Teixeira Leticia Angel Vianna Mestrado Unirio

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UNIRIO

    CENTRO DE LETRAS E ARTES - CLA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM TEATRO - PPGT

    MESTRADO EM TEATRO

    INSCRITO EM MEU CORPO: UMA ABORDAGEM REFLEXIVA DO TRABALHO CORPORAL PROPOSTO POR ANGEL VIANNA

    Letcia Pereira Teixeira

    RIO DE JANEIRO 2008

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    Inscrito em meu corpo: Uma abordagem reflexiva do trabalho corporal proposto por Angel Vianna

    por

    LETCIA PEREIRA TEIXEIRA

    Dissertao submetida ao Programa de Ps-Graduao em Teatro do Centro de Letras e Artes da UNIRIO, como requisito parcial para obteno do grau de Mestre, sob a orientao da Professora Doutora Nara Keiserman. rea de Concentrao: Teoria e tcnicas teatrais. Linha de pesquisa: processos e mtodos da construo cnica.

    RIO DE JANEIRO 2008

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    TEIXEIRA, Letcia Pereira. Inscrito em meu corpo: Abordagem Reflexiva do Trabalho Corporal proposto por Angel Vianna. Mestrado em Teatro Programa de Ps-Graduao em Teatro, Centro de Letras e Artes, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2008.

    RESUMO

    Esta dissertao teve como objeto de estudo o trabalho corporal proposto por Angel Vianna, ou seja, a sua prtica conhecida como conscientizao do movimento. A via principal de investigao partiu do registro, incorporao e assimilao efetivadas pela autora, uma de suas discpulas. Est estruturada em quatro captulos: o primeiro parte da conceituao do corpo como elemento norteador para a compreenso desta abordagem; o segundo discute os principais conceitos pertinentes prtica de Angel Vianna, como: imagem corporal, propriocepo e conscincia do corpo; o terceiro apresenta tpicos de carter didtico formulados atravs de princpios, modos de aplicao e alguns procedimentos bsicos e o quarto captulo estabelece uma articulao entre o pensamento formulado nos captulos anteriores e aspectos da preparao corporal do ator. Os temas analisados nos quatro captulos dessa dissertao contribuem para a projeo do trabalho, na construo de novas didticas e pesquisas no campo das artes cnicas, envolvendo a formao do bailarino e do ator.

    Palavras-chave: Angel Vianna, Expresso Corporal, Pedagogia do Corpo.

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    ABSTRACT

    This dissertation was based, as object of the study, on the body work purposed by Angel Vianna, which means, her body work practice known as movement consciousness. The main lane of the investigation began from the taken on permanently register, incorporation and assimilation by the author, who was one of hers pupils. The dissertation is structed in four chapters. The first one starts from the concept of the body as the element for the understanding of this bound approach. The second one discusses about the principal concepts related to Angel Vianna practice, such as: the body image, the proprioception and the conscious ness of the body itself. The third one presents didactic character topics formulated through the principles, forms of application and some basic procedures. Finally, the last chapter determines an articulation between the formulated thought in the previous chapters and the aspects of the body preparation of the actor. The analyzed subjects in the four chapters of the dissertation contribute to a further projection of this work, in what concernes to the constructions of news didactics and researches in the scenic arts field, involving the rise of the dancer and of the actor.

    Key words: Angel Vianna, Body Expression, Pedagogy of the Body.

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    AGRADECIMENTOS

    minha querida Angel, por acreditar em meu empenho e esforo para a continuidade

    do seu trabalho.

    minha orientadora, Profa. Dra. Nara Keiserman, pelo dilogo recproco, dedicao,

    confiana e objetividade.

    Aos professores Doutores do Programa de Ps-Graduao em Teatro (Sueli Barbosa

    Thomaz, Tnia Brando, Iremar Brito, Ana Teresa Jardim, Zeca Ligirio, Elosa Brantes

    Mendes e Charles Feitosa), ao me proporcionarem reflexo e crescimento.

    Hlia Borges, Enamar Ramos, Charles Feitosa e Joana Ribeiro (suplentes), que

    aceitaram participar da banca.

    Aos colegas de turma de 2005, pela troca, apoio e carinho, especialmente Andra Elias

    e Claudia Petrina.

    Aline e Marcus, pela acolhida e receptividade.

    bibliotecria Isabel, da biblioteca setorial do CLA pela ateno.

    bibliotecria Nercy Souza Paula, da biblioteca Klauss Vianna, por sua ajuda e

    confiana.

    Julieta Calazans, pelo auxlio e acompanhamento do estudo.

    Juliana Polo, pela gentileza em me conceder os diskettes de seu trabalho de

    pesquisa.

    Soraya Jorge, em me ajudar a mover.

    Aos meus prximos (Arnaldo, Luiza e Amanda), pela pacincia na ausncia necessria

    para completar este estudo.

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    SUMRIO

    INTRODUO....................................................................................................................1

    CAPTULO I CORPO FILOSFICO............................................................................8 1.1. No somos apenas um monte de ossos, msculos e rgos............................................9 1.2. Perceber o corpo ver a vida de outra maneira............................................................15 1.3. Gente como nuvem, sempre se transforma... ............................................................17

    CAPTULO II CORPO SENSVEL.............................................................................21 2.1. Cada parte do corpo deve ser habitada interiormente ..................................................23 2.2. Movimento exterior o prolongamento de um trajeto interior.....................................30 2.3. Conscientizao do movimento a busca da conscincia............................................35

    CAPTULO III CORPO APRENDIZ...........................................................................41 3.1. Ns no ensinamos um corpo a se movimentar............................................................42 3.1.1. Nossa histria acaba por se inscrever em nosso corpo...............................................43 3.1.2. H os que vo em busca de uma integridade..............................................................45 3.1.3. um trabalho de reeducao......................................................................................45

    3.2. Ns j nascemos sabendo..............................................................................................46 3.2.1. Despertar a sensibilidade corporal.............................................................................47 3.2.2. Integrar corpo e mente...............................................................................................48 3.2.3. Achar o seu eixo de equilbrio...................................................................................49

    3.3. O que fazemos orientar a pessoa para que ela relembre o que est guardado dentro de si..................................................................................................................50

    3.3.1. se conhecer e saber que pode se tocar, ver, sentir e ouvir......................................54 3.3.2. Uma busca do seu movimento interior, de voc mesma............................................55 3.3.3. um movimento........................................................................................................56

    CAPITULO IV CORPO CNICO................................................................................58 4.1. Se voc desenvolve seu potencial voc se torna nico.................................................59

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    4.2. Tomar conscincia do movimento tomar conscincia da prpria vida......................63

    CONCLUSO....................................................................................................................69

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.............................................................................74

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    INTRODUO

    Existe um mtodo Angel Vianna1? Pergunta que venho processando deste os anos de convivncia com Angel2. A hiptese em questo se justifica pela metodologia que est totalmente inscrita em meu corpo, isto , nas vivncias corporais adquiridas durante o percurso de mais de 30 anos, como aluna, depois como assistente em curso livre e, finalmente, como profissional da prtica aplicada na Escola/Faculdade Angel Vianna.

    Quando comecei a lecionar a disciplina de Expresso Corporal no Curso de Formao em Dana, substituindo Angel na dcada de 1980, deparei-me ao seguinte desafio: dar continuidade ao trabalho corporal criado por ela. Mas o que lhe prprio? No havia material escrito e sistematizado de que eu pudesse me valer para prosseguir aplicando esta prtica. Foi somente pela apropriao profunda de uma memria introjetada em meu ser que pude fazer emergir as diretrizes absorvidas depois de tantas vivncias.

    Ao exercer a funo de professora, deparei-me com obstculos referentes ao como fazer e o que fazer, j que a empreitada no campo pedaggico ocorreu de maneira inesperada. Dessa forma, a construo de um ensino calcado na aprendizagem com o corpo e para o corpo foi sendo montada e sustentada pelas necessidades, tanto tericas quanto prticas, de ordem pessoal e profissional.

    Apresento-me neste estudo como discpula. Trago na memria o que Angel me favoreceu: o desenvolvimento de minha personalidade, do meu corpo, de uma viso mais aberta e generosa sobre o humano e o mundo. Angel me possibilitou desenvolver o legado mais importante da educao que, segundo o pedagogo Jacques Delors, aprender a ser, ou seja, oferecer um princpio fundamental da educao que deve contribuir para o desenvolvimento total da pessoa esprito e corpo, inteligncia, sensibilidade, sentido esttico, responsabilidade pessoal, espiritualidade (DELORS, 2000:99).

    1 Angel Vianna, bailarina, coregrafa, professora, doutora (ttulo notrio saber) e fundadora da

    Escola e Faculdade Angel Vianna (Rio de Janeiro), cujo espao pioneiro na formao em dana contempornea e nas linguagens de conscincia corporal. 2 Mencionarei eventualmente, a partir de ento, simplesmente por Angel e no Vianna, que uma

    forma carinhosa e bastante reconhecida de trat-la.

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    A liberdade de exercer uma prtica que aflorou, primeiramente na vivncia, me levou a crer no potencial humano, isto , em nossa capacidade de transmitir o que de fato condiz com o que absorvido durante o aprendizado, na troca entre mestre e discpulo. Ento, guiada pela minha intuio, fui criando, elaborando, aplicando esse aprendizado. Desta forma, aprendi a ser o que se . Segundo o educador Jorge Larrosa: Para chegar a ser o que se , tem que se ser artista de si mesmo. No entanto preciso seguir duas regras fundamentais.

    A primeira seguir o prprio instinto e deixar que v trabalhando inconscientemente a fora organizadora. (...) A segunda utilizar mestres, porm como pedras da sorte, como pretextos para a experimentao de si, que se tem de saber abandonar a tempo (...), visto que no so modelos de identificao, mas astcias para diferir de si prprio, para separar-se de si mesmo no processo tortuoso de chegar a ser o que se . (LAROSSA, 2000:76-77).

    Esta dissertao d seqncia ao que venho desenvolvendo em minha trajetria acadmica, tendo a mestra como principal referncia. A primeira elaborao terica sobre esse tema foi a monografia para o curso de Ps-Graduao Lato Sensu em Educao Psicomotora O construtivismo na educao no Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitao (IBMR).

    A monografia que apresentei no final de 1995, com o ttulo: Pressupostos para o entendimento da conscientizao do movimento como uma prtica corporal, partiu da inquietao pessoal para o reconhecimento desta modalidade de trabalho corporal. Nesse estudo pude conjugar as bases tericas j assimiladas com a prtica, apresentada na forma de uma aula aplicada. A monografia inclui no somente a filosofia absorvida na formao acadmica (graduada e licenciada em filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1985), como tambm a estudada na Escola Angel Vianna (no curso de formao em expresso corporal, de 1978 at 1983), organizada em trs captulos. No primeiro, Reflexes; no segundo captulo, Vivncias, onde constam os autores de prticas corporais que possuem uma afinidade com as de Angel e, por fim, no terceiro captulo, Prticas, so descritos os procedimentos de uma aula. Esta Monografia foi lanada em livro pela Editora Caio, de So Paulo, em 1998.

