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TEATRO E DANçA: REPERTóRIOS PARA A EDUCAçãO VOLUME 3 TEATRO E EDUCAçãO: PERSPECTIVAS

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TeaTro e Dança: reperTórios para a eDucação

VoLuMe 3

TeaTro e eDucação: perspecTiVas

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Governo do Estado de São Paulo

GovernadorJosé Serra

Vice-GovernadorAlberto Goldman

Secretário da EducaçãoPaulo Renato Souza

Secretário-AdjuntoGuilherme Bueno de Camargo

Chefe de GabineteFernando Padula

Fundação para o Desenvolvimento da Educação – FDE

PresidenteFábio Bonini Simões de Lima

Chefe de GabineteRichard Vainberg

Diretora de Projetos EspeciaisClaudia Rosenberg Aratangy

Avenida São Luís, 9901046-001 República São Paulo SPTelefone: (11) 3158-4000www.fde.sp.gov.br

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Fundação para o Desenvolvimento da EducaçãoDiretoria de Projetos Especiais

São Paulo, 2010

TeaTro e Dança: reperTórios para a eDucaçãoVoLuMe 3

TeaTro e eDucação: perspecTiVas

Governo do estado de são paulo

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Catalogação na Fonte: Centro de Referência em Educação Mario Covas

São Paulo (Estado) Secretaria da Educação. Teatro e dança: repertórios para a educação / Secretaria da Educação, Fun-dação para o Desenvolvimento da Educação; organização, Devanil Tozzi, Mar-ta Marques Costa; Thiago Honório (colaborador). - São Paulo : FDE, 2010. 3 v. : il.

Conteúdo: v. 1. A história do teatro e da dança: linhas do tempo – v. 2. As linguagens do teatro e da dança e a sala de aula – v. 3. Teatro e educação: pers-pectivas. Parte integrante do Projeto Escola em Cena, que compõe o Programa Cul-tura é Currículo.

1. Teatro e Educação 2. Dança e Educação 3. Ensino Fundamental 4. En-sino Médio 5. Educação de Jovens e Adultos 6. Prática de Ensino I. Fundação para o Desenvolvimento da Educação. II. Tozzi, Devanil. III. Costa, Marta Marques. IV. Honório, Thiago. V. Título.

CDU: 37:792+793.3

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apresenTação

Prezados Professores

Este volume, o terceiro da coleção Teatro e Dança: Repertórios para a Educação, apresenta três análises, com abordagens que se complementam, sobre o valor do teatro para a educação: como processo de construção de significados, como atividade educativa no âmbito da escola e como espaço de exercício e formação de cidadania.

Em Quando o teatro e educação ocupam o mesmo lugar, o autor, ao analisar a importância do teatro para desenvolver a capacidade de leitura do mundo, oferece alguns elementos para se pensar na contribuição do professor para a apropria-ção da linguagem teatral pelo aluno espectador. Essa apropriação implica na interpre-tação dos signos presentes na encenação que, ao ser confrontada com a experiência e a visão de mundo do espectador, conduz à construção de novos significados, novos entendimentos. Apresenta concepções de alguns pensadores, dramaturgos e expe-riências teatrais que valorizam a participação ativa do espectador na construção de sentidos diante do acontecimento artístico, que é o espetáculo.

Em Teatro, uma experiência criativa, o autor inicia por uma análise sobre o que é e como deve ser o teatro para expor algumas diretrizes para a formação de um grupo de teatro na escola como atividade educativa. Apresenta, então, um sis-tema de aprendizagem teatral por meio de jogos, discorre sobre as questões do espaço na escola para esse trabalho, da definição e uso do texto dramático, do processo de aprendizagem da representação cênica, dos ensaios, e finaliza discutindo o resultado do trabalho com teatro na escola do ponto de vista educacional.

Em Teatro e cidadania: da atualidade da arte cênica, o autor detém seu olhar sobre três elementos do teatro que revelam sua legitimidade na atualidade

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para a formação humana e construção de cidadania. Reconhecendo a experiência sensorial que o teatro oferece como fenômeno individual, ressalta o trabalho do professor como orientador da formulação de questões para compreensão do que está em jogo na cena.

Esperamos que as reflexões aqui apresentadas contribuam para que esse encontro com a arte, que o projeto Escola em Cena propicia, represente uma experiência relevante para a formação do aluno e o reflexo de um trabalho docente criativo e significativo.

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suMÁrio

11 QUANDO TEATRO E EDUCAÇÃO OCUPAM O MESMO LUGAR NO ESPAÇO Flávio Desgranges

29 TEATRO: UMA ExPERiêNCiA CRiATivA Joaquim Gama

61 TEATRO E CiDADANiA: DA ATUALiDADE DA ARTE CêNiCA Aimar Labaki

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TeaTro e eDucação:perspecTiVas

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QuanDo TeaTro e eDucação ocupaM o MesMo LuGar no espaço

Flávio Desgranges*

[ * ] Diretor teatral, dramaturgo e professor do Departamento de Artes Cênicas da USP. Doutor em Educação pela USP, com estágio no Centro de Sociologia do Teatro da Universidade Livre de Bruxelas. Publicou A pedagogia do espectador, em 2003, e Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo, em 2006, ambos pela Editora Hucitec, de São Paulo.

[ 1 ] Antonio Gramsci (1891-1937), pensador italiano.

A arte é educadora enquanto artee não enquanto arte educadora.

Antonio Gramsci1

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a experiência De especTaDor

Tomar a experiência artística enquanto relevante atividade educa-cional constitui-se em proposição que vem sendo investigada ao longo dos tempos, e que continua a estimular o pensamento e a atuação de artistas e educadores con-temporâneos, já que as respostas para esta questão apresentam-se enquanto for-mulações históricas, apropriadas para as diversas relações estabelecidas entre arte e sociedade nas diferentes épocas. O pensamento acerca do valor educacional da arte está centrado, em nossos dias, tanto no âmbito da concepção de propostas que possam valer-se desse potencial próprio à atividade artística, quanto no desafio de tentar elucidar em que medida a fruição da arte pode, por si, ser compreendida enquanto atividade pedagógica.

Começaremos esta nossa conversa justamente sobre este último as-pecto do tema: como pensar a arte enquanto proposição educacional nos dias que cor-rem? Enfocaremos, mais detalhadamente, o teatro, na tentativa de refletir sobre como, de acordo com as especificidades próprias a esta arte, compreender esta questão.

Tornou-se bastante comum o teatro ser apontado enquanto va-lioso aliado da educação, a frequentação a espetáculos ser indicada, recomendada como relevante experiência pedagógica. Este valor educacional intrínseco ao ato de assistir a uma encenação teatral, contudo, tem sido definido, por vezes, de maneira um tanto vaga, apoiada em chavões do tipo: teatro é cultura. Outras vezes, percebido de maneira um pouco reducionista, enfatizando somente suas possibilidades didáticas de transmissão de informações e conteúdos disciplinares, ou de afirmação de uma determinada conduta moral.

Que outras respostas vêm sendo concebidas na tentativa de compre-ender a experiência proposta ao espectador enquanto atividade educacional? Seria

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possível à arte teatral desempenhar tal tarefa sem apagar ou esmaecer a sua chama artística? O teatro pode ser, de fato, educador enquanto arte? Em que medida?

Crianças da periferia

Interessado em investigar mais profundamente esta questão, o edu-cador francês Philippe Meirieu realizou, em 1992, uma pesquisa que se mostrou bastante rica e reveladora, com crianças extremamente desfavorecidas, habitantes da periferia da cidade de Lião. Em entrevistas realizadas com estes meninos, que tinham entre 6 e 12 anos, o educador percebeu que uma das características destas crianças, “que se sentem fracassadas pessoal e socialmente, é a absoluta incapacidade de pensar uma história, de pensar a própria história” (Meirieu, 1993, p. 14).

Meirieu esclarece que, quando conversamos com estas crianças e lhes pedimos para falar de si, contar a sua história, percebemos a sua grande dificuldade em se referir ao passado, mesmo o passado recente, em articular a linguagem para falar da própria vida. Esta dificuldade revela tanto a pouca aptidão para criar com-preensões possíveis para os fatos do cotidiano quanto para atribuir sentido à própria existência. A falta de condições para compreender o passado indica a dificuldade de situar-se no presente e de projetar-se no futuro.

O educador, analisando as entrevistas feitas com estas crianças, aponta que, mesmo as mais velhas, são incapazes, por exemplo, de utilizar algumas das expressões tão comuns e fundamentais para dar sentido à vida, tais como: “foi a partir deste momento que eu compreendi”, “teve um momento em minha vida que aconteceu isto e me levou a decidir isto”, “eu descobri que”, etc. A pesquisa aponta, ainda, que estes meninos utilizam frequentemente o “você”, e o “a gente”, para falar de si, e quase nunca o pronome “eu”, como se não se sentissem autorizados a reco-nhecer a própria capacidade de construir e compreender os fatos que compõem a sua

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história, tornando-se autores e sujeitos desta história.Meirieu ressalta, contudo, que, das crianças entrevistadas, aquelas

habituadas a frequentar salas de teatro, de cinema, e a ouvir histórias demonstram maior facilidade de conceber um discurso narrativo, de criar histórias e de organizar e apresentar os acontecimentos da própria vida. A investigação indica, assim, que, quem sabe ouvir uma história, sabe contar histórias. Quem ouve histórias, sendo es-timulado a compreendê-las, exercita também a capacidade de criar e contar histórias, sentindo-se, quem sabe, motivado a fazer história.

No teatro, por sua vez, uma narrativa é apresentada valendo-se con-juntamente de vários elementos de significação: a palavra, os gestos, as sonoridades, os figurinos, os objetos cênicos, etc. A experiência teatral desafia o espectador a, de-parando-se com a linguagem própria a esta arte, decodificar e interpretar os diversos signos presentes em uma encenação. Cada um destes elementos de linguagem cola-bora para a apresentação da história, e cabe ao espectador articular e interpretar este conjunto complexo de signos, que se renova a cada instante. Este mergulho no jogo da linguagem, que provoca o espectador a elaborar uma compreensão destes variados elementos linguísticos propostos em uma montagem teatral, estimulam-no a exercitar e a apropriar-se desta linguagem.

