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1 TERRITÓRIOS DA FRONTEIRA/FRONTEIRA DOS TERRITÓRIOS: O NOVO SERTÃO DE BALSAS, SUL DO MARANHÃO 1 Danniel Madson Vieira Oliveira Universidade Federal Fluminense-UFF 2 [email protected] Resumo A territorialização da soja no município de Balsas (MA), entre 1990 a 2010, foi elencada como objeto deste estudo com o objetivo de analisar uma amálgama de processos geográficos numa área bastante dinâmica para o agronegócio vinculado à soja no Brasil. Para entender estes processos buscou-se: refletir sobre as temáticas “Fronteira” e “Des-re-territorialização” a partir da sua inserção no contexto histórico contemporâneo do município de Balsas para: constatar as consequências culturais e econômicas do processo de expansão da sojicultura nas últimas duas décadas (1990 – 2010); identificar as possíveis tensões geradas a partir de diferenciações socioculturais ocorrentes entre a população local e a população migrante no município supracitado; assim como conhecer os principais motivos que geram situações aparentemente identificadas como de separação entre estes dois segmentos da população. Palavras-chave: Territorialização. Fronteira agrária. Sojicultura no município de Balsas – MA. Introdução As mudanças espaciais, culturais, econômicas, sociais, ambientais... no município de Balsas (MA) foram (e são) bastante visíveis à quem viveu tal processo ou escuta os relatos dos habitantes mais antigos sobre o cenário pretérito, há pelo menos três décadas, quando a sojicultura ainda não se confundia com a identidade local. Quem sai do norte do estado para visitar Balsas conhece outro Maranhão, principalmente no que tange à cultura. A presença de migrantes do Centro-Sul brasileiro é comum, tal a continuidade desse processo em maior escala nas duas últimas décadas. O Centro de Tradições Gaúchas – CTG, estabelecido entre transnacionais do agronegócio, é um importante ponto de preservação e exaltação da cultura gaúcha. A cidade que antes era um entreposto do comércio fluvial, no porto dos Caraíbas, destacando-se pela pecuária extensiva e rizicultura, hoje é símbolo do “progresso” do agronegócio da soja. Porém, os contrastes sociais também saltam aos olhos de quem anda pela cidade. A separação da população que se considera culturalmente híbrida (maraúchos) dá-se também pelo esquadrinhamento dos bairros. É comum observar bairros de classe média com presença marcante de sulistas em oposição à periferia pobre. Esta população pobre atraída à cidade convive com a opulência de hipermercado,

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TERRITÓRIOS DA FRONTEIRA/FRONTEIRA DOS TERRITÓRIOS: O NOVO SERTÃO DE BALSAS, SUL DO MARANHÃO1

Danniel Madson Vieira Oliveira Universidade Federal Fluminense-UFF2

[email protected]

Resumo A territorialização da soja no município de Balsas (MA), entre 1990 a 2010, foi elencada como objeto deste estudo com o objetivo de analisar uma amálgama de processos geográficos numa área bastante dinâmica para o agronegócio vinculado à soja no Brasil. Para entender estes processos buscou-se: refletir sobre as temáticas “Fronteira” e “Des-re-territorialização” a partir da sua inserção no contexto histórico contemporâneo do município de Balsas para: constatar as consequências culturais e econômicas do processo de expansão da sojicultura nas últimas duas décadas (1990 – 2010); identificar as possíveis tensões geradas a partir de diferenciações socioculturais ocorrentes entre a população local e a população migrante no município supracitado; assim como conhecer os principais motivos que geram situações aparentemente identificadas como de separação entre estes dois segmentos da população. Palavras-chave: Territorialização. Fronteira agrária. Sojicultura no município de Balsas – MA. Introdução As mudanças espaciais, culturais, econômicas, sociais, ambientais... no município de

Balsas (MA) foram (e são) bastante visíveis à quem viveu tal processo ou escuta os

relatos dos habitantes mais antigos sobre o cenário pretérito, há pelo menos três

décadas, quando a sojicultura ainda não se confundia com a identidade local. Quem sai

do norte do estado para visitar Balsas conhece outro Maranhão, principalmente no que

tange à cultura. A presença de migrantes do Centro-Sul brasileiro é comum, tal a

continuidade desse processo em maior escala nas duas últimas décadas. O Centro de

Tradições Gaúchas – CTG, estabelecido entre transnacionais do agronegócio, é um

importante ponto de preservação e exaltação da cultura gaúcha.

A cidade que antes era um entreposto do comércio fluvial, no porto dos Caraíbas,

destacando-se pela pecuária extensiva e rizicultura, hoje é símbolo do “progresso” do

agronegócio da soja. Porém, os contrastes sociais também saltam aos olhos de quem

anda pela cidade. A separação da população que se considera culturalmente híbrida

(maraúchos) dá-se também pelo esquadrinhamento dos bairros. É comum observar

bairros de classe média com presença marcante de sulistas em oposição à periferia

pobre. Esta população pobre atraída à cidade convive com a opulência de hipermercado,

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shopping, boutiques, escolas particulares de grande porte, mansões, empresas, casas

noturnas... sem desfrutar desse “progresso” – o perto torna-se cada vez mais distante.

Instigado em refletir sobre tais processos escrevi este artigo, com o objetivo de

investigar as mudanças culturais e o processo de territorialização do capital em Balsas,

entre 1990 a 2010, decorrentes da introdução dos novos padrões sócio-econômico-

culturais e espaciais, inseridos a partir da instalação da agricultura moderna da soja e do

migrante sulista neste município. Logo, este estudo possui como área de abrangência o

município de Balsas (especificamente as áreas urbana e peri-urbana), localizado na

Mesorregião Sul do Estado Maranhão, a 830 quilômetros3 da capital – São Luís.

Para realização deste trabalho, concernente aos objetivos elencados para sua produção,

foi utilizada a abordagem etnográfica, assim como o método dialético, para observar,

pensar e interpretar os processos de territorialização na fronteira de expansão agrária no

sul maranhense, sob a égide da sojicultura, e seus desdobramentos. Ao longo do texto o

anonimato dos(as) entrevistados(as) foi mantido: quando chamados(as) neste artigo

os(as) denominei por letras maiúsculas, em ordem alfabética crescente, de acordo com a

sequência em que aparecem no texto.

Dos caminhos do gado à descoberta gaúcha: a ocupação territorial do sul maranhense

“[...] Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! [...] A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... [...]” (João Guimarães Rosa, “Grande Sertão: Veredas”, 2008, p. 294-295).

O processo de colonização territorial do Sertão de Pastos Bons4 se deu como extensão

da corrente pastoril baiana nas primeiras décadas do século XVIII, através do

devassamento do Parnaíba e genocídio dos indígenas5, já que os “[...] amplos campos

sul-maranhenses [...] representavam um convite à expansão da pecuária extensiva e

itinerante [...]” (CABRAL, 2008, p. 78). As primeiras fazendas de gado se

estabeleceram nas proximidades do Parnaíba e de Balsas, onde os pastos naturais eram

“[...] realmente bons, regados por numerosos e perenes rios [...] protegidos por florestas

ciliares e entremeados por capões de mato e palmeiras, com clima ameno e saudável

[...]” (CABRAL, 2008, p. 81). O sul maranhense era quase totalmente desvinculado da

capital, São Luís, já que a forma de ocupação econômica definiu sua ligação maior com

Bahia e Pernambuco (CABRAL, 2008). Já Velho (1981, p. 27) nos fala que “[...] A

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ligação econômica com o litoral maranhense [...] mantinha-se bastante frouxa [...] dada

a decadência da economia algodoeira. Era disputada inicialmente pelo poder de

polarização da Bahia, e depois do Pará [...].” Somente em meados do século XIX a

frente pastoril encontra os caminhos do mar: Após dominar os sertões, palmilhar suas trilhas, aprofundar seus caminhos e implantar o gado bovino em todos os recantos, os fazendeiros buscaram chegar a São Luís, através do Grajaú. Construíram canoas e, servindo-se dos índios como guias e remeiros, desceram as águas desse rio e as do Mearim e, por este, alcançaram o mar, chegando à sede administrativa da Província. Estava aberta uma nova via de comunicação que [...] teve significativa influência na vida comercial e política do alto sertão, deslocando, em parte, a antiga rota por Caxias. Por esse novo caminho desceram a produção e os reclamos dos sertanejos. E, por ele, subiram produtos de consumo, funcionários do governo e decisões governamentais [...]. (CABRAL, 2008, p. 88.