    Em um segundo momento, elaborei, a pedido de Angel, um artigo para o livro Lies de Dana 2, organizado por Roberto Pereira e Silvia Soter, da Editora UniverCidade, e lanado no ano de 2000. Trata-se de uma apresentao bsica dos

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    elementos abordados na prtica corporal de Angel Vianna, que so: espao, peso e transferncia, conscincia dos ossos, das dobras (articulaes) e do invlucro (pele).

    Desenvolvi, ainda, um artigo para a primeira produo acadmica da Escola/Faculdade Angel Vianna, onde leciono as disciplinas IMECO I e II (Improvisao e Expresso Corporal I e II). Nessa produo foi dada nfase a uma preocupao particular em desvendar o conceito de conscincia, razo de tantas sondagens na rea do meu envolvimento. O livro Dana e Educao em Movimento, publicado pela Editora Cortez, em 2003, foi organizada por Julieta Calazans, Jacyan Castilho e Simone Gomes.

    As produes tericas sobre Angel Vianna (AV), tanto pela autora deste estudo quanto por outros, vem sendo pensadas, conduzidas e acrescidas de novas perspectivas. Angel tema de vrias teses, dissertaes e monografias. Especificamente sobre esse tema, destaco os seguintes trabalhos:

    - BENTO (2004), tese de Doutorado de Maria Enamar Ramos Neherer Bento, para o Programa de Ps-Graduao em Teatro (PPGT) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), intitulado Angel Vianna: A pedagoga do corpo. Bento traa um panorama do percurso da educadora desde sua cidade natal (Belo Horizonte), passando por Salvador e Rio de Janeiro (onde se localizam a sua Escola e a Faculdade Angel Vianna), indo at o momento atual, em que se torna mantenedora da Faculdade homnima e portadora do ttulo de doutora de notrio saber, pela Universidade Federal da Bahia. Bento ressalta a pedagoga atravs dos cursos ministrados por ela, desde a dcada de 1970, destacando a afluncia de artistas procura de seu trabalho corporal. Grandes atores e diretores do Rio de Janeiro (Amir Haddad, Srgio Brito, Eduardo Tolentino e outros) testemunharam experincias sutis, renovadoras e sensveis. Bento tambm analisa e compara as ementas das disciplinas de Expresso Corporal na Faculdade Angel Vianna (FAV), Universidade do Rio de Janeiro (UNIRIO) e a Universidade de Campinas (UNICAMP). Por fim, destaca a importncia, para a atuao cnica do ator, da experincia corporal calcada no trabalho corporal de AV.

    - POLO (2005). Pesquisa realizada por Juliana Polo, atravs do oitavo Programa de bolsas RioArte, denominado: Angel Vianna atravs da histria a trajetria da

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    dana da vida. Polo organizou peridicos de acervo pessoal de Angel Vianna, entre 1948 at 2004. Os temas abordados por perodos onde, respectivamente, encontramos:

    Ballet de Minas Gerais (1948 1955): perodo de formao e participao como bailarina no grupo de dana de Carlos Leite responsvel pela implantao da dana clssica na cidade de Belo Horizonte;

    Ballet Klauss Vianna (1955 1962): perodo em parceira com seu companheiro de vida Klauss Vianna e incentivadora da primeira escola de formao Escola Klauss Vianna;

    UFBA (1963 1964): perodo onde lecionou dana e integrou o grupo de dana da Universidade Federal da Bahia, sob a direo de Rolf Gelewsky;

    Ballet Tatiana Leskova (1965 1974): perodo onde lecionou ballet clssico e implantou a primeira turma de expresso corporal;

    Centro de Pesquisa Corporal Arte e Educao (1975 1982): perodo da fundao de sua segunda escola junto com Klauss Vianna e Teresa de Aquino e da criao de seu primeiro grupo de dana Teatro do Movimento.

    Escola Angel Vianna (1983 2004): perodo da fundao de sua terceira escola, junto com seu filho Rainer Vianna, e a oficializao dos cursos oferecidos: formao tcnica de dana contempornea e recuperao motora atravs da dana;

    Faculdade Angel Vianna (2001 2004): o perodo inicia com a implantao da formao em nvel de terceiro grau at 2004 e, finalmente;

    O teatro (1962 2004): perodo de participao como atriz, coregrafa, expresso corporal, preparao corporal, direo de movimento e de corpo.

    Polo catalogou artigos, notas, entrevistas, chamadas de cursos e apresentaes artsticas.

    - FREIRE (2006). Livro de Ana Vitria Freire, intitulado Angel Vianna: uma biografia da dana contempornea. Rio de Janeiro: Dublin. Freire analisa a trajetria de vida de Angel atravs da dana. A autora salienta a sua participao como bailarina e coregrafa em Belo Horizonte, na Bahia e no Rio de Janeiro.

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    Este estudo pretende explanar o trabalho corporal proposto por Angel, que conhecido como Conscientizao do Movimento e Jogos Corporais, porm passvel de outras terminologias, tais como: expresso corporal, conscientizao de jogos corporais, conscientizao corporal, conscientizao do movimento3.

    No me aterei s questes terminolgicas. A escrita compe-se de quatro captulos, percorridos em um caminho que se inicia pela concepo terica (corpo filosfico e corpo sensvel), segue para uma concepo didtica (corpo aprendiz) e, no quarto captulo (corpo cnico), aponta para uma articulao entre o teatro e temas abordados nos trs primeiros captulos.

    Apresento, primeiramente, a concepo de uma prtica, na qual o suporte terico o seu embasamento. Contudo, a base deste estudo encontra-se em um subtexto, oferecido por um corpo/vivido que se inscreve na vivncia da abordagem que est sendo constituda e demonstrada. O primeiro captulo se adentra no conhecimento filosfico para sustentar as idias de corpo representado, modo de ver (Maurice Merleau-Ponty) e modo de ser (Gilles Deleuze e Friedrich Nietzsche). O segundo captulo abrange conceitos que validam essa abordagem no mbito do conhecimento prtico, como: imagem do corpo (Paul Schilder), propriocepo (Oliver Sacks) e conscincia do corpo (Jos Gil). O terceiro captulo, denominado corpo aprendiz, aborda o papel do orientador atravs de princpios a ele relacionado (transmisso do vivido, orientao para uma auto-conduo e aprendizado constante); os modos de sensibilizao (toque, imagem e direo ssea), procedimentos e as etapas possveis em sala de aula (tomada de conscincia, movimento e improvisao).

    O quarto captulo volta-se para o corpo cnico (ator/bailarino), priorizado como condio de explorao para uma efetiva experimentao de si. Dessa forma, ser travado um dilogo com Antonin Artaud, Gilles Deleuze e Flix Guattari para o

    3 Nos peridicos organizados por Juliana Polo, encontram-se vrias terminologias para o trabalho

    corporal de Angel Vianna, a comear pelo ttulo de Expresso Corporal Jornal Opinio, 10 de dezembro de 1976:299; Jornal da Bahia, 1977:307; Jornal Ipanema, de 1977:309. No ano de 1982, o Jornal O Globo a cita como professora de dana e conscientizao de jogos corporais (p. 350). Conscientizao e jogos corporais foi ttulo de uma nota do jornal Luta e Prazer, novembro de 1982:351. Em 1987, no Jornal O Estado, em uma entrevista, ela diz: Meu trabalho, de uns quinze anos para c, ficou conhecido como expresso corporal. (...) No momento chamo meu mtodo de Conscientizao Corporal. (p. 377). Em 1992, para o Dirio da Tarde, diz: Atualmente, no chamo esse trabalho de Expresso Corporal e sim de Conscientizao do Movimento e Jogos Corporais. o ttulo que hoje dou e entre parnteses (Expresso Corporal) (p. 409). Ver: Polo (2005:299-409). Em sua Escola/Faculdade, Angel leciona curso livre com a denominao de Conscientizao do Movimento.

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    entendimento do corpo estranho e, em seguida, uma reflexo dialogada com o encenador pedagogo Jerzy Grotowski e a abordagem de Angel Vianna.

    Como fecho da dissertao, d-se destaque importncia de um corpo preparado, em condies de ser apropriado pelo seu dono, graas a uma formao qualificada para tal, colocando-se a autora em defesa do mtodo Angel Vianna, ou melhor, empenhada na implantao da abordagem aqui apresentada.

    O principal motivo para investigar e aprofundar este estudo se deu em funo de sua proximidade, da necessidade de ampliar o tema e de acordo com o meu prprio percurso, j mencionado.

    Surgiu, inicialmente, um interesse no enfoque especificamente educativo, o que me levou a colher depoimentos de colegas de formao em expresso corporal (1979 a 1983), no intuito de apurar a influncia e a especificidade pedaggica exercida pela mestra Angel. Depois, entrevistei Angel, com a finalidade de obter informaes sobre os seus mestres e sua formao, mas ela j havia depositado toda sua histria para a excelente pesquisa realizada por Juliana Polo4. Mais uma vez compreendi que o seu interesse no relatar sua vida, e sim, provocar, a partir de seu trabalho, o despertar da potencialidade de cada um. Assim, deparei com o que realmente me pertence e segui na investigao de minhas prprias descobertas e interesses.

    A partir de ento, tentei traar a sua trajetria pela perspectiva filosfica, mas a conduo natural se encaminhou pelo fazer terico, enquanto aluna do Mestrado ao longo dos dois anos. De tal modo que toda a concepo do estudo aconteceu atravs das questes, dilogos e vnculos, por mim estabelecidos, durante a travessia das disciplinas cursadas. Norteei-me na condio de seguidora, com a preocupao de analisar o tema, no intuito de esclarec-lo e proporcionar novas leituras, perspectivas e interesses pelo trabalho corporal de Angel Vianna, e no pelo seu carter historiogrfico. por esta razo que sua trajetria pontuada ou sinalizada na inteno de fornecer dados para a reflexo da abordagem em questo. Procurei acrescentar vrias citaes (depoimentos da prpria), para preencher o estudo com o seu pensamento.

    Inscrito em meu corpo uma abordagem elaborada a partir de reflexes que me acompanham durante as aulas, na carreira profissional e em minha vida,

    4 Pesquisa referida nos estudos sobre Angel Vianna.

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    comprometida pela necessidade de acolher o pensamento de Angel, para legitimar todo o seu legado.

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    CAPITULO I CORPO FILOSFICO

    A abordagem reflexiva do trabalho corporal de AV conduz para um pensamento aberto, singular, contraditrio, inquieto; afastado de verdades, certezas e resolues, at porque no existem no corpo idias claras e distintas5. Basta prestarmos ateno a um s dia de sua inevitvel presena: h sempre algum mal estar, uma dor, uma inquietao para a qual no se tem, a princpio, distino e nem clareza de seus motivos. A afirmativa que racionaliza a condio do duvidoso e do incerto no cabe peculiar existncia fsica ou experincia sensvel6.

