tese mestrado sobre hip hop

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Dissertação de Mestrado na área de Psiquiatria e Saúde Mental Anorexia Nervosa: Percepções Familiares Sara Filipa Ferro de Nascimento Sob Orientação de Professor Doutor Rui Coelho Julho, 2010

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hip hop no Rio de Janeiro e suas sociabilidades

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  • Dissertao de Mestrado na rea de Psiquiatria e Sade Mental Anorexia Nervosa: Percepes Familiares

    Sara Filipa Ferro de Nascimento Sob Orientao de Professor Doutor Rui Coelho

    Julho, 2010

  • Quem escravo de seu corpo no verdadeiramente livre. Sneca

  • Ao Henrique, A minha fora, meu amor, minha esperana e meu futuro!...

  • AGRADECIMENTOS Quero aqui agradecer a todos aqueles que de alguma forma contriburam e colaboraram para a realizao deste trabalho. Ao meu orientador Professor Doutor Rui Coelho, que aceitou dirigir este trabalho, pela sua pacincia, ensinamentos e pela sua exactido e escrita exigente. Ao Dr. Roma Torres, da Consulta de Comportamentos Alimentares do Servio de Psiquiatria do Hospital de S. Joo, a minha gratido pela recolha de informao que permitiu efectuar este trabalho, pelos ensinamentos sobre o funcionamento da famlia e sua interveno e pela excelente oportunidade de observao clnica das perturbaes do comportamento alimentar. Dra. Camila Gesta pela amizade e ensinamentos desde o primeiro dia de estgio escolar, efectuado no Hospital Maria Pia. Ao Dr. Pedro Dias a minha gratido pela ajuda e pacincia na recolha de informao e pela apresentao do instrumento PAMaDeP. Ao Professor Joo Carvalho pela ajuda e pacincia. Direco do Colgio Nossa Senhora do Rosrio e Direco do ISSSP, pela permisso da recolha de dados junto dos seus alunos. O meu agradecimento s jovens e suas famlias por partilharem a sua vida e pela disponibilidade que dispensaram, essencial para a realizao deste trabalho. Ao Colgio Novos Rumos, alunos e funcionrios, em especial Dra. Maria Lusa Couto e Dra.Virgnia Varizo, que me apoiaram e incentivaram nos momentos de maior desalento. Aos meus companheiros de estrada, Marisa, Ana e Alexandre pelo apoio compreensivo, amizade e ajuda na concretizao de ideias.

  • Aos meus pais e irmo Vasco, que preenchem a minha vida e que com todo o amor do mundo me orientaram e acompanharam em todos os momentos. D. Augusta, Sr. Paulo e Raquel pela ajuda que sempre dispensaram nos diversos momentos deste trabalho. minha tia Joca e tio Uwe pelo carinho e amor que sempre demonstraram. minha Av Natividade, que se encontra sempre na minha memria, em especial os seus ensinamentos de saber estar na vida e carinho. Ao Rui, o meu companheiro de todos os dias, que me incentivou, que me deu coragem, carinho e apoio nos momentos certos. Ao meu filho Henrique, que eu adoro e que me deu alegria de nascer quando concretizava este trabalho e que me fez realar o conceito de famlia.

  • Resumo A anorexia nervosa uma perturbao do comportamento alimentar, que habitualmente definida como uma recusa em manter um peso corporal mnimo, explicada por uma procura de um ideal de beleza imposto pela cultura e sociedade ou por um medo intenso de engordar (ficar gordo). Surge sobretudo em jovens mulheres, com evoluo crnica e por vezes, as situaes de maior gravidade podem conduzir morte. Diversos autores teceram vrias consideraes tericas sobre a anorexia nervosa e as percepes familiares. O presente trabalho tem como objectivo principal procurar distinguir as famlias com jovens com anorexia nervosa das famlias com as com jovens sem anorexia nervosa, na percepo da dinmica familiar: coeso, adaptabilidade, abandono/rejeio, hiperpreocupao com a famlia, afecto e fuso/inverso de papel. Neste estudo foi realizado junto de 42 famlias com jovens com diagnstico de anorexia nervosa (grupo de estudo) e 37 famlias com jovens sem diagnstico de anorexia nervosa (grupo controlo). Os dois grupos responderam aos questionrios FACES III ( Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale III de D.H Olson, J. Portner e Y. Lavee, 1985) e PAMaDeP (Protocolo de Avaliao de Marcadores do Desenvolvimento na Psicopatologia de I. Soares, Dias, P,. Neves, L., Pinho, A. e de Rangel-Henriques, M.). Relativamente aos resultados, observou-se que no existiam diferenas estatisticamente significativas nas caractersticas demogrficas e nas caractersticas das variveis altura e idade dos dois grupos, contudo nas variveis peso e ndice de massa corporal, observaram-se diferenas estatisticamente significativas. A maioria das jovens do grupo de estudo, aquando o surgimento da anorexia nervosa, encontravam-se em situaes de conflitos familiares e existiam sobrecarga de exigncias. Grande parte destas jovens viam a anorexia nervosa como uma perturbao que as prejudicam gravemente o seu quotidiano. No que diz respeito s caractersticas do funcionamento familiar, os nossos resultados so pouco discriminadores relativamente coeso e adaptabilidade, contudo observaram-se diferenas estatisticamente significativas na percepo que as jovens do grupo de estudo tm relativamente s dimenses abandono/rejeio pai e me, dependncia dos pais, e hiperpreocupao com a famlia. Em relao s dimenses superproteco da me, afecto da me e do pai e fuso/inverso de papel me e pai, no se observaram diferenas estatisticamente significativas. importante referir que na dimenso superproteco do pai, as jovens do grupo de estudo manifestaram valores mais elevados do que as jovens do grupo controlo. Os resultados obtidos foram discutidos de acordo com os modelos tericos: Modelo Estrutural de Minuchin, Modelo Estratgico de Palazzoli e Modelo Transgeracional de White.

  • ABSTRACT Anorexia nervosa is an eating disorder, which is usually defined as a refusal to maintain a minimum body weight, explained by a quest for an ideal of beauty imposed by society and culture and by an intense fear of gaining weight (get fat). It occurs mainly in young women with a chronic development and sometimes the more severe situations can lead to death. Different authors have raised several theoretical considerations about anorexia and family perceptions. The present study aims to identify families with young people with anorexia nervosa and families with young people without anorexia nervosa, in the perception of family dynamics: cohesion, adaptability, abandonment / rejection, hyper-worrying with family, affection and fusion / inversion of roles. This study was conducted among 42 families with young people diagnosed with anorexia nervosa (study group) and 37 families with young people without a diagnosis of anorexia nervosa (control group). The two groups responded to the questionnaires FACES III (Family Adaptability and Cohesion Evaluation Scale III DH Olson, J. Portner and Y. Lave, 1985) and PAMaDeP (Assessment of Markers of Development in Psychopathology Protocol in I. Soares, Dias, P ,. Neves, L., Pinho, and Rangel-Henriques, M.). Regarding the results, it was observed that there were no statistically significant differences in demographic characteristics and the characteristics of height and age of both groups. However, in the variables weight and body mass index there were statistically significant differences. Most young females in the study group, at the onset of anorexia nervosa, were in situations of family conflict and there was an overload of demands. Most of these young people saw anorexia nervosa as a disorder that severely impedes their daily lives. Regarding the characteristics of family functioning, our results are not very discriminating on the cohesion and adaptability; however there were significant differences in the perception that those in the study group have of the dimensions of father and mother abandonment / rejection, parents dependence, and hyper-worrying with the family. Regarding the dimensions of overprotection of the mother, affection of the mother and father and merging / inversion of mother and father roles, there were no statistically significant differences. It is also important to state that in the overprotection dimension of the father, the young people of the study group showed higher results than those in the control group. The results obtained were discussed according to theoretical models: Structural Model of Minuchin, Palazzoli and Strategic Model of Trans-generational Model of White.

  • NDICE PGINA INTRODUO 15 CAPITULO I- ANOREXIA NERVOSA 1.1- PERTURBAES DO COMPORTAMENTO ALIMENTAR 19 1.2- ANOREXIA NERVOSA-PERSPECTIVA HISTRICA 25 1.3- ANOREXIA NERVOSA-DEFINIES 32 1.3.1- CRITRIOS DE DIAGNSTICO 34 1.3.2- ETIOPATOGENIA 42 1.3.3-EPIDEMIOLOGIA 46 SINTESE 52 CAPTULO II- A FAMILIA 2.1- FAMILIA- DEFINIO 55 2.2- PERSPECTIVA SISTMICA 62 2.3- FAMILIA COMO UM SISTEMA 63 2.4- MODELOS FAMLIARES 66 2.4.1- MODELO ESTRUTURAL 68 2.4.2-MODELO ESTRATGICO 72 2.4.4- MODELO TRANSGERACIONAL 76 2.4.5-MODELO EXPERENCIAL 81 2.4.6-MODELO PSICODINMICO 83 2.4.7-MODELO COGNITIVO-COMPORTAMENTAL 86 2.5-MODELO ESTRUTURAL E A ANOREXIA NERVOSA 88 2.6-MODELO EXPERIENCIALE A ANOREXIA NERVOSA 92 2.7- MODELO TRANSGERACIONAL E A ANOREXIA NERVOSA 97 SINTESE 100 CAPTULO III- INVESTIGAES EMPIRICAS

    3.1- REVISO BIBLIOGFICA 103 SINTESE 111 CAPTULO IV- APRESENTAO DO ESTUDO 4.1- O ESTUDO 113 4.2- MTODO 115 4.3- AMOSTRA E A SUA CONSTITUIO 116 4.4- INSTRUMENTOS UTILIZADOS 118 4.5-CARACTERIZAO DO ESTUDO 130 4.5.1- CARACTERIZAO DEMOGRAFICA 130 4.5.2- CARACTERIZAO FAMILIAR DO ESTUDO 133

  • CAPTULO V APRESENTAO E DISCUSSO DOS RESULTADOS 5.1- RESULTADOS DO ESTUDO 144 5.1.1- AVALIAO DO FUNCIONAMENTO FAMILIAR (COESO E ADAPTABILIDADE FAMILIAR)

    144

    5.1.2- AVALIAO DAS CARACTERSTICAS DESENVOLVIMEMTAIS DA PSICOPATOLOGIA

    152

    5.2- DISCUSSO DOS RESULTADOS 159 5.2.1- CARACTERSTICAS DA AMOSTRA 159 5.2.2- CARACTERSTICAS DA FAMLIA 161 5.2.3- CARACTERSTICAS DOS MARCADORES DESENVOLVIMENTAIS CONCLUSO BIBLIOGRAFIA ANEXOS ANEXO 1-INSTRUMENTOS UTILIZADOS

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    175

    184

    ANEXO 2-CARTA PARA OS PAIS ANEXO 3- CARTA PARA AS ESCOLAS

  • ndice de Quadros Pgina

    Quadro 1- Caractersticas das Perturbaes do comportamento alimentar (DSM-IV-TR, 2002)

