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    ESTADO DE DIREITO

    Joaquim Jos Gomes Canotilho

    NDICE :

    PARTE I - ESTADO DE DIREITO.....................................................................................................................21- EM JEITO DE INTRODUO.....................................................................................................................22 -QUE DIREITO PARA O ESTADO?.............................................................................................................33 - ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE NO DIREITO...............................................................................44 - DIREITO E NO DIREITO NAS INSTITUIES TOTALITRIAS.................................

    ...........................65- ESTADO DE DIREITO: UMA CRIAO DA CULTURA POLTICA OCIDENTAL.......................

    ..............76 - AS DIMENSES DO ESTADO DE DIREITO: JURIDICIDADE, DEMOCRACIA, SOCIALIDADE ESUSTENTABILIDADE AMBIENTAL..........................................................................................................86.1. ESTADO DE DIREITO..............................................................................................................................96.2. O ESTADO DE DIREITO DEMOCRTICO.............................................................................................106.3- ESTADO DE DIREITO E ESTADO SOCIAL..........................................................................................136.4 - ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE JUSTIA.......................................

    ...........................................156.5- ESTADO DE DIREITO E ESTADO AMBIENTAL..................................................................................17PARTE II : AS DIMENSES ESSENCIAIS DO ESTADO DE DIREITO.......................................................181 - ESTADO DE DIREITO: O IMPRIO DO DIREITO..................................................................................182 -ESTADO DE DIREITO UM ESTADO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS................................................193 - O ESTADO DE DIREITO OBSERVA O PRINCPIO DA JUSTA MEDIDA..............................................214 -O ESTADO DE DIREITO GARANTE O PRINCPIO DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAO.............

    225 - O ESTADO DE DIREITO RESPONDE PELOS SEUS ACTOS................................................................236 - O ESTADO DE DIREITO E A GARANTIA DA VIA JUDICIRIA............................................................247 -O ESTADO DE DIREITO D SEGURANA E CONFIANA S PESSOAS...........................................258 A GUISA DE CONCLUSO.....................................................................................................................26

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    PARTE I - ESTADO DE DIREITO

    1- EM JEITO DE INTRODUO

    Convidam-nos amavelmente a escrever um pequeno livro sobre um tema outrora reservado aosaber dos juris tas. Perguntamo-nos a ns prprios como iremos enqua drar nos Cadernos Democrticos o

    tema do Estado de direito. As dvidas comeam logo no facto de, ainda hoje, o Estadode direito e ademocracia responderem a dois modos de compreender a cidadania e a autodeterminaoindividual.Indivduo autnomo perante o poder, eis o tema do Estado de direito; indivduo livre atravs da participaoautnoma na cidade, eis o lema da democracia. Mas no s isto. Estes Cadernos Demo- crticospretendem, ao que supomos, registar os modos e os modos outros da cidade republicana actual. Novoproblema. Estado de direito e repblica lanam entre si olhares de mtua suspeio. Do lado republicano,v-se o Estado de direito preocupado exclusivamente com a autonomia privada e a su

    a distncia perante opoder, des prezando-se as virtudes Pblicas. Do campo do Estado de direito, no se compreende o direitoreduzido a actos de fala do homem pblico, nem sempre amigo das virtudes privadas dosujeito dasociedade civil. Por ltimo, mais um rudo. Os Cadernos Democrticos no so indiferentesaos problemasda justia social nas sociedades contemporneas. Nem outra coisa seria de esperar deuma fundao cujopatrono afirma sem reti cncias a bondade do socialismo. Eis uma terceira provocao.Contra odemasiado Estado do despotismo iluminista se lanaram os pilares de uma arquitecturapoltica onde oEstado se configura como esquema de organizao curvado e limitado pelo direito. Ora, o Estado socialretoma, segundo alguns, o desejo do Estado largo por amor a uma controvertida missoecon6mico-social dos poderes pblicos.

    Seja-nos permitido, assim, localizar o discurso na cidade republicana. Procuraros caminhos do Estado dedireito hoje , no fundo, tentar responder a algumas das mais candentes questes polticas actuais. Numaformulao recente, uma conhecida publicista francesa1 resumia as nossas angstias. Como articular a

    tica e o direito? Qual o lugar que deve ter a educao cvica e moral? Como se deve reequilibrar o Estadoadministrativo? Como refor- mar a justia? Como que se reorganiza a cidadania e a

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    seleco dos eleitos?Qual o direito do povo e das mulheres e, sobretudo, como articular os diferentesvasos do direito polticorepublicano: o direito do Estado, os direitos do homem, os direitos do povo, osdireitos do cidado? O temaque nos proposto um iti- nerrio de passagem destas perplexidades. Tentemos responder a algumas

    delas.

    1 Cf. Blandine Kriegel, La cit republicaine des chemins de l'tat, 4, Galile, Paris,1997, p. 5.

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    2 -QUE DIREITO PARA O ESTADO?

    Direito, mas de que Estado? Porqu um Estado de direito? E que direito para que Estado? Estas eoutras interrogaes servem apenas para insinuar um problema essencial: que lei para que cidade.Uma ordem juridicamente organizada de justia e de paz aponta para certos tipos deorganizao da cidade(a cidade republicana) e para o consenso/partilha de certos valores e princpios.O princpio bsico doEstado de direito o da eliminao do arbtrio no exerccio dos poderes pblicos com a coequentegarantia de direitos dos indivduos perante esses poderes. No entanto, antes da afirmao deste princpio

    bsico coloca-se sempre a marca da fundao. A histria da fundao das comunidades humanaorganizadas muitas vezes uma histria trgica assente num cdigo binrio de contradiestinomias eexcluses: cidado/estrangeiro, f/heresia, temporal/espiritual, amigo/inimigo, pblico/privado, vontadegeral/interesses particulares, incluso/excluso, direito/no direito.

    Interessa-nos aqui o ltimo par de oposies: direito/no direito, ou, mais precisamente, Estado de direito/eEstado de no direito. Talvez os leitores fiquem admirados com estas propostas. Emvez de se comear por

    explicar o que o Estado de direito, inicia-se a intriga com um exerccio simultaneamente de anlise e deexorcismo em torno do Estado de no direito. Verificaremos j em seguida que as pginas dedicadas aosEstados de no direito, longe de constiturem pginas vir- tuais, so registos polticos dos construtores desistemas onde o no direito e a injustia se afirmaram e impuseram como experincias primeiras. Ser istouma fatalidade: primeiro a injustia e o no direito e, s depois, no caos destas experincias, a gestao dajustia e do direito?

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    3 - ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE NO DIREITO

    O tema do Estado de direito voltou a ganhar excepcional actualidade nas ltimas duas dcadas donosso sculo. Porqu, perguntar-se- naturalmente. E a pergunta tanto mais incmoda e justificadaquanto mais diversifi cadas e contraditrias forem as causas da ressurreio e ressurgimento do problemado Estado de direito.

    Para facilitarmos a compreenso da complicada gnese do Estado de direito avanaremoscom umacaracterizao simples, pois, como sempre2, as caracterizaes mais simples tomam-se mais impressivas.

    Estado de direito um Estado ou uma forma de organizao poltico-estadual cuja actividade determinadae limitada pelo direito. Estado de no direito ser, pelo contrrio, aquele em que o poder poltico seproclama desvincu lado de limites jurdicos e no reconhece aos indivduos uma esferade liberdade ante opoder protegida pelo direito. Este modo abstracto de aproximao aos conceitos de Estado de direito ede Estado de no direito pouco adiantar direito pouco adiantar s pessoas menos familzadas comos temas do Estado e do direito. Avancemos ento por um caminho mais assente na terrapara setomar a srio o Estado de direito. Tomar a srio o Estado de direito implica, desde

    logo, recortar com rigorrazovel o seu contrrio -o Estado de no direito. Trs ideias bastam para o caracteriza(I) um Estadoque decreta leis arbitrrias, cruis ou desumanas; (2) um Estado em que o direito seidentifica com arazo do Estado imposta e iluminada por chefes; (3) um Estado pautado por radical instia edesigualdade na aplicao do direito. Explicitemos melhor estas trs ideias. Estado deno direito aquele em que existem leis arbitrrias, cruis e desumanas que fazem da fora ou do exerccio abusivo dopoder o direito, deixando sem qualquer defesa jurdica eficaz o indivduo, os cidados, os povos e asminorias. Lei arbitrria, cruel e desumana , por exemplo, aquela que permite expe-rincias cientficasimpostas exclusivamente a indivduos de outras raas, de outras nacionalidades, de outras lnguas e deoutras religies.

    Estado de no direito - eis a segunda ideia bsica - aquele que identifica o direitocom a razo doEstado, com o bem do povo, com a utilidade poltica, autoritria ou totalitariamentestos. Odireito tudo - mas no mais do que isso - o que os chefes, o partido, a falange,m

    como politicamente correcto. Facilmente se intuem as consequncias trgicas desta identificao do direitocom uma hipottica utilidade social ou com uma abstracta razo de Estado. A razo de Es

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    do - comeste ou com outros nomes, como, por exemplo, amizade do povo, bem da nao, imperativarevoluo, iteresses superiores do Estado - justificou campos de concentrao, pavilheuitricose mesmo genocdios colectivos para os adversrios polticos ou para os povos a que estes pertencem. O

    bem do povo e os interesses do Estado so (e foram) invocados a torto e a direito paradar cobertura aprivilgios de classes dirigentes, insinuando-se a escandalosa identificao dos interesses das castaspoltico-govemantes com o bem comum dos cidados.

    Retomemos a terceira ideia: a da radical injustia e da flagrante desigualdade naaplicao do direito. NosEstados de no direito h dois pesos e duas medidas na aplicao das normas jurdicas (lconsoanteas pessoas em causa. Um acto idntico sancionado criminalmente com penas desumanasse praticado

    por adversrios polticos, mas merece o encobrimento ou at o beneplcito poltico quandoseja cometidopor um correligionrio ou por elementos das polcias secretas contra o outro, seja ele um simples adversriopoltico, um idealista defensor dos direitos humanos ou um lutador pela democracia.

    De uma forma quase intuitiva, o leitor sabe o que no um Estado de direito. aquele- repita-se - emque as leis valem apenas por serem leis do poder e tm sua mo fora para se fazerem obedecer. aquele que identifica direito e fora, fazendo crer que so direito mesmo as leis mais arbitrrias, mais cruis

    e mais desumanas. aquele em que o capricho dos dspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido eos interesses de classe se impem com violncia aos cidados. aquele em que se negam apessoas ougrupos de pessoas os direitos inalienveis dos indivduos e dos povos.

