TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

3

Click here to load reader

Transcript of TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

Page 1: TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

8/19/2019 TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

http://slidepdf.com/reader/full/teixeira-flavia-vidas-que-desafiam-corpos-e-sonhos-uma-etnografia-do-construir-se 1/3

 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2): 631-633, maio-agosto/2011 631

Vidas que desafiam corpos esonhos: uma etnografia doconstruir-se outro no gênero e nasexualidade.

PPPPPessoas (transexuais): dimensões sociais deessoas (transexuais): dimensões sociais deessoas (transexuais): dimensões sociais deessoas (transexuais): dimensões sociais deessoas (transexuais): dimensões sociais devidas (in)determinadas pela ciênciavidas (in)determinadas pela ciênciavidas (in)determinadas pela ciênciavidas (in)determinadas pela ciênciavidas (in)determinadas pela ciência

2009. 243 f. Tese (Doutorado em CiênciasSociais) – Programa de Pós-Graduaçãoem Ciências Sociais, UniversidadeEstadual de Campinas – Unicamp,Campinas, 2009.

TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso.

Contextualizar as dimensões históricas,sociais, políticas e culturais da construção dogênero e das sexualidades constitui o trajetotrilhado por essa antropóloga. Professora adjuntada Faculdade de Medicina da UniversidadeFederal de Uberlândia – UFU, Flávia doBonsucesso Teixeira é graduada em Terapia

Ocupacional (1991) e especialista emSociologia e Educação e Movimento Humano(1994).

No mestrado em Educação, pela UFU(2000), investigou a constituição de papéismasculinos e femininos e a conotação de valoresconstruídos em torno deles na educação infantil.No doutorado em Ciências Sociais, pelaUnicamp (2009), enfocou sujeitos que buscavama cirurgia de transgenitalização. Vinculada a estamesma instituição, investigou no pós-doutorado(2010) o processo de migração de travestisbrasileiras para a Itália, ressaltando prostituiçãoe conjugalidades.

Sustentando o argumento de que a forma

como as instituições médico-jurídicasreconhecem as pessoas (transexuais) coloca emrisco suas possibilidades de sobrevivência e suaefetivação como seres humanos, Flávia Teixeirateve como objetivo no doutorado“compreender as possibilidades e estratégias daatuação dos sujeitos que buscavam a cirurgiade transgenitalização” (p. 19).

Sob uma abordagem etnográfica eancorada nos estudos queer , a autora se utilizoude fontes bibliográficas, documentais, entrevistas

e observações. Analisou 29 processos judiciaisdestinados à autorização para a realização dacirurgia de transgenitalização no Brasil,enfatizando os discursos médicos e jurídicos. Oacesso a esse material se deu pelo Programade Transgenitalização, coordenado pelaPromotoria de Justiça Criminal de Defesa dosUsuários dos Serviços de Saúde (Pró-Vida), doMinistério Público do Distrito Federal e Territórios,

criado em 1999 e suspenso em 2004.Dezesseis pessoas (transexuais) definiram ouniverso empírico do estudo, sendo oito inscritas/os no Programa, sete do movimento social euma mulher (transexual) que, anterior ao Pró- Vida, havia se submetido à cirurgia no exterior.O trabalho de campo não se restringiu àsentrevistas. Visitas a residências, hospital, locaisde trabalho e lazer e a participação emespaços de discussão política compuseram oprocesso.

Subsidiada pela teoria foucaultiana, oprocesso de análise das entrevistas écompreendido pela autora como um momentode autoavaliação vivenciado pelos sujeitos emque se podem aflorar tensões e autocríticas,

ultrapassando as fronteiras do “dito”. A compreensão e a ar ti cu lação dos

saberes médicos legais com relação àtransexualidade foram o tema do primeirocapítulo: “O natural também é uma pose”. A autora utilizou como fonte principal documentosdo Conselho Federal de Medicina e parecerese sentenças judiciais, uma vez que seus discursoscompunham o Programa Pró-Vida. As possíveisorigens biológicas da homossexualidadedefendidas por pesquisas do século XX, comoenfatiza Teixeira, “emprestaram suas (in)certezaspara compor um léxico explicativo para atransexualidade” (p. 32).