    22

    Quadro 2- Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa (Dally & Sargant, 1966) 35 Quadro 3- Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (Russell, 1970) 35 Quadro 4- Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (Feighner, 1972) 36 Quadro 5 Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (DSM-III, 1980) 37 Quadro 6 - Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (DSM-III-R, 1993)) 37 Quadro 7- Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (DSM-IV, 1994) 38 Quadro 8 - Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (DSM-IV-TR, 2002) 39 Quadro 9 Critrios de Diagnstico CID-10 40

  • ndice Tabelas Pgina Tabela 1- Comparao dos diferentes Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa 40 Tabela 2- Estgios do Ciclo da Vida Familiar 59 Tabela 3- Anlise factorial da FACES III 120 Tabela 4- Modelos tericos que usaram as dimenses de Coeso e Adaptabilidade 122 Tabela 5- Variveis Idade, Peso Actual, Altura e IMC 131 Tabela 6- Nvel de Escolaridade 131 Tabela 7- Estabelecimento de Ensino 132 Tabela 8 Estado Civil 132 Tabela 9- Profisso 133 Tabela 10- Profisso Pai (Grupo de Estudo) 134 Tabela 11- Escolaridade Pai (Grupo Estudo) 134 Tabela 12 Profisso Me (Grupo Estudo) 135 Tabela 13 Escolaridade Me (Grupo Estudo) 135 Tabela 14- Idade de Incio da Anorexia Nervosa 136 Tabela 15- Existncia de outro tipo de Perturbao Alimentar 136 Tabela 16- Em que altura ocorreu esta Perturbao Alimentar 137 Tabela 17- Por quanto tempo se manteve com a doena 137 Tabela 18-Etapa especial aquando do incio da Anorexia Nervosa 137 Tabela 19- Que idade tinha quando recorreu pela primeira vez ao acompanhamento psiquitrico/psicolgico

    138

    Tabela 20- Mdia de idades das jovens com Anorexia Nervosa 138 Tabela 21- Razes que levaram as jovens a recorreram a apoio psiquitrico/psicolgico 139 Tabela 22- Grau de interferncia da Anorexia Nervosa na sua vida 139 Tabela 23- Percepo da evoluo da Anorexia Nervosa 140 Tabela 24- Membros da famlia que possam ter algum problema psiquitrico/psicolgico

    140

    Tabela 25- Esse problema era uma Perturbao Alimentar 141 Tabela 26- Profisso Pai (Grupo Controlo) 142 Tabela 27 Escolaridade Pai (Grupo Controlo) 142 Tabela 28- Profisso Me (Grupo Controlo) 142

  • Tabela 29- Escolaridade Me (Grupo Controlo) 145 Tabela 30- Comparao dos dados sobre Coeso e Adaptabilidade entre o Grupo Estudo e o Grupo Controlo

    147

    Tabela 31- Percepo da Coeso Familiar (Real e Ideal) 149 Tabela 32- Percepo da Adaptabilidade Familiar (Real e Ideal) 153 Tabela 33- Comparao entre as Dimenses Abandono/Rejeio, Hiperpreocupao com a famlia e Rejeio

    155

    Tabela 34- Comparao entre as Dimenses Rejeio (afecto), Superproteco e Fuso/inverso de papel

    156

  • ndice de Figuras Pgina Figura 1- Esquema Resumo da viso global da Anorexia e Bulimia Nervosas 45 Figura 2- Modelo Circumplexo 123

  • ndice de Grficos Pgina

    Grfico 1- Coeso Familiar 148 Grfico 2- Adaptabilidade Familiar 150 Grfico 3- Tipos de Famlias em funo da Coeso 151 Grfico 4- Tipos de Famlias em funo da Adaptabilidade 152 Grfico 5- Comparao entre as Dimenses Abandono/rejeio, dependncia e Hiperpreocupao com a famlia

    154

    Grfico 6- Comparao entre as Dimenses relativas Me: rejeio (afecto), superproteco e fuso/inverso de papel

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    Grfico 7- Comparao entre as Dimenses relativas ao Pai: rejeio (afecto), superproteco e fuso/inverso de papel

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    INTRODUO As perturbaes do comportamento alimentar tornaram-se, desde h alguns anos, alvo de intensas pesquisas dado o aumento da sua incidncia na populao jovem. O aumento da prevalncia destas perturbaes principalmente devido ao seu carcter clnico, sua gravidade e existncia de factores de causalidade relacionados com a dinmica familiar, tem suscitado o interesse por parte dos investigadores. Estudos realizados na ltima dcada, revelaram que a anorexia nervosa uma das doenas crnicas mais comum entre jovens do sexo feminino e por esse motivo a justificao da ateno por parte dos investigadores. A anorexia nervosa, sem dvida um quadro clnico a ter em considerao, pois so conhecidas as implicaes mdicas e as situaes de enorme gravidade que podem conduzir morte. A comunidade cientfica tem vindo a especificar os seus principais sintomas, a metodologia na sua interveno, as caractersticas das suas diversas causas e como trat-la. H cerca de 400 anos a vida transformou-se e alguns seres humanos comearam a viver em aglomerados urbanos e a construir abrigos. H cerca de 200 anos os seres humanos vivem em grandes cidades. H 50 anos o processo acelerou-se e com esta evoluo o corpo humano tem sofrido algumas alteraes assim como o surgimento de mais fantasias de beleza, tem se notado que os jovens, tanto do sexo masculino como o sexo feminino, esto mais sensveis na questo do corpo ideal. O mito da beleza e da moda h muito se tem afastado do natural. A noo de beleza tem-se submetido de tal forma ao comrcio, tem atravessado tantas oscilaes que foram perdendo alguma ligao com a biologia da espcie. Ao mesmo tempo a alimentao tambm tem sofrido grandes alteraes (Carmo, 1999). Durante os sculos XVII, XVIII e XIX, as pinturas dos corpos das mulheres, mesmo as mais sagradas mostravam esplendores de carne volumosa e rosada. Ao observarmos essas mulheres, chegamos concluso que no so mulheres obesas, contudo tero algum excesso de peso. Nos tempos medievais, expunham-se os casos de perda de apetite, que era inspirada milagrosamente (F). A imagem do corpo feminino nas sociedades ocidentais, at ao sculo XX, manteve-se com

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    um ideal de formas redondas. Estas mulheres eram consideradas, hoje em dia como gordas e cheias de papos (ancas e coxas volumosas) (Carmo, 1999). S por esta altura se tentou dar uma compreenso psicolgica desta perturbao, com a incluso das doenas do comportamento alimentar no Manual de Diagnstico e Estatstica das Perturbaes Mentais (DSM III, APA, 1980). Assim, podemos afirmar que a anorexia nervosa apresentada como uma doena grave, com distoro da imagem corporal, que normalmente resistente persuaso e s formas de tratamento. uma perturbao que pode atingir um estado preocupante de debilidade fsica, levando por vezes morte (Roma Torres, 1986). Actualmente, a anorexia nervosa considerada como multi-determinada, pelo facto de haver interaco de diversos factores: individuais (biolgicos, genticos), socioculturais e familiares. S assim se poder obter uma explicao sobre a etiologia desta perturbao. Nem sempre se consegue uma mesma explicao sobre a natureza da anorexia nervosa em todos os pacientes, contudo existem factores que ressaltam, como os factores de personalidade, a predisposio gentica, caractersticas do contexto familiar e a prpria vulnerabilidade individual. Quanto s caractersticas familiares, diversos autores se tm debruado sobre esta temtica, e referem que os mecanismos que ocorrem dentro do sistema familiar podem influenciar a evoluo para um quadro clnico de anorexia nervosa e influenciar cada membro da famlia. Contudo, a famlia tambm um elemento essencial para o tratamento da anorexia nervosa. Neste sentido, o principal objectivo deste estudo procurar distinguir as famlias com jovens com anorexia nervosa das famlias com jovens sem anorexia nervosa, na percepo da dinmica familiar: coeso, adaptabilidade, abandono/rejeio, hiperpreocupao com a famlia, afecto e fuso/inverso de papel. importante referir que ao longo deste estudo quase sempre nos referimos ao paciente anorctico no feminino, atendendo sua incidncia e evoluo. O presente trabalho est estruturado por captulos. No primeiro captulo o objectivo observar uma reviso histrica da anorexia nervosa, salientados os aspectos relacionados com a definio, caractersticas clnicas, etiopatogenia e epidemiologia. No segundo captulo analisaremos os

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    diversos modelos tericos que procuraram delinear as caractersticas da dinmica familiar, assim como diversas definies sobre o conceito de famlia e ciclo vital. Ainda neste captulo, referiremos trs modelos tericos que muito contriburam para o estudo das perturbaes do comportamento alimentar, nomeadamente a anorexia nervosa. No terceiro captulo, exploraremos consideraes tericas atravs de uma reviso de estudos empricos sobre a dinmica familiar e a anorexia nervosa. No captulo quatro, apresentaremos o nosso estudo e delimitao dos seus objectivos, hipteses tericas, metodologia, onde se descrevem os instrumentos utilizados e procedimentos estatsticos. No ltimo captulo, so apresentados os resultados encontrados, sua discusso e concluso de todo o estudo.

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    Captulo I Anorexia Nervosa

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    1.1-Perturbaes do Comportamento Alimentar As perturbaes do comportamento alimentar so doenas das sociedades desenvolvidas que afectam principalmente as mulheres. So mais facilmente encontradas nas sociedades industrializadas, sendo raras nos pases pouco desenvolvidos e orientais. A sua incidncia menor nas minorias tnicas e alguns estudos encontram associaes positivas entre a aculturao e a patologia alimentar (Stice, 1994 cit. in Soares, 2000). A etiologia das perturbaes alimentares multideterminada, resultante de uma interaco complexa de factores psicolgicos, biolgicos e socioculturais. Um aspecto muito importante na compreenso deste tipo de patologia a natureza interactiva entre os diversos factores de risco: precipitantes, de manuteno e de proteco para a perturbao. Ser a alimentao ou a sua falta uma causa necessria para a evoluo de uma perturbao alimentar? A dieta sim uma causa, mas no ser uma causa suficiente, tero de existir factores precipitantes que vo determinar se a dieta ir dar origem perturbao e tambm a existncia de factores de vulnerabilidade. Para que a perturbao se agrave, estes factores vo-se juntar aos factores biolgicos e psicolgicos da prpria doena. Segundo diversos autores, existem trs conjuntos de variveis com grande potencial no desenvolvimento das perturbaes alimentares, so eles: as variveis socioculturais, variveis familiares e variveis individuais. Quantos s variveis socioculturais, pode-se dizer que a cultura um poderoso determinante no peso. Os estudos mdicos sobre o peso em excesso, relatam que existem possveis efeitos negativos na obesidade, levando vrias pessoas a terem atitudes culturais negativas em relao a uma forma corporal gorda e que deu origem a uma idealizao do corpo magro. Nas ltimas dcadas a existncia de uma grande presso cultural para a magreza e para a realizao de dietas fez-se sentir especialmente nas mulheres, impondo-lhes assim um ideal de beleza progressivamente magro (Soares, 2000).