    Como se poder deduzir das consideraes antecedentes, no basta a existncia de leis menos justas oude leis publicamente contestadas atravs de movimentos de desobedincia civil ou degestos de indignaopara, de forma automtica, se apodar uma organizao poltica de Estado de no direito. Sendo assim,perguntar-se-: a partir de que limite as leis e medidas injustas transportam maldade suficientementeintensa para que sejam legtimas as suspeitas de um Estado de no direito? Avanaremosuma frmula

    2 Se o leitor for daqueles que gostam de ir mais longe sobre o que se acaba de ler, a notcia aqui fica. Ningum, a nossover, caracterizou de forma to simples e impressiva o Estado de no direito como o fezo filsofo do direito, denacionalidade alem, Gustav Radbruch, numa circular dirigida aos estudantes da Universidade de Heidelberga aps aSegunda Grande Guerra. Esta circular, intitulada Cinco minutos de filosofia do direito, pode ler-se em Gustav

    Radbruch, Filosofia do Direito, vol.II , trad. de Lus Cabral Moncada, Coimbra, Armnio Amado Editor, Coimbra, 1962,pp. 211 a 214. O texto segue, por vezes com proximidade textual, estes estimulan

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    tes cinco minutos de filosofia dodireito.

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    sinttica3. Atingir-se- o ponto do no direito quando a contradio entre as leis e medjurdicas doEstado e os princpios de justia (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana)se revele de tal modoinsuportvel (critrio de insuportabilidade) que outro remdio no h seno o de consideratais leis e

    medidas como injustas, celeradas e arbitrrias e, por isso, legitimadoras da ltimarazo ou do ltimorecurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justia e o direito- o direito de resistncia. individual e colectivo.

    3 Para o pblico leitor que considere este texto um elemento de estudo forneceremos um apontamento bibliogrfico

    infelizmente s acessvel aos que conhecem a lngua alem. O critrio sumariamente avanadpara caracterizarEstado de no direito conhecido na literatura jurdica como frmula de Radbruch. Soba frmula pode ver-seo estudo de Frank Saliger integrado na coleco Heidelberger Forum com o ttulo Radbruchsche Formei undRechtsstaat, C. F. Miiller, Hei- delberga, 1995.

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    4 - DIREITO E NO DIREITO NAS INSTITUIES TOTALITRIAS

    At agora limitmo-nos a traar as fronteiras entre Estado de direito e Estado de no direito emtermos abstractos e conceptuais. Espera-se certamente que surjam os exemplos dainstitucionalizao doEstado de no direito. O primeiro momento de negao do Estado de direito encontra-senos regimes nazi-fascistas. Embora parea paradoxal4, alguns autores chegaram a falar de Estado de direito fascista parasignificar que tambm neste Estado havia uma ordem jurdica, um Estado legal, uma seguranajurdica. O Estado fascista , porm, uma institucionalizao totalitria diferente do Esde direito. Em

    primeiro lugar, o Estado no um esquema organizatrio limitado pelo direito. , sim, uma realidadetranscendente, uma realidade suprema. Perante ele, os direitos individuais assentes na dignidade dapessoa humana cedem porque em primeiro lugar esto os interesses do Estado. O Estado de direitopressupe uma certa distncia e uma inequvoca separao da sociedade civil perante o Estado. O Estadofascista elimina a distncia e a separao, incluindo na realidade estatocrtica o indivduo e os grupossociais. Por ltimo, o Estado fascista um Estado de no direito porque, como realidade que se justifica a siprpria, no carece de legitimao. Foge da legitimao democrtica.

    Na dcada de 70 e principalmente na dcada de 80 o Estado de direito uma palavra deluta contra achamada deriva totalitria socialista5. O princpio da unidade do poder do Estado ea existncia de umaestrutura de Estado monoltica assente num esquema de confuso de Estado, direito, classe e partidoencobriam-se numa legalidade socialista ou num Estado de direito socialista. Os Estados comunistaseram Estados de no direito. A desesperada tentativa da perestroika para alicerar aformao de umEstado de direito socialista demonstra que faltava o essencial de um Estado de direito: a separao depoderes, a garantia de direitos e liberdades, o pluralismo poltico e social, o direito de recurso contra abusosdos funcionrios, a subordinao da administrao lei constitucional, a fiscalizao datucionalidadedas leis. O sistema no aguentou, enredado na sua prpria lgica. O Estado de direito a anttese dototalitarismo estalinista ou do autoritarismo monopolista da nomenklatura. A filosofia poltica do partidonico transformado em vanguarda da conscincia colectiva e dos fins e metas socialmentedesejveiseliminou da cena poltica categorias bsicas de um Estado de direito, como a publicidade crtica, a

    discusso e dissensos parlamenlares e polticos, a autonomia da sociedade civil6.

    Se o Estado de direito no tem um selo ociden tal - mas discutiremos isso em breve -

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    .a suaproclamao nos pases da Europa de Leste (ex-pases socialistas, ex-democracias populares) serviu parase voltar nesses pases reapropriao de esquemas jurdico-polticos e de princpios e ves comuns aoOcidente de tradio liberal e democrtica. Do mesmo modo, a transio dos regimes africanos para o

    pluralismo poltico impeliu a erigir o Estado de direito em trave-mestra da modernizao e democratizaopolticas. Resta saber se a refundao dos Estados em termos de Estado de direito no pressupe umacultura, uma poltica e um ambiente jurdico-cultural forjados atravs de processos desocializao eaculturao caractersticos de tempos longos.

    4 A epgrafe do texto inspira-se em D. Loschak, Droit et non droit dans les institutions totalitaires, in L 'lnstitution, PUF,

    1981.5 Existe uma literatura imensa sobre o carcter de no direito do Estado socialista departido nico. Seguiremos,porm, a leitura de Dah- rendorf, Reflexes sobre a Revoluo na Europa, Lisboa, Gradiva, 1995, porque constitui umexcelente caderno democrtico.

    6 Uma discusso aprofundada dos princpios do Estado de direito e da sua neutralizao na antiga DDR (RepblicaDemocrtica Alem) pode ser vista no n 51 (1991) da coleco organizada pela Associao drofessores de DireitoPblico de lngua alem. Trs autores - Christiam Starck, Wilfried Berg e Bodo Pieroth-

    procuram discutir algumas dasquestes agitadas no nosso texto (v., precisamente, Ch. Starck/W. Berg/B. Pieroth,Der Rechtsstaat und dieAufarbeitung der vor-rechtss taatlichen Vergangenheit, de Gruyter, Berlim, 1992).

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    5- ESTADO DE DIREITO: UMA CRIAO DA CULTURA POLTICA OCIDENTAL

    O Estado de direito e o Estado de no direito assumem-se como categorias histricas. Acontraposio entre estas duas categorias no obedece, pois, a um simples esquema abstracto ou a merasarrumaes intelectuais. Existiram e existem esquemas jurdico-polticos de organizao conitria quepoderemos arrumar na categoria de Estados de direito. Existiram e existem tecnologias poltico-organizatrias que se enquadram na categoria de Estados de no direito. Onde e como sedesenvolveram estas categorias?

    Uma resposta a esta pergunta muitas vezes dada recortando o Estado de direito co

    mo uma forma deorganizao jurdica e poltica circunscrita aos Estados em que progressivamente se foisedimentando umdeterminado paradigma jurdico, poltico, cultural e econmico. O Estado de direito perfilar-se-ia, assim,como um paradigma jurdico-poltico da cultura ocidental e do Estado liberal do Ocidente. Foi no meioambiente natural do Ocidente o local da forja de uma arquitectnica de Estado baseada no consenso sobreprincpios e valores que, no seu conjunto, formam a chamada juridicidade estatal7.Avancemos j asdimenses fundamentais desta juridicidade: governo de leis (e no de homens!) geraise racionais,

    organizao do poder segundo o princpio da diviso de poderes, primado do legislador, garantia detribunais independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo poltico,funcionamento do sistema organizatrio estadual subordinado aos princpios da responsabilidade e docontrolo, exerccio do poder estadual atravs de instrumentos jurdicos constitucionalmente determinados.No seu conjunto e de forma tendencial, a convergncia dos princpios bsicos constitutivos da juridicidadeestatal acabou por gerar um paradigma de organizao poltica considerado como referncia relativamentea outros esquemas organizatrios do poltico. Aqui vem entroncar uma das controvrsiasactuais em tornodo problema do Estado de direito: o da pretenso de universalidade8 do paradigma ocidental do Estado dedireito. Por outras palavras mais acessveis: poder este modelo poltico da cultura ocidental impor-se comoum valor poltico universal? Ser o Estado de direito ocidental a medida justa do mundo, da civilizao edo desenvolvimento humano? A bondade dos seus valores, princpios e esquemas organizativos nojustificar mesmo consider-lo o ltimo modelo possvel de organizao e o prprio fim daa ?

    Aqui, como noutros campos da organizao social e poltica, devem evitar-se radicalizaesdicotmicas esimplificaes ideolgicas. Falar, por exemplo. de um Ocidente - o do Estado de direito

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    - e de umOriente - o do despotismo - significa esquecer que no ambiente europeu do Estado de direito se gerou ofenmeno Hitler e dos campos de concentrao e se desenvolveram formas no ocidentaisorganizao poltica, como foram o Estado Novo portugus, o Estado falangista espanholtadofascista italiano. Por outro lado, desdenhar dos esquemas polticos racionais e raz

    oveis do Estado dedireito, reduzindo-os a meras formas de domnio da classe burguesa, acabou por justificar esquemassoviticos de Estado-partido sem limites jurdicos efectivos do poder, do Estado e dopartido. A propostade leitura que se avanar neste livro partir do seguinte tpico: o Estado de direito transporta princpios evalores materiais razoveis para uma ordem humana de justia e de paz. So eles: a liberdade do indivduo,a segurana individual e colectiva, a responsabilidade e responsabilizao dos titulares do poder, aigualdade de todos os cidados e a proibio de discriminao de indivduos e de grupos. P

    a tomarefectivos estes princpios e estes valores o Estado de direito carece de instituies,de procedimentos deaco e de formas de revelao dos poderes e compe tncias que permitam falar de um poderdemocrtico,de uma soberania popular, de uma representao poltica, de uma separao de poderes, de fins e tarefasdo Estado. A forma que na nossa contemporaneidade se revela como uma das mais adequadas para colheresses princpios e valores de um Estado subordinado ao direito a do Estado constitucional de direitodemocrtico e social ambientalmente sustentado. Est, assim, traado o roteiro para aprofundarmos o

    Estado de direito. Trata-se: ( 1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estadodemocrtico; (4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental, ou melhor, de umEstado comprometidocom a susten tabilidade ambiental.

