teorias da migracao

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   João Peixoto “As Teorias Explicativas das Migrações: Teorias Micro e Macro-Sociológicas ” Nº 11/2004 SOCIUS Working Papers SOCIUS – Centro de Investigação em Sociologia Económica e das Organizações Instituto Superior de Economia e Gestão Universidade Técnica de Lisboa Lisboa

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Joo Peixoto

As Teorias Explicativas das Migraes: Teorias Micro e Macro-Sociolgicas

N 11/2004

SOCIUS Working Papers SOCIUS Centro de Investigao em Sociologia Econmica e das Organizaes Instituto Superior de Economia e Gesto Universidade Tcnica de Lisboa Lisboa

SOCIUS Working Papers Publicao seriada do SOCIUS Centro de Investigao em Sociologia Econmica e das Organizaes Instituto Superior de Economia e GestoUniversidade Tecnica de Lisboa Rua Miguel Lupi, 20 1249-078 Lisboa, Portugal Tel: 21 3951787 / 21 3925800 Fax: 210 3951783 E-mail : [email protected]

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Joo Peixoto * As Teorias Explicativas das Migraes: Teorias Micro e Macro-Sociolgicas **

1 - O Enquadramento Disciplinar

1.1 - A Explicao das Migraes e os Paradigmas TericosA histria disciplinar das teorias sobre as migraes , em vrios aspectos, atribulada. O tema das migraes foi largamente ignorado pelos autores clssicos das principais cincias sociais, no perodo histrico em que estas se constituram e consolidaram 1. Apesar da importncia que os fluxos migratrios ento assumiram - no contexto europeu do final do sculo XIX e incio do sculo XX -, quer sob a forma de intensos movimentos internos, dirigidos dos campos para as cidades, quer de migraes transocenicas, que permitiram libertar parte do xodo rural e povoar os novos continentes, o tema no surge seno de forma marginal na maioria dos autores. Ao longo do sculo XX, as ligaes disciplinares das teorias sobre migraes no so tambm evidentes. Apesar de um interesse crescente pelo fenmeno, referncias mais ou menos desenvolvidas dispersaram-se por vrias cincias (com critrios de insero nem sempre claros). Na sociologia actual, o tema das migraes no surge, na maioria das vezes, autonomizado (ao contrrio de temas clssicos como o trabalho, a educao ou as questes territoriais), acontecendo o mesmo em outras cincias sociais. Entre as vrias disciplinas, aquela que lhe tem dado mais ateno tem sido, talvez, a geografia, dados os vnculos comuns com o espao. O facto de muitos gegrafos utilizarem regularmente contributos tericos provenientes de outras cincias sociais reflecte, talvez, a situao geral dos estudos sobre o tema. As desvantagens da terra de ningum tm sido, sob uma outra perspectiva, as vantagens da interdisciplinaridade. Uma vez que as razes disciplinares so dbeis e que o tema importa a um variado nmero de especialistas, ele tem sido desenvolvido sob diversas perspectivas tericas, cujo conhecimento recproco (dado o relativamente reduzido nmero deSOCIUS, ISEG/UTL. Texto originalmente publicado em As Migraes dos Quadros Altamente Qualificados em Portugal Fluxos Migratrios Inter-Regionais e Internacionais e Mobilidade Intra-Organizacional, Dissertao de doutoramento, Lisboa, Instituto Superior de Economia e Gesto, Universidade Tcnica de Lisboa, 1998, pp. 39-68.** *

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investigadores) tem permitido grandes benefcios. Como sublinha Jansen, ao referir-se inexistncia (esperada) de uma teoria geral da migrao,A migrao um problema demogrfico: influencia a dimenso das populaes na origem e no destino; um problema econmico: muitas mudanas na populao so devidas a desequilbrios econmicos entre diferentes reas; pode ser um problema poltico: tal particularmente verdade nas migraes internacionais, onde restries e condicionantes so aplicadas queles que pretendem atravessar uma fronteira poltica; envolve a psicologia social, no sentido em que o migrante est envolvido num processo de tomada de deciso antes da partida, e porque a sua personalidade pode desempenhar um papel importante no sucesso com que se integra na sociedade de acolhimento; e tambm um problema sociolgico, uma vez que a estrutura social e o sistema cultural, tanto dos lugares de origem como de destino, so afectados pela migrao e, em contrapartida, afectam o migrante (Jansen, 1969: 60).

A evoluo dos estudos sobre migraes - assunto cuja amplitude escapa aos objectivos deste trabalho - revela um panorama interessante. O nico autor considerado clssico deste tema Ravenstein. Este autor, gegrafo e cartgrafo ingls da viragem do sculo XIX para o XX, , quase invariavelmente, o decano das referncias bibliogrficas da teoria migratria, citado em trabalhos oriundos de diferentes cincias sociais. Ravenstein publicou, no final do sculo XIX, dois textos sobre as leis das migraes, acerca de fluxos internos e internacionais (Ravenstein, 1885 e 1889). Em certa medida, a natureza destes estudos pode ser considerada primria: eles so, essencialmente, uma deduo terica baseada na realidade emprica, no muito sistemtica, ento disponvel - primeiro o Recenseamento britnico de 1881 e, depois, dados para um conjunto mais alargado de pases (europeus e norte-americanos). Algum positivismo do autor, tpico da poca (apesar da verosimilhana de muitas das suas asseres, reconhece-se hoje serem inacessveis no apenas estas, como muitas outras leis), no , tambm, totalmente contrabalanado por uma teoria mais abrangente - como sucedia em outros autores de ento 2. Apesar disto, o carcter precursor de Ravenstein notrio. Em primeiroPara as referncias, insertas neste captulo, acerca das diversas tradies sociolgicas, incluindo o debate existente entre as abordagens holistas e individualistas e, de forma relacionada, as leituras sociolgica e econmica da realidade, consulte-se Ferreira et al., 1995 e Ferreira et al., 1996. 2 As leis da migrao, apresentadas no primeiro estudo de Ravenstein, em 1885, so as seguintes: (1) A maioria dos migrantes apenas percorre uma curta distncia, e as correntes de migrao dirigem-se para os centros de comrcio [e da indstria]. (2) O processo de atraco para uma cidade em rpido crescimento comea pelas suas zonas circundantes, e gradualmente estende-se para lugares mais remotos. (3) O processo de disperso o inverso do de atraco. (4) Cada corrente principal de migrao produz uma contra-corrente compensadora. (5) Os migrantes provenientes de longas distncias preferem os grandes centros de comrcio [e da indstria]. (6) Os nativos das cidades so menos migratrios do que os das zonas rurais do pas. (7) As mulheres so mais migratrias do que os homens (extrado do ndice do Vol. 48 do Journal of the Royal Statistical Society, 1885, p. 710; ver, para mais pormenores, Ravenstein, 1885: 198-9). No seu tratamento de Ravenstein, e com base nos comentrios de 1889, Lee (1969: 283) subsume aqueles sete enunciados a cinco, e acrescenta-lhes dois outros: o do aumento da migrao com o progresso tecnolgico (desenvolvimento dos meios de locomoo, indstria e comrcio); e o da dominncia dos motivos econmicos (predominncia do desejo de melhoramento dos aspectos materiais da vida humana). Podemos admitir, entretanto, que a acusao de positivismo ao autor no totalmente fundada. No texto de 1889 Ravenstein escreve: Estou perfeitamente consciente de que as nossas leis da populao, e as leis econmicas em geral, no tm a rigidez das leis fsicas, porque esto continuamente sob a interferncia da aco humana (human agency) (Ravenstein, 1889: 241). De outro ponto de vista, e igualmente a favor do autor, encontra-se o facto de, apesar do carcter aparentemente avulso das suas leis, uma linha terica coerente lhes estar subjacente (ver frente).1

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lugar, apresenta uma anlise emprica pormenorizada dos fenmenos migratrios, onde se reconhecem muitos dos procedimentos metodolgicos ulteriores. Em segundo lugar, vrios dos temas e conceitos que anuncia so os posteriormente estudados: classificaes de migrantes (temporrios, de curta e mdia distncia, entre outros), migraes por etapas, regies de atraco e repulso, efeito da distncia, contra-correntes, aco de estmulos econmicos, etc.. O mais importante, para o argumento que esboamos, a teoria implcita que Ravenstein anuncia. Tal como hoje generalizadamente reconhecido, o autor est na base de todos os modelos modernos de atraco-repulso - ou, na sua denominao mais vulgar, os modelos de push-pull (cf., por exemplo, Jackson, 1991: 20-2). A filiao paradigmtica destes modelos , como se sabe, clara. Eles consideram que, no centro dos processos migratrios, se encontra a deciso de um agente racional que, na posse de informao sobre as caractersticas relativas das regies A e B, e de dados contextuais respeitantes sua situao individual e grupal, se decide pela permanncia ou pela migrao. De um certo ponto de vista, a existncia de regies (ou pases) com caractersticas econmicas desiguais pode ser lido de uma forma mais estrutural. A acepo que encontramos nestes modelos - e em Ravenstein - , no entanto, tpica de uma leitura econmica neo-clssica da realidade. Os factores e as variveis intervenientes apenas actuam como precursores da deciso de um agente racionalmente motivado. Este tipo de raciocnio radica na cincia econmica, de raiz marginalista, dominante do final do sculo XIX. De alguma forma, o facto de Ravenstein ter sido reivindicado - tambm pela sociologia, ao longo do sculo XX, como um clssico das migraes, demonstra o carcter transversal desta rea temtica. Se lembrarmos que a sociologia, no final do sculo passado, se consolidava, enquanto disciplina autnoma, por uma leitura holista e estruturalista da realidade - em que os comportamentos individuais resultam de foras sociais profundas (Durkheim) ou de relaes sociais inevitveis (Marx); se recordarmos que, ao longo da maioria do sculo XX, foi ainda este tipo de leitura que predominou, na forma do funcionalismo (Parsons) ou das teorias neo-marxistas - veremos como a sociologia das migraes foi, desde o seu incio, um territrio margem dos principais debates paradigmticos nesta cincia. certo que a sociologia possuiu, sempre, uma leitura dual, com complementaridade entre as perspectivas estruturalistas e as que enfatizavam o papel da aco (linha terica de que a obra de Weber o melhor exemplo). Mas o interessante, no campo de anlise das migraes, que este tipo de dualismo permaneceu ao longo da histria da disciplina (mesmo quando existiram leituras bem demarcadas por parte de alguns autores). A ideia de um desenvolvimento interdisciplinar do estudo das migraes refora-se com a viso das principais obras de referncia das primeiras dcadas deste sculo. Numa perspectiva