O processo de ocupação das terras sul-maranhenses ao longo do século XX6 foi

marcado por litígios entre aqueles que as conquistavam de forma espontânea e novos

habitantes que passaram a ter títulos de posse da terra (grande parte fraudulento),

desencadeando uma série de conflitos fundiários. Os tipos de colonizações camponesas

efetuadas no Maranhão, segundo Musumeci (1988, p. 17, grifos da autora), são as

seguintes: a) Colonização tradicional: formação de um campesinato a partir da crise da plantation maranhense no século XIX, caso ilustrado pelo estudo de Luiz Eduardo Soares sobre os camponeses de Bom Jesus (município de Lima Campos, no médio vale do Mearim), descendentes e herdeiros de ex-escravos a quem haviam sido doadas terras de uma antiga fazenda logo após a Abolição, convertendo-se em, e permanecendo até hoje como “terras comunais” (cf. Soares, 1981). b) Colonização dirigida: assentamento de lavradores por iniciativa estatal ou para-estatal, caso que Felipe Lindoso investigou, pesquisando a área pertencente ao projeto da COLONE (Companhia de Colonização do Nordeste, de economia mista, vinculada à SUDENE [Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste]), na região do Alto Turi (cf. Velho, coord., 1980). c) Colonização espontânea: ocupação de terras devolutas sem direcionamento oficial, levada a efeito por pequenos produtores imigrantes, na maioria de origem nordestina.

Entre as décadas de 1910 a 1970 o sertão nordestino brasileiro fora abalado por grandes

secas, que tiveram como uma das consequências o surto migratório de piauienses,

cearenses, pernambucanos e baianos para o Maranhão, que ocuparam as terras devolutas

do Estado localizadas nos vales médios úmidos dos rios Mearim, Pindaré, Corda, Balsas

e Tocantins (figura 01). Essa entrada maciça de migrantes nordestinos “não apresenta

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um desenvolvimento linear, desdobrando-se de maneira vária segundo diferentes

atividades econômicas e distintas áreas geográficas” (SANTOS; PAULA ANDRADE,

2009, p. 34), desequilibrando a relação camponês-proprietário. Surge no campo

maranhense a figura do posseiro, o indivíduo que ocupa um lote de terra sem possuir

título de propriedade (colonização espontânea). O posseiro vai sobreviver da pequena

agricultura e da pecuária extensiva:

[...] As terras, a princípio devolutas e agora em grande parte controladas pela SUDENE e por empresas que conseguiram subsídios da SUDAM, vão sendo apropriadas e as matas destruídas. Na fase de ocupação espontânea, muito intensa até a sétima década do século XX – 1961-1970 –, os caboclos nordestinos migravam para o Maranhão à procura de terras virgens de mata. Ao encontrarem as mesmas, faziam um rancho, roçavam parte da mata e ateavam fogo, preparando as terras para a cultura [...] [do] arroz, sendo financiados pelos donos de usinas beneficiadoras, a quem pagavam juros altos e se comprometiam a vender a produção [...]. No que podemos chamar de agricultura migratória, [...] As terras [...] deixadas à retaguarda [foram] ocupadas por comerciantes, industriais beneficiadores de arroz ou funcionários que as cercavam para criação [...] havendo [...] uma devastação da floresta e uma expansão da cultura do arroz e da pecuária. [...] O que se observa é que o agricultor pobre prepara a área para o pecuarista rico ocupar. Os títulos de propriedade dificilmente existem, ficando as terras com o pecuarista. (ANDRADE, 2011, p. 233-234).

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Figura 01. Correntes migratórias de ocupação do território maranhense. Fonte: Feitosa; Trovão, 2006, p. 40.

Entre as décadas de 1950 a 1990 houve a introdução do sul do Maranhão na ótica do

grande capital através dos projetos rodoviários e agropecuários. A construção das

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rodovias Belém-Brasília (BR-010, passando por Imperatriz), da Transamazônica (BR-

230) e da BR-222 (ligando Santa Inês a Açailândia) facilitou o escoamento da produção

agrícola. Keller apud Ferreira (2006, p. 142) descreve que: [...] foi por meio da construção da Belém-Brasília durante o governo do Presidente Juscelino Kubistschek, ligando o Tocantins Maranhense e o Norte de Goiás ao Sudeste industrializado e à cidade de Belém, o grande agente transformador da região. O afluxo de imigrantes nordestinos intensificou-se extraordinariamente com a ocupação sistemática da floresta amazônica, multiplicando-se os povoados e crescendo a produção de arroz. Ao mesmo tempo começam a chegar pecuaristas vindos do sul da Bahia e Nordeste de Minas Gerais, interessados pela existência de terras devolutas de mata, susceptíveis de serem transformadas em pastos artificiais; a construção da Belém-Brasília tornaria possível o escoamento da produção para o mercado de Belém [...].

Como consequência direta ocorre a hipervalorização das terras sul-maranhenses levando

a uma especulação de grandes áreas no interior do Maranhão, além de:

Aumento da concentração da propriedade rural com os projetos

agropecuários – áreas, antes ocupadas por pequenos criadores e agricultores, foram

tomadas pelos projetos do setor primário. “[...] Estes, por sua vez, se dedicando, com

raras exceções, quase exclusivamente à pecuária [no início da década de 1970], levam-

nos a sugerir que ‘setor primário’ e pecuária passaram a operar como sinônimos. [...]”

(WAGNER; MOURÃO, 1976, p. 05);

A expulsão do camponês para áreas de difícil acesso em decorrência da

criação de uma malha viária para escoar a produção dos latifúndios;

Início do processo de grilagem de terras no Maranhão: indivíduos

ocupavam as terras através de um título de propriedade que era adquirido de forma

fraudulenta em cartórios de São Luís, Imperatriz e do Estado de Goiás; Diante dessa situação, os camponeses da terra “livre” tornaram-se vulneráveis à ação dos grileiros, que com a conivência do Estado e as fraudes cartoriais, adquiriam “juridicamente” as terras já ocupadas e instalavam suas fazendas, podendo o processo ser inverso, instalando-se primeiro as fazendas. As expulsões dos camponeses tornaram-se inevitáveis. Inicialmente realizadas com métodos violentos e, posteriormente, com os resistentes, através de processos “sutis” do tipo expansão de capinzais que, penetrando “naturalmente” nas roças, inviabilizam as culturas, ou ainda com a soltura do gado, que as destroçava (RAPÔSO, 1999, p. 309).

Outra consequência direta foi o conflito entre o campesinato e o grande

capital: a terra ocupada pelo grileiro já vinha sendo trabalhada pelos posseiros desde a

década de 1910, com isso houve a proliferação de conflitos agrários entre os mesmos;

7

Desvalorização do potencial produtivo do camponês; Quando são realizadas referências à expansão capitalista no campo e suas influências diretas sobre o camponês, surgem dois elementos, combinados entre si: de um lado, os camponeses autônomos, cuja resistência é baseada no seu trabalho e no de sua família, que estariam sendo expulsos da terra, expropriados. De outro, emerge, como consequência, uma massa de agricultores que estaria se transformando em trabalhadores assalariados ou em trabalhadores sem-terra. De um lado, o agricultor que concebe aquilo que é necessário à sua reprodução social, à sua sobrevivência; de outro, o trabalhador que só é proprietário da sua força de trabalho. Enfim, os trabalhadores não detentores dos meios de produção vêem-se obrigados a vender seu único bem. Assim, o trabalho é apropriado pelo capital. (SANTOS, 2007, p. 47)

E por fim, a organização de projetos de colonização para tentar resolver

os problemas decorrentes dos conflitos de terra no Estado. O governo estadual “tentou

resolver” esta problemática através de iniciativas as quais denominaram de “ocupação

racional e ordenada de terras”, como destacaram Wagner; Mourão (1976, p. 06) cujos

objetivos oficiais seriam: “[...] disciplinar o espontaneísmo da fronteira agrícola que

avança na presente década [1970] sobre a Pré-Amazônia maranhense [...]”; “[...] efetuar

uma modernização do setor primário através da introdução de uma base empresarial

[...]”; e “[...] abertura de terras disponíveis a projetos de colonização para absorver as

famílias camponesas provenientes das áreas de ‘tensão social’ do estado [...]”.