    7 Os vrios princpios jurdicos informadores desta juridicidade estatal encontram-seexpostos com mais ou menosdesenvolvimento nos manuais de direito constitucional, nacionais e estrangeiros.Procuramos fazer uma sntese dessesprincpios no nosso Direito Constitucional e Teoria da Constituio, 2.. ed., Coimbra,1998, pp. 235-272, que aquiseguimos de perto.

    8 Abstemo-nos, num livro de divulgao, de saturar o texto com notas eruditas. No entanto, quem tiver pacincia ecuriosidade para aprofundar o tema da pretenso de universalidade do Estado de direito pode ver referncias em doislivros recentes, mas no muito acessveis. Referimo-nos ao livro de Edin Sarcevic, Der Rechtsstaat, LeipzigerUniversittsverlag, Leipzig, 1996, e colectnea de estudos organizada por Hans-Marti

    n Pawlowski e Gerd Roellecke,Der Universalitiitsanspruch des demokra tischen Rechtsstaates. Franz Steiner Verlag Stuttgart, 1996.

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    6 - AS DIMENSES DO ESTADO DE DIREITO: JURIDICIDADE, DEMOCRACIA, SOCIALIDADE ESUSTENTABILIDADE AMBIENTAL

    Retomemos as consideraes finais do nmero anterior. Dissemos que a pretenso de universalidadedo Estado de direito se reconduz, no final do milnio, formatao de um Estado dotadode qualidades:Estado de direito, Estado constitucional, Estado democrtico, Estado social e Estado ambiental.

    Poucos tero hoje a ousadia de defender abertamente um Estado de no direito. As declaraesinternacionais de direitos do homem, os grandes pactos internacionais sobre direitos e liberdades, civis,

    polticas e sociais, a estruturao de novos espaos poltico-econmicos com base no respeo e realizaodos direitos fundamentais, pouca folga daro aos novos pretendentes do despotismo.Ningum pode ficarfora da comunidade internacional, ou, como hoje se dir num mundo anglicizado, a ningum reconhecidoo direito de opting out da comunidade internacional.

    Para se estar dentro dela impe-se a observncia das regras e princpios progressivamente acolhidos pelosEstados de direito.

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    6.1. ESTADO DE DIREITO

    A ideia de um Estado domesticado pelo direito alicerou-se paulatinamente nos Estados ocidentaisde acordo com as circunstncias e condies concretas existentes nos vrios pases da Europa e, depois,no continente americano. Na Inglaterra sedimentou-se a ideia de rule of law ( regra do direito ou impriodo direito ). Na Frana emergiu a exigncia do Estado de legalidade (tat lgal). Dos Estados Unidoschegou-nos a exign- cia do Estado constitucional, ou seja, o Estado sujeito a umaconstituio. NaAlemanha construiu-se o princpio do Estado de direito (Rechtsstaat), isto , um Estado subordinado ao

    direito. De uma forma acessvel, procurar-se- condensar a mensagem jurdica e polticade todas estasideias.

    O que entendem os Britnicos por rule of law ? Fundamentalmente, a regra do direitosignifica quatrocoisas. Em primeiro lugar, significa a obrigatoriedade da adopo de um processo justo legalmente reguladoquando se torna necessrio julgar e punir os cidados, privando-os da sua liberdadeou propriedade. Emsegundo lugar, a regra do direito impe a prevalncia das leis e costumes do pas perante adiscricionariedade do poder real. A sujeio de todos os actos do poder executivo so

    berania dosrepresentantes do povo (parlamento) recorta-se como a terceira ideia da regra dodireito. Finalmente, aregra do direito significa direito e igualdade de acesso aos tribunais por partede qualquer indivduo a fim dea defender os seus direitos segundo os princpios do direito comum e perante qualquer entidade (pblica ouprivada). Com esta ou com formulaes semelhantes, a regra do direito imps-se como regra inelirninvelda organizao poltica das sociedades ocidentais. Deixou, pois, de ser uma simples revelao da histriainglesa para passar a exprimir algumas das dimenses bsicas do Estado de direito.

    Os Estados Unidos acrescentaram mais alguma coisa a este conjunto de regras. O Estado constitucionalpressupe, desde logo, o poder constituinte do povo, ou seja, o direito de o povofazer uma lei superior(constituio) da qual constem os esquemas essenciais do governo e respectivos limites. Os direitos eliberdades dos cidados histrica e juridicamente gerados na repblica assumiam-se como elemento centraldo Estado. Alm de um governo regulado pela constituio e limitado pelos direitos e liberdades, entendia-se que o poder tambm carecia de uma justificao, de uma legitimao. No bastaria invocaque o

    governo era representativo. Impunha-se tornar claras as razes do governo, ou, ditode outro modo, asrazes pblicas demonstrativas do consentimento do povo em ser governado sob determi

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    nadas condies.Deste modo, o governo que se aceita ou est justificado ser apenas o governo subordino a leistransportadoras de princpios e regras do direito, de natureza duradoura e vinculativa, explicitados naconstituio. Por ltimo, deve fazer-se uma meno particular aos tribunais. Estes exercema justia em

    nome do povo. E exercer a justia em nome do povo implica que os juzes sejam considerados agentes dopovo nos quais este deposita a confiana de preservao dos princpios de justia radicados naconsclencia Jundca geral e consagrados na lei constitucional superior. Se necessrio for, os juzes farouso do seu direito de acesso constituio, desaplicando e considerando nulas as ms leis editadas pelosrgos do governo da nao (fiscalizao judicial da constitucionalidade das leis).

    A Frana revolucionria deixou-nos um legado decisivo para a compreenso do Estado dedireito. No h

    Estado de direito onde no houver uma constituio feita pela nao (entenda-se: pelos representantes danao). E uma sociedade cuja lei constitucional superior no contenha uma declarao ou catlogo dedireitos e uma organizao do poder poltico segundo o princpio da diviso de poderes noemverdadeiramente constituio. Doravante, as ideias de direitos fundamentais consagrados na constituio ede diviso de poderes assumem-se como ncleo essencial de qualquer Estado constitucional.

    A expresso Estado de direito considerada uma frmula alem (Rechtsstaat). Ela apontapara algumas

    das ideias fundamentais j agitadas na Inglaterra, Estados Unidos e Frana. Acrescenta-lhes, porm, outrasdimenes. O Estado domesticado pelo direito um Estado juridicamente vinculado em nome da autonomiaindividual ou, se se preferir, em nome da autodeterminao da pessoa. a autonomia individual que explicaalguns dos postulados nucleares do Estado de direito de inspirao germnica. Desde logo, o Estado dedireito, para o ser verdadeiramente, tem de assumir-se como um Estado liberal dedireito. Contra a ideia deum Estado de polcia que tudo regula a ponto de assumir como tarefa prpria a felicidade dos sbditos, oEstado de direito perfila-se como um Estado de limites, restringindo a sua aco defesa da ordem esegurana pblicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais - a liberdade e apropriedade -decorriam do respeito de uma esfera de liberdade individual e no de uma declarao delimites fixada pelavontade poltica da nao. Compreende-se, assim, que qualquer interveno autoritria sobros doisdireitos bsicos - liberdade e propriedade - estivesse submetida existncia de uma lei do parlamento.

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    6.2. O ESTADO DE DIREITO DEMOCRTICO

    O Estado constitucional responde ainda a outras exigncias no integralmente satisfeitas naconcepo liberal-formal de Estado de direito. Tem de estruturar-se como Estado de direito democrtico,isto , como uma ordem de domnio legitimada pelo povo. A articulao do direito e do pno Estadoconstitucional9 significa, assim, que o poder do Estado deve organizar-se e exercer-se em termosdemocrticos. H quem no veja com bons olhos a associao de Estado de direito e democracia e nofalta mesmo quem considere antinmicos os valores e princpios transportados pelo Estado de direito e os

    valores e princpios conformadores da democracia. Vale a pena reconstruir esta discusso.

    O Estado de direito cumpria e cumpre bem as exigncias que o constitucionalismo salientou relativamente limitao do poder poltico. O Estado constitucional , assim, e em primeiro lugar, o Estado com uma constituio lirnitadora do poder atravs do imprio do direito. As ideias do governo de leis eno de homens,de Estado submetido ao direito, de constituio como vinculao jurdica do poder, forvimos,tendencialmente realizadas por instituies como as de rule of law, due process of law, Rechtsstaat, principe

    de Ia lgalit. No entanto, alguma coisa faltava ao Estado de direito constitucional- a legitimaodemocrtica do poder. Nos quadrantes culturais norte-americanos conhecido o cisma entre osconstitucionalistas (constitutionalists ) e os democratas (democrats) para significar a opo preferencialou a favor do Estado juridicamente limitado e regido por leis (constitucionalistas) ou do Estadoconstitucional dinamizado pela maioria democrtica (democratas). Na Alemanha so inmeras ascontrovrsias sobre as antinomias entre Demokratie e Rechtsstaat. Na Frana, Benjamin Cons tantcelebrizou a distino entre a liberdade dos antigos, amiga da participao na cidade, eliberdade dosmodernos, assente na distanciao perante o poder. O que significam, no fundo, estaspersistentesangstias perante a simbiose de Estado de direito e Estado democrtico no Estado constitucional?Respondem alguns que Estado de direito e democracia correspondem a dois modos dever a liberdade. NoEstado de direito concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma liberdade de defesa oude distanciao perante o Estado. uma liberdade liberal que curva o poder. Ao Estadoocrticoseria inerente a liberdade positiva, isto , a liberdade assente no exerccio democrt

    ico do poder. aliberdade democrtica que legitima o poder. A lgica especfica escondida nestas duasliberdades leva

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    mesmo os autores a falarem de duas atitudes divergentes e irreconciliveis, sacrificando-se a dimensodemocrtica por amor ao imprio do direito ou desvalorizando-se a dimenso de juridicidade estatal poramor democracia. O corao balana, portanto, entre a vontade do povo e a regra do direito. Tentemosraciona- lizar este balanceamento do corao.

    A ideia de que a liberdade negativa tem precedncia sobre a participao poltica (liberdade positiva) umdos princpios bsicos do liberalismo poltico clssico. As liberdades polticas teriam uma importnciaintrnseca menor do que a liberdade pessoal e de conscincia. No admirar, pois - comosalienta uminfluente cultor actual da filosofia poltica (John Rawls) -, que, se algum for forado a escolher entre asliberdades polticas e as restantes liberdades, o governo do bom soberano que reconhecesse estas ltimase que garantisse o domnio da lei seria prefervel. A segurana da propriedade e dos di

    reitos liberaisrepresentaria neste contexto a essncia do constitucionalismo. O homem civil precederia o homempoltico, o burgus estaria antes do cidado. O homem privado que preza a sua liberdaface dopoder ter mais liberdade do que o cidado pblico que cultiva a liberdade poltica. Masomo falar emliberdade sem se falar em legitimidade e legitimao do poder?