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ampla, alguns dos trabalhos pioneiros das teorias migratrias tm uma dimenso nitidamente sociolgica: o caso do clssico de Thomas e Znaniecki, editado entre 1918 e 1920, acerca da integrao dos camponeses imigrados da Europa Oriental nas cidades norte-americanas; ou de outros textos da Escola de Chicago - com destaque para os de Park -, sobretudo desde 1915, acerca da integrao e conflitos urbanos, em larga parte devidos absoro migratria. No foi por acaso que estas obras tiveram uma apropriao por outras reas disciplinares da sociologia, incluindo os estudos sobre a famlia, a ruralidade e, sobretudo, a sociologia urbana (cf. Ferreira, 1992). Os textos que se integraram explicitamente no domnio das migraes foram outros: a compilao de Dorothy Thomas (1938), editada no final dos anos 30, acerca da selectividade migratria - que rene contributos provenientes de diversas reas paradigmticas; o texto de Zipf (1946) e os de Stouffer (1940 e 1960), acerca da relao entre mobilidade e distncia e das oportunidades intervenientes (intervening opportunities) - que se inserem na tradio aberta por Ravenstein e iniciam uma formalizao matemtica crescente do problema; o de Rossi (1955), acerca do ciclo de vida e mobilidade residencial urbana - que se integra explicitamente na investigao social (e psicologia social), embora sem grande apoio nos principais paradigmas sociolgicos de ento; o de Rose (1970/1958), acerca da relao entre distncia e estatuto scio-econmico dos migrantes - que procura articular as anlises quantitativas de Stouffer com a varivel sociolgica do estatuto; ou o de Lee (1969/1966) - texto que surge numa revista de demografia e procura conjugar as mltiplas referncias tericas anteriores, incluindo a de Ravenstein, numa (novamente ambiciosa) teoria da migrao. O facto de muitos destes textos se basearem na assumpo de escolha racional do migrante, apresentando uma ligao perspectiva neo-clssica da economia (o racionalismo econmico); se articularem com a anlise geogrfica, dada a importncia da dimenso espacial; no utilizarem, quando se inserem na sociologia (sobretudo americana - muitos so publicados em revistas sociolgicas desta nacionalidade), muita da linguagem funcionalista de ento; e terem sido, depois, amalgamados no estudo dos aspectos sociolgicos das migraes (cf. Jansen, 1969, por exemplo) - revela o pioneirismo interdisciplinar desta rea, quer no campo mais vasto das cincias sociais, quer no da sociologia em particular. Note-se, neste aspecto, que a maior abertura da sociologia s correntes do individualismo metodolgico seria posterior aos anos 60. O facto de a linha terica aberta pela Escola de Chicago, na universidade americana, ter sido parcialmente tomada pelos estudiosos das migraes revela tambm a sua heterodoxia: os tericos de Chicago s em escasso grau tm a ver com o que seria a sociologia americana dominante durante a maioria do sculo XX 3.3

Se a interdisciplinaridade clara quando recorremos leitura de algumas obras de referncia da sociologia das migraes, o mesmo sucede se consultarmos alguns textos oriundos da economia, geografia ou demografia. Se

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O esquecimento a que a sociologia clssica (e, em consequncia, a sociologia contempornea) votaria os temas migratrios daria lugar, vrios anos mais tarde, a algumas atitudes de protesto. O caso mais interessante parece ser o de Musgrove. Este autor, socilogo britnico (ignorado no mainstream sociolgico), proporia no incio dos anos 60 (Musgrove, 1963) uma extenso dos conceitos de Weber, de modo a constituir uma sociologia explcita da migrao. Musgrove - cujo trabalho voltaremos a referir na Parte II - considerou que existia, sobretudo desde o final do sculo XIX (no caso britnico), uma crescente mobilidade territorial das elites, como consequncia da formalizao crescente dos processos educativos e profissionais (criao de credenciais escolares e de exerccio profissional) e do aumento generalizado da necessidade de qualificaes de ambos os tipos. A sua ideia era a de que a formalizao dos processos de constituio das elites (econmicas, polticas, etc.) implicava uma diminuio dos vnculos de tipo informal (ou, poderamos dizer, comunitrio - no sentido de Tnnies) com as comunidades locais. Assim, na sua opinio,A tendncia crescente, ao longo do ltimo sculo, para (...) os lderes locais provirem de outros lugares constitui uma grande revoluo social. Antes, as conexes locais e a posse de propriedade (...) eram qualificaes desejveis, seno essenciais, para os lderes voluntrios locais. (Hoje), eles so conhecidos por aquilo que fazem, mais do que por aquilo que so (Musgrove, 1963: 11).

O autor cria, em resultado, o conceito de migratoriedade (migratoriness), que pensa ser uma das dimenses fundamentais da modernidade. Segundo ele - numa passagem com bvias implicaes sobre as teorias clssicas -, a (...) migratoriedade uma dimenso negligenciada da mudana, que Max Weber descreveu, entre a liderana tradicional e a racional-legal (id., ibid.: 12). Podemos admitir, em concluso, que a bibliografia sobre migraes partilha referncias mltiplas, tanto as que provm de diferentes disciplinas do social como as que envolvem os prprios debates internos da sociologia. No primeiro caso, se buscarmos as teorias que tm procurado explicar a natureza do processo migratrio, encontraremos vrias ascendncias tericas. Por outras palavras, aquilo que vulgarmente se designa por sociologia das migraes

lermos os dois textos insertos na International Encyclopedia of Social Sciences, publicada em 1968, acerca dos aspectos sociais (Petersen, 1968) e dos aspectos econmicos (Thomas, 1968) da migrao, as diferenas so reduzidas: eles tratam praticamente dos mesmos problemas e apenas um maior enfoque explcito nos motivos no econmicos e nos econmicos, para alm de uma bibliografia algo diversa, lhes confere singularidade. Os textos de Greenwood (1975) e Greenwood et al. (1991), provenientes da rea econmica, revelam tambm este carcter misto: entre as questes abordadas, muitas relevam de outras reas disciplinares. Podemos admitir que a diferena mais evidente entre os diferentes tratamentos disciplinares seja, talvez, de tipo formal ou metodolgico. As abordagens sociolgicas privilegiam, em geral, um tratamento mais qualitativo, embora possam recorrer a um tratamento quantitativo (demogrfico) simples do problema. Os estudos econmicos diferenciam-se pelo uso intensivo de modelos matemticos, que tornam parte das suas referncias inacessveis a um leitor oriundo de outras reas cientficas. As anlises geogrficas e demogrficas caracterizam-se por uma utilizao variada de metodologias: temas qualitativos (sobretudo na geografia) e uma utilizao, mais ou menos aprofundada, da matematizao (no caso da demografia, as anlises consistem tanto em elaboradas formalizaes como em tratamentos relativamente incipientes do fenmeno).

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pode ser considerado como uma amlgama de referncias proveniente de diferentes cincias sociais. No segundo caso, a coexistncia de explicaes sociolgicas de tipo micro - como as que envolvem o processo racional de tomada de deciso - e de tipo macro - como as que referem a existncia de foras que impelem migrao (como sucede em Musgrove) - notria ao longo do tempo. A maior parte destas teorias tem sido desenvolvida para a anlise clssica dos movimentos migratrios. provvel, no entanto, que o seu carcter interdisciplinar se reforce ao observarmos as novas formas de mobilidade. A anlise da circulao e de todas as formas de mobilidade que se afastam da migrao mais corrente (incluindo a mobilidade virtual) obriga, certamente, a uma conjugao reforada de perspectivas tericas.

1.2 - As Teorias das Migraes e a Sociologia EconmicaA natureza das fronteiras disciplinares dos estudos sobre migraes favorece, de forma clara, a sua ligao aos temas da sociologia econmica. Esta ltima disciplina , ela prpria, de delimitao difcil. A sua existncia varia entre obras clssicas onde a fuso de referncias completa (os casos tpicos de Marx ou Weber), projectos imperiais provenientes da sociologia ou da economia (tendo Parsons e Becker como os mximos expoentes), tentativas pontuais de aproximao temtica (como o caso de Schumpeter ou vrias especializaes da sociologia, como a sociologia do trabalho) e a referncia recente a uma nova sociologia econmica (iniciada por Granovetter e divulgada, entre outros, por Swedberg) (acerca das relaes entre economia e sociologia e da constituio da sociologia econmica consulte-se Ferreira et al., 1996 e, em particular, Marques et al., 1996). A natureza aberta das fronteiras disciplinares da sociologia econmica convida, claramente, a uma relao com o tema migratrio, ele prprio de desenvolvimento interdisciplinar. De forma explcita, a relao entre estas duas reas tericas tem sido escassamente abordada. As referncias a uma articulao temtica podem ser encontradas em vrios autores, mas raramente de forma sistemtica (cf., por exemplo, Martinelli e Smelser, 1990 ou Waldinger, 1994). Nestes casos, a confluncia de teorias no parece ultrapassar uma motivao pontual. No plo oposto, Alejandro Portes , provavelmente, o autor que mais tem aprofundado o estudo das migraes com recurso s perspectivas abertas pela sociologia econmica (cf. Portes, 1995a e 1995b; Portes e Brcz, 1989; Portes e Sensenbrenner, 1993). O uso de um instrumental terico proveniente da economia e da sociologia no original neste autor. Com uma intensidade varivel, quase todos os estudiosos das migraes o fazem, mesmo que de forma no consciente. O que h de mais saliente nos seus textos tem sido o recurso aos conceitos desenvolvidos pela

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nova sociologia econmica - como os de embeddedness, capital social ou redes sociais - como pontos privilegiados de iluminao de questes migratrias. Vejamos, em primeiro lugar, algumas referncias gerais. Ao indicar as principais problemticas da sociologia econmica, Martinelli e Smelser (1990) individualizam, entre outras, as questes migratrias. Segundo eles, um dos impactos do desenvolvimento econmico na sociedade, dados os desnveis de produtividade, a reafectao de recursos, os novos mercados e tipos de distribuio, a distribuio geogrfica dos recursos humanos.Dependendo do padro de desenvolvimento - escrevem -, esta migrao pode dirigir-se de uma sociedade para outra, ser interna a uma sociedade ou, como caso particular, ligar zonas de actividade por parte de empresas multinacionais. Entre as mltiplas consequncias deste facto encontram-se a perturbao dos padres residenciais, o choque cultural e a aculturao, os novos contactos e conflitos tnicos, diferentes tipos de presso sobre as infra-estruturas (tal como transportes e educao) medida que as reas se enchem ou se esvaziam, e a criao de novos centros urbanos com os seus inevitveis problemas sociais (id., ibid.: 47).