O mergulho na corrente viva da linguagem, e a pesquisa do edu-cador francês nos indica isto, acende a vontade de lançar um olhar interpretativo para a vida, exercitando a capacidade de compreendê-la de uma maneira própria. Podemos conceber, assim, que a tomada de consciência se efetiva como leitura de mundo. Apropriar-se da linguagem é ganhar condições para essa leitura.

Linguagem que é intrínseca à própria história, já que o discurso his-tórico é sempre uma narrativa. A história está viva no discurso vivo. Fazer história é contar história, pois, “na medida em que o homem só pode receber a história numa transmissão, a história condiciona e mediatiza o acesso à linguagem” (Kramer, 1993,

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p. 65). Assim, apropriar-se da linguagem é apropriar-se da história, conquistando autonomia para interpretá-la, compreendê-la e modificá-la ao seu modo.

A linguagem se revela, assim, instrumento precioso, não se limita apenas a ser veículo da história, mas ela faz história. Para fazer e refazer a história, portanto, é preciso sentir-se estimulado a construir e reconstruir a linguagem. A con-cepção e transformação da história – pessoal e coletiva – é um embate que se efetiva nos campos da linguagem.

Os ovos da experiência

Na tentativa de compreender a atitude proposta ao espectador teatral enquanto experiência educacional, podemos recorrer ao enfoque sutil presente na alego-ria benjaminiana (Benjamin, 1993), que sugere que o ouvinte de uma história – ao ouvi-la, compreendê-la em seus detalhes e empreender uma atitude interpretativa – choca os ovos da própria experiência, fazendo nascer deles o pensamento crítico. A imagem de chocar os ovos da própria experiência está relacionada com a ideia de que o espectador, para efetivar uma compreensão da história que lhe está sendo apresentada, recorre ao seu patrimônio vivencial, interpretando-a, necessariamente, a partir de sua experiência e visão de mundo. Ao confrontar-se com a própria vida, neste exercício de compreensão da obra, o espectador revê e reflete sobre aspectos de sua história e os confronta com a narrativa com a qual se depara, chocando os ovos da experiência e fazendo deles nascer o pensamento crítico; pensando reflexivamente acerca da narrativa, interpretando-a, e também acerca de sua história, do seu passado, revendo atitudes e comportamentos, estando em condições favoráveis para, quem sabe, efetivar transformações em seu pre-sente, e – levando-se em conta a perspectiva de um processo continuado de exercício de sua autonomia crítica e criativa – assumindo-se enquanto sujeito da própria história, tornando-se capaz de (re)desenhar um projeto para o seu futuro.

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A arte de ouvir histórias

A educadora Sonia Kramer, a partir de uma interpretação pos-sível para a fábula de Xerazade, concebe rica metáfora, que nos auxilia na ten-tativa de compreender as formulações benjaminianas acerca da importância da arte de narrar e ouvir histórias:

Ao descobrir que sua esposa o traía, o rei Xeriar manda que a executem. Vai além: furioso e possuído pelo desejo de vingança, ele planeja matar todas as mulheres com quem se casar para não mais se arriscar a ser traído... E assim o faz. Dia após dia, uma jovem diferente é trazida pelo vizir aos aposen-tos de Xeriar. Este, ao final da noite de núpcias, ordena que a matem. Eis que Xerazade, a filha do vizir, persuade seu pai a levá-la ao palácio e entregá-la a Xeriar; tem ela um plano para vencer a morte – a sua e a de outras mulheres – que o rei quer impor. Xerazade, que passara toda a sua vida ouvindo parábolas e que aprendera a conhecer a vida pelas histórias contadas por seu pai, planeja vencer a morte contando histórias.

É sua irmã – Duniazade – quem a ajuda na primeira noite: conforme haviam as duas combinado, Duniazade vai se despedir de Xerazade e pede que a irmã lhe conte uma última história. Xerazade se dirige então ao rei, e roga que lhe permita atender ao pedido da irmã. Recebendo a permissão, naquela mesma noite Xerazade começa a contar uma história e com grande habilidade a interrompe, subitamente, de forma a aguçar a curiosidade do rei. E assim, de histó-ria em história, continuando o enredo, desviando-o e interrompendo a cada noite a narrativa, Xerazade envolve o rei, ganha a sua confiança, desperta seu interesse em mantê-la viva para que possa ouvir a continuidade da história.

Xerazade vence a morte, então, contando histórias, noite após noite, para Xeriar: histórias misteriosas, cativantes, atraentes. Histórias que se mis-turam e interpenetram. Vai vivendo, narrando, tem filhos com Xeriar, cria-os. Até que o rei, nela confiante, a liberta da ameaça.

O trunfo de Xerazade e a razão de seu triunfo é, portanto, a narrativa (Kramer, 1993, p. 192).

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Podemos afirmar, construindo uma leitura particular da fábula, que o rei Xeriar, ao ouvir as narrativas, chocou os ovos da própria experiência, fazendo nascer deles o pensamento crítico. Ouvir a contação das histórias constituiu-se, neste sentido, em vigorosa experiência pedagógica para o rei, que, à medida que ia com-preendendo as tramas, reportava-se à própria existência; ao passo que interpretava as histórias narradas, revia criticamente aspectos de sua vida, tomando consciência da própria história, estando, assim, em condições de transformá-la.

A experiência artística se coloca, deste modo, como reveladora, ou transformadora, possibilitando: a revisão crítica do passado; a modificação do presen-te; e a projeção de um novo futuro.

Olhar a arte, ver a vida 2

Há alguns anos, tive a oportunidade de realizar uma experiência que me foi bastante esclarecedora acerca da relação entre arte e educação, e que fez acen-der uma possível maneira – talvez complementar à abordagem que fizemos até então – de compreender a arte como sendo educadora enquanto arte, e não necessariamen-te enquanto arte educadora.

Numa visita ao Museu D’Orsay, na cidade de Paris, local onde, me contaram, teria funcionado, outrora, uma estação de trem, eu percorria as grandes galerias do segundo andar, de pé-direito bastante alto e paredes de concreto. Passe-ava por um dos setores dedicados à exposição permanente do museu, onde estavam localizadas diversas pinturas impressionistas. Uma profusão delirante de quadros de Gauguin, Cézanne, Van Gogh, Seurat, que exploravam as qualidades óticas da luz

[ 2 ] Esta experiência é retratada com maiores detalhes pelo autor em seu livro A pedagogia do espectador, São Paulo, Hucitec, 2003.

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e da cor, e despertavam intensas emoções. As telas pareciam exalar os perfumes das paisagens que retratavam. Um pequeno descuido já nos deixava ouvir o cantar das cigarras nos campos de sol escaldante, ou o ruído silencioso dos rios margeados por arbustos em variados tons de verde e leves pinceladas de violeta.

A visitação seguia pelas muitas galerias fechadas, quando, no meio de uma das salas surge, surpreendente, uma janela que nos deixava ver, lá fora, o entardecer da cidade, tendo como fundo um céu azul cravejado por nuvens espar-sas, recortado pelos pequenos prédios parisienses. Postei-me diante da janela du-rante longo tempo e percebi que não estava só. Vários dos visitantes permaneciam estáticos diante dela, olhando para aquela paisagem como se observassem uma pintura, uma obra de arte. Afastei-me da janela, sentei-me em um dos bancos pró-ximos e me ative à reação das pessoas, à relação que estabeleciam com a paisagem que surgia pela vidraça, enquanto pensava na faculdade da arte de nos sensibilizar, em como a contemplação daquela sequência de quadros havia provavelmente esti-mulado os visitantes a lançar um olhar estetizado para o mundo lá fora, em como a relação com as obras propiciava, ainda que por instantes, que os contempladores fruíssem a existência como uma experiência artística. Os visitantes entravam e sa-íam daquela galeria; o movimento em direção à janela e a relação com a paisagem parisiense repetiu-se por longo período, até que me retirei da sala e do museu, não sem guardar cuidadosamente na memória aqueles que para mim foram intensos e raros momentos.

O principal aspecto, que gostaria de ressaltar, da relação dos vi-sitantes com as obras de arte e com a paisagem vista pela janela, que me chamou a atenção foi, sem dúvida, a capacidade da arte de provocar e, porque não, tocar os contempladores, sensibilizando-os para lançar um olhar renovado para a vida lá fora.

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as renoVações cênicas e a parTicipação Do especTaDor

O surgimento do teatro moderno, em fins do século XIX e início do XX, é proveniente de dois fatores fundamentais: o desenvolvimento científico e as mudanças na estrutura social, política e econômica.

As novidades científicas e o desenvolvimento tecnológico deste perío-do acrescentaram ingredientes de grande importância para as transformações teatrais, proporcionando uma verdadeira revolução cênica. A tecnologia – e a invenção da lâm-pada elétrica é um marco fundamental – permitiu redimensionar o palco, iluminando a cena, inventando sonoridades, tonalidades, profundidades, multiplicando sensações.

Por outro lado, assim como as ciências naturais aprofundaram, como nunca, os seus conhecimentos sobre as condições de vida do homem neste planeta, a realidade político-social foi dissecada e compreendida pelas ciências humanas. A compreensão das engrenagens sociais ampliou a consciência da sociedade sobre os seus próprios processos. O movimento artístico, dentre eles o teatro, entrou em con-sonância com este momento histórico. O conhecimento dos, agora aparentes, meca-nismos sociais requeria a formulação de novas concepções teatrais; a cena passou a investigar suas configurações internas, buscando linguagens que possibilitassem um diálogo efetivo com a realidade em transformação.

Movidos pelos questionamentos político-sociais de seu tempo, os encenadores modernos inauguram, então, a preocupação acerca de uma questão fun-damental para o teatro, e que movimenta os artistas teatrais até os dias de hoje: qual a relação do espectador com o espetáculo? E é em função dessa questão que surgem as diversas inovações cênicas, pois os encenadores parecem dispostos a movimentar esta relação, a “sacudir” os espectadores nas poltronas.

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Dá-se, neste período, uma grande reviravolta em toda a arte dramá-tica; transformações que se operam no espaço cênico e marcam a revisão da própria função do teatro na sociedade, passando justamente pelo questionamento e a investi-gação acerca das possibilidades de comunicação entre palco e plateia.

As respostas formuladas pelos artistas teatrais desde então são as mais variadas, na tentativa de propor uma relação ativa, efetiva com a plateia.