    O Estado constitucional carece da legitimidade do poder poltico e da legitimao desse mesmo poder. Oelemento democrtico no foi apenas introduzido para travar o poder (to check the power); foi tambm

    reclamado pela necessidade de legitimao do mesmo poder. Se quisermos um Estado constitucionalassente em fundamentos no metafsicos, temos de distinguir claramente duas coisas:(I) uma alegitimidade do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legislao no Estado de direito; (2) outra a legitimidade de uma ordem de domnio e da legitimao do exerccio do poder poltico10o Estadodemocrtico. O Estado impoItico do Estado de direito no d resposta a este ltimo prob: dondevem o poder. S o princpio da soberania popular, segundo o qual todo o poder vem dopovo, assegura egarante o direito igual participao na formao democrtica da vontade popular. Assim,princpio dasoberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de charneira entreo Estado de direito e o Estado democrtico, possibilitando a compreenso da moderna fa Estadode direito democrtico.

    9 Quem desejar aproximar-se da articulao do momento direito e do momento poder na diusso contemporneaem torno do Estado de direito dever ler duas obras fundamentais: Iohn Rawls, O Liberalismo Poltico. EditorialPresena, Lisboa, 1993, e Jurgen Habermas, Faktizitiit und Geltung, Suhakamp Verla

    g, Frankfurt/M, 1992 (h traduofrancesa, Droit et democratie. Entre faits et normes, Gallimard, Paris, 1977, etraduo inglesa, Between Facts and

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    Norms).

    10 l lnspirmo-nos textualmente em Iiirgen Habermas, Droit e democra tie. cit.,p.130

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    As consideraes anteriores permitem tambm compreender a frmula escrita do artigo 2. daConstituioda Repblica Portuguesa de 1976: A Repblica Portuguesa um Estado de direito democrtico. Issosignifica que o Estado de direito democrtico; democrtico e s sendo-o que Estadodireito; o

    Estado democrtico Estado de direito e s sendo-o que democrtico. H, assim, uma deacia deEstado de direito e um Estado de direito de democracia.

    Em termos concretos - e tendo em conta a Constituio da Repblica Portuguesa de 1976-, a dimensodo Estado de direito encontra expresso jurdico-constitucional num complexo de princpios e regrasdispersos pelo texto constitucional. Indicaremos, a ttulo exemplificativo: o princpio da constitucionalidade(artigo 3); O controlo judicial da constitucionalidade de actos normativos, a comear pelos actos de valor

    legislativo (artigos 277. e seguintes); o princpio da legalidade da administrao (artigo 266); O princpio daresponsabilidade do Estado por danos causados aos cidados (artigo 22); O princpio da independnciados juzes (artigo 218); os princpios da proporcionalidade e da tipicidade no domniode medidas depolcia ( artilgo 272). Acrescente-se a isto o regime garantstico dos direitos, liberdades e garantias (artigos17, 18,24 e seguintes), o direito de acesso aos tribunais (artigos 20 e 268), a reserva de lei em matriade restrio de direitos, liberdades e garantias (artigo 18, n 3). No seu conjunto, estes princpios e regrasconcretizam a ideia nuclear do Estado de direito - sujeio do poder a princpios e re

    gras jurdicos,garantindo s pessoas e cidados liberdade, igualdade e segurana.

    Mas o Estado constitucional tambm um Estado democrtico. A legitimidade do domnio poltico e a legitimao do exerccio do poder radicam na soberania popular (artigos 2. e 3) e na vontade popular (artigo9). Instrumentos desta soberania popular so, por exemplo, o exerccio do direito devoto atravs dosufrgio universal, igual, directo e secreto (artigos 10., 117. e 118), a participaomocrtica doscidados na resoluo dos problemas nacionais [artigo 9, alnea c)] atravs do exercciooder local edo poder regional (artigo 227). Globalmente considerados, estes princpios - e recorde-se que eles soapenas exemplificativos - revelam que o Estado constitucional s constitucional sefor democrtico. Daque, tal como a vertente do Estado de direito no pode ser vista seno luz do princpio democrtico,tambm a vertente do Estado democrtico no pode ser entendida seno na perspectiva do Estado dedireito. Tal como s existe um Estado de direito democrtico, tambm s existe um Estadodemocrtico dedireito, isto , sujeito a regras jurdicas11.

    A articulao das dimenses de Estado de direito e de Estado democrtico no moderno Estadoconstitucional democrtico de direito permite-nos concluir que, no fundo, a procla

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    mada tenso entreconstitucionalistas e democratas, entre Estado de direito e democracia, um dos mitosdo pensamentopoltico moderno. Saber se o governo de leis melhor do que o governo de homens, ou ve-versa, ,pois, uma questo mal posta: o governo dos homens sempre um governo sob leis e atravs de leis. ,

    basicamente, um governo de mulheres e de homens segundo a lei constitucional, ela prpriaimperativamente informada pelos princpios jurdicos radicados na conscincia jurdica geral. A teorizaodo Estado de direito democrtico centrou-se at aqui em duas ideias bsicas: o Estadolimitado pelo direitoe o poder poltico estatal legitimado pelo povo. O direito o direito interno do Estado; o poder democrtico o poder do povo que reside no territrio do Estado ou est sujeito soberania do Estado. Hoje os limitesjurdicos impostos ao Estado advm tambm, em medida crescente, de regras e princpios jurdicos

    internacionais. Estes princpios e regras so, em grande nmero, recebidos ou incorporados no direitointerno, fazendo parte do direito portugus (CRP, artigo 8, ns 1 e 2). Nenhum Estadopode permanecerfora da comunidade internacional. Por isso, deve submeter-se s normas de direitointernacional, quer nasrelaes internacionais, quer no prprio actuar interno. A amizade e abertura ao direito internacional umadas dimenses caracterizadoras do Estado de direito. Em termos mais concretos, a vinculao do Estadoao direito internacional comea, desde logo, pela observncia e cumprimento do chamado direito imperativo(jus cogens) internacional. Embora a doutrina ainda no tenha recortado de forma c

    lara e indiscutvel oncleo duro deste direito cogente, existem alguns princpios inquebrantavelmente limitativos do Estado.Referiremos, por exemplo, o princpio da paz, o princpio da independncia nacional, oprincpio do respeitodo direito dos povos autodeterminao, o princpio da independncia e igualdade entre ospovos, oprincpio da soluo pacfica dos conflitos, o princpio da no ingerncia nos assuntos inos de outrosEstados. Estes princpios constam de textos internacionais (declaraes, resolues, tratados) e nos textosconstitucionais mais recentes tambm no deixam de ter acolhimento como normas de conduta e comolimites jurdicos do actuar estadual. Para citarmos apenas as constituies dos pases da Comunidade dePases de Lngua Portuguesa (CPLP), o caso da Constituio da Repblica Portuguesa de 19(artigo7, n I), da Constituio da Repblica Federativa do Brasil de 1988 (artigo 4), da Constuio da RepblicaDemocrtica de So Tom e Prncipe de 1989 (artigo 12), da Lei Constitucional da Repblicde Angola de1992 (artigo 15), da constituio da Repblica de Moambique de 1990 (artigos 62 e 63),Constituio

    11 Precisamente nestes termos, J.J Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituio da Re

    pblica Portuguesa, Anotada,Coimbra Editora, Coimbra, 1993 (anotaes aos artigos 1 e 2).

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    da Repblica de Cabo Verde de 1992 (artigo 10) e da Constituio da Repblica da Guin-Biau de 1993(artigo 18).

    Em segundo lugar, os direitos fundamentais, tal como estruturam o Estado de direito no plano interno,

    surgem tambm, nas vestes de direitos humanos ou de direitos do homem: como um ncleo bsico dodireito internacional vinculativo das ordens jurdicas internas. Estado de direito o Estado que respeita ecumpre os direitos do homem consagrados nos grandes pactos internacionais (exemplo: Pacto Internacionalde Direitos Pessoais, Civis e Polticos; Pacto Internacional dos Direitos Econmicos, Sociais e Culturais),nas grandes declaraes internacionais (exemplo: Declarao Universal dos Direitos do Homem) e noutrasgrandes convenes de direito internacional (exemplo: Conveno Europeia dos Direitos doHomem). A

    vinculao do Estado pelo direito internacional , em alguns Estados, de tal forma intensa que leva asprprias constituies internas a proclamarem o direito internacional como fonte de direito de valor superior prpria constituio (exemplo: Holanda e ustria).

    Para finalizar esta referncia ao direito internacional como fonte de juridicidadedo poder estatal, mpe-seainda salientar que o direito internacional recorta hoje pr-condies polticas indispensveis implantaode um Estado democrtico de direito. De entre essas pr-condies destaca-se o princpio daautodeterminao dos povos. A autodeterminao precede o Estado de direito e precede a d

    emocracia: ela o momento verdadeiramente fundacional de qualquer comunidade constituda como Estado democrticode direito. O cumprimento das pr-condies prticas jurdico-internacionalmente reconhecidas permitetambm estabelecer uma clara indissociabilidade entre a forma de Estado interna e asua imagem naordem jurdica internacional.

    O Estado constitucional democrtico de direito um ponto de partida e nunca um ponto de chegada. Comoponto de partida, constitui uma tecnologia jurdico-poltica razovel para estruturaruma ordem de seguranae paz jurdicas. Mas os esquemas poltico-organizatrios, ou seja, as formas de organizao poltica, nochegaram ao fim da histria. A prova mais forte desta afirmao encontramo-la nos actuais fenmenos deintegrao interestatal ou de organizaes polticas supra-estaduais (UE, NAFTA, MERCOSUL). O Estadoconstitucional democrtico de direito insere-se agora - referimo-nos, obviamente,ao Estado portugus -numa comunidade jurdica mais vasta, que designaremos por comunidade jurdica de Estadosconstitucionais democrticos de direito. Esta insero dos Estados numa comunidade jurdica mais ampla

    tem importantes con sequncias a nvel da construo jurdico-constitucional do Estado.

