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tecnologia Publicidade dirigida como uma seta em direcção ao alvo. Sem desperdício de munições. Sem perda de tempo. As empresas e os publicitários encontraram o Santo Graal na Internet. Os internautas poderão ter perdido aí boa parte da sua privacidade. Navego, logo existo Texto Susana Almeida Ribeiro Ilustração Bárbara Fonseca á deve ter reparado: um dia entrou no site de uma conhecida marca de sapatos e, dias depois, deu por si a ser perseguido por publicidade a essa marca enquanto navegava. Outro exemplo: decidiu que queria ir de férias a Cabo Verde — vamos supor — e por isso começou a pesquisar voos, hotéis, agências de viagens... Até esteve à beira de comprar a viagem online mas depois percebeu que não podia ir naquelas datas e desistiu, no último minuto. Horas depois começa a ver que o seu Facebook está cheio de anúncios de promoções de idas para Cabo Verde. Já lhe aconteceram coisas semelhantes enquanto navega? Nesse caso, bem-vindo ao maravilhoso e polémico mundo da publicidade comportamental. Antigamente, quando ainda não havia Internet, os anunciantes e as agências de publicidade corriam o risco de desperdiçar os anúncios com as pessoas erradas. Um anúncio ao sabão X a passar na telefonia às 16h podia ser que chegasse aos ouvidos da D. Henriqueta, dona de casa e potencial compradora desse sabão. Mas esse anúncio também podia chegar ao dr. Agostinho, ortopedista, que tinha tanto interesse por um sabão como uma dona de casa por um fémur. Com o advento dos computadores pessoais e da Internet, tudo mudou. As companhias publicitárias, os anunciantes e os browsers foram acumulando uma gigantesca pilha de informações acerca dos internautas, a ponto de lhes poderem servir doses unipessoais de publicidade a gosto, com base não só na sua idade, género e localização geográfica como também com base nos seus gostos, nos seus interesses, nos seus hobbies... Hoje em dia, a D. Henriqueta e o dr. Agostinho já não fazem parte de uma massa anónima de potenciais compradores. Eles são a D. Henriqueta, mulher de 65 anos com dois filhos, exímia cozinheira e coleccionadora de colheres de prata, e o dr. Agostinho, pescador de fim-de- semana, reformado e amante de passeios de jipe com o cão, um grand danois. Terão os internautas consciência deste fenómeno? A Pública decidiu inquirir alguns internautas a este respeito. Rita Martins, licenciada em Economia que trabalha na Alemanha, indicou já se ter apercebido do fenómeno e discordar em absoluto dele: “Abomino qualquer tipo de publicidade baseada nos meus dados pessoais. Obviamente que todos sabemos que informação vale muito nos dias que correm, e que uma plataforma como o Facebook ou o Google só podem funcionar de forma gratuita se atraírem empresas que os utilizem como veículos dos seus meios publicitários. Mas uma coisa é a publicidade generalizada (como a da televisão) e outra é a publicidade personalizada, que se baseia nas informações que eu, voluntariamente, não forneci a ninguém, pois limitei-me a surfar a Internet.” Os cookies Pergunta pertinente: mas afinal como é que o meu historial de pesquisas e de navegação online é conhecido e como é que ele vai parar às mãos dos anunciantes? Aqui vai uma lição de informática embrulhada em filosofia: o Inferno já não são os outros. São os cookies, Sartre. São os cookies. Os cookies informáticos são pequenos ficheiros que um determinado site deixa nos nossos computadores a fim de se poder lembrar, no futuro, quem nós somos. Exemplo prático: de cada vez que entra no seu Gmail, por exemplo, a partir do seu PC, o seu username já lá está e só precisa de escrever a password e fazer sign in, verdade? Isso é obra dos cookies. É com a ajuda deles que o nosso histórico de navegação fica a nu: as pesquisas, as informações colocadas em sites que necessitam de registo, os livros e os DVD que já tenhamos acrescentado ao nosso carrinho de compras online... Muito popular é o “retargeting comportamental”, ou seja, aquela publicidade que Uma lição de informática embrulhada em filosofia: o Inferno já não são os outros. São os cookies, Sartre. São os cookies J c

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Publicidade dirigida como uma seta em direcção ao alvo. Sem desperdício de munições. Sem perda de tempo. As empresas e os publicitários encontraram o Santo Graal na Internet. Os internautas poderão ter perdido aí boa parte da sua privacidade.

