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34 PADRÕES DE CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM E SUAS IMPLICAÇÕES NO ENSINO a RESUMO O artigo apresenta a enfermagem, como uma disciplina que está delimitando suas fronteiras e que, portanto, tem necessidade de definir suas formas próprias de conhecer, produzir e validar o conhecimento. Neste sentido é apresentada uma breve revisão de literatura sobre padrões de conhecimento próprios da enfermagem, a saber o padrão empírico, o ético, o estético e o pessoal. A partir da caracterização de cada um destes padrões é discutida sua implicação no ensino, destacando a necessidade de privilegiar estas formas próprias de conhecer durante o processo de ensino-aprendizagem formal. Descritores: enfermagem/educação; conhecimento. RESUMEN El artículo presenta la enfermería como una disciplina que esta delimitando sus fronteras y que, por lo tanto, tiene necesidad de definir sus propias formas de conocer, producir y validar el conocimiento. En este sentido se presenta una breve revisión de la literatura acerca de los padrones de conocimiento propios de la enfermería, a saber el padrón empírico, el ético, el estético y el personal. A partir de la caracterización de cada uno de estos padrones se discute su implicación en la enseñanza, destacando la necesidad de privilegiar estas formas propias de conocer durante el proceso de enseñanza-apredizage formal. Descriptores: enfermería/educación; conocimiento. Título: Padrones de conocimiento de enfermería y sus implicaciones en la enseñanza ABSTRACT The paper presents nursing as a discipline that is still setting it’s boundaries and that because of this has the need to define it’s own form of knowledge and how to produce and validate it. With this in mind, a brief literature review on knowledge patterns which are specific to nursing, as well as empirical, ethical, esthetical and personal patterns are presented. From the characterization of each one of these patterns, it’s implication in teaching is discussed, highlighting the need to privilege those forms of knowledgs during the process of formal teaching- learning. Descriptors: nursing/education; knowledge. Title: Patterns of knowledge in nursing and their implications in teaching Maria Elisabeth CESTARI b a Trabalho desenvolvido na disciplina de Filosofia da Enfermagem, Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). b Enfermeira. Professora do Departamento de Enfermagem da Fundação Universidade do Rio Grande. Doutoranda do Programa de Pós- graduação em Enfermagem da UFSC. CestariME. Padronesdeconocimientodeenfermeríaysusimplicaciones en la enseñanza [Resumen]. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2003 abr; 24(1):34. Cestari ME. Patterns of knowledge in nursing and their implications in teaching [Abstract]. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2003 abr; 24(1):34. Cestari ME. Padrões de conhecimento da enfermagem e suas implicações no ensino. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2003 abr; 24(1):34-42. ARTIGO

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PADRÕES DE CONHECIMENTO DA ENFERMAGEM ESUAS IMPLICAÇÕES NO ENSINOa

RESUMO

O artigo apresenta a enfermagem, como uma disciplina que está delimitando suas fronteiras e que, portanto,tem necessidade de definir suas formas próprias de conhecer, produzir e validar o conhecimento. Neste sentido éapresentada uma breve revisão de literatura sobre padrões de conhecimento próprios da enfermagem, a saber o padrãoempírico, o ético, o estético e o pessoal. A partir da caracterização de cada um destes padrões é discutida suaimplicação no ensino, destacando a necessidade de privilegiar estas formas próprias de conhecer durante o processode ensino-aprendizagem formal.

Descritores: enfermagem/educação; conhecimento.

RESUMEN

El artículo presenta la enfermería como una disciplina que esta delimitando sus fronteras y que, por lo tanto,tiene necesidad de definir sus propias formas de conocer, producir y validar el conocimiento. En este sentido sepresenta una breve revisión de la literatura acerca de los padrones de conocimiento propios de la enfermería, asaber el padrón empírico, el ético, el estético y el personal. A partir de la caracterización de cada uno de estospadrones se discute su implicación en la enseñanza, destacando la necesidad de privilegiar estas formas propiasde conocer durante el proceso de enseñanza-apredizage formal.

Descriptores: enfermería/educación; conocimiento.Título: Padrones de conocimiento de enfermería y sus implicaciones en la enseñanza

ABSTRACT

The paper presents nursing as a discipline that is still setting it’s boundaries and that because of this has theneed to define it’s own form of knowledge and how to produce and validate it. With this in mind, a brief literaturereview on knowledge patterns which are specific to nursing, as well as empirical, ethical, esthetical and personalpatterns are presented. From the characterization of each one of these patterns, it’s implication in teaching isdiscussed, highlighting the need to privilege those forms of knowledgs during the process of formal teaching-learning.