    O Estado de direito democrtico-constitucional tornou-se, como vimos, um paradigma

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    de organizao elegitimao de uma ordem poltica. A deciso plasmada na constituio de se estruturar uemafundador e organizatrio da comunidade poltica segundo os cnones do Estado de direito democrticosignifica, pelo menos, a rejeio de tipos de Estado estruturalmente totalitrios, autoritrios ou autocrticos.

    esta a razo que nos permite dizer que nos pases membros da comunidade de Pases de LnguaPortuguesa (CPLP) se descortina progressivamente uma razo pblica tendente realizao de umacolectividade poltica de cidados iguais, regidos por uma constituio e por leis legitimadoras deinstituies polticas bsicas. Nesse sentido, a razo pblica de um governo sob o impriireito esob o mando de mulheres e homens ancorado em esquemas de legitimao democrtica encontra a suaformulao lingustica na expresso Estado de direito democrtico. A Repblica PortuguesaEstado

    de direito democrtico (CRP, artigo 2), A Repblica Federativa do Brasil [...] constitui-se em Estadodemo- crtico de direito [ ...] (Constituio brasileira de 1988, artigo 1), A Repblicmocrtica de SoTom e Prncipe um Estado de direito democrtico (Constituio de 1990, artigo 6.), AdeAngola um Estado democrtico de direito [ ... ] (Lei Constitucional da Repblica de Angola de 1992,artigo 2), A Repblica de Cabo Verde organiza-se em Estado de direito democrtico [...] (Constituio deCabo Verde de 1992, artigo 2, n 1), A Repblica da Guin-Bissau um Estado de democracconstitucionalmente instituda [...] (Constituio da Guin-Bissau de 1993, artigo 3).

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    6.3- ESTADO DE DIREITO E ESTADO SOCIAL

    O Estado de direito no pode nem deve ser vermelho. O Estado de direito no pode nemdeve serum Estado social. O Estado de direito no pode nem deve ser um Estado-providncia. OEstado de direitono pode nem deve ter tarefas ou fins econmicos, sociais e culturais. Por estas e outras palavras pretende-se deslegitimar qualquer Estado que se autoproclame Estado programaticamente vinculado realizao dajustia social, da igualdade, da solidariedade, dos direitos econmicos, sociais e culturais. No seria umasimples coincidncia que os Estados totalitrios e autoritrios se revelassem sempre sensveis

    constituio do social (Constituio sovitica de 1936; Fuero del Trabajo de 1938 e Fuerode los Espanolesde 1945, ou seja, as leis fundamentais franquistas, Carta del lavoro de 1927, alei social do fascismoitaliano; Constituio portuguesa de 1933).

    A crtica do social formulada a pretexto do Estado de direito retoma a crtica do totalitarismo, nohesitando mesmo algumas correntes polticas em ver no Estado de bem-estar ou no Estado-providnciauma manifestao clara da deriva totalitria. O Estado, sob a mscara de Estado-providncia, alarga assuas malhas interventoras e asfixiantes, constituindo o perigo maior das liberda

    des. Se o direito do Estadode direito serve para alguma coisa, essa a de constituir uma espcie de linha Maginot contra ototalitarismo social disfarado em providncia do Estado. Numa palavra: o direito contra o Estadoobriga a pensar o Estado sem cargas ou encargos sociais. Perguntar o leitor: quempensa assim? Muitagente, mas com especial relevo para os novos filsofos que invocam o direito a favordas liberdades econtra o arquiplago Goulag, que produziu, no a felicidade, mas pavilhes psiquitricodissidentes .

    Os direitos sociais realizam-se - argumenta-se ainda - melhor sem o Estado do que atravs do Estado. Aexperincia demonstrou que a efectivao dos prprios direitos econmicos, sociais e culturais atravs daordem livre do mercado a nica forma de garantir a justia distributiva sem pr em perigo a liberdade. No ao Estado, e muito menos a um Estado de direito, que pertence impor e realizar fins sociais. No aoEstado, e muito menos a um Estado de direito, que pertence a regulao da ordem dosbens. O direito, overdadeiro direito, mais uma auto-regulao social do que uma regulamentao estatal. Quem discorreassim?, perguntar tambm o leitor. Muita gente, mas sobretudo os pensadores e econo

    mistas neoliberais.O Estado de direito pressupe uma sociedade civil onde desabrochem as potencialidades da inovao e

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    criatividade. O Estado de direito reclama o indivduo autnomo e no o administrado igual e submisso mquina estatal.

    Como talvez se intuir das palavras precedentes, o Estado de direito converteu-seem tema de filosofia poltica, em postulado de economia poltica e em palavra de combate de luta ideolgica.

    O direito contra oEstado e o direito sem Estado so as frmulas lingusticas condensadoras das principais. Apesar de tudo, amaior parte dos Estados de direito do mundo ocidental - designadamente da Comunidade Europeia -insistem na bondade do Estado social. Algumas das crticas - cumplicidade do Estado-providncia comconstrues autoritrias e totalitrias, superioridade da economia de mercado sobre a economia planificada- afiguram-se hoje como inquestionavelmente pertinentes. Mas uma coisa um Estadosocial ou Estadosocialista de no direito e outra, muito diferente, um Estado social de direito. Os

    princpios bsicos doEstado social continuam incontornveis: equilbrio das clivagens sociais, estmulos regulativos e materiaisdo Estado a favor da justia social, reajustamento das condies reais prvias aquisiobens materiaise imateriais indispensveis ao prprio exerccio de direitos, liberdades e garantias pessoais,estabelecimento de regras jurdicas em prol do emprego e dos direitos dos trabalhadores.

    O ideal de uma ordem espontnea - quaisquer que sejam as frmulas lingusticas para arevelar, comomo invisvel, equilbrio ciberntico, auto-regulao -, que do direito reclama apen

    proces suais do jogo e em tudo o mais repousa no senhorio das vontades individuais e da prossecuo dosrespectivos interesses, estranho ordem constitucional portuguesa e mesmo europeia. Justifiquemosporqu.

    No ordenamento jurdico-constitucional portugus no h excesso de estatalidade social.Pelo contrrio. hdfice. Se por estatalidade social se entender o grau de interveno estatal na esferado bem-estar daspopula ess, ento o que pode dizer-se que o Estado de direito

    social s ser Estado de direto se for social. As tentativas para recriar um Estado absentista ou umEstado subsidirio numa poca de agressividade social e de globalitarismo ideolgico edem arazoabilidade e justia do Estado social de direito. Como escreveu recentemente umilustreconstitucionalista italiano12, este tipo de Estado a tentativa qualitativa paratornar compatvel odesenvolvimento econmico com uma ordem social justa na qual se definam antecipadamente asdimenses constitucionais e essenciais dessa ordem, em vez de se acreditar nos acertos resultantes da

    12 Quem quiser ir mais longe encontrar uma breve mas excelente exposio destes problemas num livro em lnguafrancesa de autoria de Iac- Jacques Chevallier (Cf. Iacques Chevallier, L' tat de

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    droit, Montchrestien, 2~ ed., Paris,1994).

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    mera concorrncia de foras econmicas. Se quisssemos adoptar uma frmula de sntese, podmosdizer que o Estado social de direito s ser Estado de direito se, como reclamavam os liberais e exigemagora os neoliberais, reconhecer a funo estruturante dos princpios fundamentais dodireito civil assente

    nos direitos da vontade dos sujeitos econmicos (ou seja, dos proprietrios, empresrios) e dos princpiosnorteadores desses direitos (a livre iniciativa econmica e a autonomia contratual). Contudo, o Estado dedireito s ser social se no deixar de ter como objectivo a realizao de uma democraciaeconmica, sociale cultural e s ser democrtico se mantiver firme o princpio da subordinao do poder ecico aopoder poltico. As tentativas de expurgao do social com o intuito de destilar um Estado de direitoquimicamente puro, isto , um Estado sem o compromisso da socialidade, mais no so doque coberturas

    ideolgicas para polticas econmicas e sociais onde no cabem deveres de solidariedadee de incluso dooutro

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    6.4 - ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE JUSTIA

    Ansivamos pela justia e veio apenas o Estado de direito. Esta exclamao provocatriamadissidente da ex-Repblica Democrtica Alem (ex-DDR) aparece em obras recentes sobreo Estado dedireito. Em termos cruis ela coloca a questo: um Estado de direito no

    automaticamente um Estado de Justia ? O que que um Estado de justia tem que um Estado de direitono tem ou pode no ter?

    Comecemos por afastar caricaturas do Estado de direito. A contraposio da justia aoEstado de direito

    pode ser apenas um grito de alarme contra os conglomerados de leis, pargrafos, regulamentos, circulares,colectneas de sentenas e de comentrios, em suporte clssico ou em suporte elctrnico, prolixos,interminveis e obscuros, produzidos pelos actores visveis dos palcos do direito -polticos, juzes,advogados, professores. O que o cidado normal quer acentuar o bom direito, talvezvazado em tbuasda lei com poucos mandamentos, talvez revelado em sentenas de tribuanis proferidas por bons juzes.Neste bom senso de bom gosto das mulheres e homens da cidade republicana vai implcita uma crticacontra aquilo que o oposto de Estado de direito, mas que, por vezes, o Estado de

    direito parece ser.Referimo-nos ao Estado de segredo do direito e do direito secreto, do direito hermtico, s acessvel aosnovos e novssimos mestres dos orcujlos - os juristas tcnicos, os consultores internacionais e osdecifradores de directivas comunitrias.

    Voltemos pergunta atrs formulada: o que que o Estado de justia tem que o Estado dedireito no tem?A resposta dos autores transporta a maior parte das vezes aquilo que se deseja:o Estado de direito , pordefinio, um Estado de justia. Convm desfazer confuses. Muitas vezes o Estado de direito identificado com as leis postas e impostas pelo Estado e com os direitos regulados nos termos da lei. Trata-se de uma viso formal do Estado de direito ao qual bastaria a existncia de uma hierarquia de normasjurdicas regularmente editadas pelos detentores de poderes legislativos. Neste sentido, pode haver umEstado de direito formal, mas no h um Estado de justia.

    O Estado de direito aproximar-se- de um Estado de justia se incorporar princpios evalores materiais quepermitam aferir do carcter justo ou injusto das leis, da natureza justa ou injusta das instituies e do valor

    ou desvalor de certos comportamentos. Ningum justo ou injusto sozinho. O mundo, ele prprio, repousasobre trs pilares que os sbios reconduzem verdade, justia e concrdia. S assim t

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    tidoafirmaes como isto justo, isto injusto, no h justia, vivemos num mundo de inque a justia? A pergunta j foi formulada h mais de 2000 anos e a ela procuram responder as teorias dajustia. Aqui far-se- apenas uma aproximao deliberadamente no dogmtica.

    Em primeiro lugar, um Estado de direito que se pretenda estruturar em termos de

    Estado de justia ter deincorporar o princpio da igualdade como princpio de justia. Podemos arranjar vrias formulaes paraeste princpio: direito a ser considerado um igual por todos os outros, direito aser tratado com igual respeitoe considerao, direito a igual distribuio de bens e igualdade de oportunidades, direito a iguaiscompetncias e possibilidades na comunicao poltica, direito a proteco e garantia iguade direitos edeveres, incluindo os das minorias.