    O pensamento aqui gerado partiu de vivncias processadas no trabalho corporal com AV, em um envolvimento circunstanciado pelo ambiente de sua Escola. Algumas possveis consideraes sero abordadas acerca do entendimento da abordagem corporal de AV, atravs da perspectiva de uma discpula/autora deste estudo, que o absorveu pelo registro sensrio e cintico.

    Como adentra em um campo de possibilidades onde no h fixao de uma nica viso, afina-se com o pensamento da gagueira criadora do filsofo francs Gilles Deleuze7, isto , com a reverberao do som e, e, e... O pensamento deleuziano indica a noo de multiplicidade, que no embolsa o pensamento dual ou afirmativo, pois este compara e pressupe a afirmao de uma verdade ou de um raciocnio que prevalea. Segundo Deleuze: o E no nem um nem outro, sempre entre os dois, a fronteira8 para a multiplicidade de conexes, junes e possibilidades, em contrapartida ao , do pensamento afirmativo, convicto, universal, absolutista. O pensamento da gagueira no busca uma significao ou uma origem (pensamento

    5 Aluso ao pensamento dualista de Descartes, em que o conhecimento e a verdade provm da razo

    atravs de idias claras e distintas, independente da experincia sensvel. Ver: Descartes (1979:6-22). 6 Novamente a referncia cartesiana onde a dvida tambm advm da razo, pois o meio para a

    credibilidade da existncia humana, assim sendo, se duvido porque penso, se penso porque existo, logo existo na condio de ser pensante Ver: Descartes (1979: 6-22). 7 Ver: Deleuze (1992:59-60). Deleuze, Gilles. Conversaes. Editora 34, 1992.

    8 Idem.

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    ontolgico), pois implica em um pensamento circular mais do que linear (pensamento histrico). Desta forma, como no afirma o que , tampouco necessita invalidar o que no . Pode ser aquilo e mais isto e, quem sabe, vindo dali e dacol e surgindo de um ponto subjetivo e outro objetivo, e assim sempre reverberando...

    A proposta promover a intercesso entre vivncia, experincia e reflexo. O que importa o que se passa entre o que possvel estabelecer enquanto dinmica, entre a aplicabilidade e o procedimento, a aplicao e sua concepo, o procedimento e sua concepo, enfim, entre o pensamento que busca conceber uma prtica e a aplicao da mesma.

    neste nterim, entre uma primeira articulao provocada pela reflexo e sua prtica que apresentaremos as seguintes noes de corpo: o corpo do discurso e das nomeaes (corpo representado); o corpo percebido pelo seu ponto de vista, como ponto de referncia no espao (aqui) e no tempo (agora), relacionado com a conscincia enquanto sujeito intencional no mundo (modo de ver) e o corpo devir enquanto potncia (modo de ser) por meio de fragmentos do pensamento de Angel:

    No somos apenas um monte de ossos, msculos e rgos; Perceber o corpo ver a vida de outra maneira;

    Gente como nuvem, sempre se transforma.

    1.1. No somos apenas um monte de ossos, msculos e rgos9

    A abordagem do conhecimento da anatomia, da fisiologia e da cinesiologia, priorizado em toda trajetria corporal da professora Angel, trouxe um diferencial em relao ao modelo informativo do estudo do corpo com base nestes contedos10. Segundo Maria Enamar Bento (2004:17)11, ela trouxe para a sala de aula palavras que originariamente eram restritas ao campo da medicina ou da fisioterapia.

    No entanto, a busca de Angel pelo conhecimento formal do corpo, em um primeiro momento, no veio pela via intelectual e nem acadmica, ou seja, pelo

    9 Pensamento de Angel Vianna, extrado dos peridicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo

    (2005:359). 10

    Angel freqentou aulas de anatomia na Escola de Odontologia e Farmcia da UFMG, em Belo Horizonte, no ano de 1955. Em 1963, em Salvador, voltou a estudar anatomia na Escola de Dana (UFBA).Ver: Freire (2005:67). No Rio de Janeiro, no final da dcada de 1970 obteve aulas particulares de cinesiologia com a fisioterapeuta Solange Lucie. Ver: Polo (2005:285). 11

    Professora de Expresso Corporal e Dana da UNIRIO e autora da Tese de Doutorado em Teatro, com o ttulo Angel Vianna: A pedagoga do corpo, pela UNIRIO, 2004. Sinalizado na Introduo.

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    ambiente das reas citadas acima que abrangem o conhecimento categorizado para a compreenso do corpo. A via curiosa que a levou necessidade de entend-lo, apreend-lo e traz-lo para seu mundo foi a artstica, tanto da dana quanto da escultura12. O universo do movimento foi uma das diretrizes que a impulsionou para a compreenso do mecanismo das aes realizadas na tcnica de dana a partir do bal clssico e, depois, em toda a sua trajetria voltada para a expresso do mover-se.

    A restrio dos termos anatmicos, fisiolgicos ou cinesiolgicos, relacionados ao corpo humano, para o conhecimento especfico da rea da sade, mostra o quanto o estudo do corpo reduzido sua formatao orgnica. Neste sentido, o corpo tratado como um modelo de representao dirigido ao modo de apresent-lo, pelo foco da organizao porque o classifica, decepa, analisa, e enquadra-o. Enfim, torna-o representado atravs de sistemas, tais como: sistema esqueltico, muscular, articular, arterial, respiratrio, circulatrio, digestivo etc.

    Dentro deste parmetro, o filsofo francs Michel Foucault13 analisa que a partir do sculo XVII perguntar-se- como um signo pode estar ligado ao que significa. A tal pergunta a idade clssica responder pela anlise da representao. (1980:67). Cada coisa estar indicada pela sua funo e nada mais, assim sendo, o olho ser destinado a ver e a ver, apenas; o ouvido, apenas a ouvir (1980:68); a reduo torna o olho coisa/signo e o ver palavra/significado14 - um estgio em que ainda estamos impregnados, pois objetivou a cultura da representao na arte da nomeao e do discurso. O discurso ter ento por objetivo dizer o que , mas j no ser coisa alguma do que diz (1980:68), pois ele representa o dito, a idia da coisa/objeto de anlise.

    O pensamento clssico que sistematizou e classificou o corpo trata-o como

    idia15, ou melhor, como uma representao universal. A representao bsica da

    12 Angel estudou dana clssica com Carlos Leite (uns dos responsveis pela implantao desta

    tcnica em Belo Horizonte, em 1948), gravura (Misabel Pedrosa), desenho (Sanso Castelo Branco), escultura (Frans Weissman) e pintura (Guignard) na Escola de Belas Artes, no mesmo perodo. Ver: Freire (2005:36-37). 13

    No livro As Palavras e as Coisas, Michel Foucault tratou de estabelecer a estrutura da linguagem particular de cada poca episteme em uma leitura das Histrias das Idias no Ocidente, ou melhor, em uma arqueologia das cincias humanas. So Paulo: Martins Fontes, 1980. 14

    Aqui me refiro ao prprio ttulo do livro de Foucault, As palavras e as coisas; a palavra, no caso do verbo ver, o significado e a palavra, no caso do olho, a coisa, o signo base da interpretao semitica. 15

    Em relao a essa questo, no livro da autora: Conscientizao do Movimento: uma prtica corporal h um parecer sobre esse pensamento, introduzido por Descartes, que levou o seu res

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    anatomia do corpo reduzida pelo discurso da estrutura esqueltica, nomeada nas divises entre membros (superiores e inferiores), tronco, quadril e cabea; pelo discurso dos msculos, nomeados nas respectivas origens e inseres; pelo discurso dos ligamentos, nomeados na combinao dos ossos que os unem, e assim em todos os sistemas representativos do corpo.

    O discurso terico do corpo anatmico e fisiolgico no nos capacita a reconhecermos como pertencentes a uma morfologia oriunda das condies materiais (contexto histrico, social e cultural) e fenomenolgicas (experincias cotidianas que vo moldando cada pessoa, principalmente com relao ao fato ou fenmeno acontecido e acontecendo na constante formao fsica, afetiva e intelectual como sujeito no mundo).

    Para Charles Feitosa, no artigo Para Alm da Dialtica: O Anti-Hegelianismo de Nietzsche e Deleuze:

    O problema que sempre que se diz algo, diz-se para outro, representa-se alguma coisa. O representante diz todo mundo reconhece que, mas h sempre uma singularidade no representada que no reconhecida precisamente porque ela no todo mundo ou o universal. (FEITOSA, 2000:95).

    O conhecimento formal da anatomia ou da cinesiologia costuma ser transmitido atravs da visualizao da imagem figurativa no Atlas de Anatomia, explanada pelo livro ou na apresentao do cadver acompanhado pelo discurso. A figurao estabelece a construo de uma representao do corpo, ordenado em medidas exatas e proporcionais, cuja projeo se volta para a visualizao ideal de perfeio. Alm disso, o aprendizado da anatomia, por exemplo, consiste fundamentalmente em ver e nomear partes do cadver como peas, em que cada parte reconhecida como autnoma e independente do resto do corpo, desfavorecendo a compreenso das relaes entre suas partes.

    As referncias bsicas que podemos obter dos objetos/corpos fsicos atravs de nossa percepo, so: o tamanho, o volume, a distncia, a cor, o cheiro, o som, a forma, a temperatura, a densidade, a largura, o comprimento, enfim, dados fsicos desta suposta realidade/corpo com que lidamos no dia-a-dia. Ento, ser que cada um pode reconhecer sua constituio fsica, localizando e visualizando a estrutura (esqueleto) em si mesmo, para constatar a distino do que visto na representao

    cogitans (conscincia) a se apropriar da realidade que, de representaes constitudas pelo sujeito, converteu-se em idia ou conceito do mundo. Ver: Teixeira (1998:26).

  • 19

    figurativa? Assim ao tocar no prprio corpo a particularidade do mesmo surgir por meio da percepo de si, e no pelo que dele representado. Tocar no seu prprio corpo , por si s, uma experincia nica independente de comparar, explicar e representar.

    O reconhecimento da constituio fsica indica para cada um a existncia prpria de algumas particularidades, potencialidades, facilidades e dificuldades. Processa-se na descoberta do que cada um tem de peculiar, como: traos (fino, grosso, marcado etc.); dimenses (estrutura larga ou pequena, membros superiores e inferiores desproporcionais ao tronco/quadril etc.); tipos (bitipos relacionado com a cultura, raa e gnero) e outros detalhes corporais diferenciados.

    A introduo dos dados anatmicos possibilita a assimilao da informao refletida, debatida, sentida e memorizada simultaneamente. Reflexo conjunta ao discurso representativo da anatomia, com a nomenclatura dos ossos, e sua funcionalidade, para oferecer adiante a percepo sinestsica do corpo enquanto estudado, situado e experimentado no corpo presente. No momento da pesquisa do movimento, o corpo assimilar as respostas vindas do foco de ateno para outras partes que, a princpio, no estavam sendo associadas, informando que o corpo no separado e nem dissociado entre si. Este o grande diferencial para o estudo da representao do corpo. A singularidade no universal; por isso preciso sinaliz-la enquanto estudada, sentida, manipulada e vivida.