Se observarmos, em profundidade, algumas noes da sociologia econmica poderemos captar perspectivas analticas mais restritas. Um conceito central s aproximaes tericas recentes o de embeddedness. Este conceito foi recentemente elaborado por Granovetter (depois da sua origem inicial no trabalho de Polanyi); pelo termo, quis aquele autor significar o forte grau de relao (a incrustao ou enraizamento) entre aco econmica e estrutura social (Granovetter, 1985) 4. A ideia no , de facto, nova: apenas a sua operacionalizao em diferentes contextos de pesquisa que a torna (de novo) reveladora. Em termos resumidos, Granovetter aborda as relaes necessrias entre a perspectiva sociolgica e o estudo da vida econmica: esta ltima no se desenrola apenas num campo de aco racional de indivduos atomizados, procurando objectivos estritamente "econmicos", mas decorre no seio de (est embedded em) um campo de relaes e estruturas sociais (relaes pessoais, contextuais ou histricas concretas). De forma exemplar, critica tanto a viso sub-socializada (undersocialized) do actor social, tpica da economia neo-clssica, como a sobre-socializada, bem demonstrada pelos argumentos funcionalistas (e estruturalistas) de Parsons; e argumenta, tambm, tanto contra a ideia dos mercados de competio perfeita, pressuposta pelos primeiros, como a de interiorizao normativa absoluta dos agentes, admitida pelos segundos. Em termos prticos salienta-nos que, em qualquer relao de mercado (como uma actividade de negcios), est presente um grau importante de relao pessoal, onde crucial a instaurao de confiana e a criao de expectativas. A eliminao dos riscos de fraude e a diminuio

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Escreve Granovetter (1985: 481) que uma anlise sofisticada da aco econmica deve considerar a sua incrustao (embeddedness) na estrutura das relaes sociais. Segundo Portes (1995b: 6), o conceito (...) refere-se ao facto de as transaces econmicas dos mais diversos tipos estarem inseridas em estruturas sociais mais amplas, que afectam as suas formas e os seus resultados.

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dos custos de procura de novos contactos no deixam de ser, neste aspecto, um objectivo econmico; mas a constituio de um capital social, a criao de redes de contactos, a probabilidade de uma origem social ou cultural comuns ou mesmo o prazer em trabalhar com conhecidos so argumentos que escapam viso habitual da economia 5. a aplicao dos conceitos (re)descobertos por Granovetter, em conjunto com outros desenvolvidos por autores importantes nesta rea - como a noo de capital social de Bourdieu (1979) ou Coleman (1988), por exemplo -, combinada com um conhecimento do tema das migraes (embora num sentido particular: a integrao dos migrantes na sociedade norteamericana), que atribuem interesse ao trabalho de Portes (e autores com ele relacionados). Se considerarmos alguns dos seus textos recentes observaremos uma relao cada vez mais intensa entre as duas temticas. Em Portes e Brcz (1989) realizada uma confrontao crtica entre algumas teorias acerca das causas migratrias e da integrao dos migrantes (incluindo o modelo push-pull) e perspectivas alternativas. Neste ltimo caso incluem-se a teoria das redes migratrias (relaes sociais como determinantes dos fluxos e no clculos individuais com base em desigualdades econmicas) e uma tipologia das mltiplas formas de integrao dos migrantes (segundo o contexto de recepo e a classe social). A ideia dos autores , explicitamente, analisar o sistema internacional e a social embeddedness dos seus processos. Em Portes e Sensenbrenner (1993), o uso dos temas da sociologia econmica explcito. Argumenta-se que as estruturas e os contextos sociais influenciam profundamente a realidade econmica e que a sociologia deve resgatar esta anlise da exclusiva perspectiva neo-clssica. No caso da imigrao, o conceito operativo proposto o de capital social (como exemplo da social embeddedness). Este consiste num capital acumulado de relaes sociais, na forma de expectativas para a aco ou de fecho de relaes numa comunidade, expresso frequentemente em redes tnicas e outras redes de suporte s migraes. A sua presena nas comunidades imigrantes elevada: este tipo de recurso que est na base dos laos de solidariedade (bounded solidarity) e confiana (como a enforceable trust), necessrios tanto manuteno do fluxo migratrio como integrao do migrante (mesmo quando esta ocorre no enclave tnico a que o indivduo pertence e no na sociedade em geral e quando limita, mais do que liberta, as capacidades econmicas individuais). Finalmente, num volume recente (Portes, 1995a e 1995b), o autor inverte a hierarquia: prope-se prolongar a reflexo sobre a sociologia

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O conceito de embeddedness tem sido, ainda, aplicado em outras cincias sociais. A sua adopo mais significativa parece suceder na geografia, correspondendo ao argumento de que a aco econmica e a estrutura social esto fortemente enraizadas em contextos territoriais.

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econmica com o auxlio de um conhecimento emprico concreto - as migraes (em particular, a imigrao dirigida aos EUA) 6. O grau de possibilidades aberto pela bibliografia (interdisciplinar) sobre as migraes, em primeiro lugar, e pela sua relao com a sociologia econmica, em segundo, elevado. Em vrios casos se fala da necessidade de construir uma teoria geral, de operacionalizar e testar melhor os mltiplos conceitos e perspectivas que vo existindo. Provavelmente, dado o carcter aberto de ambas as temticas, tal esforo inglrio: a iluso das teorias acabadas ceder sempre lugar concorrncia de novas vises que a esto (endemicamente) instaladas. Nos Quadros 2.1 e 2.2 encontram-se dois modelos possveis de sntese dos cruzamentos possibilitados por estas disciplinas. Podemos admitir que uma das vantagens da sociologia econmica combinar, de alguma forma, o enfoque fundador da economia neo-clssica, baseado na ideia de escolha racional, com o da sociologia holista, que aponta para os vnculos estabelecidos pelas foras sociais estruturantes. Se definirmos, para simplificar, estas formas de observar a realidade como perspectivas metodolgicas individualista e holista obteremos as variveis que figuram em linha nas matrizes. Se considerarmos, em contrapartida, como objectos da economia e da sociologia as realidades empricas com que elas mais se habituaram a lidar (por exemplo, mercados de trabalho e rendimentos, no caso da economia; modalidades individuais de aco e redes sociais, no caso da sociologia), obteremos as variveis que figuram em coluna. Esta linha de raciocnio no , evidentemente, rigorosa - embora, na nossa opinio, tal no prejudique a leitura pretendida. Em primeiro lugar, as formas de observar a realidade descritas no so tanto perspectivas como, frequentemente, postulados (mesmo no assumidos) dos raciocnios em causa. Neste caso, fazer remontar a perspectiva da escolha racional economia e a das foras sociais estruturantes sociologia s no abusivo considerando a multiplicidade terica de ambas as disciplinas - porque reala as suas formas cientficas mais conhecidas e, de algum modo, ideal-tpicas (cf. Marques et al., 1996). Em segundo lugar, os objectos de que falamos so simplificaes. Se a economia isolou, quase sempre, um mundo econmico (com a maior excepo de Becker), a sociologia sempre se tentou pelas reas alheias. Embora seja apenas um exemplo de interseco emprica, as migraes so uma realidade reivindicada de h muito por ambas as disciplinas. Acreditamos, assim, que este raciocnio permite elaborar, com alguma simplicidade, uma srie de cruzamentos possveis entre as disciplinas.6

Neste ltimo texto (Portes, 1995b), os conceitos da sociologia econmica que desenvolve so os de aco econmica socialmente orientada; transaces incrustadas (embedded transactions); redes sociais; capital social; efeitos cumulativos e no esperados; e, quanto aos conceitos da imigrao, relaes centro-periferia e desequilbrios

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Quadro 2.1 UM MODELO DE INVESTIGAO PARA A SOCIOLOGIA ECONMICAObjecto economia sociologia

individualista Perspectiva metodolgica holista

Fonte: Quadro construdo pelo autor

Quadro 2.2 A ANLISE DAS MIGRAES - UM MODELO DE INVESTIGAOObjecto economia sociologia

Racionalidade Instrumental / individualista Perspectiva metodolgica Mercado de Trabalho Segmentado / holista Flexibilizao / Sistemas Espaciais / Sistemas-Mundo / Sistemas Migratrios Mercado de Trabalho / Rendimentos / Investimento em Capital Humano

Ciclo de Vida / Carreira / Mobilidade Social / Aco No Instrumental

Famlia / Instituies / Organizaes / Redes Migratrias / Enclaves tnicos / Normas e Imagens Colectivas

Fonte: Quadro construdo pelo autor

Seguindo o modelo apresentado, a fertilidade permitida pela sociologia econmica consiste em cruzar as perspectivas e os objectos em mltiplos sentidos. Se, nas suas expresses ideal-tpicas, a economia (neo-clssica) se limita ao quadrante superior esquerdo da matriz inserta no Quadro 2.1, a sociologia (estruturalista) fica-se pelo quadrante inferior direito. Neste sentido, o preenchimento de todas as outras reas da matriz uma relativa novidade, que pode abrir leituras interessantes da realidade. No caso especfico das migraes, o Quadro 2.2estruturais (incluindo o papel das redes migratrias); modos de incorporao; grupos intermedirios (middlemen

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exemplifica alguns cruzamentos possveis. rea interdisciplinar por tradio, a investigao migratria est habituada, desde h muito, a tratar simultaneamente os vrios quadrantes; talvez por essa razo, a segunda matriz parece resultar menos eficaz (a maioria das fronteiras soa, de alguma forma, a artificial). Parece importante, no entanto, manter presente a importncia de uma leitura cruzada: as migraes (como os outros fenmenos do social) so temas cuja complexidade no pode ser exaurida por nenhum olhar disciplinar isolado. Os quadrantes deste quadro serviro, tambm, para orientar a nossa exposio das teorias migratrias 7.