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    Diferentes factores culturais contribuem de certa forma para esta situao: os esteretipos culturais, o ideal de beleza, os media, a valorizao da moda e transformaes nos papis sociais e expectativas das mulheres na cultura ocidental. Comeando pelos esteretipos da aparncia fsica, este assenta na crena que os indivduos com aparncia atraente possuem um conjunto de caractersticas de personalidade desejveis, tendo mais sucesso e uma vida mais feliz que os outros indivduos (Feingold, 1992 cit. in Soares, 2000). O ideal de beleza fsica tem variado nas ltimas dcadas, transformando o corpo da mulher num corpo cada vez mais magro, sendo um aspecto importante para o surgimento das perturbaes alimentares. Diferentes estudos e linhas de investigao obtiveram resultados que apoiam uma maior centralidade da beleza e aparncia fsica no esteretipo da beleza feminina. Estes estudos, em primeiro lugar revelam a existncia de uma relao positiva entre a auto-avaliao de feminilidade e o grau de valorizao de importncia atribuda aparncia fsica (Cash, Gillen e Burns, 1977 cit. in Soares, 2000). Em segundo lugar, as mulheres no fisicamente atraentes so vistas como mais masculinas (Heilman e Saruwatari, 1979 cit. in Soares, 2000). Em terceiro lugar a constatao de que a percepo da feminilidade se mostra relacionada com a forma corporal, isto , silhuetas ectomrficas (magras) so classificadas como mais femininas que as silhuetas mais mesomrficas (musculares) ou endomrficas (corpulentas) (Guy, Rankin e Novell, 1980, cit.in Soares, 2000). Portanto, a procura dos ideais de beleza leva alguns indivduos mais vulnerveis, devido a aspectos da personalidade ou familiares, a uma obsesso com o peso e dietas, que facilitam o aparecimento das perturbaes alimentares. Durante a infncia as raparigas mostram-se mais preocupadas que os rapazes acerca da sua aparncia fsica. Existem diferenas at na formao do auto-conceito entre os dois sexos, podendo estar na base da maior ou menor vulnerabilidade para o surgimento das perturbaes alimentares. A construo do auto-conceito nas raparigas parece ter uma maior base interpessoal que nos rapazes. A auto-representao, no incio da adolescncia, segundo Harter, 1990 (in Soares, 2000), fica muito focada nas caractersticas pessoais como sendo consequncias sociais para influenciar a aceitao pelos outros. De um modo geral, as raparigas tendem a sentir-se mais atraentes na adolescncia, que os rapazes. As raparigas que se percepcionam como menos atraentes tm

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    menor auto-estima que as raparigas que se sentem mais satisfeitas com o prprio corpo e aparncia fsica (Wilfley e Rodin, 1995, cit. in Soares, 2000). Segundo Isabel do Carmo, 1999, uma caracterstica importante a famlia. As caractersticas familiares podem contribuir como factor de risco por trs vias essenciais: pela existncia de problemas psiquitricos nos pais, pelas atitudes dos pais e irmos face ao peso e alimentao e ainda pela estrutura e comunicao familiar. Quanto aos problemas psiquitricos dos pais uma prevalncia aumentada de distrbios afectivos nos pais das doentes com anorexia nervosa e bulimia nervosa tem sido encontradas em diversos estudos, estes dados associados elevada prevalncia de perturbaes afectivas em doentes com anorexia e bulimia nervosas levaram alguns autores a sugerir que os perturbaes alimentares e as perturbaes afectivas teriam uma etiologia subjacente comum s perturbaes afectivas. A valorizao familiar de um ideal de magreza est associada ao desenvolvimento da patologia alimentar em que a me pode influenciar as preocupaes com o peso e a dieta das filhas de diferentes formas (Carmo, 1999). As primeiras descries de famlias com perturbaes do comportamento alimentar era de que estas famlias possuam um estatuto social elevado e respondiam positivamente ao tratamento da doena familiar (Garfinkel & Garner, 1982 cit in Strober, M. & Humphrey, L., 1987). Outras caractersticas que so frequentemente associadas s perturbaes alimentares so as caractersticas psicolgicas dos indivduos, que podero reflectir alguns traos de personalidade que existiam antes do aparecimento da perturbao alimentar. Estas caractersticas podem funcionar como factores predisponentes mas podero, no entanto, ser uma consequncia das alteraes psicolgicas induzidas pela perturbao alimentar. Como principais caractersticas psicolgicas temos a baixa auto-estima que pode funcionar como mediador entre as presses scioculturais, as influncias familiares e a realizao da dieta, pois os indivduos com baixa auto-estima so muito mais vulnerveis influncia de grupos que os outros indivduos e podero ter mais tendncia a aderir e interiorizar mais facilmente os ideais socioculturais da aparncia fsica de modo a obter aceitao. Outras caractersticas so o

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    perfeccionismo, os traos obsessivos e a impulsividade que tm sido associados bulimia e anorexia nervosa. A maioria das mortes por distrbio alimentar, ocorre nos 8 anos desde a primeira consulta e particularmente nos primeiros 4 anos, as causas mais comuns so o suicdio e os efeitos secundrios da desnutrio (Cecile Rausch Herscovici, 1997 cit. in Fichtner, 1997).

    Segundo Hilde Bruch (1974, cit. in Roma Torres, 1986) o no comer e o temor de engordar so secundrias a uma perturbao de personalidade. Este transtorno origina-se com as dificuldades nas interaces precoces entre me-filho, de tal modo que a funo de comer depois utilizada inapropriadamente para tentar resolver ou ocultar problemas de outra ordem. Os factores de risco que precedem o diagnstico das perturbaes do comportamento alimentar, incluem sexo, etnia, problemas gastrointestinais e problemas infantis de alimentao, problemas relacionados com a imagem corporal e peso, baixa auto-estima, abuso sexual e comorbilidade psiquitrica (Jacobi, C., Hayward, C., Dezwaan. M., Kraemer, HC. Agras, WS, 2004, cit in Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006). De acordo com o DSM-IV-TR (2002), existe um conjunto de caractersticas essenciais das perturbaes do comportamento alimentar. (Quadro 1). Quadro 1 Caractersticas das Perturbaes do Comportamento Alimentar (DSM IV- TR, 2002)

    1. Preocupao excessiva em aumentar de peso ou engordar; 2. Distoro da imagem corporal; 3. Incapacidade para controlar apropriadamente a ingesto de forma a manter um peso saudvel; 4. Flutuaes de auto-avaliao dependendo da forma corporal ou peso percepcionados.

    As perturbaes do comportamento alimentar incluem dois diagnsticos excluentes, a anorexia nervosa e bulimia nervosa. A primeira caracterizada pela recusa em manter um peso corporal normal mnimo. A bulimia nervosa caracterizada por episdios repetidos de voracidade alimentar seguidos por comportamentos compensatrios inapropriados tais como o vmito induzido, abuso de laxantes, diurticos ou outras medicaes, jejum ou exerccio fsico excessivo. A distoro da

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    imagem corporal uma caracterstica tanto da anorexia como da bulimia nervosa (DSM-IV-TR, 2002).

    Perturbaes do comportamento alimentar so consideradas doenas mdicas com critrios de diagnstico baseados em caractersticas comportamentais, psicolgicas e fisiolgicas. Nos ltimos tempos tm-se designado como perturbaes do comportamento alimentar trs grupos de psicopatologia associados aos padres anormais de alimentao: Anorexia nervosa, Bulimia Nervosa, EDNOS Eating disordres not otherwise specified e que inclui a Binge Eating Disorder (Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006). De acordo com o DSM IV, TR (2002), o diagnstico de anorexia nervosa tem como critrios: A) Medo intenso de ganhar peso e recusa em manter um peso corporal mnimo em funo da idade e altura; B) Medo intenso de ganhar peso ou ficar gordo (a) mesmo quando muito magro(a); C) Perturbao na apreciao do peso e forma corporal na auto-avaliao ou de negao da gravidade do grande emagrecimento actual e D) Nas raparigas aps a menarca, a amenorreia. O sub-tipo restritivo caracterizado pelo facto da pessoa no recorrer a ingesto compulsiva de alimentos nem a purgantes e o sub-tipo ingesto compulsiva/purgativo caracteriza-se pelo fato da pessoa demonstrar comportamentos bulmicos ou purgativos. No que diz respeito bulimia, segundo DSM-IV TR, 2002, tem como critrios: A) manifestao de episdios recorrentes de ingesto alimentar compulsiva, sendo que um episdio caracterizado pelos dois critrios seguintes: comer, num perodo curto de tempo uma quantidade de alimentos que definitivamente superior que a maioria das pessoas normais comeriam num perodo de tempo semelhante e sob as mesmas circunstncias; sensao de perda de controlo sobre o acto de comer durante o episdio; B) manifestao de comportamento compensatrio inapropriado recorrente para impedir o ganho ponderal, tal como vomitar, uso de laxantes, diurticos, enemas ou outros medicamentos; jejum ou exerccio fsico excessivo; C) ingesto compulsiva de alimentos e os alimentos compensatrios inapropriados ocorrem em ambos, em mdia duas vezes por semana em trs meses consecutivos; D) a auto-avaliao est indelevelmente associada ao peso e formas corporais e E) a perturbao no ocorre exclusivamente durante os episdios de anorexia nervosa.

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    O subtipo purgativo distingue-se pelo facto de durante o episdio actual de Bulimia Nervosa a pessoa induzir o vmito ou utiliza laxantes, diurticos ou enemas. O subtipo no purgativo caracterizado por, durante o episdio actual de Bulimia Nervosa, a pessoa recorrer a outros comportamentos compensatrios inapropriados, tal como o jejum ou exerccio fsico excessivo, contudo no induz vmito ou utiliza laxantes, diurticos ou enemas.

    Nas perturbaes alimentares sem outra especificao (PCASOE), o DSM-IV-TR, 2002, sugere que podem surgir subtipos dentro desta categoria, em que os critrios se aproximam mais da anorexia nervosa ou da bulimia nervosa, contudo no revelam todos os critrios de diagnstico necessrios para se diagnosticar um quadro clnico completo. Factores biolgicos tm implicao na identificao precoce e tratamento que inclui predisposio gentica e interaco dos genes. Alteraes do Sistema Nervoso Central (SNC), principalmente na actividade serotoninrgica, parecem afectar directamente as perturbaes do comportamento alimentar (Strober, M., Freeman, R., Lampert, C., Diamond, J., Kaye, W., 2000 cit in Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006).

    O nmero de indivduos afectados pelas perturbaes do comportamento alimentar desconhecido, assim como o perodo de tempo antes de serem internados ou observados por um mdico. Qualquer indivduo com histria familiar diversa pode desenvolver doenas do comportamento alimentar. Contudo, observa-se que esta doena se desenvolve mais em pases industrializados. A maior frequncia de perturbao do comportamento alimentar em mulheres jovens adultas, afectando 3,2% das mulheres entre os 18 e os 30 anos de idade. Em estudos sobre prticas alimentares e satisfao corporal, concluram que os homens homossexuais tm mais potencialidade de desenvolver esta perturbao (Ghaderi, A., Scott, B., 2001, cit in Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006).