Navego, logo existo

Texto Susana Almeida Ribeiro Ilustração Bárbara Fonseca

á deve ter reparado: um dia entrou no site de uma conhecida marca de sapatos e, dias depois, deu por si a ser perseguido por publicidade a essa marca enquanto

navegava. Outro exemplo: decidiu que queria ir de férias a Cabo Verde — vamos supor — e por isso começou a pesquisar voos, hotéis, agências de viagens... Até esteve à beira de comprar a viagem online mas depois percebeu que não podia ir naquelas datas e desistiu, no último minuto. Horas depois começa a ver que o seu Facebook está cheio de anúncios de promoções de idas para Cabo Verde. Já lhe aconteceram coisas semelhantes enquanto navega? Nesse caso, bem-vindo ao maravilhoso e polémico mundo da publicidade comportamental.

Antigamente, quando ainda não havia Internet, os anunciantes e as agências de publicidade corriam o risco de desperdiçar os anúncios com as pessoas erradas. Um anúncio ao sabão X a passar na telefonia às 16h podia ser que chegasse aos ouvidos da D. Henriqueta, dona de casa e potencial compradora desse sabão. Mas esse anúncio também podia chegar ao dr. Agostinho, ortopedista, que tinha tanto interesse por um sabão como uma dona de casa por um fémur.

Com o advento dos computadores pessoais e da

Internet, tudo mudou. As companhias publicitárias, os anunciantes e os browsers foram acumulando uma gigantesca pilha de informações acerca dos internautas, a ponto de lhes poderem servir doses unipessoais de publicidade a gosto, com base não só na sua idade, género e localização geográfica como também com base nos seus gostos, nos seus interesses, nos seus hobbies... Hoje em dia, a D. Henriqueta e o dr. Agostinho já não fazem parte de uma massa anónima de potenciais compradores. Eles são a D. Henriqueta, mulher de 65 anos com dois filhos, exímia cozinheira e coleccionadora de colheres de prata, e o dr. Agostinho, pescador de fim-de-semana, reformado e amante de passeios de jipe com o cão, um grand danois.

Terão os internautas consciência deste fenómeno? A Pública decidiu inquirir alguns internautas a este respeito. Rita Martins, licenciada em Economia que trabalha na Alemanha, indicou já se ter apercebido do fenómeno e discordar em absoluto dele: “Abomino qualquer tipo de publicidade baseada nos meus dados pessoais. Obviamente que todos sabemos que informação vale muito nos dias que correm, e que uma plataforma como o Facebook ou o Google só podem funcionar de forma gratuita se atraírem empresas que os utilizem como veículos

dos seus meios publicitários. Mas uma coisa é a publicidade generalizada (como a da televisão) e outra é a publicidade personalizada, que se baseia nas informações que eu, voluntariamente, não forneci a ninguém, pois limitei-me a surfar a Internet.”

Os cookiesPergunta pertinente: mas afinal como é que o meu historial de pesquisas e de navegação online é conhecido e como é que ele vai parar às mãos dos anunciantes? Aqui vai uma lição de informática embrulhada em filosofia: o Inferno já não são os outros. São os cookies, Sartre. São os cookies.

Os cookies informáticos são pequenos ficheiros que um determinado site deixa nos nossos computadores a fim de se poder lembrar, no futuro, quem nós somos. Exemplo prático: de cada vez que entra no seu Gmail, por exemplo, a partir do seu PC, o seu username já lá está e só precisa de escrever a password e fazer sign in, verdade? Isso é obra dos cookies. É com a ajuda deles que o nosso histórico de navegação fica a nu: as pesquisas, as informações colocadas em sites que necessitam de registo, os livros e os DVD que já tenhamos acrescentado ao nosso carrinho de compras online...

Muito popular é o “retargeting comportamental”, ou seja, aquela publicidade que

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segue o consumidor dando aos anunciantes uma segunda (terceira, quarta...) hipótese de capitalizar com aquele consumidor, mostrando-lhe os mesmo produtos que visitou nos sites originais mas estando noutras páginas.