Percebe-se que provocar a capacidade crítica dos espectadores cons-titui-se em desafio central para os encenadores modernos, propondo que a plateia não se perca em um envolvimento emocional apassivador, abandonando-se à corrente da narrativa, mas despertando-lhe a vontade reflexiva. O teatro, para isso, deve ser apresentado enquanto fato teatral e não enquanto fato real, ou evento que pretenda convencer o espectador que está diante da própria vida. Ao contrário, para permitir uma reflexão produtiva acerca da vida, torna-se necessário que o teatro assuma a sua teatralidade, assumindo-se enquanto acontecimento artístico diante do espectador. Não se trata, pois, de apresentar uma cena como se fosse real, mas de mostrá-la assu-mindo seu caráter artístico.

Este pensamento foi especialmente defendido pelo encenador e dramaturgo alemão Bertolt Brecht – e influencia diversos encenadores desde en-tão –, que apontava que, ao invés de consumir a atividade do espectador através de forte envolvimento emocional, a arte teatral deveria despertar a sua atividade, proporcionando-lhe conhecimentos advindos do pensamento sobre aquilo que está sendo apresentado em cena. O espectador estaria, assim, sendo contraposto à ação e não transportado para dentro dela. Para isso, torna-se fundamental que o palco se mostre como cena teatral e não como uma fatia da vida.

Brecht contrapõem-se, desta maneira, ao teatro realista, em voga na virada do século XIX para o XX, e defende que, para assumir-se enquanto arte, o pal-co precisaria deixar à mostra o seu maquinário, o seu funcionamento. Assim, a cena

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deveria apresentar-se desconstruída, deixando à vista cada pedaço que a constitui. O encenador precisaria deixar claro para o espectador os recursos que utiliza em cena, de maneira que cada um dos elementos cênicos – a luz, o cenário, as músicas, etc. – tenham independência sobre os outros, possuam voz própria. Ou seja, Brecht apre-senta um teatro desnudado, que revela os mecanismos utilizados – refletores de luz, maquinário cenográfico, etc. –, retirando as tapadeiras, rotundas e tudo o que possa esconder a construção e o funcionamento dos objetos que constituem a cena, evitan-do o ilusionismo e assumindo a teatralidade da encenação. O palco rasga as cortinas, porque quer revelar as engrenagens teatrais e sociais.

Os recursos cênicos utilizados neste teatro épico moderno, idealizado por Brecht na primeira metade do século anterior, têm o intuito de afastar o espectador da ação dramática, interrompendo a corrente hipnótica e possibilitando a sua atitude crítica. “O espectador não deve viver o que vivem os personagens, e sim questioná-los” (Brecht, 1989, p. 131). O encenador alemão propõe, assim, que o espectador se distancie e reflita sobre o que vê, ao invés de entregar-se a um envolvimento emocional que invia-bilizaria o raciocínio. Este efeito de distanciamento é a viga mestra do teatro brechtiano.

Alguns encenadores, por sua vez, em busca de uma efetiva participa-ção dos espectadores, sem abandonar a reflexividade proposta ao público, vão construir espetáculos que estimulem imaginativamente o espectador, concebendo cenas que pro-voquem a plateia a exercitar isto que o encenador contemporâneo Peter Brook chama de “músculo da imaginação”.

A imaginação é um músculo, e ela fica muito contente em jogar o jogo. Eu posso tomar, por exemplo, esta garrafa plástica e decidir que ela será a Torre de Pisa. Eu posso jogar com isto, deixá-la inclinada, experimentar tombá-la, quem sabe deixar que ela desmorone, se espatife no chão... Nós podemos imagi-nar isto no teatro, ou na ópera, e a garrafa poderia criar uma imagem mais forte que a imagem banal dos efeitos especiais no cinema, que reconstituem, a custa de

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milhões, uma torre verdadeira, um verdadeiro tremor de terra, etc. A imaginação, este músculo, ficaria menos satisfeita (Brook, 1999, tradução nossa).

Na segunda metade do século XX, especialmente, observamos uma retomada, por parcela significativa de encenadores, de aspectos artísticos próprios às práticas teatrais antigas e populares – como as montagens teatrais ao ar livre realizadas na Idade Média –, o que representa uma tentativa de reativar a relação do espetáculo com o público, ou seja, reanimar a cerimônia teatral. Estas tentativas de retomar uma comunicação mais direta e eficaz com o público, geralmente realizam-se buscando espaços alternativos: ruas, metrôs, bares, fábricas, escolas, hospitais, etc.

Assim, na esteira dos movimentos contraculturais que eclodiram neste período, várias trupes, com uma produção marcada por forte teor ideológico, concentraram seus esforços na difusão de espetáculos para um público o mais amplo possível, com o objetivo de implementar uma ação política de conscientização por meio da arte teatral. Os grupos visavam à utilização do palco como espaço para a discussão das questões que afligiam nossas sociedades, convidando os espectadores a participarem destes debates.

Estes artistas, impulsionados pelo cansaço diante das práticas teatrais conhecidas e pelo desejo de extinguir o fosso que separava o palco da plateia, concebe-ram métodos bastante particulares que tinham o objetivo de provocar a atitude do pú-blico diante dos fatos trazidos à cena. Estas formas dramáticas continham, assim, uma proposta pedagógica atrelada ao interesse artístico e estavam calcadas, em grande parte, na intervenção direta da plateia no evento artístico. Esses experimentos permitiram o redimensionamento da posição do espectador na sua relação com a obra teatral 3.

Propondo uma nova maneira de compreender a atuação política, a ação por meio do teatro, um instrumento revolucionário, provocaria a potência imaginativa e transformadora do público. As formas artísticas mais surpreenden-

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tes e contraditórias surgiram neste período, todas encaixadas em um movimento comum, de um radicalismo com grande vitalidade, em permanente contestação à sociedade e à cultura dominante, que desconstruía os espaços teatrais tradicionais e transbordava pelas ruas e outros locais à procura de espectadores, diminuindo a distância entre vida teatral e vida social.

O papel do espectador no evento teatral

No início do século XX, como vimos, o teatro se vê diante de in-dagações acerca do sentido desta arte, em seu diálogo com a sociedade, que operam uma espécie de “revolução copernicana” no universo da cena, e que deflagra profun-das transformações na relação da cena com a sala, do palco com a plateia. Se, em sua revolução cosmogônica, Copérnico compreende que a Terra não poderia ocupar o centro do universo, as transformações operadas na arte teatral tiram o texto de uma posição necessariamente central no espetáculo teatral, conferindo igual importância aos demais elementos constituintes da encenação (os objetos de cena, os gestos do ator, as sonoridades, a iluminação, etc.). A partir de então, o texto deixaria de ser o

[ 3 ] Dentre os relevantes movimentos teatrais que surgiram neste período, com o objetivo de esti-mular a plateia para uma tomada de posição crítica frente às questões apresentadas, destacam-se, entre tantos outros: as experiências do Living Theatre, que exerceram forte influência em muitos outros países; as técnicas do Teatro do Oprimido, que foram aplicadas primordialmente na França e no Brasil, e alcançaram reconhecimento em diversas nações. Para melhor conhecimento destes experimentos, pode-se consultar as seguintes obras: sobre o Living Theatre, ver Rosenfeld, Anatol. Prismas do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1993; sobre o Teatro do Oprimido, ver Boal, Augusto. Tea-tro do oprimido. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1988; para o melhor conhecimento de outras realizações teatrais do período, ver Roubine, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

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principal aspecto da cena, e todos os elementos de linguagem poderiam contribuir igualmente para apresentar teatralmente um acontecimento aos espectadores. Estas transformações conferem ao espectador um papel fundamental no evento teatral, já que cabe a ele decodificar, relacionar e interpretar o conjunto complexo de signos propostos em um espetáculo.

Esta mudança de eixo possibilita uma nova compreensão acerca do papel do espectador no ato artístico, influenciando fortemente a criação teatral. Os artistas passam, desde então, a conceber seus espetáculos tendo em vista propostas de encenação que contemplem uma efetiva atuação dos espectadores, tirando-os de uma observação tida como passiva para propor-lhes atividade em sua relação com a cena. Estas investigações artísticas permanecem vigorosas por todo o século passado e conti-nuam a motivar a criação teatral contemporânea, resultando em propostas as mais di-versas, que questionam desde as variadas possibilidades de compreensão do que seria o espaço teatral, até as propostas mais ousadas de participação do espectador no evento.

As pesquisas acerca do papel do espectador teatral têm em Bertolt Brecht uma figura chave. Isto porque o encenador alemão, retomando o que foi ex-posto acima, indica e defende a existência de uma arte do espectador, apresentando a ideia de que a participação deste último precisa ser compreendida como um ato criativo, produtivo, autoral. O que, em última instância, além de outras possíveis li-nhas de análise, quer dizer o seguinte: se a atuação do espectador precisa ser tomada a partir de uma perspectiva artística, precisa-se também afirmar a necessidade de formação deste espectador. Ou seja, se a capacidade para analisar uma peça teatral não é somente um talento natural mas uma conquista cultural, quer dizer que esta capacidade pode e precisa ser cultivada, desenvolvida. Tal como os criadores da cena, os espectadores também precisam aprender e aprimorar o seu fazer artístico.

As transformações operadas no universo da arte teatral promoveram, portanto, além de transformações na criação teatral, profundas alterações no recém-

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reconhecido campo da recepção teatral. Isto porque passou-se a compreender, como vimos, que a relação do espectador com a obra teatral não é somente a de alguém que está lá para entender algo que o artista tem para dizer. Mais do que isto, esta funda-mental mudança de eixo permite-nos compreender que a participação do espectador é a de alguém que está lá para elaborar uma interpretação da obra de arte, para uma atuação que solicita sua participação criativa. Ou seja, os significados de uma obra não estão cravados nela como algo inalterável, que está lá e precisa ser entendido pelo espectador, pois se trata menos de entendimento dos significados e mais de constru-ção de significados, que são formulados pelo espectador no diálogo que trava com a obra. O que nos permite apontar que a atitude última do evento teatral se opera no âmbito do espectador, e que, se este não empreender o papel autoral que lhe cabe, o fato artístico não terá efetivamente acontecido.

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BiBLioGrafia

BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1993.

BRECHT, Bertolt. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.

. Ecrits sur le théâtre 1. Alençon: L’Arche, 1989.

BROOK, Peter. Le diable c’est l ’ennui. Arles: Actes Sud-Papiers, 1999.

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003.

KRAMER, Sonia. Por entre as pedras: arma e sonho na escola. São Paulo: Ática, 1993.