Descriptors: nursing/education; knowledge.Title: Patterns of knowledge in nursing and their implications in teaching

Maria Elisabeth CESTARIb

a Trabalho desenvolvido na disciplina de Filosofia da Enfermagem, Programa de Pós-graduação em Enfermagem da Universidade Federalde Santa Catarina (UFSC).

b Enfermeira. Professora do Departamento de Enfermagem da Fundação Universidade do Rio Grande. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Enfermagem da UFSC.

Cestari ME. Padrones de conocimiento de enfermería y sus implicacionesen la enseñanza [Resumen]. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS)2003 abr; 24(1):34.

Cestari ME.Patterns of knowledge in nursing and their implications inteaching [Abstract]. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2003 abr;24(1):34.

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1 INTRODUÇÃO

Nascer significa ver-se submetido à obri-gação de aprender. As crianças aprendem aandar, falar, vestir-se, usar instrumentos. Tam-bém aprendem formas de se relacionar, apren-dem o que é certo, o que é errado. A criançanasce inacabada, portanto deve construir-se,sendo a educação o processo de produção desi. “Dado que a criança só pode construir-seapropriando-se de uma humanidade que lhe é‘exterior’ essa produção exige a mediação dooutro”(1:54). Grande parte do conhecimento, pro-duto deste processo de ensinar e aprender,é tácito, não sendo rotineiramente problemati-zado.

Nas sociedades chamadas primitivas, aeducação é efetivada através do convívio entreadultos e crianças, os mais jovens aprendemacompanhando os adultos, observando e parti-cipando das diversas atividade do grupo. Mes-mo este tipo de sociedade possui técnicas “quesão operações concretas que permitem modifi-car o meio de forma eficaz”(2:22). A diversifica-ção do conhecimento técnico, que ocorreu pa-ralelamente ao aumento na divisão do trabalho,implicou na necessidade de diferenciar os co-nhecimentos dos componentes do grupo.

A diferenciação no que é ensinado aosjovens exige um período de aprendizagem es-pecial, que confere a posse de um saber diferen-ciado, legitimando a posição do indivíduo den-tro do grupo. A ampliação e a diferenciação doconhecimento levou à necessidade de criar ins-tâncias específicas de formação dos jovens e,ao longo da história, estas instituições tiveramdiferentes características. Na modernidade, aescola assume um papel central como institui-ção formadora, assumindo a tarefa de reprodu-ção cultural, socialização e formação para otrabalho.

Atualmente, o exercício de um númerosignificativo de profissões exige uma formaçãoacadêmica, o que se justifica pelo fato de cadaárea de conhecimento possuir formas de conhe-cer, produzir e transmitir conhecimentos que

lhe são próprias. Assim, o saber de uma profis-são é transmitido e legitimado pela escola.

A enfermagem, como uma disciplina queainda está delimitando suas fronteiras, tem ne-cessidade de definir seu campo de abrangência,o que implica em definir suas formas própriasde conhecer, produzir e validar o conhecimen-to(3). Em um país como o nosso, com diferençasregionais gritantes, as condições concretas parao exercício profissional são muito diversas,dependendo tanto da região quanto do tipo dainstituição na qual o trabalho é realizado. Nestecenário, produzir e validar conhecimento de en-fermagem é, sem dúvida, um desafio importante.

Apesar das inúmeras diferenças, algumasquestões são básicas para a disciplina como umtodo e permanecem em foco ao longo do tempo.A distância entre o que é ensinado nas escolasde enfermagem e o que é realizado pelas profis-sionais nos diversos campos de atuação é umadestas questões recorrentes, tanto no Brasilquanto internacionalmente. Este tema pode serabordado de diversas perspectivas e, neste tex-to, será abordado a partir de uma discussãosobre os padrões de conhecimento de enfer-magem e suas implicações para o ensino. Comesse objetivo, inicialmente são apresentados ospadrões de conhecimento da enfermagem pro-postos por estudiosos da área para, logo após,discutir sua implicação para o ensino.

