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Partida para o Brasil Invasões Francesas Campanha da Cisplatina Congresso de Viena O Fim de Napoleão Revolta de Pernambuco A Execução de Gomes Freire Pedro Beltrão Tempos de Esperança 1807-1817

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Partida para o BrasilInvasões Francesas

Campanha da CisplatinaCongresso de VienaO Fim de Napoleão

Revolta de PernambucoA Execução de Gomes Freire

Pedro Beltrão

Tempos de Esperança1807-1817

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Ao leitor

A história que vou contar nasceu da descoberta de corres-pondência trocada por algumas das suas personagens. Muito contribuíram também as memórias do Prior de Achete em 1811, que encontrei no Arquivo da Sé de Lisboa. Escritos há duzentos anos, são documentos inéditos e cheios de força nar-rativa que deram corpo ao romance.

-mentos aqui relatados. Como é óbvio, não conheci nenhuma delas, foram as notícias da época que as retrataram.

Esta é a história de dois irmãos, Inácio e João, cada um com o seu percurso. Um partiu para o Brasil com a família e a corte, o outro ficou em Portugal vivendo intensamente as Invasões Francesas. Nem sempre foram os acontecimentos a condicionar-lhes a vida, mas a vontade própria que lhes impri-miu as decisões e lavrou os destinos.

Além dos factos históricos que se conhecem e estudam, há a imaginação a funcionar e um contador de histórias a sonhar. Ai de quem não sonha e só vive a realidade, ai de quem não

que escrevo, abro mais uma janela e alcanço novos horizontes por cima dos telhados da cidade. Aí ponho as minhas persona-gens a amar e a sofrer. Mas cuidado que não somos criadores, e os sonhos são efémeros, esfumando-se quando desponta a madrugada.

O Autor

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Inácio e João1807

O embarque

Foi um Novembro precocemente invernoso. Dia após dia, uma morrinha miúda varreu Lisboa de lés a lés. Por todo o País chuviscou sem parar três semanas a fio. O céu transbordava com força mais poderosa do que as inocen-tes súplicas dos miúdos, impedidos de fazer os seus jogos, que cantarolavam: «Nossa Senhora da Conceição faça sol e chuva não.»

Da banda do mar, um vento molhado deslizava em cor-tinas encharcando os milhares de pessoas que labutavam apressadamente junto ao rio Tejo. Desde a praia de Belém até à Rocha do Conde de Óbidos, trinta e sete navios eram carregados atabalhoadamente com tudo o que se possa ima-ginar, num vaivém de faluas, escaleres e bergantins. Milhares

vivos e até árvores eram transportados em constantes via-gens por entre gritos e ameaças. Toda a noite se trabalhou duramente à luz das tochas impregnadas de resina, pois as fogueiras ardiam a custo. Era um cenário irreal e fantástico, nunca antes visto naquelas praias habitualmente pisadas por

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Quando a primeira claridade iluminou a cidade, come-çaram a chegar trens e carruagens, magotes de pessoas a pé e a cavalo. Eram as que iam embarcar, as que iam à despedida dos seus e muitas outras movidas pela curiosidade de assis-tir a um espectáculo diferente. As que ficavam eram invadi-das pela angústia de ver partir para o Brasil o seu príncipe, a família real e a corte. Sentiam-se abandonadas, órfãs e à

esses jacobinos anticristo, até se dizia que comiam crianças.No meio da imensa turba, chamava a atenção uma galera1,

cujo cocheiro dificilmente abria caminho por entre o mar de gente que se comprimia até ao rio.

-lia, com os seus oito anos mimados, apoiando a cabeça no ombro forte do pai. Os cabelos loiros espraiavam -se em caracóis entubados que a ama lhe fizera, à força de ferros bem quentes, para a longa viagem que ia ence-tar com os pais e os dois irmãos. Tinham saído ainda de noite da sua imponente casa, já nos arrabaldes, junto à Igreja de São Sebastião da Pedreira, na grande car-roça cheia de bagagem para a estadia na colónia, que se esperava não durasse mais do que dois ou três anos. «É só o tempo de Napoleão ser vencido», pensavam eles.

