10 bolivianos (R$ 3, 50) o quilo da carne no gancho. Mas há algo em comum entre esses dois Brasis - eles estão sob ameaça da febre nacionalista de Evo e sua reforma agrária. O presidente boliviano decretou o resgate da soberania na fronteira. Cerca de mil famílias brasileiras, nessa região, se submetem a um dia-a-dia nervoso, de insegurança, à espera de uma sentença que pode ordenar sua expulsão da 'terra prometida' que foram buscar no país mais pobre da América do Sul. Esses brasileiros cruzaram a fronteira escancarada, 3,4 mil quilômetros de linha seca e sem vigilância. Vivem e trabalham dentro de uma faixa de 50 quilômetros a partir da fronteira com o Acre. A Bolívia conta com 10 mil famílias de brasileiros espalhadas por outras regiões. A Constituição do País de Evo, Artigo 25, proíbe estrangeiros vizinhos de terem propriedade nessa área. Quase todos os brasileiros não têm um único documento, nem mesmo de identidade, que os livre da pressão que La Paz deflagrou há cerca de seis meses. HOSTIS O aperto vem a qualquer hora, também à noite. Patrulhas policiais chegam subitamente. Os homens fazem muitas perguntas, cobram títulos de posse da terra. São hostis. Milícias paralelas entram em ação. Bandidos tomam a produção de muitas famílias sob ameaças de morte. 'Não tenho para onde ir, mas também tem muito boliviano clandestino no Brasil', protesta Maria Decilda do Nascimento, 38 anos e 9 filhos, oito vivos porque um a malária levou. Ela mora no Lote São Luiz, a 60 quilômetros da zona franca de Cobija, a capital do Estado do Pando, na fronteira com Brasiléia, do lado brasileiro. Decilda faz parte do Brasil que vive na miséria dentro do País de Evo. Nada produz, não tem bens, nem documento pessoal. Caiu na vala dos clandestinos. Outros brasileiros, os que exploram o campo e dele tiram seu sustento, acreditam que estão de bem com as autoridades bolivianas. A Fazenda Cachoeirinha, nos arredores da Comunidad Arroyo Pacay, pertence a Sebastião Gomes, de 43 anos, filho de pai paraibano e mãe amazonense. São 220 hectares na Amazônia boliviana. Gomes ainda não tirou o título de posse, mas parece não ter pressa. 'Tô buscando', ele diz, abrindo um sorriso largo que revela um canino de ouro. São boas as relações desse brasileiro com o governador do Pando, Leopoldo Fernández Ferreira, opositor de Evo, que em março contratou por 65 mil bolivianos (R$ 20 mil) Natal Gomes, irmão de Sebastião, para fazer a ponte de madeira sobre o riozinho Pacaê, a caminho de Trigueros, floresta adentro. Na manhã de quarta-feira, Sebastião e Natal, alguns dos 17 filhos deles e mais 5 trabalhadores bolivianos já haviam derrubado 6 castanheiras parrudas e 3 cumaru-ferro que vão virar uma obra de 5 metros de largura por 12 de comprido. MAPEAMENTO Mapeamento do Ministério de Desenvolvimento Rural, Agropecuário e Meio Ambiente boliviano indica que esses brasileiros arrendam áreas de plantação de soja sem respaldo em registros formais. Dedicam-se também à extração da borracha, da madeira. Muitos são quebradores de castanha e trabalham por um punhado de bolivianos, a moeda do país que escolheram para viver. 'Muito brasileiro vive de centavos do lado de lá', denuncia Rosildo Rodrigues de Freitas, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Brasiléia e Epitaciolândia, no Acre. 'É caso de polícia.' ESPADA NA CABEÇA 'Os brasileiros estão com a espada na cabeça', alerta uma autoridade brasileira. 'Não há uma solução consistente.'

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O Brasil quer evitar a deportação em massa porque teme que a medida será copiada pelo Paraguai, onde vivem cerca de 350 mil brasileiros. 'Se o Brasil aceitar que a Bolívia nos expulse, o Paraguai vai entender como uma sinalização e seguirá o mesmo caminho', observou um analista. 'Será um precedente muito grave.' Em fevereiro, a Bolívia tentou desferir o golpe de misericórdia. Durante reunião em La Paz, o governo de Evo fixou para 31 de março a data-limite para desalojar os brasileiros. Brasília não aceitou e a Bolívia recuou, mas apontou um novo prazo. Nem mesmo os R$ 20 milhões que o governo Lula pretende transferir por meio da Medida Provisória 354 para regularização fundiária e migratória na Bolívia fez recuar o assédio aos brasileiros. Esse crédito, de acordo com parecer do deputado Nilson Mourão (PT-AC), relator da MP, 'tem por finalidade viabilizar medidas de fortalecimento da cooperação bilateral com a Bolívia, especialmente na área de desenvolvimento agrário e de agricultura familiar'. Mourão advertiu para o fato de que o regresso em massa dos brasileiros provocaria novo foco de tensão, agora no Brasil, porque não haveria como acomodar a todos com emprego e moradia. 'A relevância e urgência desta proposição justificam-se pelo grande potencial de tensões que se criariam na fronteira com o desalojamento intempestivo de centenas de famílias brasileiras e a falta de alternativas viáveis para a sua reocupação socioeconômica no Brasil.' O problema, na avaliação de Brasília, é que o País não tem nenhuma garantia de que o dinheiro da MP vai fazer a Bolívia mudar sua estratégia. O governo Lula considera que Evo deveria promover alterações em sua legislação para regularizar a permanência dos brasileiros. 'A MP é uma tentativa de criar uma agenda positiva, apenas um triunfo da esperança sobre a razão', observa uma fonte do Palácio do Planalto. 'A situação na fronteira é delicada, uma questão social preocupante', define Ruth Cayami, diretora distrital do Serviço Nacional de Migração do Estado do Pando. Ela disse que jamais expulsou brasileiros. 'O que pretendemos é respeitar as regras, cumprir as leis e a Constituição da Bolívia, sem que isso signifique romper as relações ou violar direitos, independentemente de nacionalidade, cultura ou condição.' Ruth destacou que 'inspeções de campo' promovidas por agentes bolivianos identificaram 'muitos casos de brasileiros que vivem há muito tempo na Bolívia sem permissão, na ilegalidade'. Limberg Rosell, diretor departamental do Instituto Nacional de Reforma Agrária (Inra) da Bolívia, disse que cadastramento realizado em 2001apontou 200 famílias brasileiras em situação irregular. 'Muitas foram embora depois da notificação, mas transferiram as terras a outros', afirmou. 'A norma e os interesses bolivianos serão respeitados.' PONTE Enquanto a via diplomática não se entende, pela Ponte da Amizade, que liga Brasil e Bolívia, passam centenas de brasileiros todos os dias. A festa de inauguração, em agosto de 2004, reuniu o presidente Lula e seus colegas da Bolívia, na época Carlos Mesa, e do Peru, Alejandro Toledo. Na placa, a mensagem otimista. 'Aqui nessa fronteira amazônica os limites foram superados pela vontade de nossos povos em estabelecer fortes laços de amizade. As cidades de Brasiléia e Cobija nasceram desse ideal. Movidos por esse sentimento os presidente do Brasil e Bolívia, na presença do presidente do Peru, inauguram nesta data a Ponte Wilson Pinheiro que simboliza o novo momento da história de integração dos países da América do Sul.'

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

Brasil dá R$ 20 mi para região

A ameaça de expulsão dos brasileiros que vivem do lado de lá da fronteira com a Bolívia levou à aprovação, pela Câmara dos Deputados, da Medida Provisória 354, no fim do mês passado. A medida abriu crédito extraordinário de R$ 20 milhões para o Ministério das Relações Exteriores estabelecer parcerias com a Bolívia, usando os recursos para prestar assistência a famílias brasileiras que vivem em território boliviano na fronteira com o Acre. O dinheiro servirá para melhorar a agricultura familiar em cooperação com a Bolívia ao longo de 500 quilômetros na faixa de fronteira, em região ocupada por brasileiros. A idéia é criar cooperativas extrativistas, avícolas e hortifrutigranjeiras. O deputado Nilson Mourão (PT-AC), relator da MP 354 na Câmara, informou antes da votação que há pelo menos 7 mil pessoas na região que foram ameaçadas de expulsão pelo governo boliviano, segundo informações do Ministério das Relações Exteriores. As famílias que trabalham no local praticam extrativismo e pequena agricultura. Mourão disse que um acordo entre os governos dos dois países prevê o financiamento de ações para beneficiar

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bolivianos e brasileiros. A regularização da situação migratória dos brasileiros seria a contrapartida do governo boliviano aos investimentos do Brasil. Parte da oposição criticou a idéia, dizendo que o Brasil está comprando a segurança de seus cidadãos na Bolívia.

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

'A gente não tem pra onde ir, moço'

Brasileiros se amontoam em comunidade onde falta luz e comida

Fausto Macedo

- Você é brasileira? - Sim senhor. - O seu marido? - É brasileiro. - Os seus filhos? - São todos do Brasil. - A Patrícia tem algum documento? - Não. - Nenhum permisso? - Não. - Tem ciência de que estão clandestinamente em território da Bolívia? - Sei disso. - Vocês invadiram a Bolívia. - A gente não tem pra onde ir, moço. - Mas vão ter que sair daqui, desocupar.

Maria Decilda do Nascimento ouviu a reprimenda com o coração apertado, à porta do casebre que ela e a filharada ocupam na Comunidade São Luiz, que fica além da Villa Busch e antes da Puente Abaroa, a 60 quilômetros da fronteira com o Brasil. Era um sábado à tarde, em fevereiro. Da Toyota roxa saltaram dois homens e uma mulher.Apenas um deles falou. Não exibiu nenhum documento oficial, não deixou notificação. Mas foi ríspido com a brasileira. 'Ele veio pra intimidar', ela conta, com seu mais novo no colo, Elivélton, de 8 meses. Faz dois anos que Decilda chegou por aqui. Veio do acampamento de lona do seringal Porto Rico, no interior da Bolívia, mas o medo da onça que andou fazendo estragos na floresta a fez mudar de imediato para o barraco de ripas de madeira. O lugar ela divide em dois cômodos com uma cortina de pano rasgado. Um cômodo é a cozinha, que não tem fogão nem geladeira, e o outro tem uma cama de casal, uma de solteiro e uma rede onde os filhos se revezam à noite. Os filhos de Decilda não têm brilho nos olhos. São crianças raquíticas, que parecem à espera da salvação. Depois de Decilda veio a sogra, dona Francisca Freire Dias, de 62 anos, 12 filhos e netos 'de uns 30 prá lá'. E depois da Francisca vieram mais sete famílias, na miséria como ela, que habitam barracos iguais. A comunidade São Luiz é isso, um amontoado de brasileiros sem água, esgoto, luz, escola e hospital. Vivem de centavos, que amealham vez por outra, quando tem algum serviço braçal. Mais que um naco de carne, que não sabe o que é faz tempo, Decilda quer os filhos no estudo, pelo menos os menores. Do outro lado do ramal, como chamam aqui as estradinhas de terra, fica a Escola Amiga, que é municipal. Mas os professores bolivianos ensinam a sua língua. As crianças brasileiras não conseguem acompanhar. Arnaldo Araújo Freire, de 31 anos, o companheiro de Decilda, passa a semana inteira fora. É um brasileiro sem documento e sem profissão certa. Ele faz o que tem para fazer. Ora na roça, ora na serraria em Epitaciolândia, do lado brasileiro. A noite cai. Os sete casebres somem na escuridão. 'Zezinho, vai lá pegar o isqueiro com a dona Chica', manda Decilda. José Welington, 9 anos, dá uma carreira e apanha o isqueiro. Decilda acende a lamparina, que ilumina um canto do barraco. Dali a pouco chega o vizinho Fidélis Soares, de 27 anos, a roupa encharcada de suor. Foram 15 quilômetros de batida. Na mão direita ele carrega uma fieira de seis Piauçus, peixe que dá na região. 'Tive sorte.' Francisco, 30, filho de dona Chica, apanha o machado, golpeia o tronco de árvore no chão e a lenha em ripas alimenta o fogo para o peixe.

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Ele diz que não tem medo da Bolívia. 'A gente vai ver aí. O pessoal (os agentes da imigração) assusta um pouco, mas só que a gente não faz nada de errado.' 'Eu disse pro homem que também tem muito boliviano ilegal no Brasil', lembra Decilda.

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

Irmãos Gomes conseguiram prosperar

No pedaço de terra herdada do pai eles mantêm plantações e criam animais

Fausto Macedo

Ele começou a vida do nada. Tinha apenas uma vaca, um bicho magro de dar dó, couro e osso.Vinte e três anos depois, Sebastião Gomes é dono de 220 hectares na Bolívia de Evo Morales, seu gado tem 80 cabeças de Nelore. Cria frangos, 200 aves, e porcos. Planta arroz, milho e feijão rosinha e carioquinha. Tem ainda o dente de ouro, que mandou colocar em Cobija, e que exibe como um troféu. 'Não sou um homem rico', afirma. 'Trabalho suado para manter o meu pessoal.' Mora com Rosário Rocca, boliviana, em uma casa equipada com fogão e TV, o que é um conforto e tanto. Os filhos são 14, 'misturando tudo de uma mãe e de outra'. Três estão matriculados na Escola Novo Triunfo, do governo boliviano: Ricardo, de 12 anos, Erguin, de 10, e Kerly, de 9. A família chegou à Comunidad Arroyo Pacay pelos idos de 1975. Veio da Paraíba para o Acre, por onde entrou na Bolívia. Era um tempo em que as autoridades bolivianas pareciam não se incomodar tanto com os brasileiros. A fiscalização na fronteira era pífia, como agora. Passa quem quer, a hora que quiser. Sebastião e os irmãos Natal, Fátima e Manoel repartiram um pedaço da Amazônia boliviana herdada do pai. Todos plantam e criam animais. Nas últimas eleições, os irmãos Gomes 'deram uma força' para o candidato Leopoldo Fernández, do partido Podemos (Poder Democrático Social). Ajudaram a transportar eleitores para votar e distribuíram panfletagem nas ruas. Eleito governador do Departamento do Pando, o rival de Evo Morales contratou Natal Gomes para a obra de 'mejoramiento de infra-estrutura área rural, construccion puente de madeira', como anuncia a placa fincada à beira do Pacaê. Sebastião também trabalha na construção da ponte. Ele e sua turma chegam para a missão antes de o dia clarear. Suas ferramentas são a motosserra 051 à gasolina, esquadro, martelos e a talha, engenhoca com carretilha, corrente e cabo de aço. A nuvem de mosquitos e besouros da floresta já nem incomoda os trabalhadores. Muitos deles, como o próprio Sebastião, já caíram na malária, mas esse é um risco com o qual eles convivem. Sebastião diz que não tem receio de ser deportado para o Brasil. 'Medo, eu? Claro que não, porque automaticamente eu sou boliviano.'

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

'A Bolívia é um paraíso'

Fazendeiro que teve serraria lacrada ainda acredita que pode ficar

Fausto Macedo

Do alto do seu trator Valtra, de R$ 95 mil, o fazendeiro brasileiro afirma: 'A Bolívia é um paraíso.' Hélcio Stanger, de 40 anos, chegou há 3 em Cobija, capital do Estado do Pando. Deixou Ariqueme (RO), onde tinha madeireira, em busca de uma carga tributária menos agressiva que a do Brasil. Cobija é zona franca. O real brasileiro vale quase 3,5 vezes o boliviano. Seus bens na Bolívia incluem a Fazenda Bela Flor, de 8,6 mil hectares e 800 cabeças de gado para corte, o Haras Karitiana com 110 hectares e 32 quartos-de-milha puro sangue, 50 carneiros, 8 represas para criação de peixes, 6 hectares de plantação de milho, 3 de abacaxi, 3 de banana. 'A Bolívia é muito boa para quem quer trabalhar com vontade', afirma o fazendeiro, apesar dos reveses que o governo Evo Morales impôs a ele e a seu irmão, Genésio Stanger. No ano passado, as autoridades lacraram a grande serraria dos Stanger. 'Não deram nenhuma explicação', diz Hélcio. 'Ninguém pode chegar e falar: vai embora daqui.'

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

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Seringueiro foge e deixa seus bens

O seringueiro José Honorato Brilhante, o Dinossauro, de 76 anos, é um exemplo de brasileiro que, coagido, deixou a Bolívia. Ele chegou a ter 22 estradas - como são chamados os seringais -, mas com a queda no preço passou a pescar e plantar arroz, feijão e milho. Bolivianos exigiram seus documentos e o pagamento de uma taxa informal pelos produtos vendidos. 'Queriam muito. Eu não aceitei aquela ordinarice', conta Dinossauro. Por fim, ameaçado de morte, ele voltou ao Brasil. 'Não deu pra trazer tudo', lamenta. 'Tive que deixar o forno, as casas de farinha, o engenho de cana. Deixei um hectare de macaxeira e dois de banana. Os bolivianos tomaram conta de tudo.'

NACIONAL Domingo, 11 março de 2007

Deportações são casos isolados, diz cônsul Fausto Macedo

O pai é naturalizado brasileiro, a mulher é paulista de Santo André e são acreanas as filhas de Oscar Antonio Camacho Cuellar, cônsul-geral da Bolívia em Brasiléia, na fronteira com o País de Evo Morales. 'De fato, quase sou um brasileiro', declara o diplomata de 40 anos, boliviano de Cobija, formado em Letras em Belém do Pará e ex-professor de inglês em Rio Branco, a capital do Acre. 'Devo muito ao Brasil.' Desde junho de 2006 no cargo, ele tem a missão de apaziguar ânimos e evitar desavenças entre bolivianos e brasileiros nessa região onde os povos se misturam no vaivém pela ponte que liga Brasil e Bolívia. 'Tenho muito boas relações com a prefeita (Leila Galvão, do PT), com a Polícia Federal, com todo mundo. Não há mal-estar. Se eu posso ajudar, eu ajudo.' Segundo ele, só dois brasileiros foram deportados nos últimos meses por extração ilegal de madeira. 'São casos isolados. Não existe esse negócio de dezenas de famílias forçadas a regressar ao Brasil.' Ele destacou que 40 famílias bolivianas vivem pacificamente em Brasiléia. 'São médicos, professores, dentistas, todos bem tratados.' O cônsul é tão afeito aos usos e costumes do país onde estudou que não economiza gírias brasileiras. 'Minha primeira medida foi mudar o endereço do consulado, que ficava lá nos cafundó.' Evo Morales é seu ídolo maior. 'Ele está fazendo muita coisa boa para a Bolívia. Assim como o Lula faz pelo Brasil.' Camacho aprecia a feijoada brasileira e o sajta, prato boliviano que leva frango ao molho com batatas grandes. No futebol, o coração pende para o Flamengo. 'Aí já sujou não é?', brinca.

INTERNACIONAL Sábado, 1 dezembro de 2007

Opositores de Evo enfrentam polícia em Cobija

Choque deixa dezenas de feridos, incluindo policiais que teriam sido açoitados por manifestantes

Um violento choque entre a polícia e opositores do governo de Evo Morales deixou dezenas de feridos numa manifestação em Cobija, no Departamento (estado) de Pando. No início do dia, o governo havia enviado um grupo de mais de 70 policiais à cidade, já temendo pela explosão de violência. O confronto ocorreu no final de uma marcha de apoio ao presidente, quando dezenas de universitários saíram às ruas para protestar contra as políticas de Evo e entraram em choque com os policiais, que usaram gás lacrimogêneo para controlar a multidão. O prefeito de Cobija, Luis Flores, afirmou que cerca de dez policiais foram encaminhados ao hospital, após serem despidos e açoitados pelos manifestantes. Ele disse ainda que há relatos sobre a morte de uma jovem, por asfixia por causa do gás lacrimogêneo. A direção do único hospital da cidade, entretanto, contestou a informação. Testemunhas disseram que diversos universitários também ficaram feridos e pelo menos três foram presos. O vice-presidente Álvaro Garcia Linera afirmou que alguns dos manifestantes vieram do Brasil para participar dos protestos. Cobija fica na região da Amazônia boliviana, na fronteira com o Brasil. “Isso em nenhum momento põe em risco os vínculos entre o povo boliviano e o brasileiro”, disse Linera, acrescentando, porém, que essas “duas ou três pessoas” serão punidas. A decisão do governo de enviar policiais a Cobija foi tomada após a casa do senador Abraham Cuéllar, no centro da cidade, ter sido assaltada e incendiada. A oposição acusa o político de “vender-se” ao partido de Evo e ser um “traidor”, por ter apoiado a instalação de uma sessão em que os governistas aprovaram, sem a presença de parlamentares da oposição, o projeto da nova Constituição, proposta por Evo. Cuéllar acusou o prefeito (governador) de Pando, o opositor Leopoldo Fernández, e seus partidários pelo

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ataque. O governador disse que a chegada dos policiais é “mais uma das tentativas de Evo para amedrontar a população”. Os departamentos de Pando, Santa Cruz, Tarija, Beni, Cochabamba e Chuquisaca convocaram políticos e comitês civis para aderir a um movimento de resistência civil e também a uma greve de fome, que deve começar na segunda-feira, em rechaço à política do governo. QUEDA DE POPULARIDADE A aprovação popular de Evo caiu 10 pontos porcentuais, segundo uma pesquisa divulgada ontem pelo jornal La Razón, de 62% para 52% - nível mais baixo desde que assumiu o governo, em janeiro de 2006. EFE E AFP