2 - As Teorias Micro-SociolgicasUm primeiro grande conjunto de teorias sobre migraes rene as que podemos designar por micro-sociolgicas: estas apresentam como ponto comum, no fundamental, o privilgio analtico concedido ao papel do agente individual. Por outras palavras, por muitas que sejam as condicionantes externas sua deciso - trate-se de um contexto econmico ou do contexto social de aco -, a racionalidade individual que, no limite, conjuga (diferenciadamente) estas envolventes e promove a deciso de mobilidade. Esta forma de abordar o tema migratrio comum sociologia mais geral. Embora as divises paradigmticas amplas sejam sempre discutveis, uma linha de pensamento deste tipo tem sido caracterizada, pelo menos desde Weber, por atribuir relevo s capacidades individuais de aco - incluindo aquela que, no sentido weberiano, promove a compreenso do comportamento no apenas pela racionalidade de tipo instrumental ou utilitrio (racionalidade em relao a um fim), mas tambm pela orientao normativa (racionalidade em relao aos valores), afectiva e tradicional.

groups) e enclaves tnicos; e economia informal. 7 As perspectivas possveis de enquadramento das teorias sociolgicas contemporneas sobre migraes so vrias. Se adoptarmos, como referncia principal, a noo clssica das migraes (embora a aplicabilidade a outras formas de mobilidade seja possvel), a distino mais habitual coloca em contraste as teorias que articulam as causas (e a anlise global) dos fluxos migratrios ao nvel micro ou macro-sociolgico. O primeiro tipo de explicao descreve os fluxos como resultantes de escolhas individuais, sejam as escolhas racionalmente suportadas do homo economicus (a teoria neo-clssica) ou os investimentos estratgicos no futuro (teoria do capital humano). O mapa de referncia dos agentes constitudo pelos factores que, ao nvel do mercado de trabalho ou do contexto de aco (ciclo de vida ou estratgias familiares, por exemplo), enquadram essa deciso. Mas o processo migratrio constitui, no essencial, uma srie de decises individuais tomadas por agentes racionais que procuram melhorar a sua condio individual. O segundo tipo de explicao avalia as migraes como resultado de foras sociais estruturantes, sejam as diferentes posies dos pases no sistema internacional (as teorias do sistema-mundo), as lgicas especficas do mercado de trabalho (teses da segmentao do mercado de trabalho ou outras) ou a formao de redes migrantes de produo e suporte (incluindo as teorias da etnicidade e enclaves migrantes). O grau de constrangimento social varivel (como, em geral, sucede na relao sociedade/actor descrita pelas sociologias deste tipo), situando-se entre um determinismo social puro e a assumpo de um mercado imperfeito que condiciona as decises. Mas o essencial, neste caso, admitir a importncia de variveis colectivas como analiticamente superiores ao momento individual da racionalizao (cf., para um enquadramento paradigmtico deste tipo, Zolberg, 1981: 3-4 e 1989; Portes, 1981; nc, 1990: 177-83; Jackson, 1991: 33-4; Heisler, 1992; ou Matos, 1993). Para uma outra perspectiva de enquadramento das teorias migratrias, consulte-se Douglas Massey et al., 1993.

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2.1 - Os Modelos de Push-Pull e do Capital HumanoA maior parte das teorias que consideramos como micro-sociolgicas das migraes apresentam, de facto, uma raiz econmica8

. Tal como vimos atrs, tm sido os

desenvolvimentos da economia neo-clssica (sobretudo os incorporados no modelo de push-pull e, mais recentemente, na escola do capital humano) que tm oferecido muitos dos enquadramentos tericos a este tema. O caso do pensamento econmico neo-clssico exemplar9

. A maioria dos textos clssicos sobre migraes apresenta um parentesco nesta rea. Foi, em

primeiro lugar, o caso de Ravenstein. A ideia (mais ou menos explicitada pelo autor) de que o motivo principal de uma migrao era o desejo do agente individual melhorar a sua condio econmica representa a essncia do modelo de push-pull. com base em informao acerca das caractersticas da sua regio de origem e das potenciais regies de destino (em particular a situao de emprego e nveis salariais), que o migrante se decide por um percurso migratrio (mesmo se, em Ravenstein, limitado por um conjunto de outros mecanismos causais - como a distncia ou as deslocaes por etapas). O raciocnio de Ravenstein foi prolongado por autores subsequentes. Os modelos de Zipf e Stouffer ou a generalizao terica de Lee apresentavam como ponto comum a ideia de que era a conjugao individual dos factores de atraco e repulso (incluindo as oportunidades existentes), em conjunto com uma srie de obstculos ou inrcias deslocao (como a distncia), que explicavam a migrao. O argumento de Lee acerca das causas da migrao claro. Para ele, os elementos que presidem deciso e ao processoO facto de enquadrarmos os grupos de teorias disponveis sob os conceitos de micro e macro-sociolgicas no significa que ignoremos as perspectivas micro e macro existentes em outras cincias sociais. Aqueles termos so apenas utilizados na sua perspectiva sociolgica mais corrente, e referem-se ao tipo de considerao realizada do agente/actor social: ou enquanto sujeito capaz de aco social inovadora ou enquanto repositrio de estruturas. Neste sentido, a designao como micro ou macro-sociolgicas de um conjunto de teorias desenvolvidas em outras reas disciplinares (incluindo a economia) no corresponde a qualquer imperialismo sociolgico mas, apenas, a uma necessidade de organizao do mapa terico. A admisso de que a sociologia das migraes uma rea cientfica interdisciplinar representa a ideia de que, neste tema, existem poucas teorias estritamente sociolgicas. 9 Na sntese efectuada por Hodgson (1994), as teorias designadas como neo-clssicas apresentam um conjunto de trs postulados fundamentais: (1) o comportamento racional, maximizador, por parte de todos os agentes econmicos, partindo-se do princpio de que estes optimizam, de acordo com preferncias exogenamente determinadas; (2) a ausncia de problemas de informao crnicos, tais como a incerteza radical no que se refere ao futuro, a ignorncia generalizada sobre as estruturas e os parmetros num mundo complexo, e divergncias nas cognies individuais de fenmenos comuns; e (3) o acentuar terico dos movimentos tendentes a estados de equilbrio estvel, ou dos equilbrios adquiridos, mais do que dos processos contnuos de transformao ao longo do tempo histrico (id., ibid.: xvi). A crtica a estes postulados tem sido conduzida a partir de diversas perspectivas, que ora criticam a exclusividade (ou mesmo a predominncia) da racionalidade instrumental - baseada num clculo individual de custosbenefcios; ora a possibilidade de obter informao suficiente para se conseguir um agente econmico puro e um mercado de concorrncia perfeita; ora o predomnio histrico dos estados de equilbrio, face s situaes de instabilidade e mudana. Para diversas perspectivas crticas teoria vejam-se, para alm dos autores citados acerca da8

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migratrio so os factores associados rea de origem, factores associados rea de destino, obstculos intervenientes e factores pessoais. Nos primeiros, encontram-se tanto motivos de ordem econmica como infra-estruturas sociais (escolas, por exemplo) ou outros (factores climticos). Nos obstculos intervenientes (elementos que se colocam entre dois pontos geogrficos e que funcionam como frico possibilidade de movimento) contam-se a distncia, os custos da deslocao, a dimenso da famlia ou leis migratrias, entre outros. Os factores pessoais so os que fazem com que todas as decises sejam individualmente variveis, como sejam a posio no ciclo de vida, os contactos e fontes de informao, ocorrncias pessoais fortuitas, etc. (cf. Lee, 1969: 285-8). A exposio de Lee apresenta algum pendor sociolgico. Ele escreve que, devido ao desconhecimento relativo dos locais de destino, aos contactos pessoais variveis ou mesmo a emoes transitrias, a (...) deciso de migrar (...) nunca completamente racional (id., ibid.: 288). Mesmo se se afasta de uma leitura econmica estrita (racionalidade instrumental), a incidncia micro da explicao do comportamento evidente no autor. A permanncia deste tipo de argumentos nos actuais modelos de push-pull notria. A existncia de factores que levam a uma rejeio da regio de origem - factores de ordem econmica, social ou poltica - e outros que promovem o apelo da regio de destino determinante. Entre estes (como admitia Ravenstein e confirmam numerosos estudos empricos), os motivos materiais ocupam um lugar preponderante: condies actuais e potenciais de emprego e nveis de rendimento. Em sntese, a explicao das migraes indicanos que os indivduos apenas se movem quando os custos do movimento so inferiores aos benefcios esperados. Custos e benefcios so estabelecidos sobre a situao de emprego e desemprego, variao de rendimentos, potencial de informao sobre novas oportunidades de trabalho e habitao, e redes sociais locais (cf. Bailey, 1993: 317). Se alargarmos o modelo de push-pull podemos admitir quer a existncia de variveis no econmicas (modificao dos valores de referncia, situao poltica ou religiosa, por exemplo) quer a incluso de variveis intervenientes entre os pontos de atraco e repulso (Jackson, 1991: 21-2), enquanto elementos que impulsionam ou refreiam o movimento (grau de obteno de informao, redes de apoio, polticas migratrias, identidades culturais e lingusticas, etc.). No limite, podemos aceitar a ideia de informao imperfeita de que os indivduos dispem, dados os mecanismos sociais que impedem a existncia de um mercado eficiente (embora, neste caso, nos afastemos da perspectiva neo-clssica estrita).

sociologia econmica, Hodgson, 1994; Frey, 1995; ou vrios dos textos insertos em Ferreira et al., 1996. Para uma crtica no prprio terreno da teoria sobre as migraes, veja-se Greenwood, 1975.

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A teoria do capital humano elabora um pouco mais esta perspectiva micro, sem pr em causa os seus fundamentos (cf., sobre a teoria, Becker, 1962 e 1983; e, sobre a sua aplicao s migraes, Sjaastad, 1962) 10. O essencial dos seus argumentos, no caso da migrao, que a anlise econmica de custos/benefcios realizada pelo agente no deve ser apenas observada no curto prazo. As deslocaes envolvem um investimento do agente no seu prprio potencial produtivo, ou no da sua unidade familiar, cujos resultados s podem ser atingidos a prazo. Por outras palavras, o migrante aposta na capacidade que possui de gerar maiores rendimentos no futuro (utilizando melhor as suas qualificaes), mesmo que para tal seja necessrio incorrer em custos importantes no curto prazo. De forma mais saliente, o clculo econmico tanto se pode realizar ao nvel da unidade indivduo como da entidade familiar. Neste caso, so as oportunidades permitidas aos filhos (por exemplo) que explicam, a prazo, um acto migratrio que, no presente, pode parecer gravoso. Na perspectiva do capital humano, a anlise migratria tambm realizada com um mapa de custos/benefcios - embora, neste caso, diferidos no tempo. Como indica Sjaastad (1962: 83), a migrao pode ser tratada (...) como um investimento que aumenta a produtividade dos recursos humanos, um investimento que possui custos, mas que tambm envolve retornos. Os custos do investimento realizado numa situao migratria so vrios: procura de informao (gastos de tempo e dinheiro - informao sobre novas oportunidades profissionais e infra-estruturas vrias, incluindo formao e aprendizagem); custos de deslocao; custos de adaptao (aprendizagem de nova lngua e cultura; criao de novas redes de apoio; custos de afastamento do meio de origem). Os benefcios da migrao passam, em contrapartida, pelo aumento de rendimentos, dada a melhoria da produtividade individual permitida pela mudana11