    Os valores da incidncia e da prevalncia das perturbaes do comportamento alimentar, evidenciam que a maioria destas pacientes do sexo feminino, de etnia branca, jovens e de pases ocidentais (Garfinkel, 1995). A incidncia de perturbaes do comportamento alimentar

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    principalmente em atletas, tanto homens como mulheres, estimada de 10% a 20%, sendo a bulimia nervosa a perturbao mais identificada (Sungot-Borgen, J. 1999, cit in Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006).

    As perturbaes do comportamento alimentar, para alm de estarem associadas aos modelos desenvolvimentais na adolescncia, encontram-se fortemente influenciadas com o contexto familiar, sciocultural, mudanas biolgicas e psicossociais que decorrem na adolescncia (Pinto-Gouveia, 2000).

    Pacientes com perturbaes do comportamento alimentar, por vezes sofrem de outras perturbaes psiquitricas, aumentando a complexidade do tratamento. importante entender as caractersticas da perturbao psiquitrica adicional e qual ser o seu impacto no decurso do tratamento da perturbao do comportamento alimentar (Stunkard, AJ, Allison, KC., 2003 cit in Henry, Bervely & Ozier, Amy, 2006).

    1.2- Anorexia Nervosa Perspectiva Histrica

    A anorexia nervosa uma doena h muito conhecida, no entanto s nestes ltimos anos que tem sido mais divulgada. Bemporad (1996) um dos autores que defende no ser a anorexia nervosa um fenmeno recente, recuando, na sua existncia, cerca de sete sculos. Segundo este autor, as formas distintas de emergncia da anorexia nervosa, ao longo da histria, apenas reflectem motivaes diferentes na base deste comportamento. Os primeiros casos de manifestaes de possvel anorexia nervosa surgiram na Idade Mdia, explicveis talvez pelo controlo, disciplina e tortura corporal que a Igreja da poca considerava como meios para ascender ao Divino. Embora a Igreja, que promovia o jejum, jamais exigisse que os seus fiis chegassem a limites extremos, a verdade que os cristos, exageravam nos seus sacrifcios, incluindo a prtica excessiva de jejum. importante focar que nos relatrios emitidos pela Igreja sobre os cristos sacrificados, muitas vezes figurava a caracterstica de capacidade de viverem sem praticamente se alimentarem, induzindo assim os fiis a uma exagerada imitao, sobretudo por parte das mulheres que tinham mais tendncia para somatizar (Rutsztein, 1997).

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    Em 1985, Bell, estudou o comportamento das 261 Santas, oficialmente reconhecidas pela Igreja, que viveram em Itlia entre 1200 e a actualidade. De entre estas, 170 apresentavam condutas de restrio alimentar. Bell defende que todos os casos estudados apresentavam pontos em comum: sem origem orgnica aparente, incluam abstinncia de comida, que chegava at ao jejum, em nome de Deus (Rutsztein, 1997). Estas mulheres tinham a ideia que, no ingerir nada para alm da hstia sagrada era uma forma de santidade, a maioria delas tinham comportamentos de ascetismo extremo com o cumprimento dos votos, de castidade, de pobreza e de obedincia; para alm de uma vida de renncia, com comportamentos de auto-flagelao e outras formas de sacrifcio, como a privao do sono e dos alimentos (Vandereyken & Van Deth, 1996). As primeiras divulgaes da anorexia nervosa, surgem no sculo 17. Hobbes, em 1668, foi chamado a observar uma jovem em estado de caquexia, que segundo a me da jovem, vivia sem comer h seis meses, concluiu que esta rapariga, se encontrava manifestamente doente. Este j um olhar diferente das observaes religiosas e mdicas dispostas a testemunhar o milagre independentemente da sade da jovem (cit. in Daniel Sampaio, Dulce Boua, Isabel do Carmo e Zulmira Jorge, 1999).

    Cotton Mather (1633-1728) observou vrias jovens e concluiu que: o jejum prolongado no s tolervel, mas estranhamente agudvel de tal modo que deve ter a ver

    com o mundo invisvel algo mais do que o habitual...um dos sexos pode sofrer mais

    perturbaes...do mundo invisvel do que o outro (Daniel Sampaio et al., 1999, pg. 35). Em Portugal, tambm existiram mulheres que em contexto religioso, praticavam formas de jejum extremo. Um exemplo disso o caso da Alexandrina Maria da Costa (1904 1955). Em 1918, para defender a sua virgindade de uns homens que se infiltraram em sua casa, Alexandrina atirou-se de uma janela e, a partir da, caminhou com dificuldade e sofrimento, acabando por acamar definitivamente em 1925. Fazendo a oblao da sua vida, a 27 de Maro de 1942, Alexandrina

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    iniciou o seu jejum absoluto. A Sagrada Comunho foi, durante mais de 13 anos at morte, o seu nico alimento. Desde esse dia, se Alexandrina tentasse ingerir alguma coisa, ainda que somente gua mineral, vomitava-a com dores horrveis. Um exame mdico pretendeu provar que, durante 40 dias e 40 noites, no comeu nem bebeu, no urinou nem defecou. Em 1996, Alexandrina Maria da Costa foi declarada Venervel pela Congregao para a Causa dos Santos (Pasquale, 1998).

    A primeira descrio com carcter cientfico de uma situao que se identifica com anorexia nervosa encontra-se num tratado de fisiologia pelo mdico ingls Richard Morton, 1698. Morton descreveu dois casos: o primeiro, de um jovem de 16 anos e o segundo uma rapariga de 18 anos com uma evoluo fatal. O jovem teve o diagnstico de atrofia ou destruio nervosa (nervous atrophy or consumption), caracterizando-se por um acentuado emagrecimento sem febre, tosse ou dispneia. Morton recomendava naturalmente que se deixasse o paciente divertir-se, tornando a sua mente mais clara pelo exerccio ou pelo convvio com os amigos e expor-se a um bom ar, claro e aberto. (Roma Torres, 1986, pg.13). No sculo 18 surgem descries de Whytt, Mesmer e Nadeam que parecem assemelhar-se anorexia nervosa, considerando o primeiro que a causa de averso comida estava nos nervos gstricos. por volta de 1869 que se comea a associar o jejum prolongado histeria. De entre os trabalhos clssicos tem particular importncia os estudos realizados por William Gull e Lasgue que em 1868, 1873 e em 1874, expuseram pontos de vista convergentes sobre a doena (Daniel Sampaio, et al., 1999).

    Em 1885, Charcot, descreveu uma rapariga de 13 ou 14 anos, que tendo crescido consideravelmente at essa altura, comeou a recusar sistematicamente qualquer alimento, sem que apresentasse nenhuma perturbao da deglutio nem nenhum problema gstrico. Charcot reconheceu na anorexia, a que chamou mental, um sintoma da histeria e inaugurou o mtodo teraputico do isolamento da famlia. Pela mesma altura Freud, 1893, refere-se questo da anorexia, analisando a histria de uma mulher que se tornou anorctica aps o nascimento do primeiro filho e que teve de interromper a amamentao por falta de leite. Os sintomas reaparecem no nascimento do segundo filho, com vmitos, recusa alimentar e depresso. Freud interpretou a

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    apario dos sintomas em cada gravidez, como decorrentes de uma relao problemtica me-beb, simbolizada na equao, comer = a amamentar. Explicou que o acto de se alimentar, nestas doentes, est associado desde a infncia a memrias conflituais, cuja carga afectiva no diminui com o tempo (Boua, 2000).

    Lasgue (1873) refere-se a oito doentes, todas do sexo feminino, de idades entre os dezoito e os trinta e dois anos, embora coloque o carcter angustiante da doena com maior relevo, afirma nunca ter visto nenhum caso que terminasse directamente em morte. A descrio de Lasgue quanto suposta perda de apetite:

    Ao princpio a paciente sente desconforto aps a refeio, uma vaga sensao de enfartamento,

    sofrimento e gastralgia pst-pandium, ou menos frequentemente desde o incio da refeio. (...) a

    paciente pensa para ela que o melhor remdio para este desconforto indefinido e doloroso

    restringir a alimentao. At aqui nada chama a ateno par o seu caso pois muitos daqueles que

    sofrem de gastralgia tm a mesma tentao (...) as coisas no entanto tomam outro curso. Ela

    gradualmente vai reduzir a alimentao, dando pretextos como a dor de cabea, uma repugnncia

    temporria, ou medo da dor depois de comer. Ao fim de algumas semanas j no h a suposta

    repugnncia temporria, mas a recusa da comida que se pode prolongar indefinidamente (Roma Torres, 1986)

    A viso psicanaltica atravessou durante anos a anlise da doena com uma interpretao exclusiva, das questes sexuais reprimidas. Hilde Brusch, numa perspectiva psicanaltica, mas situando-se na observao do desenvolvimento psquico e fsico na puberdade descreveu a doena, ilustrando com muitos casos clnicos, onde colocava o problema dos limites da personalidade e do processo de autonomia da jovem face aos pais; esta contribuio foi decisiva para a compreenso da anorexia nervosa (Daniel Sampaio et al., 1999).

    Na histria oficial da anorexia nervosa so habitualmente esquecidos nomes, entre eles o de um mdico ingls, Fenwick, que descreveu a doena praticamente ao mesmo tempo que Gull e

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    Lasgue. um livro sobre doenas digestivas que trata as Afeces Nervosas dos rgos Digestivos, publicado em 1880, dedica 24 pginas anorexia nervosa. uma longa descrio, talvez a mais exaustiva da poca, que fala do tipo de falta de apetite sem causa conhecida, da idade e do sexo predominante dos doentes e do facto de se ter que aceitar que os indivduos no so impostores, mas sim vtimas de doena. Descreve depois a progresso dos sintomas, o aspecto fsico que se degrada. Mesmo que a doente recupere e j no tenha nenhum outro sintoma, chega a esperar cinco anos para que volte a menstruao (Carmo, 1994).

    Em 1859, Marc, apresenta um artigo intitulado Note sur une Forme de Dlire Hypochondriaque Conscutive aux Dyspepsies et Charactrise principalement par le Refus dAliments. Neste artigo, este autor descreve claramente a sndrome que, menos de 15 anos mais tarde, se viria a chamar de anorexia nervosa. Alertando para o facto de a doena ser de natureza psiquitrica e no fsica, e da psicopatologia ser grave, Marc afirma que no o estmago que necessita de ateno, mas sim as ideias delirantes que constituem o ponto de partida da doena. recomendado que o tratamento seja entregue a estranhos, separando o paciente da famlia e do seu ambiente natural (Silverman, 1997).