INTERNACIONAL Domingo, 2 dezembro de 2007 Proposta aprofunda divisão na Bolívia

Texto constituinte acirra diferenças entre indígenas e a elite branca

Ruth Costas

Numa ponta da bancada está a líder indígena Nélida Jaldin, vestida com trajes coloridos, típicos da comunidade chiquitana. Nascida na localidade boliviana de Lomerío, onde os índios são 95% da população, ela foi criada numa família de dez irmãos que praticava a agricultura de subsistência, cultivando milho, banana, arroz e mandioca. Na outra ponta está Rubén Darío, advogado, dois mestrados, filho de pecuaristas e ex-governador do rico Departamento (Estado) de Santa Cruz. Seu ideal declarado é o de que a Bolívia tenha uma economia aberta e competitiva. Juntos, como parlamentares da Assembléia Constituinte boliviana, eles tentavam havia mais de um ano definir um novo projeto de país na tranqüila cidade de Sucre. Ninguém achou que a tarefa seria fácil, mas o imbróglio no qual ela se transformou superou as expectativas mais pessimistas. Reunidos desde agosto de 2006, os 255 integrantes da Constituinte boliviana não conseguiram aprovar nem sequer um artigo da nova Carta. Os conflitos que deixaram três mortos em Sucre há uma semana e o aumento das tensões entre o governo e a oposição são o resultado desse fracasso. Com o prazo para que a Assembléia se dissolvesse - 14 de dezembro - se aproximando, o Movimento ao Socialismo (MAS), partido do presidente indígena Evo Morales, resolveu apressar as coisas tirando a oposição da jogada. A polêmica criada depois que os parlamentares governistas aprovaram, no sábado, o projeto para a Constituição numa votação num quartel, sem a presença de opositores, mostrou ao país a dificuldade de conciliar o projeto dessas duas Bolívias representadas por Nélida e Darío. A Constituinte boliviana não conseguiu avançar em parte porque é a expressão da pluralidade social do país. De um lado estão os povos indígenas originários, mais pobres, ciosos em manter suas tradições e moradores das áreas altas da Bolívia (Lomerío é uma exceção porque fica num território plano). Do outro, a elite branca, concentrada em departamentos mais ricos como Santa Cruz e Tarija e preocupada com a possibilidade de um governo indígena tirar a Bolívia do caminho da modernidade. “Com a eleição de Evo e suas promessas de ‘refundar o país’ por meio da Constituinte, os indígenas viram-se pela primeira vez no centro das decisões políticas do país e resolveram que era hora de compensar todos esses anos de marginalização”, diz o cientista político Carlos Cordeiro. A oposição em princípio calou-se em nome de um “pacto social”, mas logo começou a fazer alarde sobre o “levante indígena”. Hoje, está claro que nenhum dos lados está disposto a recuar de suas posições e o impasse na Constituinte ameaça transformar-se num confronto aberto entre a Bolívia rica e a de índios e trabalhadores rurais. “O problema foi que o MAS quis mudar a regra que exigia dois terços dos votos para a aprovação dos artigos quando se deu conta de que não obteria esse percentual na Assembléia”, acusa Darío, que faz parte do partido opositor Podemos. “Como queriam fazer tudo sem ter de negociar, eles decidiram que a aprovação seria por maioria simples.” Só a discussão sobre esse critério pautou as sessões da Constituinte durante sete meses sem que nada fosse decidido. “A oposição tentou boicotar a nova Carta porque não suporta a idéia de que nós, indígenas, trabalhadores rurais e assalariados, possamos sentar para negociar com eles em condições de igualdade”, rebate Nélida. Quando todos se deram conta de que as discussões gerais não levavam a lugar nenhum, foram formadas comissões para fazer um relatório sobre cada tema - o que também não deu certo. Os temas mais sensíveis sempre faziam o debate acabar em troca de insultos. Um deles é a concessão de mais autonomia para as regiões - exigência dos departamentos ricos, que querem se desvincular do governo central e ter mais controle sobre seus recursos. Outra é a possível mudança da sede do Legislativo e do Executivo para

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Sucre, uma demanda histórica dessa cidade. “O fracasso da Constituinte seria visto como uma grande derrota política para Evo porque ele foi eleito prometendo mudanças”, diz o sociólogo e analista político Fernando Mayorga, autor de Neopopulismo e Democracia. “Por isso eles resolveram na semana passada tomar uma medida drástica”, diz. A Constituição que os parlamentares governistas aprovaram, segundo analistas, é uma resposta às aspirações dos indígenas, mas negligencia as demandas do outro extremo do país. O projeto reconhece a Bolívia como um Estado plurinacional, formado por 36 povos originários. Em seu território, tais nações teriam autonomia para desenvolver a economia e justiça como quiserem - podendo até mesmo instalar sistemas de julgamento e punição a seu critério. “O texto dá margem a uma série de polêmicas. O que vai acontecer, por exemplo, se eu cometer um crime num território indígena? Vou ter direito a um advogado e ao princípio de presunção de inocência ou terei de me submeter à punição ditada pela comunidade?”, questiona Cordeiro. “E se os indígenas mais radicais resolverem reivindicar terras de cidades e propriedades rurais? A tensão com certeza vai aumentar.” Outras alterações polêmicas são o fim do limite para as reeleições e a transformação do Congresso boliviano numa câmara unicameral, com a eliminação do Senado (onde a oposição hoje tem maioria). “Evo e o MAS sairão fortalecidos se essa nova Constituição for sancionada em referendo”, diz Mayorga. O projeto foi aprovado pelo índice em primeira instância. Alguns parlamentares nem chegaram a ler o texto na íntegra. Agora haverá uma discussão artigo por artigo e no dia 14 a Carta deve ser apresentada ao Congresso boliviano para que ele convoque a consulta popular. GUERRA CIVIL “A ingerência do governo venezuelano nesse projeto é evidente porque muitos pontos convergem com o projeto político de Hugo Chávez”, diz Carlos Alberto Goitia, membro da bancada do Podemos na Assembléia. “Evo também parece não estar disposto a negociar com a oposição, mas isso será arriscado porque a situação aqui é bem diferente do que na Venezuela. Não descarto a possibilidade de que uma escalada de tensões leve a uma guerra civil.” O governo de Evo enfrenta pelo menos dois limites que o impedem de levar a Bolívia para os rumos da Venezuela. O primeiro é que a oposição ainda tem expressão nas instituições políticas, como o Senado e a Constituinte, o que faz com que, para Evo, o custo de não dialogar seja maior. Uma prova é o fato de embaixadores europeus terem se apressado em expressar sua preocupação com os “rumos da democracia na Bolívia”, depois que simpatizantes do presidente cercaram o Congresso nacional, na quinta-feira, para impedir os deputados da oposição de entrarem no edifício e votarem contra o financiamento de uma bolsa-auxílio para idosos com o uso de recursos dos governos locais. Outro limite claro é o regionalismo. Os Departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando, Cochabamba e Chuquisaca representam 80% da economia boliviana. Quando essas regiões pararam, na quarta-feira, numa greve contra Evo, La Paz ficou isolada. “A nova Carta pode agradar as bases de Evo, mas se for aprovada como está teremos um país cada vez mais dividido e em confronto permanente”, diz Mayorga. INTERNACIONAL Segunda-feira, 3 dezembro de 2007

Partido de Evo decide aprovar Carta em bloco

Estratégia de votar todos os artigos em uma única sessão irrita oposição e agrava crise política boliviana

Ruth Costas, SANTA CRUZ DE LA SIERRA

Parlamentares da mesa diretora da Assembléia Constituinte boliviana pretendem aprovar a nova Carta do país “em bloco”, numa única sessão que ocorrerá no dia 14. A proposta inicial era que o projeto seria discutido artigo por artigo. O anúncio da mudança de planos, feito em meio a um aumento da tensão entre o presidente Evo Morales e a oposição, reforça as críticas de que o governo está tentando impor na marra uma nova Constituição ao país. Há uma semana, o projeto da nova Carta foi aprovado em primeira instância numa sessão realizada num quartel e sem a presença da oposição. Em uma entrevista coletiva da qual Evo também participou, os parlamentares - todos do partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) - explicaram que esse método foi escolhido para permitir

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que a Constituição seja aprovada rapidamente, já que as “forças de direita” não querem “refundar o país”. A bancada do MAS foi declarada em “sessão permanente” para acelerar o processo de tramitação do projeto e prometeu submetê-lo a “setores sociais”. O chamado de Evo para que os partidos de oposição também participem da elaboração da nova Carta não voltou a ser mencionado. Líderes políticos e dirigentes dos comitês cívicos dos Departamentos (Estados) de Santa Cruz, Tarija, Beni, Pando, Cochabamba e Chuquisaca iniciam hoje uma greve de fome para protestar contra a nova Constituição e outras medidas do governo. Na noite de sábado, de 100 a 200 policiais foram enviados à Santa Cruz, capital do departamento mais rico da Bolívia e o principal bastião da oposição.O comando da polícia não quis confirmar o número exato de homens e disse que eles irão substituir policiais que subiram de patente. Na Escola Básica da Polícia, onde todos estavam concentrados, porém, os policiais disseram ao Estado que haviam sido encarregados de “reforçar a segurança caso ocorram greves e conflitos” nesta semana. Há dois dias, o envio de 150 policiais a Cobija, em Pando, revoltou os grupos de oposição. Mais de 20 pessoas ficaram feridas num confronto que envolveu esses grupos, simpatizantes de Evo e as forças de segurança oficiais no sábado. Alguns líderes dos departamentos ricos também prometem ir aos EUA para denunciar na ONU e na OEA a forma “ilegítima” como o governo boliviano está tentando aprovar a nova Carta e um corte nos repasses dos impostos sobre os hidrocarbonetos.

INTERNACIONAL Segunda-feira, 3 dezembro de 2007

Santa Cruz critica governo central por escassez de diesel

Ruth Costas, Santa Cruz de La Sierra

Como ontem era domingo, não havia diesel. Desde que a YPFB, a petrolífera estatal boliviana, tomou o controle da importação e distribuição desse produto, que antes era da Petrobrás, o suprimento é irregular. Atualmente, só há diesel em três dias da semana em muitos postos de Santa Cruz: terça, quinta e sábado. Nessas ocasiões, donos de caminhões, tratores, caminhonetes e vans chegam a ficar mais de cinco horas na fila para conseguir uma quantidade limitada. Analistas vêem na falta de eficiência da YPFB a causa do problema. Após a nacionalização do setor de hidrocarbonetos, no ano passado, a estatal passou a ser responsável por um conjunto de atividades que ultrapassam sua baixa capacidade técnica e de investimentos. A escassez de diesel, porém, também se transformou num agravante na instável relação do governo federal com os departamentos do oeste e sul do país, que brigam por mais autonomia em relação a La Paz. Para a elite de Santa Cruz, o desabastecimento, acentuado nos últimos dois meses, é antes de tudo uma retaliação política. Por falta de combustível, a Ferroviária Oriental (FO) suspendeu no fim de semana as saídas de dois trens que cobrem a rota Santa Cruz-Porto Quijarro, ligando a Bolívia ao Brasil. Já os produtores do setor agrícola reclamam que, sem abastecer o maquinário, as safras do verão estariam comprometidas. O sistema de coleta de lixo não consegue mais atender todos os bairros adequadamente e o transporte público de Santa Cruz fez uma greve na semana passada porque estava sendo obrigado a trabalhar com metade das 7 mil unidades. Sua reivindicação era subir o preço da passagem de 1,5 para 2 bolivianos (pouco mais de R$ 0,50). O desabastecimento de diesel também já está provocando um aumento dos preços dos alimentos e dos produtos básicos. Os materiais de construção, por exemplo, subiram 100% desde o início do ano. O problema contribui para impulsionar a inflação, que deve ultrapassar os 10% em 2007. Para o governo, a elite de Santa Cruz é a responsável pela escassez. O argumento, endossado pela YPFB, é de que o produto repassado ao Estado é suficiente. O desabastecimento seria, portanto, um “ato de sabotagem”.

INTERNACIONAL Terça-feira, 4 dezembro de 2007

Oposição vai à ONU e à OEA reclamar de Evo

Paralelamente, membros de comitês cívicos iniciam greve de fome contra ‘autoritarismo’

Ruth Costas

Santa Cruz de La Sierra, Bolívia - Menos de uma semana depois de uma greve geral ter paralisado seis dos nove departamentos (Estados) bolivianos, os líderes políticos dessas regiões deram início a uma nova campanha para protestar contra o presidente Evo Morales. Pela manhã, os prefeitos de Santa Cruz, Pando, Tarija, Beni e Cochabamba e o presidente do Comitê Cívico de Chuquisaca viajaram para os EUA para apresentar queixa à ONU e à Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o que definem como uma

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posição “autoritária e antidemocrática” de Evo. Como as seis regiões decretaram “desobediência civil”, teoricamente também não estão aceitando leis, decretos ou ações do governo nacional. Ontem à noite, 50 membros de comitês cívicos e organizações sociais de Santa Cruz iniciaram uma greve de fome em protesto contra o governo. Segundo líderes do movimento, a idéia é que a greve vá se “massificando” em todos os departamentos nos próximos dias. O presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz, Branco Marinkovic, disse que o protesto foi convocado “em defesa da democracia” e contra as “ilegalidades” cometidas pelo governo. Por enquanto, nem Marinkovic nem o prefeito de Santa Cruz, Rubén Costas (que está nos EUA), jejuarão, apesar de serem duas figuras muito destacadas na oposição regional. Os departamentos protestam por vários motivos. O mais importante é o fato de parlamentares governistas terem aprovado em primeira instância uma nova Constituição durante uma sessão realizada num quartel, sem a presença da oposição. O vice-presidente Álvaro García Linera disse que a Carta deve ser aprovada definitivamente no dia 14, com ou sem a participação da oposição. As manifestações também têm como objetivo repudiar um corte no repasse, para os governos regionais, de impostos sobre os hidrocarbonetos. Evo quer usar esses recursos para pagar uma bolsa-auxílio de US$ 300 anuais para idosos, mas as elites políticas e econômicas dos departamentos alegam que o corte prejudicará obras e serviços regionais. As regiões de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando têm uma demanda antiga por maior autonomia. A Assembléia Autonômica de Santa Cruz pretende apresentar no dia 15, após a aprovação da nova Carta, um estatuto próprio - espécie de Constituição local - que declarará unilateralmente a autonomia em relação a La Paz.

INTERNACIONAL Quinta-feira, 6 dezembro de 2007

Evo decide submeter mandato a referendo

Presidente boliviano desafia os governadores a fazer o mesmo

AFP

La Paz - O presidente da Bolívia, Evo Morales, propôs ontem um referendo para consultar a população sobre a revogação ou não de seu mandato e desafiou os nove governadores do país, na maioria opositores, a fazer o mesmo. Ele disse que hoje mesmo enviará um projeto de lei ao Congresso para que o órgão convoque “rapidamente” um referendo revogatório. “Se o povo me mandar embora, não terei nenhum problema. Sou democrata. O povo dirá quem vai e quem fica para garantir este processo de mudança', disse o presidente em mensagem à nação. Evo afirmou que seu objetivo com o referendo revogatório é verificar se o povo apóia seu “processo de mudança”. Ele acusou a oposição de tentar impedir as reformas com denúncias no exterior. Os governadores de Santa Cruz, Tarija, Beni e Cochabamba, todos de oposição, se encontram nos EUA para denunciar a várias organizações internacionais o que consideram atuações “ilegais” de Evo e seu partido na Assembléia Constituinte e no Congresso.

TRANSFERÊNCIA O partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) está analisando a possibilidade de transferir a sede da Constituinte para a região cocaleira do Chapare, para concluir a aprovação da nova Constituição do país até o dia 14, prazo máximo dado pelo Congresso. A oposição, no entanto, já rejeitou a idéia. Segundo o porta-voz do governo, Alex Contreras, a opção está sendo considerada para garantir a segurança aos deputados que discutem a nova Carta. Em meio ao impasse em relação à mudança da capital boliviana para Sucre - uma exigência da população - , o governo afirmou que não havia segurança suficiente para realizar as sessões na cidade.

INTERNACIONAL

Governadores aceitam desafio de Evo para submeter mandatos a referendo

Paris

Sexta-feira, 7 dezembro de 2007

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Cinco governadores bolivianos da oposição - de Santa Cruz, Beni, Pando, Cochabamba e Tarija - aceitaram ontem o desafio do presidente Evo Morales para submeter seus mandatos a uma consulta popular. Eles fizeram, no entanto, algumas ressalvas em relação às regras de consulta e à suposta intenção de Evo de utilizá-la apenas para superar a crise política que atinge o país. Na véspera, Evo propôs a realização de um referendo para todos os governantes como um maneira de pôr fim à crise. O presidente disse ontem que, se perder o chamado “referendo revogatório” de mandato, convocará eleições imediatamente. “Ou é uma cortina de fumaça ou é um projeto honesto. Quando soubermos quais são as regras do jogo, a partida pode começar”, reagiu o secretário-geral do governo de Santa Cruz, Carlos Dabdoub, em nome do governador Rubén Costas. O governador de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, representando também os outros quatro governadores opositores, afirmou que concorda com o referendo. Mas fez um apelo para que “não se siga aprovando a nova Constituição”. Leopoldo Fernández, governador de Pando, se disse a favor da consulta popular, mas “em um projeto que não chegue com coisas já decididas”, principalmente em relação às porcentagens da votação. Os governadores discordam sobre a porcentagem dos votos para revogar ou ratificar um mandato, que deveria ser por maioria simples. A proposta de Evo é revalidar ou superar com base na porcentagem com a qual o político foi eleito. No caso do presidente, ele seria derrotado com 54% dos votos contrários - o equivalente à votação que obteve na eleição de 2006. Para a oposição boliviana, o referendo seria uma alternativa à Constituinte, que deve aprovar uma nova Carta proposta por Evo, com a qual seis Estados não concordam. Mas, para o governo, o referendo e a Constituinte são dois cenários distintos e não estão vinculados. O porta-voz da presidência, Alex Contreras, confirmou ontem que o processo sobre a nova Constituição será concluído no dia 14. O governo também afirmou que a Constituinte retomará as sessões no dia 12 na cidade de Lauca, na zona cocaleira de Chapare, reduto de Evo. No fim do dia, o governador de Tarija, Mario Cossío, sugeriu que o mandato do vice-presidente boliviano, Alvaro García, e dos parlamentares também passe por um consulta popular.

INTERNACIONAL Sábado, 8 dezembro de 2007

Evo sai se tiver menos votos que em 2005

Segundo projeto do presidente, regra vale também para os 9 governadores

EFE e AP

O presidente da Bolívia, Evo Morales, deixará o governo se receber um voto a menos no referendo para revogação de seu mandato do que os obtidos nas eleições de 2005, mecanismo que também será aplicado no caso dos nove governadores do país. O porta-voz presidencial, Alex Contreras, disse ontem que a fórmula será estabelecida pelo projeto de lei para a revogação de mandatos. Evo deveria ter apresentado o projeto ontem ao Congresso, mas adiou a iniciativa para hoje, pois, segundo Contreras, uma equipe jurídica do governo ficaria trabalhando até tarde da noite na elaboração do texto. Sete dos governadores não pertencem ao partido governista, mas todos aceitaram submeter-se ao referendo. Eles aguardam para conhecer os detalhes e os prazos da norma anunciada por Evo quando a proposta for apresentada oficialmente ao Congresso. Segundo o porta-voz presidencial, a proposta estabelece a revogação do mandato de Evo e dos nove governadores, caso obtenham um voto a menos que os alcançados nas eleições de dezembro de 2005. O partido de Evo, Movimento ao Socialismo (MAS), conseguiu 1.544.374 votos (53,74% do total). Nas mesmas eleições, os nove governadores dos Departamentos (Estados) foram eleitos por voto direto pela primeira vez. Até então, eram nomeados pelo governo. Segundo uma pesquisa divulgada no fim de novembro nas cidades de La Paz, El Alto, Cochabamba e Santa Cruz de la Sierra, o apoio a Evo é de 52%, dez pontos porcentuais a menos do que em outubro.

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Evo propôs o referendo na quarta-feira como um “desafio” a seus opositores, em particular os governadores. Desde segunda-feira, a oposição promove uma greve em protesto contra a aprovação, em primeira instância, do projeto da nova Constituição no dia 24, em Sucre, em meio ao boicote da oposição. A mesa diretora da Constituinte retomará as sessões na quarta-feira na localidade de Lauca Ñ, na zona cocaleira de Chapare, reduto de Evo. CONFRONTOS Ontem quatro pessoas ficaram feridas, incluindo um policial, durante a invasão de escritórios públicos em Tarija, no sul do país, em meio a protestos contra o governo. A polícia dispersou os manifestantes com gás lacrimogêneo.

INTERNACIONAL Domingo, 9 dezembro de 2007

Constituinte retoma sessões

Deputados constituintes do Movimento ao Socialismo (MAS), do presidente Evo Morales, preparavam-se ontem para retomar as sessões da Assembléia Constituinte na cidade de Oruro, sul da Bolívia. O objetivo do partido é aprovar a nova Carta do país “em detalhe” (artigo por artigo), para que o texto final seja entregue dia 14. A mesa diretora da Constituinte, controlada pelo MAS, comunicou a decisão de retomar as sessões depois de uma reunião de mais de 12 horas. Há duas semanas, o projeto da nova Carta foi aprovado em primeira instância numa sessão realizada num quartel e sem a presença da oposição, o que fez com que a população de Sucre, sede da Constituinte, realizasse protestos, que resultaram na morte de três civis. Para aprovar o texto “em detalhe”, é necessário obter dois terços dos votos. No entanto, o líder do MAS na Constituinte, Román Loayza, afirmou que as sessões acontecerão com ou sem o cumprimento desse requisito.