MEIRIEU, Philippe. Le théâtre et la construction de la personalité de l’enfant: de l’événement à l’histoire. In: CRÉAC’H, M. Les enjeux actuels du théâtre et ses rapports avec le public. Lyon: CRDP, 1993.

Filme sugerido para o debate acerca da questão tratada:

O gosto dos outros (Le Goût des Autres)França, 2000, direção de Agnès Jaoui, 112 minutos, comédia.

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TeaTro: uMa experiência criaTiVa

Joaquim Gama*

[ * ] Doutorando em Artes, área de pesquisa Pedagogia do Teatro, na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Professor e diretor de teatro. Atua na educação básica e no ensino superior.

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fazer TeaTro

Fazer teatro ou formar grupos de teatro na escola é um desafio que envolve várias ações. Essas ações vão desde a constituição do grupo de trabalho até a organização dos espaços para que a atividade teatral se efetive.

Se o desejo é a mola propulsora para o fazer teatral, ele sozinho não será capaz de manter a atividade na escola. É preciso que o desejo esteja casado com o empenho e estes dois façam parcerias com a leitura, com a pesquisa e com o estu-do. Assim, é preciso ler escritos sobre teatro, observar trabalhos realizados por outros artistas e desenvolver um olhar atento à realidade.

Um texto sobre teatro pode nos abrir muitas portas. Pode nos con-duzir para mares nunca navegados. Às vezes lemos um texto e a sensação que fica é a de que muita coisa não foi compreendida, que muitas palavras não foram decifradas e que estamos imersos num universo de desconhecimento. Isso não deve ser um imo-bilizador das nossas capacidades. Ao contrário, deve ser o veículo das nossas buscas. O conhecimento surge exatamente da nossa percepção de desconhecer algo. Muitas vezes, “re-iniciar” a leitura, buscar no dicionário uma determinada palavra, entrar na internet e pesquisar mais sobre um determinado assunto fazem-nos ficar mais próxi-mos do texto e nos tornam capazes de dialogar com as ideias do autor.

Uma ideia está sempre atrelada a milhões de outras ideias. O teatro exige gente que gosta de pensar, de se aventurar pelos ca-

minhos do conhecimento. É preciso, a cada proposta teatral, avançar rumo ao desco-nhecido, ao imprevisível, para realizar algo capaz de mobilizar todas as nossas capa-cidades de invenção e organização artística.

Como já foi dito, aprendemos a fazer teatro lendo textos teatrais, assistindo a teatro e exercitando nossas capacidades de atuação.

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Dizem que quando somos picados pelo bicho do teatro, nunca mais seremos capazes de nos livrarmos dele. Na verdade, o teatro é capaz de instaurar o desejo constante de aprender e criar.

DefininDo o TeaTro

A palavra teatro suscita diversas definições. Muito provavelmente, ao perguntar para um grupo de pessoas o que é teatro, obteremos diversas respostas. Alguns dirão que é um lugar constituído de palco e plateia. Outros afirmarão que é o espaço do faz de conta, da imaginação, onde, por exemplo, atores dão vida às persona-gens e os cenógrafos criam a realidade teatral. Essas mesmas pessoas, na maioria das vezes, dirão também que cabe a um diretor o papel de estruturação da obra teatral e à plateia, a tarefa de assistir passivamente ao universo mágico criado no palco.

Há os que defenderão a ideia de que teatro é vida. Dirão também, outras pessoas, que teatro é um ritual, envolvendo o encontro entre artistas e especta-dores, sob a consigna do deus grego Dionísio. Muitos acreditam que o teatro é o es-paço para artistas e público debaterem acontecimentos contemporâneos, entendendo essa expressão artística como instrumento de mudança social. Nessa mesma linha de pensamento estão os que defenderão a ideia de que teatro é ensinamento e diversão.

Fernando Peixoto (1981) escreveu que teatro é “um espaço, um ho-mem que ocupa este espaço, outro homem que observa.” Grotowski (1975), fundador do Teatro Laboratório, na década de 1950, na Polônia, disse que teatro é provocação e, nessa direção, ele deve ser capaz de desafiar a si próprio, o público. Em determinado estágio de seu trabalho, o dramaturgo e encenador alemão Bertolt Brecht (1979) pro-clamou que o teatro deveria ser estritamente didático. Assim, escreveu peças didáticas

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com intenções de ensinamentos sociais. Com esta proposta ele radicalizou a ideia de teatro, propôs o rompimento da distância existente entre atores e espectadores, afir-mando que as peças didáticas não precisavam de público, pois todos (atores e público) deveriam ser atuantes.

Fernando PeixotoEm São Paulo, trabalhou no Teatro Oficina como ator. Nos anos

1970 tornou-se diretor. Empenhado com o teatro de resistência, passou a ser reconhecido também como importante pensador teatral. O teatro de resistência combatia especialmente os processos políticos e sociais da época. Como teórico, escreveu obras vinculadas ao dramaturgo Bertolt Brecht e sobre as tendências do teatro popular brasileiro. Para maiores informações acessar:http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_teatro/

Jerzi GrotowskiFamoso diretor de teatro polaco. Foi considerado um inovador do

teatro no século XX. Suas ideias deixaram marcas profundas nos movimentos de renovação teatral em várias partes do mundo, inclusive nos Estados Unidos. Aqui no Brasil, um dos seus livros mais conhecido é Para um teatro pobre. Nesse livro ele fala sobre o trabalho desenvolvido no Teatro Laboratório. É uma leitura bastante interessante. Para maiores informações acesse:http://dramateatro.fundacite.arg.gov.ve/ensayos/n_0017/etica_grotowski.htm

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Bertolt BrechtNasceu em Augsburg, Alemanha, em 1898. Estudou medicina em

Munique. Porém, dedicou toda a sua vida ao teatro. Foi uma das mais importantes figuras do teatro do século XX. Escreveu diversas peças, poemas e reflexões sobre o teatro. Seus escritos versavam sobre os “falsos padrões” da arte e da vida burguesa, corroídas pela Primeira Guerra. Entre as peças escritas por ele, podemos destacar O maligno Baal, Ópera dos três vinténs, A padaria e Aquele que diz sim, aquele que diz não.

Com a ascensão de Hitler, foi obrigado a deixar a Alemanha e exilar-se em países como a Dinamarca e os Estados Unidos, onde sobreviveu à custa de trabalhos para Hollywood.

Fez duras críticas ao nazismo e à guerra, tema de uma de seus mais importantes textos: Mãe coragem e seus filhos (1939).

O Pequeno Organon é outra importante obra, cujo conteúdo discorre sobre o fazer teatral.

Em 1949, já de volta à Alemanha, funda o Berliner Ensemble. Esse espaço passou a ser uma referência teatral mundial. Morreu em Berlim em 1956.

Muito provavelmente, na biblioteca da sua escola há algo referente à produção desse autor. Para obter mais informações acesse: http://www.culturabrasil.org/brecht.htm

QuaL serÁ a Minha Definição De TeaTro?

Como é possível perceber, qualquer tentativa de definir o que é teatro coloca-nos diante de inúmeras visões, às vezes bem diversas uma da outra. O que tal-vez seja possível afirmar é que, a cada época, a cada momento histórico, ele assumirá uma determinada tendência.

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Cabe aos interessados na arte teatral definir suas próprias propostas, realizar suas escolhas artísticas, buscar encontrar respostas para indagações da se-guinte ordem: por que desejo fazer teatro? Que teatro quero fazer? O que pretendo alcançar com o teatro? O que quero comunicar a partir do teatro? A quem se dirige o teatro que faço? Quais são as tendências artísticas que me impressionam? Que es-tética teatral eu gostaria de investigar e/ou experimentar?

Na contemporaneidade, a diversidade é parte constituinte do teatro. Assim, coexistem diversas tendências, várias possibilidades teatrais, que não podem ser categorizadas como piores ou melhores. São apenas formas diferentes de se ma-nifestar e fazer teatro. Essa diversidade teatral nos instiga, tanto na forma de fazer, como na maneira de ver teatro. Leva-nos, por exemplo, a refletir sobre o sentido do teatro e a sua relação com a plateia.

assisTir a TeaTro é DiferenTe De assisTir a TeLeVisão?

Assistir a um espetáculo de teatro é completamente diferente da atitude receptora que um aparelho de televisão nos oferece. Se, inúmeras vezes, ao assistir a televisão somos capazes também de falar ao telefone ou comer pipoca, pois diante da tevê nossas habilidades imaginativas, de seres pensantes, são pouco requi-sitadas, no teatro essa relação pode se configurar de outra forma. No teatro, nossa capacidade de criar é exercida e compartilhada com os demais presentes na sala de espetáculo. O teatro é algo para ser vivenciado no coletivo. É uma atividade humana que nos permite exercer nossas capacidades de pensar, de criar, de percorrer os mais diversos destinos incertos que a imaginação nos possibilita.

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Tanto o teatro quanto a televisão propõem formas distintas de assis-tência e de produção artística. Não se faz aqui apologia a qualquer teatro! Há muitos espetáculos que estão mais para televisão do que para teatro. Qual o sentido do públi-co sair de suas casas para ver teatro se ele pode ver a mesma coisa na televisão?

É preciso ter clareza das diferenças de cada uma dessas linguagens. Não se trata de dizer que o teatro é melhor que a televisão e nem que a televisão é mais interessante que o teatro. Não podemos entrar nesse engodo. Há muita coisa inteligente sendo produzida na tevê e muita produção ruim sendo encenada por aí.

O teatro envolve o império da metáfora, algo praticamente ausente na televisão. O teatro não se oferece como espelho imediato da realidade, senão como tradutor de experiências vivenciadas pela sociedade.

O teatro se configura como mediação metafórica da realidade, onde não há a necessidade de se privilegiar a ilusão de contiguidade. O campo do teatro está próximo da poesia, do mito, do sonho, da ciência e do abstrato, permitindo con-verter tudo isto em metáforas que direta ou indiretamente possibilitam indagar, deci-frar e pensar o presente. Assim, podemos dizer que são próprios do território teatral a metáfora e as suas perspectivas de realidade; transversalidade imaginativa e a sua tradução cênica (Dubatti, 2007).

Saber ler teatro e indagar-se sobre as suas formas de produção são elementos fundamentais aos interessados na arte cênica.

coMo DeVe ser o TeaTro?