2 PADRÕES DE CONHECIMENTO DEENFERMAGEM

Determinar a natureza do conhecimentode enfermagem é uma questão puramente aca-dêmica? Qual é a importância desta discussãopara a prática? E para o ensino? Reconhecer osaber da prática, e apresentá-lo de formadiscursiva, pode servir para legitimá-lo, tantointernamente quanto externamente à profissão.Declarar o que sabem e o que fazem é especial-mente importante para as enfermeiras que, an-tes de Nightingale, foram deliberadamente si-lenciadas e tiveram seu saber amortecido edesvalorizado(4).

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A natureza do conhecimento e a formapela qual é desenvolvido são condicionadaspela história, pelos valores dominantes e recur-sos disponíveis os quais, por sua vez, estãorelacionados com as condições socioculturais.Desta forma, a partir de uma perspectiva histó-rica, é possível compreender melhor como fo-ram desenvolvidos os conhecimentos de umaprofissão e quais são os temas que provavel-mente continuarão a ser estudados e discutidosno futuro(5).

Na segunda metade do século XIX,Nightingale implantou as bases da enfermagemmoderna e apresentou proposições interligadasque podem ser consideradas como uma teoria.Deste período até a metade do século XX, aprática baseada em regras, tradições e princípiosera a base do saber da enfermagem(5). Estesaber, que corresponde ao domínio de umaatividade, obtido através de longos períodos detrabalho nos hospitais, não era articulado emum todo que descrevesse o cuidado prestado enão era comunicado de forma sistemática.

A partir da década de 50, nos EstadosUnidos, algumas enfermeiras iniciaram o pro-cesso de teorização deste saber originado daprática. As primeiras teóricas eram enfermeirascom significativa experiência clínica e estavampreocupadas em criar programas educativosque expressassem uma perspectiva própria daenfermagem(6). As primeiras questões levanta-das foram: o que é enfermagem, o que a enferma-gem faz, o que é o conhecimento da enfermagem?

No Brasil, a institucionalização da enfer-magem teve início na década de 20 com acriação da primeira escola dirigida por enfer-meiras. Como estas eram norte-americanas,trouxeram para o país o modelo americano deensino, baseado na proposta de Nightingale,que privilegiava o treinamento por meio daprática hospitalar. No início da década de 70,Wanda Aguiar Horta começou a divulgar seutrabalho, publicando, em 1979, a Teoria dasNecessidades Humanas Básicas. Apesar destetrabalho ter tido influência marcante, especial-mente no ensino de graduação(7), a enfermagem

brasileira não investiu na construção de teoriaspróprias.

Nos Estados Unidos, no fim da década de70, Barbara Carper publicou um artigo, basea-do em sua tese de doutorado, apresentandoquatro padrões de conhecimento de enferma-gem. A importância deste trabalho pode serconstatada pelo número de vezes em que foi, econtinua sendo, citado na literatura internacio-nal. No Brasil, este trabalho não teve impactosignificativo, sendo sua discussão extremamen-te limitada.

O fato desta autora defender outras formasde conhecimento, além do empírico, represen-tou um passo importante para o desenvolvi-mento da disciplina de enfermagem. Os padrõesde conhecimento utilizados pela enfermagem,são: o empírico, o pessoal, o estético e o ético(8).

O padrão empírico, ou a ciência da enfer-magem, é fatual, descritivo, discursivamenteformulado e publicamente verificável. Seu ob-jetivo é desenvolver um conhecimento abstratoe explicações teóricas(8).

No final dos anos 50, nos Estados Unidos,o termo ciência começou a ser utilizado paradefinir a enfermagem, que voltou a se preocu-par com a teorização e a pesquisa. A visão daenfermagem como ciência produziu uma mu-dança de perspectiva: a ênfase na competênciatécnica, no dever e na virtude deu lugar àpreocupação em determinar o que é efetivo naprática de enfermagem(5).

Apesar dos primeiros modelos conceituaisde enfermagem seguirem uma forma empíricade construção de teorias, as diferentes propos-tas teóricas desenvolvidas trouxeram novasformas de ver e pensar fenômenos envolvidosna prática(8).

A ciência e seus métodos tem sido questio-nados e, acompanhando este movimento, asenfermeiras tem refletido e discutido formasapropriadas para desenvolver conhecimentoespecífico para a disciplina. O positivismo nãoé mais entendido como o único método possí-vel de fazer ciência, e esta vem perdendo seucaráter de verdade absoluta.