    Angel proporcionou a si mesma, atravs da escultura, a leitura das figuraes humanas. Ao esculpir corpos ela reconheceu a multiplicidade das formas humanas e, assim, a singularidade da representao figurativa do corpo. Segundo Henri-Pierre Jeudy16, a singularidade s parece fixar-se na afirmao arbitrria de uma criao subjetiva (2004:34), ou seja, fugindo das regras e restries aos moldes impostos por uma ordem representada.

    A formalidade dentro do academicismo artstico da representao fsica tambm perpassa por moldes de ideais perfeccionistas, porm a arte, enquanto

    16 Henri-Pierre Jeudy, socilogo francs do LAIOS (Laboratrio de Antropologia das Instituies e

    das Organizaes Sociais) e Professor de esttica na Escola de Arquitetura de Paris-Villemin. Em seu livro O Corpo como Objeto de Arte, invoca o corpo como elemento de anlise. Nesta citao especfica, ele dirige a relao do artista com o modelo, que diferenciado do modelo ideal. O modelo que apreendido singularmente pelo artista serve como inspirao de uma observao que vai alm do olhar de um objeto qualquer, perpassa pela via imaginria, livre e comprometida. Ver: Jeudy (2002:34-44).

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    necessidade e no instrumento de comunicao ou informao provoca debates, questiona e rompe com regras criar no comunicar, mas resistir17, segundo Deleuze. O ato de criao, nesta perspectiva, perdura, resiste e potencializa vrios modos de expresso, ou seja, manifesta vrias maneiras de faz-lo. A arte oferece a oportunidade das mltiplas possibilidades de reconhecimento das diversas figuraes de corpos vide os artistas como Pablo Picasso, Paul Gauguin, Salvador Dali e tantos outros, com suas originais e prprias figuras humanas.

    Toda esta exposio e, em concordncia com Feitosa e Jeudy acima citados, consiste em pontuar que a representao da idia do corpo vinculada imagem e ao discurso que nos apresentam no contribui para a compreenso efetiva de sua presena e do mecanismo do movimento corporal. Foram necessrias outras motivaes (a arte de esculpir e a arte de mover) para impulsionar Angel descoberta de um novo caminho para o entendimento do corpo.

    Em Angel, a correspondncia do informativo situada atravs da percepo e da presena do corpo, para permitir reconhec-lo em sua morfologia pessoal (remetido descoberta da forma do corpo pela escultura) e pela qualidade do movimento (remetido ao aprendizado anatmico, pelo movimento na tcnica do bal clssico, ao reconhecer a parte do corpo que move; como essa parte funciona no movimento e como o todo corporal est comprometido com as partes).

    No prefcio do livro Anatomia para o Movimento, da autora Blandine Calais-Germain, escrita pelo Doutor Jacques Samuel18, observamos a mesma busca de associao da aplicao do conhecimento na atuao do movimento. Samuel mostra que a partir do sculo XX, de forma gradativa, as descries anatmicas do aparelho locomotor foram sendo relacionadas com as aes dos msculos e das articulaes. Recentemente, a pesquisa no campo da biomecnica vem aprofundando o conhecimento da funo do aparelho motor pelo exame interno dos tecidos estruturais dos msculos e das articulaes.

    Porm, para Samuel:

    17 Ver: Deleuze (1992:179).

    18 Diretor da Escola Francesa de Ortopedia e de Massagem.

  • 21

    O aspecto funcional foi exposto, sobretudo, em termos de eficcia, sem haver muita preocupao com a maneira pela qual isso ocorre, procurando-se, principalmente, submeter o corpo aos imperativos da tcnica para fazer dele um instrumento dcil ao servio da expresso. (...) Numerosas pessoas, interessadas nas tcnicas corporais (dana, mmica, teatro, ioga, relaxamento etc.), chegaram fisioterapia para encontrar tais anlises estticas e cinticas, facilitando a aplicao dessas diferentes tcnicas: esse o caminho que seguiu Blandine Calais, que da dana veio fisioterapia. (CALAIS-GERMAIN, 1991:3).

    Esse o caminho que seguiu Angel ao procurar, desde a dcada de 1950, aulas de anatomia, fisiologia e cinesiologia, para um melhor entendimento da conduo motora do movimento.

    Sylvie Fortin19 compartilha da mesma opinio acima citada. Para ela, as teorias ainda esto defasadas em relao s prticas corporais conhecidas tambm como educao somtica20, pois elas no abrangem uma anlise devida aos fenmenos observados nos estudos de casos. A esse respeito, assim se manifesta:

    Talvez dada dificuldade de se realizar as experimentaes controladas, com o que se supe em termos de medidas de variveis dependentes e interdependentes, mas, sobretudo, dado ao questionamento dos educadores somticos sobre a pertinncia do tipo de pesquisa, constata-se que a pesquisa realizada at hoje pouco tentou avaliar a eficincia das prticas no sentido em que se entende o modelo cientfico do paradigma positivista dominante. (FORTIN, 1999:50).

    Dentro deste parmetro, as abordagens similares de AV procuram outros vieses de elaborao terica (filosofia, psicologia, antropologia), de forma a favorecer a constatao e a importncia de suas prticas.

    A intuio da professora Angel, em interligar sua experincia com a modelagem na observao das formas dos corpos das colegas bailarinas, levou-a ao encontro das particularidades do humano. Esta primeira revelao conduziu-a ao encontro terico com as estruturas corporais para o desempenho da dana. Trata-se de uma abordagem visionria que afasta a padronizao atravs da compreenso do corpo prprio, sabendo como experiment-lo, assim como sustent-lo e reconhec-lo como aparato da percepo de si no mundo.

    19 Professora no departamento de dana da Universidade de Quebec, em Montreal (Canad).

    Diplomada no mtodo Feldenkrais. Doutora pela Universidade Estadual de Ohio (EUA), pesquisa a contribuio da educao somtica para a formao do intrprete, as metodologias de pesquisa em dana e a educao somtica dos jovens para a representao coreogrfica. 20

    Citarei, na Concluso, algumas linhas de trabalhos corporais associados educao somtica.

  • 22

    1.2. Perceber o corpo ver a vida de outra maneira21

    O presente estudo dialoga com o corpo vivido em relao ao mundo como um veculo. Para o filsofo Maurice Merleau-Ponty, no livro Fenomenologia da Percepo, O corpo o veculo do ser no mundo, e ter um corpo , para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles (PONTY, 1994:122).

    Exatamente porque o corpo um veculo de comunicao com o mundo que Merleau-Ponty ir consider-lo como prprio. O corpo-prprio um conceito que o diferencia de um corpo objetivo ou objeto.

    A viso morfolgica da abordagem corporal em questo compreende que a apresentao do corpo no mundo depende de vrios fatores influenciados pelo meio, tais como: a gentica, a hereditariedade e os ambientes: familiar, social, ecolgico e cultural, que moldam e formatam estruturas. Assim sendo, estabelece o corpo-prprio ao relacion-lo com as particularidades habitadas em sua constituio morfolgica no mundo: cabelos, peles, estaturas, volumes, formas, bitipos. Ningum jamais igual ao outro, porque cada pessoa nica provinda de um par biolgico, possui um corpo-prprio que emerge do meio.

    O pensamento fenomenolgico de Merleau-Ponty imbrica na condio de um sujeito intencional, isto , uma conscincia/sujeito que existe e age intencionalmente na relao com o mundo/fato/fenmeno/objeto. A busca de Angel pelo objeto de estudo (corpo) pertencente ao sujeito (as bailarinas) surgiu de uma inteno de interlig-los com o universo mecnico da dana. No bastava saber dos sistemas corporais separadamente, era preciso viv-los e entend-los no corpo em movimento.

    Segundo Merleau-Ponty, em seu livro No Primado da Percepo e suas Conseqncias Filosficas, o meio/mundo/objeto sempre visto de um ponto de vista, pois a percepo do que est ao redor de si como visto/apreendido vincula-se ao lugar que o corpo ocupa no espao.

    No por acidente que o objeto se oferece deformado por mim, segundo o lugar que eu ocupo; a este preo que ele pode ser real. [...] Esse sujeito que assume um ponto de vista meu corpo como campo perceptivo e prtico. (PONTY, 1990:47).

    21 Pensamento de Angel Vianna, extrado dos peridicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo

    (2005:384).

  • 23

    preciso reconhecer-se no corpo para trazer a percepo do mundo, pois ele ser apresentado pelo ponto de vista de quem v, do ngulo de sua viso. Neste sentido, coloca o corpo/sujeito em algum lugar como ponto de vista metafrico, ou seja, na perspectiva aberta (ampla) ou fechada (reduzida) de seu olhar sobre esse mundo/objeto. O modo reduzido de ver apreende a frente como chapada, sem ultrapassar o que est por detrs. Como podemos deixar a vista captar alm do que visto? Conduzindo-a pelo interior e exterior, pelas costas, lados, por baixo, por cima, em profundidade e aproximao.

    Uma questo fundamental para a percepo do corpo no espao apreend-lo como tridimensional, ou seja, conquist-lo enquanto corpo que se preenche em todas as direes (frente, lados, costas, em cima, embaixo). Esta noo de corpo no espao aumenta a capacidade de ver-se no mundo.

    Assim sendo, transferindo ao sujeito a sua considerao e sua credibilidade do que seria essa realidade aparente/mundo e, fazendo uma analogia ao saber ou ao modo de pensar, teremos, ento, de cada pessoa um ponto de vista, um modo de ver as coisas um modo de pensar e sentir, pois existe o ponto de vista de onde o corpo v.

    O corpo humano desloca-se sempre de algum lugar e apreende a sua experincia do mundo do ponto de vista de onde ele se coloca como sujeito no mundo, isto , de onde ele estabelece sua subjetividade. preciso se deslocar de vrios ngulos para obter um melhor panorama, olhar em volta ou se transferir para a condio do outro. Desta forma, obtm-se uma melhor compreenso do que se est vendo/apreendendo/percebendo como abrindo para a relatividade do pensar, do agir e do sentir. nesta condio estabelecida, a priori com o seu ponto de vista, que o sujeito reconhece o lugar do seu corpo mental/subjetivo, psquico, biofsico.

    A anlise em Angel de um sujeito fenomenolgico, perceptivo e intencional se d atravs da relao que ela estabeleceu entre a escultura e a morfologia corporal, a msica pelo movimento e percepo rtmica e auditiva22 e o conhecimento anatmico integrado com a dana. Em detrimento deste sentido fenomenolgico, pode se

    22 O primeiro empreendimento educacional de AV foi a abertura da Escola Klauss Vianna (1955)

    junto com seu parceiro de vida: Klauss. Uma das disciplinas oferecidas neste ambiente era a msica, para que os alunos pudessem desenvolver o sentido rtmico e meldico do movimento. Ver: Freire (2005:51-54).

  • 24

    afirmar que Angel vem se deslocando de vrios pontos de vista, pois a sua maneira de relacionar-se com o mundo ultrapassa o paradigma clssico.