. A ideia de investimento em capital humano reforada por

Sjaastad argumentando que a migrao no deve ser vista isoladamente: investimentos complementares em educao ou formao acompanham, muitas vezes, os percursos como forma de permitir ou rendibilizar (a prazo) a mobilidade. Num sentido prximo, ser10 Por investimento em capital humano pretende Becker significar as (...) actividades que influenciam o rendimento monetrio e psquico futuro atravs do aumento dos recursos nas pessoas (Becker, 1983: 9). Subjacente a esta noo est a ideia de que o capital humano pode constituir, tal como o capital fsico, um recurso econmico tendo como particularidade a sua intangibilidade. As formas de investimento em capital humano, segundo o autor, so vrias: escolarizao, formao profissional, cuidados mdicos, migrao e procura de informao acerca de preos e rendimentos. Escreve Becker: Elas diferem nos seus efeitos quanto a ganhos e consumos, nos montantes tipicamente investidos, na dimenso dos retornos, e na extenso na qual a conexo entre o investimento e o retorno percebida. Mas todos estes investimentos aumentam as qualificaes, o conhecimento ou a sade e, portanto, aumentam os rendimentos monetrios ou psquicos (id., ibid.: 9). O facto de os rendimentos observados poderem aumentar com o tempo , ainda, uma caracterstica destes investimentos. Acerca da aplicao da teoria s migraes ver, ainda, Clark, 1986: 66-8 ou Douglas Massey et al., 1993: 434-5. 11 O texto original de Sjaastad (1962) distingue, entre os custos e benefcios (retornos) da migrao, na perspectiva do indivduo, tanto elementos monetrios como no monetrios: no caso dos custos, despesas de deslocao, custos de oportunidade e custos psquicos de mudana de ambiente; no caso dos benefcios, incrementos (positivos ou

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argumentado por outros autores (com implicaes importantes para o tema do nosso trabalho) que a aquisio de capital humano (por escolarizao, formao e experincia profissional) favorece as possibilidades de mudana posterior de emprego (Schaeffer, 1985) e, em consequncia, de migraes. Podemos admitir que esta teoria ilustra um dos elementos de risco que existe em todas as deslocaes (o outro, no curto prazo, a impossibilidade de reunir toda a informao possvel sobre o destino). Pode, assim, explicar-se porque razo certas deslocaes, aparentemente racionais, produzem maus resultados ou, inversamente, porque razo um movimento de risco pode ser coroado de sucesso. ainda a existncia de uma atitude de investimento que explica que a migrao diminua com a idade: quanto maior esta for, menor o perodo em que o investimento poder ser compensado (Sjaastad, 1962: 88); ou que esclarece certas situaes de imobilidade: a aposta no futuro (passando, por vezes, por mais educao) pode fazer com que um agente no migre, mesmo quando est desempregado e tem oportunidade de emprego noutro local 12.

2.2 - O Ciclo de Vida e a Trajectria SocialUma perspectiva mais directamente sociolgica do estudo micro das migraes apresenta uma natureza, sobretudo, biogrfica. Neste caso, as principais variveis estudadas so a influncia do ciclo de vida (individual e familiar) - entrada na vida adulta, casamento, nascimento dos filhos, divrcios, reforma, etc. - e da trajectria de mobilidade social - incluindo carreira profissional - sobre os percursos territoriais. possvel que se continue a admitir, como na perspectiva anterior, uma racionalidade do agente humano. O facto de se abordarem variveis com que a perspectiva econmica no est habituada a lidar; de se entrar em domnios onde a racionalidade instrumental se funde explicitamente com a motivada por valores ou com comportamentos afectivos e tradicionais; e de ser necessria uma interligao entre a perspectiva individual e realidades colectivas (famlia, organizao ou grupo/classe social, que podem mesmo constituir uma nova unidade de anlise) - justificam a ascendncia mais sociolgica desta pista de anlise. A tradio do estudo das migraes segundo a perspectiva do ciclo de vida , de certo modo, longnqua. Os primeiros estudos deste tipo so de origem norte-americana. A forma de mobilidade territorial por eles analisada foi, no entanto, restrita: a maioria debruou-se sobre anegativos) monetrios resultantes da deslocao (ganhos nominais e resultantes do nvel de preos) e preferncias pela nova regio.

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mobilidade residencial intra-urbana ou, noutros termos, sobre a relao entre as necessidades de habitao, em contexto urbano, e as fases do ciclo de vida. O trabalho mais conhecido nesta rea o de Rossi (1955): o seu estudo, acerca das razes da mobilidade familiar, demonstrava que era a sucesso das etapas do ciclo de vida, com mudana da composio familiar, que levava a momentos de insatisfao em relao s caractersticas dos alojamentos e a uma mudana posterior de residncia. O trao geral das concluses destes estudos era o de que a mobilidade residencial era elevada entre os adultos e as famlias jovens - devido influncia dos casamentos, expanso do ncleo familiar com o nascimento dos filhos e mudanas relacionadas com o emprego - e declinava medida que a idade progredia, devido anulao da influncia daquelas variveis (para uma anlise deste tipo, cf. Leslie e Richardson, 1961 - que articulam esta forma de mobilidade com as mudanas na carreira dos indivduos ou, noutros termos, com a mobilidade social ascendente). Mais recentemente, esta linha de investigao tem sido desenvolvida para formas amplas de movimento migratrio. Esto neste caso alguns trabalhos realizados na rea da demografia, europeia ou norte-americana13

. As concluses avanadas por estes autores no

diferem muito das detectadas acerca da mobilidade residencial. Num estudo do incio dos anos 80, Sandefur e Scott (1981), por exemplo, concluam pela forte relao entre as variveis do ciclo de vida familiar (estado civil, dimenso familiar, laos familiares extensos e idade dos filhos) e a migrao. Como se esperaria, os indivduos casados apresentam menores probabilidades de migrao, tal como acontece com as famlias maiores. A razo encontrada para este facto , segundo os autores, a de queOs custos econmicos de um movimento aumentam, em determinada medida, com o nmero de pessoas na unidade familiar. Mais importante ainda, a presena de membros adicionais na famlia significa que a participao nas mais variadas estruturas deve ser retirada do ponto de origem e depois renegociada no ponto de destino (id., ibid.: 356).

Como tem sido tambm salientado, estes constrangimentos significam que, ao contrrio de o individuo continuar a funcionar como a unidade central de clculo econmico, o agregado familiar que passa a desempenhar essa funo.

12 Para uma viso mais completa da bibliografia de origem econmica acerca dos determinantes das migraes, ver Greenwood, 1975. 13 Os estudos realizados por demgrafos franceses acerca da tripla mobilidade, ou relao entre a mobilidade geogrfica, profissional e familiar, so um exemplo desta perspectiva (cf. Courgeau, 1984; Courgeau e Lelivre, 1989; ou Bonvalet e Lelivre, 1989). Estas anlises tm apontado para aspectos metodolgicos e tericos inovadores. Do ponto de vista metodolgico, tm revelado a necessidade de inquritos retrospectivos, ou inquritos biogrficos, como nica forma de captar com rigor aquela relao. O objectivo que, no perdendo de vista a necessidade de generalizao (atravs de amostras representativas), se consiga a reconstituio de biografias (ou histrias de vida) individuais para avaliar em que momento do ciclo de vida ocorreram as mobilidades. Do ponto de vista terico, pretendem estabelecer o grau de relao e, eventualmente, de causalidade entre os percursos de mobilidade (acontecimentos familiares, mudanas de actividade e residncia), cuja independncia nunca foi defendida mas cuja relao permanece indeterminada.

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Os desenvolvimentos tericos mais importantes nesta rea tm, provavelmente, sido feitos atravs da complexificao da noo de ciclo de vida, dadas as modificaes crescentes na estrutura familiar e a fragmentao do clssico modelo de ciclo de vida (casamento, filhos, viuvez) em mltiplos modelos familiares (celibato prolongado, divrcios, famlias monoparentais, recasamentos, filhos separados, etc.) (cf., sobre os novos modelos, Kaa, 1987). Neste sentido, tem sido proposta a mudana do conceito de ciclo de vida (life cycle) para curso de vida (life course), o qual permite abranger uma maior variedade de situaes em lugar das clssicas - e lineares - etapas tradicionais (cf. Grundy, 1992: 166-7; e Warnes, 1992: 176-9)14

. Noutra perspectiva, este conceito permite captar, tambm, um maior conjunto de

particularidades espcio-temporais. A anlise dos casos de mobilidade territorial nas fases iniciais do ciclo (curso) de vida - partida dos filhos adultos, primeiro casamento e divrcio - foi realizada, recentemente, por Grundy (1992). Um estudo semelhante, com ateno ao caso dos idosos, foi acrescentado por Warnes (1992). Em ambos os casos foram trabalhados dados que permitem estabelecer alguma generalizao ou, noutros termos, definir percursos tpicos em diferentes fases e situaes. As diferenas de mobilidade territorial em funo dos novos modelos de vida so, naturalmente, elevadas. Se a ligao a um modelo familiar clssico continua a apresentar os constrangimentos migratrios conhecidos de h muito, os vrios desprendimentos familiares da actualidade devolvem aos indivduos liberdade migratria. Como salienta Champion (1992: 461-8), a demografia moderna apresenta grandes repercusses na mobilidade espacial. No apenas os divrcios e recasamentos representam mobilidades foradas (que tanto podem aumentar a presso urbanstica local como serem pretexto para migraes), como o aumento da esperana de vida possibilita um novo comportamento espacial, ps-reforma, com incidncias migratrias e urbansticas importantes (incluindo a difuso das duplas residncias) (cf. Warnes, 1992). A utilizao da perspectiva da trajectria social (ou mobilidade social e profissional) uma segunda forma de estudo mais directamente micro-sociolgico dos problemas migratrios. No sentido amplo de mobilidade social, aquilo que est em causa a realizao de um percurso, por parte do indivduo, por diferentes posies sociais; apesar da importncia das foras estruturantes, sabe-se que estes percursos assumem, sempre, caractersticas individualizadas (ou, noutros termos, biogrficas). Independentemente do grau de influncia perante as variveisSegundo Grundy, a diviso convencional do ciclo de vida familiar marca 6 fases distintas: casamento, primeiro nascimento, nascimento de filhos subsequentes, partida de filhos adultos, morte do primeiro cnjuge, morte do segundo. As primeiras duas fases so as de incio do ciclo, as terceira e quarta as de expanso e contraco, as duas ltimas as de dissoluo. Dado o aumento dos indivduos que nunca casam, divrcios e recasamentos, a autora admite que os complexos cursos de vida da actualidade nem sempre se adaptam aos modelos de ciclo de vida14