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O padrão estético corresponde à arte daenfermagem que é expressiva, subjetiva, e setorna visível na ação de cuidar. No entanto, nemtoda ação tem uma qualidade estética pois, paraque isto ocorra, deve haver uma unidade de finse meios.

A redução da arte à simples execução detécnicas foi um dos fatores que levou a desva-lorização desta forma de conhecimento. Noentanto, uma visão ampliada do que seja artecoloca novamente em questão as experiênciasda enfermagem que podem ser denominadasestéticas, incluindo o processo criativo de des-coberta no padrão empírico(8).

Até a instituição das escolas no modeloNightingale, a enfermagem era sinônimo dearte doméstica e, até o início do século XX, aarte de enfermagem referia-se à realização dastécnicas básicas(9). A arte está relacionada àprática profissional, ou seja a arte é expressa noprocesso de interação entre enfermeira e clien-te, despertando a capacidade do cliente de en-frentar desafios. “A habilidade técnica quandocombinada e em harmonia com timing, integri-dade pessoal e coordenação corporal é umaperformance artística que, aparentemente, nãoexige esforço”(9:10).

A percepção da ação de cuidar integrandomeios e fins aproxima-se das concepções decuidado que vem sendo desenvolvidas porvárias teóricas. O cuidado humano é uma pos-tura ética e estética frente ao mundo e exige“a conjugação do conhecimento, habilidadesmanuais, da intuição, da experiência e da ex-pressão da sensibilidade”(10:144).

A forma como o conhecimento, o julga-mento e a habilidade são utilizadas na áreaclínica é o fenômeno que, geralmente, é deno-minado de arte da enfermagem(11).

Nos trabalhos de estudiosos da enferma-gem, podem ser identificadas cinco concep-ções de arte: compreender o significado noencontro com o paciente; estabelecer conexãosignificativa com o paciente; realizar uma ati-vidade de enfermagem engenhosa; determinarum curso apropriado para a ação de enferma-

gem; adotar uma conduta ética na prática deenfermagem. Nesta caracterização aparecemrelacionados com a arte da enfermagem outrospadrões de conhecimento como o ético e opessoal(11).

O conhecimento estético pode ser relacio-nado com o saber como que permite trabalharcom os fenômenos não quantificáveis e com oque não pode ser explicado por leis e teorias.A intuição, a interpretação, a compreensão e ovalor constituem os componentes centrais daestética(12).

O padrão ético envolve mais do que co-nhecer o código de ética profissional. Na suaprática cotidiana, as profissionais de enferma-gem precisam estabelecer objetivos e realizarintervenções que sejam adequados aosclientes, o que implica em realizar uma escolha,decidir o que é apropriado à situação, o que ébom. O conhecimento ético envolve o exame ea avaliação do que é certo, errado, do que ébom, valioso e desejável nos objetivos finais erequer a compreensão das diferentes posiçõesfilosóficas sobre o que é bom, o que deveria serdesejado, o que é correto(8).

Devido aos avanços tecnológicos existen-tes, e às condições concretas dos serviços desaúde, cada vez mais as profissionais se vêemconfrontadas com escolhas que tem um caráterprofundamente ético, e que não podem sertomadas simplesmente recorrendo às determi-nações do código de ética. Assim, o desenvol-vimento de um conhecimento ético parece cadavez mais necessário.

Estabelecer critérios de avaliação para estepadrão de conhecimento é especialmente difí-cil e, ao mesmo tempo, particularmente impor-tante. O que podemos pedir aos profissionais,de forma que seus atos sejam consideradoséticos, é a explicitação das normas que orien-tam seu fazer e avaliação constante das conse-qüências de seus atos(8).

O padrão pessoal, que é o mais difícil dedominar e ensinar, relaciona-se com o conheci-mento, o encontro e o entendimento do self in-dividual, concreto. É o conhecimento de si mes-

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mo que permite estabelecer um relacionamentoautêntico e de reciprocidade com o outro(8).

O uso terapêutico do self implica numaaproximação do cliente como sujeito e a aceita-ção de sua liberdade. Reconhecer que todoser humano é singular não podendo, portanto,ser enquadrado dentro de categorias rígidasé o tipo de consideração que está envolvidacom o conhecimento pessoal, que é subjetivo,concreto e existencial. Este tipo de conheci-mento promove a totalidade e integridade norelacionamento pessoal e nega a orientaçãomanipuladora, impessoal(8).