    Merleau-Ponty reivindicou a considerao do corpo a partir de um pensamento estabelecido pelo sujeito e seu objeto/corpo, associado-os, interligado-os e relacionando-os. Assim, ao considerar o corpo, trouxe em evidncia o sujeito que pertence e est no mundo. Exatamente o que o pensamento clssico no permitia, pois o objeto distancia-se do sujeito e, portanto, no estabelece relao.

    Para o filsofo portugus Jos Gil, em seu livro Movimento Total: A fenomenologia teve o mrito de considerar o corpo no mundo. No se trata de uma perspectiva teraputica (embora tenha dado origem a toda uma escola psiquitrica), mas do estudo do papel do corpo prprio na constituio do sentido. A noo de corpo prprio compreende ao mesmo tempo o corpo percebido e o corpo vivido, em suma o corpo sensvel, a carne de Husserl, de Merleau-Ponty e de Erwin Strauss. (GIL, 2001:68).

    A perspectiva fenomenolgica que considera o corpo sensvel percebido concreto, como diria Gil23 , intencional e associado a um ponto de vista ainda no o suficiente para tratarmos de um corpo paradoxal e com sentidos mltiplos, mas apropriado ao modo de ser que englobe a noo do humano interno e externo, que pode transformar-se em devires. O que, com certeza, encaminha a abordagem reflexiva do trabalho de AV nos tempos atuais.

    1.3. Gente como nuvem, sempre se transforma24

    O corpo um processo, est sempre para acontecer. Todo processo um continuum porque faz parte da idia de movimento. A sua manifestao nunca acaba, pois ele est sendo, indo e transformando-se. O corpo dinmico e potencialidade. A potencialidade que cada um desenvolve, no mbito do possvel, na perspectiva do acontecido e ainda por acontecer, em sua morfologia especfica e na constncia da sua exposio.

    O corpo, primeiramente, um veculo de experincias possveis de serem manifestadas e relacionado consigo prprio e com o meio. Contudo, junto com essa aparncia surgem marcas, sinais, memrias, habilidades, dificuldades sentidos

    23 Ver: Gil (2001:68).

    24 Pensamento de Angel Vianna, extrado dos peridicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo

    (2005:601).

  • 25

    mltiplos. Segundo Deleuze: No existe sequer um acontecimento, um fenmeno, uma palavra, nem um pensamento cujo sentido no seja mltiplo (1976:3).

    O conceito especfico de mltiplo, aqui, relaciona-se com o devir, com o vir a ser, porm, segundo o filsofo alemo Nietzsche, ponderando que o sentido de vir a ser precisa ser a cada momento completado, alcanado, aperfeioado (2002:74). Isto , a prpria condio da vida como um processo que est sempre sendo e sempre para acontecer com suas mltiplas possibilidades.

    O corpo pertence a algum especfico (singular) e, ao mesmo tempo, pertencente a todos (mltiplos) todo ser humano tem um corpo fsico. A abordagem do corpo, priorizado na sua singularidade, conduz para a conduta de aceitao de todos (aberto a vrios corpos), no ambiente pedaggico construdo pela professora Angel, intercomunicando com as questes da atualidade, que valorizam a diversidade humana, as diferenas e garante a no-excluso como base para uma questo tica de respeito mtuo, afastado da noo de que alguns podem ou pertencem e outros no. Sendo assim, o sentido de mltiplo referenciado ao agrupamento de diferenas dentro de um mesmo ambiente ou em uma mesma pessoa, que permite o aprendizado corporal de si mesmo sem que se estabeleam juzos de valor.

    Para Regina Maria Lopes Van Balen, no livro Sujeito e Identidade em Nietzsche: O corpo sugere a multiplicidade que d forma (ou formas) subjetividade. Multiplicidade de instintos em conflito, de paixes e emoes. O corpo o fio condutor para a diversidade da realidade. (VAN BALEN, 1999:19).

    Com base nesse pensamento nietzschiano, no cabem fixaes de identidade, verdades absolutas e normas de poderes permanentes.

    A polarizao ns e eles revela a tendncia metafsica de pensarmos em termos de identidades fixas (...) identidades fixas que tem a iluso de traduzir a realidade como algo absoluto e sem movimento (...), do pensar dualista que sempre privilegia um em detrimento do outro. difcil pensar as culturas enquanto complexidades, enquanto processos, enquanto descontinuidades. (VAN BALEN, 1999:47).

    A noo de mltiplo afasta o pensamento dual que estipula o que do que no ou no pertence, onde a verdade rege o pensamento, e que no aceita o pensamento paradoxal. Com relao a essas questes, o pedagogo Thomaz Tadeu Silva pressupe que o pensamento doutrinrio se impe, numa posio de superioridade, com seus valores fixados pela sua identidade. Assim, a noo de identidade o que , uma representao da afirmao e a noo de diferena o que no , uma

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    representao da negao ou do excludo, organizada pela normalizao que significa eleger arbitrariamente uma identidade especfica como parmetro em relao ao qual as outras identidades so avaliadas e hierarquizadas. (2000:83). Para Silva: a multiplicidade uma mquina de produzir diferenas diferenas que so irredutveis identidade. [...] A multiplicidade estimula a diferena que se recusa a se fundir com o idntico (SILVA, 2000:100-101).

    Numa sociedade padronizada predomina a identidade de superioridade que incentiva tornarmos o mesmo sobrepondo no outro as diferenas. O lugar do outro situa-se sempre margem da ordem orgnica funcional: o feio, o problemtico, o indevido, o louco, o defeituoso, enfim, o que no se enquadra no mesmo.

    A investigao de si mesmo no escapa do lugar demarcado pela ordem social. Em vrias situaes cotidianas representamos ou estamos atuando na vida atravs das funes estabelecidas socialmente. Ora somos me, professora, aluna, patroa, esposa etc. No entanto, a considerao do corpo, neste estudo, a vida contida nele. Este corpo-vivo, que est em relao com o meio, s vezes, demarcado ou territorizado que exige uma atuao/papel (social e pessoal), atravs de vrios ambientes (escola, shopping, supermercado, casa, consultrio, escritrio, empresa, praa, rua, teatro etc.) e, s vezes, desterritorizado, provocado pela criao e pela explorao de si, onde no existe uma demarcao to explcita da identidade e da origem de cada um, at porque dentro de nosso interior, segundo Gilles Deleuze e Flix Guattari:

    (...) um pedao pode ser chins, um outro americano, um outro medieval, um outro pequeno-perverso, mas num movimento de desterritorializao generalizada onde cada um pega e faz o que pode, segundo seus gostos. (DELEUZE e GUATTARI, 1996:19).

    Atravs do corpo possvel mobilizar sensao, emoo, afeto, conexes mltiplas que extrapolam o convencional, o esperado, situando-se no desterritorizado, que Deleuze e Guattari apresentam como o lugar para a manifestao do corpo sem rgos25. a que possvel experimentar uma certa dose de liberdade de deixar-se levar, ou seja, motivar-se atravs da energia, do volume, da presena e do movimento. O que o estudo pretende salientar a entrada no nosso interior, onde no h fronteiras entre pensamento e corpo, inconsciente e consciente, dentro e fora.

    25 Esse conceito ser apresentado no captulo IV corpo cnico.

  • 27

    O corpo , sobretudo, reconhecido em si pela sua especificidade (qualidade do singular) num lugar de igualdade (qualidade do mltiplo), enquanto corpo a ser potencializado para que tenha fora de atuao na sua realidade corprea atravs da apropriao da sensibilidade, da afetividade e da sensao. O corpo, nesta perspectiva, deve ser afetado, pois, segundo Deleuze: quanto maior o nmero de maneiras pelas quais um corpo pudesse ser afetado tanto mais fora ele teria (1976:51). Parte-se do princpio de que no existe corpo neutro como uma folha em branco, ele j influenciado pelas circunstncias dado sua existncia, cuja necessidade de resistncia (como a arte) incita a abrir canais para o corpo livrar-se, decompor-se, separar-se dos clichs, dos padres, dos rtulos e, assim, despertar para uma efetiva vivncia.

    A experimentao corporal estimula a sensibilidade, a afetividade e a sensao atravs do movimento, que geradora de foras e fluxos de energias. Aproxima da definio de corpo criada por Gil como: feixe de foras e transformador de espao e de tempo (...), comportando um interior ao mesmo tempo orgnico e pronto a dissolver-se ao subir superfcie (GIL, 2001:68).

    Uma outra via de estimulao alm de aflorar os cincos sentidos, que instiga a observao para a escuta, o tato, a viso, o olfato em situaes de explorao de si e fora de si a interiorizao das reaes orgnicas que atravessam os poros da pele, numa comunicao direta com o espao, isto , o afloramento do sexto sentido26; porque mais por toda a superfcie da pele que atravs da boca, do nus ou da vagina que o corpo se abre ao exterior (GIL, 2001:69). uma superposio das camadas de dentro da pele at a superfcie que toca uma pessoa, a si mesmo, um objeto etc. As sensaes ativadas com os sentidos abertos do corpo possibilitam a sensibilidade corporal em uma autntica experimentao de si mesmo.

    26 Ver: Capitulo II Corpo Sensvel: Propriocepo.

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    CAPTULO II CORPO SENSVEL

    A abordagem corporal de AV levanta alguns conceitos, no especficos de sua prtica, que so mencionados em sala de aula e tambm em estudos, voltados para a abordagem pedaggica. Como exemplo, Maria Enamar Bento salienta em sua tese que o trabalho de Angel visa percepo e reformulao do esquema e/ou imagem corporal (BENTO, 2004:20).

    Os conceitos acima mencionados so polmicos e esto em evidncia. Tanto a Psicanlise (Jurandir Freire Costa27) quanto a Educao fsica (Leonardo Maturana28), e tantas outras reas, esto envolvidas com estes temas.

    O estudo no pretende relevar a significao do conceito de imagem corporal, to importante para o entendimento da abordagem de AV atravs da explicao, e sim abord-lo pelo que suscita. Neste sentido, este conceito no relacionar ao esquema corporal e nem propriocepo, apesar de estarem interligados.

    A reflexo propiciada pelo psiquiatra Paul Schilder criador do conceito de imagem corporal, alis, abstrato assim como o da conscincia (por mais que estejam s voltas com os experimentos da percepo e da neurologia), pertinente abordagem filosfica do trabalho corporal de AV.