    Foi Sir William Gull quem, pela primeira vez, utilizou o termo anorexia nervosa. Segundo este autor, anorexia (perda de apetite) seria mais apropriado que apepsia (indigesto), porque os alimentos eram bem digeridos. Acabando por usar o termo histrica, uma vez que derivava do grego hysteros (tero), Gull preferiu utilizar o termo mais genrico nervosa, porque considerava que aquilo que estava implicado na doena era o sistema nervoso central e no o tero. Alm disso, esta formulao deixava em aberto a hiptese de que a doena pudesse existir tambm nos homens (in Rutsztein, 1997).

    A evoluo dos conceitos mdicos sobre a anorexia nervosa foi um pouco acidentada. A confuso surgiu de um uso generalizado do conceito de anorexia nervosa associado s causas psicogneas, incluindo portanto as depresses graves ou estados psicticos. Dejerine e Gauckler (1913), retomam ento a distino de anorexia nervosa primria, considerando a sua ocorrncia no sexo feminino, em idades entre os 15 e os 20 anos e com uma reduo da alimentao inicialmente

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    voluntria. A natureza psicognea da anorexia nervosa foi no entanto, posta em causa a partir da descrio de Simmonds (1914) de uma mulher seriamente emagrecida que no exame necrpsico se verificou sofrer de uma destruio hipofisria. Durante dcadas a anorexia nervosa ficou confundida com casos de hipopituitarismo e a evoluo era frequentemente fatal (Roma Torres, 1986).

    Em Portugal, Elysio de Moura (1947), apresentou uma dissertao na qual descreve extensivamente o quadro clnico da anorexia nervosa, considerando como manifestaes objectivas, fsicas e perturbaes funcionais (...) resultantes de uma pronunciada e prolongada hipo-

    alimentao (15), que quase sempre tem um comeo insidioso e imperceptvel (...) em que os alimentos vo sendo abolidos, sucessivamente, os que so reputados mais nutrientes ou

    especialmente favorecedores de formao de gorduras (39). Este psiquiatra de Coimbra sustinha que a anorexia nervosa no significava perda de apetite, alertando, ainda, para o facto de que indiferente perante as consequncias visveis da sua insuficincia alimentar, ou, mais do que isso,

    satisfeito com o seu aspecto fsico, o anorxico mental no se considera doente, no se queixa de

    livre vontade, e pela oposio inflexvel (...) a uma alimentao normal, que a famlia solicita a

    interveno do mdico (Moura, 1947).

    , no entanto a partir dos anos 70, do sculo vinte, que a investigao e a clnica da anorexia nervosa sofrem impulsos decisivos, em grande parte devidos contribuio de trs pioneiros: Hilde Bruch, Arthur Crisp e Gerald Russel. Bruch chama pela primeira vez a ateno para a perturbao da imagem corporal de que sofrem muitas destas doentes. Crisp conceptualizou a anorexia nervosa como fobia do peso, devido ao receio mrbido que estes doentes tm de engordar, relacionando-a com as dificuldades psicolgicas de encarar as transformaes maturativas da puberdade e da adolescncia. A mudana do corpo, as questes levantadas pelo grupo, a sexualidade emergente e o desejo de autonomia levariam a uma fuga ao crescimento, explicativa da regresso e a um padro infantil caracterstico desta afeco (Daniel Sampaio, 1998, pg. 105).

    Bruch, trabalhou durante trs dcadas com pacientes anorcticas e desenvolveu no livro Eating Disorders a ideia de que a anorexia nervosa deve ser compreendida em termos do desenvolvimento da personalidade no contexto individual e familiar, em que a funo alimentar se

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    tornou o foco de conflitos psicolgicos. Vrios autores psicanalistas se debruaram sobre a compreenso da anorexia nervosa e Palazzoli Selvini em 1972 explica a patologia anorctica como uma defesa do sujeito face a um perigo, por incorporao de um mau objecto, identificado ao corpo na totalidade, deduzindo que o corpo alimentado ameaador, torturante e indestrutvel e por isso deve ser mantido livre de alimento (Boua, 2000). Caroline Bynum (1987) estudou casos de santas de vrios pases, sobretudo dos finais do perodo medieval. Esta autora, centra-se sobretudo, no significado da comida e do jejum para as mulheres daquela poca e, na razo pela qual as suas vidas se caracterizam pela absteno auto-induzida de alimentos. Para Bynum, a comida constitui uma forma de as mulheres se controlarem a si prprias e ao meio social, podendo, desta forma, manipular no apenas as suas funes corporais, emoes, fertilidade e sexualidade, mas tambm os seus maridos, pais, autoridades eclesisticas e at a relao com Deus (Vandereyken & Van Deth, 1996). Segundo Vandereyken & Van Deth, 1996, altamente questionvel elaborar um diagnstico psiquitrico de uma pessoa de uma outra cultura e de um perodo histrico diferente, atravs de material histrico no seu conjunto limitado. Por outro lado, o ideal de magreza e o medo de engordar, caractersticos da anorexia nervosa, no estavam presentes nas santas jejuadoras que, no estando obcecadas pela aparncia exterior, pelo contrrio, lutavam por um motivo interior, uma fuso espiritual com o sofrimento de Cristo. Os estudos de Bruch, Crisp e Russell, foram provavelmente os que mais influenciaram na compreenso da anorexia nervosa. Bruch props que a recusa alimentar das jovens anorcticas representava uma luta pela autonomia, competncia, controlo e respeito por si prprias. Destaca o papel importante da dinmica familiar na anorexia nervosa, principalmente os conflitos relacionados com a individuao e separao dos pais, salientando ainda algumas caractersticas fundamentais desta perturbao, tais como impulso para emagrecer, sentimentos de ineficcia, distoro da imagem corporal e incapacidade de interpretar os estmulos corporais (Yudofsky, 1996). Crisp, seguindo o modelo desenvolvimental, considerava que a anorexia nervosa constitui uma resposta aos medos e conflitos associados maturidade psicobiolgica. Russel, por sua vez, vem enfatizar o

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    papel do medo mrbido em engordar, como psicopatologia central da anorexia nervosa, acabando por estabelecer, de forma clara, os critrios fundamentais que permitem o seu diagnstico (Silverman, 1997).

    A partir de 1987, Russell coordenou importantes estudos de terapia familiar no Hospital de Maudsley, em Londres. Foi a partir destes trabalhos que ficou bem marcada a vantagem do tratamento familiar, sobretudo nas anorcticas de menos de 18 anos (Daniel Sampaio, 1998).

    1.3- Anorexia Nervosa Definio

    A palavra anorexia significa, etiologicamente, inapetncia, perda mrbida, total ou parcial, do apetite, ocorre naturalmente uma resposta, categrica ou, pelo menos, conjectural que envolva a ideia duma equivalncia sinnima entre estas duas expresses: anorexia mental, inapetncia de origem psquica. indubitvel que na anorexia mental, o emagrecimento precedido da restrio alimentar, que sua causa. Os indivduos anorcticos abstm-se da ingesto de alimentos como se assim lhes fosse possvel a consecuo de uma lipodistrofia exclusiva. Ou, quando muito, lipomuscular, ou como se tivessem abolida a necessidade consciente de alimentao, ou patologicamente suprimido o to tenaz e primitivo instinto da conservao individual. Na anorexia mental existem essencialmente manifestaes objectivas, fsicas e as perturbaes funcionais, resultantes de uma pronunciada e prolongada hipo-alimentao, que tende a assumir as mais temerosas propores (Elysio de Moura, 1947). Muitas so as definies que tm surgido ao longo dos anos, sobre a anorexia nervosa. Assim, consideramos importante evidenciar algumas definies encontradas para melhor compreender esta doena. A maioria das definies de anorexia nervosa fazem referncia origem greco-latina do termo an + rexis, que significa perda de apetite. Gull definiu a anorexia como a privao do apetite, do grupo orexis, privao do desejo em geral. A anorexia nervosa uma doena no mais profundo sentido da palavra, porque nos remete para a unidade psicofisiolgica do ser humano, impedindo o discurso dualstico corpo/mente, self/pensamento, dado que a essncia do distrbio

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    est precisamente na descontinuidade dessa unidade indissolvel, que condio para a sade e para a vida, pelo menos a humana (Dulce Boua, 2000). Nas palavras de Freud, o sintoma um julgamento falso sobre a realidade. E, de facto, como temos vindo a observar, muitos enunciados falsos produz a mente anorctica. A anorexia nervosa um enunciado falso sobre a realidade (Maria Joo Sousa e Brito, 2001). A expresso anorexia mental, induz, segundo Elysio de Moura (1947), a um conceito destoante da verdade. Para substituir esta expresso foram propostas diversas expresses, no entanto h alguns anos atrs, um vocbulo novo, surgiu, de origem grega. Segundo Huchard, a palavra sitiergia, que significava apenas, o repdio dos alimentos. No entanto, continuou a ser universalmente adoptada a primitiva designao de anorexia mental, que subordina, numa relao de causalidade, a penria alimentar constante, contnua e a inapetncia eventual. A anorexia nervosa atinge principalmente raparigas adolescentes e jovens adultas. Pensa-se que assim por, nestas idades, sentirem uma enorme necessidade de independncia dos pais (que se pode traduzir em conflito) uma desadaptao em relao ao meio (que se pode traduzir em isolamento), um grande vazio; um intenso aborrecimento, onde tudo pode parecer correr mal, no tendo a vida qualquer finalidade (Carmo, 1997). Segundo Boua (1997) e Sampaio (1998), a anorexia nervosa demonstra a sua dificuldade psicolgica em conseguir aceitar e lidar com as mudanas que o corpo est a sofrer, assim como o seu novo estatuto e, consequentemente, com as responsabilidades envolvidas. O incio da restrio alimentar pode coincidir, tambm com acontecimentos de mudanas importantes, rupturas afectivas e perdas de pessoas queridas. A anorexia nervosa uma perturbao grave de conduta alimentar em que a pessoa que sofre apresenta um peso inferior ao que seria de esperar para a sua idade, sexo e altura. O peso perde-se por uma reduo extrema de comida e quase 50% das pessoas que sofrem usam o vmito auto-

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    induzido, o abuso de laxantes e/ou diurticos e o exerccio fsico extenuante para perder peso (Fairburn & Gardner, 1986 cit. in Rajsh, 2001). incalculvel o nmero de raparigas e de mulheres adultas, que nos tempos actuais se horrorizam com os efeitos inestticos ocasionados por uma alterao das funes adiposo-reguladoras. Nas anorcticas mentais, porm, a execrao da adipose descarna-as, deixa-as com a pele sobre os ossos, como que mumificadas e d-lhes a morte por consumpo, quando no sucumbem a uma doena infecciosa intercorrente, cujo prognstico fora grave pelo definhamento (Moura, 1947). Segundo Sanches de Magalhes e cols. 1980 (in Fernandes da Fonseca, 1985), a anorexia nervosa constituda essencialmente por uma excessiva perda de peso, cuja prevalncia mostra um grande predomnio no sexo feminino sobretudo adolescentes e jovens. Neste sentido, pode ser considerada como um sndrome paradigmtico da adolescncia feminina e dos distrbios psicossomticos. O genuno anorxico mental, no atenta na indispensabilidade da alimentao, no reconhece que

    um perigo mortal o espreita; no o atemoriza do destino que o espera e que desassossega e

    assusta a sua famlia, continua, impavidamente a denunciar este estranho estado de esprito, numa

    exibio de tranquilidade e de impossibilidade em face do desfalcamento progressivo do seu peso e

    do seu volume (nutrio endgena), que faz lembrar a de certos tuberculosos, j cerca da

    sepultura. (Moura, 1947).