Conhecer também pode ser interpretadocomo uma compreensão ativa realizada pelosujeito que conhece a partir das coisas já sabi-das, ou seja, o conhecimento é pessoal por sera apropriação e compreensão do saber por umapessoa(13). A partir desta concepção, são identi-ficados três aspectos do conhecimento pes-soal: conhecer o próprio ser, saber que (conhe-cimento explícito) e saber como (conhecimen-to implícito ou prático).

Na prática de enfermagem é possível dis-tinguir o saber como e o saber que. O primeiroreflete o domínio de uma habilidade, expres-sando o saber fazer; o segundo é um saberteórico, articulado através da linguagem. Asenfermeiras possuem um saber que, adquiridona escola, e na sua experiência profissional en-frentam situações nas quais este saber é refina-do, confirmado, modificado, negado. Assim, odesenvolvimento do saber como depende deum saber que e pode ser considerado umconhecimento pessoal(14).

Outra visão sobre conhecimento pessoal éapresentada por Bernard Charlot, teórico naárea da sociologia da educação. Nesta perspec-tiva, não há um saber senão para um sujeito, nãohá saber senão organizado de acordo com rela-ções internas, não há saber senão produzido emconfrontação interpessoal(1). Se não existe umsaber em si, o saber é uma relação.

Uma pesquisa com estudantes de duasescolas, permitiu estabelecer três modelos derelações epistêmicas com o saber: relação com

um saber-objeto; a imbricação do eu na situa-ção e a relação de distanciação-regulação(1).

O uso da linguagem, preferentemente aescrita, confere ao saber uma existência apa-rentemente independente do sujeito, tornando-o um objeto. Através deste processo, o sujeitoé capaz de estabelecer uma relação com osaber-objeto. Neste caso, a linguagem é utili-zada não só para dizer alguma coisa comotambém para fazer algo (refletir) e para ser(construir uma identidade). Por meio desta for-ma de relação com o saber, os alunos sãocapazes de se colocar e nomear a si mesmos.

Esta forma de relação com o saber, quepode ser estabelecida sempre que o sujeitoexpresse seus conhecimentos por meio da lin-guagem, está mais ligada ao conhecimentoempírico. No entanto, o nomear a si mesmoleva ao conhecimento pessoal.

Na relação de imbricação do eu na situa-ção, o que acontece é a passagem do não domí-nio ao domínio de uma atividade, como nadar.Quando os alunos mantém uma relação profis-sional com a escola, e com o saber, não háruptura entre seu saber cotidiano e o escolar,ocorrendo uma forte imbricação do eu noaprendizado. Neste caso, “é com referência aações em situação que o fato de aprender fazsentido”(15:59).

O ensino da enfermagem baseado na exe-cução repetitiva de atividades nos campos deprática favorece uma relação com o saber cor-respondente à imbricação do eu na situação.Esta forma de ensino-aprendizagem, ou treina-mento, foi bastante comum no início da forma-ção de enfermeiras, tanto nos Estados Unidosquanto no Brasil, e ainda pode ser observadoatualmente(16).

Esta relação de imbricação do eu na situa-ção também pode ser observada no trabalho dasprofissionais, quando este é executado de for-ma mecânica, repetitiva, limitando-se a execu-ção de procedimentos padronizados.

Passar do não-domínio ao domínio de umarelação consigo próprio, com os outros e deuma relação consigo próprio através da relação

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com os outros é que estabelece uma relação dedistanciação-regulação com o saber. Este tipode relação, mais comum entre as meninas,tende a engendrar uma regra de conduta, ouuma chave para a leitura do mundo. Este pro-cesso parece se desenvolver na vida de relaçõespessoais e afetivas.

Esta última forma de relação epistêmicacom o saber pode ser relacionada com o padrãode conhecimento pessoal já que, segundo oautor, os alunos que desenvolvem este tipo derelação transformam o mundo em que vivemem objeto de reflexão.

Cada um dos padrões de conhecimento, oético, estético, pessoal e empírico, pode serconcebido como necessário para atingir o do-mínio da disciplina, mas nenhum deles, isola-damente, pode ser considerado suficiente. Damesma forma eles não são excludentes, e nemrepresentam todas as formas de conhecimentoutilizadas na disciplina(8).