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colectivas, o que se verifica, na prtica, o interesse de cada indivduo em realizar uma trajectria ascendente ou, noutra terminologia, um progresso na vida e no trabalho. Este percurso representado pelas aspiraes e responsabilidades dos indivduos para com eles prprios, no sentido de fazerem coincidir a sua situao actual (social, emocional, econmica e geogrfica) com as expectativas virtuais de insero (cf. Ford, 1992: 30). No sentido de mobilidade profissional, o conceito envolve duas acepes. Por um lado, a ideia de trajectria corresponde sua realizao mais frequente nas sociedades modernas: a carreira organizacional. Neste caso, o enquadramento de um percurso na hierarquia de uma organizao (ou mercado interno de trabalho - cf. Doeringer e Piore, 1971) que permite definir o trajecto virtual 15. As recompensas que uma carreira atribui no diferem, em essncia, das do sentido mais amplo de mobilidade: recompensas financeiras, de prestgio e poder, incluindo maior liberdade e autoridade na profisso. As suas principais diferenas residem na acepo exclusivamente profissional da noo (mesmo se os recursos obtidos se transmitem a outras reas do comportamento) e no seu enquadramento numa estrutura j definida. Por outro lado, encontra-se a transio de empregos no mercado externo de trabalho (em lugar da promoo no interior da mesma organizao). Neste caso, apesar da sua restrio ao mundo profissional, a ideia geral de melhoria que preside ao abandono de um emprego e integrao num outro. Em qualquer dos sentidos adoptados, este tipo de explicao cruza uma lgica e estratgias individuais com mecanismos macro (de estratificao ou organizacionais) da vida social. A anlise da relao entre mobilidade - incluindo carreira - e migraes tem sido realizada sob variadas perspectivas. Na teoria clssica, foi sobretudo a relao entre o percurso social ascendente, num sentido amplo, e a mobilidade residencial intra-urbana que foi explorada. Leslie e Richardson (1961), por exemplo, escreviam que a melhoria da condio profissional estava ligada a uma nova escolha residencial: (...) tanto a necessidade de maior espao habitacional, medida que a famlia aumenta, como a necessidade de ajustar a habitao a mudanas no status social so foras poderosas que induzem as famlias a migrar (id., ibid.: 900). A separao ecolgica das zonas residenciais, consoante o estatuto social dos residentes, , alis, h muito conhecida dos estudos urbanos (cf. Ferreira, 1992). No caso das migraes de maior dimenso, a relao no pode ser considerada forte, pois muitas promoes sociais so efectuadas na mesma regio. A ideia de que mudana de emprego, mobilidade social ascendente(Grundy, 1992: 166-7). A substituio do termo ciclo de vida por curso de vida , tambm, defendida por Warnes (1992: 177-9 e 183-6), que acrescenta uma tipologia das suas formas actuais. 15 Tal como escreve Ford, com base na teoria das organizaes, as carreiras organizacionais podem ser vistas como um aspecto estrutural de uma organizao: um padro de posies ou tarefas ocupacionais hierarquicamente relacionadas e espacialmente distribudas, que requerem sucessivamente maior desempenho responsvel de qualificaes ocupacionais. (...) Neste sentido, a carreira organizacional pode ser vista como uma sequncia padronizada de posies, atravs das quais existe um progresso ordenado dos indivduos, ao longo de vrias linhas verticais e horizontais que terminam em diversos nveis da hierarquia (Ford, 1992: 32).

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e mobilidade territorial esto estreitamente relacionadas , no entanto, conhecida: sabe-se que a melhoria profissional em muitos casos a causa das deslocaes; ou que, por vezes, existe um maior grau de mobilidade social entre os migrantes do que entre os no-migrantes (cf., por exemplo, Jansen, 1969: 70; Sandefur e Scott, 1981; Blum et al., 1985; ou, numa perspectiva econmica, Bartel, 1979). A melhor abordagem ao problema da relao entre mobilidade social e espacial talvez tenha sido realizada, recentemente, por Savage (1988). Segundo este autor, a relao entre as duas formas de mobilidade no , de forma alguma, necessria, apesar de ter apresentado modalidades histricas de maior unio. A observao das estratgias de mobilidade ascendente e da mobilidade espacial que lhes mais adequada permite elucidar aquela relao. Com base nos trabalhos de Brown, o autor distingue trs estratgias de mobilidade social: a estratgia empresarial, baseada em recursos de capital; a estratgia organizacional, baseada em recursos organizacionais; e a estratgia ocupacional, baseada em recursos de qualificaes. Na opinio de Savage, (...) cada um destes tipos de estratgia tem uma diferente relao com a mobilidade espacial. A estratgia empresarial mais localizada no espao, dada a importncia que assumem os recursos particularistas, incluindo os contactos locais, uma rede j montada de clientes, etc.. A estratgia organizacional mais complexa: ela depende da estrutura espacial da organizao. No caso de separao funcional no espao, existe uma grande ligao entre as mobilidades social e espacial: o desenvolvimento de carreiras (organizacionais ou burocrticas) exige frequentemente que a promoo seja acompanhada por deslocao para outro local. No caso de restrio da organizao a uma regio, a ligao inexistente. A estratgia ocupacional, finalmente, envolve tambm movimento no espao. O grau de mobilidade espacial pode ser forte quando o indivduo obtm as suas qualificaes (frequncia de estabelecimento de ensino e, depois, acesso profisso) mas, posteriormente, tende a diminuir, sobretudo devido ao grau de localizao da procura das suas qualificaes (cf. id., ibid.: 560-3). certo que, como nos explica Savage, as estratgias de mobilidade descritas so idealtpicas; na prtica, os percursos de mobilidade social apresentam conjuno daqueles diferentes aspectos. Em qualquer caso, o potencial desta explicao parece elevado. Por um lado, permite iluminar um tipo de relao histrica. Tal como foi salientado, desde os anos 70, por alguns autores (cf., entre outros, McKay e Whitelaw, 1977), o predomnio de grandes organizaes multilocalizadas, pblicas ou privadas, implicou uma forte deslocao espacial dos agentes como forma de realizao de percursos profissionais ascendentes. Este facto est na base dos argumentos de Savage: segundo ele, nos anos 50 e 60 e nos pases mais desenvolvidos, predominaram estratgias organizacionais de mobilidade, incluindo carreiras burocrticas

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com expresso migratria. Neste caso, pode ser dito que mobilidade social e espacial estiveram estreitamente associadas. Por outro lado, esta explicao permite-nos ligar, teoricamente, as acepes descritas de mobilidade profissional. A carreira organizacional surge-nos como uma entre outras formas de trajecto ascendente - sendo que a sua expresso histrica se pode situar mais concretamente. Finalmente, alerta-nos para as dimenses no individuais de alguns percursos migratrios. Ao contrrio do que postulam as vrias teorias micro sobre a mobilidade, em muitos casos no so os agentes individuais, mas sim as organizaes e instituies, que decidem, de facto, os mapas migratrios. Embora a deciso individual seja, em ltima instncia, decisiva, a multilocalizao das organizaes e as suas estratgias de colocao de pessoal - ou, noutra perspectiva, mecanismos macro-sociolgicos - que revelam as principais dinmicas de mobilidade 16.

3 - As Teorias Macro-SociolgicasAs teorias que podemos designar como macro-sociolgicas distinguem-se, no essencial, por privilegiar a aco de factores de tipo colectivo, ou estruturante, que condicionam, sob formas diversas, as decises migratrias dos agentes sociais. Mais uma vez, como realmos atrs, a nitidez deste tipo de explicao no completa: as zonas de confluncia entre as vises micro e macro so mltiplas e as distines no so absolutas (os exemplos referidos das famlias e organizaes revelam bem a moldura colectiva em que se processam as estratgias individuais). A ideia de que, na sociologia, se tm distinguido correntes deste tipo suporta, no entanto, a nossa perspectiva. Tanto as escolas estrutural-funcionalista (sobretudo pela sua raiz durkheimiana) como as teorias marxistas e neo-marxistas se afirmaram pela defesa da actuao de foras sociais estruturadoras da aco individual. No campo das teorias das migraes, estas correntes (muitas vezes ligadas a autores marxistas) so, por vezes, designadas como histricoestruturais (nc, 1990). Tal facto reflecte no apenas o seu carcter estruturalista como, simultaneamente, a sua nfase nas variaes espcio-temporais das caractersticas das migraes17

.

16 Acerca da relao entre mobilidade social e geogrfica, vejam-se as referncias insertas em Thomas, 1938: 126 e 166; Jansen, 1969: 69-73; e Jackson, 1991: 105-6; ou os textos de Leslie e Richardson, 1961; Bartel, 1979; Sandefur e Scott, 1981; Markham et al., 1983; Blum et al., 1985; Savage, 1988; Wagner, 1990; e Fielding, 1992. 17 Como escreve Portes, em defesa do paradigma estrutural, nada mais fcil do que compilar uma lista de (...) motivaes (individuais) e apresent-las como uma teoria da migrao. Este tipo de anlise deixa sem resposta a questo fundamental de como, apesar de idiossincrasias pessoais e motivaes variadas, movimentos de populao de uma dada direco e magnitude ocorrem com regularidade previsvel ao longo de extensos perodos de tempo (Portes, 1981: 280).

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3.1 - O Mercado de Trabalho Segmentado e a Economia InformalUm dos principais desenvolvimentos tericos oriundos da economia com aplicao s anlises macro das migraes a teoria do mercado de trabalho segmentado ou mercado de trabalho dual (cf. Piore, 1977, entre outros)18

. A existncia de sectores com caractersticas

diferenciadas foi detectada nos anos 60, em oposio ideia de mercado equilibrado admitida pela economia neo-clssica. Desde os anos 70, as alteraes estruturais das economias fordistas e o desenvolvimento de novas formas de regulao levaram a que a existncia de sectores precrios e a necessidade de uma mo-de-obra flexvel se tornassem ainda mais evidentes (cf., sobre as reestruturaes globais, Fielding, 1994: 690-3 ou Ferro et al., 1994: 1129-32; e, sobre os processos de trabalho, Atkinson, 1987 ou Kovcs, 1993) 19. A teoria do mercado de trabalho segmentado conheceu, desde cedo, uma importante divulgao na bibliografia sobre migraes (cf. Piore, 1979 ou Portes, 1981). Compreendeu-se, assim, que grande parte das atraces especficas exercidas sobre a migrao internacional, em particular a dirigida de pases menos para mais desenvolvidos, tem a ver com os mercados "secundrios" (e na actualidade, com as zonas de economia informal). o facto de existirem actividades que funcionam com base num mercado de trabalho deste tipo que afasta a maioria dos cidados nacionais e atrai migrantes provenientes de regies pobres (que, mesmo em condies econmicas deficientes, podero aumentar o seu padro anterior de vida, ou - pelo menos - criar expectativas de mobilidade futura). esta situao, tambm, que nos permite afirmar que no existe imigrao sem uma "procura" econmica especfica. As consequncias deste argumento so importantes. Por um lado, o facto de se verificarem correntes migratrias no tem tanto a ver com necessidades sentidas pelas populaes migrantes (os push factors dos neo-clssicos), como com mecanismos econmicos que as solicitam; como escreve Piore (1979: 17), os (...) os factores crticos para a compreenso do processo migratrio e da sua evoluo ao longo do tempo encontram-se na regioSegundo esta teoria, os mercados de trabalho caracterizam-se por possurem dois segmentos principais (ou apresentarem uma caracterstica "dual"). O mercado "primrio" detm como principais atributos a estabilidade das condies de emprego e das relaes laborais, bons salrios, perspectivas de carreira e promoo interna (atravs de um mercado interno de trabalho desenvolvido nas organizaes) e proteco social garantida. Na prtica, so os departamentos do Estado e outras grandes organizaes pblicas e privadas quem apresenta a maior parte destas caractersticas. Por oposio, o mercado "secundrio" composto por empregos com baixa qualificao, baixos salrios, fracas oportunidades de promoo, insegurana laboral e, frequentemente, ausncia de assistncia social. Mais recentemente, foi desenvolvida a ideia de que, em lugar de uma estrutura simplesmente dual do mercado de trabalho, se observa um maior nmero de segmentos, com maior cruzamento dos atributos (cf. Rodrigues, 1992: 256). 19 Em rigor, o sentido original do mercado secundrio no coincide com a noo de economia informal. Tal como sublinham Portes e Sassen (1987), a economia informal agrupa todas as actividades excludas das regulamentaes existentes sobre condies laborais e de pagamento, segurana social ou regime fiscal: apesar de as caractersticas do emprego envolvido serem semelhantes, a ideia do mercado secundrio foi originalmente aplicada a actividades em18