Para o autor e ator italiano Dario Fo (1998), o teatro deve ser vivo, ser capaz de se renovar, tanto na forma como no conteúdo. Dessa maneira, sua pro-

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posta está pautada num teatro de pesquisa, de investigação permanente. Deve-se investigar a linguagem teatral e temas que provoquem os indivíduos a pensar sobre suas relações com outros indivíduos. Nas suas ideias o teatro não pode representar o nosso tempo como algo mítico. Ou seja, como algo imutável, como simplificação de indivíduos ou fatos da realidade humana. Assim como o teatro não deve representar o tempo passado como se fosse um defunto. Para ele, o teatro estará morto se as pessoas estiverem mortas para a vida.

Teatro não precisa ser uma cópia da vida, não necessita ser uma reprodução fiel da realidade (mimético), mas deve ser uma experiência viva tanto para quem o assiste como para quem o faz.

Dario FoO italiano Dario Fo é ator, mímico e palhaço. Ele costuma fazer

esboços das tramas em pinturas e depois apresenta suas ideias no palco antes de colocá-las no papel. Seu trabalho está fundamentado na improvisação. Durante as improvisações de cena, costuma misturar dialetos italianos, sons onomatopaicos e palavras inventadas. Suas comédias nascem desse jogo de cena. Seus textos já foram traduzidos para mais de trinta idiomas. Para ampliar essas informações acesse:http://noticias.uol.com.br/licaodecasa/materias/ult1789u477.

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o TeaTro coMo experiência criaTiVa

(...) o sistema de ensino de Viola Spolin e sua visão de teatro. Além de identificar um caminho seguro para a realização de um teatro autêntico e significativo, revela uma reflexão em torno do fenômeno do teatro e abre perspec-tivas para novos caminhos de pesquisa. É uma reflexão sobre a prática, proposta em forma de problemas, a serem devolvidos ao palco e solucionados durante a atuação (Koudela, in Spolin, 1979, p. XXIV).

A autora americana Viola Spolin dedicou boa parte dos seus livros para demonstrar que a atuação e qualquer outro elemento da linguagem teatral po-dem ser ensinados e aprendidos desde que seja oferecido um espaço propício à expe-riência criativa.

É exatamente na possibilidade que cada indivíduo tem para expe-rienciar um processo e aprender a partir dele que Viola Spolin desenvolve o seu sistema de aprendizagem teatral, denominado Jogos Teatrais.

No trabalho proposto pela autora, podemos encontrar algumas al-ternativas para a construção de produtos artísticos teatrais. Nele, a liberdade de expressão pessoal e do grupo é desenvolvida juntamente com o aprendizado da linguagem teatral.

Nos seus procedimentos, o teatro não é o pretexto para o desenvol-vimento do intuitivo e do espontâneo. Os atores aprendem a lidar com os diver-sos elementos envolvidos na expressão teatral. Segundo Viola, o teatro é o objeto de estudo e exige expressividade dos que almejam desenvolvê-lo, consequentemente podendo transformar esses indivíduos em seres mais espontâneos e criativos na vida.

Para que isto possa ocorrer plenamente, Spolin estabelece o jogo como espaço de aprendizagem.

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fazer TeaTro a parTir De joGos TeaTrais

Para Viola Spolin, o jogo é, por si só, uma forma espontânea de gru-po, que possibilita a liberdade e o entrosamento, elementos fundamentais para a ex-periência teatral. Ela afirma que muitas habilidades são desenvolvidas durante o jogo. Ao mesmo tempo em que a pessoa está jogando, ela está se divertindo ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo pode oferecer.

Ela observa que, no instante em que o ator está jogando, ele está livre para envolver-se e relacionar-se com o mundo a sua volta, que sofre frequentes mutações, desenvolvendo uma atuação espontânea, libertando-se de estereótipos, de recursos técnicos que são, na realidade, descobertas de outros.

O sistema de jogos teatrais estabelece um campo lúdico de apren-dizagem, dentro do qual os atores são incentivados a solucionar problemas com inventividade e de forma original.

Desde que o jogador respeite as regras que foram acordadas coletiva-mente, ele tem liberdade pessoal para propor e inventar as mais inusitadas soluções. A liberdade pessoal, segundo Viola, leva o jogador a desejar experimentar e adquirir auto expressão, elemento importante também para o teatro.

A partir dos jogos teatrais, cada grupo é incentivado a construir o seu próprio processo, encontrar as suas saídas e soluções. Nas propostas de Viola, as atitudes vinculadas à aprovação e desaprovação estabelecidas normalmente num pro-cesso tradicional de teatro, e nas posturas autoritárias de alguns diretores em relação à atuação dos atores, devem ser substituídas pela percepção de que o teatro é uma ati-vidade de grupo que exige a energia criadora de todos os envolvidos. Ela afirma que pode ser mais recompensador para o diretor teatral se ele construir com os seus atores um campo de relações, em que ambos lutem por um insight pessoal. Assim sendo, o

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diretor teatral deixa de ser o detentor do conhecimento, da grande ideia para a cena, e passa a agir como orientador do processo.

Isto também evita exibicionismos teatrais desnecessários. Podemos encontrar, na sistematização de jogos teatrais, propostas que possibilitem pensar no teatro dentro da escola como expressão do coletivo, das investigações de um grupo, em que cada qual, com suas habilidades e competências artísticas, pode contribuir com o fazer teatral e a construção da encenação.

Diversos livros de Viola Spolin foram traduzidos no Brasil (vide bi-bliografia). Recentemente, foram lançados aqui Jogos teatrais na sala de aula (2007) e O fichário de Viola Spolin (2001). Estas publicações trazem diversos jogos e indicações capazes de estabelecer um ambiente propício para uma experiência criativa e inspira-dora, na qual o processo teatral e a criação de uma encenação tornam-se o caminho para a aprendizagem teatral.

ToDos poDeM aTuar no paLco

Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pes-soas são capazes de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter valor no palco (Spolin, 1979, p. 3).

Ao se pensar na criação de espetáculos, é preciso ter um grupo de pessoas com capacidade especial para atuar?

Para os que responderiam sim, poderíamos responder afirmando que são parte constituinte dos seres humanos a imaginação e a capacidade para atuar. Diversas áreas de estudos buscaram delinear a capacidade de atuação dos indivíduos.

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Por exemplo, a sociologia afirmará que atuamos todos os dias com os amigos, com a família, com os estranhos. Para a psicologia, o nosso eu está escondido por detrás de muitas máscaras que assumimos durante as mais diversas relações do dia a dia. Para essas áreas, atuar é o método pelo qual convivemos com nosso meio. Podería-mos também citar Jean Piaget. Através dos seus estudos sobre a evolução dos Jogos Simbólicos no desenvolvimento da criança, é possível encontrar muitos pontos que revelam a capacidade humana para criar símbolos, para a representação. Nas suas pesquisas encontramos a gênese para a atividade dramática.

Se a atuação é uma capacidade inerente a todos nós, então podemos sistematizar métodos que auxiliem os iniciantes nesta arte de comunicação e expres-são a desenvolver suas habilidades para o teatro. No teatro, atuar significa saber lidar com a nossa capacidade imaginativa, com as infinitas possibilidades do faz de conta.

Quais são os princípios Dos joGos TeaTrais?

Com base nos princípios dos jogos teatrais é possível a idealização de diversos experimentos artísticos que permitem conduzir o trabalho no sentido da criação de encenações. Procedimentos que fazem parte da sistematização de Jogos Teatrais, como a solução de problemas, o foco, a fisicalização, a estrutura dramática quem, o quê, onde e o processo de avaliação podem ser utilizados, com o intuito de propor aos atores diversas formas de investigação e compreensão dos elementos que envolvem a linguagem teatral.

Com os jogos teatrais não só será possível a constituição de grupos de teatro, detentores dos seus próprios processos de criação e investigação artística, como também de estabelecer uma maneira diferenciada de ver e fazer teatro (Spolin, 1979).

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O teatro dentro da escola deixa de ser uma atividade de poucos, para ser o lugar privilegiado do coletivo, capaz de propiciar um campo lúdico de criação e experimentação estética.

FisicalizaçãoÉ um recurso utilizado na sistematização de jogos teatrais. Trata-se

de usar o próprio corpo para dar vida aos objetos. É uma maneira de mostrar objetos imaginários. Com a fisicalização é possível tornar a realidade do palco visível. Ela permite aos atores utilizarem da ação física para dar forma a um objeto, para torná-lo concreto para a plateia.

o LuGar Do TeaTro na conTeMporaneiDaDe

Uma encenação teatral depende, em linhas gerais, da relação exis-tente entre quem atua e quem assiste. Mesmo que essa relação não seja rígida: nem sempre cabe aos atores a tarefa de só atuarem e à plateia apenas o papel de assistente. Ainda assim, o princípio da arte teatral estará fundamentado na relação de que ora alguém está no papel de atuante, ora alguém está na condição de espectador, e a es-truturação dessa relação pressupõe a delimitação de um espaço teatral.

A cada etapa da evolução social corresponde um determinado tipo de espaço teatral (...) tempos houve em que determinada produção teatral obedecia a regras precisas de implantação. Do Oriente ao Ocidente, da Grécia Antiga ao barroco, passando pelo Renascimento e culminando na atualidade, o

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espaço teatral assumiu as mais diferentes morfologias, mantendo, todavia, uma constante e inegável influência cultural que remonta às mais antigas civilizações (Solmer, 1999, p. 93). Na contemporaneidade as representações pouco ou nada dependem

da existência de locais específicos para a existência do teatro. Muitas vezes, locais que usualmente não seriam utilizados como teatro tornam-se espaços ricos de possibili-dades cênicas. Uma proposta cênica, por exemplo, pode surgir da relação dos atores com a substância de um determinado espaço. O cheiro, a sonoridade, as possibilida-des de deslocamento, cores e formas podem não só desencadear processos de investi-gação teatral, como se tornam temas para uma encenação.

Muitos grupos de teatro trabalham a partir das suas relações com o espaço e são essas experiências sensoriais com o lugar que os atores compartilham com o público.