    27 Com relao psicanlise, existe uma reviso crtica do conceito de imagem em Schilder, apoiado

    na teoria da percepo/psicologia (Gibson, Strauss, Samuel Todes) e na Psicanlise (Campbell), feita por Jurandir Costa Freire, em seu artigo Consideraes sobre o corpo na Psicanlise, no livro O Vestgio e a Aura. Garamond, 2003:60. Para ele, a noo de corpo vivido/intencional de Merleau Ponty absorvida por Paul Schilder como corpo fsico, levando a entender o esquema corporal como automtico. Segundo a teoria de Gibson, levantado por Freire, isso confunde com a imagem corporal que apresentada de forma conjunta ao esquema corporal. A teoria de Gibson transfere esses conceitos do mbito do corpo para o campo perceptivo processos de auto-percepo corporal (interocepo e exterocepo). A interocepo/propriocepo estrutura a experincia do corpo-prprio sendo orientada pelo movimento no eixo gravitacional (rotao e translao) na absoro das partes do corpo no todo. A exterocepo estrutura a experincia dos fenmenos extra-corporais o meio atravs do conjunto dos sentidos para os objetos e eventos do ambiente, como: sons, luzes/cores, cheiros, degustaes e tato. A construo do eu o ajuste ao ambiente pela sintonia do processo das duas auto-percepes corporais (interocepo/propriocepo e a exterocepo). 28

    No site da internet: http.//www.efdeportes.com/efd71/imagem.htm h um artigo resumido deste conceito (Leonardo Mataruna), em que o fundamenta, principalmente, com os tericos da psicomotricidade (Le Blouch, Piaget, Lapierre). O que se constata, de modo geral, a elaborao mais abrangente dos conceitos de imagem (interno/psquico) e esquema (externo/neurolgico).

  • 29

    Impregnada por essa prtica, atravs da convivncia com Angel, me vi envolvida com tais conceitos desde o fim da dcada de 1970. E como soava estranho, enigmtico e distante mencionar palavras como conscincia a outros que no conheciam esta prtica! Pior ainda era quando pediam explicaes. Explicar como? Gaguejando, a autora deste estudo comentava as vivncias: comea com um relaxamento..., voc fica parado observando..., realiza movimentos bem devagar..., percebe o osso mexendo dentro do corpo..., sente a textura da roupa..., faz massagem com uma bolinha..., experimenta sensaes diferentes..., um trabalho de conscincia corporal... No entanto, os relatos no se aproximavam de algo conhecido que pudesse facilitar a captao dessa vivncia.

    Desde o momento que a autora deste estudo passou a aplicar essa prtica corporal, o interesse em entend-lo se avivou. Porm, o ambiente de Angel no pertence de forma to explcita ao lugar da explicao, cujo processo de reconhecimento do saber palpado na justificativa cientfica de comprovao da verdade instituda. O lugar propcio vivncia e criao. As leituras que vieram pouco a pouco se acumulando, principalmente na dcada de 1990, trazendo condies de afirmar-se diante das explicaes. Mencionar a palavra conscincia nos tempos atuais no mais suscita estranhamento. Contudo, preciso salientar que o pensamento gerado pela experincia corporal proporcionada no ambiente de AV, circula no mbito intuitivo, sensvel e artstico.

    Angel nomeia sua prtica corporal como Conscientizao do Movimento e Jogos Corporais, como j mencionado na introduo. Especificarei, aqui, o primeiro ttulo. Do que se trata essa conscientizao? De que forma o processo de reconhecimento do movimento se d pela conscincia? Como a percepo do corpo ativada no que est sendo realizado/movido? A imagem do corpo (Paul Schilder), a propriocepo (Oliver Sacks) e a conscincia corporal, ou melhor, a conscincia do corpo (Jos Gil) sero referenciadas para a compreenso desta prtica.

    Estes conceitos sero analisados e titulados com fragmentos do pensamento de Angel:

    Cada parte do corpo deve ser habitada interiormente; Movimento exterior o prolongamento de um trajeto interior; Conscientizao do movimento a busca da conscincia.

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    2.1. Cada parte do corpo deve ser habitada interiormente29

    Iniciaremos com as seguintes perguntas: O que previsto para o corpo? Como

    detectar a interioridade do corpo? O que o corpo? Empiricamente, no h uma resposta para o que o corpo, a no ser quando existe uma falha ou quando decepamos e estudamos o corpo/morto. Desta forma, os neurologistas so especialistas em descrever, analisar e registrar, pois reconhecem que quando uma parte do crebro lesada o seu correspondente/funo corporal paralisado. O emprico trabalha com a noo de funo orgnica do corpo, como j foi mencionado no primeiro tpico, e a partir de suas deficincias, muitas anlises, descobertas e hipteses so levantadas.

    Gerda Alexander30, mestra da conscincia e percepo corporal, com que AV estabeleceu contato em cursos realizados na Frana (1971) e na Argentina (1974 e 1978), interessou-se em proporcionar aos seus alunos uma clara configurao das formas e propores corporais em correspondncia real imagem de seus corpos, atravs de desenhos e modelagens, realizando-os antes e depois de um perodo de vivncia com a Eutonia. Alexander visava, com essas vivncias, promover a experincia da totalidade corporal pelo aumento da percepo do corpo31.

    A imagem corporal desenvolvida na Eutonia revela, atravs da experincia com a modelagem ou com o desenho, que no h propores igualitrias entre as partes do corpo. Alm do mais, existem mais desnveis entre os membros e as lateralidades (direita e esquerda) do que podemos imaginar ou mesmo verificar em nosso habitual espelho. De certa forma, o espelho nos apresenta como somos, porm, em algumas circunstncias, mostra aquilo que queremos ver, salientando algumas partes e ignorando outras, em funo do estado emocional e psquico ao nos dirigirmos a ele.

    A capacitao da imagem corporal proporcionada pela prtica eutnica leva o aluno, que esteja consciente de seu corpo, a ver na modelagem ou no desenho a sua prpria imagem ao identificar, por exemplo, uma perna mais volumosa, um ombro

    29 Pensamento de Angel Vianna, extrado dos peridicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo

    (2005:379). 30

    Gerda Alexander (1908-1994) criadora da Eutonia. 31

    No livro La Eutona un camino hacia la experiencia total del cuerpo, Alexander descreve e demonstra vrios desenhos e modelagens de alunos (ginastas, esportistas, bailarinos, psicoterapeutas e mdicos), antes e depois de um curso de eutonia de 8 a 14 dias. Nesta exposio ela enfatiza a falta da percepo da imagem corporal, mesmo naqueles que lidam diretamente com o corpo (1979:79-116).

  • 31

    mais alto, um quadril bem saliente, um ombro estreito, um peito franzino etc.; marcado, de certa forma, no manuseio com a argila ou com o lpis e condizente com o que ele/aluno percebe em si mesmo. Isto acontece exatamente porque moldado prpria imagem que temos de ns mesmos, sem a referncia de um modelo ideal projetado externamente, levando assim ao reconhecimento da imagem do corpo na modelagem ou no desenho realizado pela experincia.

    Na abordagem corporal de AV ocorre uma observao dirigida a cada parte do corpo, assim como tambm na Eutonia e em outras prticas similares. A ateno dirigida ao corpo (em movimento ou no) remete sinalizao dessa parte do corpo no crebro. O crebro, segundo a neurologia, possui um mapa que indica sua conexo com cada rea do corpo. O mapeamento acionado quando a rea correspondente ativada; remete ao conceito de imagem corporal apresentado pelo psicanalista e neurologista Paul Schilder.

    No livro A Imagem do Corpo, Schilder afirma que formatamos uma imagem corporal na mente e a adquirimos atravs das sensaes da pele, dos msculos e das vsceras. Em suas palavras: Entende-se por imagem do corpo humano a figurao de nosso corpo formada em nossa mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para ns. (SCHILDER, 1994:11).

    O curioso nesta informao poder remet-la experincia prtica da abordagem corporal de AV, que ativa a parte especfica do corpo que sensibilizado, com o intuito de interiorizar a dimenso dessa parte e poder, assim, adquirir uma conduo leve e suave do movimento. E uma das formas para que isso acontea propor a sensao/percepo do osso at a pele reas de aquisio da imagem corporal, assim como da propriocepo32. Os ossos localizam a regio estrutural nosso alicerce; as articulaes orientam as direes como as posies do corpo, e a pele absorve o volume do corpo.

    Para Angel (apud Polo, 2005:378-379): A pele um regulador de tenses, portanto, devemos ter mais cuidado com nosso glac, quando tocamos nela (...) Pelo contato podemos modificar todo o funcionamento corporal, tenso nervosa, metabolismo etc. o meio de reencontrarmos o tnus normal (...) igualmente preciso despertar a sensibilidade inclusive na prpria estrutura. Trata-se de adquirir a sensao de que so os ossos que se movem no espao. Os msculos no devem encarcerar os ossos, mas serem seus servidores. O domnio das articulaes d sempre uma impresso de extremo desafogo.

    32 Ver o prximo tpico.

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    Os elementos sublinhados so os considerados bsicos do trabalho proposto por Angel33. Em seu trabalho a estrutura ou arcabouo sseo dirigido para a observao tanto visual quanto ttil dos ossos, para que atravs dessa informao se interiorize a percepo da estrutura e conduza o movimento pelo osso. A sensibilizao dos ossos considerando que so envolvidos por uma membrana fibrosa/peristeo ocorre por meio de contatos com objetos, superfcies e pelo micro estiramento. na relao estabelecida pelo contato do osso com um objeto, seja ele consistente ou malevel, que a pele do osso (peristeo) estimulada, tanto pela ativao do apoio sseo quanto pelo prprio atrito provocado pelo contato. Pode ocorrer tambm a relao entre o prprio corpo, por exemplo: dorso ou palma da mo com os squios ou vice-versa, ou com um outro corpo (costas com costas).

    O micro estiramento, que acontece atravs de micro movimentos, proporciona o movimento pelo osso. No momento em que se efetiva o micro movimento, a

    musculatura externa (msculos dinmicos e superficiais, tais como: grande dorsal, trapzio, deltide, glteos etc.) alcana um estado tnico que auxilia o deslizamento do osso no interior. Desta forma, possvel atingir a mobilidade dos msculos profundos prximos da ossatura e experimentar pequenos movimentos. Se a massa muscular em torno do micro movimento estiver presa, ou seja, com uma tenso alm do necessrio, bloquear a sensao profunda de mover-se com os ossos.

    Outro elemento importante a pele. Angel se refere a ela como um envelope

    (nosso glac) que cobre todo o corpo. Antes de relacionar a pele diretamente com o sentido de propriocepo34 a qual se vincula, preciso lembrar a sua funo orgnica. A pele um rgo vital que reveste todo o corpo e, com a perda de sua integridade, no se sobrevive. Possui funo protetora e tambm a de recolher informaes, comportando uma grande densidade de receptores, atravs de nervos sensitivos com terminaes livres (dor, contato) ou terminaes em corpsculos especializados (calor, frio, presso)35.

    A pele toca algo, ininterruptamente: uma superfcie, um objeto, o ar, vrias texturas de tecidos. Esse algo tem textura, volume, temperatura, forma, densidade, distncia. O prprio corpo uma forma, que possui volume, textura, altura, peso,

    33 Estes elementos foram mencionados no artigo Angel Vianna: a construo de um corpo, em Lies

    de Dana 2, 2000:247-264, da autora do presente estudo. 34

    Ver: o prximo tpico. 35

    Ver: Teixeira (2000:257).

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    envolto pela sensao ttil da pele. Quando a pele despertada para o movimento, ela acionada para acompanhar o ar que envolve o espao o corpo se mover como dentro de um receptculo areo.