O segundo capítulo é dedicado à análise

dos processos das pessoas (transexuais) querecorreram ao Pró-Vida em busca da autorizaçãopara a realização da cirurgia de transgenitalização.Evidenciou-se a disputa entre o saber-podermédico e jurídico, que, ao mesmo tempo quedefine a legitimidade do/a “verdadeiro/atransexual”, exerce uma “violência institucional” aoimpedir “o outro de dizer quem é”.

Ressalta-se também a necessidade de“ressocialização” das pessoas (transexuais)argumentada pelo discurso médico e jurídico por

Page 2: TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

8/19/2019 TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

http://slidepdf.com/reader/full/teixeira-flavia-vidas-que-desafiam-corpos-e-sonhos-uma-etnografia-do-construir-se 2/3

632  Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2): 631-633, maio-agosto/2011

meio da cirurgia que, na verdade, se fundamentamuito mais nos aspectos biológicos do que nosaspectos sociais que constituem o cotidianodesses sujeitos. O título deste capítulo, “Não bastaabrir a janela...”, expressa coerentemente ascontextualizações apresentadas.

O terceiro capítulo, “Histórias que não têmera uma vez...”, problematiza os saberes e asnormas determinantes da fixidez datransexualidade como patologia em oposiçãoàs “diversas possibilidades de vidas e a fluidez desuas experiências” (p. 33). Através de fragmentosdas entrevistas e das observações realizadas noperíodo de 2004 a 2008, a autora tenta capturarinstantes do cotidiano desses sujeitos, enfocando

suas vivências sociais nos espaços familiares,escolares, profissionais, afetivos etc.

Os desafios enfrentados na luta peloreconhecimento político das pessoas(transexuais) são o foco do quarto capítulo:“Diálogos que disfarçam conflitos por explodir”. Ao mesmo tempo que se busca uma identidadesocial da transexualidade fora dos parâmetrospatológicos, persistem os impasses nasnegociações de políticas públicas com oMinistério da Saúde para esse segmento, que,de certa forma, mantém sua legitimidade aindaancorada num diagnóstico médico-jurídico. Emcontrapartida, Teixeira argumenta que

 A transexualidade pode ser lida como uma

experiência de mobilidade que carrega umdesejo de finitude. Alcançar a “outra margemdo rio” e declarar o fim desta passagem. [...] A questão maior é que a armadilha desse discursoreside no caminho escolhido para alcançar aoutra margem do rio: a imposição da cirurgia(p. 193).

 As tensões vivenciadas no mov imentopolítico responsáveis pelo distanciamento entretravestis e transexuais, o desejo de parte dasmulheres (transexuais) em aderir ao movimentofeminista e as restrições com relação à adesãodos homens (transexuais) ao Pró-Vida integramtambém as contextualizações deste capítulo.

Como resultados, Flávia Teixeira aponta para

a problematização da legitimidade socialatribuída à experiência das pessoas (transexuais)precedente e exclusivamente conferida pelodiscurso médico-jurídico. Ao contrário deimplementar novas formas e sentidos aosentimento de “ser diferente”, esses discursos epráticas reafirmam esses sujeitos como em“desacordo”, protagonistas de um “engano” oupersonificadores/as de uma “fraude”. Emdecorrência disso, condiciona-se a transexuali-dade a “uma visão essencialista e dicotômica

do gênero”, assim como desencadeiamecanismos que ampliam a fragilidade dosmovimentos sociais em suas lutas.

 Ao seguir as pistas deixadas por BereniceBento,1 que primeiramente se preocupou coma problematização e a (des)construção doconceito de transexualidade fundamentadocomo processo patológico, a autora entrelaçaessa problemática aos contextos de suasvivências cotidianas. A família, a escola, otrabalho, o lazer, a afetividade, o movimentosocial, correlacionados a essa possibilidade deconstrução do gênero, passam a tecer umsujeito integral, complexo, múltiplo, dono de umahistória particular. Esse fato ressalta uma das

principais contribuições deste estudo, por sededicar aos aspectos da subjetividade daspessoas (transexuais) e não somente pelasdimensões biológicas da readequação genital.