A implantação de programas oficiais de colonização foi desenvolvida por instituições

federais e estaduais existentes ou criadas para este fim: Instituto Nacional de

Colonização e Reforma Agrária (INCRA); Companhia de Colonização do Nordeste

(COLONE); Companhia Maranhense de Colonização (COMARCO); e Instituto de

Colonização e Terras do Maranhão (ITERMA). Tais programas trouxeram embutidos

na sua prática a necessidade de afastar o “camponês” para o interior “descapitalizado” e

liberar a área de maior valor para os grandes projetos agropecuários (uma grilagem

legitimada), com o apoio das Superintendências de Desenvolvimento da Amazônia e do

Nordeste (SUDAM e SUDENE, respectivamente)7, como afirma em depoimento um

membro da Associação Camponesa (ACA) de Balsas: A: O maior grileiro foi o Estado, que através do ITERMA, foi ele que... – não temos como provar isso – vendeu títulos e títulos da mesma área, temos caso de uma área que tem mais de 10 mil hectares de área para ser titulada e não deu pra fazer no cartório porque preencheram com títulos de outras áreas, outros lugares, terras do Tocantins, aí veio um topógrafo provar que aquele título tá no Tocantins, em outra região. Então o maior grileiro foi o próprio Estado. Muita gente tem medo de falar isso, mas, é a verdade. (ACA, Balsas, 07/12/2009).

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Reforçando o papel do Estado na grilagem de terras têm-se os estudos de Paula Andrade

do final da década de 1970 na área dos Gerais de Balsas8 conhecida como Lapa (sul do

município de Riachão), quando fez um resgate histórico sobre o demarque que ocorreu

por volta de 1950. A população proveniente da colonização espontânea se estabeleceu

em locais denominados fazendas nacionais. “[...] Seriam estas aquelas faixas de terra

entre uma e outra fazenda de gado, cuja propriedade não era reivindicada por nenhum

fazendeiro. Nessas áreas, os camponeses permaneceram cultivando sem pagar pelo

aluguel da terra até a década de 50.” (PAULA ANDRADE, 2008, p. 61). Com o

demarque, promovido pelo Estado, houve uma reordenação jurídica e um amplo

processo de grilagem (legitimado) do espaço territorial no sul maranhense, como ocorre

sempre que o Estado decide reordenar a propriedade jurídica do solo (PAULA

ANDRADE, 2008). Essa grilagem foi feita primeiramente por “proprietários”

maranhenses em sua maioria, que em seguida venderam suas terras para os gaúchos,

segundo o exposto pelos senhores B (Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras

Rurais de Balsas) e C (Associação Camponesa de Balsas): B: [...] com muita facilidade eles conseguiram essas documentações destas terras até dizendo que lá era terra que tavam... [...] Improdutiva. Que não tinha criação, nada, que não tinha ninguém em cima. E aí eles documentavam. Depois de documentada aí o máximo que acontecia foi [...] Fazer um acordo e ouvir aquele pequeno ficar com um pedacinho de terra no baixo [...] A terra foi grilada foi por pessoas daqui da região mesmo, pessoas do Maranhão [...] Chegaram foi [...] fazendo essas compras de terra. [...] E que se tornou grande especulador de terra, né? (STTR, Balsas, 05/12/2009). C: Foi 1978, quando começaram a implantar os grandes projetos, começaram a pressionar os trabalhadores, eu me lembro que ouvi eles dizendo que o governo a partir daquela data, só iria querer quem produzir mecanizado, e com isso começou a expulsar muita gente do campo, pessoas que eram posseiros, já começou a vender suas posses, por qualquer preço, pra sair com medo que os indivíduos tomassem. [...] com o desenvolvimento dos projetos, foi que começou chegar o grande produtor do Sul, em 1978, os daqui da região começaram a grilar a terra e vender pros de fora. Já comprou dos grileiros. Aqui a gente diz que: o próprio pessoal do Maranhão, foi o principal grileiro, que grilaram a terra pra repassar. (ACA, Balsas, 07/12/2009).

Um fato curioso é que os gaúchos foram atraídos aos Gerais de Balsas após um

equívoco de uma empresa de colonização particular, do Estado de Goiás que: “[...] teria

vendido terras em Mato Grosso acerca de vinte produtores do município de Não me

Toques, Rio Grande do Sul. A situação legal destas terras, porém, era irregular e, por

isso, já que os compradores haviam antecipado certa quantia, a empresa lhes oferecera

terras no Maranhão [...].” (PAULA ANDRADE, 2008, p. 159). Outras características

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interessantes sobre a vinda do sulista brasileiro para o sul maranhense foram também

destacadas por Paula Andrade (2008, p. 158-159, grifos da autora): A ocupação das terras do Sul Maranhense, uma área de pecuária tradicional, por várias categorias de produtores agrícolas oriundos do Sul do país, a partir de 1974, embora seja denominada usualmente de colonização, assume características peculiares. Não se trata, exatamente, de uma experiência de colonização dirigida, nem de colonização espontânea ou de colonização particular. Tais produtores agrícolas, os denominados gaúchos, procedentes de Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina, Paraná e, sobretudo, do Rio Grande do Sul, não se transferem de seus estados de origem estimulados por nenhum programa de colonização oficial [...]. [...] [...] não se defrontam com áreas “livres”, e sim com terras efetivamente ocupadas. Não se constata [...] traços de uma experiência de colonização particular, muito embora haja menções, nos depoimentos, à presença de uma empresa desse tipo no início do processo de ocupação da região pelos denominados gaúchos.

Os gaúchos “descobrem” o sul do Maranhão nos derradeiros anos da década de 1970,

muitos comprando as terras açambarcadas pelos grileiros maranhenses, a preços

irrisórios quando comparados aos do Centro-Sul brasileiro (um dos atrativos) (tabela

01). A metamorfose proveniente do “progresso” gaúcho nesta “região” transforma

rapidamente a “cultura do couro” na “cultura do arroz”, um período de transição

marcado pelo tempo curto entre “apogeu” e “crise” econômica da rizicultura

mecanizada, até o subsequente alvorecer da “civilização da soja”, a partir do

PRODECER III em Balsas. TABELA 01. Instalação dos gaúchos no sul do Maranhão.

1974

-197

8 Os primeiros gaúchos instalam-se nos Gerais, onde passaram a cultivar a terra, após obterem carta de anuência do Estado para fins de financiamento junto à rede bancária oficial. Permaneceram nesta região durante aproximadamente dois anos, de onde se deslocaram dadas as dificuldades de escoamento da produção, passando a adquirir áreas próximas à sede da cidade de Balsas.

1979

O Estado promove na região uma ação discriminatória, na qual os produtores agrícolas gaúchos habilitam-se legalmente como posseiros, já que, após o abandono da área para fins de agricultura, haviam estabelecido ali a atividade pecuária.

1980

Apesar de julgada em 1979 a ação discriminatória, os chamados gaúchos não conseguem obter o título das terras, recorrendo, então, ao auxílio sempre mais rápido e eficaz de grileiros.

MUDANÇAS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO E PACIFICAÇÃO DOS MOVIMENTOS DE RESISTÊNCIA DOS TRABALHADORES RURAIS (SUL DO MARANHÃO)

Os gaúchos não sustentam sua atividade econômica na cobrança do aluguel da terra, como acontecia com os fazendeiros locais, promovendo, ao contrário, a introdução do assalariamento e o fim da existência da categoria agregados – camponeses que residiam e trabalhavam dentro dos limites das fazendas, pagando aluguel da terra para cultivar, em espécie ou em serviços ao proprietário. Como os gaúchos não se envolvem diretamente em atos de grilagem, preferindo, inclusive, adquirir terras já tituladas, os poucos

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movimentos de resistência pela posse da terra não são a eles dirigidos. A transformação operada pela instalação dos chamados gaúchos na região é, portanto, cercada da aura do pacifismo, do progresso lento e da implantação de instituições que levam em conta a representação do camponês da região como trabalhador livre.

Fonte: adaptado de Paula Andrade, 2008, p. 160-162.

Inicialmente (década de 1970) os grandes produtores gaúchos chegaram aos Gerais de

Balsas para desenvolver o plantio mecanizado de arroz, assim como os primeiros

campos experimentais de soja (alguns criavam gado para serem considerados posseiros

durante o processo de ação discriminatória que ocorreu em 1979). Tal rizicultura tem

elevada produtividade, expansão das áreas plantada e colhida, nos cinco primeiros anos

(1975-1979). Porém, vários fatores contribuíram para “[...] descapitalização de grande

parte dos produtores agrícolas da região que investiram na agricultura mecanizada9 [...]”