Vestido com a sua farda de capitão de cavalaria, Antó-nio de Toledo Matos Cabral tentava proteger a mulher e os filhos da multidão que se aglomerava na praia. Apeou-se e desembainhou o longo sabre, volteando-o sobre o capacete de couro preto encimado pelo penacho vermelho de crina; primeiro com cuidado para não ferir ninguém, depois na

1 Carroça de grandes dimensões para transporte de cargas pesadas.

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horizontal, abrindo clareiras para o carro passar e gritando com a voz treinada no comando das tropas:

Dada a sua posição e conhecimentos na corte, tinha con-seguido um lugar para a família num dos principais navios, a nau Príncipe do Brasil, onde viajava uma pequena parte do seu esquadrão com cavalos e armas. A família real, por motivos de precaução e comodidade, ia dispersa por várias embarcações.

Findava o ano de 1807 e a corte rumava para o Brasil, lembrando mais uma fuga do que uma retirada estratégica.

por Junot, já estava em Abrantes, a escassos dias de marcha da capital. Os franceses vinham rotos, famintos, alguns des-calços e com o armamento em mísero estado. Ninguém reco-

uns meses antes, tinham desfilado em Baiona perante Napo-leão Bonaparte.

O imperador, empertigado e quase em bicos dos pés para parecer mais alto, discursara aos seus oficiais superio-res:

– Meus bravos, ireis cumprir uma fácil, mas importante, missão. Conquistareis Portugal, esse pequeno país rebelde que não quer obedecer à minha vontade de combater os Ingleses. Pretendo vergar a família Bragança, os seus mem-bros terão de prestar vassalagem e ajoelhar perante mim. Facilmente chegareis a Lisboa, cidade cheia de riquezas e tesouros. – Parou, passeando o olhar pelos assistentes. Sabia - -se idolatrado por aqueles homens que nele viam um chefe invencível e um estratega moderno. Continuou: – Ainda há dias, recebi do velho Marquês de Marie Alvá – dizia, afrance-sando o título – um cofre cheio de diamantes, homenagem do

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príncipe regente que oferecia o seu filho Pedro para se casar na minha família. Oh, que mesquinho, querer comprar-me

-

rand, o seu ministro, que contrariara a invasão de Portu-gal. Mas, logo após a sua demissão, o Corpo da Gironda, comandado por Junot, tinha partido. Transpusera os Pire - néus cheio de quimeras vencedoras, mas a travessia de uma Espanha hostil, com falta de alimentos, não fora tarefa fácil. Entrara em Portugal por Segura. Pela frente, encontrara planícies desertas, enfrentando a lama, a chuva e a fome. Depois, as serras escarpadas de granito, rodea-das por ribeiras transbordantes, atrasaram a marcha das três divisões. Estavam treinadas para a guerra contra os homens, mas não contra as forças da natureza. Os oficiais desconheciam os caminhos e perdiam-se companhias intei-ras pelas veredas enlameadas que sugavam as botas dos soldados e as ferraduras dos cavalos. Descalços, enchar-cados e esfomeados chegaram a Abrantes pouco mais de 3000 homens, dos 27 000 que haviam partido de França. Só Junot, o sargento que em nove anos passara a general,

para cavalgar até à capital.

A pequena Cecília, amedrontada com tanto barulho, aper-tava contra si uma cadelita, a Esteva, oferta da madrinha pou-cos dias antes da partida.

Quando ia a descer da galera para os braços do pai, desequilibrou-se e largou o animal que, dando um salto para o chão, desatou a correr ladrando alegremente atrás das gai-votas assustadas.

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– Esteva,A menina gritava num choro convulsivo. O irmão, Iná-

cio, com os seus quase dezasseis anos, rapagão bem cons-tituído, saltou lépido do carro, desaparecendo por entre a multidão no encalço da cadelinha.

– Apanho-a num instante – gritou ele, mal olhando para os pais.