    1.3.1- Critrios de Diagnstico

    Dally & Sargant (1966), foram os primeiros autores a proporem critrios de diagnstico de anorexia nervosa.

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    Quadro 2- Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa (Dally & Sargant, 1966)

    1. Recusa de comer acompanhada ou no de anorexia 2. Perda mnima de 10% do peso pr-morbido 3. Amenorreia de pelo menos 3 meses de durao ou, se a menstruao ainda no se manifestou, idade mnima de 16 anos 4. Ausncia de esquizofrenia, depresso grave ou doena orgnica 5. Idade de incio inferior a 35 anos

    (in Roma Torres, 1986, pg.19)

    Em 1970 Russell apresenta uma caracterizao positiva da doena, que foi decisiva para o estabelecimento dos critrios de diagnstico de anorexia nervosa. Estes critrios propostos por Russell, evitam aspectos mais polmicos ligados a definies mais ou menos arbitrrias da perda mnima de peso e limita o mximo de idade, mas no deixam de exigir um atingimento arbitrrio psicossomtico, de disfuno hipotalmica, segundo Russell, marcado pela amenorreia se tivermos em conta as sobreponveis anorexias nervosas masculinas (cit. in Roma Torres, 1986).

    Quadro 3 - Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (Russell, 1970)

    1. Perda de peso induzida pelo prprio (resultante de evitamento estudado de alimentos que possam engordar) 2. Medo mrbido de engordar, expresso abertamente ou atravs do comportamento 3. Perturbao endcrina especfica que se manifesta nas jovens ps-pubertrias pela interrupo dos perodos menstruais, ou nas jovens pr-pubertrias por um atraso na puberdade. ( in Roma Torres, 1986, pg.20)

    de salientar que existe uma diminuio do nmero de critrios de diagnstico dos autores Dally & Sargant (1966) para os critrios do autor Russell (1970). Os autores Dally & Sargant j na altura evidenciaram a ausncia de outras perturbaes como a esquizofrenia e a depresso para que se possa considerar o diagnstico de anorexia nervosa, enquanto Russell anos mais tarde abandonou este critrio. Os primeiros autores referem a idade de incio da doena enquanto Russell no foca

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    nenhuma idade para o possvel incio da anorexia nervosa. Em compensao Russell faz referncia s perturbaes endcrinas nas jovens.

    Os critrios para o distrbio da anorexia nervosa de Feighner em 1972 serviram para detectar e avaliar este distrbio. Dois anos aps Russell ter elaborado um conjunto de critrios de diagnstico, Feighner (1972) elabora os seus critrios de diagnstico em que evidencia a idade de incio da anorexia nervosa, a percentagem de perda de peso, a distoro da imagem corporal e as suas caractersticas e a no existncia de outros distrbios psiquitricos. Os critrios de diagnstico da anorexia nevosa de Feighner parecem ser mais completos que os anteriores. Quadro 4 - Critrios de Diagnstico de Anorexia Nervosa (Feighner, 1972) a) Idade de incio: 25 anos b) Anorexia acompanhada de uma perda de peso correspondente a pelo menos 25% de peso corporal c) Uma atitude distorcida e implacvel face ingesto, aos alimentos ou ao peso, que provoca fome, advertncias, certezas e ameaas, por exemplo: - Negao da doena sem reconhecer as necessidades nutritivas; - Aparente concordncia com a perda de peso manifestando abertamente que a negao aos alimentos agradvel; - Uma imagem corporal desejvel de extrema magreza evidenciando-se que gratificante para a paciente conseguir e manter este estado; - Acumulao ou manipulao exagerada de alimentos d) No h doena mdica que explique a anorexia e a perda de peso e) No h outra perturbao psiquitrica conhecida com particular referncia a perturbaes afectivas primrias, neurose obsessivo-compulsiva, fobias e esquizofrenia f) Pelo menos duas das manifestaes seguintes: - Amenorreia (supresso anormal da menstruao); - Penugem e Bradicardia (pulso em repouso de menos de 60 pulsaes); - Perodos de hiperactividade; - Episdios de bulimia e vmitos (podem ser auto-induzidos). (in Rosa Maria Rajsh, 2001)

    Em 1980, a anorexia nervosa classificada no DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disosders).

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    Quadro 5 - Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa (DSM III, 1980)

    1. Medo intenso de se tornar obeso, que no diminui medida que o indivduo perde peso 2. Alterao da imagem corporal, por exemplo pretenso de sentir-se gordo mesmo quando magro 3. Perda de peso de pelo menos 25% do peso original; com menos de 18 anos, a perda de peso original somada ao aumento esperado de peso, com base nos diagramas de crescimento, deve perfazer 25% 4. Recusa em manter o peso acima do mnimo normal adequado idade e altura 5. Ausncia de doena fsica conhecida que justifique a perda de peso

    Anos mais tarde realizaram uma reviso do manual DSM-III, onde existem algumas diferenas de critrios de diagnstico de anorexia nervosa. importante referir que as principais diferenas entre os critrios de diagnstico do DSM-III e do DSM-III-R, so bastante importantes, pois no DSM-II a perda de peso de pelo menos 25% do peso original, enquanto que no DSM-III-R a perda ponderal do peso de 15%. No DSM-III-R os autores referem, tambm, que tem de existir no sexo feminino pelo menos a perda de trs ciclos menstruais consecutivos. Podemos concluir que o DSM-III-R est mais completo que o anterior.

    Quadro 6 - Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa do DSM-III-R, 1993

    A. Recusa em manter o peso corporal mnimo do normal para a idade e altura, isto , perda ponderal de 15% ou falncia no ganho de peso correspondente ao perodo de desenvolvimento, levando a um peso de 15% abaixo do esperado B. Medo intenso de aumentar de peso ou ficar gordo, mesmo tendo peso abaixo do normal C. Distrbio da forma como o peso corporal, o tamanho e a imagem so vividos, isto a pessoa queixa-se que se sente gorda mesmo quando est emagrecida, acredita que uma zona do corpo demasiado gorda mesmo quando obviamente tem um peso abaixo do normal D. No sexo feminino, a ausncia de pelo menos 3 ciclos menstruais consecutivos quando era esperado ocorrerem (amenorreia primria ou secundria).

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    Na proposta, em 1994, de definio para o DSM-IV o grupo que a elaborou pensou que a anorexia nervosa deve ser subdividida em 2 tipos, tipo restritiva e tipo purgativo. Relativamente ao DSM-III-R, no existem diferenas significativas para o DSM-IV, apenas existe o acrescento de tipos especficos da anorexia nervosa. A anorexia nervosa restritiva caracterizada por um elevado decrscimo de peso, por restrio alimentar sem recurso a comportamentos purgativos e/ou de ingesto compulsiva. A anorexia tipo ingesto compulsiva/purgativa (anorexia nervosa bulmica), em que, durante o episdio de anorexia nervosa a pessoa tem comportamentos de ingesto compulsiva e/ou purgativos (vmitos, uso de laxantes, diurticos e inibidores de apetite, jejum e exerccio fsico intenso). Estes comportamentos, alm de complicarem o quadro clnico, so indicadores de mau prognstico (Carmo, 1994; Sampaio, 1998).

    Quadro 7 - Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa do DSM-IV, 1994

    A. Recusa em manter o peso corporal igual ou acima do normal para a idade e para a altura, o que deve ser entendido como perda de 15% de peso em relao ao esperado ou fracasso no ganho ponderal justificado para o perodo de crescimento (a maioria destes doentes so adolescentes) B. Medo intenso de aumentar de peso ou ficar gordo, mesmo quando muito emagrecido/a C. Perturbao na apreciao do peso e formas corporais, indevida influncia destes na auto-determinao, ou negao da gravidade do baixo peso actual. D. Nas mulheres, a amenorreia durante pelo menos trs meses consecutivos. Especificar tipos: Tipo restritivo: durante o episdio actual a pessoa no recorre regularmente a ingesto compulsiva de alimentos nem purgantes (por exemplo, vmitos ou mistura de laxantes, diurticos e enemas). Tipo ingesto compulsiva/tipo purgativo: durante o episdio actual a pessoa tem comportamentos bulmicos ou purgativos (vmitos ou mistura de laxantes, diurticos ou enemas).

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    Podemos observar que existiu evoluo dos critrios de diagnstico do DSM-IV para o DSM-IV-TR, 2002, houve uma diminuio dos critrios de diagnstico. Principalmente no que diz respeito perda ponderal de peso em que no primeiro os autores referem 15% e no segundo no referem qualquer valor.

    Quadro 8 - Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa, DSM-IV-TR, 2002

    A. Medo intenso de ganhar peso e recusa em manter um peso corporal mnimo em funo da idade e altura B. Perturbao da percepo da forma e peso corporais. Isto pode incluir uma indevida influncia do peso ou da forma corporal na auto-avaliao ou na negao da gravidade do grande emagrecimento actual. C. Nas mulheres aps a menarca pode ocorrer a ausncia de pelo menos 3 ciclos menstruais. Especificar um dos seguintes tipos: Tipo restritivo: durante o episdio actual o sujeito no recorre habitualmente a ingesto compulsiva ou comportamento purgativo. Tipo ingesto compulsiva/tipo purgativo: durante o episdio de anorexia nervosa a pessoa recorre habitualmente a ingesto compulsiva ou a comportamento purgativo.

    A OMS, descreve a anorexia nervosa como um baixo peso causado pelo prprio doente. De acordo com esta classificao, a combinao de factores culturais, sociais e biolgicos aparentemente contribuem para o desenvolvimento da perturbao, juntamente com uma personalidade vulnervel e outros processos psicolgicos. Esta classificao valoriza o ndice de massa corporal, sugerindo que um ndice de massa corporal igual ou inferior a 17,5 indicao de anorexia nervosa.