(PAULA ANDRADE, 2008, p. 150). Na década de 1980 houve declínio acentuado na

produção de arroz e muitos gaúchos viram seus investimentos falirem, tendo que vender

suas terras aos grandes grupos do agronegócio (transnacionais e grandes fazendas de

soja) que instalaram-se no sul do Maranhão nos anos 1990: D: [...] quando esse pessoal do Sul chegaram aqui... [...] era o arroz sequeiro. Aí ele continuou (?) depois do terceiro, quarto ano de, do plantio de arroz sequeiro foi que eles introduziram soja [...]. (Secretaria da Fazenda, Balsas, 27/08/2010). B: [...] o arroz foi explodindo e logo chegou a experiência da soja [...] com a pessoa que plantou arroz deu certo, quando passou para soja se quebrou. Aí é que eles foram passando a terra para os grandes grupos. (STTR, Balsas, 05/12/2009).

Porém, há uma diferenciação entre os gaúchos de Balsas. Diferenciação esta que Paula

Andrade (2008, p. 166-182) fez de acordo com a conjuntura econômica que cada um

possuía (sua situação anterior à vinda para os Gerais de Balsas e os recursos trazidos do

local de origem) ou adquiria (recursos obtidos através do Estado) ao chegar ao sul do

Maranhão (tabela 02):

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TABELA 02. Os gaúchos: diferenciação interna. FA

SES

1974-1979: ANTES DA RESTRIÇÃO DO CRÉDITO BANCÁRIO 1980-1982: COM RESTRIÇÃO DO CRÉDITO BANCÁRIO

GR

UPO

S

A B C D

CLA

SSIF

ICA

ÇÃ

O

“Abastados” “Aqueles que se valeram da possibilidade de crédito”

“Aqueles que se transferiram para o Maranhão no limite entre a concessão e

a restrição de crédito” “Assalariados gaúchos”

SIT

UA

ÇÃ

O

AN

TER

IOR

Eram grandes arrendatários, proprietários de grandes áreas no Sul do país (mais de 100 ha) ou integrantes de outros grupos sociais não ligados à terra (negociantes de automóveis, de bebidas).

Proprietários de áreas entre 10 e 20 ha, assalariados rurais e profissionais liberais (professores, advogados); Venderam suas pequenas propriedades ou outros bens no Sul do país e transferiram-se para o Maranhão.

Não há informações sobre a situação anterior deste “grupo”.

Assalariados rurais, proprietários de pequenas áreas e técnicos agrícolas de nível médio.

SIT

UA

ÇÃ

O N

O M

AR

AN

O

Trouxeram recursos (financeiros, equipamentos agrícolas, assalariados) do local de origem; Alguns pertenciam ao grupo dos denominados pioneiros; Tornaram-se proprietários de usinas de beneficiamento de arroz, unidades de tratamento de sementes, de revendedoras de equipamentos agrícolas e de usinas de extração de calcário (combinaram a atividade agropecuária a outros empreendimentos); Propriedades entre 5 a 20 mil ha; Empregavam mão-de-obra assalariada em suas fazendas.

Trouxeram recursos do local de origem (menores quando comparados ao grupo A); Adquiriram áreas maiores que as que possuíam no Sul do Brasil, a baixo preço; Investiram na agricultura com recursos obtidos em órgãos governamentais; Combinaram assalariamento de terceiros com utilização de mão-de-obra familiar; Em geral, residiam nas próprias fazendas; Muitos se achavam em condição de se tornar independentes do financiamento bancário a curto prazo.

Possuíam lavouras em estabelecimentos, de áreas mais restritas (200 a 500 ha); Enfrentaram maiores dificuldades: dívidas bancárias, sem possibilidades de se tornar independentes a curto prazo; Possuíam menos equipamento e menor volume de recursos próprios quando comparados aos grupos A e B; Menor possibilidade de assalariar terceiros: a auto-exploração da força de trabalho familiar era mais intensa.

Composto tanto por aqueles sem terra, quanto pelos que, chegaram após a restrição do crédito bancário, apesar de possuir a terra, não conseguiram se estabelecer como produtores independentes; Este grupo constituiu-se dos auto-denominados empregados, que desempenhavam nas fazendas funções de tratoristas, mecânicos, motoristas, capatazes e gerentes; Muitos deslocaram-se para o Maranhão em companhia do patrão do Sul, em regime de contrato temporário; Outros, vieram com recursos próprios e, no caso dos que cultivavam a terra no local de origem, passaram por um processo de proletarização, sem conseguir se estabelecer como produtores independentes, passando, no Maranhão, à condição de assalariados.

Fonte: adaptado de Paula Andrade, 2008, p. 166-168.

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Percebe-se que nem todos os gaúchos tornaram-se grandes produtores de arroz ou soja ao

chegarem ao Maranhão. A categoria nativa10 gaúcho abrange um grupo bastante heterogêneo,

desde a origem, que não restringe-se ao migrante do Rio Grande do Sul, mas praticamente a

todos aqueles provenientes do Centro-Sul do Brasil, sendo que a situação econômica destes

também são as mais diversas ao chegarem e se instalarem em Balsas. Tais diferenciações

internas gaúchas alteraram as relações de trabalho do sertanejo maranhense, concomitante

aos conflitos entre espaços e relações jurídicas com a terra, disputados por interesses

antagônicos, como observa-se na tabela 03:

TABELA 03. Principais conflitos entre gaúchos e sertanejos no sul do Maranhão.

MUDANÇAS/CONFLITOS ESPACIAIS, DE TRABALHO E JURÍDICOS COM A TERRA, ENTRE GAÚCHOS E TRABALHADORES RURAIS SERTANEJOS NO SUL DO MARANHÃO

Com a instalação dos projetos agropecuários com ênfase na produção do arroz em larga escala, onde tradicionalmente os trabalhadores rurais praticavam a atividade criatória (nas chapadas), os denominados gaúchos passam a implantar a agricultura em bases empresariais;

As áreas de chapadas, as chamadas fontes, as áreas de refrigério do gado, eram destinadas, pelos trabalhadores maranhenses, à caça, coleta e criação de animais, sendo consideradas como recursos naturais de usufruto comum (sem nenhuma espécie de cercamento), um patrimônio coletivo, ligadas a estratégias de sobrevivência que não a agricultura;

Uma das consequências imediatas da implantação da agricultura em bases empresariais na região é a tendência ao assalariamento de trabalhadores maranhenses;

Os chamados gaúchos não sustentam sua atividade econômica na cobrança do aluguel da terra, como acontecia com os fazendeiros locais, promovendo, ao contrário, a introdução do assalariamento e o fim da existência da categoria agregados – camponeses que residiam e trabalhavam dentro dos limites das fazendas, pagando aluguel da terra para cultivar, em espécie ou em serviços ao proprietário;

Os chamados gaúchos desconhecem a geografia da região, assim como a divisa espacial própria da frente pastoril. A organização do espaço em datas – grandes extensões de terra sem limites precisos, características da instalação das fazendas de gado, desde a segunda metade do século XVIII – lhe é desconhecida. Com a compra destas antigas áreas passam a ser exigido limites geográficos precisos, fixos, imutáveis, o que conduz a redefinição da antiga lógica em relação à divisão do espaço, e aos requisitos jurídicos necessários a uma transação de compra e venda.

Fonte: adaptado de Paula Andrade (2008, p. 100, 107, 162, 169 e 174).

A visão que a maioria dos gaúchos tenta passar quando são abordados sobre os novos usos

das chapadas, inseridos a partir da rizicultura e sojicultura mecanizada, é bem diferente da

referida acima. Tais gaúchos afirmam que as chapadas ou não possuem reservas d’água, ou

quando possuem seriam supérfluas para o sertanejo, assim como perspectivas totalizantes de

que “nunca existiram moradores” nestas áreas; desprezam a importância da atividade de caça,

que como Paula Andrade (2008) destacou é uma estratégia de sobrevivência vinculada à

agricultura, uma alternativa de proteína animal na alimentação do sertanejo; assim como não

se lembram do uso comum das chapadas para o extrativismo vegetal e outros diversos tipos

de atividades. Os espaços restantes ao sertanejo, os baixões11, estão em processo de super-

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exploração, já que os pequenos produtores sertanejos passaram a dividir quase todas as

atividades por eles desenvolvidas em áreas cada vez mais restritas, como moradia, agricultura,

pequena criação de animais, extrativismo vegetal, animal e mineral, o que poderá gerar

esgotamento dos recursos (hídricos, pedológicos, florestais, animais...) e tornar inviável a

continuidade destas atividades. Um dos chamados gaúchos de Balsas, ao abordarmos sobre tal

questão, teve um discurso em tom defensivo e persuasivo: E: [...] é isso que eu digo pra vocês, por favor é essa imagem que eu quero que vocês levem, aqui, tô falando do sul do Maranhão, não tô me referindo ao resto [do Brasil]. As áreas de lavouras ficam em cima da chapada... onde não existe água... nunca existiu morador, o pessoal do baixão que mora lá embaixo, ele subiu na chapada pra caçar... é pra isso que usam a chapada... nem roça eles faziam lá em cima, porque não tem água... só tem água da chuva. (Secretaria Municipal de Agricultura, Balsas, 07/12/2009).