INTERNACIONAL Segunda-feira, 10 dezembro de 2007

Partido de Evo manobra, antecipa sessão e aprova projeto de Carta

Texto ratificado em Oruro, em meio a boicote da oposição, será submetido a consulta popular no ano que vem

Oruro, Bolívia

Por meio de uma manobra parlamentar que praticamente alijou a oposição do processo, a maioria governista na Assembléia Constituinte boliviana aprovou ontem em votação final - após uma sessão de quase 17 horas - o

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texto da futura Constituição do país. Agora, o projeto será submetido a uma consulta popular, em data a ser definida. Se aprovada, espera-se que a nova Carta passe a vigorar já no segundo semestre de 2008. O presidente boliviano, Evo Morales, comemorou a notícia da aprovação do projeto, saudando a “transformação pacífica e democrática” na direção de um país “plurinacional” - referindo-se ao reconhecimento da identidade de nações indígenas bolivianas. O texto foi aprovado cinco dias antes da data-limite para a entrega do projeto, na sexta-feira, no auditório do Centro de Convenções da Universidade Técnica de Oruro. Em torno do local, uma multidão de partidários de Evo realizou uma longa vigília para evitar os protestos da oposição que bloquearam os trabalhos da Constituinte por mais de um ano em Sucre. Os deputados do partido Poder Democrático e Social (Podemos) boicotou a sessão, qualificando-a de ilegal. Os constituintes da frente centrista Unidade Nacional (UN) limitaram-se a se abster das votações. A oposição esperava obstruir a votação do texto “em destaque” (artigo por artigo). Para aprová-lo, seriam necessários dois terços dos 255 deputados. No entanto, o partido Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo, decidiu mudar as regras do jogo e emitiu uma resolução indicando que a Carta seria aprovada por dois terços dos deputados presentes na sessão. Entre os mais de 400 artigos aprovados, estão a reforma do Legislativo, a criação das autonomias departamentais e indígenas, a eleição de juízes por voto universal, o estabelecimento de um forte controle estatal sobre a economia e uma única reeleição presidencial. “Acusaram-nos de buscar a reeleição indefinida, mas agora mostramos que não as coisas não são assim”, disse Evo. A Constituinte não votou um artigo sobre a distribuição de terras, deixando a decisão sobre o tema para um plebiscito a ser realizado antes do referendo constitucional. Segundo o deputado Carlos Romero, do MAS, o projeto segue agora para uma comissão interpartidária que fará a revisão e a conciliação dos artigos constitucionais. Os cinco Departamentos opositores ao governo de Evo - Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Cochabamba - anunciaram que não acatarão a nova Carta e iniciarão um processo de “desobediência civil”. Eles alegam que o texto da futura Constituição não é produto de consenso, mas uma imposição do governo de Evo. “Precisamos que o povo boliviano aceite a Constituição”, disse a presidente da Constituinte, Silvia Lazarte, do MAS. “Não fizemos a Carta para os partidos políticos da direita que tentaram levar a Assembléia ao fracasso, e sim para o povo.” REFERENDO REVOGATÓRIO Evo também apresentou ontem o projeto de lei sobre o referendo que ele propôs na semana passada para revogar seu mandato e dos nove governadores do país. Evo afirmou que seu projeto estabelece que ele e os governadores deverão deixar seus cargos se os votos pelo “não” superarem a quantidade de votos que obtiveram nas eleições de 2005. AFP, EFE E REUTERS FRASES Evo Morales Presidente da Bolívia “Acusaram-nos de buscar a reeleição indefinida. Agora mostramos que as coisas não eram bem assim” “Esse esforço de mais de um ano em debates e consultas foi uma grande alegria para mim e para todo o movimento popular, camponês e operário” PROJETO APROVADO Reeleição: Projeto de nova Carta boliviana inclui o direito a uma única reeleição contínua Autonomias: Texto estabelece, com “igual hierarquia”, as autonomias departamentais, provinciais, regionais e das comunidades indígenas, com atribuições administrativas e legislativas próprias Legislativo: Constituinte ratifica existência de Congresso bicameral Capital: Sucre permanece como capital oficial do país, mas a sede do Executivo e do Legislativo continua em La Paz Judiciário: Artigo estabelece fim de indicação de juízes. Escolha agora deverá ser feita por voto universal Economia: Projeto determina reconhecimento de um modelo que vá além da economia mista, na direção de uma economia plural, que respeitará a propriedade privada, empresas estatais e a economia comunitária

INTERNACIONAL Segunda-feira, 10 dezembro de 2007

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Movimento do governo intensifica tensão em regiões

Antecipação da votação final esvazia temporariamente protestos da oposição em departamentos mais ricos

Ruth Costas

A próxima sexta-feira era a data-limite para que a Assembléia Constituinte aprovasse a nova Constituição para “refundar o país”. Líderes do Departamento (Estado) de Santa Cruz - o mais rico da Bolívia - pretendiam apresentar no dia seguinte um estatuto autonômico, declarando unilateralmente independência de La Paz em importantes questões tributárias e administrativas. A manobra do partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) de antecipar a aprovação do projeto tirou o timing da oposição autonomista. O texto constitucional aprovado em Oruro ficou longe de ter sido forjado por um acordo, num contexto favorável. O governo acusa a oposição de tentar derrubar o presidente Evo Morales. A oposição diz que o governo está se tornando autoritário por influência do venezuelano Hugo Chávez e criando condições para um conflito armado no país. O risco cada vez mais alto, dizem especialistas, é o de que a tensão política faça multiplicar os episódios de violência como o que deixou três mortos em Sucre duas semanas atrás. Um dos países mais instáveis da América Latina, a Bolívia teve 6 presidentes nos últimos dez anos. Parte da instabilidade tem como causa a fragilidade das instituições e as injustiças sociais que marcam a história do país. Outra razão é o engajamento da população. Questões medianamente polêmicas, que no apático ambiente político brasileiro renderiam apenas uma conversa exaltada no bar, na Bolívia são discutidas com os vizinhos, logo com as organizações de bairro, associações profissionais, partidos e pronto: está armada a passeata com milhares de bolivianos furiosos empunhando cartazes, faixas e, não raro, pedras e paus. Dá para imaginar o potencial explosivo de decisões tão cruciais como a aprovação de uma Constituição ou de autonomias regionais. A nova Carta era um compromisso de campanha de Evo. Eleito em 2005 com a promessa de promover a inclusão social, ele conseguiu num primeiro momento reunir os setores até então marginalizados com a classe média e os empresários. Esse pacto social, porém, só durou até que as elites políticas e econômicas da Bolívia se dessem conta que o ex-líder cocaleiro estava de fato empenhado em fazer mudanças radicais. Por causa da falta de disposição dos dois lados em adotar posições mais flexíveis, em mais de um ano de trabalho, a Assembléia Constituinte, instalada em Sucre, não conseguiu aprovar um único artigo da nova Carta. Com o prazo para que ela fosse dissolvida se aproximando, a bancada governista resolveu aprovar o projeto a qualquer custo. No dia 24, 138 dos 255 parlamentares reuniram-se num colégio militar nas imediações de Sucre e, protegidos pelas forças de segurança oficiais e sem nenhum deputado opositor, eles aprovaram em primeira instância a nova Carta. Ontem, no auditório de uma universidade em Oruro, a história se repetiu, com o governo dando de ombros para a decisão dos deputados do maior partido da oposição de boicotar e considerar ilegal a sessão antecipada. “Aprovaremos a Carta com a participação da oposição ou não”, havia alertado recentemente o vice-presidente, Álvaro García Linera. Os pontos mais polêmicos do projeto eram as reeleições indefinidas - acabou aprovado um artigo que permite uma única reeleição - e o reconhecimento da autonomia não só para os departamentos prósperos, mas também para os 36 povos indígenas originários do país, que poderão ter um sistema de Justiça próprio, por exemplo. A autonomia é uma demanda antiga das regiões do oriente boliviano, que têm economias promissoras baseada na agroindústria e extração de gás, mas estão descontentes com a falta de controle sobre seus recursos. Até 2006, os governadores desses departamentos nem sequer eram eleitos, mas indicados por La Paz. Agora, esses líderes regionais querem administrar suas próprias finanças, fazer obras públicas e definir o conteúdo de seu sistema educacional - algo que o texto constitucional aprovado ontem não estabelece de maneira clara. “Recebemos um mandato claro do povo de Santa Cruz para fazer esse estatuto e só a população poderá decidir se e como ele será aplicado”, disse ao Estado o presidente da Assembléia Autonômica de Santa Cruz, Carlos Pablo Klinsky, que está elaborando o documento. A grande incógnita, no caso, será a reação do governo ao que pode ser considerado um ato de sedição. Segundo as elites políticas regionais, La Paz estaria se preparando para um estado de sítio. O presidente nega. Também se comenta que a população das regiões ricas estaria disposta a pegar em armas para defender a autonomia, mas há dúvidas sobre se essa resolução resistiria à primeira visão dos tanques do Exército entrando nas cidades.

INTERNACIONAL Terça-feira, 11 dezembro de 2007

Governadores rejeitam Carta de Evo e confirmam autonomia para sábado

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Líderes de cinco das nove regiões bolivianas rebelam-se contra projeto constitucional aprovado no domingo

EFE E AFP

La Paz - Cinco dos nove governadores bolivianos fizeram ontem uma reunião de emergência na qual rejeitaram a nova Constituição do país, aprovada no domingo, e confirmaram que se declararão autônomos no sábado. O encontro ocorreu em Cochabamba e estiveram presentes, além do governador dessa região, os das províncias de Santa Cruz - a mais rica do país -, Tarija, Beni e Pando. “A Constituição do MAS (Movimento ao Socialismo, partido governista) está nos levando definitivamente ao abismo e à divisão do país”, disse o governador de Santa Cruz, Rubén Costas. Num comunicado transmitido na noite de domingo, ele se declarou “comandante-geral” de Santa Cruz e acusou a nova Carta de ser “ilegítima, excludente e racista”. A nova Constituição foi aprovada em Oruro, numa sessão da qual não participaram parlamentares do principal partido opositor - o Podemos -, e deve ser levada a referendo nos próximos meses. Entre suas disposições mais polêmicas estão a eleição de juízes por voto universal, o estabelecimento de um forte controle estatal sobre a economia e o direito a uma única reeleição presidencial. As autonomias departamentais são uma demanda antiga das regiões de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, que querem ter mais controle sobre seus recursos. Elas são reconhecidas no texto da nova Carta de forma pouco específica e em “igual hierarquia” com autonomias regionais, municipais e das comunidades indígenas. Segundo os líderes dos departamentos opositores, o documento centraliza ainda mais as decisões nas mãos de La Paz. Eles também criticam o modo como o projeto foi ratificado. Pela lei convocatória da Constituinte, para ser levado a referendo o projeto precisaria ser aprovado por dois terços da Casa. No domingo, o MAS lançou uma nova interpretação dessa regra, dizendo que seriam necessários dois terços dos parlamentares presentes na sessão final e não dos 255 constituintes. “Não reconhecemos a vigência legal desse projeto”, diz um documento assinado pelos governadores, no qual eles se recusam a cumprir a nova Carta. No comunicado, porém, os cinco se comprometem a participar do referendo revogatório sobre os seus mandatos e o mandato do presidente, Evo Morales. Segundo o deputado governista César Navarro, La Paz poderá indicar governadores interinos se os atuais forem “rejeitados pelo povo” na consulta. Em Buenos Aires, onde participou da posse da presidente argentina, Cristina Kirchner, Evo defendeu o projeto da nova Carta e disse que resistirá “tanto à conspiração das oligarquias bolivianas quanto à internacional, articulada pelos EUA”. Da mesma forma que a proposta de reforma constitucional venezuelana, o projeto inicial do MAS contemplava reeleições indefinidas. Segundo analistas, a derrota chavista no referendo do dia 2 pode ter sido o motivo pelo qual o texto boliviano foi modificado na última hora para permitir apenas uma reeleição. Ainda assim, se a Constituição for aprovada em referendo, Evo Morales poderá ficar no poder até 2018. Isso porque a adoção da nova Carta implicará a convocação de uma nova eleição e o limite de dois mandatos de Evo começaria a contar a partir daí.

INTERNACIONAL Terça-feira, 11 dezembro de 2007

Desafio de regiões pode provocar intervenção militar, dizem analistas

Ruth Costas

Se os cinco departamentos opositores resolverem exercer sua autodeclarada autonomia a partir de sábado, restarão ao governo boliviano poucas alternativas além de decretar intervenção militar nessas regiões, segundo analistas. “O ato poderia ser considerado sedição e o governo central provavelmente apelaria às Forças Armadas para restabelecer o controle sobre esses departamentos”, disse ao Estado o cientista político boliviano Carlos Cordero. Ele explica que esse seria, obviamente, o pior dos cenários. “A verdade é que ninguém sabe ao certo até que ponto os líderes regionais estão dispostos a ir quando falam em declarar autonomia de La Paz unilateralmente”, completa Cordero. “O mais provável é que eles estejam querendo elevar as tensões ao máximo para, quando chegarem a tal ponto, sentarem para negociar, mantendo o governo sob alta pressão.” Até o ano passado, os governadores dos departamentos não eram eleitos, mas indicados por La Paz. As eleições regionais foram barganhadas numa negociação com o partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) em troca da convocação da Assembléia Constituinte. Agora, o que as elites políticas e econômicas desses cinco departamentos reivindicam é mais independência em importantes assuntos administrativos e tributários, com a

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implementação de um modelo de autonomias regionais semelhante ao espanhol. O estatuto de autonomia que será apresentado no sábado, de acordo com algumas fontes, dará aos governadores mais poderes para definir seu próprio orçamento, fazer obras públicas, estabelecer as diretrizes da política educacional na região e influenciar a indicação do alto comando da polícia. “Somos como um filho que, ao formar outra família, quer decidir como gastar seu dinheiro para atender suas novas necessidades, mas sem negar a autoridade do pai”, explicou ao Estado um dos mentores do estatuto. Segundo analistas, se fossem cumprir à risca suas promessas de independência, os governadores poderiam tomar medidas como fechar os aeroportos para não permitir a entrada de autoridades de La Paz, destituir os atuais comandos da polícia e conclamar os empresários a não pagarem seus impostos. Eles também não participariam do referendo sobre a nova Constituição do país, aprovada no domingo por parlamentares governistas. “Essas medidas, porém, não poderiam ser sustentadas no longo prazo e os governos regionais teriam poucas condições de tomar o controle da administração dos serviços e segurança pública de uma hora para outra”, diz o analista político Fernando Mayorga, Universidade Maior de San Simón. “Como nenhum dos dois lados pode vencer um conflito armado, o mais provável é que eles tenham de retroceder e negociar”.

INTERNACIONAL Quinta-feira, 13 dezembro de 2007

Líderes de Santa Cruz aprovam autonomia

Estatuto será apresentado à população da região no sábado e, se aclamado, entrará em vigor no mesmo dia

Ruth Costas

Santa Cruz de La Sierra, Bolívia - Autoridades do rico departamento (Estado) boliviano de Santa Cruz aprovaram ontem à noite em primeira votação um estatuto autonômico, espécie de Constituição regional, com a qual pretendem marcar sua independência de La Paz em importantes questões administrativas e tributárias. A previsão era que todos os artigos do estatuto seriam discutidos em bloco para que ele fosse aprovado definitivamente durante a madrugada. Seu texto será apresentado ao povo num grande comício no sábado. Se a população o aclamar - e na região não há dúvidas quanto a isso -, ele entrará em vigor no mesmo dia. Isso equivalerá a uma declaração unilateral de autonomia em relação a La Paz, de conseqüências incertas e potencial explosivo. Concentrando 35% do PIB boliviano, o Departamento de Santa Cruz é o mais forte centro de oposição ao presidente Evo Morales. Juntamente com Beni, Pando e Tarija, ele forma a chamada meia-lua, que há algum tempo vem demandando autonomia para ter maior controle sobre seus recursos. Recentemente, os Departamentos de Chuquisaca e Cochabamba engrossaram o coro anti-Evo. A diferença é que nessas duas regiões o “não” venceu num referendo sobre as autonomias departamentais realizado em 2005, mas agora alguns políticos locais e organizações cívicas já estão pedindo uma nova consulta. As elites políticas e econômicas de Santa Cruz reclamam que despejam imensas quantias em impostos nos cofres do governo central e recebem a contrapartida a conta-gotas. Elas também querem uma polícia própria e mais independência para poder definir seu próprio orçamento e estabelecer as metas de seu sistema educacional - demandas contempladas pelo estatuto autonômico. “Nem nos livros didáticos a cultura local é valorizada”, disse ao Estado um dos mentores do documento. “Nossas crianças aprendem com ilustrações de famílias que criam lhamas, o que não tem nada a ver com a realidade de Santa Cruz.” Participaram da votação do estatuto senadores, deputados e vereadores, que juntos formam a Assembléia Autonômica de Santa Cruz, criada em 2005, após o referendo sobre as autonomias, mas não reconhecida por La Paz. Ela ocorreu na sede do governo regional, enquanto do lado de fora simpatizantes do projeto soltavam fogos e gritavam palavras de ordem a favor da autonomia. A rapidez com que o estatuto tramitou na Assembléia Autonômica foi uma reação à nova Carta, que a oposição considera ilegítima e centralizadora. O problema, dizem os líderes das regiões opositoras, é que, apesar de reconhecer as autonomias departamentais, ela não é específica nesse tema e as coloca no mesmo patamar de outros três níveis de autonomia: a municipal, a regional e a indígena. Além de Santa Cruz, Beni e Pando já têm pronto um estatuto autonômico. Evo, entretanto, afirmou ontem que “autonomia não é divisão”, advertindo: “Ninguém permitirá nenhuma divisão da Bolívia.”

INTERNACIONAL

Reduto de Evo quer livrar-se de Santa Cruz Domingo, 16 dezembro de 2007

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Distrito miserável de capital autonomista reivindica independência de ‘região elitista’

Ruth Costas

O curto trajeto de seis ou sete quilômetros que separa a rica cidade boliviana de Santa Cruz do bairro periférico chamado Plano 3.000 equivale a uma viagem ao longínquo altiplano do país. Na maior parte do Plano 3.000 não há água, luz, ou saneamento básico. No total, 60% da população vive na pobreza e os outros 40%, na miséria. As ruas asfaltadas são apenas duas, uma delas levando a um amplo mercado a céu aberto onde se vende desde CDs piratas até carne de lhama - exposta por horas num balcão de madeira apesar do calor de 30 graus das terras baixas bolivianas nessa época do ano. Todo o resto são caminhos enlameados e casebres precários, construídos na medida em que chegavam ao local imensas levas de bolivianos de todas as partes do país. “Viva a soberania indígena”, diz a mensagem no muro, que recebe os visitantes. A semelhança com a próspera Santa Cruz, repleta de edifícios e casarões arejados dos empresários do setor petrolífero e agroindústria, restringe-se às altas temperaturas e à umidade, em contraposição ao clima frio e seco de La Paz. Não é difícil entender, portanto, porque o Plano 3.000 se tornou um dos principais redutos do presidente Evo Morales nos departamentos opositores do Oriente boliviano e um trunfo estratégico em tempos de alta tensão entre as “duas Bolívias” - a andina e a das terras baixas. Sempre que as elites políticas e econômicas de Santa Cruz convocam greve geral contra o governo, os 200 mil habitantes dessa cidade-satélite trabalham normalmente. Na sexta-feira, quando Santa Cruz preparava um protesto pedindo mais autonomia de La Paz, no Plano 3.000 planejava-se comemorar a entrega ao Congresso do projeto para uma nova Constituição, elaborado pelo partido governista Movimento ao Socialismo (MAS), de Evo. Na véspera, cooperativas, microempresas e associações profissionais do Plano 3.000 anunciaram que pretendem se tornar independentes de Santa Cruz, pleiteando sua autonomia “municipal” conforme previsto na nova Carta. “Queremos deixar de fazer parte do centro da cidade porque não apoiamos as elites econômicas e políticas de Santa Cruz, nem sua tentativa de impor unilateralmente uma autonomia de fato ao governo central”, disse ao Estado o presidente do Comitê Cívico Popular do Plano 3.000, Jaime Choque. “Além disso, com essa medida poderemos receber mais recursos para fazer obras públicas, construindo escolas, ruas e praças tão agradáveis quanto as que existem em Santa Cruz.” A decepção com os líderes regionais é grande. “O governador, Rubén Costas, e o líder do Comitê Cívico de Santa Cruz, Branko Marinkovic, que hoje estão brigando com o governo, nunca colocaram os pés aqui”, diz Felicidad de Conde, que tem um açougue no mercado central do Plano 3.000. Mestiça, ela nasceu em La Paz. “Já o Evo está distribuindo dinheiro para as crianças e os idosos”, completa. Felicidad refere-se aos projetos sociais promovidos pelo presidente. O chamado “Bônus Juancito Pinto” (o nome é uma homenagem a um menino de 12 anos que morreu lutando na Guerra do Pacífico contra o Chile) prevê o pagamento de 200 bolivianos (cerca de R$ 50) por ano para mais de 1 milhão de crianças em escolas públicas do ensino fundamental. Já o “Renda Dignidade”, que ainda não começou a ser aplicado, pagará 1.400 bolivianos (cerca de R$ 350) anuais a todos os bolivianos com mais de 60 anos. Como Evo quer tirar esses recursos justamente da parcela do imposto sobre os hidrocarbonetos que hoje é repassada aos departamentos (Estados), os líderes cívicos e políticos de Santa Cruz estão em pé de guerra contra o Renda Dignidade. No Plano 3.000, milhares de pessoas já estão na expectativa de beneficiar-se do projeto. “Minhas vendas com certeza aumentarão muito”, prevê Felicidad. Outro motivo do apoio a Evo é que boa parte dos habitantes dessa cidade-satélite vem de fora de Santa Cruz. Há duas décadas, quando começou a receber famílias desalojadas por causa de uma inundação do Rio Piraí, a região era povoada apenas por algumas centenas de cidadãos locais. Hoje, muitos são indígenas, como o presidente, em contraposição às elites brancas de Santa Cruz.“Com a tensão aumentando, os moradores daqui sentem-se ameaçados quando caminham pelo centro da cidade”, explica Flora Silva, costureira de 45 anos e vice-presidente da Associação do Mercado Central do Plano 3.000. Na terça-feira, um aimará que fotografava uma greve de fome anti-Evo foi espancado por jovens que apóiam a demanda por mais autonomia. A acusação era a de que ele era um infiltrado. Tudo foi gravado pela TV. No dia seguinte, o presidente da principal associação de bairro do Plano 3.000, Nicanor Muñoz, denunciou que sua casa foi atacada com dinamite por supostos membros da União Juvenil Crucenha, ligada ao Comitê Cívico de Santa Cruz. “Por isso é que aqui há muita gente disposta a lutar ao lado do presidente contra esses líderes locais”, diz Flora. “A autonomia que Santa Cruz quer é elitista e excludente, nós preferimos continuar sendo só bolivianos.” No entanto, outros moradores preferem não se envolver na disputa. “A verdade é que muitos de nós estão mais preocupados em ganhar nosso suado pão do dia”, diz Juan Solo, ex-camponês da região de Potosí que hoje se dedica à venda de CDs no Plano 3.000. “O melhor seria que tanto a oposição quanto o governo conseguissem sentar para negociar para resolver as tensões envolvendo a demanda por mais autonomia sem ameaçar o pouco que estamos conseguindo construir com tanto trabalho.”