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    Quadro 9 - Critrios de Diagnstico CID-10

    A. Existe perda de peso, ou, nas crianas, a ausncia de aumento de peso conduzindo a um peso corporal pelo menos de 15% abaixo do normal ou esperado para a idade e estatura. B. A perda de peso auto-induzida pelo evitamento de comidas que engordam C. Existe a auto-percepo de estar demasiado gordo, um medo intenso de engordar o que leva a que seja auto-imposto um limiar de baixo peso D. Uma perturbao endcrina geral que envolve o eixo hipotlamo-hipofisrio-gonadal e que se manifesta na mulher pela presena de amenorreia e no homem pela perda de interesse e potncia sexual. E. No est includa nos critrios A e B da bulimia nervosa

    Na comparao entres estes critrios diagnstico vamos observar que se encontram com relativa facilidade descries compatveis com o quadro de anorexia nervosa, embora nem sempre se d o mesmo valor a determinadas caractersticas. Como podemos observar na tabela seguinte. Tabela 1 Comparao dos Diferentes Critrios de Diagnstico da Anorexia Nervosa

    Autores

    Caractersticas

    Dally & Sargant

    Russel Feighner DSM-III

    DSM-III-R DSM IV DSM IV- TR

    CDI-10

    Idade Incio doena

    35 - 25 - - - - -

    Perda peso 100% - 25% 25% 15% 15% - 15% Amenorreia + + + - + + + + Fobia Peso - + - + + + + -

    Recusa Comer + + + + + + + + Legenda: (+) existncia do critrio (-) ausncia do critrio

    As pacientes com anorexia nervosa apresentam entre si, semelhanas nas caractersticas e nas manifestaes clnicas. No entanto, embora tenham semelhanas nas caractersticas e manifestaes clnicas, h que dar grande importncia psicopatologia do indivduo, assim como observar casa a caso (tratamento individualizado) e famlia. Como principais manifestaes

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    fisiolgicas, observa-se principalmente o baixo peso, a hipotermia, desidratao e emagrecimento. O peso excessivamente baixo faz com que a pele se apresente seca e gretada, algumas vezes coberta de pelo (lanugo), especificamente na face, pescoo, costas, antebraos e coxas. O cabelo e unhas tornam-se quebradio (Schawabe, Lippe, chang, Pops & Yager, 1981, cit. in Mateos-Parra e Solano-Pinto, 1997).

    A maioria dos autores afirma existirem dificuldades de nvel cardiovascular nomeadamente hipotenso, bradicardia e arritmias. A nvel hematolgico observa-se anemia e leucopenia; a nvel renal e imunolgico, observam-se diabetes e infeces bacterianas. Ao nvel gastrointestinal observa-se, por exemplo obstipao grave. Os anorxicos mentais abstm-se da ingesto de alimentos como se assim lhes fosse possvel a consecuo de uma lipodistrofia exclusiva, ou quando muito, lipomuscular, ou como se tivessem abolida a necessidade consciente da alimentao, ou patologicamente suprimido o to tenaz e primitivo instinto de conservao individual (Moura, 1947) Nos casos de pacientes que utilizam o vmito, podem aparecer com cries dentrias, eroso do esmalte, resultantes do cido gstrico e sangramento intestinal.

    Tambm se podem observar alteraes do sistema endcrino, destacando-se o abaixamento do nvel de estrognios, problemas de tiride e irregularidades menstruais (Carmo, I. 2001). As manifestaes cognitivas podem ser demonstradas atravs do medo excessivo com o corpo, peso e alimentos. No caso de anorexia nervosa a repetio e a persistncia destes pensamentos convertem-se em patologia pois constituem a temtica quase exclusiva destes pacientes. medida que o quadro de anorexia nervosa vai progredindo, as pacientes continuam a negar o seu emagrecimento, reafirmando que se consideram gordas (Garner & Bermis, 1982; Cash & Brown, 1987, in Mateos-Parra e Solano-Pinto, 1997).

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    Quanto s manifestaes comportamentais, com frequncia comeam a restringir alimentos altamente calricos, com excesso de acar e hidratos de carbono, em seguida restringem alimentos com excesso de gordura e por fim alimentos proteicos especialmente a carne vermelha. Um outro comportamento observado como padro a hora das refeies, onde estes pacientes evitam comer com os membros da famlia e/ou amigos. Esta absteno por vezes to difcil que s a muito custo resiste tentao de comer. H anorxicos mentais que cedem aos apelos do seu apetite, e seguidamente ingesto de um ou de outro alimento da sua maior predileco, provocam o vmito, para sem se privarem do prazer da mesa, alcanarem o seu objectivo supremo: emagrecimento (Moura, 1947). Na anorexia nervosa tipo purgativo, ocorrem episdios de hiperfagia (as pacientes ingerem de uma forma descontrolada uma grande quantidade de comida que lhe infere uma sensao de enfartamento e de sentimentos de culpa) que na maioria das vezes leva ao vmito e/ou abuso de laxantes ou diurticos (Mateos-Parra et al., 1997)

    Apetite e fome, so traduo subjectiva, indefinvel, da necessidade vital de restaurao dos elementos anatmicos e do estado fsico-qumico do meio interior, de onde surgem as excitaes que, destinadas aos centros cerebrais reguladores das funes metablicas indispensveis ao equilbrio aquoso, qumico, nutritivo, vo dar origem a essa sensao interna que nos leva a buscar fora de ns os princpios alimentares que em ns escasseiam (Moura, 1947). Segundo diversos autores o lema das pacientes anorcticas : Nunca sentar se se pode ficar de p; nunca permanecer de p se se pode andar; nunca andar se se pode correr (Beaummout, 1978, cit. in Sampaio, D., et al 1998).

    1.3.2- Etiopatogenia

    As perspectivas sistmicas e familiares descrevem organizaes familiares consideravelmente diferentes para a anorexia e para a bulimia nervosas. A anorexia nervosa tem, por um lado, uma

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    funo de proteco, fornecendo anorctica um modo alternativo de experimentar o sucesso e, consequentemente, de aumentar a sua auto-estima, j que o seu sucesso no controlo do peso acaba por compensar os seus sentimentos de inadaptao e insignificncia. Por outro lado, um modo inconsciente da anorctica manter a sua posio de dependncia dentro da famlia, na medida em que a tarefa psicolgica de separao dos pais particularmente assustadora (Romeo, 1986).

    Segundo Gerlinghoff e Backmund, 1997, a anorexia nervosa pode desempenhar vrias funes como a de ser fonte de sofrimento; a de adiar o processo justificativo para o desempenho da anorctica, assim como para a sua infelicidade; a de ser uma busca de independncia. De acordo com Onnis, 1991, a anorexia nervosa pode ser considerada, do ponto de vista compreensivo, a trs nveis, o nvel individual (onde a anorexia surge como uma tentativa de autonomia e de individuao, embora de uma forma paradoxal pela negao dos traos especficos de identidade pessoal e sexual); o nvel familiar, o comportamento anorctico como sendo a introduo de uma diferena e um protesto na famlia e por ltimo, nvel sociocultural, a anorexia representada como uma recusa de uma cultura de abundncia, onde se privilegia a imagem do corpo e certos ideais de beleza. O envolvimento de uma diversidade e complexidade de factores socioculturais, psicolgicos e biolgicos especficos na abordagem das causas da anorexia nervosa, so pressupostos dos modelos tericos que sustentam esta concepo (Attie, Brooks-Gunn & Peterson, 1990). Podemos dizer que nenhum factor isolado se revela suficiente para explicar o desenvolvimento da anorexia nervosa. A simples exposio a um destes factores tambm no suficiente para a compreenso do surgimento da anorexia nervosa (Cooper, 1995). Importante, para alm dos factores considerados de risco, a compreenso da forma complexa da interaco dos factores de predisposio, de precipitao e de manuteno. Com base nestes factores, Cooper (cit. in Sampaio, 1998) props um modelo que conceptualiza o desenvolvimento das perturbaes do comportamento alimentar em vrias fases, sendo uma condio implcita a interaco entre os factores. Na primeira fase ou momento o indivduo

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    exposto a determinados factores de predisposio que, por definio, ocorrem antes do incio da perturbao e implica um aumento de risco para o seu desenvolvimento. A segunda fase ou momento ocorre no perodo compreendido entre o aparecimento de um precursor comportamental (como por exemplo a dieta ou a restrio alimentar) e o incio da doena. Os factores precipitantes (determinados acontecimentos) nesta fase implicam o aumento do risco de desenvolvimento da perturbao. A terceira fase ou momento, os factores de manuteno determinam o curso do quadro clnico (encontram-se em interaco com os factores protectores do meio ou do indivduo). Na figura seguinte temos o resumo sobre este modelo.

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    Figura 1- Esquema Resumo da viso global da Anorexia e Bulimia nervosas.

    __________Fase 1________________Fase 2__________________Fase 3_____________________ Vulnerabilidade Precipitao Manuteno ___________________Dieta ___________________Acontecimentos de Vida

    Inadequao____________________ ANOREXIA NERVOSA

    Nascimento Adolescncia Factores Factores Factores Biolgicos Desenvolvimento Familiares Efeitos Privao Alimentar

    Factores Culturais (Bulimia nervosa)

    Genticos Neurobiolgicos Dificuldade de Alimentao Personalidade NA, 5HT precoce

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    Atravs desta viso sobre a anorexia e bulimia nervosas, pretende-se mostrar que existe uma complexidade interacional entre os vrios factores de risco, como os factores psicolgicos, os biolgicos, os familiares e os socioculturais, ao longos das diversas fases ou momentos, em combinao com os factores de vulnerabilidade e de proteco do indivduo, que est associada ao aparecimento, curso e expresso sintomtica destas perturbaes do comportamento alimentar.

    1.3.3- Epidemiologia

    A epidemiologia refere-se essencialmente aos factores que intervm, no aparecimento de determinada perturbao ou doenas, frequncia e modo de distribuio, habitualmente apresentado sob forma de taxa de prevalncia e incidncia. As taxas de prevalncia medem o nmero de pessoas de uma populao que num determinado momento, tm uma certa doena. As taxas de incidncia medem a probabilidade de que as pessoas saudveis adquiram determinada doena num perodo de tempo especificado, sendo, portanto, o nmero de casos novos de determinada doena numa dada populao, durante um certo perodo de tempo. (Mausner e Kramer, 1990). A maioria dos estudos epidemiolgicos foram realizados utilizando critrios de diagnstico diferentes dos actuais. Os estudos que se baseiam na DSM-III (APA, 1980) e que apenas consideram o diagnstico de anorexia nervosa quando a perda de peso era de pelo menos 25%, podem revelar resultados de prevalncia menores do que os estudos que actualmente consideram um dfice de 15% em relao ao peso mnimo de referncia. O mesmo se pode dizer em relao exigncia de ausncia de trs ciclos menstruais consecutivos, que nem sempre foi observada (Carmo, 2001).

    A anorexia nervosa no uma doena de dietas, nem provocada s por falta de alimentao. Muitos dos sintomas que caracterizam a anorexia so causados pelo efeito de privao de alimentos, ou seja, a recusa alimentar leva a um enfraquecimento progressivo visvel em vrias partes do corpo (Daniel Sampaio, 1998).