Grupos como o Teatro Oficina (http://www.teatroficina.com.br), o Teatro da Vertigem (http://www.rabisco.com.br/25/vertigem.htm) e Grupo XIX de Teatro (http://www.grupoxixdeteatro.ato.br), todos em São Paulo, são exemplos de construção de propostas teatrais a partir das relações estabelecidas com o lugar escolhi-do para a apresentação da encenação e suas possibilidades de transformações cênicas. Assim, ruas, hospitais, edifícios abandonados passam a ser palco para os espetáculos.

o LuGar Do TeaTro na escoLa

Na escola é possível estabelecer as mesmas regras de trabalho de gru-pos que têm como investigação a transformação do lugar em espaços cênicos. Aliás, a

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ideia é não ter regras fechadas quando se trata de possibilidades para a criação cênica. Desde que seja um espaço propício para o que se pretende realizar e que ofereça se-gurança aos atores e ao público, as possibilidades espaciais podem ser inúmeras.

O lugar do processo teatral, na escola, pode ser configurado em for-ma de oficinas de teatro e romper com espaços delimitados pelas carteiras, passando a ocupar todo e qualquer espaço possível, dentro ou fora da escola.

O lugar do teatro na escola deve ser um espaço de encontro, onde seja possível trocar pensamentos, estabelecer outros níveis de relações humanas, de exposição pública de ideias, que possibilitam formalizar o convívio social. O lugar do teatro é um espaço de criação artística, mas também um espaço de convívio e troca.

Tendo em vista que o lugar do teatro não está circunscrito apenas em edifícios teatrais construídos para esse fim, qualquer espaço onde seja possível estabelecer ou partilhar uma experiência teatral, coletiva, de convivência entre atores e espectadores, como quadras de esporte, pátios, jardins, estacionamentos, a rua da escola ou a própria sala de aula, todos esses lugares tornam-se espaços cênicos pos-síveis para a representação. Isso possibilita ao grupo desvincular-se da ideia de que para existir teatro será necessário haver um palco à italiana. O desafio é transformar os espaços da escola em espaços de representação.

Ao propor transformar o espaço escolar em espaços de representação teatral, faz-se um convite explícito e cheio de significado para que todos os envolvi-dos com a escola possam enxergá-la por um outro ângulo. O ângulo da estranheza de perceber que corpo, mente e prazer não precisam estar por detrás das carteiras; podem coexistir, sem que isso cause qualquer ameaça às regras disciplinares da escola e à qualidade da aprendizagem dos alunos.

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uMa experiência TeaTraL

Certa vez, ao ocupar o espaço do refeitório de uma escola, depara-mo-nos com um cheiro inebriante de feijão refogado. Tomados por aquela sensação, surgiram diversas improvisações cujo tema era a relação das pessoas com a comida. Esta seção de jogos, no refeitório, trouxe-nos a ideia de criar diversas cenas envolven-do relações familiares durante o ato de comer. E desse conjunto de cenas estrutura-mos a nossa encenação. O público, durante a apresentação do espetáculo, sentava-se às mesas, junto com os personagens, e com eles jantava e, ao mesmo tempo, assistia aos conflitos da família Silva. A plateia era o público, mas também assumia o papel de parentes distantes que vieram visitar os Silvas em plena crise existencial daquele núcleo familiar.

A transformação e apropriação dos espaços de representação podem ocorrer a partir da elaboração de cenas denominadas como produtos preliminares ou produtos confluentes.

proDuTos TeaTrais preLiMinares e confLuenTes

Os produtos preliminares envolvem a apresentação de cenas res-tritas aos participantes das oficinas de teatro. Já os produtos confluentes tratam da elaboração mais apurada de cenas, contemplando a produção de figurinos, adereços, maquiagem, cenografia, sonoplastia e a apresentação em diversos espaços públicos da escola, para plateias de convidados ou casuais.

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É importante ressaltar que a existência de uma plateia, desde o iní-cio do processo teatral do grupo, ajuda a compreender o público como cúmplice das reflexões e investigações teatrais, ao invés de tê-lo como uma ameaça crítica ao de-sempenho artístico dos atores.

Como prevê a sistematização de jogos teatrais, ora parte do grupo é de atuantes, ocupando o espaço do jogo, ora esses mesmos atores trocam de papéis com outros jogadores e passam a ser espectadores, contribuindo para a leitura das cenas e para as discussões acerca das propostas dos jogadores e suas capacidades de comunicação teatral.

Presente no processo de trabalho, a plateia deixa de estar escondi-da atrás da quarta parede (princípios defendidos pelo teatro naturalista) para estar frente a frente com os atores, às vezes no mesmo espaço da cena, estabelecendo uma relação direta, um encontro importantíssimo para a avaliação das propostas e para a realização teatral.

a aTuação eM coro

Um recurso a ser investigado por um grupo de teatro na criação das suas encenações é a atuação em coro. Além de possibilitar a experimentação e o estudo de alguns elementos presentes no teatro épico, ela facilita encontrar saídas satisfatórias para a distribuição de papéis entre os atores participantes da encenação, sem com isso privilegiar um ou outro atuante, evitando justificativas pautadas no talento. Além de se tornar também um grande desafio para se pensar o teatro a partir das perspectivas do coletivo.

Já que os processos de experimentação teatral, dentro das escolas de

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educação básica, em geral, priorizam as relações de grupo, a atuação em coro não seria algo a ser investigado?

(...) a forma coral é particularmente interessante no teatro (dança e música) com crianças, jovens e amadores, na medida em que potencial-mente elimina a apropriação do personagem por um único ator, descaracterizan-do assim a perigosa noção de “talento”, que facilmente conduz a comportamentos competitivos e exibicionistas (Koudela, 1992, p. 85).

No livro Texto e jogo, de Ingrid Koudela (vide bibliografia), são apre-sentados diversos procedimentos que possibilitam a investigação da atuação em coro.

Esses processos de experimentações, assim como a apresentação da encenação (produto teatral), instauram novas necessidades de investigação e desejos de realização, por parte dos atores, originando o surgimento de outras pes-quisas teatrais e o nascimento de novas encenações. Assim, a cada ano, as Oficinas de Teatro são alimentadas e reorientadas, articulando o conhecimento com a rea-lidade e as expectativas teatrais dos alunos. Instaura-se um processo contínuo de experimentação e investigação coletiva, objetivando tornar as oficinas um espaço aberto não só para os alunos e o aprendizado artístico, mas a todos que desejarem compartilhar e contribuir com o fazer teatral.

o TexTo LiTerÁrio-DraMÁTico e o TexTo cênico

É possível trabalhar com duas concepções de texto: texto literário e texto cênico.

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O autor francês Pavis (1999) afirma que o termo texto cênico refere-se à relação de todos os sistemas significantes usados na representação e cujo arranjo e interação formam a encenação.

Segundo a autora Koudela (1996), o texto literário pode ser definido como um grupo de frases que, ao serem reunidas, servem para expressar um enuncia-do. Na literatura, o texto se refere às palavras escritas.

O texto literário-dramático, entendido como um conjunto de frases, organizado na sua essência por diálogos, pode ser chamado simplesmente de texto dramático, geralmente escrito pelos dramaturgos. Já os elementos envolvidos na ma-terialização cênica do texto são definidos como texto cênico. Assim, chamaremos de texto literário-dramático ou texto dramático o texto escrito pelo dramaturgo e que pode vir a ser encenado. O texto cênico é a encenação propriamente dita, envolvendo luz, som, figurinos, cenários e todos os outros elementos contidos num espetáculo.

O texto pode ser inserido no experimento teatral tendo como objeti-vo contrapor-se ao processo tradicional de leitura de mesa. Nesse processo de leitura (do texto dramático) enfatiza-se a teoria de que o texto deve ser estudado minuciosa-mente antes de ser transposto para a cena (texto cênico). Normalmente, os envolvidos na encenação (atores, diretor e produção) sentam-se em torno de uma mesa com a intenção de ler o texto escrito. Nesses ensaios de leitura de mesa, o diretor e os atores buscam analisar e compreender o conteúdo expresso no texto, estabelecendo alguns princípios para a interpretação e para a concepção estética do espetáculo. É comum também, nesse momento, ocorrerem leituras acompanhadas por uma contextualiza-ção histórica, social e política, com a função de abranger um estudo mais aprofun-dado sobre as ideias do autor e do texto. Isso pode acrescentar muito ao trabalho dos grupos. No entanto, pode tornar também o processo de representação mecanizado. A fala torna-se declamatória ao invés de ser natural, de ser a extensão do pensamento das personagens.

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Outros caminhos podem ser percorridos na apropriação do texto dramático por parte dos atores, bem como a compreensão dos seus conteúdos pode nascer durante a própria ação de jogar, da atividade lúdica. O texto pode ser desvelado gradativamente, sempre em ação, com o objetivo de permitir que os atores se impreg-nem sensorialmente dele.

aprenDizaGeM Dos GesTos e Das aTiTuDes

Por intermédio do jogo teatral, o texto cênico pode ser materializa-do a partir do aprendizado dos gestos e das atitudes. Ou seja, fragmentos de textos dramáticos são associados a diversos contextos sociais, confrontados com o cotidiano dos atores e com as suas diversas visões de mundo, configurando cenas que enfatizam os gestos e as atitudes como forma de expressão simbólica e a construção de quadros de cena.

O aprendizado dos gestos e das atitudes traz ao trabalho teatral um conceito central do teatro de Brecht. Para Brecht, não se deve compreender gesto como a simples ação de gesticular.

Não se trata de movimentos de mão para sublinhar ou comen-tar quaisquer passagens da peça, e sim de atitudes globais. (...) Todos os elementos de natureza emocional têm de ser exteriorizados, isto é, precisam ser desenvol-vidos em gestos. O ator tem de descobrir uma expressão exterior evidente para as emoções e sua personagem, ou então, uma ação que revele objetivamente os acontecimentos que se desenrolam no seu íntimo. A emoção deve manifestar-se no exterior, emancipar-se, para que seja possível tratá-la com grandeza (Brecht, 1979, p. 42).

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A investigação do texto, a partir da ideia dos gestos como expressão exterior, facilita o afastamento de uma abordagem psicologizante dos personagens, muitas vezes enfatizada nos ensaios de leitura de mesa. Os textos são transformados em modelos de ação para a investigação das relações dos homens com outros homens. Dessa forma, a construção dos gestos e das atitudes passa a ser o caminho para a análise, reflexão e compreensão do texto.

Do TexTo à cena e Da cena ao TexTo

Durante as oficinas de teatro, o texto pode ser trabalhado de duas formas: do texto à cena e da cena ao texto, ou seja, o texto como origem de cena e como resultante dela. Já da cena ao texto, é possível pensar na dramaturgia do espe-táculo a partir das improvisações realizadas pelos atores.