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INTERNACIONAL Domingo, 16 dezembro de 2007

Apreensivos, brasileiros da região estocam comida

Produtores que buscaram no país terra barata e fértil temem ação de setor que os vêem como ‘ameaça imperialista’

Os temas que preocupam os brasileiros são as duas medidas polêmicas anunciadas recentemente. De um lado, Santa Cruz e outros três departamentos (equivalentes a Estados) prometem declarar autonomia unilateralmente de La Paz, o que pode causar conflitos no Oriente do país. Do outro, o governo pretende aprovar um polêmico projeto de Constituição que amplia os poderes do Estado na economia e aumenta as incertezas sobre quem investe ou tem propriedades na Bolívia. Renata conta que alguns de seus amigos e parentes estão se preparando para as incertezas dos dias que se seguirão a anúncio da autonomia crucenha comprando mantimentos, estocando água e até tirando o dinheiro do banco, temendo que a situação política termine em hecatombe. “Pode ser um exagero, mas não custa prevenir”, diz. A paranaense Rossana Niero, estudante de medicina, concorda. Por via das dúvidas ela está só esperando os exames do final do ano na faculdade para retornar para o Brasil. “Minha família está preocupada com as notícias que saem daqui e me pediu que voltasse o mais rápido possível”, diz. Já William Alvarenga, dono de uma loja de eletrônicos no centro da cidade, diz que nos seus mais de 20 anos no país aprendeu que “tudo é possível” quando o assunto é política na Bolívia. Se é verdade que a história boliviana é marcada por revoluções, guerras e trocas de governos (foram 6 nos últimos 10 anos), também é uma tradição política do país que os dois lados em disputa caminhem firmes até a beira do precipício, para então dar um passo para atrás. “No momento eu não vejo nenhuma saída para o impasse entre os líderes locais com o governo, mas é possível que ela apareça a qualquer momento”, diz Alvarenga. “De qualquer forma, é sentar e esperar porque eu também não tenho um plano B”. Entre os mais apreensivos estão os agricultores, para quem a Bolívia sempre foi uma terra prometida. A terra é barata e tão fértil que um deles contou estar produzindo soja há anos sem ter nunca precisado usar adubo. Os custos de produção também são baixíssimos. O salário mínimo, por exemplo, é de 500 bolivianos (pouco mais de R$120,00). Escoar a produção ainda é difícil - precário é pouco para descrever o estado das estradas do país -, mas há esperanças de que a situação melhore no futuro, com a construção de uma rede de estradas que o ligará o porto de Santos com a costa chilena. O grande porém, no momento, é a política do presidente Evo Morales para o setor. Com o apoio dos pequenos camponeses e indígenas, Evo elegeu-se prometendo uma “revolução agrária”. Há um ano ele conseguiu que o Senado aprovasse a Lei de Terras, cujo objetivo era redistribuir 20% das terras cultiváveis da Bolívia até 2010. Segundo as previsões iniciais, a maioria das terras que serão utilizadas na reforma ficariam nos Departamentos de Santa Cruz, norte de La Paz e Pando. “Agora terminam os latifúndios na Bolívia”, disse o presidente na época. Meses depois, Evo decretou o resgate da soberania na fronteira, pressionando pela saída de 10 mil famílias de brasileiros que vivem e trabalham numa faixa de 50 quilômetros a partir da fronteira com o Brasil. Agora, é a briga com Santa Cruz e a nova Constituição que trazem uma nova carga de incertezas. O projeto de Carta reforça o princípio de que toda a propriedade que não cumpra uma “função social” está sujeita a expropriação. “Suas disposições tornam mais instável o ambiente para os investimentos no setor, o que só tende a se acentuar com as tensões políticas” diz Nilson Medina, brasileiro naturalizado na Bolívia que é um dos maiores produtores de soja do país. Para muitos proprietários de terra, o medo é que o presidente boliviano sucumba às sugestões dos setores mais radicais de seu movimento político, que vêem no Brasil uma ameaça imperialista. “Estamos nos dando conta de que, na realidade, o que o governo boliviano quer implementar é um modelo de propriedade comunitária, indígena”, diz Medina. “O problema é que isso muitas vezes é incompatível com a Bolívia moderna e competitiva que nós viemos ajudar a criar.”

INTERNACIONAL Domingo, 16 dezembro de 2007

Oposição desafia governo de Evo

Departamentos apresentam estatutos de autonomia, mas presidente boliviano adverte contra planos de

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secessão

Ruth Costas

Governo e oposição mediram forças ontem na Bolívia. À tarde, milhares de manifestantes compareceram a comícios nos departamentos (Estados) de Beni, Tarija, Pando e Santa Cruz - região mais rica do país e reduto da oposição - para a apresentação de estatutos autonômicos, espécie de Constituição regional. O objetivo é garantir a independência em relação a La Paz em questões tributárias, administrativas e de segurança, além de criar assembléias departamentais com poder de legislar. Em La Paz, simpatizantes do governo, altos comandos das Forças Armadas e representantes de 80 movimentos sociais estiveram presentes em um comício que marcou a entrega da nova Carta, aprovada sem a presença da oposição no dia 9, para o presidente Evo Morales. “A autonomia é usada como pretexto para dividir o país, mas não permitiremos nenhuma divisão da Bolívia”, afirmou o presidente. Na quarta-feira, Evo havia advertido a oposição de que mobilizaria as Forças Armadas contra qualquer plano de secessão. Em um grande parque em Santa Cruz, a multidão empunhou cartazes pró-autonomia e bandeiras verde e branca - as cores do departamento. A manifestação ocorreu num clima de celebração, com bandas de música e barracas de doces. Não havia forças policiais nacionais. “Era previsto que o governo não mandaria forças oficiais. O povo não suportaria outro episódio como o de Sucre (em que três pessoas morreram em confrontos com a polícia)”, disse ao Estado um dos seguranças contratados pelo comitê cívico. A violência se resumiu à explosão de uma bomba no sexto andar do Palácio de Justiça - ninguém se feriu - e a agressões físicas entre partidários de Evo e opositores em distrito de Santa Cruz. Durante a semana, lideranças locais denunciaram um suposto plano do governo para intervir militarmente nas regiões em resposta ao movimento, mas Evo negou que tenha planos de declarar estado de sítio. As elites políticas e econômicas dos quatro departamentos resolveram declarar autonomia unilateralmente, após parlamentares governistas aprovarem a nova Carta numa manobra política polêmica. O texto fala em autonomias departamentais, mas também em autonomias indígenas, municipais e regionais - o que para os líderes opositores significa nenhuma mudança na prática. O projeto da nova Carta, que ainda precisa ser aprovado por referendo, amplia o controle do Estado sobre a economia, estabelece eleições diretas para juízes e permite uma reeleição presidencial consecutiva. O vice-presidente Álvaro Garcia Linera assumiu o desafio de conseguir dois terços dos votos dos deputados para aprovar o referendo, apesar de a oposição ser contra o projeto. Linera disse ainda que o governo analisa a possibilidade de que embaixadores europeus favoreçam uma negociação com os líderes dos departamentos opositores.

INTERNACIONAL Segunda-feira, 17 dezembro de 2007

Santa Cruz começa coleta de assinaturas para referendo

Ruth Costas, Santa Cruz, Bolívia

O governo de Santa Cruz, departamento mais rico da Bolívia e principal reduto da oposição, deve iniciar nesta semana o processo de coleta de assinaturas para pedir um referendo sobre seu estatuto autonômico - espécie de Constituição regional. Segundo o governador Rubén Costas, as autoridades locais não buscarão apenas as 70 mil assinaturas necessárias, mas tentarão obter até “1 milhão de firmas”. No sábado, Santa Cruz e outros três departamentos - Tarija, Beni e Pando - apresentaram seus estatutos autonômicos para a população. Essas regiões querem independência de La Paz em questões tributárias e administrativas. Esperava-se que os eventos terminassem em conflito, mas o clima foi de celebração. Isso ocorreu em parte porque os departamentos decidiram que os documentos serão levados a referendo. A idéia inicial era que eles fossem aprovados nos comícios de sábado por aclamação popular. Ainda é incerto que tipo de medidas os departamentos poderão tomar daqui para frente, apesar de alguns líderes já terem apresentado uma série de projetos para implementar a autonomia. O mais provável, segundo analistas, é que eles esperem que o documento seja ratificado em consulta popular antes de implementar as mudanças. Enquanto isso, em La Paz, o presidente Evo Morales voltou a pedir diálogo à oposição.

INTERNACIONAL Segunda-feira, 17 dezembro de 2007

Tarija ameaça negociar sem La Paz exploração de gás por multinacionais

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Os dois maiores campos da Petrobrás na Bolívia estão localizados na região, que decretou autonomia no sábado

Ruth Costas, SANTA CRUZ DE LA SIERRA, BOLÍVIA

O departamento (Estado) boliviano de Tarija anunciou ontem que, caso La Paz insista em cortar sua parcela dos royalties e impostos sobre hidrocarbonetos, vai pressionar as empresas que exploram gás na região a negociarem contratos com o governo local. “Se o governo não repassar os royalties, teremos de tomar medidas para que as empresas do Brasil e da Argentina negociem diretamente com o departamento”, disse ao Estado Maria Lourdes Vaca, principal delegada do governo de Tarija para o projeto autonômico. Em abril, a ocupação de três instalações petroleiras - duas da Shell e uma da Petrobrás - por manifestantes que exigiam o repasse dos royalties levou a uma redução de 75% na exportação de gás para a Argentina e a um pequeno corte no fornecimento para São Paulo. Localizada no sul da Bolívia, Tarija concentra as maiores reservas de gás do país. É lá que estão localizados os dois megacampos operados pela Petrobrás, o de San Alberto e o de San Antonio, responsáveis por 80% do gás boliviano consumido pelo Brasil. Outra reivindicação do departamento é que as empresas que extraem recursos em Tarija paguem impostos e tenham suas sedes na região. A Petrobrás está baseada em Santa Cruz de La Sierra, onde paga seus tributos. “Se eles estão extraindo os recursos daqui, o mais correto é que paguem impostos aqui”, disse Maria Lourdes. “Nós temos 90% das reservas de gás da Bolívia e só recebemos 11% dos royalties e 4% dos impostos. Isso não está certo.” Tarija foi um dos quatro departamentos que apresentaram seus estatutos autonômicos em comícios populares no sábado. Ao contrário dos líderes de Santa Cruz, que em seus discursos lembraram que o estatuto ainda deve ser submetido a referendo, o governador de Tarija, Mario Cossio, declarou que o departamento já se “autogovernará”. A legitimidade desse autogoverno viria, segundo ele, do referendo sobre as autonomias, de 2 de julho de 2006, no qual o “sim” venceu em Tarija, e da aclamação popular no comício de ontem. Cossio também detalhou as primeiras iniciativas do governo autônomo. Entre elas estão a criação de um banco de desenvolvimento, um fundo social voltado para o setor de habitação e de um fundo para investir na distribuição de gás, energia elétrica e água potável na região. Além disso, ele também pretende abrir licitações para construir usinas termoelétricas no departamento. O modo como essas medidas serão implementadas, já que muitas delas mexem com atribuições do governo central, ainda é incerto. Contudo, a idéia é que todos esses projetos sejam financiados com os recursos dos hidrocarbonetos. O governo de Tarija reclama que em agosto La Paz não repassou parte dos royalties para eles. Além disso, no dia 1° de janeiro entrará em vigor a lei que corta em 75% os repasses dos impostos sobre gás e petróleo para as regiões - Evo destinará esses recursos para uma bolsa-auxílio para idosos. Cossio condicionou o diálogo com La Paz ao reconhecimento da autonomia do departamento e ao fim dos cortes nos repasses. “Tentaremos uma via legal para recuperar esses recursos. Se não for possível, temos preparadas outras medidas”, disse Maria Lourdes.

ECONOMIA & NEGÓCIOS Terça-feira, 18 dezembro de 2007

Brasil vai investir US$ 1 bi na Bolívia

Na assinatura dos acordos de cooperação, Lula disse que os dois países iniciam ‘uma nova fase em suas relações’

Nicola Pamplona

Com a promessa de investimentos de até US$ 1 bilhão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que Brasil e Bolívia iniciam “uma nova fase em suas relações”, estremecidas com a nacionalização dos ativos da Petrobrás, em maio de 2006. Em cerimônia para assinar nove acordos de cooperação, Lula e o presidente da Bolívia, Evo Morales, trocaram afagos e se comprometeram a aprofundar a integração entre os dois países. Em seu discurso, o presidente brasileiro defendeu sua atuação após a tomada das unidades da Petrobrás. “Esses acordos respondem àqueles que pregavam o distanciamento, o congelamento das relações. Respondem àqueles que defenderam o enfrentamento. Nós respondemos com a cooperação”, disse Lula. Para o presidente, o Brasil tem obrigação de ajudar a Bolívia, para “reduzir as assimetrias na região”. “Vejam a União Européia: quantos bilhões de euros não foram gastos para ajudar Espanha, Portugal e Grécia a crescerem?”

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Os acordos no setor de petróleo foram fechados no último momento, com algumas reviravoltas nas reuniões realizadas durante o fim de semana. Depois de rejeitar a proposta brasileira, os bolivianos voltaram atrás, em reunião liderada por Lula. Estava em jogo o destino do gás produzido em novos projetos da Petrobrás. A estatal conseguiu incluir uma cláusula que lhe garante o direito de vender a maior parte da produção ao exterior, a preços mais atrativos, enquanto os bolivianos queriam priorizar o mercado interno, onde os preços são subsidiados. Embora o volume de recursos anunciados gire entre US$ 750 milhões e US$ 1 bilhão, a Petrobrás vai investir, no início, pouco menos de US$ 300 milhões: US$ 260 milhões na expansão dos campos de San Alberto e San Antonio e outros US$ 36 milhões na perfuração de um poço exploratório no bloco de Ingre. O restante dos recursos prometidos, porém, depende dos resultados da atividade exploratória, disse o presidente da companhia, José Sérgio Gabrielli. Petrobrás e a estatal local YPFB vão se unir ainda na busca por petróleo em três blocos pertencentes aos bolivianos, com a possibilidade de criação de uma empresa para desenvolver os projetos. Em tom mais ameno do que o adotado desde que assumiu, Evo Morales disse que nunca pensou em expulsar as companhias brasileiras. “Nós precisamos de vocês”, afirmou, dirigindo-se a Gabrielli. “Mas queremos sócios, não patrões”, repetiu. O presidente boliviano frisou que vai garantir a rentabilidade de novos investimentos no país. “Sabemos que qualquer investimento tem de ser retorno. Não só retorno, tem de ter direito ao lucro. Vamos garantir e respeitar qualquer empresa que queira atuar aqui.”

INTERNACIONAL Terça-feira, 18 dezembro de 2007

Bolívia prepara maratona de eleições

Referendos devem decidir texto final de Carta, revogação de mandatos e grau de autonomia de departamentos

Ruth Costas

Santa Cruz de La Sierra, Bolívia - Oposição e governo começavam a trabalhar ontem nos trâmites para a convocação de nada menos que quatro referendos decisivos para o futuro político da Bolívia. Nos departamentos opositores de Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija, as autoridades locais preparavam-se para iniciar o processo de coleta de assinaturas para pedir consultas populares sobre as autonomias regionais. Pela lei boliviana, são necessárias firmas de pelo menos 8% dos eleitores da região. Em La Paz, o Congresso analisa o projeto da nova Constituição entregue pela Assembléia Constituinte aos deputados na sexta-feira. Segundo o vice-presidente Álvaro Garcia Linera, nas próximas semanas o Legislativo deve convocar um referendo sobre um artigo que trata da concentração de terras. Os bolivianos terão de decidir qual será o limite máximo para uma propriedade no país: 5 mil hectares ou 10 mil. Para a oposição, a tentativa de impor o limite é uma agressão à propriedade privada. A convocação de uma terceira consulta sobre todo o texto da Constituição, elaborado por parlamentares governistas numa manobra política que excluiu os opositores, ocorrerá após uma decisão sobre esse artigo - o que deve levar mais de três meses. Segundo uma pesquisa divulgada ontem, 48% dos bolivianos consideram a Carta “ilegal”, enquanto 35% acreditam que ela é “legal”. O quarto referendo tratará da revogação dos mandatos do presidente Evo Morales e dos governadores dos departamentos. Proposto por Evo como um desafio aos governadores opositores, ele foi aprovado na Câmara dos Deputados no sábado e ontem começou a tramitar no Senado. “Nunca houve tantas consultas populares no país”, diz o cientista político Carlos Cordero. “Isso em grande parte ocorre porque a Bolívia passa por um momento decisivo. Mas o excesso de polarização impede que as classes políticas dialoguem.” O referendo seria a alternativa para romper o impasse. Além disso, a participação direta nas decisões do Estado é uma demanda da população boliviana, que tem no engajamento uma de suas características mais marcantes. Na Bolívia, ao menor sinal de polêmica, as organizações sociais, associações de bairro e entidades profissionais logo tratam de organizar passeatas, invasões, greves e bloqueios de estradas. “O engajamento em geral é saudável para uma democracia, mas esse tipo de reação tem sido paralisante no campo político e institucional, além de prejudicar o a economia boliviana”, diz o cientista político Johnny Villaroel, da Universidade Maior de San Andrés. “Os referendos são uma solução saudável para esse problema

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porque transformam-se em alternativa à violência e outras medidas de força.” Um exemplo foi o que ocorreu nos departamentos opositores, que algumas semanas atrás ameaçavam declararem-se autônomos unilateralmente em comícios populares. A decisão de levar o tema à consulta popular abafou ao menos temporariamente as tensões na região. Agora, a população dos quatro departamentos decidirá nas urnas pela adoção ou não dos estatutos autonômicos, que ampliam a independência desses departamentos do governo central em questões administrativas e tributárias. Após a coleta das assinaturas, os referendos precisarão ser aprovados pelo Congresso Nacional, no qual o governo tem maioria. “Se houver problemas (para aprovar os referendos no Congresso), pensaremos numa alternativa, como a convocação ser feita pelo governador”, disse ao Estado Carlos Dabdoub, secretário de autonomias do Departamento de Santa Cruz. Segundo o Conselho Nacional Eleitoral (CNE), cada consulta tem o custo de US$ 7 milhões. VOTAÇÕES EM SÉRIE Autonomia: Santa Cruz, Beni, Pando e Tarija querem submeter a referendo estatutos de autonomia apresentados no sábado. Consultas têm de ser aprovadas pelo Congresso, após envio de abaixo-assinado com pelo menos 8% dos eleitores inscritos em cada região Propriedade: População decidirá se latifúndio terá 5 mil ou 10 mil hectares. Tema vai a referendo antes de consulta sobre texto completo da nova Constituição. Depois de aprovado pelo Congresso, deve ocorrer em até 120 dias Constituição: Após inclusão de artigo sobre latifúndio, Carta terá de ser aprovada pelo Congresso para ser submetida à consulta popular - depois de mais 120 dias Cargos: Evo e governadores submeterão seus mandatos a referendo revogatório. Depois de aprovado na Câmara, projeto tramita agora no Senado

INTERNACIONAL Terça-feira, 18 dezembro de 2007

Mais duas regiões bolivianas buscam autonomia

Governos de Cochabamba e Chuquisaca decidem reunir assinaturas para pedir referendo

Ruth Costas

Santa Cruz de La Sierra, Bolívia - Outros dois departamentos (Estados) bolivianos entraram no coro por mais autonomia. Segundo o governador de Cochabamba, Manfred Reyes Villa, de oposição, a partir de janeiro as organizações cívicas e o governo coletarão assinaturas para pedir um referendo local sobre esse tema. Em Chuquisaca, onde fica a cidade de Sucre, essa campanha já começou. O governador David Sánchez, aliado de La Paz, que estava fora de Sucre desde o dia 24 - quando conflitos entre policiais e estudantes deixaram três mortos - renunciou ontem. “Nos últimos meses, Chuquisaca se deu conta de que será muito difícil conseguir implementar projetos de desenvolvimento local se não tivermos mais independência”, disse ao Estado o vice-presidente do Comitê Cívico, José Luis Gantier. “Precisamos de um Estado menos centralizador e temos certeza de que um referendo sobre esse tema hoje teria um resultado favorável por aqui.” Numa consulta popular sobre as autonomias regionais realizada em julho de 2006, o “sim” venceu nos departamentos de Santa Cruz, Pando, Beni e Tarija, mas perdeu nas outras cinco regiões - incluindo Cochabamba e Chuquisaca. De acordo com uma pesquisa publicada ontem pelo Instituto Mori, o voto pela autonomia também ganharia nesses dois departamentos. Em Chuquisaca, por 67%a 18%. Em Cochabamba, por 48% a 41%. Em Chuquisaca, as organizações cívicas também pretendem coletar assinaturas para um referendo nacional sobre uma mudança da sede dos poderes Legislativo e Executivo da Bolívia de La Paz para a cidade de Sucre - uma demanda histórica da região. Até 2005, as nove regiões bolivianas nem sequer podiam eleger seus governadores. Eles eram indicados por La Paz. As eleições para esse cargo foram barganhadas em negociações com o partido governista Movimento ao Socialismo (MAS) em troca da convocação da Assembléia Constituinte. Agora, esses líderes regionais querem poder decidir sobre como administrar o orçamento e definir políticas de educação, saúde e hidrocarbonetos. Essas exigências são um dos grandes focos de tensão com o governo do presidente Evo Morales. Ontem, Evo voltou a convidar as regiões opositoras a dialogarem, por sugestão de embaixadores europeus que estão tentando aproximar os dois lados. A oposição, porém, diz que as ofertas do presidente não são sinceras, porque ele não demonstra estar disposto a fazer concessões.