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    A anorexia mental tem quase sempre um comeo insidioso, imperceptvel. Por via de regra, a alimentao vai sendo reduzida gradativamente e um mais ou menos largo perodo de hipo-alimentao, dissimulada com o auxlio dos mais variados estratagemas, das mais hbeis fraudes, antecede um emagrecimento evidente. A reduo alimentar pode ser global, mas primordialmente, no costuma incidir, sem distino, sobre quaisquer alimentos. Vo sendo abolidos, sucessivamente, os que so reputados mais nutrientes ou especialmente favorecedores de formao de gordura. Alguns anorxicos mentais pretendem sustentar-se com um alimento nico, como se assim fosse possvel ao organismo humano obter energia mecnica, energia calrica e reconstruir a sua matria (Moura, 1947). Em diversos estudos encontrados, a prevalncia da anorexia nervosa por ano inferior a 1%, mas este nmero sobe se a populao avaliada for adolescente. Tem-se considerado que a prevalncia maior nas etnias de origem europeia. Ocorre sobretudo nas classes sociais mais privilegiadas sob o ponto de vista econmico. Este aspecto tem vindo a modificar-se ao longo do tempo. Segundo Crisp, as classes socioeconmicas desfavorecidas esto mais protegidas da anorexia nervosa, mas quando esta doena surge nestas classes porque h mais psicopatologia, normalmente relacionada com o sexo, o desejo de o ocultar pode desencadear maior resistncia psicoterapia. Sendo considerado que o aparecimento de anorexia nervosa nas populaes com baixo nvel socioeconmico, torna o prognstico pior (Daniel Sampaio et al., 1999). Os autores Gotestam, Eriksen & Hagen, em 1995, num estudo com populao psiquitrica, apontaram para valores de prevalncia na ordem dos 7,3% na Noruega e, no caso de populaes de risco, Garner e Garfinkel, em 1980, encontraram num grupo de 183 bailarinas, uma taxa de prevalncia de 6,5% (Carmo, 2001). Em Portugal, os estudos realizados por Pocinho, em 2000, encontrou uma prevalncia de 0,6% de anorexia nervosa para o sexo feminino e de 0,4% para o sexo masculino, numa amostra de 224 rapazes e 325 raparigas, em que as idades se encontravam compreendidas entre os 12 e os 22 anos. Carmo, em 2001, realizou um estudo com uma amostra de 2398 estudantes do sexo feminino

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    da regio de Lisboa, com idades compreendidas entre os 10 e os 21 anos, revelou uma taxa de prevalncia de 0,37% de anorexia nervosa (Carmo, 2001).

    Grande parte dos estudos que publicam estatsticas que referem a incidncia da anorexia nervosa, sugerem que existe um aumento significativo, durante as ltimas dcadas. Um estudo efectuado em 1986, realizado por Szmukler, McCance e Hunter (Bryant-Waugh, 1996) encontraram uma incidncia de 1,6 por 100.000 habitantes, entre os anos de 1966 a 1969, e de 4,06 por 100.000 habitantes entre 1978 e 1982. Entre 1991 e 1992, os autores Rooney e cols. (1995) encontraram uma incidncia de 2,7 por 100.000 habitantes, nos centros de sade de Londres (Carmo, 2001). Quanto s caractersticas especficas do gnero, estimado que a anorexia nervosa ocorra em cerca de 0,5% a 1% das raparigas adolescentes. Ocorre 10 a 20 vezes mais nas mulheres que nos homens. Alguns autores apontam, como possveis razes para uma taxa de prevalncia to baixa: o enviesamento no diagnstico; o facto de os homens apresentarem maior dificuldade em procurar tratamento e a inexistncia de estudos em populaes no clnicas (Olivardia, Pope, Mangweth & Hudson, 1995). De acordo com os autores Vandereyken e Van Der Broucke, as caractersticas especficas de anorexia nervosa nos indivduos do sexo masculino seriam as seguintes: comeariam mais cedo do que as raparigas; o diagnstico feito mais precocemente; num tero dos casos h antecedentes de obesidade; o prognstico seria pior por haver psicopatologia associada (Daniel Sampaio et al., 1999). Anderson, em 1992, sugere que os homens que desenvolvem perturbaes do comportamento alimentar, diferem das mulheres no que diz respeito aos comportamentos de dieta, em trs aspectos essenciais: os homens fazem dieta porque, em algum momento da sua vida, tiveram peso a mais; os homens fazem dieta porque pretendem alcanar algum objectivo desportivo e fazem dieta para evitar algum problema mdico (Crosscope-Happel, C., Hutchins, D. E., Getz, H.G., Hayes, G.L., 2000). Quanto s caractersticas especficas da idade, segundo Consoli e Jeamment, 10% das mulheres com anorexia nervosa comeariam antes dos 10 anos e seria muito mais grave, visto apresentarem

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    perturbaes da personalidade e atrasos de desenvolvimento (Daniel Sampaio, 1998). Sendo uma perturbao da adolescncia, a mdia de idades do aparecimento da anorexia nervosa de 17 anos, podendo apresentar picos de maior incidncia aos 14 e 18 anos e sendo raro o aparecimento, nas mulheres, aps os 40 anos de idade (APA, 1996). O aparecimento no incio da adolescncia (entre os 13 e os 18 anos) pode ser um sinal de melhor prognstico (APA, 1996). No entanto, a maioria dos estudos apontam para um aumento de casos de anorexia nervosa em mulheres entre os 20 e os 30 anos de idade. Relativamente s caractersticas especficas da cultura a anorexia nervosa parece ser mais vezes diagnosticada nas sociedades industrializadas, principalmente quando a magreza est associada ao ideal de beleza. Os factores culturais podero, ento, influenciar bastante este tipo de perturbao (DSM-IV, 1994).

    A anorexia nervosa ocorre predominantemente na classe socioeconmica mdia/alta, das sociedades industrializadas, onde h abundncia de alimentos e, especialmente, onde nas raparigas a magreza se associa beleza (APA, 1996). McCourt e Walter estudaram populaes indianas e europeias de escolas secundrias de Birmingham e concluiram que as jovens indianas tinham mais patologia alimentar do que as europeias. Interpretaram este resultado como consequncia de um conflito cultural, que expressava tambm um conflito de geraes, representando a patologia alimentar das filhas uma forma de se oporem ao controlo das mes, vectores da cultura tradicional indiana (Daniel Sampaio et al., 1999).

    Nas sociedades ocidentais, o ideal de beleza feminino caracterizado pela magreza e capacidade de controlar o peso. Em tempos, ser-se gordo era sinal de abundncia e indicador de que a pessoa possua grande quantidade de alimentos, entretanto, a magreza converteu-se num smbolo de status social (Rutsztein, 1997). Segundo os autores Vandereyken e Van Deth, em 1996, o conceito de a anorexia ser um sndrome especfico de uma determinada cultura, expressa a ideia de que a sndrome (disfuno ou doena) no ocorre universalmente na populao, mas permanece

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    confinada a uma cultura especfica, implicando, que s tenha significado e s seja compreensvel (diagnstico, explicao e terapia) dentro da esfera psicossocial dessa mesma cultura. Nos ltimos tempos tem-se assistido a um aumento de perturbaes alimentares em pases orientais, principalmente no Japo e na China, nomeadamente nas cidades onde as mulheres so mais expostas a choques culturais e modernizao (APA, 2000).

    A evoluo, no incio da dieta, a tentativa de perder peso tem como principal objectivo melhorar um estado emocional, que se encontra de certa forma abalado por acontecimentos ou vivncias ameaadoras atravs da valorizao da auto-imagem, com o objectivo de conseguir a aprovao dos amigos e do reconhecimento do valor pessoal nas relaes interpessoais. Numa fase posterior, a perda de peso acompanhada por um sentimento de maior capacidade e eficcia, que melhoram por algum tempo o estado de humor e o auto-conceito do indivduo. Quando o comportamento restritivo se instala e se acentua, o medo do retrocesso situao anterior muito significativo. Comea, ento, a existir um controlo calrico alimentar muito intenso e que acompanhado pelo exagerado exerccio fsico dirio e, em alguns casos, com o abuso de substncias que podem acelerar o emagrecimento como os anorexgenos, laxantes ou diurticos (Boua, 2000). Relativamente s perturbaes que podero estar associadas anorexia nervosa, diversos so os autores que tm investigado sobre este aspecto. De um modo geral todos identificam como perturbaes associadas anorexia nervosa: depresso, comportamentos obsessivo-compulsivos, labilidade de humor, isolamento social, irritabilidade e insnias. As jovens anorcticas so usualmente caracterizadas como egocntricas, perfeccionistas, dependentes, egostas, introvertidas e com tendncia ao conformismo. Normalmente tm baixa auto-estima e pensamento dicotmico. Grande tendncia para procurar a perfeio (Bernardo, P. & Martins, C., 2000).

    O impulso persistente e prejudicial para a magreza em doentes com anorexia nervosa assemelha-se a um comportamento aditivo, embora o risco de anorexia nervosa parea ser transmitido de forma independente do risco do abuso de substncias. Muitas vezes tambm so vistas como comorbilidade anorexia nervosa as perturbaes de ansiedade em particular a fobia social.

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    Tambm a presena da personalidade limite (boderline) parece estar associada anorexia nervosa, principalmente a algumas atitudes como a frequncia de hospitalizaes serem elevadas, tentativas de suicdio e comportamentos de auto-mutilao. (APA, 2000).

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    SINTESE

    A etiologia das perturbaes do comportamento alimentar multideterminada, onde diversos factores interagem: factores individuais, socioculturais e psicolgicos. A maioria dos autores referem que a famlia ou dinmica familiar, sem dvida uma das caractersticas importantes no desenrolar da perturbao do comportamento alimentar. As caractersticas da famlia podem contribuir de alguma forma na vida de cada membro da famlia. As primeiras descries de famlias com jovens com perturbaes do comportamento alimentar, eram caracterizadas como famlias pertencentes a nveis socioculturais elevados e que respondiam positivamente ao tratamento. As perturbaes do comportamento alimentar tem como principais caractersticas (DSM-IV-TR, 2002): uma preocupao excessiva em aumentar de peso ou engordar, existe distoro da imagem corporal; as jovens tm dificuldade em controlar apropriadamente a ingesto de alimentos de forma a manter um peso saudvel e existem flutuaes de auto-avaliao dependendo da forma corporal ou peso percepcionados. Estas perturbaes incluem diagnsticos excluentes: Anorexia Nervosa; Bulimia Nervosa e EDNOS. Quanto h frequncia desta problemtica, afecta normalmente mulheres jovens (3,2%) entre os 14 e os 18 anos. No que diz respeito Anorexia Nervosa, as primeiras possveis descries surgiram na Idade Mdia, onde a Igreja apoiava os sacrifcios que os crentes efectuavam, incluindo jejuns de tempo prolongado, como forma de provar a sua F. Contudo, as primeiras divulgaes de Anorexia Nervosa, surgem no sculo 17 com os autores Hobbes e Cotton Matter. Apenas em 1698, Morton identifica o carcter cientfico da Anorexia Nervosa e assiste-se a um despertar do interesse por este quadro clnico. Alguns autores que contribuiram para o aprofundar do conhecimento da anorexia nervosa: William Gull, Lasgue, Charcot, Bruch, Crisp, Russel e Elysio de Moura (Portugal).

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