Ao pensar na perspectiva do texto à cena, aprofunda-se a relação do texto como fonte para a construção dos gestos e das atitudes. Por exemplo, após lerem o fragmento de um texto, silenciosa e individualmente, os atores podem ser or-ganizados em grupos e estabelecerem discussões acerca do conteúdo do texto. Podem buscar identificar uma atitude e um gesto que determinariam as relações expressas no texto e, ao mesmo tempo, sintetizariam o resultado das discussões e das descobertas sobre o que acabaram de ler. A apresentação dessas discussões seria demonstrada em forma de imagens congeladas, quadros de cena, atribuindo novos significados ao texto. Enquanto os atores apresentam seus quadros de cena, a plateia efetua a lei-tura da imagem, destacando o que vê, relacionando a imagem com outras situações do cotidiano. As leituras, efetuadas a partir da leitura dos gestos e das atitudes dos atores, buscam ampliar as interpretações sobre o texto. Assim, os quadros de cena

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instauram uma reflexão sobre o conteúdo apresentado no texto e auxiliam os atores a analisar a estrutura da cena. Cada grupo, ao apresentar o seu quadro de cena, busca dar uma forma estética, gestual para a imagem congelada. Diversos pontos de vista são apresentados para um mesmo texto. Isso permite discutir com o grupo de atores as diversas possibilidades que podem ser investigadas em um texto. A preocupação primeira é jogar com o texto e estabelecer uma intimidade com as palavras contidas nele. A investigação não se inicia com o estudo sistemático sobre o autor ou a sua época, mas com a descoberta das relações humanas existentes nele, a partir da atuação dos jogadores com o texto.

Na avaliação das cenas, pode-se verificar como o grupo soluciona o problema em sintetizar as discussões sobre a relação entre o texto literário e o jogo teatral, através do quadro de cena que é apresentado.

A ideia é que os quadros de cena não sejam reproduções teatrais literais do texto, mas a interpretação dele e as possibilidades de representá-lo teatralmente.

A continuidade desses jogos de apropriação do texto, a partir dos quadros de cena congelados, pode evoluir para quadros de cena em movimento: cenas.

O trabalho com os quadros de cena possibilita ao grupo de atores desenvolverem a capacidade de síntese, de ênfase aos gestos e atitudes. Há nesse tra-balho o esforço para passar o texto da superfície do papel para a tridimensionalidade do corpo do ator e para o espaço cênico.

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Procedimentos de trabalho que podem ser instaurados:I. Jogos de apropriação do texto:a. Leitura do texto literário por todos os participantes do grupo: an-

dando pela sala de aula, em voz alta, como se estivesse contando uma história.b. Destacar uma frase: contracenar dizendo a frase com diversas

intenções e entonações; encontrar um gesto e/ou uma atitude para a frase.c. Quadro de cena com legenda: um grupo cria um quadro de cena

congelado a partir do texto; o restante dos alunos procura, no texto, uma frase ou uma palavra que sirva de legenda para a imagem; um grupo apresenta o quadro de cena e os outros dizem as legendas em voz alta.

d. Apenas um em movimento: andando pela sala de aula, enquanto um aluno lê o texto já buscando um significado para ele (gestos e atitudes), os outros permanecem parados. Um outro aluno inicia a leitura, o que estava lendo congela, assim como todos os outros. Outro inicia a leitura e a estrutura se repete.

II. Jogos teatrais com texto:a. Criar uma cena a partir do texto, determinando onde, o que

e quem.b. Apresentar a cena: avaliar com a plateia, discutir quais gestos e

atitudes foram construídas.

ensaios De TeaTro

Registra-se a ideia de ensaio como forma de repetição de uma ação, várias vezes, a fim de exercitar-se ou tornar-se destro, treinado para realizar uma de-terminada atividade.

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Ensaios são considerados processos finais de uma montagem teatral, que culminam com a conjugação do trabalho do ator com todos os elementos cons-titutivos, técnicos ou artísticos, de uma montagem. Porém, os ensaios devem ir muito além da ação de ensaiar um texto, de repetir sequências de falas e marcações de cenas, até que todos possam atuar com destreza. Eles devem ser um espaço para avançar no processo de investigação, instaurado com os jogos teatrais.

Evitar a ideia de que ensaios como forma de se ter cenas acabadas, finalizadas e perfeitas garantem a ausência de qualquer erro no momento da apresen-tação pública. O erro é também fonte de aprendizagem e de novas descobertas.

o erro DesencaDeanDo inVesTiGações TeaTrais

Os erros que surgem durante o jogo trazem a possibilidade de novas investigações cênicas, permitindo ao ator esquematizar outras formas de se relacio-nar com o espaço da representação, outras formas de examinar com mais atenção determinadas soluções, outras formas de focalizar novos detalhes da cena, ou com os outros atores. Favorece elaborar, com mais precisão, os gestos e as atitudes das cenas.

Substituir a visão tradicional de ensaio (forma de repetir uma ação até se atingir a perfeição) por processos de investigação leva o grupo a um estado de atenção permanente com o momento da cena, com a situação presente, com o aqui-agora. Isto faz com que os atores transformem a ansiedade pela perfeição técnica em competência para solucionar problemas.

Essa visão de ensaio é muito próxima daquela que encontramos no Dicionário de teatro, de Patrice Pavis (1999). Para ele, em alemão (Probe) ou em es-panhol (ensayo) a palavra assume o caráter de tentativa, que traduz melhor a ideia de

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experimentação e de tateio antes da adoção da solução definitiva. Assim, a confiança dos atores na suas capacidades de atuar de forma livre e natural em cena é estabeleci-da pelas possibilidades que cada um tem para jogar com os papéis e de investigar, em conjunto com os outros atores, formas e processos de criação.

Como num treino esportivo, em que os jogadores adquirem com-petências e habilidades técnicas na própria ação de jogar o jogo, criando partidas amistosas e simulando jogadas, os atores, a partir dos jogos de improvisação, passam a assimilar itens para o arranjo cênico da encenação. Tais itens, como a marcação dos atores, a posição dos objetos cenográficos na cena e a assimilação do texto, surgem durante os ensaios.

O estabelecimento de uma partitura cênica (roteiros ou trajetórias) é uma outra possibilidade de organização do processo e estruturação da encenação. Pode-se pensar em diversas formas de construir, reconstruir e compartilhar as cenas com o público. Essas formas organizacionais tornam-se o roteiro, a partitura cênica a ser desenvolvida pelo grupo.

Tanto os ensaios individuais das partituras cênicas de cada cena, como os ensaios coletivos envolvendo a partitura total do espetáculo, são extrema-mentes importantes para que, aos poucos, cada ator encontre o seu lugar na constru-ção do projeto e os papéis de cada um sejam definidos dentro da encenação.

Partitura cênicaA inclusão do termo partitura no trabalho teatral, muito utilizado

na área musical, consiste em registrar (em palavras ou imagens) todas as ações presentes no texto cênico.

A partitura contém o roteiro da cena, a descrição dos gestos e das ati-tudes, o deslocamento em cena das personagens, a planta-baixa do cenário, etc.

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processo ou proDuTo TeaTraL, onDe DeVe esTar a priMazia Do TraBaLho?

Durante um período acreditou-se que o teatro na escola deveria en-fatizar mais o processo teatral, pois a intenção dos grupos não era um compromisso com a profissionalização artística.

Em geral, o objetivo estava pautado no prazer que a atividade tea-tral poderia oferecer. Concomitantemente, alguns educadores acreditavam que um processo teatral vinculado à expectativa de um produto reduziria a atividade teatral à simples tarefa de produção de espetáculos, favorecendo os atores mais habilidosos na arte da representação e estabelecendo a exclusão dos que não se sentiam capazes de atuar diante de uma plateia.

Hoje a polêmica entre a primazia do processo ou do produto teatral dentro de instituições escolares pode parecer uma discussão já ultrapassada, uma vez que diversos autores brasileiros e estrangeiros já discutiram esta questão e muitos deles defenderam a ideia de que o teatro na escola deve priorizar o processo de auto-expressão e criação dos alunos. Esses autores defendem o processo em contraposição à ideia de um teatro que tem a função apenas de animar festas comemorativas, tais como datas cívicas e festividades, sem nenhum entendimento do texto dramático, sem nenhuma instauração de um processo que priorize a criação dos alunos-atores ou a construção da linguagem teatral. Geralmente, o trabalho desenvolvido no es-paço escolar, por meio de ensaios que atendam às expectativas do professor, ou seja, tudo bem decorado e bem ensaiado, para que demonstre a capacidade do docente em desenvolver a memorização dos atores e suas habilidades de atuação. Nesse tipo de trabalho há um esforço concentrado por parte dos professores em escolher os mais desinibidos para decorar as falas do texto e, no momento da apresentação, não

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esquecerem nenhuma das instruções dadas. Porém, estudos nesta área avançaram nas discussões e declararam que não se trata de optar pela primazia do processo em detrimento do produto ou vice-versa, e sim pela escolha de métodos que favoreçam a construção do conhecimento teatral dentro de parâmetros educacionais e artísticos claros, participativos e criativos (Gama, 2000).

O teatro não precisa estar relegado a alguns momentos das atividades escolares, nem circunscrito no âmbito curricular da disciplina Arte, e muito menos apenas como estratégia de ensino de outras disciplinas da matriz curricular.

o TeaTro hoje na escoLa

A concepção moderna do ensino de Arte na escola propõe que o Teatro seja encarado como área específica do conhecimento humano e não como uma simples atividade que venha a preencher os momentos sociais e de lazer da escola. Dessa forma, processos e produtos irão se tornar não dicotomizados, gerando processos investigativos que possibilitarão aos alunos e aos professores uma compre-ensão maior dos elementos envolvidos na Arte Teatral.

A criação de grupos de teatro dentro das escolas deve fazer parte dos esforços coletivos de gestores escolares, professores e alunos, das propostas dos projetos pedagógicos, das políticas educacionais das secretarias, envolvendo formação de professores e ações didáticas.

A prática efetiva do teatro dentro das escolas virá a ser uma experi-ência criativa se propiciar aos envolvidos espaços de fantasias, de criação e de realiza-ção artística, assim como também uma relação dialógica profícua entre professores e alunos, entre as pessoas e o mundo.