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desenvolvida. O facto de existirem grupos migrantes passa, ento, no pela vontade e clculos individuais dos migrantes, mas por factores estruturais que apelam ao seu trabalho. Por outro lado, explica-se porque razo nem todas as regies ou pases pobres emigram. A existncia de procura dever conciliar-se com mecanismos econmicos e sociolgicos diversos (ver frente), que determinaro o incio e a auto-sustentao de determinadas correntes. A atraco de populao migrante no ocorre, no entanto, apenas no mercado secundrio de trabalho. Como esclarece Portes (1981), os seus modos de incorporao so variados. Segundo ele, os migrantes atrados pelo mercado primrio apresentam como principais caractersticas a entrada atravs de canais legais; o acesso ao emprego por qualidades individuais e no por origens tnicas; condies de mobilidade idnticas dos nativos; e uma funo de reforo da fora de trabalho nacional. Tipicamente, este tipo de acesso representado (como veremos no captulo 6) pelo brain drain. Em contrapartida, o acesso ao mercado secundrio (num sentido amplo) apresenta como principais atributos um estatuto jurdico precrio (habitualmente temporrio ou ilegal); um recrutamento baseado nas origens tnicas e no em qualificaes (dadas as vulnerabilidades associadas quela condio); ocupao de tarefas pontuais, sem perspectivas de mobilidade; e uma funo disciplinadora da fora de trabalho local (forando a reduo dos salrios gerais). Este tipo de recrutamento representa a maioria dos trabalhadores migrantes no contexto internacional. Finalmente, podemos considerar uma terceira forma de incorporao: aquela que liga os migrantes a zonas de homogeneidade tnica da economia (os enclaves de imigrantes ou tnicos) (para uma tipologia mais complexa das formas de integrao, ver Portes e Brcz, 1989: 620-4; sobre este tema, ver ainda nc, 1990: 185-96 e Bailey e Waldinger, 1991).

3.2 - Estruturas Espaciais, Sistemas-Mundo e Sistemas MigratriosUm segundo tipo de teorias que podemos enquadrar na perspectiva macro das migraes provm tanto da economia como da geografia: trata-se de anlises que lidam explicitamente com a varivel espao e que procuram enunciar os factores que levam a um desenvolvimento particular dos territrios. Segundo estas correntes, existem mecanismos que levam a uma dada localizao dos estabelecimentos humanos em realidades de tipo urbano ou regional, central ou perifrico, e tanto em contextos nacionais como internacionais. Quer as teorias o admitam ou no explicitamente, esta distribuio territorial que conduzir, por sua vez, a movimentos populacionais (migratrios) concretos. Para alm dos casos de proveninciacondio legal, e no s zonas subterrneas da economia (cf., tambm, Corcoran, 1991). Apesar destas diferenas,

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terica mais marcada, estas anlises enquadram-se em zonas interdisciplinares, como os estudos urbanos e regionais, as relaes econmicas internacionais ou a geografia econmica; por vezes procuram, tambm, uma confluncia directa com a sociologia, tentando desenvolver uma perspectiva scio-espacial integrada (cf., por exemplo, Massey, 1984 ou Gregory e Urry, 1985). As modalidades assumidas por este tipo de teorias so vrias. No que respeita anlise geral das estruturas espaciais, encontramos, em primeiro lugar, a economia e geografia econmica (neo-)clssicas e, em particular, os contributos para explicar a localizao de actividades. Estes passam por conceitos como os de economias de escala e de aglomerao; disponibilidade de recursos produtivos; ou modelos abstractos de localizao das actividades (como a teoria dos lugares centrais). Em todos os casos, admite-se que a conjugao dos factores de localizao leva criao de geografias particulares, isto , realidades regionais e urbanas concretas (cf. Claval, 1987, por exemplo). Podemos argumentar que, na maioria dos casos, os factores indicados por estas teorias se ligam escolha racional dos agentes: so ainda critrios micro que, atravs de decises optimizadoras, presidem aos arranjos econmicos. Simplesmente, estudamos agora decises de investimento e no decises migratrias. Ainda que, de um certo ponto de vista, nos continuemos a situar num plano micro-sociolgico, a diferena de natureza dos comportamentos merece - julgamos - uma distino analtica. Podemos, desta forma, aceitar que a consolidao de uma srie de decises econmicas de localizao cria uma estrutura objectiva de actividades, a qual condiciona o mapa de decises migratrias dos agentes. Esta alterao do plano de anlise ser tanto mais vlida se aceitarmos a ideia, expressa em alguma da geografia moderna, de que sucessivas decises e actividades conduzem a uma sequncia de estratos (layers) que atribuem particularidade (estrutural) a uma regio (Massey, 1984: 117-8). Cabem nesta acepo, em segundo lugar, as teorias, sobretudo de inspirao marxista, que tm procurado estabelecer uma inter-ligao entre estruturas espaciais e relaes sociais. Se considerarmos que a geografia da produo, num determinado contexto histrico, representa a expresso espacial das relaes sociais de produo, as condicionantes macro do comportamento migratrio tornam-se evidentes (sobre este ponto de vista, ver Castells, 1981/1972 e, mais recentemente, 1989; Massey, 1984; ou Gregory e Urry, 1985). certo que a leitura da relao entre sociedade e espao pode ser mais ou menos rgida, no que respeita ao grau de causalidade imposto pelas relaes sociais, ou deixar maior ou menor espao para o comportamento dos agentes individuais; em qualquer caso (como acontece na teoria mais geral), o comportamento dos grupos dominantes e as relaes conflituais de classe obedecem a foras que transcendem as motivaes individuais. A maior parte dos estudos nesta rea tem-seos conceitos so frequentemente justapostos.

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debruado sobre a organizao espacial do capitalismo. Embora muitas vezes a mobilidade do trabalho (as migraes) no surja como um tema central de reflexo, a verdade que muitas das concluses apresentam implicaes importantes. Assim, a ideia do desenvolvimento desigual do espao, devido lgica de acumulao privada do capital (Hudson e Lewis, 1985); a concentrao urbana das actividades produtivas, enquanto lugares de reproduo da fora de trabalho (Castells, 1981); a fragmentao recente das actividades do capital (Massey, 1984); a hipermobilidade do capital e trabalho (Hudson e Lewis, 1985: 16-7); ou a contraposio entre espao de fluxos e espao de locais (Castells, 1989) - apresentam potencial explicativo elevado sobre os fluxos migratrios e traduzem muitas das realidades contemporneas deste tipo. Qualquer destas teorias conheceu maior desenvolvimento no plano da diferenciao regional de mbito nacional, embora sejam facilmente aplicveis a uma dimenso internacional. Em larga parte, a anlise das migraes internacionais resulta, porm, de teorias autnomas. O argumento mais conhecido o das teorias do sistema-mundo (Wallerstein, 1979 e 1986). A adaptao da teoria de Wallerstein ao estudo das migraes internacionais tem sido realizada por vrios autores. O texto de Petras (1981) um dos mais conhecidos. Segundo esta autora, um dos traos principais do actual sistema-mundo - o capitalismo moderno - a criao de um mercado de trabalho global. O movimento global de capital e mercadorias pode ser, assim, relacionado com importantes fluxos de trabalho, que constituem a maior parte das migraes internacionais. A razo principal dos fluxos migratrios, segundo Petras, a existncia de zonas salariais (wage zones) diferenciadas. Os mecanismos especficos de desenvolvimento e subdesenvolvimento (ou de centralidade e perifericidade) levaram criao de excedentes de mo-de-obra nas periferias, numa situao generalizada de baixos salrios, e a uma necessidade de recursos humanos, acompanhada de altos salrios, nos pases mais desenvolvidos. Resultam, daqui, os sinais de propenso migrao que outras teorias (como os modelos de push-pull) tambm admitiam. Simplesmente, neste caso, so foras estruturais da economia mundial que geram os diferenciais econmicos e que transportam, de uma certa forma, os migrantes. Um dos traos especficos da economia mundial mais recente a criao de uma actividade produtiva transnacional, a cargo de organizaes (as empresas transnacionais) inexistentes, na sua forma actual, h poucas dcadas. Como veremos no captulo seguinte, a instalao de empresas deste tipo em pases menos desenvolvidos gerou, ela prpria, fluxos migratrios para o centro, quando teoricamente os deveria ter diminudo, por procurar o trabalho, menos qualificado e mais barato, na sua zona de residncia habitual. Como escreve Sassen-Koob (1984), esta instalao gerou o que podemos denominar como um efeito perverso, ao intensificar (em lugar de desacelerar) as migraes daqueles trabalhadores. Um outro trao