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INTERNACIONAL Domingo, 23 dezembro de 2007 Carta de Evo ameaça o maior pólo agroindustrial da Bolívia

Fazendas em Santa Cruz, mesmo produtivas, podem ser desapropriadas se superarem área a ser definida em referendo

Ruth Costas

Nas terras férteis do oriente do país, o governo boliviano abriu uma frente de batalha que já paralisou os investimentos e ameaça sufocar um dos setores mais dinâmicos da economia da Bolívia. O alvo do presidente Evo Morales são os produtores da região de Santa Cruz, o maior pólo agroindustrial do país e o principal reduto da oposição regional. “Esse será o fim do latifúndio na Bolívia”, proclamou Evo há um ano, quando o Congresso aprovou uma nova lei de terras, festejada como uma “revolução agrária” pelas organizações sociais afins ao presidente. Agora, é o projeto para uma nova Constituição que está tirando o sono dos agropecuaristas - entre eles, muitos brasileiros. Dentro de alguns meses, os bolivianos irão às urnas para decidir sobre o Artigo 398 dessa nova Carta, que limita o tamanho das propriedades rurais. Será a primeira da maratona de consultas populares previstas para o próximo ano na Bolívia. A pergunta que eles terão de responder não será se esse limite deve existir ou não. Simplesmente, em que patamar ele deve ser colocado - 5 mil ou 10 mil hectares. As propriedades que excederem essas dimensões serão consideradas latifúndios. Como tal, estarão sujeitas à desapropriação. Sejam elas produtivas ou não. “No caso do limite mais estreito, os 5 mil, se essa regra for aprovada, inviabilizará cerca de 80% das fazendas de pecuária do país”, disse ao Estado Maurício Roca, presidente da Câmara Agropecuária do Oriente (CAO). “Também estaríamos abrindo um precedente perigoso ao permitir que o Estado possa definir o que os indivíduos podem ter ou não.” Segundo o presidente da Comissão de Recursos Naturais e Terra da Assembléia Constituinte boliviana, Carlos Romero, que pertence ao partido governista Movimento ao Socialismo (MAS), cerca de 4 mil famílias perderiam terras se o limite mais estreito fosse aprovado. Se passassem os 10 mil, ele diz que seriam apenas 20 famílias. “O problema é que todas são propriedades altamente produtivas e modernas, que contribuem para as exportações e a segurança alimentar da Bolívia”, defende Roca. Entre os produtores, o sentimento é de surpresa e indignação. Muitos não conseguem entender como, num piscar de olhos, uma terra repleta de oportunidades se tornou um azarão. Há três anos, a área cultivada em Santa Cruz crescia a uma média de 7 a 10%. As fazendas se mecanizavam. Os produtores contratavam gente, investiam em novas tecnologias e estavam sempre de olho nas terras mais além da sua porteira: o objetivo era crescer e aumentar a produção. Hoje, os investimentos estão praticamente estancados. Se há um mínimo de crescimento, é por conta dos altos preços dos alimentos no mercado internacional. Os tratores estão parados por falta de diesel - distribuído pela estatal YPFB. Os bancos se negam a dar empréstimos tomando as terras como garantia e muitos trabalhadores estão com o emprego por um fio. Quem queria crescer se dá conta de que ser grande virou infração. “O governo boliviano está usando a terra para fazer política enquanto diz estar preocupado com um problema social”, diz o brasileiro naturalizado boliviano Nilson Medina, que teme pelos 7 mil hectares onde planta principalmente soja nas proximidades da cidade de Santa Cruz de La Sierra. Ele faz parte de uma das 200 famílias brasileiras que se dedicam à agricultura na Bolívia. Muitas outras se dedicam à pecuária. No total, os brasileiros são responsáveis por um terço da produção de soja e detêm mais de 10% das terras cultivadas do país. “A verdadeira ‘revolução agrária’ foi feita por nós, produtores, que investimos para transformar o campo boliviano num setor competitivo e mecanizado”, diz Medina. “Agora Evo quer acabar com tudo isso para retroceder ao modelo de agricultura comunitária, típico das comunidades indígenas.” MECANISMO DE PRESSÃO A lei de terras é hoje o principal mecanismo de pressão de La Paz sobre os produtores de Santa Cruz. Aprovada em novembro de 2006, com o Senado cercado por movimentos sociais que impediam a entrada dos parlamentares opositores, ela tem como objetivo, segundo Evo, permitir a redistribuição de 20% das terras bolivianas até 2010. Para o governo, esse dispositivo legal é um instrumento de promoção da justiça social no campo. Também é uma oportunidade para distribuir milhares de hectares que estão ociosos nas mãos do Estado. Para a oposição, é uma declaração de guerra. “Também somos contra o latifúndio improdutivo, mas eles estão de olho nas terras que já estão sendo trabalhadas aqui no Oriente”, diz o presidente da Associação Nacional de Produtores de Oleaginosas (Anapo), Reynaldo Díaz, para quem a meta não-declarada do governo é debilitar a oposição regional de Santa Cruz e garantir sua popularidade entre os indígenas e grupos de camponeses. Pela lei, toda terra que não cumprir sua “função social” está sujeita à desapropriação. A antiga lei de reforma agrária, de 1996, já impunha essa condição. A diferença é que a nova legislação exclui como “função social” os

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investimentos produtivos e melhorias feitas na propriedade. “Ou seja, não adianta produzir e gerar emprego”, afirma Díaz. “Você corre o risco de ter suas terras tomadas e perder tudo que investiu”. A desapropriação das terras pode ocorrer no caso de qualquer contenda trabalhista ou do não cumprimento das regras sobre o uso ou manejo do solo. Na prática, se um produtor desmata mais do que o permitido, não registra alguns de seus trabalhadores ou cultiva soja num lugar que a superintendência agrária diz que deve ser usado para a pecuária, pode ter suas terras desapropriadas. “A legislação não nos dá nem mesmo a chance para que nos adaptemos”, disse ao Estado um grande produtor de soja brasileiro, que não quis ser identificado por medo de represália. Segundo o governo, tais condições visam a conter os abusos dos produtores no campo - como agressões ao meio ambiente e o uso do trabalho escravo. Ele lembra que diversas ONGs e movimentos sociais denunciaram a existência de famílias de origem guarani trabalhando em regimes semi-servis nas regiões de Santa Cruz, Tarija e Chuquisaca, mas os proprietários negam que haja esse tipo de violação. Este mês, foi emitida uma resolução para a expropriação de cinco propriedades com base na lei de terras no Departamento de Chuquisaca, no sul do país. Uma delas seria desapropriada por causa de uma dívida trabalhista de 3.800 bolivianos (cerca de R$ 1 mil). SENTIMENTO ANTIBRASILEIRO Para os estrangeiros, a tensão no campo cria uma situação ainda mais complicada. Um brasileiro que tem duas fazendas dedicadas à pecuária em Santa Cruz diz sentir um crescimento rápido do sentimento antibrasileiro entre funcionários do governo e organizações sociais aliadas a La Paz. “Eles dizem: ‘você nem sequer está no seu país, não pode reclamar.’” Maurício Roca, da CAO, acrescenta que muitos proprietários não-bolivianos também são vítimas de extorsão. “Por enquanto, o governo ainda não se atreveu a desapropriar muitas terras em Santa Cruz porque sabe que isso provocaria uma resposta forte e imediata”, diz ele. A maior parte dos milhares de hectares que Evo está distribuindo para camponeses e comunidades indígenas é, até agora, do Estado. “É provável, porém, que, à medida que as hostilidades entre Santa Cruz e La Paz aumentem, haja uma ofensiva sobre as terras daqui. Aí sim teremos uma situação potencialmente explosiva.” INTERNACIONAL Domingo, 23 dezembro de 2007

Produtores rurais tentam se proteger com estatuto de autonomia

Como em quase todas as esferas da vida política, econômica e social da Bolívia, no campo a grande questão nos próximos meses será decidir, afinal, qual lei vale nessa terra. Para proteger-se da “revolução agrária”, cujos instrumentos legais são a nova Constituição e a lei de terras, os proprietários de Santa Cruz apostam no estatuto autonômico da região, espécie de Constituição local apresentada pelos líderes crucenhos num grande comício na semana passada. “Santa Cruz já se proclamou autônoma e isso servirá como uma barreira para evitar que o governo possa fazer aqui o que quiser”, disse ao Estado o produtor de soja brasileiro Nilson Medina, que possui terras na região. “Não vamos reconhecer essa nova Constituição governista e não queremos nem ouvir falar em referendo sobre ela - só obedeceremos ao estatuto de Santa Cruz.” O documento aumenta a independência do governo departamental em relação a La Paz em importantes questões tributárias, legais e administrativas, regionalizando as decisões relativas à propriedade e à exploração da terra. Ele cria um Conselho Agrário Departamental e estabelece como função do governador assinar todos os títulos de propriedade de terra em Santa Cruz. “É responsabilidade do governo local a regularização do direito de propriedade, a distribuição, redistribuição e administração das terras na região”, diz. Além disso, o latifúndio é definido como uma grande extensão de terra improdutiva - enquanto, na nova Carta, engloba também as terras produtivas. O problema é que, apesar de as elites locais planejarem levar o estatuto a referendo no próximo ano, até agora ele não é reconhecido por La Paz. Também são mínimas as possibilidades de que venha a ser aceito antes que sejam feitas mudanças substanciais - e, segundo analistas, o direito de emitir títulos de propriedade e definir as políticas no campo é um dos pontos nos quais o governo é mais intransigente. Os líderes locais também dão a entender que tentarão boicotar o referendo sobre a nova Constituição, aprovada numa sessão da qual não participaram opositores. Diante das incompatibilidades existentes entre os dois documentos, se ambos fossem aprovados em consultas populares, legalmente a decisão ficaria a cargo do Tribunal Constitucional. Ficaria, não fosse um porém. Essa corte está paralisada desde outubro, porque três de seus cinco magistrados pediram demissão. Esgotadas as vias legais, as outras opções seriam um acordo - preferível e menos custoso - ou uma imposição, pela força, da legislação nacional.

INTERNACIONAL Domingo, 23 dezembro de 2007

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Presidente diz que só deixa o palácio morto

EFE

O presidente Evo Morales declarou ontem que só sairá morto do palácio do governo, caso os opositores tentem substitui-lo de uma forma não democrática. “Enquanto estiver na presidência constitucional, se tentarem me derrubar, terão de me tirar morto do palácio do governo”, disse Evo, em discurso pronunciado a centenas de mineiros na cidade de Llallagua. Evo já denunciou, em diversas ocasiões, que existe uma conspiração da oposição contra ele. “Não temos medo dos oligarcas e de suas provocações”, disse. A declaração do presidente sobre a saída do palácio foi feita horas depois que o vice-presidente Alvaro García voltou a propor aos opositores um diálogo sobre a conflituosa situação política da Bolívia, exigindo deles uma atitude “relaxada”. 'Já pedimos três vezes, desde outubro, que houvesse uma conversa relaxada, e não uma atitude de confronto por parte dos governadores', disse Álvaro García, em entrevista coletiva em La Paz. Segundo García, as portas do palácio estão abertas, mas os governadores de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Cochabamba, rejeitam o projeto de nova Constituição, impulsionado pelo presidente Evo.

INTERNACIONAL Terça-feira, 8 janeiro de 2008

Evo e opositores se reúnem em busca de saída para crise

EFE

O presidente Evo Morales e os governadores dos nove departamentos da Bolívia - cinco deles de oposição - iniciaram ontem à noite uma reunião em La Paz em busca de solução para a crise criada por divergências quanto ao projeto de Carta do governo e os estatutos regionais de autonomia. Evo propôs um grande pacto nacional e os governadores garantiram que não querem a divisão do país. Ainda ontem, Evo nomeou para o Conselho Eleitoral o comunicador José Luis Exeni, acusado pela oposição de ser tendencioso.

INTERNACIONAL Quarta-feira, 9 janeiro de 2008

Evo e oposição vão buscar saída política

O presidente Evo Morales e os governadores dos nove departamentos da Bolívia (incluindo cinco opositores) concordaram ontem em dar uma saída política para a crise que ameaça fragmentar o país. Governo e oposição formarão equipes técnicas para avaliar os artigos da nova Carta, os estatutos autonômicos e a decisão do Congresso de cortar o repasse de impostos para as regiões.

INTERNACIONAL Sábado, 12 janeiro de 2008

Evo dispõe-se a revisar a Carta para encerrar crise

Em busca de um acordo nacional, líder boliviano pede que Constituinte compatibilize projeto de Constituição com os estatutos autonômicos

Afp, Efe e Reuters

O presidente boliviano, Evo Morales, e a presidente da Assembléia Constituinte, Silvia Lazarte, afirmaram ontem que podem revisar o projeto de Constituição para pôr fim à crise que que ameaça fragmentar o país. Quatro das nove províncias (Estados) bolivianas - Beni, Tarija, Pando e Santa Cruz - declararam-se autônomas no fim do ano para protestar contra o projeto da Carta, aprovado sem a participação da oposição. “Esperamos que haja vontade para combinar a nova Constituição com os estatutos autonômicos para permitir um acordo nacional”, disse Evo, durante um encontro com delegados constitucionais na residência presidencial, em La Paz. “Estou transmitindo a preocupação dos governadores, que me pediram para compatibilizar os textos (do projeto e dos estatutos)”, afirmou o presidente. Os governadores pediram garantias de que eles terão mais autonomia após a aprovação da Carta. Com um surpreendente tom conciliador, a presidente da Constituinte disse que as revisões podem ser debatidas. “Se alguns setores da população querem propor mudanças, eles devem passá-las às instâncias responsáveis”, disse Silvia, integrante do partido governista Movimento ao Socialismo (MAS). Evo e os governadores da oposição já haviam concordado, na terça-feira, em buscar alternativas para a crise e

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desenvolver um plano para fortalecer a unidade nacional para evitar o agravamento do impasse político no país. As duas partes formarão equipes técnicas para avaliar os artigos da nova Carta, os estatutos autonômicos e a decisão do Congresso de cortar o repasse de impostos para as regiões. De um lado, Evo, que é aimará, quer dar mais poder político aos grupos indígenas. De outro, seus opositores, de seis regiões ricas em gás, querem garantir que não serão cortados os repasses do lucro da exportação de energia. Governo e oposição voltarão a se reunir na segunda-feira para discutir um possível acordo. Os governadores da oposição (exceto La Paz) já têm projetos de estatutos para forçar a descentralização, que lhes daria poderes similares ao Executivo e o Legislativo. Pela Constituição atual, a administração fiscal dos departamentos é quase totalmente exercida por La Paz. Críticos afirmam que os aliados de Evo se aproveitaram de um boicote da oposição para aprovar as propostas do governo para a nova Constituição. O projeto da Carta deve ir a referendo até julho. Os bolivianos terão de votar ainda em outras consultas populares, para opinarem sobre assuntos como área máxima das propriedades rurais e a revogação dos mandatos do presidente e dos governadores.

INTERNACIONAL Terça-feira, 15 janeiro de 2008

Partido de Evo rejeita termos de autonomia

O Movimento ao Socialismo (MAS) - partido do presidente boliviano, Evo Morales - rejeitou ontem os estatutos autonômicos apresentados pelos departamentos de Santa Cruz, Tarija, Beni e Pando. Em nota, o partido declarou que os estatutos são “ilegais, inconstitucionais e incompatíveis com o projeto de Constituição” do país.

INTERNACIONAL Quinta-feira, 17 janeiro de 2008

Evo e governadores da oposição chegam a acordo sobre Carta

AP E AFP

Depois de mais de oito horas de negociação, o presidente boliviano, Evo Morales, e os governadores dos nove departamentos (estados) do país - seis deles da oposição - chegaram a um acordo que pode pôr fim à crise política que ameaça fragmentar a Bolívia. Na madrugada de ontem, Evo e os governadores decidiram encomendar a uma comissão mista a combinação de aspectos controvertidos do projeto da nova Constituição. A comissão será encarregada de “propor e sugerir” a eliminação de possíveis “contradições” ao projeto constitucional - aprovado pelos deputados governistas da Assembléia Constituinte em 9 de dezembro -, como os estatutos autonômicos e uma lei que prevê financiar bônus a idosos com recursos retirados da renda regional. Ontem, o governo também anunciou que vai deter a divulgação do texto do projeto de Constituição a pedido dos governadores opositores, que o consideram “ilegal”. Segundo o porta-voz do governo, Alex Contreras, a decisão é um compromisso de Evo com os governadores. “Foi pedido ao presidente (o fim da divulgação do projeto de Constituição) e o presidente mostrou que é de seu interesse que o diálogo siga e não tem problemas com a suspensão dessa campanha”, disse Contreras.

INTERNACIONAL Sábado, 19 janeiro de 2008

Central sindical acusa Evo de 'desprezar população carente'

COB diz que projeto de Constituição ‘é um fracasso’

Renata Miranda

Pedro Montes, secretário-executivo da Central Operária Boliviana (COB), criticou na quinta-feira o projeto de Constituição do presidente Evo Morales. Ele afirmou que o fim da crise política, que ameaça fragmentar a Bolívia, ainda está longe de ser alcançado. “Enquanto não houver a unificação entre os movimentos políticos e operários da Bolívia, será difícil chegar a

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uma solução para os problemas que estamos enfrentando”, disse ao Estado o líder sindicalista boliviano, que esteve em São Paulo participando de uma reunião com sindicatos brasileiros promovida pela Coordenação Nacional de Lutas (Conlutas). Partidos políticos opositores e setores civis do país consideram o projeto da Carta “ilegal” por ter sido aprovado pelo partido governista - o Movimento ao Socialismo (MAS) -, em dezembro, sem a presença da oposição. Segundo Montes, o projeto de Constituição é um fracasso porque os deputados constituintes não levaram em consideração as reivindicações da população mais carente na hora de discutir as mudanças. “O projeto deveria ter sido debatido entre os pobres e os trabalhadores para que o texto fosse mais hegemônico.” O líder sindical acredita que o papel de Evo no processo constitucional decepcionou seus eleitores. “No passado, Evo era um líder indígena e nosso companheiro, mas a situação mudou desde que ele chegou ao poder.” Em relação às autonomias exigidas pelos Departamentos de Santa Cruz, Beni, Tarija e Pando - todos opositores -, Montes afirmou que a idéia é “saudável” para o país, mas a COB é contra os estatutos porque foram redigidos sem consulta popular. “Os estatutos foram feitos para proteger interesses de empresários, no caso de Santa Cruz, e não para ajudar a acabar com a pobreza no país.”

INTERNACIONAL Segunda-feira, 21 janeiro de 2008

Santa Cruz ameaça abandonar diálogo

O governo do departamento boliviano de Santa Cruz estuda abandonar as negociações entre o presidente Evo Morales e as regiões opositoras para colocar fim à crise política no país. A ameaça foi feita por causa da falta de acordo sobre a fonte de financiamento de uma bolsa-auxílio para idosos. Morales quer que a ajuda seja retirada da parcela dos impostos sobre gás e petróleo que são repassadas às regiões.

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Artigos da Folha de São Paulo, selecionados entre dezembro de 2007 e

janeiro de 2008.

São Paulo, sexta-feira, 14 de dezembro de 2007 Santa Cruz quer controle sobre gás, petróleo e terras Oposição a Evo Morales no departamento do leste aclama Estatuto Autonômico Departamento abriga maiores propriedades da Bolívia e sede da Petrobras no país; Forças Armadas estão em "emergência" FLÁVIA MARREIRO ENVIADA ESPECIAL A LA PAZ Em reação ao novo texto da Constituição boliviana, os dirigentes oposicionistas do departamento boliviano de Santa Cruz apresentaram ontem um documento que desconhece a nova Carta e prevê que o governo regional, e não só o nacional, legisle sobre temas como distribuição de terras e hidrocarbonetos (gás e petróleo). Em Santa Cruz, produtores brasileiros são responsáveis por 35% da produção de soja, e a capital do departamento abriga a sede da Petrobras no país. Reunidos numa Assembléia Autônomica Provisória, o governador do departamento, Rubén Costas, parlamentares nacionais, prefeitos e representantes indígenas aprovaram o texto do chamado Estatuto Autonômico, que pretendem apresentar à população num ato político amanhã. Após a sessão de mais de 24 horas, houve emoção e choro ao som do hino de Santa Cruz. "É um estatuto para todos os bolivianos estrangeiros que vivem neste departamento, um caminho para os que não queremos um país nem comunista nem socialista", disse o deputado Pablo Klinsky, do oposicionista Podemos e presidente da Assembléia Provisória. Segundo os políticos cruzenhos, a idéia é submeter o texto à população local, em um referendo. Além de Santa Cruz, os governadores dos departamentos de Tarija, Beni e Pando rejeitam a nova Constituição boliviana, que ainda irá a consulta popular, e preparam documentos similares para implementar autonomia administrativa em relação a La Paz. Em referendo em 2006, a população dos quatro departamentos disse "sim" à autonomia -nos cinco demais, venceu o "não". Com a autonomia, o governo de Tarija -onde estão os maiores campos de gás, inclusive os explorados pela Petrobras- buscará que petroleiras estrangeiras paguem mais impostos ao departamento, e não a Santa Cruz, onde têm seus escritórios, disse à Folha Maria Lourdes Vaca, representante do departamento para a autonomia. Emergência militar A mobilização regional é produto de uma longa crise política entre governo e oposição, que reclama ainda de um corte nos repasses aos departamentos pelo governo central para financiar um benefício a idosos. Diante do anúncio de que Santa Cruz apresentará seu estatuto, o governo nacional enviou policiais, sob acusações de oposicionistas de que Morales prepara-se para militarizar a área. As Forças Armadas já se declararam em "emergência". Simpatizantes do governo, sobretudo na periferia da capital e na zona rural de Santa Cruz, prometem bloquear estradas em protesto contra a autonomia amanhã. Ontem, o vice-presidente, Álvaro García Linera, disse que os estatutos só valerão sob a promulgação da nova Constituição, pois a atual não prevê autonomia. García Linera criticou os departamentos -que sediam as maiores propriedades do país e respondem pelo grosso da produção agropecuária- por pretenderem legislar sobre o regime de terras: "Cada bairro vai querer legislar de maneira discricionária sobre terras". O vice-presidente questionou ainda a intenção de Beni (norte) de fazer um controle migratório interno. A oposição rejeita a nova Carta, aprovada em uma sessão maratônica no último fim de semana boicotada pela principal força da oposição, o Podemos. O novo texto constitucional prevê autonomia dos departamentos, mas também de regiões e territórios indígenas, o que a oposição rejeita. Prevê ainda que essa autonomia se regulamente por lei específica.

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Na Bolívia, pela atual Constituição, os departamentos são divisões administrativas que só a partir de 2005 passaram a eleger os governadores. As regiões não têm Legislativos, impostos ou polícia próprios. As propostas autonômicas prevêem dar às regiões esses poderes.

São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007 17 horas de trabalho por casa e comida Antônio Gaudério/Folha Imagem

Jovem boliviano faz curso de corte e costura em La Paz, onde os imigrantes se preparam para trabalhar no Brasil

Repórter-fotográfico trabalha com bolivianos e revela exploração de mão-de-obra clandestina em SP

O repórter-fotográfico Antônio Gaudério, 49, foi à Bolívia munido de celular com câmera para descobrir como funciona o tráfico de mão-de-obra ilegal que alimenta a cadeia têxtil em São Paulo. Como um dos milhares de bolivianos que buscam emprego no Brasil para fugir da miséria em seu país, trabalhou no Brás (SP) até 17 horas por dia produzindo peças de roupas que abastecem grandes lojas do comércio brasileiro. Os bolivianos trabalham em troca de comida e moradia ou, no máximo, alguns centavos por hora.

Até 1.500 bolivianos chegam por mês

Com salários baixos e jornadas de até 17 horas diárias, mão-de-obra irregular abastece confecções paulistas

Para fiscais, condições de trabalho são degradantes; lojas se comprometem a romper com fornecedores que não respeitam a lei

CLAUDIA ROLLI FÁTIMA FERNANDES DA REPORTAGEM LOCAL Entre 1.200 e 1.500 bolivianos chegam por mês ao Brasil em busca de emprego. A maior parte encontra trabalho em pequenas confecções e oficinas clandestinas de costura já identificadas em 18 bairros e cidades da Grande São Paulo, como Bom Retiro, Pari, Brás e Itaquera, e ao menos em oito municípios do interior paulista.