Também aqui, como em tantas outras coisas, o timing é de suprema importância. Uma publicidade tem tanto mais hipóteses de ser eficaz quando é mostrada numa altura em que os utilizadores procuram conteúdos relacionados. Aqui vai uma analogia exibicionista: é como se alguém andasse atrás de nós com uma gabardina, nos seguisse para todo o lado, e volta e meia, nos lugares mais apropriados, abrisse a gabardina e se expusesse.

É, portanto, com a ajuda destes cookies (que cada internauta poderá desactivar, mas já lá vamos) que uma rede de agentes pertencentes à crescente indústria publicitária online consegue montar a sua vigilância online. As actividades dos consumidores são monitorizadas e os dados acerca dos seus comportamentos são usados para se compilarem “perfis”. Estes perfis são “ouro” para os anunciantes. O método é o Santo Graal da publicidade. Falando concretamente:

marcas de vestuário como, por exemplo, os gigantes Gap e Victoria’s Secret pedem a empresas de armazenamento de dados online — como a Datran e a Acxiom — para lhes colocarem publicidade dirigida a perfis específicos em sites como o Facebook, o portal Yahoo e o jornal The New York Times. É simples, eficaz, vai direito ao alvo e rende milhões.

Alguns internautas até aplaudem este tipo de publicidade. Catarina Moleiro, outra utilizadora ouvida pela Pública, é a favor: “Não me incomoda nada essa publicidade comportamental. Até acho piada e às vezes até clico, por ser um tema que pesquisei ou que me interesse. Sou a favor.”

Há evidentes vantagens nesta publicidade comportamental: há maiores probabilidades de um utilizador considerar a publicidade interessante e/ou útil, esta publicidade ajuda a pagar a actividade de sites e de blogues de que gostamos e que, de outra forma, não existiriam e, em última análise, já que os anúncios online são um “mal necessário”, mais vale que eles sejam adaptados aos nossos interesses.

Opt outMark Ghuneim, fundador e director executivo da empresa Wiredset, uma agência digital norte-americana especialista nesta matéria e defensora do princípio da transparência nesta indústria, defende, porém, que as desvantagens ainda suplantam as vantagens. “Quando um consumidor fornece às empresas a sua PII (Personally Identifiable Information) — o seu histórico, a sua localização, com quem comunica, o que compra online — isso acontece tudo sem o seu consentimento implícito”, disse Ghuneim à Pública via email. “Estamos a ajudar as empresas a gerar um perfil pessoal sem qualquer recompensa, incentivo ou permissão expressa. E isso acontece tudo debaixo do pano. As empresas — que agregam dados pessoais — podem beneficiar das nossas acções vendendo o nosso perfil a qualquer um.”

Mark Ghuneim — que tem um passado como hacker — diz que as situações em que é o próprio utilizador a dar a sua autorização à publicidade dirigida são as mais adequadas, porque desta forma o consumidor sente que está a controlar a situação e a ganhar alguma coisa em troca. “A Amazon, por exemplo, premeia a partilha de preferências e o histórico de compras ao ajudar o consumidor a descobrir coisas de que ele poderá gostar.”

Dado este cenário, que Mark Ghuneim descreve como um “Oeste selvagem”, em que as estratégias agressivas estão a extrair lucros de todas as formas possíveis, os reguladores começaram a preocupar-se. A ex-comissária europeia da Saúde e dos Consumidores, Meglena Kuneva, já em 2009 tinha falado no fenómeno da “colecção maciça de dados pessoais e comportamentais” online que cria “oportunidades, sem precedentes, de atingir utilizadores comercialmente mais vulneráveis, como crianças e pessoas com problemas de saúde ou financeiros”. Nos EUA, a Federal Trade Commission também entrou em cena e recomendou a adopção de um mecanismo contra o rastreio publicitário.

Nova pergunta pertinente: como é que eu me posso salvaguardar de tudo isto? Os três browsers mais usados em todo o mundo — Internet Explorer (Microsoft), Firefox (Mozilla) e Chrome (Google) — decidiram recentemente, face ao aperto regulatório, oferecer aos utilizadores um sistema de opt out. Ou seja, a possibilidade de impedir a entrada de cookies publicitários nos computadores. Para saber como desactivar, confira os links ao lado.

A Pública tentou falar com representantes da indústria publicitária, nomeadamente com o director da empresa britânica Struq (Sam Barnett) e com Armando Alves, web strategist na agência de marketing interactivo Fullsix Portugal, mas não obteve resposta em tempo útil. a

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