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particular das economias recentes a criao de plos de gesto internacional das actividades compatveis com a noo de disjuno espacial das actividades produtivas, com as zonas de concepo a afastarem-se geograficamente das de execuo (cf. Massey, 1984). A teoria das cidades mundiais ou globais representa uma das explicaes mais interessantes desta ltima realidade. Segundo a teoria, estes plos urbanos dominam no apenas o sistema internacional como so responsveis pela atraco (migratria) de uma mo-de-obra crescentemente dualizada: profissionais de topo (para as actividades de gesto internacional) e trabalhadores desqualificados (para os servios de apoio quela actividade, muitas vezes inseridos em zonas de economia informal) (Sassen, 1991, 1994a e 1994b). A ltima teoria a destacar, no plano das leituras espaciais da realidade migratria, a dos sistemas migratrios (cf. Salt, 1987: 244-5 e 1989: 438-41; Kritz e Zlotnik, 1992; e Kritz et al., 1992). Nesta perspectiva, os fluxos migratrios so resultantes de contextos histricos particulares e adquirem uma dinmica interna que lhes confere as caractersticas de um sistema. Tal resulta da interaco existente entre vrios elementos, incluindo outros tipos de fluxos e um processo de interdependncia mais geral 20. Na prtica, a teoria permite identificar um conjunto de regies ou pases que alimentam fluxos migratrios importantes entre si (frequentemente em ambos os sentidos e envolvendo tipos migratrios diversos). No plano das migraes internacionais, o caso mais habitual o de redes macro-regionais que unem uma regio central (constituda por um ou mais pases) a uma srie de pases emissores (lquidos) de migrantes (Salt, 1989). A dinmica de cada sistema migratrio particular: resulta de um contexto histrico (econmico, social, poltico e tecnolgico) determinado e da inter-ligao entre fluxos migratrios e outro tipo de intercmbios (polticos, comerciais, de capital, por exemplo) (Kritz e Zlotnik, 1992) 21. A existncia de relaes particulares (incluindo migratrias) entre regies ou grupos de pases gera, por sua vez, as condies de alguma continuidade, uma vez que as decises migratrias individuais so tomadas sob a influncia desse contexto, que elas prprias contribuem para consolidar. Se os sistemas migratrios constituem, de certa forma, entidades autnomas, independentes na estrutura e formas de operao, tambm partilham factores comuns: as (...) redes individuais de migrao internacional - escreve Salt (1989: 440) - devem ser olhadas20 A noo de sistemas migratrios surgiu, inicialmente, em meados dos anos 60 (cf. Petersen, 1975: 315). Ela foi primeiro aplicada, de forma sistemtica, num texto de Mabogunje, publicado em 1970; neste texto, o autor propunha a aplicao da teoria geral dos sistemas s migraes rural-urbano (cf. Kosinski e Prothero, 1975: 5-6). Aparentemente, s no final dos anos 80 a ideia conheceu novo flego, com uma maior elaborao terica do modelo. Deve notar-se que, segundo Douglas Massey et al. (1993: 454), a teoria dos sistemas migratrios no um corpo terico independente mas uma generalizao de outras teorias sobre as migraes, incluindo a dos sistemas-mundo, redes migratrias, teoria institucional e teoria da causalidade cumulativa. 21 Na expresso de Salt, as redes espaciais (spatial networks), ou sistemas geogrficos de migrao (geographical migration systems), so originados por factores particulares e distintos uns dos outros: (...) uma rede constitui um sistema, tendo a sua prpria gnese, padro de desenvolvimento e caractersticas (Salt, 1989: 432).

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como parte de um conjunto em interaco, conduzido por poderosas foras econmicas e sociais, muitas delas globais. As redes desmentem, no entanto, as teorias explicativas gerais das migraes internacionais, pois, em lugar de estabelecerem padres globais generalizados, separam as caractersticas dos fluxos segundo contextos histricos de actuao, ou condicionantes especficas de espao e tempo. A genealogia do conceito, efectuada por Salt (id., ibid.: 438-40), ilustra bem a sua natureza: segundo ele, a noo de sistemas migratrios , originariamente, uma crtica s abordagens tericas clssicas, de cariz positivista, predominantes na teoria migratria desde os anos 30; estas eram (como vimos) caracterizadas pela generalizao de proposies sobre as migraes e encaravam o espao como uma varivel pura, muitas vezes como a nica varivel independente.

3.3 - Instituies, Redes Migratrias, Laos tnicos e SociaisAs teorias mais propriamente sociolgicas que explicam as migraes segundo uma perspectiva macro podem ser separadas em alguns grandes grupos. Em primeiro lugar, podemos referir as que salientam o papel das instituies no desencadear ou acompanhamento dos fluxos migratrios. As teorias deste tipo no so uniformes: tanto podemos pensar no papel das instituies como principais agentes na promoo dos fluxos (cf., por exemplo, McKay e Whitelaw, 1977; Salt, 1987), como podemos referir o seu papel no enquadramento e suporte de percursos migratrios desencadeados, sobretudo, pelos indivduos (cf. Douglas Massey et al., 1993: 450-1). O tipo de instituies a considerar tambm varivel: podemos incluir organizaes empregadoras (empresas privadas e pblicas, Estado, etc.), agncias de emprego, associaes de apoio a migrantes, entidades financeiras, departamentos governamentais ligados directa ou indirectamente s migraes e habitao, etc.. Aquilo que podemos considerar como ponto de interseco destas acepes a centralidade atribuda (embora de forma diversa) a agentes colectivos. Em lugar de termos um conjunto de indivduos a decidir e responsabilizar-se pelo destino dos fluxos, atribumos a entidades colectivas competncias nessas reas (cf., para uma viso genrica, Salt, 1987: 245-7; Johnson e Salt, 1990a: 6-9 e 1990b) 22. O tipo de migrantes abrangido por estas instituies no , igualmente, uniforme. No caso das teorias que admitem o papel directo das organizaes empregadoras no desencadear dos fluxos pensa-se hoje, sobretudo, em migrantes de estatuto scio-econmico mdio ou elevado e nas transferncias em que esto envolvidos. A importncia destes movimentos haviaSegundo Salt, as instituies pertinentes para a anlise migratria devem ter um mnimo de organizao interna, de modo a excluir do seu mbito alguns elementos institucionalizados mas de difcil percepo, como os padres culturais ou atitudes em relao migrao (Salt, 1987: 246).22

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j sido prevista por Rose (1970): o facto das migraes de longa distncia apresentarem uma grande componente de agentes profissionais de topo resultava, em parte, da necessidade de as grandes empresas movimentarem o seu pessoal. Mais recentemente, o carcter crucial destes movimentos intra-organizacionais, no mbito pblico ou privado, seria destacado, para as migraes inter-regionais, por McKay e Whitelaw (1977) e Savage (1988); e, para os movimentos internacionais, por Salt (1983/84 e 1987), entre outros (ver captulo 7). No caso das teorias que referem as instituies de acompanhamento ou suporte, so sobretudo os migrantes de condio social inferior que so abrangidos. As polticas restritivas dos pases desenvolvidos e as fragilidades dos percursos migratrios levam ao surgimento de organizaes (frequentemente clandestinas) que promovem os meios de acesso (incluindo ilegal) ao pas e, simultaneamente, outras vocacionadas para o suporte humanitrio, de forma a melhorar a integrao dos migrantes (Douglas Massey et al., 1993: 450-1). Em segundo lugar, encontramos as teorias que defendem o papel das redes migratrias. As interseces com as teorias da sociologia econmica (nomeadamente as teorias mais vastas das redes sociais e a noo de capital social) e com as teorias institucionais acima referidas so elevadas. O que se defende, neste caso, que os migrantes no actuam isoladamente, nem no acto de reflexo inicial, nem na realizao dos percursos concretos, nem nas formas de integrao no destino. Eles esto inseridos em redes de conterrneos, familiares ou, inclusivamente, agentes promotores da imigrao (como os engajadores), que fornecem a informao, as escolhas disponveis, os apoios deslocao e fixao definitiva. Como escrevem Portes e Brcz (1989: 612),"Redes construdas pelo movimento e contacto de pessoas atravs do espao esto no centro de microestruturas que sustm a migrao ao longo do tempo. Mais do que clculos individuais de ganho, a insero das pessoas nestas redes que ajuda a explicar propenses diferenciais migrao e o carcter duradouro dos fluxos migratrios" 23.

Como sugere Baganha (1991c: 446-7), podem existir vrios tipos de redes, cujo papel na formao de fluxos, ritmos e ciclos migratrios e nos percursos de mobilidade social dos migrantes importante, sendo o seu estudo essencial para analisar uma corrente migratria. O argumento das redes migratrias , ainda, necessrio para complementar algumas das perspectivas tericas anteriores. Compreende-se, assim, em primeiro lugar, a natureza imperfeita da informao que acede a um migrante. Em lugar de um mercado perfeito e de escolhas racionais dos agentes face a mltiplos destinos migratrios deparamo-nos com uma23

Tambm neste caso, a ideia, expressa por Portes e Brcz, de que se trata de microestruturas de apoio migrao pode levar a um questionamento do argumento macro-sociolgico que esboamos. A perspectiva que defendemos, neste caso (para alm da natureza ideal-tpica dos micro e macro comportamentos), a de que as redes adquirem (como as decises de investimento ou os sistemas migratrios) uma suficiente estabilidade e dinmica internas que lhes permitem actuar como constrangimento externo s decises individuais.

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racionalidade limitada, que advm da informao disponvel nas redes. Entende-se, em segundo lugar, que as migraes no estejam apenas sujeitas a mecanismos econmicos. Por um lado, no respondem directamente s conjunturas econmicas: as redes baseadas em solidariedades locais apresentam, geralmente, uma inrcia que transcende o momento econmico, ao contrrio das baseadas em engajadores e recrutamentos temporrios. Por outro, no so efectuadas apenas por agentes econmicos, mas por agentes sociais profundamente inseridos em laos de natureza colectiva. Resulta, da, a existncia de uma racionalidade no instrumental em alguns fluxos concretos, como a deciso de reunio familiar ou a adequao a comportamentos mais apropriados (racionalidade normativa ou comportamentos tradicionais) (Portes, 1995b: 22). Em terceiro lugar (e ainda de forma relacionada), tem sido desenvolvida uma extensa bibliografia sobre os enclaves de imigrantes, enclaves tnicos, negcios tnicos (ethnic businesses) ou nichos de imigrantes (immigrant niches), como forma de salientar os laos de natureza social e tnica que une algumas actividades no destino; a base destes grupos pode ser mais territorial (os enclaves) ou ocupacional (cf. Portes, 1981: 290-5, 1995a e 1995b; Portes e Brcz, 1989; Portes e Sensenbrenner, 1993; nc, 1990: 191-6; Bailey e Waldinger, 1991; ou Waldinger, 1994). O essencial destes argumentos que o recurso intensivo a formas de capital social associado a recursos econmicos, como base para a criao e desenvolvimento de actividades e para o recrutamento de trabalho (incluindo o dos imigrantes recm-chegados). O capital social utilizado assenta, como escrevem Portes e Sensenbrenner (1993: 1329), num sentimento de we-ness ou numa relao comunitria, resultante quer de valores prprios ao grupo quer de adversidades situacionais (geralmente ligadas a discriminao social ou a um estatuto minoritrio). A importncia econmica de uma comunidade tnica solidria , acrescentam, elevada: ela pode constituir um mercado para bens e servios de raiz cultural; uma reserva de trabalho assalariado fivel; e uma fonte de capital para realizao de investimentos. A ligao existente entre as perspectivas econmica e sociolgica , neste aspecto, elevada - e no casual que este tipo de situaes tenha constitudo o pretexto para o desenvolvimento de muita da actual sociologia econmica da imigrao. Como ainda sugerem Portes e Sensenbrenner, o acesso privilegiado quele tipo de recursos, atravs dos empresrios e dos trabalhadores tnicos, no explicvel nem pelos modelos econmicos nem pela competio atomizada dos actores no mercado. Numa perspectiva estritamente sociolgica, tambm importante aceitar que, na aco social assim delineada, se conjugam exemplarmente atitudes instrumentais (sucesso nos negcios ou integrao no mercado de trabalho) com comportamentos de tipo comunitrio, que se ligam a outra ordem de relaes sociais.

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