    As articulaes mveis, imveis ou semimveis so elementos que tambm possibilitam uma percepo internalizada do corpo, trabalhadas como dobras que ligam cada segmento do corpo ao outro. Esse elemento estimula principalmente a pesquisa do movimento atravs de uma ou mais articulaes, provocando a ateno exclusiva para as possveis dinmicas, mobilidades e alteraes na conduo do movimento.

    As articulaes podem ser orientadas pelos ossos. No caso das pontas ou processos sseos (cotovelo, joelho, acrmio, pice da cabea etc.), que se pontua em vrias direes no espao, favorecendo, em conseqncia, o deslocamento de outras partes do corpo. O mover livre entre dois ossos canalizado minuciosamente para o espao articular, trazendo a percepo das cpsulas, ligamentos e tendes.

    Entre as articulaes existem aquelas que exigem mais ateno e mobilidade isolada. Por exemplo, para cada vrtebra da coluna ou para as articulaes imveis, as articulaes sacro-ilacas, que quando sensibilizadas, causam um espaamento ou alargamento de sua rea.

    Voltemos sinalizao do osso na abordagem pedaggica do trabalho corporal de AV: primeiro apresenta-se o osso, no pela figura (s vezes se faz uso do figurativo, mas no to eficiente) e sim pela presena (um osso de cadver) ou uma reproduo similar. Depois, introduz o conhecimento anatmico do segmento ou parte do corpo referida, para que possa ser reconhecida no prprio corpo dos alunos. O objetivo oferecer a percepo do que est sendo mostrado reconhecendo, assim, a forma, o tamanho e a mobilidade possvel do segmento dentro de cada aluno, em si mesmo, para que a referncia visual no Atlas ou no cadver seja inferida juntamente com o referido.

    Dessa forma, ao tocarmos um osso, a sensao ttil ressaltada atravs do registro de sua forma, de sua textura, de seu volume e de sua consistncia. Esta experincia pode ser realizada com um osso de cadver e com o seu prprio osso (em reas fceis de serem tocadas) e provocar o que Schilder afirma: um dos processos de construo da imagem do corpo pelo toque. E, ainda, que: Todo toque provoca

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    uma imagem mental do ponto tocado. Tais imagens visuais certamente so de grande importncia para a localizao. (SCHILDER, 1994:19).

    Existe a constatao da estrutura em si mesmo, como foi colocado, mas tambm a tentativa de descoberta da mobilidade com algumas das peas dos esqueletos em mos, atravs do reconhecimento de suas formas, absorvido tanto no contato ttil (dos ossos) quanto na visualizao no Atlas (representao figurativa).

    A percepo do interior do corpo incgnita e estranha imaginao que fazemos do corpo. As sensaes so vagas, assim como a pele que exige uma ateno especial. Desta maneira, a estimulao do entorno do corpo nosso envelope/pele precisa ser destacada, seja em qualquer situao: tocando um objeto, uma superfcie, o ar, as roupas etc. Segundo Schilder:

    de grande interesse o estudo das mudanas que ocorrem na sensao da pele e da superfcie ttil do corpo quando um objeto toca a pele ou tocamos um objeto com as mos ou com uma outra parte do corpo. Neste exato momento, a superfcie se torna leve, clara e distinta. As fronteiras visuais e tteis tornam-se idnticas. um fato psicolgico notvel que sintamos distintamente o objeto, nosso prprio corpo e sua superfcie, ainda que eles no se toquem completamente. (SCHILDER, 1994:77-78).

    Angel no negligencia o campo das sensaes e percepes, pelo contrrio, ela os enfatiza pela experincia do contato36. Utiliza vrios contatos corporais, em duplas, em trios, em grupos atravs da relao; sem falas, sem representaes, somente pelos sentidos que fazem aflorar sensaes, prazeres, surpresas e inquietaes.

    O meio circundante permite a entrada no interno, ajudando a processar uma melhor relao com o outro, cuja interao independente de ser consigo (uma parte do corpo tocando outra parte do mesmo corpo mo tocando o p), com outra pessoa (qualquer parte de um corpo tocando outro corpo costas com costas) e com objetos (qualquer objeto ou superfcie tocando qualquer parte do corpo bambu na lateral da perna ou todas as superfcies que tocamos, no estamos flutuando, portanto, tocamos algo o tempo todo).

    Este aprendizado de si mesmo ocorre atravs da sensibilizao do nosso envelope a pele, que responsvel pela relao, pelo entre estabelecido pelo mundo interno e pelo mundo externo; assim como para alcanar a harmonia tnica, isto , o equilbrio das tenses do corpo.

    36 A noo de contato apresentada por Gerda Alexander, para diferenci-la do tato (relao

    afetiva) e que se assemelha a essa descrio de Schilder.

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    A sensibilizao do contato acelera e aflora a percepo tctil da pele que cobre todo o corpo, experimentando-a de vrias formas e em vrios pontos do corpo. necessrio um estado de inteireza para fazer emergir o interior que capta o exterior, permitindo o caminho de volta, de modo que o exterior penetre no interior.

    A experincia, por exemplo, de deixar surgir o objeto e sua forma (bambu, bola de tnis, bola de espuma etc.) atravs da percepo tctil como parte de si intrigante a tal ponto que, ao retir-lo, a sua forma ainda fica alguns segundos marcada e presente no corpo, provocando uma sensao exacerbada da parte em que a superfcie/pele/fronteira foi tocada.

    O aprimoramento dos sentidos tcteis, facilitada pelo objeto e superfcie possibilita manter o corpo, que envolvido por uma camada/pele, desperto e presente no mundo. Acontece que ao desenvolver a interao sutil do contato de um corpo humano com outro corpo humano, ou do corpo com um objeto, esses dados tomam uma outra dimenso. A integrao provoca sensaes com essas referncias em uma interao que desfaz totalmente o dentro e o fora, como no anel ou banda de Mebius37. Da mesma forma, para Gil, o corpo do bailarino, atravs de seu movimento, transforma-se numa superfcie de Mebius, movente, formando-se e desfazendo-se incessantemente absorvendo e dissolvendo sem parar o interior que faz surgir superfcie nica, sem avesso (2001:78). Objeto/meio/corpo tornam-se um s, penetra e penetrado. Isso no corresponde conscincia alterada atravs de efeitos de algumas drogas, que impedem a apreenso delimitada do que a princpio aparente. Como foi colocado, conduz a sensaes que tomam de surpresa aquele que est atento a essas provocaes, como: deslizamento do osso, crescimento interno dos espaos, nitidez do contato da pele com o meio/objeto, afrouxamento repentino da musculatura etc.

    A hiptese levantada acima por Schilder precursora da prtica corporal de AV:

    No h duvida de que as qualidades fsicas de nossos tecidos so de grande importncia, e que a relao da estrutura ssea com a pele dar as elaboraes finais a todas nossas sensaes tteis e percepo de nosso corpo. (SCHILDER, 1994:79).

    37 Na topologia (cincia dos espaos e suas propriedades) h uma figura em que no possvel

    distinguir o seu lado direito do seu avesso. Chamada de Banda ou Anel de Mebius foi descoberta por Mebius, em 1861. Lembra uma fita ou banda plana que, ao ser torcida e ligada em suas extremidades, possui a propriedade unilateral de ser visto com os dois lados, simultaneamente.

  • 36

    Um outro fator relevante para se conferir a imagem corporal o modelo postural, que considerado a partir do modelo da criana indo at o do adulto, considerando que a caracterstica inerente da vida psquica a mudana constante e variante da imagem. Ora, o corpo contnuo em mudanas, mas ser que nos damos conta disto? De cinco em cinco anos bvio para o adulto; dos doze aos dezesseis anos opera-se uma revoluo; nos primeiros anos de vida, acontece todo ms, e nos primeiros meses de vida, todo dia.

    Pela experincia corporal desta abordagem em questo, o que verificamos que o modelo/padro de comportamento postural rgido, fixado e interiorizado em seus vcios, mesmo durante o processo de mudanas etrias. Schilder chega a mencionar que temos o hbito de utilizar certos msculos em detrimento de outros, de acordo com o uso cotidiano do corpo. Por exemplo, um trabalhador rural crescido em seu habitat adquire fora e trabalho braal diferentemente de um trabalhador industrial e urbano. Trata-se das possibilidades de uso corporal no decorrer da vida38, isto , da maneira como usamos o corpo atravs das suas agilidades, proezas, limitaes incorporadas e possibilitadas. Em decorrncia da experincia, o padro corporal se molda no modelo de imagem da pessoa, mesmo que haja transformaes fsicas pela condio biolgica de evoluo e interferncias externas/internas das aes cotidianas.

    O padro corporal uma tendncia de automatismo na construo habitual de uso na vida cotidiana. Desfazer-se dele no to simples assim, pois o que parece que a acomodao em um tipo particular de postura partiu de experincias enraizadas interiormente, repetidas muitas vezes. O prprio hbito cotidiano de mover-se uma forma de repetio que se torna mecanizada pelo uso. Sua assimilao incorre em um padro incorporado.

    O uso do corpo nas aes habituais do cotidiano torna-se automtico. Nas aes j reconhecidas, o fator repetio, desfaz a necessidade de acessar, todas s vezes, a ateno afinada do corpo com seus sentidos. Assim, adquirimos uma maneira de andar, de entreter, de comer etc., que faz com que cada pessoa use certas articulaes como msculos diferentemente de cada um. Sem esquecer que a motivao sempre tem um carter psquico e que, com certeza, ir intervir no modo de agir. Desta forma, cada indivduo constri o seu padro corporal. Contudo, se h

    38 Ver: Schilder (1994:49-51).

  • 37

    um entendimento do movimento repetitivo, existe a possibilidade de assimil-lo de outra forma. Surge a oportunidade de uma nova busca no uso do corpo.

    As transformaes do corpo amenizam e podem at destruir a rigidez da imagem corporal atravs de meios triviais como o uso de roupas, de acessrios, da atividade corporal e at mesmo mutilaes corporais, que nos fazem expandir, contrair, desfigurar ou enfatizar a imagem corporal ou partes dela.

    Assim, o modelo postural est em contnua mudana, retornando s imagens primrias tpicas do corpo, que so dissolvidas e logo cristalizadas de novo. Assim, a imagem do corpo tem traos caractersticos de toda a nossa vida. H uma mudana contnua de entidades cristalizadas e bastante rgidas para estados de dissoluo e conjuntos menos estabilizados de experincias e, da, um retorno melhor forma a uma entidade modificada. Desse modo, h a construo contnua de uma forma que imediatamente depois de dissolvida reconstruda. (SCHILDER, 1994:182).

    H um jogo entre o corpo, a emoo e a imagem, da mesma forma que existe o prazer em observar a atuao corporal de um virtuosismo acrobtico ou tcnico de dana, que est associado ao desejo de ultrapassar as fronteiras de nosso corpo39. s vezes, h uma mistura de admirao e mal estar que significa o desejo da totalidade ou integridade do corpo e o medo de desmembramento ou retirada de uma das partes. a constante necessidade de mudana. a prpria afirmao de um corpo-devir.