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Fiscalizações feitas pela DRT (Delegacia Regional do Trabalho) de São Paulo e pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) encontraram indícios de que a mão-de-obra irregular desses migrantes é utilizada por confecções que são -ou foram- fornecedoras de grandes redes de varejo do país. Nos últimos dois anos, uma CPI da Câmara Municipal de São Paulo convocou representantes das lojas Marisa, Riachuelo, Renner e C&A para prestar esclarecimentos depois que etiquetas de suas marcas foram encontradas em oficinas irregulares da capital. As quatro redes já firmaram compromisso com o MPT nos últimos quatro meses, além de desenvolverem programas para fiscalizar fornecedores e não comprar de confecções que empregam mão-de-obra estrangeira irregular. As lojas informam ainda que realizam auditorias periódicas e exigem o cumprimento da lei trabalhista e respeito à dignidade humana. Procuradores do Trabalho investigam 147 processos abertos para apurar denúncias envolvendo a exploração dos bolivianos em confecções paulistas -84 já viraram TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) nos últimos dois anos. Neles, os empregadores se comprometeram a não contratar mais estrangeiros em situação irregular e a não submetê-los a condições degradantes de trabalho, como jornadas excessivas em locais que oferecem risco à saúde e à segurança. "Os bolivianos fazem jornadas muito acima da lei [permite até dez horas diárias], ganham centavos por peça produzida e moram no local de trabalho. São vários adultos e crianças alojados em um mesmo cômodo, muitas vezes sem ventilação, com fiação aparente oferecendo riscos", afirma a procuradora Vera Lúcia Carlos. Pelo artigo 149 do Código Penal, é crime reduzir uma pessoa à condição análoga à de escravo. "Se ficar provado que o trabalhador é submetido a jornadas exaustivas, ou a condições degradantes, ou que seu direito de ir e vir está sendo privado porque ele tem uma dívida com o empregador, está caracterizado o crime. Não é necessário que ele esteja acorrentado para provar essa condição", diz Marcos Fava, juiz do Trabalho. A pena prevista é de dois a oito anos de cadeia, além de multa. Obstáculos Para dificultar a fiscalização, as oficinas funcionam em casas ou falsos estabelecimentos comerciais. Em Americana, o sindicato das costureiras da região identificou uma confecção, montada em um área que pertencia a uma igreja, com cerca de 30 bolivianos irregulares. "A placa da igreja continua no local para disfarçar a oficina. Já acionamos os fiscais", afirma Carmelita Alves Braga, presidente do sindicato. Na Barra Funda, blitz acompanhada pela Folha há três meses flagrou uma casa em que trabalham duas famílias bolivianas, a maior parte, irregular. Na fachada, há duas placas: de um médico e de um advogado. Paulo Jesus de Souza Filho, delegado do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), diz que a divisão recebe em média duas denúncias por mês de exploração de estrangeiros irregulares no Brasil -geralmente vizinhos incomodados com o barulho das máquinas de costura. No Centro de Apoio ao Migrante (do Serviço da Pastoral dos Migrantes, ligado à CNBB), são 15 a 20 denúncias por mês. "Donos de oficinas e de confecções já foram presos após ter sido feito o flagrante. Como o crime é inafiançável, alguns já chegaram a ficar presos por duas semanas enquanto aguardavam o pedido de liberdade provisória. Depois, a maior parte responde ao processo em liberdade", diz o delegado. Considerados os últimos oito anos, não chega a cem o número de inquéritos encaminhados pela Polícia Civil para combater o trabalho análogo à escravidão, segundo a Folha apurou. Ação conjunta Na zona norte de São Paulo, policiais encontraram uma adolescente e dois bolivianos que eram trancados na oficina. Há casos em que patrões apreendem documentos para evitar que fujam e outros em que os estrangeiros pagam o prato de comida com trabalho. Casos como esses podem ser denunciados pelo telefone 181. Para Márcia Ruiz, delegada e representante do comitê paulista de combate ao tráfico de seres humanos, a ação não deve ser apenas policial. "É uma questão social complexa, porque os bolivianos irregulares não querem retornar porque dizem que aqui não passam fome. É preciso conscientizar os que estão sendo explorados e que todas as entidades envolvidas ajam de forma conjunta." Antes explorados por patrões sul-coreanos, os bolivianos agora são subordinados a compatriotas que conseguiram se regularizar e montar oficinas. "Eles não se consideram vítimas de exploração", diz José Marcio Lemos, da Delegacia de Imigração da PF em São Paulo. A situação dos bolivianos só não é pior, avalia Paulo Illes, coordenador do Centro de Apoio ao Migrante, porque 20 mil bolivianos (42 mil, segundo o Ministério da Justiça) conseguiram pedir a regularização de sua situação por meio de acordo entre Brasil e Bolívia.

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"Mas a cobrança de taxas elevadas e a multa de até R$ 828 para quem está sem visto dificulta o processo." Estima-se que 160 mil bolivianos vivam no Estado de São Paulo, sendo 100 mil irregulares. "É um problema da globalização econômica. A desigualdade regional faz com que as pessoas migrem em busca de uma situação melhor", diz Sérgio Suiama, procurador do Ministério Público Federal de São Paulo. "É preciso discutir políticas migratórias, rever o estatuto dos estrangeiros e garantir a esses trabalhadores direitos fundamentais básicos, como o direito ao trabalho."

São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007 O preço de um vestido Com jornadas diárias de 17 horas em troca de cama e comida, imigrantes bolivianos vivem rotina de trabalho degradante e superexploração nas confecções de roupa de São Paulo Para entender como funciona o tráfico de mão-de-obra e como vivem os milhares de imigrantes ilegais bolivianos de São Paulo, o repórter-fotográfico Antônio Gaudério deslocou-se para La Paz com um telefone celular dotado de câmera fotográfica, uma muda de roupas e seus documentos brasileiros. Procurou anúncios de trabalho, conversou com agenciadores e até se diplomou como overloquista em uma escola de La Paz. Tudo para ser aceito em uma das centenas de confecções controladas por bolivianos e coreanos que existem em São Paulo. Gaudério submeteu-se a jornadas de trabalho de 17 horas. Sem nenhum direito trabalhista, ele teve que aceitar um contrato verbal pelo qual trabalharia três meses sem salário, apenas em troca de cama e comida. "Depois a gente conversa", disse-lhe o chefe. Antônio Gaudério/Folha Imagem

Em ônibus com passageiros dormindo até no corredor, viajo de La Paz a Santa Cruz de la Sierra, passando por Cochabamba

ANTÔNIO GAUDÉRIO

REPÓRTER-FOTOGRÁFICO

16/11 - A CHEGADA Começo por El Alto, cidade adjacente a La Paz, onde funciona um imenso mercado do tamanho de 350 campos de futebol, em que se compra e vende tudo: de mapas velhos escritos em japonês a velhas Mercedes-Benz e fetos de lhamas, usados em rituais de feitiçaria. No setor de usados, compro calça, camisa, sapatos, pente, espelho de bolso e um pote de gel Didazul extra fuerte. Reparto meu cabelo ao meio, como o presidente Evo Morales e todos os imigrantes bolivianos que conheci no bairro do Brás, em São Paulo.

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Compro um rádio e sintonizo nos 6.080 kHz da emissora católica São Gabriel. O locutor se expressa em amará e quéchua, línguas de origem indígena. Parece um disco em espanhol rodando ao contrário. Consigo entender "costurero", "overloquista", "Brasil" e os números dos telefones. Anoto e tento me candidatar, mas, nos primeiros tropeços do espanhol, as vagas desaparecem. 21/11 - A BUSCA Volto para La Paz e me hospedo em um alojamento com diária de 25 bolivianos, cerca de R$ 6, na avenida Buenos Aires. A região é centro de comércio popular durante o dia e esconderijo de traficantes, drogados, bêbados, prostitutas e ladrões à noite. Entre cartazes que anunciam "Atenção, doadores de rim. Compramos o seu por até US$ 4.000", encontro ofertas de vagas para costureiros com ou sem experiência que queiram trabalhar no Brasil ou na Argentina: "Buen sueldo. US$ 150. US$ 200 [mensais]". Ao cabo de seis dias, estou exausto, sem dormir, nauseado, com dor de cabeça, por causa do "mal de altitude" (La Paz fica 3.600 m acima do nível do mar). Piora a situação uma diarréia causada pelo pão com terra, frango com terra, suco de laranja com caldo de mão suja, tudo vendido na rua poeirenta. Aparência miserável, estou no ponto. Vou à rua Albaroa, 195, falar pessoalmente com Julia Fernandes, dona do anúncio "Necessito costureiros para o Brasil. Ambos os sexos. Buen Sueldo". Mais ou menos 60 anos, dona Julia é simpática. Fica acertado que me arrumará o emprego e que eu viajarei para o Brasil com um casal dentro de três ou quatro dias. Pela porta estreita entreaberta do quarto escuro, vejo um vulto de boliviano gordo que nos observa, imóvel. Não dá certo. Dona Julia Fernandes some dois dias depois de nossa conversa. Procuro outro anúncio, que promete "sueldo" de US$ 200 mensais. Ao telefone, um homem de voz grossa e forte encerra minhas pretensões avisando: "Só contratamos bolivianos legítimos para trabalhar para coreanos. Não ligue mais". O jeito é apelar para os anúncios que havia recolhido em São Paulo, na feira Cantuta, no Pari, onde se reúnem aos domingos os bolivianos. Com a ajuda de uma paceña (mulher nascida em La Paz), consigo duas promessas de ser recolhido na rodoviária ao chegar a São Paulo e as dicas necessárias: Dizem-me que devo viajar via Ciudad del Este, no Paraguai, porque a fiscalização em Corumbá (MS) está muito rigorosa. Também me orientam a fazer um curso de costura. 23/11 - NA ESCOLA No Instituto Berlin, a 500 metros do meu alojamento, o curso normal de corte e confecção dura três meses. Em caso de urgência, pode ser feito em um mês. No meu caso, de extrema urgência, em uma semana, com aulas das 10h30 às 21h. Pago 80 bolivianos (R$ 19) e assisto a três aulas com 11 outros alunos, alguns aspirantes a vagas em São Paulo e Buenos Aires. Deles ouço histórias de preconceito dos argentinos, que chamam os bolivianos de índios "bolitas" e "bolitas de mierda" e sabotam-lhes o trabalho. Dizem que, quando chega um boliviano, os costureiros argentinos arrancam as linhas das máquinas. São três ou quatro linhas que passam por cerca de 20 engates até chegar às agulhas. Em cada marca de máquina esse caminho é diferente. Qualquer erro no percurso não costura. 27/11 - A VIAGEM Viajo de ônibus para Santa Cruz de la Sierra, onde pegarei o trem até a fronteira. Mas uma greve geral "democrática y contundente" convocada pelo presidente Evo Morales paralisa os transportes. Protestos pró e contra a nova Constituinte já contam com o saldo de dois cachorros degolados e duas pessoas mortas. Encontro Cleto Fernandes, seu filho Ariel e René Monzon. Pai e filho pretendem que essa seja a última vez que trabalham como costureiros em São Paulo. O objetivo deles é levantar US$ 1.500, para fazer funcionar uma padaria em La Paz. Já Monzon, cansado de ganhar pouco como costureiro, tornou-se camelô em São Paulo. Ele passa toda a viagem tentando me convencer a ser seu sócio em um "churrasco grego" na zona central de São Paulo. Dormimos na calçada da estação para viajar na manhã seguinte. No guarda-volumes, com a autorização do rapaz que guarda as malas, plugo meu celular para carregá-lo na única tomada de toda a estação de trem de Santa Cruz. Chega o supervisor, olha minha aparência e pergunta: "Vai pagar?". Eu digo: "Pago. Quanto é?". "5 bolivianos", responde o supervisor gordo com o braço estendido e a mão gorda espalmada. O valor é quase o dobro dos 3 bolivianos cobrados para guardar uma mala por 24 h. "Tudo bem, eu pago." "E espere lá fora." Espero uma hora. Ao desligar da tomada, pergunto se posso pagar ao retirar a mala. "Não. Tem que pagar agora."

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Aí, permito-me uma vingança em nome de todos os miseráveis humilhados em troca de pequenos favores. Pego uma moeda de 5 bolivianos, que vale pouco mais de R$ 1, e digo: "Este lixo é por sua energia". E, para o rapaz, que me deixou usar a tomada, dou uma nota de 20 bolivianos: "Isto é por sua solidariedade". Depois de 20 horas no que já foi conhecido como "trem da morte", desembarcamos em Puerto Quijarro. Na imigração, René Monzon mostra seu documento boliviano, diz que vai visitar parentes em São Paulo e passa. Cleto e o filho mostram seus documentos de residentes argentinos (já trabalharam lá), e passam. Eu também passo. De Corumbá a São Paulo, são mais 22 horas de ônibus. 1º/12 - EM SP Chego ao terminal da Barra Funda (zona oeste) e, conforme as instruções, chamo Dario (nome fictício), que logo aparece. É um jovem boliviano, com bermuda e camiseta novas da Nike, provavelmente feitas por ele mesmo. Estranha minha aparência, que não é a de um boliviano. Pede a carteira de identidade boliviana. Digo que não tenho. Fico com medo de mostrar minha identidade e não falo meu nome completo. Dario acha esquisito. Anota todos os meus contatos da Bolívia. Vamos para a rua Coimbra, no bairro do Brás, principal reduto de imigrantes andinos, de onde ele liga para checar minhas informações. Ele me leva para o restaurante de Jorge Heruvia, boliviano, fundador da feira Cantuta, no Pari. Chega a mulher de Dario, boliviana, dirigindo um utilitário. Acompanham-na o filho brasileiro chamado Ronaldo e nove conterrâneos, seus empregados. Todos usam roupas novas e modernas. É sábado. Eles almoçam no restaurante para comemorar a entrega de um trabalho. Esperam até que cada um tenha um prato fundo cheio de carne de porco, milho e batata e um copo de Coca-Cola, para começar a comer -com as mãos. Depois do almoço, cada um ganha um copo de cerveja boliviana Paceña. A mulher de Dario me faz muitas perguntas e liga para o Instituto Berlin, que confirma minha matrícula. Vamos para a oficina onde moram e trabalham os 12 que almoçaram juntos. É um pequeno sobrado, onde se espremem dez máquinas e altas pilhas de tecidos para costurar, além de beliches. "Você vai trabalhar aqui e vai dividir o dormitório com eles", ela me diz. Logo, vamos a um templo evangélico na avenida Celso Garcia (zona leste). Embora o catolicismo seja dominante na Bolívia, as várias denominações evangélicas crescem nas áreas mais pobres. A dona da confecção quer a opinião do pastor boliviano sobre minha contratação. O pastor lembra histórias de peruanos, paraguaios e brasileiros que roubam os bolivianos. Levam dinheiro, levam máquinas. Depois, como Pôncio Pilatos, lava as mãos: "La decisión es de ustedes". Fui jogado no olho da Celso Garcia. Durmo na Barra Funda. Pela TV, assisto à queda do Corinthians para a segunda divisão do Campeonato Brasileiro. No final da tarde, volto para o terminal rodoviário e ligo para o senhor Gualter, com quem fiz contato telefônico quando estava em La Paz. Ele aparece meia hora depois. Boliviano, 45 anos, roupas simples. Dessa vez, mostro o documento de brasileiro, falo de minha infância e juventude rurais, mostro as mãos calejadas (logicamente, não digo que é por causa do guidão da motocicleta XL 87). 2/12 - NO TRABALHO Gualter faz algumas perguntas e me leva para sua oficina, com nove máquinas de costura. No mesmo local, mora com a mulher, dois filhos e quatros outros bolivianos. Firmamos um contrato verbal pelo qual trabalharei durante três meses, ganhando cama, comida e nenhum salário. Enquanto isso, aprenderei a costurar. No fim desse prazo, faremos novo acerto. Durmo em uma cama quase limpa e, às 7h, começo. Pratico com retalhos durante toda a manhã e, à tarde, já costuro forro de saia. Minha maior dificuldade é distinguir a frente do verso do tecido. Paro de perguntar quando concluo que, afinal, não vai mudar a vida de ninguém algumas mulheres andarem com o forro das saias do lado do avesso. No meio da tarde, o coreano manda 165 cortes de vestidos, para serem costurados -R$ 2 cada um. Pergunto por que tão pouco. Gualter responde que, se não pegar o serviço, haverá quem o pegue por R$ 1,50. O coreano não dá mais as linhas de costura. Antigamente dava. Parece que ninguém naquela oficina sabe como se chama o coreano, onde ele fica, como ele é, mas todos sabem que, no caso de uma peça se perder, o coreano cobrará o preço de venda. Isto é, será descontado o trabalho de 20 para pagar uma. Daí para a frente todos os dias trabalhamos nesses vestidos das 7h à meia-noite. Com intervalos às 8h para o desjejum, ao meio-dia para almoço, às 18h, para o chá, e às 22h, para o jantar. Com o rádio o tempo todo sintonizado na estação pirata Meteoro FM, escutamos as últimas notícias da Bolívia. O locutor convoca os bolivianos para encontro na praça da Sé no Dia do Imigrante. "Meteoro

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FM, cien por ciento usted. Você, que trabalha de sol a sol nas oficinas de costura, sabia que na década de 80 o governo boliviano fez acordo com o governo chinês para que os chineses desenvolvessem a agricultura do nosso país?", fala o locutor, que trata indiferentemente chineses e coreanos. Expressa-se em um espanhol límpido, perfeitamente audível, apesar dos motores barulhentos das máquinas de mais de 30 anos. "Em vez de trabalhar a terra, os chineses foram para a cidade explorar a tecelagem e a costura. Acabaram expulsos e foram para a Argentina e para o Brasil, levando junto os costureiros bolivianos, que depois trouxeram outros, que trouxeram outros, que trouxeram outros e até hoje continuam trazendo." "Essa forma de trabalhar que nossos patrícios conhecem é dos chineses. Os chineses fazem os bolivianos trabalharem como eles, mas não precisa ser sempre assim. Nós temos o direito de sonhar com dias melhores. Você que passa anos e anos costurando e nunca comprou seu carro, sua casa, nós não podemos passar a vida sendo tratados como estrangeiros. Todos somos seres humanos. Você que está ilegal, vamos nos encontrar todos no Dia do Imigrante e fazer uma marcha por anistia e direitos humanos." Gualter me conta que chegou ao Brasil em 1982 e trabalhou para bolivianos durante um ano e quatro meses sem receber salário. Depois passou a trabalhar com outro, que até hoje lhe deve. Sempre em jornadas das 7h à meia-noite, só folgando aos domingos. Tudo que conseguiu foi comprar as máquinas usadas com as quais oferece trabalho a recém-chegados, como eu. Nunca conseguiu comprar um carro ou uma casa. Seu sonho é parar de pagar os R$ 600 de aluguel. A jornada diária de 17 horas sentado, com os pés nos pedais, rendeu-lhe uma úlcera varicosa na perna esquerda. Atrapalha a produtividade e impede-o de jogar futebol aos domingos. Na sexta-feira, enquanto tomamos o chá de sultana (casca de café) com pão às 18h, com os motores das máquinas desligados para economizar energia, ouvimos a porta do estabelecimento de brasileiros se fechando. Gualter diz: "Fecham às seis. Descansam às seis e só voltam na segunda-feira, às oito. Aqui, todos descansam às seis". Não há inveja ou desdém. É como se falasse de uma espécie diferente. Como se dissesse: "As aves se recolhem ao entardecer". Pergunto o que faria se pudesse descansar todos os dias às 18h. Ele responde: "Não dá. O dinheiro não alcança". Insisto: mas e se desse? "Descansaria, assistiria ao televisor, dormiria", responde. "É muito difícil ganhar dinheiro com costura. É muito fiscal pedindo um cafezinho." Trabalho todos os dias, caprichando para evitar que um erro grave coloque a perder a produção de mais de 20 peças. 8/12 - A FUGA No sexto dia de trabalho, ainda não temos um vestido de R$ 2 completamente pronto. Falta colocar golas e mangas em todos eles, o que acontecerá em mais dois dias de trabalho. Então consigo permissão para ir à farmácia comprar um remédio. Fujo para nunca mais voltar.

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São Paulo, domingo, 16 de dezembro de 2007 Santa Cruz aclama texto que lhe dá poder de legislar

Estatuto aprovado por Assembléia Provisória deve acirrar relações com La Paz

Governo sinaliza que 1º alvo, "depois do Natal", será repasse de impostos de hidrocarbonetos; Beni também aprova autonomia

FLÁVIA MARREIRO ENVIADA ESPECIAL A SANTA CRUZ No lançamento oficial do estatuto que pretende dar a Santa Cruz independência administrativa em relação ao governo Evo Morales, a Assembléia Autonômica Provisória, formada pelo governador, parlamentares nacionais e representantes municipais, declarou-se ontem com poder para criar leis para o departamento, o que deve aumentar ainda mais o nível de confrontação com La Paz. Pela atual Constituição boliviana, os departamentos não podem legislar. A competência para criar leis está nas disposições provisórias do Estatuto Autonômico aprovado nesta semana pelos políticos cruzenhos, cujo texto oficial revisado foi lido na Assembléia e aclamado ontem. O departamento oposicionista de Beni também aprovou seu estatuto, enquanto Tarija e Pando levaram adiante documentos semelhantes, que ignoram o novo texto constitucional aprovado por governistas e aliados. O governador de Santa Cruz, Rubén Costas, confirmou que o corpo de 155 políticos do departamento que formam a Assembléia Provisória terá capacidade provisória para legislar, até que o estatuto em si seja implementado. Os dirigentes pretendem submeter o documento a um referendo no departamento, que, uma vez ratificado, prevê a convocação de eleições para governador e para a primeira Assembléia Legislativa departamental da história dos departamentos bolivianos. O primeiro confronto direto entre o governo Evo Morales e a Assembléia cruzenha -que La Paz considera ilegal- devem ser os repasses às regiões do IDH (Imposto Direto dos Hidrocarbonetos). O governo nacional fez passar no Congresso boliviano lei que corta 30% dos recursos do tributo transferidos aos departamentos para financiar um benefício a idosos. A crise de Morales com os governadores opositores foi agravada pelo corte, que começa a vigorar em janeiro. Questionado o que Santa Cruz faria a partir de janeiro, o governador Rubén Costas respondeu: "Vamos esperar passar o Natal primeiro". Para logo completar que a Assembléia Provisória, com capacidade legislativa, não vai permitir a redução dos recursos. Festa e atentado Foi dia de tensão controlada em Santa Cruz, diante dos rumores de que o governo nacional militarizaria a zona e declarações de que os cruzenhos "lutariam com a vida, se necessário". O único incidente maior, porém, até o fechamento desta edição, foi a detonação de um artefato explosivo no sexto andar do prédio que abriga o Tribunal de Justiça nacional. Apesar de haver funcionários do prédio no momento, não houve feridos. E a Polícia Nacional descartou vinculação entre a suposta bomba e a crise política entre La Paz e Santa Cruz. A sessão da Assembléia Provisória não chegou a ser interrompida. Na cerimônia oficial, tocou-se apenas o hino cruzenho e os discursos foram recheados de críticas à "tirania" do governo Evo Morales. Um padre benzeu o novo estatuto. Na nova Carta boliviana, que ainda vai a referendo, a religião católica deixa de ser a oficial do país. Com bandeiras nas ruas e propagandas do movimento na TV com os dizeres "Já somos autônomos", a cidade comemorava como se o estatuto fosse de aplicação imediata. Haveria ainda uma festa no parque da cidade com todos os políticos. Como os departamentos não têm polícia própria, a segurança na festa de ontem ficaria por conta da guarda departamental -que não pode usar armas- e dos integrantes da União Juvenil Cruzenha, espécie de braço executivo do movimento. Os jovens, que negam usar armas, são freqüentemente acusados de coagir a população a participar das manifestações. "Se for preciso, teremos armas para nos defender. Há uma grande tradição de ter armas aqui, uma tradição de caça", disse o presidente da União, David Cejas. Santa Cruz é o mais rico departamento boliviano, responsável por 35% do PIB do país. Com o Estatuto Autonômico, os cruzenhos querem legislar sobre distribuição de terras e gás e petróleo.