Com freqüência, no entanto, cada um des-tes padrões tem sido discutido e estudados deforma isolada, como sendo uma entidade inde-pendente. Além disto, no seu conjunto foramconsiderados como contemplando todas as for-mas de saber da disciplina de enfermagem. Aforma como o artigo de Carper foi interpretadopela maioria dos autores que o citaram fez comque sua riqueza fosse perdida(17).

Possivelmente essa redução da propostaapresentada tenha relação com a dificuldade depensar e expressar a complexidade. O conheci-mento de enfermagem, para se constituir, con-juga componentes estéticos, éticos, empíricose pessoais e, na prática profissional, é utiliza-do como um todo. No entanto, dependendo dasituação, um aspecto, ou padrão, deste conheci-mento é mais facilmente percebido.

Nenhuma forma de conhecimento é umaentidade independente, que surge separada dosujeito que conhece e fora de um contextosociocultural. Refletindo sobre as formas deconhecimento aqui apresentadas, é fácil notarque cada uma delas mantém pontos de contato,semelhanças e diferenças com as outras.

Aceitando que a enfermagem como dis-ciplina possui formas próprias de conhecer,torna-se clara a necessidade das instituiçõesformadoras buscarem formas apropriadasde construir e transmitir este conhecimento.Ou seja, a existência de padrões de conheci-mento no trabalho de enfermagem trás impli-cações para o processo de ensino-aprendiza-gem utilizado ao longo do período de forma-ção acadêmica.

3 IMPLICAÇÕES PARA O ENSINO

O fazer da enfermagem diante de um cli-ente concreto, e inserido em determinado con-texto, é complexo, exigente e seu exercíciopressupõe o domínio de um determinado nú-mero de habilidades e conhecimentos. Partedestes conhecimentos e habilidades deve seradquirida na instituição escolar, a qual precisaprivilegiar as maneiras específicas de conhecerdo profissional que pretende formar. Portanto,para planejar o processo de ensino aprendiza-gem é essencial determinar como adquirir oconhecimento desejado.

Como desenvolver conhecimento pessoale estético, que são subjetivos, expressivos? Asalunas e profissionais de enfermagem devemaprender sozinhas, através da experiência?Neste caso, as instituições formadoras não temum papel na construção dessas formas de co-nhecimento?

As pessoas não aprendem sozinhas, masna inter-relação com outras pessoas. No entan-to, a forma de ensino tradicional, baseada nareprodução de informações, realmente não pos-sui métodos para trabalhar com um conheci-mento que não seja objetivo, sistemático eapresentado discursivamente. No entanto, foiaprendendo que homens e mulheres desco-briram que é possível ensinar e, ao longo desua história, os seres humanos têm aprendidonão só conhecimentos objetivos, mas valores,condutas, modos de ser(18).

A literatura de enfermagem apresenta al-gumas sugestões sobre como ensinar-aprender

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os diferentes padrões de conhecimento. A ela-boração de diários, escritos de maneira expres-siva, pode ser um caminho para desenvolver oconhecimento pessoal e estético, permitindoque as alunas desenvolvam maior consciênciasobre si mesma e sobre sua forma de agir frenteàs situações vivenciadas(19). A partir das teoriasde composição, a escrita poética e expressivapode ser uma forma de desenvolver o conheci-mento estético(20). Também a reflexão na açãosurge como um caminho para unir a arte e aciência de enfermagem, gerando uma teoria daprática(11).

A empatia é apontada como um modo deadquirir conhecimento estético pois, à medidaque desenvolve seu trabalho de forma empáti-ca, a enfermeira passa não só a conhecer novasformas de perceber o mundo como tambémoutras formas de prestar cuidado(8). Do ponto devista do ensino permanece a questão de comodesenvolver a empatia. Uma resposta pode serutilizar o cuidado como parte do processo deensino-aprendizagem. O cuidado envolveempatia, respeito ao outro, interesse, preocupa-ção e a vivência do cuidado pode auxiliar asalunas a se tornarem cuidadoras(21).

O que se observa nestas propostas é, emprimeiro lugar, a necessidade de alguma formade comunicação entre os sujeitos para queexista a apropriação dos saberes, o que de-monstra a convicção de que as pessoas apren-dem umas com as outras. Em segundo lugar, amaioria das propostas indica o uso de umaforma discursiva para a construção e apreen-são destes saberes.