Os pequenos produtores maranhenses ao ocuparem há séculos, contraditoriamente, as terras

“disponíveis12”, ou seja, “onde ocorreria a modernização do setor primário” (WAGNER;

MOURÃO, 1976, p. 07), foram paulatinamente expropriados: pressionadas a vendê-las a

qualquer preço, outros acabaram perdendo-as para grileiros e outros posseiros, por falta de

conhecimento jurídico ou de uma verdadeira atuação do STTR à favor dos trabalhadores e

trabalhadora rurais, como no caso de Balsas, relatado abaixo por um dos pequenos produtores

que vivenciou este período: C: [...] como os pequenos produtores ainda não tinha a intelectualidade de buscar a documentação dessa terra junto ao Estado, eles [grileiros] chegaram montado no título, o documento com a foto de um produtor, eles laçavam todas as terras que pudessem pegar, pegavam mesmo, conseguiam o documento, detalhe: junto ao Estado, ITERMA, chegavam, diziam: - “Tenho o documento da terra, cadê o de vocês?” Ninguém tinha, tinha posse de quarenta anos, cinquenta anos, cem anos de existência, pessoal não tinha documento, tinha posse, tinha uma vida... eles chegaram com o documento, a pessoa não tinha força pra lutar. (?) Até então o Sindicato [STTR] também era do lado deles, era dos trabalhadores, mas não era... de 1988 pra cá é que os trabalhadores começou a tomar de conta da questão... até então era praticamente governado por produtor... mas de gente que apoiava eles, porque desde a década de 1970 chegou a grande produção e daí pra cá vem se alastrando. (ACA, Balsas, 07/12/2009).

Com ajuda do Estado, os de fora estabelecem-se em Balsas repelindo os da região.

Os aventureiros do sul que enfrentam o fim do norte: diáspora, pioneirismo e mito do gaúcho

“Je hoeftniettebaden in het geld, maar pootje is welfijn…” (Em rios de dinheiro não precisas nadar, mas é um prazer banhar os pés num pouco

d’água). “Lang gewacht em stilgezwegen, nooit gedach em toch gekregen.”

(Longamente em silêncio desejado, jamais sonhado, mas afinal alcançado). (Ditados holandeses).

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A noção de pioneirismo é arraigada na idealização do desbravador, aquele que adentra, se

aventura em territórios “desconhecidos” e “inóspitos” em busca de algum eldorado. A figura

do gaúcho é bastante permeada e singularizada por esta noção, afirmada pela dispersão dos

povos europeus que se estabeleceram na Região Sul (alemães, holandeses, italianos, etc.) e

reafirmada pela diáspora gaúcha pelo Brasil e alguns países sul-americanos (figura 02).

Figura 02. A “diáspora” gaúcha. Fonte: Haesbaert, 1997, p. 23.

A aventura de uma família gaúcha pelo Brasil desconhecido foi narrada durante uma

entrevista, no nosso segundo campo, na qual a senhora F fala sobre a tentativa de superação

perante a falência e o choque ao se deparar com o nunca visto: F: Porque lá no Sul [macrorregião Sul do Brasil] a gente era agricultor né? Então a gente trabalhava com agricultura... e lá naquela época do Plano Collor... aquele, aquela mensalidade da agricultura, houve ali, nós fomos um dos... dos privilegiados que quase perdemos tudo, né? Então a gente... lá, é a palavra certa: a gente faliu, né?

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Aí a gente veio [...] tudo era diferente, tudo, tudo, tudo, o clima lá chegando no mês de agosto, primeiro de agosto... uma seca dessa. Nunca tínhamos visto seca, né? Nunca tínhamos visto poeira, nunca tinha visto nada, o Cerrado, não tinha nem ideia do que era o Cerrado, nada, nada, nada. Tudo era diferente. Foi que nem mudar água e vinho... (Gaúcha, Balsas, 27/08/2010).

A idealização de nuances positivadas do gaúcho, como um povo com “alta capacidade” de

superação, “desbravador”, “corajoso”, “pioneiro”, “empreendedor” (ROCHA, 2006), “ajusta-

se a uma exaltação de suas qualidades enquanto portador de uma cultura tida como mais

avançada” e que carrega “consigo as possibilidades de desenvolvimento e progresso

tecnológico para as regiões consideradas atrasadas e inóspitas que ocupa [...] carreando para

região possibilidades de revigoramento econômico” (PAULA ANDRADE, 2008, p. 164).

Diante dessa análise não nos assustou chegarmos próximo ao Centro de Tradições Gaúchas –

CTG – de Balsas (figuras 03 e 04), e nos depararmos com a frase: “Em qualquer chão, sempre

gaúcho pelo bem do Brasil.”

Figura 03. Mosaico 11: Placa e fachada do CTG de Balsas. Fonte: Dados da pesquisa, 21/10/2011.

Figura 04. Mosaico 12: Área interna do CTG de Balsas. Fonte: Dados da pesquisa, 21/10/2011. Para preservar e integrar sua cultura nos lugares mais distantes, os gaúchos possuem os

CTGs, cuja: [...] principal finalidade é difundir a cultura gaúcha em todos os seus aspectos históricos e sociais como o uso de ritmos musicais como o venerão, o xote, a valsa, a marchinha e outros ritmos artísticos como o balaio, a chimarrita, a tirana do lenço, etc., utilizando-se de trajes e vestuários tipicamente gaúchos que denotam

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simplicidade, respeito e simbolizam o ambiente familiar e de trabalho, embora o traje de festa utilize cores mais alegres e atraentes que transmitem elegância. Além da culinária, a difusão da literatura por meio de recitais de poesias, contos, trovas e outros. (SANDRI; BAÚ, 2008, p. 65).

As autoras supracitadas, gaúchas de Balsas, deixam transparecer sua parcialidade cultural ao

destacarem a “elegância” dos trajes tradicionais gaúchos. “O discurso destes migrantes

encontra no mito do ‘gaúcho’13 os elementos que reconhecem, valorizam e se identificam. Daí

vem o ‘orgulho’ de ser ‘gaúcho’. Orgulho relacionado com um sentimento de dignidade,

altivez e valorização exagerada de si, reduzido na expressão popular amor próprio” (ROCHA,

2006, p. 102-103). Um dos denominados pioneiros em Balsas, citado em praticamente todos

os trabalhos sobre a expansão da agricultura moderna na “região”, em diversas reportagens de

revistas com grande circulação nacional e com uma biografia publicada, é símbolo da

valorização e mito do gaúcho: O espírito aventureiro e o heroísmo dos primeiros agricultores a plantar soja em Balsas, só começaram a dar realmente frutos com o início do embarque do grão para exportação em 1992. [...] Um feito que – ninguém duvida – aconteceu por obra e teimosia de agricultores como o holandês determinado e “mais tinhoso que mato do cerrado”, Leonardus Josephus Philipsen, um dos primeiros empreendedores vindos do sul a chegar em Balsas, em 1974. “[...] Naquela época, década de 70, o governo ‘empurrava’ terra para a gente”, diz ele, lembrando que eram oferecidos financiamentos com 12 anos de prazo, mais quatro de carência, com juros de 1% ao mês. “Não pensei duas vezes. Financiei 1000 hectares em Balsas e vim com seis empregados e a família”, conta o produtor. (CORREIO RURAL, 1999 apud MOELLMANN).