 A relevância da pesquisa abrange tanto omeio acadêmico como o movimento social.Oferece à academia uma riqueza de subsídiosteóricos que contemplam as mais diversas áreasde conhecimento. Destaco o campo educa-cional, uma vez que as vivências escolaresrelatadas pelos sujeitos conceberam maiorsentido às afirmativas de Sérgio Carrara e SilviaRamos,2  quando destacam que a baixaincidência de discriminação e preconceitocontra travestis e transexuais em instituições de

ensino deve-se ao fato de que esses sujeitospouco frequentam escolas e faculdades. A escola torna-se, na maioria das vezes, um lugarinabitável para essas pessoas.

Com relação ao movimento social, partedo material empírico foi construído naparticipação em espaços de encontro,discussão e elaboração de pautas políticasreferentes à população de travestis e transexuais.O Encontro Nacional de Travestis e Transexuaisna Luta contra a Aids – ENTLAIDS foi um dosprincipais. Nesse sentido, o estudo potencializanovas reflexões e direcionamentos envolvendoquestões em pauta pelo segmento, tais comoa patologização da transexualidade, asdivergências e tensões entre travestis e

transexuais, o nome social, a prostituição etc.Concluindo, a tese é indicada para o mais

variado público, acadêmico ou não, desdeintegrantes dos movimentos sociais atéestudantes de graduação ou pós-graduaçãodas mais variadas áreas do conhecimento quetenham interesse em compreender um poucodo universo da transexualidade.

Por explorar com densidade a multiplici-dade de elementos que compõem a consti-

Page 3: TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

8/19/2019 TEIXEIRA, Flávia. Vidas Que Desafiam Corpos e Sonhos - Uma Etnografia Do Construir-se

http://slidepdf.com/reader/full/teixeira-flavia-vidas-que-desafiam-corpos-e-sonhos-uma-etnografia-do-construir-se 3/3

 Estudos Feministas, Florianópolis, 19(2): 631-633, maio-agosto/2011 633

tuição do gênero e das sexualidades fora dospadrões essencialistas e normativos, a leitura deobras como O que é transexualidade,  deBerenice Bento,3 e Um corpo estranho: ensaiossobre sexualidade e teoria queer,  de GuaciraLopes Louro,4 fornecem elementos teóricos queauxiliam numa melhor compreensão dotrabalho.

 Afinal, como afirma Flávia Teixeira, “a expe-riência transexual materializa incertezas que sefundem com as questões pautadas em outrosespaços” (p. 229), sendo a construção identitáriaum processo de mutação e a identificação degênero, consequentemente, uma aproximaçãodo que ele realmente seja.

No tasNotasNotasNotasNotas1 Berenice BENTO, 2003.2 Sérgio CARRARA e Silvia RAMOS, 2005.3 BENTO, 2008.4 Guacira Lopes LOURO, 2004.

Referências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficasReferências bibliográficas

BENTO Berenice.  A re in venção do corpo:sexualidade e gênero na experiênciatransexual . 2003. Tese (Doutorado emSociologia) – Departamento de Sociologia,Universidade de Brasília, Brasília, 2003.

______. O que é transexualidade?  São Paulo:Brasiliense, 2008. (Primeiros Passos).

CARRARA, Sérgio; RAMOS; Silvia.  Po lí ti ca ,direitos, violência e homossexualidade: Pesquisa 9ª. Parada do Orgulho GLBT – Rio 2004 . Rio de Janeiro: Cepecs, 2005.Disponível em: <www.clam.org.br/>. Acessoem: 2 nov. 2007.

LOURO, Guacira Lopes.Um corpo estranho:

ensaios sobre sexualidade e teoria queer .Belo Horizonte: América, 2004. 90 p.

Neil FrancoUniversidade Federal de Mato Grosso

(Médio Araguaia)