A mãe, D. Gertrudes, afligiu-se:– António, manda alguém atrás do Inácio, que ainda se

perde.– O rapaz já é crescido. Agora, tenho é que pensar em

levar toda a nossa bagagem para bordo.Realmente a tralha era imensa e volumosa. Predomina-

domésticos estavam em sacos de cabedal. As roupas de casa e de vestir iam em seis arcas de madeira revestidas a coiro. Numa mais pequena, iam as pratas e os santos de capela, em Lisboa é que não ficavam, pois os Franceses tinham fama de tudo profanar e roubar.

A criada, Maria, com trinta anos feitos, autêntica saloia de Loures que ajudara a criar os três meninos, gritava para os marinheiros:

-brar.

– Ó menina, tenha juízo, cobres não se partem.O marujo com ar zombeteiro olhava-a descarado, mas,

perante a ansiedade da moçoila, emendou:– Como vamos viajar juntos, não quero que a menina

pense mal de mim. Vou ter o maior cuidado – tirou o barrete fazendo uma vénia. – Alcides, às ordens de vossa mercê.

Com gritaria e trabalhos esforçados, os pertences da família Cabral lá foram carregados.

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mestre do escaler que, encalhado na areia, baloiçava perigo-samente na rebentação de água escura, engrossada por limos e detritos.

Aflita, D. Gertrudes olhava para todos os lados.

para não perder tempo. Ainda tenho de voltar a buscar mais passageiros.

Temos de esperar.– Senhor capitão, com vossa licença, só recebo ordens do

meu comandante. Espero ainda alguns minutos e depois parto com quem estiver – disse o mestre, resoluto mas educado.

Todos olhavam em redor, mas a multidão era cada vez mais densa. D. Gertrudes, à beira de um ataque de nervos, lamuriava:

-sado pouco tempo. Tentou convencer um cabo de esquadra que por ali passava.

– Mas como quer o meu capitão que eu encontre o vosso filho no meio desta barafunda? A minha missão é evitar os roubos e abusos, que isto está cheio de larápios. Perdoe-me, mas não posso ajudar.

A situação tornou-se tensa, o pai discutia com o mestre do barco, mãe, filha e criada choravam, até que se ouviu a voz do Alcides:

busca do jovem. Topei-lhe a cara e a cor do casaco.– E como regressas a bordo? – perguntou o mestre,

indeciso.

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– Apanho-o aqui quando vier buscar mais passageiros.

O capitão agradeceu ao marinheiro, que piscava o olho,

A bordo

Chegaram à nau encharcados depois de alguns tormen-tos: o rio agitado, a vaga tocada pelo vento que a todos sal-picava, o escaler sobrepujado e só cinco remadores pois o ladino do Alcides tinha ficado em terra.

Esperava-os o comandante na escada do portaló. Fardado a rigor com chapéu bicórneo debruado a ouro, casaca azul de punhos vermelhos, alamares dourados e gola alta, calça branca e sapato preto bem polido. Muito aprumado, apresentou-se:

– Capitão-de-Mar-e-Guerra Francisco de Borja Salema

senhor capitão. Consegui reservar uma cabine para a vossa família, não é espaçosa mas tem uma cama, e mandei colocar três redes para vossos filhos.

– É muita amabilidade a vossa, senhor comandante, mas estou preocupado com o mais velho, o Inácio. Perdeu-se no meio da multidão e ficou em terra.

– Será certamente encontrado. A nossa partida só para a tarde está aprazada.

– E o meu esquadrão?– Embarcou ontem à noite, quarenta homens com cava-

los e armas.Ao ver a quantidade de pertences da família que subia a

bordo, o comandante torceu o nariz.– Terá tudo de ir para o porão dos fundos. Toda a gente quer

trazer as suas coisas, o que é natural, mas o espaço é limitado

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– e virando-se para um jovem guarda-marinha ordenou-lhe: – Quero o convés do tombadilho desempachado. Nada de arrumos por esse lado, pois será o local de recreio dos pas-sageiros. – Depois, para o capitão: – Podeis ir verificar o esquadrão, o guarda-marinha acompanhará vossa família ao aposento.