A utilização da linguagem como forma deconhecer nos leva a Habermas. Este autor afir-ma que toda a ação pode ser traduzidadiscursivamente, e que o questionamento deum observador sobre as razões da ação podeauxiliar neste processo(22). Esta afirmaçãoindica um caminho para o trabalho educa-tivo no qual a professora, agindo comotematizadora, pode auxiliar a aluna a desenvol-ver seu conhecimento estético, pessoal, ético eempírico.

A reflexão sobre o fazer é o que permite odesenvolvimento, no trabalho educativo, doprocesso de conscientização. Este processo,entendido como objetivo central na educação,envolve o conhecimento pessoal, empírico eético. Além disto, ensinar e aprender exigeum conhecimento estético manifestado narelação de igualdade, cumplicidade e respeitoestabelecida entre quem ensina aprendendo equem aprende ensinando(23).

Os padrões de conhecimento estético, éti-co e pessoal, não podem ser considerados ver-dadeiros ou falsos e, portanto, não podem servalidados da mesma forma que o conhecimentoempírico. Para Habermas, o conhecimento nãoé construído na relação entre sujeito e objeto(como na filosofia da consciência), mas narelação entre sujeitos que se entendem sobrealgo no mundo. Esta proposta substitui a ques-tão da verdade como correspondência do quese diz com o que de fato é por critérios devalidade: assim a validade se refere não só àcorrespondência com o mundo objetivo, abran-gendo também a sinceridade do falante e ade-quação às normas aceitas(22).

Assim, as formas de conhecer devem serintersubjetivamente validadas, mesmo as for-mas de conhecimento pessoal e estético. Estavalidação pode acontecer pois o que os sujeitosda comunicação buscam não é exclusivamenteuma correspondência com algo no mundo con-creto, mas a construção de uma validadeintersubjetiva. A comunicação livre é essencialpara que se atinja este objetivo.

Nesta perspectiva é que poderíamos en-quadrar as propostas de construir e validarconhecimento ético, estético, pessoal. Na basedo entendimento entre os sujeitos, aqui incluí-dos quem cuida, quem é cuidado, quem ensinae quem aprende.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre o conhecimento que utiliza-mos para intervir no mundo, como ele é produ-zido e como ele pode ser avaliado, é uma

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postura ética. É necessário que os integrantesde uma disciplina saibam que tipo de conheci-mento produzem e utilizam para que possam,cada vez mais, produzir e utilizar conhecimen-tos que atendam aos objetivos da disciplina eda sociedade. Por outro lado, a sociedade pre-cisa saber sobre quais fundamentos um profis-sional propõe e executa um serviço. Resumin-do, estudar as formas de saber de uma discipli-na é importante para que esta se torne cada vezmais capaz de produzi-lo, colocando-o à dispo-sição da comunidade, e para justificar sua im-portância frente a esta mesma comunidade.

A enfermagem é uma disciplina que buscadefinir sua identidade e obter valorização, reco-nhecimento. Na busca destes objetivos, muitasvezes imitamos formas de conhecer e fazer deoutras disciplinas, mas, para que possamos defato nos desenvolver, é necessário identificar,estudar, discutir nossas formas específicas desaber e fazer.

A pesquisa deve desenvolver e utilizarmetodologias apropriadas, que levem em con-sideração as diferentes formas de conhecimen-to. Atualmente, na enfermagem variadas abor-dagens de pesquisa estão sendo desenvolvidase, com o aumento da experiência e perícia daspesquisadoras, certamente contribuirão de for-ma significativa no conhecimento de enferma-gem.

Na prática, é importante que as profissio-nais não só continuem a utilizar suas diferentesformas de saber, mas que passem a reconhecerseu valor e complexidade. A explicitação, evalorização, do que fazem é um passo impor-tante no caminho de busca de um fazer maissignificativo e prazeroso.

A escola, como construtora, transmissorae legitimadora do saber, precisa preocupar-seem criar situações de ensino-aprendizagem quepermitam a apropriação e construção das for-mas específicas de saber da disciplina.

Isto significa que, para o fortalecimento dadisciplina de enfermagem, é necessário o com-prometimento de suas profissionais com asformas específicas de construir conhecimento

e utiliza-lo, estejam estas profissionai ligadasao ensino, assistência ou pesquisa.

REFERÊNCIAS

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Endereço da autora/Author´s address:Maria Elisabeth CestariRua General Câmara, 439Bairro: Centro96.200-320 - Rio Grande - RSE-mail: [email protected]

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Recebido em: 06/06/2002Aprovado em: 10/03/2003

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