São Paulo, segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

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Santa Cruz e La Paz transferem embate agora ao Congresso

Governo terá de passar pelo Legislativo dois referendos para que a nova Carta entre em vigência, mas oposição controla Senado

Estatutos autonômicos, por sua vez, passam por consulta popular e depois enfrentam bancada oficialista na Câmara

FLÁVIA MARREIRO ENVIADA ESPECIAL A SANTA CRUZ As festas promovidas pelo governo de Evo Morales em La Paz e pela oposição nos quatro departamentos autonomistas no sábado sinalizam o encerramento do capítulo de tensão mais aguda na atual crise política da Bolívia. Embora o impasse siga, está aberta agora uma etapa de batalha no Congresso, onde os dois lados tentarão aprovar propostas de referendo que se auto-excluem: os da nova Constituição e os sobre as autonomias regionais. Após uma semana de guerra de nervos no país, o único incidente grave registrado na jornada do fim de semana foi a confrontação entre camponeses e a população pró-autonomia da cidade cruzenha de Santa Rosa, que deixou 52 feridos. Pouco, perto das acusações de que o governo militarizaria os departamentos oposicionistas e das ameaças de bloqueio e de violência feitas por movimentos sociais, com aval mais ou menos velado de Morales. Um sinal, ainda que frágil, de alguma distensão foi uma declaração de ontem do presidente Evo Morales: "Quero elogiar essa manifestação pacífica, democrática, e agora creio que todos devemos dialogar, com base nas transformações profundas da nova Constituição", afirmou ele, em declarações citadas na agência estatal ABI. Morales elogiou os governadores "por terem contribuído para que passemos em paz essas festas de fim de ano". Apesar de agradecer esforços de "personalidades" e embaixadores para tentar promover a conversa do governo com os oposicionistas, o presidente voltou a dizer que mediadores externos não são importantes. Anteontem, porém, o porta-voz Alex Contreras havia dito que La Paz poderia aceitar embaixadores europeus como mediadores com a oposição -os governadores têm reiterado pedido de participação externa. Prazos Enquanto esse diálogo não acontece, o governo terá a tarefa de fazer passar pelo Congresso os dois referendos que faltam para que a nova Constituição entre em vigência: um primeiro, sobre limites de latifúndio, e um segundo, de ratificação ou não do texto completo. O problema é que os departamentos e o principal partido oposicionista, o Podemos, não reconhecem a nova Carta, aprovada com boicote de parte da oposição e várias manobras governistas para mudar o regimento e acelerar o processo. Para passar, as consultas precisam dos votos de dois terços do total dos parlamentares da Câmara -dominada pelo governo- e pelo Senado -controlado pelo Podemos.Os departamentos autonomistas também terão dificuldades. A primeira é que os estatutos que pretendem fazer valer não estão previstos na Constituição em vigência. A autonomia está no novo texto constitucional, mas a oposição não concorda com ela nem aceita o documento. Mais: no caso de Santa Cruz, o estatuto foi elaborado por uma instância forte e popular, mas que também não existe legalmente, a Assembléia Autonômica Provisória, formada por governador, parlamentares nacionais e conselheiros eleitos indiretamente. Depois de colher as assinaturas para os referendos, os governadores também terão de aprová-los no Congresso, onde perderiam na Câmara. Além da aprovação dos referendos pelo Congresso, o processo deverá levar ao menos 120 dias, prazo para a preparação das consultas. Na queda-de-braço entre oposicionistas e Morales, há ainda o referendo de revogação de mandatos proposto por La Paz para presidente e governadores, que, por ora, não concordam com as regras. De todo modo, analistas locais afirmam que, se levado adiante, o conjunto de consultas transferirá a complicada disputa para as urnas -uma arena com regras claras e de controle independente.

São Paulo, segunda-feira, 17 de dezembro de 2007 Estatuto de autonomia cruzenho descarta reeleição para governador

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DA ENVIADA A SANTA CRUZ

Políticos e dirigentes do departamento boliviano de Santa Cruz comemoraram seu Estatuto Autonômico, documento em que exige independência administrativa em relação a La Paz, com duras críticas ao governo -de ataques ao "projeto comunista" de La Paz e à possibilidade de reeleição para presidente a referências racistas. Num ato na noite de sábado, o governador Rubén Costas, criticou a nova Constituição boliviana aprovada por governistas e aliados, que prevê que presidente e vice possam ficar no poder por até dois mandatos seguidos. "Não à reeleição, não a esse projeto manchado de sangue", disse Costas em referência aos três mortos em Sucre em 24 de novembro, enquanto a Assembléia Constituinte fazia sessão na cidade. O texto cruzenho não prevê reeleição para governador. Além de não permitir mandatos consecutivos, o estatuto ainda é mais restritivo: quem já ocupou o cargo máximo de Santa Cruz só pode voltar a fazê-lo uma vez. "Vamos seguir com essa "engenharia democrática", vamos buscar 500 mil, um milhão de assinaturas [para o referendo]", disse o governador, no comício com discursos e shows que reuniu cem mil pessoas, segundo os organizadores. Os festejos continuaram pela madrugada em bares da cidade, após carreatas e buzinaços. Os cruzenhos pretendem levar o Estatuto Autonômico, aprovado por uma Assembléia Autonômica Provisória na semana passada, a um referendo para depois implementá-lo. O documento prevê que Santa Cruz poderá legislar sobre terras, gás e petróleo. A grande maioria dos presentes no ato usava modelos de camisetas com dizeres pró-autonomia, e a segurança era feita principalmente pela "Guarda de Honra", da União Juvenil Cruzenha, organização com ares de milícia da qual só podem participar cruzenhos, filhos de cruzenhos. Arrancando aplausos, Costas voltou a chamar o presidente Evo Morales de "macaco". O prefeito Percy Fernández falou que o presidente queria governar "com a indiaiada", embora o estatuto cruzenho reconheça cinco povos indígenas em Santa Cruz e o evento ter sido pontuado pelo grito guarani "Yambe" ( que quer dizer sem dono). Meia lua e referendo Os departamentos de Pando, Beni e Tarija também fizeram atos pró-autonomia no sábado. O governo de Beni apresentou à população seu estatuto de autonomia e prevê juntar assinaturas para um referendo. Segundo a imprensa local, o governo departamental de Pando quer a implementação da autonomia seja imediata, sem consulta. Já em Tarija, uma carta com princípios autonômicos foi apresentada num comício.

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Anexo B: Tratados bilaterais firmados entre a Bolívia e o Brasil

� Tratado de Petrópolis de 10 de março de 1904

� Tratado sobre ligação ferroviária de 5 de outubro de 1938

� Acordo sobre regularização migratória de 15 de agosto de 2005

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DECRETO N° 5.161, DE 10 DE MARÇO DE 1904.

Manda executar o Tratado de permuta de territórios e outras compensações, celebrado em 17 de novembro

de 1903, entre o Brasil e a Bolívia. O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, Tendo sancionado, pelo Decreto n° 1.179, de 18 de fevereiro do corrente ano, a resolução do Congresso Nacional de 12 do mesmo mês, que aprova o Tratado de permuta de territórios e outras compensações entre o Brasil e a Bolívia, concluído na cidade de Petrópolis aos 17 de novembro de 1903 e havendo sido trocadas hoje as respectivas ratificações nesta cidade do Rio de Janeiro, Decreta que o mesmo Tratado seja executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém. Rio de Janeiro, 10 de março de 1904; 16° da República.

FRANCISCO DE PAULA RODRIGUES ALVES Rio-Branco

Tratado de permuta de Territórios e outras Compensações (Tratado de Petrópolis)

A República dos Estados Unidos do Brasil e a República da Bolívia, Animadas do desejo de consolidar par sempre a sua antiga amizade, removendo motivos de ulterior desavença, e Querendo ao mesmo tempo facilitar o desenvolvimento das suas relações de comércio e boa vizinhança, Convieram em celebrar um Tratado de permuta de territórios e outras compensações, de conformidade com a estipulação contida no Art. 5° do Tratado de Amizade, Limites, Navegação e Comércio de 27 de março de 1867. E, para esse fim, nomearam Plenipotenciários, a saber: O Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, os Srs. José Maria da Silva Paranhos do Rio-Branco, Ministro de Estado das Relações Exteriores e Joaquim Francisco de Assis Brasil, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário nos Estados Unidos da América; e O Presidente da República da Bolívia, os Srs. Fernando E. Guachalla, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Missão Especial no Brasil e Senador da República e Cláudio Pinilla, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário no Brasil, nomeado Ministro das Relações Exteriores da Bolívia; Os quais, depois de haverem trocado os seus plenos poderes, que acharam em boa e devida forma, concordaram nos artigos seguintes: Artigo I A fronteira entre a República dos Estados Unidos do Brasil e a da Bolívia ficará assim estabelecida: § 1° Partindo da latitude Sul de 20° 08’ 35" em frente ao desaguadouro da Baía Negra, no Rio Paraguai, subirá por este rio até um ponto na margem direita distante nove quilômetros, em linha reta, do forte de Coimbra, isto é, aproximadamente, em 19° 58’ 05" de latitude e 14° 39’ 14" de longitude Oeste do Observatório do Rio de Janeiro (57° 47’ 40" Oeste de Greenwich), segundo o Mapa da fronteira levantado pela Comissão Mista de Limites, de 1875; e continuará desse ponto, na margem direita do Paraguai, por uma linha geodésica que irá encontrar outro ponto a quatro quilômetros, no rumo verdadeiro de 27° 01’ 22" Nordeste, do chamado "Marco do

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fundo da Baía Negra", sendo a distância de quatro quilômetros medida rigorosamente sobre a fronteira atual, de sorte que esse ponto deverá estar, mais ou menos, em 19° 45’ 36", 6 de latitude e 14° 55’ 46", 7 de longitude Oeste do Rio de Janeiro (58° 04’ 12", 7 Oeste de Greenwich). Daí seguirá no mesmo rumo determinado pela Comissão Mista de 1875 até 19° 02’ de latitude e, depois, para Leste por este paralelo até o arroio Conceição, que descerá até a sua boca na margem meridional do desaguadouro da lagoa de Cáceres, também chamado de rio Tamengos. Subirá pelo desaguadouro até o meridiano que corta a ponta do Tamarindeiro e depois para o Norte, pelo meridiano de Tamarindeiro, até 18° 54’ de latitude, continuando por este paralelo para Oeste até encontrar a fronteira atual. § 2° Do ponto de interseção do paralelo de 18° 54’ com a linha reta que forma a fronteira atual seguirá, no mesmo rumo que hoje, até 18° 14’ de latitude e por este paralelo irá encontrar a Leste o desaguadouro da lagoa Mandioré, pelo qual subirá, atravessando a lagoa em linha reta até o ponto, na linha antiga de fronteira, eqüidistante dos dois marcos atuais, e depois por essa linha antiga, até o marco da margem setentrional. § 3° Do marco setentrional na lagoa Mandioré continuará em linha reta, no mesmo rumo que hoje, até a latitude de 17° 49’ e por este paralelo até o meridiano do extremo Sudeste da lagoa Gahiba. Seguirá esse meridiano até a lagoa e atravessará esta em linha reta até o ponto eqüidistante dos dois marcos atuais, na linha antiga de fronteira, e depois por esta linha antiga ou atual até a entrada do canal Pedro Segundo, também chamado recentemente rio Pando. § 4° Da entrada Sul do canal Pedro Segundo ou rio Pando até a confluência do Beni e Mamoré os limites serão os mesmos determinados no Artigo 2° do Tratado de 27 de março de 1867. § 5° Da confluência do Beni e do Mamoré descerá a fronteira pelo rio Madeira até a boca do Abunan, seu afluente da margem esquerda, e subirá pelo Abunan até a latitude de 10° 20’. Daí irá pelo paralelo de 10° 20’, para Leste até o rio Rapirran e subirá por ele até a sua nascente principal. § 6° Da nascente principal do Rapirran irá, pelo paralelo da nascente, encontrar a Oeste o rio Iquiri e subirá por este até a sua origem, donde seguirá o igarapé Bahia pelos mais pronunciados acidentes do terreno ou por uma linha reta, como aos Comissários demarcadores dos dois países parecer mais conveniente. § 7° Da nascente do igarapé Bahia seguirá, descendo por este, até a sua confluência na margem direita do rio Acre ou Aquiry e subirá por este até a nascente, se não estiver esta em longitude mais ocidental do que a de 69° Oeste de Greenwich: a) no caso figurado, isto é, se a nascente do Acre estiver em longitude menos ocidental do que a indicada, seguirá a fronteira pelo meridiano da nascente até o paralelo de 11° e depois, para Oeste, por esse paralelo até a fronteira com o Peru; b) se o rio Acre, como parece certo, atravessar a longitude de 69° Oeste de Greenwich e correr ora ao Norte, ora ao Sul do citado paralelo de 11°, acompanhando mais ou menos este, o álveo do rio formará a linha divisória até a sua nascente, por cujo meridiano continuará até o paralelo de 11° e daí na direção de Oeste, pelo mesmo paralelo, até a fronteira com o Peru; mas, se a Oeste da citada longitude de 69° o Acre correr sempre ao Sul do paralelo de 11°, seguirá a fronteira, desde esse rio, pela longitude de 69° até o ponto de interseção com esse paralelo de 11° e depois por ele até a fronteira com o Peru. Artigo II A transferência de territórios resultante da delimitação descrita no artigo precedente compreende todos os direitos que lhes são inerentes e a responsabilidade derivada da obrigação de manter e respeitar os direitos reais adquiridos por nacionais e estrangeiros, segundo os princípios do direito civil. As reclamações provenientes de atos administrativos e de fatos ocorridos nos

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territórios permutados, serão examinadas e julgadas por um Tribunal Arbitral composto de um representante do Brasil, outro da Bolívia e de um Ministro estrangeiro acreditado junto ao Governo brasileiro. Esse terceiro árbitro, Presidente do Tribunal, será escolhido pelas duas Altas Partes Contratantes logo depois da troca das ratificações do presente Tratado. O Tribunal funcionará durante um ano no Rio de Janeiro e começará os seus trabalhos dentro do prazo de seis meses, contados do dia da troca das ratificações. Terá por missão: 1° Aceitar ou rejeitar as reclamações; 2° Fixar a importância da indenização; 3° Designar qual dos dois Governos a deve satisfazer. O pagamento poderá ser feito em apólices especiais, ao par, que vençam o juro de três por cento e tenham a amortização de três por cento ao ano. Artigo III Por não haver equivalência nas áreas dos territórios permutados entre as duas nações, os Estados Unidos do Brasil pagarão uma indenização de £ 2.000.000 (dois milhões de libras esterlinas), que a República da Bolívia aceita com o propósito de a aplicar principalmente na construção de caminhos de ferro ou em outras obras tendentes a melhorar as comunicações e desenvolver o comércio entre os dois países. O pagamento será feito em duas prestações de um milhão de libras cada uma: a primeira dentro do prazo de três meses, contado da troca das ratificações do presente Tratado, e a segunda em 31 de março de 1905. Artigo IV Uma Comissão Mista, nomeada pelos dois Governos, dentro do prazo de um ano, contado da troca das ratificações, procederá à demarcação da fronteira descrita no Artigo I, começando os seus trabalhos dentro dos seis meses seguintes à nomeação. Qualquer desacordo entre a Comissão Brasileira e a Boliviana, que não puder ser resolvido pelos dois Governos, será submetido à decisão arbitral de um membro da Royal Geographical Society, de Londres, escolhido pelo Presidente e membros do Conselho da mesma. Se os Comissários demarcadores nomeados por uma das Altas Partes Contratantes deixarem de concorrer ao lugar e na data da reunião que forem convencionados para o começo dos trabalhos, os Comissários da outra procederão por si sós à demarcação, e o resultado das suas operações será obrigatório para ambas. Artigo V As duas Altas Partes Contratantes concluirão dentro do prazo de oito meses um Tratado de Comércio e Navegação baseado no princípio da mais ampla liberdade de trânsito terrestre e navegação fluvial para ambas as nações, direito que elas reconhecem perpetuamente, respeitados os regulamentos fiscais e de polícia estabelecidos ou que se estabelecerem no território de cada uma. Esses regulamentos deverão ser tão favoráveis quanto seja possível à navegação e ao comércio e guardar nos dois países a possível uniformidade. Fica, porém, entendido e declarado que se não compreende nessa navegação a de porto a porto do mesmo país, ou de cabotagem fluvial, que continuará sujeita em cada um dos dois Estados às respectivas leis. Artigo VI De conformidade com a estipulação do artigo precedente, e para o despacho em trânsito de artigos de importação e exportação, a Bolívia poderá manter agentes aduaneiros junto às alfândegas brasileiras de Belém do Pará, Manaus e Corumbá e nos demais postos aduaneiros que o Brasil estabeleça sobre o Madeira e o Mamoré ou em outras localidades da fronteira comum. Reciprocamente, o Brasil poderá manter agentes aduaneiros na alfândega boliviana de Villa Bella ou em qualquer outro posto aduaneiro que a Bolívia estabeleça na fronteira comum. Artigo VII

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Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o porto de Santo Antônio, no rio Madeira, até Guajará-Mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila-Murtinho ou em outro ponto próximo (Estado de Mato-Grosso), chegue a Villa-Bella (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquezas e tarifas. Artigo VIII A República dos Estados Unidos do Brasil declara que ventilará diretamente com a do Peru a questão de fronteiras relativa ao território compreendido entre a nascente do Javari e o paralelo de 11°, procurando chegar a uma solução amigável do litígio sem responsabilidade para a Bolívia em caso algum. Artigo IX Os desacordos que possam sobrevir entre os dois Governos, quanto à interpretação e execução do presente Tratado, serão submetidos a Arbitramento. Artigo X Este Tratado, depois de aprovado pelo Poder Legislativo de cada uma das duas Repúblicas, será ratificado pelos respectivos Governos e as ratificações serão trocadas na cidade do Rio de Janeiro no mais breve prazo possível. EM FÉ DO QUE, nós, os Plenipotenciários acima nomeados, assinamos o presente tratado, em dois exemplares, cada um nas línguas portuguesa e castelhana, apondo neles os nossos selos. FEITO na cidade de Petrópolis, aos dezessete dias do mês de novembro de mil novecentos e três.

Rio-Branco J.F. de Assis Brasil

Fernando E. Guachalla Cláudio Pinilla

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DECRETO N. 3.130 - DE 5 DE

OUTUBRO DE 1938

Promulga o Tratado sobre ligação ferroviária, entre o Brasil e a Bolívia, firmado no Rio de Janeiro a 25 de fevereiro de 1938

O Presidente da República: Tendo ratificado, a 5 de setembro de 1938, o Tratado sobre ligação ferroviária, entre o Brasil e a Bolívia, firmado no Rio de Janeiro a 25 de fevereiro de 1938; e Havendo sido trocados os respectivos instrumentos de ratificação na cidade do Rio de Janeiro, a 15 de setembro de 1938, e constando da Ata da referida troca as Notas de 25 de fevereiro de 1938, relativas ao dito Tratado. Decreta que o mesmo, bem como as Notas acima mencionadas, documentos apensos por cópia ao presente decreto, sejam executados e cumpridos tão inteiramente como neles se contm. Rio de Janeiro, 5 de outubro de 1938, 117º da Indepêndencia e 50º da República.

GETULIO VARGAS Oswaldo Aranha

Faço saber, aos que a presente Carta de ratificação virem, que, entre a República dos Estados Unidos do Brasil e a República da Bolívia, foi concluido e assinado, pelos respectivos Plenipotenciários, no Rio de Janeiro, a 25 de fevereiro de 1938, o Tratado sobre ligação ferroviária, do teor seguinte:

Tratado sobre Ligação Ferroviária Os Governos dos Estados Unidos do Brasil e da Bolívia, com o propósito de estabelecer as comunicações ferroviárias entre ambos os países e atendendo às conclusões e recomendações a que chegou a Comissão Mixta Brasileiro-Boliviana, assinadas a 30 de setembro de 1937 e aprovadas pelo Protocolo de 25 de Novembro do mesmo ano, resolvem celebrar o seguinte Tratado e para esse fim nomeiam seus Plenipotenciários: Sua Excelência o Presidente da República do Brasil,o Doutor Mario de Pimentel Brandão, Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil: Sua Excelência o Presidente da Junta Militar do Governo da Bolívia, o Doutor Alberto Ostria Gutiérrez, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da Bolívia no Brasil; Os quais, após haverem reciprocamente exibido os seus Plenos Poderes, achados em boa e devida forma, acordaram no seguinte:

Artigo Primeiro Os Governos do Brasil e da Bolívia convêm em modificar o artigo 5º do Tratado de 2, de dezembro de 1928, assinado no Rio de Janeiro, no qual ficou estabelecida a substituição da obrigação estipulada no artigo 7 do Tratado de 17 de novembro de 1903, por um auxilio do Brasil para a realização de um plano de construções ferroviárias que, ligando Cochabamba a Santa Cruz de la Sierra, deveria dai se prolongar, por um lado, a um porto na bacia do Amazonas, e por outro, a um porto na rio Paraguai, em um lugar que permitisse contato com a rede ferroviária brasileira

Artigo II

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A. modificação a que se refere o Artigo anterior consiste em. aplicar o auxílio de um milhão e de libras esterlinas, ouro, estipulado no Artigo V do Tratado de 25 de dezembro de 1928, e nas notas reversais de 30 de agosto de 1929 e na construção de uma linha. férrea que, partindo de um ponto convenientemente escolhido entre Porto Esperança e Corumbá, vá terminar na cidade Santa Cruz de la Sierra.

Artigo III A contribuição pecuniária de um milhão de libras, ouro, será aplicada, parceladamente, no pagamento das despesas de construção da linha férrea de que trata o Artigo anterior à vista das folhas de medição das obras executadas, organizadas trimestralmente pela Comissão de estudos criada pelo Protocolo de 25 de novembro de 1937, e sujeitas à aprovação do Governo da Bolívia, de acordo com o Governo do Brasil. A importância de cada folha de medição trimestral, convertida em libras, ouro, será posta pelo Governo do Brasil à disposição do Governo da Bolívia, em um Banco de Londres, dentro do prazo de trinta (30) dia contados a partir da data da respectiva aprovação.

Artigo IV Tendo em vista que a contribuição de um milhão de libras, ouro, a que se refere o Artigo precedente, é insuficiente, segundo cálculo técnicos, para construir toda a linha férrea que deverá ligar o território brasileiro a Santa Cruz de la Sierra, o Governo do Brasil assume o compromisso de adiantar, oportunamente, ao Governo da Bolívia a quantia suplementar, que se fizer mister, para a sua integral construção, depois de submetidos à sua aprovação o projeto e o orçamento das obras que ainda forem necessárias para ultimar a construção da mencionada linha férrea. O adiantamento desta importância será feita pelo pagamento de folhas de medição das obras executadas, organizadas trimestralmente, na forma indicada no Artigo precedente. O Governo da Bolívia reembolsará o Governo brasileiro das quantias que por este forem adiantadas para a conclusão da estrada de ferro e para os gastos gerais com os estudos a que se refere o Artigo X, acrescidas dos juros simples de 3/2 (tres e meio) por cento ao ano, computados sobre os saldos divedores, em 20 (vinte) prestações anuais, ou em menor prazo a seu juizo, em libras esterlinas, ouro, ou em quantidade equivalente do petróleo bruto ou gasolina, posta em Corumbá ou outro ponto da fronteira brasileira, ao preço corrente desses produtos nos centros de produção. Servirá de garantia ao adiantamento da importância efetuada pelo Governo do Brasil, para a terminação da estrada de ferro até Santa Cruz, alem da contribuição do milhão de libras esterlinas, ouro, o produto da exploração das zonas petrolíferas que atravesse ou a que chegue a referida estrada de ferro.