A disposição da família Cabral era sombria: D. Gertru-des continuava triste pelo atraso do filho, a pequena Cecília pela falta da cadelinha, João, o segundo filho, pela obrigação de acompanhar a mãe ao quarto e ter de ajudar a levar as arcas com os pertences de primeira necessidade e, por fim, a Maria, pela ausência do seu galã.

Quando chegaram ao aposento que lhes estava desti-nado, esqueceram as mágoas, quedando-se estupefactos com o que viam. Um cubículo com dois passos por três, sem janela, com uma serapilheira a servir de porta. Um odor repelente envolvia aquele tugúrio, alumiado somente por

alturas diferentes que se cruzavam no ar, sobrando espaço para uma arca.

– Como iremos sobreviver aqui durante dois meses? Ai,

dias – dizia o guarda-marinha com cara simpática.Saíram apressados para o tombadilho, ansiosos por ar

puro, não se importando com a chuva que continuava a cair. João pediu à mãe para visitar a nau. Sempre tivera uma forte atracção pelo mar e pelos navios. Embora a confusão fosse

oficial orgulhosamente lhe mostrava. Foi nesse mesmo dia que jurou a si próprio seguir a carreira da Marinha. Ofere-ceu-se para ajudar o novo companheiro durante a viagem, mas o jovem oficial sorriu:

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– Isso não depende de mim, é necessária a autoriza-ção do comandante ou do imediato. A bordo nada se pode fazer fora da rotina. Aproveito para me apresentar: Vitorino Gregório, guarda-marinha há três anos. – Depois confiden-ciou-lhe: – É a minha segunda viagem e uma honra levar pas-sageiros tão ilustres.

– Ilustres?– Embarcarão duas altezas reais, as irmãs mais novas

da rainha: a princesa viúva do Brasil, D. Maria Benedita, e D. Maria Ana. Levamos o Secretário de Estado D. Rodrigo de Sousa Coutinho com a mulher e filhos, assim como seu irmão D. Francisco, que é almirante mas viaja na qualidade de passa-geiro. Também vem o senhor Joaquim José de Azevedo, almo-

muitos outros. Não é todos os dias que se tem uma responsa-bilidade destas. A tripulação foi reduzida, não trazemos fuzi-leiros, em vez deles vem um esquadrão de cavalaria.

– Eu sei, o meu pai é o comandante. E se formos ataca-dos no mar?

O outro olhou João com superioridade e comentou:– Quem se atreveria a cruzar força naval tão impor-

tante? Estudei a composição das esquadras europeias. Neste momento atravessar o Atlântico tem pouco perigo. A Mari-nha francesa foi arrasada há dois anos em Trafalgar, os rus-sos têm a sua maior esquadra, ali, amarrada no Tejo, não podendo sair sem autorização das fragatas de sua majestade britânica que guardam a barra, os piratas argelinos têm sido

– Estás bem informado – disse João, olhando Vitorino com um misto de inveja e respeito.

– Claro. É a minha obrigação como futuro oficial. Mas, voltando à nau, a redução de pessoal foi drástica, em vez dos trinta e três homens de machado trazemos só oito, e dos

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vinte calafates habituais vêm só cinco; se houver avarias no alto mar não sei como as repararemos.

O guarda-marinha tomou o rapaz a seu cargo.

Teria Inácio fugido?

O tempo ia passando e nem sombra de Inácio. Tocou a sineta para o almoço, só João compareceu e, com o apetite próprio da idade, devorou as batatas com sarda e ovos cozi-dos, assim como as laranjas que lhe serviram.

D. Gertrudes não parava de choramingar com a demora do filho; o marinheiro Alcides regressara de terra, dizendo, enleado, que apesar de buscas não o tinha encontrado. Várias pessoas viram um rapaz bem trajado, com ar de fidalgo, cor-rendo e abrindo caminho pela praia fora.