A saga da gaúcha F e sua família até Balsas, pelo Brasil com fim no Norte, é mais uma de

superação, de dar a volta por cima, que reitera a noção do gaúcho pioneiro: F: [...] e essa é, é a vantagem dos aventureiros do Sul que enfrentam o Nordeste: é dar a volta, porque a maioria dos que vem do Sul eles vem exatamente isso, aventurando mesmo, é dar a volta aqui no fim no Norte. E se um dia eu tivesse que sair, se eu tivesse que sair daqui de Balsas... se eu tivesse que sair daqui você pode ter certeza que não é pro Sul não, é pro Norte que eu vou, é mais pra frente: eu vou à São Luís, eu vou à Teresina, eu vou à Fortaleza, eu vou vender coco na praia... mas eu não volto pro Sul... (Gaúcha, Balsas, 27/08/2010).

Des-re-territorialização: os des/encontros entre sertanejos e “gaúchos”

É uma coisa que também tem me acontecido muito aqui, num ano em que essa discriminação, ainda não tá havendo muita discriminação. Por exemplo: tem muito gaúcho casado com maranhense, tem muito maranhense casado com gaúcha né? [...] tem muita gente de fora. Sulista aqui. Branco casado com morena já, aqui do sul do Maranhão (trabalhador rural maranhense, Balsas, 05/12/2009). “(...) Dizer que uma sociedade é ‘tradicional’, ou que sua população está presa à tradição, não explica por que a tradição persiste, nem por que o povo se mantém fiel a ela. A persistência, como a mudança, não é uma causa, é um efeito. (...)” (WOLF, 1976, p. 10).

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O processo de interação entre a cultura gaúcha e a sertaneja é sempre destacado pelo balsense

como uma característica marcante do local. Conceitos das Ciências Sociais e Biologia juntam-

se às categorias nativas: “multiculturalismo”, “cosmopolitismo”, “simbiose”, “maraúcho”,

“garanhão”, “miscigenação”, “integração”, “hibridização”, bastante recorrentes nos relatos,

quando indaga-se sobre tal processo. Maraúcho e garanhão são os descendentes de gaúchos

que nasceram no Maranhão, filhos(as) de gaúchos(as) com maranhenses, cuja união entre

estes cônjuges é tida como possível “amenizadora” de conflitos culturais e de crescentes

influências mútuas. D: É, na realidade há uma boa interação... Tem muitos gaúcho casado com balsenses, balsenses casado com gaúcho... A interação é... é boa... como é? Como é que eles chamam? Majuara, majuara? Maranhense com gaúcho? Como é que eles chamam?... Maraúcho! (Secretaria da Fazenda, Balsas, 27/08/2010). G: Eu acho assim como vem muito gaúcho né, eu acho que meio que houve uma miscigenação assim, de cultura assim, então mesclou tudo, tanto que até eu brinco aqui, filho de maranhense com gaúcho são os garanhão né... (STTR, Balsas, 18/10/2011). H: [...] seria o multiculturalismo, nós temos hoje o multiculturalismo chamado não é? Nós temos aí o quê? Nós temos culturas de vários estados e uns costumes não é? Se entrelaçaram entre uma cultura do Maranhão com o pessoal de fora que hoje nós chamamos uma cultura... mistura de várias culturas [...] (UEMA, Balsas, 17/10/2011). Pode-se observar também que devido à chegada recente de mais migrantes à região, a cultura do município está passando por um processo de simbiose, ou seja, o entrelaçamento das culturas migradas às locais (SANDRI; BAÚ, 2008, p. 69, grifo meu).

Os rearranjos espaciais e simbólicos dos atores destes territórios, que a todo momento se

entrecruzam, dialeticamente “destruindo” partes identitárias para “construir” outras,

flexibilizando resistências culturais, redesenham constantemente as identidades do sul-

maranhense há aproximadamente quatro décadas, concernentes à des-re-territorialização. O

estranhamento aos costumes dos de fora, os forasteiros, é cada vez menor, dada a

naturalização da convivência com pessoas que estão sempre a ir e vir. Da mesma forma,

aqueles que eram de fora e se estabeleceram em Balsas, adquirem costumes que resistiam ou

estranhavam no início: H: eu vejo assim da cultura aqui, porque muitos costumes do Sul já ficou aqui, e deles também, nossos [costumes] já ficou com eles, por exemplo: é... a gente... a própria comida, Maria Izabel [arroz típico do sul-maranhense], tinha a questão da própria comida... [...] o churrasco é muito bem aceito, o chimarrão, por exemplo, maranhense toma chimarrão normal, esse tipo de coisinha de culturas, de valores que permeia em todas as culturas... Vai incorporando também automaticamente... algumas é... tomar vinho, por exemplo, a gente... eu vejo muito aí que é muito forte essa questão do vinho, como também eles [os imigrantes] também tomam banho de rio, esses tipos de coisa assim que vai incorporando tanto na cultura de um povo como outro né, vai permeando... (UEMA, Balsas, 17/10/2011).

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Durante as festas tradicionais, segundo os relatos, há interação entre gaúchos e maranhenses

tanto no CTG (que divulga e convida toda comunidade a participar de suas festas com

panfletos, veículos com autofalantes e pela televisão), quanto nos festejos do Sertão de

Balsas. Durante o segundo campo (em 2010) fomos a uma noite sertaneja no CTG, com show

de bandas locais. Apesar de gaúchos e maranhenses afirmarem veementemente que existe

essa interação, percebemos que existe uma segregação simbólica, principalmente no âmbito

econômico. O CTG é distante do núcleo urbano do município, cujo acesso torna-se quase

obrigatório por veículo particular ou alugado. O valor do ingresso individual variava, no dia,

entre 10 e 20 reais. As pessoas que frequentavam-no, aparentemente, vestiam roupas de

elevado padrão, chegavam ou saíam em carros próprios. As bebidas vendidas no local

possuíam um preço acima daqueles praticados nos estabelecimentos populares. Logo, não são

todos os maranhenses que frequentam o CTG.

Sobre a preservação das festas do Sertão de Balsas, para onde vai todo mundo, sem

discriminação, um trabalhador rural comenta: B: [...]... lá tá todo mundo. Lá não tem, né? Discriminação de ninguém, todo mundo gosta, às vezes não gosta de forró, mas aqui... aqui nessa região nós temo a Salada [mistura de ritmos]. É, o, aqui toca tudo né? E se você vai numa festa, por exemplo, numa, numa festa no Sertão com o... digo uma festa do Sertão, você vai lá. [...]. No seu ano de, de festa, virge! Mas nossa, tinha gente demais! Não? Porque o pessoal que tão aqui na cidade tem saudade das festa do Sertão. Então todo mundo quando chegar numa festa [...]no interior, tá assim de gente da cidade, cheia de carro, cheia de moto, cheio... festa mais monstro do mundo porque é, é a cultura que ainda permanece e o povo que vem de fora também gosta. Certo? É muito bom! (STTR, Balsas, 05/12/2009).

O processo de des-re-territorialização em Balsas, aparentemente “pacífico”, revela seu tom

mais infatigável quando relacionado à territorialidade do capital vinculada à sojicultura. O

boom da soja em Balsas a partir da década de 1990 foi possível, como já explanado, devido à

vinda do migrante sulista desde meados da década de 1970, atraído pelas condições naturais

favoráveis ao cultivo da soja, pelos incentivos fiscais estatais (a exemplo do PRODECER III),

pela malha de escoamento construída, assim como pelo baixo valor das terras locais. A

variação positiva do crescimento demográfico no município foi de aproximadamente 100%,

entre 1991 a 2010: de 41.648 para 83.528 habitantes (adaptado de ALVES, 2009, p. 163-164

e IBGE, 2010). “(...) Na década dos 1990 [e 2000], a produção dessa oleaginosa apresenta

substancial expansão nas terras sul-maranhenses, passando de 26.700 toneladas em 1992 para

976.119 toneladas em 2009 (um crescimento de 3754,3%)”, com uma safra de 1.198.624

toneladas em 2010 (IBGE, 2010).

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As rápidas transformações em Balsas também afetaram diretamente a população local. A

economia antes baseada na pequena produção familiar e na pecuária extensiva transfigurou-se

paulatinamente na agricultura moderna capitalizada, praticada pelas grandes empresas

instaladas na zona rural e peri-urbana de Balsas, que utilizam grandes extensões de terras,

adquiridas dos antigos proprietários ali sediados.