Artigo V Alem da vinculação do sistema ferroviário do altiplano da Bolívia ao território brasileiro, prevista nas conclusões da Comissão Mixta Brasileiro Boliviana, já aprovadas pelos Governos do Brasil e da Bolívia, de acordo co mo Protocolo de 25 de novembro de 1937, e que consiste na construção das linhas férreas; ritório brasileiro-Santa Cruz de la Sierra, Santa Cruz de la Sierra-Camiri e Camiri-Sucre, o Governo da Bolívia compromete-se a prosseguir, oportunamente, com a cooperação do Governo brasileiro, na forma e com as garantias que forem estipuladas, a construção da linha férrea de Vila-Vila a Santa Cruz de la Sierra e a construir um ramal que ligue esta cidade a Puerto Grether ou a outro ponto navegavel do rio Ichilo, de acordo com os estudos definitivos que forem procedidos por uma Comissão Mixta de técnicos ferroviários brasileiros e bolivianos.

Artigo VI Alem do estipulado no Artigo anterior, o Governo da Bolívia se compromete a construir a estrada de ferro de Santa Cruz de la Sierra a Camiri, que qualquer que seja a forma de seu finaciamento, será explorada e administrada pelo referido Governo.

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O Governo da Bolívia se compromete igualmente a continuar a construção da estrada de ferro Sucre-Camiri, que tambem será explorada e administrada de maneira, idêntica.

Artigo VII O Governo do Brasil se compromete a construir por sua própria conta, imediatamente depois de aprovado o presente Tratado, o trecho Puerto Esperanza-Corumbá, da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, de conformidade com o projeto e orçamento,já elaborados e aprovados.

Artigo VIII Os Governos do Brasil e da Bolívia examinarão oportunamente a conveniência de reservar no porto de Corumbá parte das instalações ou de estabelecer, nas proximidades do referido porto, outras especiais destinadas a facilitar o trânsito de mercadoria de importação e de exportação à Bolívia e da Bolívia, mediante condições e garantias que serão estipulada, entre os dois países.

Artigo IX A Estrada de Ferro de Santa Cruz de la Sierra a um ponto convenientemente escolhida entre Puerto Esperanza e Corumbá terá a bitola de um metro e seguirá a direção geral das serranias de San José e Santiago, passando pelos pontos julgados mais adequados, depois de realizados os estudos definitivos.

Artigo X O Governo do Brasil, de acordo com o Artigo V do Protocolo de 25 de novembro de 1937, adiantará a importância correspondente aos gastos gerais dos estudos da linha que ligará Santa Cruz ao território brasileiro, iniciados a 25 de janeiro de 1938, importância da qual será reembolsado na forma estipulada no Artigo IV.

Artigo XI Os estudos completos e definitivos da linha férrea que ligará Santa Cruz de la Sierra do território brasileiro deverão estar concluidos dentro do prazo de um ano, a partir da data de seu início, ou seja a 25 de janeiro de 1939, salvo casos de força maior, devidamente comprovados.

Artigo XII A construção da estrada de ferro de Santa Cruz de la Sierra a um ponto convenientemente escolhido entre Puerto Esperanza e Corumbá será iniciada, a partir do território brasileiro, depois que tenham sido realizados e aprovados pelos Governos do Brasil e da Bolívia os projetos e orçamentos relativos aos dois primeiros trechos de 50 (cincoenta) quilômetros cada um. Essa construção será feita por concorrência pública, mediante condições estabelecidas pelo Governo da Bolívia, de acordo com o Governo do Brasil.

Artigo XIII Sendo de mútuo interesse que as obras ferroviárias, a que se refere o presente Tratado, reduzam o seu custo ao estritamente indispensável, ambos os Governos estão de acordo em conceder as maiores franquias e facilidades possíveis, por via de suas Repartições e autoridades competentes, afim de que os trabalhos se efetuem com a máxima presteza e o mínimo de custo. Com esse fim, o equipamento instrumental, objetos de uso pessoal, etc., dos técnicos de ambos os países ficarão tambem isentos de direitos aduaneiros ou outros quaisquer gravames.

Artigo XIV O presente Tratado será ratificado pelas Altas Partes Contratantes e as ratificações serão trocados no Rio de Janeiro, com possível brevidade. Em fé do que, nós, os Plenipotenciários acima nomeados, selamos e assinamos o presente Tratado, em dois exemplares, cada um dos quais nas línguas portuguesa e espanhola, na cidade do Rio de Janeiro, aos 25 dias do mês de fevereiro de 1938. E, havendo o Governo do Brasil aprovado o mesmo Tratado, nos termos acima transcritos, - pela presente o dou por firme e valioso para produzir os seus devidos efeitos, prometendo que será cumprido inviolavelmente.

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Em firmeza do que, mandei passar esta Carta, que assino e é selada com o selo das armas da República e subscrita pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores. Dada no Palácio da Previdência, no Rio de Janeiro, aos cinco dias do mês ds setembro de mil novecentos e trinta e oito, 117º da Independência e 50º da República,

GETULIo Vargas. Oswaldo Aranha.

Os abaixo assinados, Oswaldo Aranha, Ministro de Estado das a Relações Exteriores da República dos Estados Unidos do Brasil, e Alberto Ostria Gutiérrez, Enviado Extraordinário da República da Bolívia no Brasil, devidamente autorizados, reuniram-se no Palácio Itamaratí, na cidade do Rio de Janeiro, aos quinze dias do mês de setembro de mil novecentos e trinta e oito, afim de procederem à troca dos instrumentos de ratificação do Tratado, sobre ligação ferroviária, firmado no Rio de Janeiro, a 25 de fevereiro de 1938, entre os Governos das duas Repúblicas. E, depois de exibidos seus Plenos Poderes, que foram achados em boa e devida forma, efetuaram atroca dos respectivos instrumentos de ratificação, deixando, porem, entendido que são consideradas como fazendo parte do Tratado as Notas complementares de 25 de fevereiro de 1938, apensas por cópia. Em fé do que, no lugar e dia acima declarados, assinaram a presente Ata, em dois exemplares, cada um dos quais nas línguas portuguesa e espanhola apondo neles o signal de seus respectivos selos. NP/SN/844.42(00) (31). Señor Ministro De conformidade com o estatuido no art. IV do Protocolo concluido em La Paz em 25 de novembro de 1937, e com referência ao Tratado sobre ligação ferroviária, que hoje assinamos, tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência que o Governo do Brasil dará instrucções aos seus Delegados na Comissão Mixta no sentido de que a Chefia da Comissão ferroviária caiba a um técnico brasileiro, considerando que é o Brasil quem adianta os fundos necessários para os estudos a que se refere o art. II. Aproveito o ensejo para reiterar a Vossa Excelência os protestos da minha alta consideração.

MARIO Pimentel Brandão. A Sua Excelência o Senhor Doutor Alberto Ostria Guitérrez, Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário da Bolívia. Rio de Janeiro, 25 de febrero de 1938.

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Acordo, por Troca de Notas, sobre Regularização Migratória

A Sua Excelência Armando Loaiza Mariaca Ministro de Relações Exteriores e Culto da República da Bolívia Senhor Ministro, Tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência que o Governo da República Federativa do Brasil deseja concluir com o Governo da Bolívia um Acordo sobre Regularização Migratória. O objetivo do Acordo é o de promover a integração socioeconômica dos nacionais dos dois países que se encontram em situação imigratória irregular no território de seus respectivos países, com base no interesse de fortalecer o relacionamento amigável existente. Tem presente a necessidade de outorgar um marco adequado às condições dos imigrantes dos dois países, possibilitando de forma efetiva sua inserção na sociedade do país receptor, e de criar um sistema para controle eficiente de imigrantes. Nessas condições, o Acordo insere-se no espírito do Acordo, por troca de Notas, para a Criação de um Grupo de Cooperação Consular, firmado entre nossos Governos em 14 de maio de 1986. Dessa forma, proponho a Vossa Excelência o seguinte Acordo: 1. Definições Para fins do presente Acordo serão empregados os seguintes termos:

• Território: área sob soberania e jurisdição das Partes; • Nacional: pessoa detentora da nacionalidade de uma das Partes, conforme

normas constitucionais; • Registro: cadastramento de nacionais que ingressaram e se encontram no

território da outra Parte até a data da assinatura deste Acordo; • Imigrante irregular: nacional de uma das Partes que se encontra no território da

outra Parte em situação irregular; e, • Permanência: autorização concedida ao nacional de uma das Partes para

permanecer no território da outra Parte. 2. Abrangência do acordo i. Os nacionais de uma das Partes que ingressaram no território da outra Parte até a data da assinatura deste Acordo e nele permanecem em situação imigratória irregular poderão requerer registro e autorização de permanência nos termos dos parágrafos seguintes. ii. A aplicação deste Acordo é extensiva ao grupo familiar que também se encontra no território da Parte receptora até a data da assinatura deste Acordo. 3. Registro e permanência i. O requerimento de registro deverá ser apresentado pelo interessado às autoridades competentes dentro de 180 (cento e oitenta) dias após a data da assinatura deste Acordo, prorrogável por igual período por motivo de força maior, ou caso fortuito, devidamente justificado por qualquer das Partes. ii. No momento do registro o interessado solicitará uma autorização de permanência, nos termos da legislação interna de cada Parte, sendo emitido protocolo válido por 180 (cento e oitenta) dias, podendo ser prorrogado, caso necessário. Deverá apresentar com o requerimento os seguintes documentos:

a. passaporte ou documento de identidade (original e cópia); b. no caso de dependentes, certidão de casamento ou nascimento (original

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e cópia ou cópia autenticada); c. atestado de antecedentes criminais ou policiais (original) expedido por

autoridade competente do país de origem; d. declaração de próprio punho, na forma da lei, de que não responde a

processo criminal, bem como não foi condenado no território do país receptor, no seu de origem ou em terceiro país;

e. prova de meios de subsistência na Parte receptora (original); f. comprovante de entrada no país até a data de assinatura deste Acordo,

conforme consta do parágrafo 12 deste Acordo; g. comprovante de pagamento das taxas; h. duas fotografias recentes coloridas.

iii. O comprovante de pagamento da multa decorrente de estada irregular, conforme previsto na legislação interna das Partes, deverá ser apresentado até 90 (noventa) dias após a apresentação do requerimento contido no número "i" deste parágrafo. 4. Sanções O registro ou a autorização de permanência serão declarados nulos se, a qualquer tempo, alguma informação apresentada pelo requerente for verificada falsa, podendo ser deportado sumariamente ou responder na forma da lei. 5. Denegação de Permanência Caso uma das Partes decida pela deportação de cidadão da outra Parte, a Representação diplomática da outra Parte providenciará documento de viagem para seu nacional. 6. Direitos Reconhecidos i. As Partes adotarão as medidas necessárias para instruir as instituições envolvidas na aplicação deste Acordo, a fim de não impor requisitos que impliquem desconhecimento dos direitos reconhecidos aos nacionais das Partes. ii. Os imigrantes regularizados na forma deste Acordo gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos às mesmas obrigações de natureza laboral em vigor para os trabalhadores nacionais do Estado receptor e da mesma proteção no que se refere à aplicação das leis relativas à higiene e à segurança do trabalho. iii. O presente Acordo será aplicado sem prejuízo de outras normas bilaterais ou multilaterais vigentes entre as Partes e que resultem mais favoráveis aos interesses dos imigrantes. 7. Exceções ao Acordo i. O presente Acordo não se aplica a nacionais de qualquer das Partes, expulsos ou passíveis de expulsão, ou aqueles que ofereçam periculosidade, ou sejam considerados indesejáveis, conforme a legislação interna da Parte receptora. ii. Este Acordo não poderá ser invocado quando o interessado apresentar risco à ordem pública, à saúde pública ou à segurança nacional da Parte receptora. 8. Cumprimento das Leis i. Os nacionais de ambas as Partes, a quem se aplica o presente Acordo, não estarão isentos de cumprir as leis e regulamentos da Parte receptora. ii. As Partes deverão, tão logo possível, informar-se mutuamente, por via diplomática, a respeito de qualquer mudança nas suas respectivas leis e regulamentos migratórios. iii. Este Acordo não limita o direito de qualquer das Partes de negar a entrada ou encurtar a estada de nacionais da outra Parte considerados indesejáveis. 9. Difusão da Informação Cada Parte adotará as medidas necessárias para divulgar as informações e as implicações decorrentes deste Acordo. 10. Suspensão Temporária Por motivos de segurança nacional, ordem pública ou saúde pública, qualquer das Partes poderá suspender temporariamente a aplicação deste Acordo no todo ou em parte. A outra Parte deverá ser notificada da suspensão, por via diplomática, com a

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brevidade possível. 11. Vigência e Denúncia i. Este Acordo terá vigência pelo período de 12 (doze) meses e poderá ser modificado, caso as Partes assim o desejem. As modificações serão acordadas por via diplomática. ii. Qualquer das Partes poderá denunciar este Acordo por via diplomática. A denúncia terá efeito 90 (noventa) dias após o recebimento da Nota de denúncia sem prejuízo dos pedidos em andamento. iii. Qualquer das Partes poderá convocar reuniões "ad hoc" para dirimir dúvidas e examinar problemas decorrentes da aplicação do presente Acordo. 12. Disposição Final Para os fins previstos na alínea "f" do número "ii" do parágrafo 3 do presente Acordo, poderão servir para comprovação de entrada no território das Partes, até a data da assinatura do presente Acordo, os seguintes documentos: i. Carimbo de entrada aposto no passaporte; ou ii. Cartão de entrada/saída; ou iii. Comprovante de pagamento de aluguel, luz, água, telefone, mensalidade ou matrícula escolar; ou iv. Nota fiscal ou documento equivalente de compra de qualquer bem móvel ou imóvel; ou v. Comprovante de atendimento por profissional da área de saúde ou atestado ou carteira de vacinação; ou vi. Qualquer outro documento que comprove a estada no território da Parte receptora. Se o presente Acordo for aceitável para o Governo da Bolívia, esta Nota e a de Vossa Excelência onde conste a concordância constituirão um Acordo entre nossos Governos sobre o tema, o qual entrará em vigor 30 (trinta) dias após a presente data. Aproveito a oportunidade para reiterar a expressão de minha mais alta consideração.

CELSO AMORIM Ministro de Estado das Relações Exteriores

A Sua Excelência Celso Luiz Nunes Amorim Ministro de Estado das Relações Exeriores Da República Federativa do Brasil, Excelentíssimo Senhor Ministro Tenho a honra de acusar recebimento de sua Nota nº 88, datada de 15 de agosto de 2005, que Vossa Excelência dirigiu-me, e cujo teor é o seguinte: "Tenho a honra de comunicar a Vossa Excelência que o Governo da República Federativa do Brasil deseja concluir com o Governo da Bolívia um Acordo sobre Regularização Migratória. O objetivo do Acordo é o de promover a integração socioeconômica dos nacionais dos dois países que se encontram em situação imigratória irregular no território de seus respectivos países, com base no interesse de fortalecer o relacionamento amigável existente. Tem presente a necessidade de outorgar um marco adequado às condições dos imigrantes dos dois países, possibilitando de forma efetiva sua inserção na sociedade do país receptor, e de criar um sistema para controle eficiente

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de imigrantes. Nessas condições, o Acordo insere-se no espírito do Acordo, por troca de Notas, para a Criação de um Grupo de Cooperação Consular, firmado entre nossos Governos em 14 de maio de 1986. Dessa forma, proponho a Vossa Excelência o seguinte Acordo: 1. Definições Para fins do presente Acordo serão empregados os seguintes termos: - Território: área sob soberania e jurisdição das Partes; - Nacional: pessoa detentora da nacionalidade de uma das Partes, conforme normas constitucionais; - Registro: cadastramento de nacionais que ingressaram e se encontram no território da outra Parte até a data da assinatura deste Acordo; - Imigrante irregular: nacional de uma das Partes que se encontra no território da outra Parte em situação irregular; e, - Permanência: autorização concedida ao nacional de uma das Partes para permanecer no território da outra Parte. 2. Abrangência do acordo i. Os nacionais de uma das Partes que ingressaram no território da outra Parte até a data da assinatura deste Acordo e nele permanecem em situação imigratória irregular poderão requerer registro e autorização de permanência nos termos dos parágrafos seguintes. ii. A aplicação deste Acordo é extensiva ao grupo familiar que também se encontra no território da Parte receptora até a data da assinatura deste Acordo. 3. Registro e permanência i. O requerimento de registro deverá ser apresentado pelo interessado às autoridades competentes dentro de 180 (cento e oitenta) dias após a data da assinatura deste Acordo, prorrogável por igual período por motivo de força maior, ou caso fortuito, devidamente justificado por qualquer das Partes. ii. No momento do registro o interessado solicitará uma autorização de permanência, nos termos da legislação interna de cada Parte, sendo emitido protocolo válido por 180 (cento e oitenta) dias, podendo ser prorrogado, caso necessário. Deverá apresentar com o requerimento os seguintes documentos: a) passaporte ou documento de identidade (original e cópia); b) no caso de dependentes, certidão de casamento ou nascimento (original e cópia ou cópia autenticada); c) atestado de antecedentes criminais ou policiais (original) expedido por autoridade competente do país de origem; d) declaração de próprio punho, na forma da lei, de que não responde a processo

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criminal, bem como não foi condenado no território do país receptor, no seu de origem ou em terceiro país; e) prova de meios de subsistência na Parte receptora (original); f) comprovante de entrada no país até a data de assinatura deste Acordo, conforme consta do parágrafo 12 deste Acordo; g) comprovante de pagamento das taxas; h) duas fotografias recentes coloridas. iii. O comprovante de pagamento da multa decorrente de estada irregular, conforme previsto na legislação interna das Partes, deverá ser apresentado até 90 (noventa) dias após a apresentação do requerimento contido no número "i" deste parágrafo. 4. Sanções O registro ou a autorização de permanência serão declarados nulos se, a qualquer tempo, alguma informação apresentada pelo requerente for verificada falsa, podendo ser deportado sumariamente ou responder na forma da lei. 5. Denegação de Permanência Caso uma das Partes decida pela deportação de cidadão da outra Parte, a Representação diplomática da outra Parte providenciará documento de viagem para seu nacional. 6. Direitos Reconhecidos i. As Partes adotarão as medidas necessárias para instruir as instituições envolvidas na aplicação deste Acordo, a fim de não impor requisitos que impliquem desconhecimento dos direitos reconhecidos aos nacionais das Partes. ii. Os imigrantes regularizados na forma deste Acordo gozam dos mesmos direitos e estão sujeitos às mesmas obrigações de natureza laboral em vigor para os trabalhadores nacionais do Estado receptor e da mesma proteção no que se refere à aplicação das leis relativas à higiene e à segurança do trabalho. iii. O presente Acordo será aplicado sem prejuízo de outras normas bilaterais ou multilaterais vigentes entre as Partes e que resultem mais favoráveis aos interesses dos imigrantes. 7. Exceções ao Acordo i. O presente Acordo não se aplica a nacionais de qualquer das Partes, expulsos ou passíveis de expulsão, ou aqueles que ofereçam periculosidade, ou sejam considerados indesejáveis, conforme a legislação interna da Parte receptora. ii. Este Acordo não poderá ser invocado quando o interessado apresentar risco à ordem pública, à saúde pública ou à segurança nacional da Parte receptora. 8. Cumprimento das Leis

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i. Os nacionais de ambas as Partes, a quem se aplica o presente Acordo, não estarão isentos de cumprir as leis e regulamentos da Parte receptora. ii. As Partes deverão, tão logo possível, informar-se mutuamente, por via diplomática, a respeito de qualquer mudança nas suas respectivas leis e regulamentos migratórios. iii. Este Acordo não limita o direito de qualquer das Partes de negar a entrada ou encurtar a estada de nacionais da outra Parte considerados indesejáveis. 9. Difusão da Informação Cada Parte adotará as medidas necessárias para divulgar as informações e as implicações decorrentes deste Acordo. 10. Suspensão Temporária Por motivos de segurança nacional, ordem pública ou saúde pública, qualquer das Partes poderá suspender temporariamente a aplicação deste Acordo no todo ou em parte. A outra Parte deverá ser notificada da suspensão, por via diplomática, com a brevidade possível. 11.Vigência e Denúncia i. Este Acordo terá vigência pelo período de 12 (doze) meses e poderá ser modificado, caso as Partes assim o desejem. As modificações serão acordadas por via diplomática. ii. Qualquer das Partes poderá denunciar este Acordo por via diplomática. A denúncia terá efeito 90 (noventa) dias após o recebimento da Nota de denúncia sem prejuízo dos pedidos em andamento. iii. Qualquer das Partes poderá convocar reuniões "ad hoc" para dirimir dúvidas e examinar problemas decorrentes da aplicação do presente Acordo. 12. Disposição Final Para os fins previstos na alínea "f" do número "ii" do parágrafo 3 do presente Acordo, poderão servir para comprovação de entrada no território das Partes, até a data da assinatura do presente Acordo, os seguintes documentos: i. Carimbo de entrada aposto no passaporte; ou ii. Cartão de entrada/saída; ou iii. Comprovante de pagamento de aluguel, luz, água, telefone, mensalidade ou matrícula escolar; ou iv. Nota fiscal ou documento equivalente de compra de qualquer bem móvel ou imóvel; ou v. Comprovante de atendimento por profissional da área de saúde ou atestado ou carteira de vacinação; ou vi. Qualquer outro documento que comprove a estada no território da Parte

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receptora. Se o presente Acordo for aceitável para o Governo da Bolívia, esta Nota e a de Vossa Excelência onde conste a concordância constituirão um Acordo entre nossos Governos sobre o tema, o qual entrará em vigor 30 (trinta) dias após a presente data. Aproveito a oportunidade para reiterar a expressão de minha mais alta consideração.

CELSO AMORIM Ministro de Estado das Relações Exteriores"

A respeito, apraz-me expressar a Vossa Excelência, a conformidade do Governo da República da Bolívia, para que o texto de sua Nota transcrita e a presente Nota de resposta constituam um Acordo entre nosso Governos, que entrará em vigor 30 (trinta) dias a contar da data da presente Nota. Aproveito a oportunidade para renovar a Vossa Excelência os protestos de minha mais alta consideração.

ARMANDO LOAIZA MARIACA

Ministro das Relações Exteriores e Culto da Bolívia