    Qualquer que seja a ideia de justia, ela pressupe algum que a faa valer. Ao Estado o

    organizaespolticas que entre os sculos XIII e XVII se desenvolveram no continente europeu chamou-se, e no poracaso, Estados de justia, ou melhor, de jurisdio. De entre as funes que competiam aopoder poltico, amais importante era a de administrar a justia reclamada pelos povos, fosse ela feita directamente pelosreis, pelos tribunais ou at por rgos colegiais ( parlamentos ). Mesmo que a importncda funo dajustia tenha sido relativizada pela supremacia do parlamento, eficcia da administrao sempre resta umbastio incontornvel de qualquer Estado de direito informado pelos princpios da justia. Referimo-nos

    existncia de tribunais independentes que atravs de um processo justo digam o bom direito para ascontrovrsias jurdicas.

    Fazer justia atravs de tribunais e mediante um procedimento justo poder traduzir-senum faa-sejustia aplicando a lei dura. E alei dura pode, ela prpria, transportar contedos injustos. Aqui vem revelar-se outra ineliminvel dimenso do Estado de direito enquanto Estado de justia. As duras leis no podemaniquilar a dignidade da pessoa humana, no podem eliminar o ncleo essencial dos direitos, liberdades egarantias, no podem disfarar medidas discriminatrias contra cidados ou grupos de cidados. Fazerjustia aqui desaplicar as leis injustas violadoras de direitos e princpios jurdicosfundamentais. Os juzespodem e devem ter acesso directo a estes princpios e a estes direitos, hoje em dia consagrados na maiorparte das constituies e nos tratados internacionais.

    O Estado de justia compreende-se hoje como Estado de direito social. Podemos inverter a formulao: oEstado de direito s Estado de direito se for um Estado de justia social. J deixmos entrever estesentido quando atrs se caracterizou o Estado social de direito. Neste contexto, e

    qualquer que seja aformulao e justificao terica e econmica das desigualdades, parece indiscutvel que utado de

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    justia tem de encarar a excluso social como um dfice humano que corri o prprio Estadode justia. A

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    marginalizao social cria marginalidades no direito: defende melhor os seus direitos quem tiverpossibilidades materiais. A excluso social tambm excluso do direito e um Estado dedireito que sepretenda um Estado de justia tem de ser algo mais do que um Estado que encarceraos excludos

    fazendo justia ou um Estado que exclui os excludos da justia (os estrangeiros, as comunidadesmigrantes).

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    6.5- ESTADO DE DIREITO E ESTADO AMBIENTAL

    Comea a divulgar-se na literatura poltica a frmula alem Estado de direito de ambiente(Umweltrechts- staat). Esta expresso d guarida s exigncias de os Estados e as comunidades polticasconformarem as suas polticas e estruturas organizatrias de forma ecologicamente auto-sustentada. Dequalquer forma, o Estado ambiental ter de ser um Estado de direito. Isto tem grande relevo prtico. Afasta-se de qualquer fundamentalismo ambiental que, por amor ao ambiente, resvalasse para formas polticasautoritrias e at totalitrias com desprezo das dimenses garantsticas do Estado de direito.

    A qualificao de um Estado como Estado ambiental aponta para duas dimenses jurdico-pocasparticularmente relevantes. A primeira a obrigao de o Estado, em cooperao com outrosEstados ecidados ou grupos da sociedade civil, promover polticas pblicas (econmicas, educativas, deordenamento) pautadas pelas exigncias da sustentabilidade ecolgica. A segunda relaciona-se com odever de adopo de comportamentos pblicos e privados amigos do ambiente de forma a dar expressoconcreta assumpo da responsabilidade dos poderes pblicos perante as geraes futuras

    O Estado ambiental estrutura-a, como j se sugeriu, em termos de Estado de direito eem termosdemocrticos. Estado de direito do ambiente quer dizer indispensabilidade das regras e princpios do Estadode direito para se enfrentarem os desafios impostos pelos desafios da sustentabilidade ambiental. Mesmoque haja necessidade de algumas novidades no esquema de instrumentos jurdicos - mais limitaes propriedade em prol de reservas ecolgicas, mais provisoriedade e precariedade nosactos administrativosjustificados pelas vigilncias ecolgicas, mais retroactividade eventualmente lesivade situaes subjectivasem nome da proteco do ambiente contra cargas poluentes acumuladas -, tudo isso pode e deve ser feitosem postergao das regras bsicas da juridicidade estatal. No nos admirar tambm a inserabilidadedo Estado ambiente do princpio democrtico. A afirmao desta nova dimenso do Estado pressupe odilogo democrtico, exige instrumentos de participao, postula o princpio da cooperaoasociedade civil. O Estado de ambiente constri-se democraticamente de baixo para cima; no se dita emtermos iluminsticos e autoritrios de cima para baixo.

    Finalmente, o Estado de ambiente um Estado de justia ambiental. De novo, a justia

    aponta paraexigncias de igualdade, sob pena de os riscos ambientais representados por indstrias, resduos,

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    descargas, serem deslocados para zonas deprimidas ou para Estados sem defesas ecolgicas. As frmulasplsticas utilizadas nos direitos do ambiente, na legislao interna, internacional ecomunitria, como as dopoluidor-pagador, produtor- -poluidor-pagador, proibio de turismo de resduos, precondenar algumas normas de conduta ambiental onde, justamente com exigncias tcnicas e cientficas,

    no so alheios princpios materiais de justia ambiental.

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    PARTE II : AS DIMENSES ESSENCIAIS DO ESTADO DE DIREITO

    1 - ESTADO DE DIREITO: O IMPRIO DO DIREITO

    Vamos sugerir uma aproximao pergunta central deste pequeno livro: quais so as dimensesessenciais de um Estado de direito? Um Estado pode considerar-se Estado de direito quando: (1) estsujeito ao direito; (2) actua atravs do direito; (3) positiva normas jurdicas informadas pela ideia de direito.

    O Estado deve subordinar-se ao direito. Estar sujeito ao direito significa que opoder poltico no um poderlivre, desvinculado, transcendente. O direito conforma os esquemas de organizao dopoder, sujeita-os adeterminadas regras. Numa palavra: o direito curva o poder, colocando-o sob o imprio do direito. Sob oponto de vista prtico, isso significa que o Estado, os poderes locais e regionais, os rgos, funcionrios ouagentes dos poderes devem observar, respeitar e cumprir as normas jurdicas em vigor, tal como o devemfazer os particulares. O Estado, os govemantes, as autoridades, obedecem s leis,no esto colocados

    sobre as leis, mesmo que elas tenham sido criadas ou produzidas pelos rgos do poder.

    O Estado actua ou age atravs do direito. Tambm se compreende esta dimenso jurdica doEstado dedireito. O Estado desenvolve actividades, desempenha tarefas, prossegue fins. Oexerccio dos poderespblicos atravs do direito significa precisamente que esse exerccio s pode efectivar-se por meio deinstrumentos jurdicos institucionalizados pela ordem jurdica. Mais do que isso: no um qualquer rgo,um qualquer titular de rgo, um qualquer funcionrio ou um qualquer agente da autoridade que, no uso depoderes pblicos, pode praticar actividades, cumprir tarefas, realizar fins. S quemesteja habilitado, squem tenha uma competncia previamente definida por regras jurdicas, est apto, num qualquer Estado dedireito, a desempenhar funes com o selo de autoridade pblica. Os exemplos a esto no nossoquotidiano. S pode, por exemplo, negociar um tratado internacional quem, nos termos da constituio,disponha dessa competncia. A feitura de leis exige um ttulo de habilitao ou uma definio decompetncia geralmente plasmada em normas constitucionais. A restrio de direitos, liberdades e

    garantias no pode ser feita por um qualquer rgo de soberania atravs de uma qualquerforma. S a leieditada pelos rgos constitucionalmente competentes pode estabelecer uma disciplina

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    restritiva. Osburocratas da administrao no inventam os modos e procedimentos de agir, antes devemsubordinar-seaos princpios e normas contidos em leis ou outros diplomas com valor e fora regulamentadora. Os juzesno resolvem litgios de um modo qualquer, antes devem seguir caminhos legalmente regulados e

    vulgarmente conhecidos por processos jurisdicionais.

    O Estado de direito informado e conformado por princpios radicados na conscincia jurdica geral edotados de valor ou bondade intrnsecos. No basta, para estarmos sob o imprio do direito, que o Estadoobserve as normas que ele ditou e actue atravs de formas jurdicas legalmente positivadas. As leis podemser ms, as formas de actuao revelar-se arbitrrias, o contedo das medidas estatais surgir aos olhos do

    particular como mau direito, como direito injusto. aqui que muitos autores agitama ideia de direito,devendo o Estado pautar-se pela ideia de direito. Esta ideia surge, muitas vezes, associada arepresentaes ou imagens de direito abstractas e idealizadas, dificilmente captveispelo homem comum.Mas o homem comum intui perfeitamente o que o bom direito, o que o direito justo,que soprincpios materialmente valiosos. Assim, por exemplo, leis que consagrem a tortura ou a adopo de penasou tratos cruis, degradantes ou desumanos no so leis boas e muito menos justas. Umdo queadopte leis privativas da cidadania dos seus cidados relegando-os para o terreno

    dos sem ptria(aptridas) no um Estado de direito, porque leis impositivas da morte cvica e polticade cidados terode considerar-se actos autoritrios com contedo perverso. Um Estado que regula a privao da liberdadedos particulares permitindo que qualquer autoridade de polcia em quaisquer situaescoloque as pessoasna priso atenta contra a liberdade e a segurana. Um Estado que impede a liberdadede expresso einformao editando leis da rolha ou leis de censura adopta normas restritivas de direos e liberdadescom contedo injusto. Os exemplos podiam multiplicar-se. Por isso no um Estado de direito porque odireito que corre nas veias das regulaes das autoridades mau, perverso. O leitor cpreender queestamos aqui no ceme do Estado de direito. Merece a qualificao de Estado de direito o Estado - e sesse! - que em todos os seus actos jurdicos, em todos os seus esquemas organizatrios, em todos osseus procedimentos, incorpore os princpios jurdicos que, de forma indisponvel por qualquer poder, dovalidade ou legitimidade a uma ordem jurdica. Em sntese: que o torem intrinsecamente um Estado dedireito. Neste sentido falam os autores de Estado material de direito.