– Até me disseram: «Parecia que ia atrás do diabo.»– Coitadinho do meu menino, tudo isto para ajudar a

mana. Não parto sem o meu filho. Ouviste, António? Nem que me atire ao mar – afirmava a mãe, comovida.

Perturbado, o capitão não sabia o que fazer entre a preo-cupação de pai e o impedimento de abandonar o esquadrão. Bem no fundo, tinha um mau pressentimento que não trans-mitia a ninguém. Vinha-lhe à memória a conversa tida com Inácio na semana anterior:

– O pai não acha uma cobardia o príncipe fugir para o Brasil, como por aí se comenta?

– Proíbo-te de usares esses termos. Tens dezasseis anos e nada sabes de política. Não tens o direito de falar assim de Sua Alteza.

Inácio ainda tivera coragem para dizer:– Se Napoleão invadir Portugal será para trazer novas

ideias e mais cultura ao nosso povo.

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sua cara da do filho, dissera com voz cortante:– Não voltes a dizer uma coisa dessas à minha frente.

– Só queria dizer que França é o país mais culto da Europa. O povo tem instrução e o espírito assassino da revolução já passou.

Cheio de paciência, o capitão mandara-o sentar à sua frente.

– Não sei com quem andas a aprender essas coisas, mas agora vais ouvir-me. Sabes que a cultura das Luzes põe Deus de lado e só a razão conta? Sabes que foram assassi-nados milhares de padres, religiosos e nobres? Roubaram os bens da Igreja e daqueles que não eram da cor deles. Já és suficientemente crescido para perceberes que, se vivêssemos em França, eu e a tua mãe seríamos provavelmente mortos

-culpa de libertar os povos, vai-se assenhoreando da Europa e matando milhares de pessoas, destituindo reis e colocando nos tronos familiares e amigos. Achas isso bem? – Perante o silêncio do filho, insistiu: – Diz-me, Inácio, achas isso cor-recto?

– Não me estava a referir a essa parte.– Mas é bom que não a esqueças e que tires essas ideias

subversivas da cabeça. Poderemos voltar a falar sobre este assunto, com calma, quando quiseres.

Foi com uma raiva surda, contra si próprio, que o rapaz se calara, esquecendo os argumentos que ouvira vezes sem conta ao seu colega Domingos Banha dos Santos que, primo de um sargento da cavalaria, conseguira entrar para o Colégio dos Nobres. Sendo o melhor aluno do curso, começara por ajudar Inácio na resolução dos problemas de Matemática.

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Tinham-se tornado amigos e, durante os últimos dois anos, Domingos falara-lhe de política e da admiração que tinha pelo espírito da Revolução Francesa. Rematava ele:

– Quero para Portugal uma sociedade onde impere a von-

Uma espécie de amizade clandestina foi-se solidificando. Inácio tinha ido duas vezes, sem licença dos pais, a casa dele, em Alcântara. Ficara encantado com a simplicidade e simpa-tia da mãe, que o abraçou e lhe deu dois beijos repenicados nas bochechas que ficaram escarlates.

– Então és tu o fidalgo amigo de quem Domingos está sempre a falar? Bem-vindo a esta humilde casa. Mas olha que nós também somos boa gente. Os meus pais são de Setú-bal e têm lá quase um solar. Até tem salão para visitas e casa de jantar.

Pela preocupada cabeça do capitão António Cabral pas-

sou instantaneamente a ideia de que o filho não quisera par-

seus receios.Estes pensamentos foram interrompidos pelo corneteiro,

que tocou a sentido. Suas altezas entravam a bordo ou, por outra, eram içadas em poltronas. D. Maria Benedita, Prin-cesa do Brasil pelo casamento, com os sessenta anos bem conservados, era viúva do próprio sobrinho D. José, o antigo herdeiro do trono, que morrera novo e sem descendência.

Algum tempo depois, os canhões da Torre de Belém deram as setenta e duas salvas, sinal de que a rainha D. Maria I e seu filho D. João, já com quarenta anos feitos e precocemente envelhecido, estavam a embarcar na nau principal, a Príncipe Real.