    Existem as emoes que o influenciam; existem as tendncias ativas ao jogo; existem os motivos instintivos e voluntrios para construir e destruir, que esto sempre sob a orientao dos objetivos finais da personalidade e do organismo como um todo; existe uma necessidade interna de escapar de toda cristalizao e restrio. (SCHILDER, 1994:182).

    2.2. Movimento exterior o prolongamento de um trajeto interior40

    O neurologista Oliver Sacks nos surpreende com seus casos clnicos, ao resolver cont-los em seu livro O Homem que confundiu sua mulher com um chapu41. Os casos clnicos que se parecem com contos, escritos em cada captulo deste livro, revelam situaes imprevisveis.

    39 Ver: Schilder (1994:179).

    40 Pensamento de Angel Vianna, extrado dos peridicos organizados por Juliana Polo. Ver: Polo

    (2005:379). 41

    Sacks, Oliver. Rio de Janeiro, Imago, 1988.

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    O caso da dama sem corpo42 trata de uma mulher que perde sua propriocepo, isto , a capacidade de perceber a postura, o tnus e o movimento do corpo no espao. Sacks o reconhece como um sentido que pode ser estudado tanto pelos aspectos fisiolgicos quanto psicolgicos. Para ele, mais um sentido o sexto sentido perdido, guardado ou mantido escondido.

    Aquele fluxo sensorial contnuo, mas inconsciente, das partes mveis de nosso corpo (msculos, tendes, articulaes) pelo qual sua posio, tono e movimento so continuamente monitorados e ajustados, porm de um modo oculto para ns por ser automtico e inconsciente. (SACKS, 1988:51).

    Este sentido aparece diferenciado dos outros sentidos que esto despertos e ativos no dia-a-dia. De qualquer forma, podem estar automatizados ou sem uma aguda sensibilidade, mas quando degustamos algo o seu sabor aparece imediatamente; odores fortes so evidentes quando passamos por eles ou quando eles passam por ns; guiamo-nos pela viso, seno esbarraramos constantemente em algo; escutamos barulhos, rudos, alguns, nem todos, mesmos que no estejamos atentos; tocamos, pegamos, apertamos coisas, objetos, seres. Enfim, os cinco sentidos esto, em princpio, despertos e em uso dirio, externamente chegando a ns.

    J o sexto sentido aqui referenciado como o sentido da propriocepo, nunca acionado ou nem mesmo estimulado pelos prazeres cotidianos. Ou seja, ser que nos damos conta da nossa postura ou da movimentao do corpo no espao ou de nosso tnus ao apreciarmos a gastronomia, a msica, o perfume, os eventos artsticos?

    Porm, a apreciao no movimento/dana no ser uma necessidade do sexto sentido? Ser que ele est to automtico e bvio no que se remete s posies do corpo que jamais atentamos para ele? como se no precisssemos conect-lo, j que o sentido inconsciente, porm automtico? Ento, toda ao automtica inconsciente?

    O que aconteceu com a moa que perdeu a propriocepo? Pelo que conta Sacks, veio sem aviso prvio, antes de uma cirurgia, levando a associarem a uma histeria de ansiedade que provocou uma desconexo com os circuitos de controle do tnus e do movimento. Seu relato remetia falta total do corpo sem corpo como ela diria. Foi detectado que os lobos parietais estavam funcionando, mas no tinham

    42 Idem, Terceiro relato do livro, p. 51-61.

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    com que funcionar (1988:53). Somente depois de testes eltricos da funo dos nervos e dos msculos que foi detectada a perda total da propriocepo, da cabea aos ps. E que sensao mais esdrxula revelada de sentir-se sem corpo? A que ponto o seu crebro apagou de si sua carne?

    Para Sacks, foi a falta do sentido dos msculos, dos tendes e das articulaes, portanto de quase tudo que engloba o corpo, que a levou a sentir um corpo cego. Quer dizer, o sentido proprioceptivo faz o corpo ver-se em movimento, em postura e sustentado e, portanto, perd-lo deixar de ver o corpo? Pelo que parece, na perspectiva de Sacks, a propriocepo um sentido do corpo interligado viso e aos rgos do equilbrio (sistema vestibular), pois trabalham juntos; a falta ou deficincia de um deles compensada pelos outros em conjunto43. A paciente passou a adquirir uma vida normal com auxlio da viso em uma intensa vigilncia da ateno exacerbada pela falta. No tendo a propriocepo no podemos nos apropriar do corpo associado, pois segundo Sacks:

    (...) s amarras orgnicas fundamentais da identidade pelo menos aquelas da identidade corprea, ou ego corporal, que Freud considera a base da identidade (...) algumas destas despersonalizaes ou despercepes ocorrem sempre que h profundas perturbaes da percepo corporal ou imagem corporal. (SACKS, 1988:58).

    A partir desta exposio, apoiada em um caso/conto, lembremos dos locais no corpo onde se instalam a propriocepo: na pele, no peristeo (membrana que envolve o osso), nos tendes e ligamentos (nas articulaes) reas internas que possibilitam atravs da prtica corporal da professora Angel a aquisio de sensaes e de percepes. Correspondendo exatamente aos estmulos dos elementos da abordagem corporal de AV44, que so: o invlucro/pele, as dobras/articulaes e o alicerce estrutural/os ossos. E quais so as diretrizes fundamentais da abordagem corporal de AV? Proporcionar, ativar, acionar, especialmente acordar o corpo torn-lo desperto. Tornar encarnado com, no, dentro do corpo. Como? Na prtica45.

    O sentido da propriocepo, quando analisado, simples de ser entendido, porm a experincia corporal da sua assimilao efetiva denota a dificuldade de ser realmente adquirido. Pela experincia, este sentido nos revela a total falta de percepo que temos de nossa presena corporal e de seu reconhecimento, tanto

    43 Ibidem.

    44 Ver: tpico anterior sobre os elementos trabalhados em Angel.

    45 Idem.

  • 40

    quando interiorizada ou quando focada num especfico segmento corporal, principalmente em movimento. claro que temos noo do corpo no espao e em qualquer posio seja em p, sentada ou deitada, mas no a temos completa e sim parcialmente percebida. Isso fica claro quando ocorre uma sinalizao, por exemplo, provinda de um professor que orienta os alunos na ateno de seus ps ao se locomoverem ou sinalizando qualquer parte do corpo no espao; ou em contato com algo como a superfcie do cho, ou, ainda, vinda do prprio dono do corpo. O que podemos notar o requerimento consciente da sensibilidade do sentido para o seu surgimento, levando-nos a crer que sua ausncia s existe porque no consciente, necessitando assim acion-lo.

    Em Angel, o desenvolvimento desse sentido voltado para o reconhecimento do padro ou modo de agir to peculiar a cada um. Ou seja, sabemos que estamos nos movendo em qualquer circunstncia, como tambm sabemos que estamos sentados ou deitados ou em p, mas no nos reconhecemos nestas aes em nossa to usual maneira de agir.

    O desenvolvimento do sentido proprioceptivo, nesta abordagem, bastante estimulado pela presena das articulaes, para despert-las enquanto posicionamento (onde elas se situam) e qualidade de mobilidade (quais as possibilidades de movimento). Ao movermos somente pequenos espaos ou reas corporais, percebemos entraves que denotam um mau uso (relacionado a um posicionamento compensador ou falta de fluidez no movimento) e tambm um bom uso (relacionado liberdade de movimento e melhor posicionamento).

    Cada parte do corpo pode ser revelado, despido e apropriado atravs da pesquisa minuciosa do movimento interno para captar as dificuldades e as defesas, assim como as facilidades e os prazeres, com uma tal motivao que possa processar os encontros internos, pessoais e solitrios.

    Como menciona Sacks, este sentido inconsciente, e, portanto seu estmulo remete ao interior. A propriocepo imprescindvel, mais do que a viso, a audio, a degustao, pois viveramos de forma debilitada ou, insuportavelmente, sem ele. Este sentido apurado no trabalho corporal de AV atravs de sua sinalizao. Ver-se no corpo refere a introjetar-se e reconhecer seu estado, sua posio no espao, sua sustentao etc.

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    preciso disponibilidade corporal para adquirir a noo do corpo em sua integridade, pois nossos estados sensoperceptivos46 comprometem-se com a experimentao, ou melhor, com estmulos que favoream sua apreenso.

    O nico rgo responsvel pelo sexto sentido/propriocepo a pele, pois assim o reconhecido. A pele47, segundo Ashley Montagu, em seu livro Tocar: o significado humano da pele, descrita como:

    (...) uma roupagem contnua e flexvel, envolve-nos por completo. o mais antigo e sensvel de nossos rgos, nosso primeiro meio de comunicao, nosso mais eficiente protetor. O corpo todo recoberto pela pele. At mesmo a crnea transparente de nossos olhos recoberta por uma camada modificada de pele. A pele tambm se vira para dentro para revestir orifcios como a boca, as narinas e o canal anal. Na evoluo dos sentidos, o tato foi, sem dvida, o primeiro a surgir. O tato a origem de nossos olhos, ouvidos, nariz e boca. (...) matriz de todos os sentidos. (MONTAGU, 1988:21).

    Montagu associa a pele ao sentido do tato origem de todos os outros sentidos (viso, audio, olfato, paladar), mas aqui o estamos enfatizando pela propriocepo. A propriocepo no s engloba a pele (que nos permite o sentido do contorno), mas tambm tendes, ligamentos, msculos e ossos (que nos favorece a postura). Desta forma, um sentido que exige uma apurao no s interior como tambm exterior. No vem tona como acontece com os outros sentidos, estimulado pelo exterior (cheiros, cores/luzes, imagens, sons, gostos, texturas). Acontece numa relao interior/exterior, alm de estar comprometido com o modo de se posicionar, de postura na vida; sobretudo um sentido mais complexo.

    A prtica corporal proposta por AV nos faz detectar posturas viciadas, acomodadas e desgastadas pela simples conduo minuciosa de um movimento ou pela sustentao bem posicionada, se assim conseguirmos manter, em uma postura (sentada, de p, deitada). E requer bastante disposio fsica para atentar s dificuldades que aparecem, como, por exemplo, de mantermo-nos em qualquer postura por muito tempo.

    O que se pretende no fixar o registro da dificuldade, e sim a possibilidade de modificao e alterao do padro condicionado, para a descoberta de uma liberdade e uma espontaneidade corporal possvel de ser manifestada.

    46 Correspondem s sensopercepes: exteroceptivas (cinco sentidos), a propriocepo e as

    interoceptivas (vinculadas aos rgos internos) Ver: Luria (1991:8-15). 47

    Ver: Captulo I Tpico 1.3 Os elementos.

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    2.3. Conscientizao corporal a busca da conscincia48

    A conscincia, assim como a biomecnica e o estudo da estruturao interna dos ligamentos e msculos, se codifica em pesquisas recentes que procuram cada vez mais desvendar detalhadamente suas funes. Desde modo, novas tcnicas de observao do crebro e do corpo, que at ento eram desconhecidas, ampliaram o conhecimento de sua estrutura e funcionalidade49.

    A abordagem deste estudo pela experincia da dana e do movimento, que traz a conscincia do corpo. No pretende desvendar o