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    2 -ESTADO DE DIREITO UM ESTADO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

    O Estado de direito um Estado de direitos fundamentais. O leitor ficar, porventura, e uma vezmais, intrigado. No ser bvio que um Estado de direito tem no sistema de direitos fundamentais o seuprprio corao? Acontece, neste domnio, aquilo que se verificou durante muitos anos com a democracia eque levou um autor ingls conhecida ironia relativamente ao Estado de direito continental: eles - oscontinentais - pensam ser possvel um Estado de direito sem democracia! Do mesmo modo, geraes egeraes de juristas glosaram o tema do direito no Estado de direito sem nunca teremencontrado os

    direitos fundamentais.Verdade seja dita, a filosofia do constitucionalismo sugeria precisamente o contrrio, ou seja, aindissociabilidade de Estado de direito e direitos fundamentais. Tracemos uma breve histria. A Declarationof Rights da Virgnia, de 1776, ergue os direitos e liberdades a base e fundao do governo. No mesmosentido, a Declarao de Independncia dos Estados Unidos, do mesmo ano, localiza tambmos direitos eliberdades do indivduo numa esfera jurdica que est antes e est sobre o direito criado ou posto porqualquer legislador. Mesmo que esse legislador se considere e esteja democratica

    mente legitimado. Maisdo que isso: os direitos valem como direito positivo, ou seja, como direito juridicamente vigente, garantidoquer pela constituio, quer pela lei. Na qualidade de patrimnio subjectivo indisponvel pelo poder, so osdireitos e liberdades que limitam a lei, no a lei que cria e dispe dos direitos fundamentais. Se necessriofor, os tribunais devero desaplicar as leis violadoras de direitos fundamentais constitucionalmentegarantidos (fiscalizao da constitucionalidade). Isso passou-se nos Estados Unidos.No continente europeutambm se proclamaram solenemente os direitos do homem e do cidado. A evoluo dos esquemasPoltico-constitucionais conduziria, porm, os direitos do homem e do cidado a uma situao deverasparadoxal. Os direitos do homem e do cidado transportavam, tambm aqui, os pilaresda fundao doEstado de direito moderno ao ponto de se ter escrito que um pas sem declarao de direitos (a diviso depoderes) no tinha sequer constituio. Como tantas vezes aconteceu, as grandes declaraes de direitos eo catlogo de direitos fundamentais plasmados nas constituies bastaram-se com a bondade das suasmensagens e descuraram os modos, os procedimentos e os processos de garantir efectivamente os

    direitos. Isto conduziu a dois modos de eroso da fora normativa dos direitos e liberdades. Por um lado, asdeclaraes de direitos atingiam as alturas das proclamaes filosficas, eternas e imorre

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    doiras,esquecendo que os homens e os cidados eram indivduos bem situados no terreno da cidade. Alm deserem reconduzidos categoria de exortaes retricas, os direitos e liberdades caam, por outro lado, etambm por isso, nos braos criadores do legislador. Expliquemo-nos. Sendo mais filosofia do que direito,

    os direitos e liberdades no valiam de per si, no radicavam posies subjectivas individuais juridicamentegarantidas. S quando o legislador fizesse um cdigo ou uma lei onde se regulamentassem os direitos,ento sim, os particulares beneficiavam de proteco jurdica. esta a clebre doutrina dregulamentaodas liberdades. As consequncias prticas parecem evidentes - os direitos so criadospela lei e s depoisde regulamentados por ela podero ser juridicamente invocados. O centro do sistemade posiessubjectivas no se localiza nos direitos, mas nas regulamentaes do legislador. O Estado de direito, em

    rigor, reconduzia-se a um Estado legicntrico e os direitos e liberdades, longe deserem consideradosdireitos constitucionalmente fundados semelhana dos direitos e liberdades americanos, degradavam-se adireitos criados por leis: as leis e os cdigos iam reflectindo os esquemas de domnio, bem podendo dizer-se que durante muito tempo se protegeram mais os direitos dos privados do que osdireitos dos cidados. Oindivduo dispunha de leis razoveis para a defesa da sua propriedade, da sua indstria, do seu estado civil,dos seus contratos, mas faltavam-lhe os espaos de respirao para exercer direito deassociao, dereunio, de demonstra- o, de sufrgio, de liberdade de imprensa. O Estado de direito p

    odia ser um Estadode liberalismo civil, mas no era um Estado de liberalismo poltico.

    Este breve excurso tornou-se necessrio para compreendermos hoje o Estado de direito como Estado dedireitos fundamentais. No vale a pena discutir - embora isso constitua um dos temas mais frequentadosda filosofia poltica actual - se o Estado de direito d guarida apenas a direitos fundamentais de cariz liberale se apenas com base nestes que se legitima um Estado. J vimos que a nossa opiniono essa. OEstado de direito s pode ser Estado de direito se for tambm um Estado democrtico eum Estado social.Nesta perspectiva, o Estado de direito transformou-se em Estado de direitos pessoais, polticos e sociais.

    Dizer que o Estado de direito um Estado de direitos significa, desde logo, que eles regressam ao estatutode dimenso essencial da comunidade poltica. No admira, por isso, a sua constitucionalizao. Estaremos direitos na constituio significa, antes de tudo, que beneficiam de uma tal dimenso defundamentalidade para a vida comunitria que no podem deixar de ficar consagrados,na sua globalidade,na lei das leis, ou lei suprema (a constituio). Significa, em segundo lugar, que,

    valendo como direitoconstitucional superior, os direitos e liberdades obrigam o legislador a respeit-los e a observar o seu ncleo

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    essencial, sob pena de nulidade das prprias leis.

    A constitucionalizao dos direitos revela a fundamen talidade dos direitos e reafirma a sua positividade nosentido de os direitos serem posies juridicamente garantidas e no meras proclamaes filosficas,

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    servindo ainda para legitimar a prpria ordem constitucional como ordem de liberdade e de justia. Umaoutra dimenso deve, porm, ser revelada: no basta a consagrao de direitos numa qualquerconstituio. A histria demonstra que muitas constituies ricas na escritura de direitoseram pobres na

    garantia dos mesmos. As constituies de fachada, as constituies simblicas, as conlibi, as constituies semnticas, gastam muitas palavras na afirmao de direitos, mapodemfazer quanto sua efectiva garantia se os princpios da prpria ordem constitucionalno forem os de umverdadeiro Estado de direito. Isto conduz-nos a olhar noutra direco: a dos princpios, bens e valoresinformadores e conformadores da juridicidade estatal.

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    3 - O ESTADO DE DIREITO OBSERVA O PRINCPIO DA JUSTA MEDIDA

    O Estado de direito um Estado de justa medida porque se estrutura em tomo de umprincpiomaterial vulgarmente chamado princpio da proibio do excesso. discutida a histria deste princpio, ouseja, saber quando e como ele se transformou em princpio orientador de todas as actividades dos poderesestaduais. Aqui basta reter esta ideia bsica: atravs do recurso a princpios como osda proibio doexcesso, da proporcionalidade, da adequao, da razoabilidade, da necessidade, pretendeu-se colocar ospoderes pblicos - desde o clssico poder agressor, identificado com o executivo e a administrao, at

    aos poderes legislativo e judicirio - num plano mais humano e menos sobranceiro em relao aoscidados. Visava-se sobretudo acentuar as dimenses das garantias individuais e da proteco dos direitosadquiridos contra medidas excessivamente agressivas. restritivas ou coactivas dos pores pblicosna esfera jurdico-pessoal e jurdico-patrimonial dos indivduos.

    Em primeiro lugar. est vinculado ao princpio da proibio do excesso o prprio legislador. J o dissemos erepetimos agora: a lei no se identifica com o direito e. por isso. a lei no sentido de lei em conformidade como princpio do Estado de direito ter de ser uma lei no arbitrria, no excessiva, no de

    ecessria, queter como princpio e limite o ncleo essencial dos direitos, liberdades e garantias.O princpio da proibiodo excesso surge aqui como um princpio intrinsecamente informador da legislao. Eisalguns exemplos. Olegislador no deve considerar criminalmente punvel uma aco ou omisso se esta aco ousso notiver dignidade suficiente para ser considerada crime. O legislador no deve declarar punvel com pena depriso uma aco ou omisso quando outra pena (exemplo: multa) puder ser aplicada cumprindo osobjectivos de preveno e reparao.

    O princpio de proibio do excesso, como regra de razoabilidade, de proporcionalidadee de necessidade,tem um campo de aplicao privilegiado em sede do exerccio de poderes pblicos administrativos. Desdelogo, no tradicional campo do direito de polcia. Como diz a nossa Constituio, as medidas de polcia soas previstas na lei, no devendo ser utilizadas para alm do estritamente necessrio.A utilizao, porexemplo, de armas de fogo para proibir uma demonstrao , salvo caso de legtima defesa,inequivocamente excessiva e desnecessria. A imposio de uma medida administrativa deencerramento

    de um estabelecimento comercial por colocar venda produtos sem tabelamento de preos , a todos osttulos, uma medida desproporcional, desnecessria, no adequada.

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    No mbito da aplicao do direito pelos tribunais h muito que a medida da pena e a adopde outrasmedidas judiciais tm presente o princpio da razoabilidade, proporcionalidade e necessidade. Assim, porexemplo, a priso preventiva no deve ser decretada nem mantida sempre que possa seraplicada outra

    medida mais favorvel prevista na lei.

    O princpio de proibio do excesso, alm de ser um princpio que limita em termos preveos ospoderes pblicos, sobretudo quando estes adoptam medidas sancionatrias ou medidas restritivas dedireitos, liberdades e garantias, tambm um princpio de controlo. Recorrendo ideiade razoabilidade,adequao, proporcionalidade e necessidade, os tribunais - e agora tam- bm o Tribunalde Justia dasComunidades - podem fiscalizar o uso dos poderes e a justia das medidas adoptadaspor estes poderes,

    contribuindo para um Estado de direito mais amigo de justia e dos direitos fundamentais.

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    4 -O ESTADO DE DIREITO GARANTE O PRINCPIO DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAO

    A ideia da subordinao lei dos titulares de rgos, funcionrios e agentes do Estado emaispessoas colectivas pblicas soa de um modo familiar ao cidado comum. O sentido desta subordinaoparece estar presente em frmulas da linguagem corrente, tais como o nosso governo um governo deleis e no de homens, ningum est acima da lei, os funcionrios devem obedecer e execlei, asleis fazem-se para se cumprirem. Estes enunciados nem sempre exprimem com rigor osignificado daproeminncia da lei no Estado de direito. Impe-se, por isso, um breve aceno ao princpio da legalidade

    como princpio bsico do Estado de direito.Comecemos por uma advertncia. No faremos uma digresso aprofundada em torno deste princpio,limitando-nos a salientar as dimenses bsicas que ainda hoje se nos afiguram importantes. Por outro lado,tambm aqui o princpio da legalidade j no o que era. A lei perdeu prestgio e import. As razesso vrias. Como atrs se salientou, as leis transportaram, por vezes, elas prprias oslenhos da injustia edo no direito. Noutros casos, as leis enredaram-se na soluo de casos concretos, perdendo as dimensesmgicas da generalidade e da abstraco. Acresce que, perante as derivas do legalismo

    estatal, asmodernas constituies reivindicam o seu carcter de lei superior, vinculativo de todos os poderes doEstado, inclusivamente dos poderes que fazem as leis. A lei perde ainda proeminncia no contexto decomunidades supranacionais e de frmulas de organizao jurdica assentes no princpio daautoregulao.Numa palavra: a lei deixou de ser o princpio e o fim da ordem jurdica. Sendo assim, pergunta-se: tersentido hoje falar do princpio da legalidade como um princpio bsico do Estado de direito? A resposta inequivocamente afirmativa. Vejamos porqu.