Uma das estratégias de resistência e readaptação dos pequenos produtores na cidade foi o

desenvolvimento de hortas urbanas e peri-urbanas, com o apoio do SEBRAE (Balsas) e da

Prefeitura Municipal de Balsas, que consequentemente gerou mudanças nos hábitos

alimentares, variando os tipos de leguminosas e verduras consumidas pelos pequenos e

médios produtores, que contam com créditos rurais do governo federal a exemplo do

Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), uma forma do

pequeno produtor resistir frente à expansão impositiva dos grandes produtores. Um dos

entrevistados conceitua, problematiza e lembra o papel do pequeno da seguinte forma: G: O pequeno [...] o que planta no toco, que tem uma lavourinha mecanizada também [...]... Pequeno mesmo, que nós chama de lavradores, que a gente chama hoje o nome agricultor familiar, ele não produz soja, ainda mais a tendência já tem pra querer plantar, eu acho que não é a hora de você querer plantar soja, porque a soja ela é um investimento alto pra ela poder te dar resultado aí não vai ter como, mas milho já planta muito o pequeno, o arroz, a mandioca, a verdura, as frutas, as hortaliças em geral é o pequeno quem planta... Pequeno é que o produto que ele consome é o básico da mesa de todos nós, o básico, 70% do que a gente consome de alimentos todos os dias é daqui, dos familiares que são dos pequenos que é os lavradores, aí já os 30% já fica que os homens produzem a parte da soja, as coisas que vai pra lá e volta enlatado e empacotado que também é consumido também né, esse já é a parte que os homens produzem, mas [...] o básico da alimentação, básico, dia-a-dia, o arroz, o feijão, a verdura, a hortaliça é o pequeno que produz, essa pesquisa já tá feita não é nem a nível de Maranhão, a nível de mundo, é o pequeno que ainda segura, o que produz e é uma produtividade que é rápida, que também tem a verdura bem rápida diária, mensal [...] o pequeno vive disso plantando as coisas e vendendo pra poder viver... (STTR, Balsas, 18/10/2011).

Diante do “crescimento”, “progresso”, “desenvolvimento” de Balsas, alguns naturalizam e

banalizam o aumento da violência, como uma consequência da colonização14: H: Aí sempre em qualquer momento de colonização não é? De um processo de... que nós estamos num processo de... digamos assim de aceleração econômica né, de progresso digamos assim sempre há o lado positivo e o lado negativo né, isso aí é notório em toda região que existe progresso, se você está... no caso é a violência não é? Que é um fato que acontece em todo lugar que antes digamos assim não tinha tanta violência como hoje eu vejo essa questão da violência de modo geral não é? Que isso é um lado negativo né, pelo crescimento, pelo progresso com a chegada de várias pessoas, estradas né, desse acesso não é? De muita gente e sempre tá tendo muita questão de violência, acentuou bastante né, aí vêm essas outras coisas que pra não... não é só no Sul mais eu vejo assim em todo lugar no Maranhão todo, nos países, nos Estados todos, no Brasil a violência chegou assim, no Brasil todo, porque eu digo assim, porque no interior era mais... era mais lento né, no interior era mais

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lento, mas hoje aqui assim como em São Luís e em qualquer lugar acentuou muito essa questão da violência, eu vejo aí assim em todos os sentidos, aí são várias causas que acontece, isso não é o caso nosso aqui né... (UEMA, Balsas, 17/10/2011).

Logo, a expansão da soja desencadeou uma série de transformações espaciais e sócio-culturais

para população vigente há mais tempo em Balsas antagônicas às “benesses” econômicas

como: êxodo rural, inchaço urbano, “latifundização”, concentração de renda, exclusão social,

degradação ambiental, dentre outras. A perspectiva de melhoria do padrão de vida ficou

praticamente restrita ao grande investidor do agronegócio na região, o migrante. E os

sertanejos de Balsas... ...(...) marcados pela cultura do Nordeste e da Amazônia (...) agora recebem a influência dos agricultores vindos do Sul, como se pode perceber pelos bairros que vão crescendo misturando belas casas com traços da herança européia dos sulistas com casas feitas de barro e cobertas de palha ainda existentes na cidade (...) (FERREIRA, 2007, p. 49).

O município de Balsas (...) teve uma expansão da periferia pobre (...). A cidade cresce de forma desordenada, motivada pelo fluxo de população que deixou de habitar as áreas rurais, seja porque foi expulsa pelo capital agropecuário ou porque ela própria cria, no seu imaginário, a ilusão de que no urbano terá alguma ocupação remunerada. É significativo o número de jovens que abandonaram suas moradias nos povoados e migram para a cidade de Balsas, deixando seus familiares mais velhos cuidando da unidade camponesa. Esta, por conseguinte, desarticula-se pela falta de braços para levar adiante o trabalho nas pequenas roças. A imagem produzida de Balsas gera expectativas também nas populações de outros municípios e até de outros estados nordestinos, sobretudo do Piauí. A expectativa criada pelos migrantes a respeito de um urbano pretensamente próspero se dissipa rapidamente quando percebem que as riquezas produzidas se canalizam para um seleto grupo dos representantes do agronegócio. Aos novos pobres que chegam ao urbano, juntam-se também os antigos, e ambos lhes restam as sobras de um crescimento econômico concentrado e concentrador. A urbanização de Balsas traz, assim, uma importante revelação de que a atual modernização é um processo que se organiza pela seleção dos espaços e das pessoas, em um constante movimento de descompasso econômico. (ALVES, 2009, p. 164-165).

A expansão da fronteira agrária em Balsas pouco beneficiou a população há mais tempo

vigente, que foi incluída precariamente nesse processo ao elencarem o migrante sulista como o

arquétipo a participar da capitalização nas terras do sul do Estado do Maranhão. O pequeno

produtor que persiste e resiste à pressão da soja surge como um ator social imprescindível e

protagonizante no que tange o contestar da cultura, sociedade, economia e poderes imperativos.

Para não concluir O processo de modernização das técnicas agrícolas no sul maranhense, com o advento da

capitalização do campo nessas terras, trouxe uma série de mudanças e conflitos entre os

sertanejos posseiros da região, grileiros maranhenses e gaúchos (aqueles elencados como

produtores arquetípicos para o direcionamento do fluxo de crédito bancário), cujos “embates”

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entre esses três grupos é responsável pela des-re-territorialização no município, quando

diferentes culturas e racionalidades se deparam sob um mesmo espaço, disputando poder, se

re-criando culturalmente, mesclando-se através de influências recíprocas; as fronteiras e os

territórios sob este embate são fluidas, em constante expansão-contração-sobreposição.

Dessa forma, o território de Balsas surgiu como uma zona pioneira vinculada à expansão

agrícola, possibilitada em grande parte pelo papel que o Estado exerceu (e exerce) no

estabelecimento da infra-estrutura necessária, assim como os incentivos fiscais que atraíram a

injeção do grande capital nacional e internacional vinculados ao agricultor sulista com larga

experiência na área e espírito empreendedor comprovado.

Através dos estudos empíricos constatou-se que a expansão da fronteira agrária em Balsas

pouco beneficiou a população maranhense, incluída precariamente nesse processo, quando o

Estado brasileiro elenca o migrante sulista como o sujeito ideal a participar da capitalização

nas terras do sul do Estado do Maranhão. Como consequências diretas houve o êxodo rural,

latifundização das terras de Balsas, periferização e/ou crescimento desordenado da cidade e a

gradativa assimilação e difusão da cultura de fora (do migrante sulista) em detrimento da

cultura local.

A pergunta-mor aos nossos gestores públicos, diante do quadro de destruição pelo

“progresso” é: como “desenvolver” as regiões consideradas inóspitas com grandes projetos

que não levam em consideração os que são da região? A recorrência para este tipo de

racionalidade é constante e não gera o “desenvolvimento” e “progresso” contido em suas

(pseudo)missões, mantendo os índices socioeconômicos alarmantes de pobreza no Maranhão

(inclusive de “pobreza” política), apesar de quarenta anos sobre promessas e expectativas de

divisão de riquezas.

O Maranhão é marcado como um Estado “sem leis”, “uma terra sem leis” exatamente pelo

fato da arbitrariedade e consentimento de órgãos governamentais com sujeitos que agem

burlando as leis. A imposição dos “grandes projetos” sobre territórios nos quais existem

grupos estabelecidos desde tempos imemoriais é uma prática que se perpetua, non sense para

os povos da região, mas concernente ao desenvolvimento e progresso, na lógica empresarial-

governamental.