    A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porqueela permanece comoexpresso da vontade comunitria veiculada atravs de rgos representativos dotados de legitimaodemocrtica directa. Por outras palavras: a lei emanada dos rgos da sociedade - os parlamentos -converte-se ela prpria em esquema poltico revelador das propostas de conformao jurdico-polticaaprovadas democraticamente por assembleias representativas democrticas. Quem no entender estesignificado da prevalncia da lei pode fazer glosas sobre o Estado de direito, masno sabe o que um

    Estado de direito democrtico.

    A lei serve de fundamento ao exerccio de outros poderes do Estado: a administrao dev

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    e obedecer lei, os tribunais esto sujeitos lei. Neste sentido se afirma que o poder vem da leique no hexerccio legtimo do poder pblico sem fundamento na lei. A refraco desta ideia no querespeita administrao do Estado e dos poderes regionais e locais consubstancia-se vulgarmente no princpio da

    legalidade da administrao. Em termos meramente aproximativos, diz-se que toda a administrao deveobedecer lei, proibindo-se qualquer actividade livre ou juridicamente desvinculada. Consequentemente,quaisquer actividades administrativas contra a lei violam o princpio da legalidade inerente a qualquerEstado de direito. Mas mais do que isso: a lei d fundamento aos chamados poderesadministrativos.Ilustremos esta ideia atravs do recorte de trs poderes administrativos fundamentais: o poderregulamentar, o poder de polcia e o poder expropriatrio. No qualquer autoridade quetem o poder de

    fazer regulamentos. Dos regulamentos urbansticos aos regulamentos de servio, passando pelosregulamentos de polcia, todo o poder regulamentar tem de estar baseado directamente na lei fundamental(a constituio) ou numa lei editada nos termos constitucionais. Do mesmo modo, no qualquer rgo daadministrao que, a pretexto da salvaguarda da ordem e da tranquilidade pblicas, pode arrogar-se opoder de polcia. Este vem da lei que define quem tem poderes de polcia e individualiza as medidas depolcia. Finalmente, o poder de expropriar bens ou requisitar bens ou servios perfilar-se- como poderabusivo se no existir uma ou vrias leis a regular o poder, a forma e os requisitos

    da expropriao ou darequisio.

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    5 - O ESTADO DE DIREITO RESPONDE PELOS SEUS ACTOS

    Vo longe as frmulas do Estado absoluto: o Estado no comete faltas, o rei no pode erEstado no civilmente responsvel,o Estado no est sujeito responsabilidade por danecedo se imps como corolrio do Estado de direito a seguinte idia: o Estado deve atuar como pessoa debem, no praticando ele prprio actos ilcitos, mas, se, por qualquer motivo, o Estadoe as demais pessoascolectivas pblicas, bem como os titulares dos rgos, funcionrios e agentes, praticarem actos ilcitoslesivos dos direitos e interesses dos particulares, ento, pelo menos, que seja reconhecido a estes o direito

    de ressarcimento pelos danos imputados s autoridades pblicas. Por outras palavras:o Estado (emsentido amplo) civilmente responsvel por danos incidentes na esfera jurdica dos particulares. No seexige sequer aprova de uma culpa pessoal dos titulares de rgos, dos funcionrios ouagentes. Numasociedade complexa e com organizaes complexas e, sobretudo, numa sociedade de risco existem fortesprobabilidades de os servios funcionarem mal, provocando danos mais ou menos graves aos cidadossem que a causao dos prejuzos possa ser imputada a um funcionrio ou agente individualmentedeterminado. Os gritantes exemplos da utilizao de sangue contaminado e do deficien

    te funcionamento deservios de hemodilise em estabelecimentos hospitalares revelam a importncia do instituto daresponsabilidade civil directa do Estado por danos causados aos utentes do servio. Do mesmo modo, asagresses - inclusive mortais - provocadas por servios de polcia apontam para a mesma ideia. O Estadodeve pagar o mal que faz. A haver culpa de algum - e essa culpa deve apurar-se sempre, na medida dopossvel, para efeitos de sanes disciplinares e criminais - , ela no pode servir de libi para o Estado seeximir a suportar os prejuzos que originou. A Constituio Portuguesa (artigo 22) no deixa hoje quaisquerdvidas quanto responsabilidade civil directa do Estado por danos ilicitamente causados aos particulares.Nalguns casos, o Estado intervm na esfera jurdico-patrimonial dos cidados de uma forma legtima, isto ,nos termos previstos na constituio, na lei e com obedincia aos princpios do Estado de direito. O Estadoexpropria, por exemplo, bens patrimoniais, o Estado requisita bens e servios. Impe-se, a todos os ttulos,nestes casos, o pagamento de uma justa indemnizao aos particulares. A actuao legtimaou lcita dospoderes pblicos no justifica a fuga do Estado observncia de um princpio de justia:gar aos que

    foram especialmente sacrificados nos seus direitos jurdico-patrimoniais um montante indemnizatrio justo.Assim se cumprir o princpio da igualdade perante os encargos pblicos.

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    6 - O ESTADO DE DIREITO E A GARANTIA DA VIA JUDICIRIA

    Num Estado de direito pertence aos tribunais, atravs de juzes independentes, dizero direito. NumEstado de direito democrtico cabe aos magistrados judiciais dizer o direito em nome do povo. O apelo aojuiz pode revestir vrias formas de processo - queixa, aco, recurso, querela -, masa mensagemsubjacente a este apelo parte sempre da ideia de que necessrio um terceiro independente, um rbitroimparcial, para fazer justia atravs de uma deciso judicial. A primeira pergunta, porm, a fazer numEstado de direito a de saber como se assegura o acesso ao direito e aos tribunais. O acesso ao direito

    no passa necessariamente por formas litigiosas ante os tribunais. Mediante esquemas adequados deorganizao e procedimento - servios de informao jurdica, provedores dos cidados, cendeaconselhamento jurdico, direito ao patrocnio jurdico -, o Estado de direito prestaaos indivduos um bemescandalosamente distribudo de forma desigualitria nas sociedades contemporneas - odireito deacesso ao direito, o direito de conhecer e reclamar os seus direitos. S assim o Estado de direito poderresponder s acusaes de alguns que vem na frieza das regras do Estado de direito - segurana jurdica,clareza das normas, proibio do excesso, generalidade e abstraco das leis - uma cober

    tura inescapvelpara a manuteno das estruturas de poder e da desigualdade social13. Os estudos sociolgicosultimamente vindos a pblico parecem tornar cruel o nosso observatrio - as prises esto cheias deminorias (marginais, negros, ciganos) que no sabem os seus direitos e no podem defender-se. Ao invs,quem tem conhecimentos e dinheiro consegue defender melhor os seus direitos e garantir com maiseficcia a sua defesa imparcial. De qualquer modo, a crise da justia e a desigualdade na justia noinfirmam a bondade intrnseca de alguns princpios de processo e procedimento vazados nas normasconstitucionais.

    A defesa dos direitos repousa sobre um conjunto de garantias processuais e procedimentais que fazemdelas uma das manifestaes mais conhecidas do Estado de direito. Nem sempre estas garantias socompreendidas, acusando-se os juristas de, por amor forma, desprezarem o contedodo direito e arealidade das coisas. H muito que foi respondido aos crticos do formalismo que a forma, no Estado dedireito, inimiga jurada do arbtrio e irm gmea da liberdade. Talvez a melhor maneirade convencermos

    os nossos interlocutores sobre a bondade material das garantias processuais e procedimentais seja a de asindicar de um modo mais explcito, embora sem pretenses de exaustividade. Ningum hoj

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    e admitiriadiscutir em tribunal os seus direitos sem a garantia de um juiz legal, independente. Ningum se submetervoluntariamente a um qualquer processo penal sem ver reconhecido o direito de ser ouvido, o princpio daigualdade processual das partes ou o princpio da fundamentao dos actos judiciais. El onde o imprio do

    direito atinge o grau mais coactivo por se tratar da ltima razo do Estado de direito- o direito e oprocesso penal - todos concordaro que haver um retrocesso grave no Estado de direito se sepostergarem princpios e direitos to importantes como os da garantia de audincia doarguido, a proibiode tribunais de excepo, a proibio da dupla incriminao, o princpio de defesa atravsntraditrio,o direito de escolher defensor, a assistncia obrigatria de advogado em certas fases do processo penal.

    E, mesmo quando no haja feito ou causa em tribunal e o cidado tenha de afivelar a

    mscara deadministrado, nem por isso so de menor valia os princpios do Estado de direito democrtico a observarnos procedimentos administrativos. Deve exigir-se a observncia dos princpios da igualdade, daimparcialidade e da justia nos comportamentos da administrao. Num Estado de direitocomadministrao aberta lgico que se exija o cumprimento do princpio do arquivo aberto eo direito de obterinformaes sobre os procedimentos em que estamos interessados. Na mesma perspectivase compreendea obrigatoriedade d.e fundamentao dos actos administrativos lesivos das posies jurdicas dos

    administrados. Os exemplos poderiam multiplicar-se. Quer se trate de regras ou princpios a observar nosprocessos em tribunal (garantias processuais), quer se trate de regras ou princpios a observar nosprocedimentos administrativos (garantias procedimentais), parece lcito dizer quesem garantias processuaise procedimentais no se vive num Estado de direito. Muitas vezes, s quando estas garantias desaparecemdo nosso quotidiano, ou porque o Estado fraco (veja-se o problema endmico de alguns pases daAmrica Latina), ou porque o Estado forte e at demasiado forte ( o caso dos Estadosautoritrios e, emmaior medida, dos Estados totalitrios), nos damos conta da importncia delas para se respirar a liberdadee a segurana individual e colectiva.

    13 Referimo-nos a Gustavo Zagrebelsky, II diritto mite, Einaudi, Turim, 1992.

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    7 -O ESTADO DE DIREITO D SEGURANA E CONFIANA S PESSOAS

    Retenhamos a ideia de fecho do nmero anterior: o Estado de direito garante a segurana e aliberdade. isso. Atravs de um conjunto de princpios jurdicos procura-se estruturara ordem jurdica deforma a dar segurana e confiana s pessoas. A experincia comum revela que as pessoasexigemfiabilidade, clareza, racionalidade e transparncia aos actos dos poderes pblicos,de