Migração, espaço, fronteira e papel do Estado foram categorias que estiveram sempre ligadas

ao processo de territorialização do capital no sul do Maranhão ao longo da discussão travada

neste texto. Torna-se relevante pensarmos no Papel da Academia. Qual o nosso papel ao

desenvolvermos pesquisas? Como o outro sentir-se-á sendo analisado e ao final não saber os

resultados? A continuidade do processo deve ser nosso papel: o tempo não para, ainda mais

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no ritmo da soja, do capital moderno. No limiar do século XXI, movimentos sociais, ao

contrário do que muitos pensam, surgem mais organizados e como válvula de escape para

contestar a violência simbólica da forma como somos incluídos (grande parte precariamente)

ao projeto de mundo moderno.

É preciso que este sujeito continue contestando o Estado capitalista contemporâneo que

juntamente com as grandes empresas privadas agem como força unilateral em relação ao que

devemos ser. Nossas identidades e/ou diferenças culturais devem ser escolhidas

individualmente, ao contrário da visão impositiva e homogeneizadora da cultura ocidental

capitalista enquanto arquétipo. Da racionalidade colonizada surge um novo sujeito. Um

sujeito que resiste à colonialidade. Um sujeito possível. Resta a nós, da academia, nos

refazermos continuamente, para não concluir o que nunca deve terminar.

1 O texto aqui apresentado foi adaptado de parte do trabalho de conclusão de curso de graduação, sob a seguinte referência: OLIVEIRA, Danniel Madson Vieira. “Admirável” Sertão novo: o processo de territorialização da soja no município de Balsas, sul do Maranhão. 2011. 166 f. Monografia (Graduação em Geografia) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís. 2 Universidade Federal Fluminense. 3 Distância rodoviária. 4 O território sobre jurisdição da Vila de Pastos Bons, quando da sua criação em 29/11/1820, equivale a atuais 46 municípios (criados até o ano de 1994), todos no Maranhão, inclusive Riachão e Balsas. A data oficial da fundação de Balsas é 07/10/1892, quando foi elevada à categoria de Vila (Vila de Santo Antônio de Balsas) e desmembrada de Riachão (IMESC, 2010) (SANDRI; BAÚ, 2008). 5“O principal meio utilizado pelos criadores, para submeter e dominar o indígena, foram as bandeiras, que constituíam verdadeiros grupos de guerra, compostos de 100 a 200 homens aliciados entre os sertanejos e sob o comando de um chefe local. [...] Os mantimentos eram fornecidos pelos fazendeiros que foram, na verdade, os principais impulsionadores desses grupos armados que desempenharam um papel proeminente no devassamento da área. [...] Dessa forma, a frente de vaqueiros, por meio de afugentamento, aprisionamento, inoculação de varíola e trucidamento limpou das campinas sul-maranhenses o habitante nativo, para ceder lugar ao gado e fazer surgir a civilização do couro.” (CABRAL, 2008, p. 89-90 e 97, grifo da autora). 6 Alguns trechos deste capítulo foram adaptados do artigo: OLIVEIRA, Danniel Madson Vieira et al. Ocupação das Terras do Maranhão ao Longo do Século XX e a Injeção do Grande Capital Internacional: Modernização Capitalista do Campo e os Conflitos Agrários. In: Anais do VIII Encontro Humanístico Nacional. São Luís: Núcleo de Humanidades - NH/CCH/UFMA, 2008. 7 “De maneira conjugada as terras disponíveis seriam também apresentadas como o local onde ocorreria a modernização do ‘setor primário’ pela implantação de projetos agropecuários, valendo-se dos artigos 34/18 da SUDENE ou 5.174 da SUDAM. Coube à COMARCO ‘atrair para o Maranhão grupos empresariais, de situação financeira sólida e com experiência em implantação de projetos agropecuários, proporcionando a ocupação racional de terras devolutas...’ (Projeto de Localização de Grandes e Médias Empresas Rurais); coube à SAGRIMA (Secretaria de Agricultura do Maranhão) através de seu diretor debater com pecuaristas paulistas da Associação de Criadores de Araçatuba e de outros estados, no sentido de recrutar investidores (O ESTADO DO MARANHÃO, 24 de maio de 1973 apud WAGNER; MOURÃO, 1976, p. 06). 8 A Microrregião dos Gerais de Balsas pertence à Mesorregião Sul Maranhense e é composta pelos municípios: Alto Parnaíba, Balsas, Feira Nova do Maranhão, Riachão e Tasso Fragoso (FEITOSA; TROVÃO, 2006). 9 “[...] Técnicos ligados à rede bancária oficial enfatizam as dificuldades ligadas à composição química dos solos, à ausência de infraestrutura de escoamento da produção, à utilização irracional do maquinário, à falta de crédito para manutenção dos equipamentos, ao elevado preço dos insumos, à ausência de uma diversificação de culturas, ao baixo nível do VBC (Valor Básico de Custeio) [...]. Outros funcionários da mesma rede bancária apontam para o que chamam de ‘má fé’ e ‘falta de capacidade empresarial’ dos mutuários [...].

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Para os técnicos que integram o ‘Núcleo de Balsas da Associação dos Engenheiros Agrônomos do Maranhão’, por outro lado, a própria rede bancária oficial, é responsável pelo que apontam como a crise da agricultura na região. Para eles, houve ‘injeção maciça de recursos em um prazo curto’, e um ‘financiamento desordenado de empreendimentos aleatórios, sem levar em conta as condições de recursos naturais e infraestrutura de colheita, armazenamento e transporte’, além de uma ‘fiscalização deficiente no início do processo’ [...].” (PAULA ANDRADE, 2008, p. 150). 10 Neste caso, uma categoria do sertanejo sul-maranhense. 11 Áreas adjacentes aos vales de rios, nas cotas altimétricas mais baixas e com vários desníveis topográficos, o que lhes dão menor valor e pressão para/da agricultura mecanizada, que desenvolve-se principalmente nas áreas de chapadas, cujos terrenos são planos e permitem a utilização de máquinas como tratores, plantadeiras e colheitadeiras. 12 “A expressão terras disponíveis, como terras devolutas, tem sido interpretada usualmente de maneira dúbia. Ainda que o fato de serem estas terras pertencentes à União não signifique necessariamente que sejam áreas desabitadas, isentas do aproveitamento econômico ou recursos naturais não incorporados ao processo produtivo. É desta forma que a expressão tem sido empregada. [Como se] [...] as terras disponíveis do Maranhão [fossem] [...] terras livres, desabitadas, não ocupadas economicamente, como se “espaços vazios”. Não se efetuam quaisquer mediações.” (WAGNER; MOURÃO, 1976, p. 07). 13 O “mito do gaúcho” se dá através da supervalorização da identidade cultural original, da Revolução Farroupilha (passado heroico) como marco histórico que consolidou o gaúcho como povo revolucionário e com ideologia política progressista e atuante, além do pioneirismo deste grupo desbravador (ROCHA, 2006). 14 Interessante a utilização do termo colonização, pelo entrevistado, referindo-se ao crescimento econômico em decorrência da sojicultura concomitante à vinda dos gaúchos para se estabelecer no sul do Maranhão, já que colonização, implica a imposição dos valores do colonizador.

Referências ALVES, Vicente Eudes Lemos. As novas dinâmicas socioespaciais introduzidas pelo agronegócio nos Cerrados da Bahia, Maranhão, Piauí e Tocantins. In: BERNARDES, Júlia Adão; BRANDÃO FILHO, José Bertoldo. – (orgs.). – A territorialidade do capital. Rio de Janeiro: Arquimedes Edições, 2009. pp. 13-39. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. – 8ª ed. – São Paulo: Cortez, 2011. CABRAL, Maria do Socorro Coelho. Caminhos do gado: conquista e ocupação do sul do Maranhão. – 2ª ed. – São Luís: Edufma, 2008. FEITOSA, Antonio Cordeiro; TROVÃO, José Ribamar. Atlas escolar do Maranhão: espaço geo-histórico e cultural. João Pessoa: Grafset, 2006. FERREIRA, Antônio José de Araújo. O estado do Maranhão do Sul: velha idéia e realidade? São Luís: EDUFMA, v. 4, n. 2, pp. 138-151, dez/2006. FERREIRA, Lívia Fernanda Vasconcelos. Desenvolvimento econômico e degradação ambiental: um estudo da soja em Balsas – MA. 2007. 70 f. Monografia (Graduação em Geografia) – Centro de Ciências Humanas, Universidade Federal do Maranhão, São Luís. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Censo 2000, 2010. In: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/>. Acessado em várias datas. ______. Levantamento Sistemático da Produção Agrícola, 2010. In: <http://www.ibge.gov.br/>. Acessado em várias datas.

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