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TeaTro e ciDaDania: Da aTuaLiDaDe Da arTe cênica

Aimar Labaki*

Os mesmos elementos do teatro, uma arte, à primeira vista, anacrônica, são os que a tornam imprescindível

nos dias atuais: o corpo, a palavra e seu caráter político.

[ * ] Dramaturgo, diretor, tradutor, ensaísta e consultor de artes cênicas, é autor das peças A boa, Vermouth, Pirata na linha, MotorBoy, entre outras. Curador dos Festivais de Teatro de Recife e São José dos Campos (2003/2004) e dos Eventos Especiais do v Festival internacional de Teatro de São Paulo (1995).

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Teatro é arte do corpo. Só acontece quando pelo menos dois corpos se comunicam no mesmo espaço físico e no mesmo momento – o de um ator e o de um espectador. No entanto, estamos na era da virtualidade, em que nem o corpo é valoriza-do, nem se movimenta com facilidade. Em que, por um lado, vivemos a ilusão de que o consumo passivo de imagens, sons e conteúdos substitui a contento a participação ativa na pólis e o contato direto com o Outro. E, por outro lado, a violência, as dificuldades financeiras, a criminalidade nos convidam a ficar em casa. Como pode uma arte que exige a presença física do espectador sobreviver numa época em que o corpo se esconde em casa ou na mente?

Teatro é arte da palavra. Consiste na construção de uma experiência sensorial a partir de uma palavra comum a artistas e espectadores (se o movimento for a base dessa construção, trata-se de dança). No entanto, vivemos a época da ima-gem. Há uma geração, perdemos o hábito de escrever à mão. Agora, já estamos nos desacostumando a ler. Para uma sociedade iletrada, falta pouco. Como pode uma arte fundada na palavra sobreviver numa época em que a imagem pretende substituir a articulação verbal?

Teatro é arte política, trata de conteúdos comuns a dois cidadãos – o ator e o espectador. Não que trate sempre de tema político, nem que tenha sempre algum conteúdo ideológico (até tem, mas não é disso que estamos falando). Mas seu conteúdo, para poder ser plenamente compreendido, tem que pertencer ao repertório comum a ator e espectador. Mesmo que trate de temas “privados”, se dará no contexto da cidade, da pólis, e é, portanto, literalmente, político.

Não existe teatro no campo. Ainda que tenha surgido lá, nas cha-madas bacanais, dedicadas ao deus Baco ou Dionisus, que marcavam o início da primavera, só quando chegou à cidade é que passou de rito a arte. E definitivamente politizou-se. Até porque, sua primeira floração e maturação, a grande Tragédia Gre-ga, marcava exatamente a passagem do terreno do Mito para o primado da Razão,

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que correspondia à organização de um pacto da Pólis (surgimento da Lei humana, da Justiça como mediadora do contraditório, etc.).

Ora, vivemos numa época despolitizada, em que os Estados Nacio-nais foram esvaziados de grande parte de suas funções e poderes, e que o processo de desideologização do debate público é brutal. Não deveria o teatro, nesse contexto, ser desinteressante para o cidadão moderno reduzido a consumidor?

Todas essas contradições nos levariam a pensar que não há lugar para o teatro hoje. No entanto, multiplicam-se montagens, cursos e atividades parateatrais, ainda que economicamente não sejam viáveis. A razão para tanto interesse talvez esteja exatamente nos mesmo motivos que nos levam a crê-lo anacrônico.

Sendo uma arte do corpo, o teatro é forma de resistência a uma virtu-alidade que impede o pleno desenvolvimento do ser humano. Sair de casa e compare-cer a um evento ao vivo já é em si uma forma de resistência. Se for para partilhar uma palavra que permite uma reflexão, ainda que indireta, sobre a vida em comunidade, mais ainda. E os jovens resistem sempre, nem que seja por desarranjo hormonal.

Sendo arte da palavra, teatro é instrumento de conhecimento. No momento em que a Educação vive uma grande crise de identidade e de valor, uma arte que permite a redescoberta das possibilidades da palavra exercitada em público, na reflexão dialógica, pode ser um instrumento estratégico para a construção de uma pedagogia de resistência.

Sendo uma arte política, o teatro acaba sendo o escoadouro natural para reflexões que não encontram espaço nas formas industriais de arte dramática – cinema, TV, etc. E nos encontramos, no Brasil, em pleno processo de construção de uma democracia e uma cidadania novas. Afinal, passaram-se poucos anos desde a posse de nosso primeiro presidente eleito, depois da ditadura. E, novamente, não estou me referindo apenas ao teatro político, que continua florescendo, quer seja em tradições que vêm dos anos 1960, como o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, ou o

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Teatro União e Olho Vivo, de César Vieira; quer seja por grupos jovens que retomam a prática de ler a realidade brasileira a partir de uma ótica marxista, como a Cia. do Latão, de Sérgio Carvalho e Márcio Marciano, ou o Folias d´Arte, de Marco Antonio Rodrigues e Reinaldo Maia. Não, refiro-me a toda e qualquer experiência teatral que permita ao espectador reconhecer-se como cidadão, participante de uma pólis. E que contribua para a reflexão coletiva que vimos empreendendo nesses últimos anos: Que país é esse? Que cidadãos podemos e queremos ser?

Reflexão que foi interrompida em 1964 e é retomada agora. Ain-da que, no resto do mundo, ideias como Estado-Nação e cidadania estejam sendo dinamitadas pela realidade da globalização, pela ideologia do neoliberalismo e pelo contexto de uma guerra que já está em curso, mas ainda não tem seus contornos defi-nidos. Guerra cuja face mais visível é a do terror contra os civis; mas cuja pior conse-quencia é o processo de flexibilização da estrutura democrática dos Estados Unidos e da Europa: leis de exceção, campos de concentração (Guantánamo e outros, secretos, em países como Paquistão e Afeganistão), assassinato de civis (no Iraque ou de um brasileiro num metrô de Londres), etc.

Neste contexto, o ideal iluminista de autonomia – política, econômi-ca, de pensamento –, universalidade e individualidade1 encontra no teatro um instru-mento precioso. A experiência do espectador de teatro é literalmente irreproduzível e insubstituível. Cada um é senhor de sua experiência e de sua consciência.

A mesma pessoa vendo o mesmo espetáculo em outro dia veria outro espetáculo. E não se trata de uma ilação a partir da leitura que Platão faz de Herá-clito – “não se pode entrar duas vezes na mesma corrente”2 . Mas de uma constatação lógica. Se a arte teatral tem por mínimo denominador comum a presença física no

[ 1 ] Para esse conceito de iluminismo e seus desdobramentos, vide Sérgio Paulo Rouanet, O mal-estar da modernidade. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.

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mesmo espaço físico e ao mesmo tempo de atores e espectadores, mesmo sua repro-dução por meio eletrônico já não é teatro. E outro encontro, dos mesmos atores e espectadores no mesmo espaço, mas em outro tempo, é outro espetáculo.

Portanto, esta experiência não é mediável. Que papel, neste contex-to, tem um crítico ou um educador? Primeiro, tem o papel de coparticipante. Ele é também formador dessa entidade abstrata, a plateia – que é mais que o conjunto de espectadores individuais, na mesma medida em que a massa, numa praça em dia de comício, é mais que a soma de cada cidadão ali presente.

Aqui, como em todo o processo de educação, a função do educador é propor as perguntas certas e tutelar o processo em que o aprendiz descobre as respos-tas por si. No caso do teatro, talvez o mais importante seja a conscientização de que existe aí uma linguagem específica, que pede uma apreensão específica.

No Brasil, isso é particularmente dificultado pelo fato de não termos, no currículo básico, a inclusão da dramaturgia entre as linguagens a serem abordadas em sala de aula. Quando a criança tem acesso a poemas, ela pode não compreender que se trata de uma articulação distinta da prosa, mas ela vivencia essa diferença e, quando, adolescente, comete seus versos ou encontra nas letras de música ou nos poemas românticos eco para as naturais turbulências amorosas dessa fase, consegue compreender que para usufruir daquele texto (ou se expressar por meio dele) precisa acessá-lo como uma linguagem distinta.

Ora, o brasileiro não lê o diálogo teatral – e a rubrica que o com-plementa – quando criança. A rigor, quase nunca. Quando lhe cai na mão uma peça, mesmo que seja um clássico de Nelson Rodrigues ou Jorge Andrade, literalmente não sabe lê-lo.

[ 2 ] Platão, Crátilo, 402 A (K 22 A 4). in Os pré-socráticos. Seleção de textos e supervisão de José Ca-valcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores.

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De forma análoga, o jovem ou adulto que vai ao teatro pela primeira vez não consegue instintivamente distinguir essa experiência da do cinema ou da te-levisão. Principalmente, se assiste a uma montagem realista que tente, dentro das suas possibilidades, mimetizar a realidade.

O surgimento do cinema, e, depois, da televisão, tirou do teatro par-te de suas funções. Primeiro, como entretenimento puro e simples. O poder que o cinema tem de criar, na sala escura, a ilusão de realidade, é inigualável. Depois, pelo mesmo motivo, como constata Denis Guénon,

duas grandes figuras fundamentais, ainda que imaginárias: o personagem (e) o espectador, (...) passaram para a esfera do cinema. É, então, ao cinema que devemos nos dirigir se quisermos ver personagens (e com eles nos identificarmos), ou se quisermos vivenciar a experiência de sermos sujeitos-espec-tadores da representação.3

Os atores, no teatro, já não pretendem “encarnar personagens”. É claro que podem existir personagens. Mas elas não são mais o principal motor da cena, nem são o que leva um espectador à sala. Ambos, ator e espectador se encon-tram para que o jogo do ator seja apresentado – quase como na apresentação de um esportista. Nunca teatro e esporte estiveram tão próximos.

Tampouco a estória, o entrecho, ocupa o lugar central no palco. Se você quiser usufruir de uma bela estória, vá ao cinema ou leia um livro. No teatro, podem existir, sim, estórias. Mas elas não se pretendem globalizantes, totalizantes, em suma, elas não estão no centro da experiência teatral.

Sobrou para o teatro o que lhe é essencial. Daí sua força atual. E o

[ 3 ] Denis Guénon. O teatro é necessário?. São Paulo: Perspectiva, 2004, p. 129.

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essencial é o jogo. Ou, mais precisamente, o jogo de atores diante de uma plateia. E quais são os elementos desse jogo? Personagem e estória, sim, por que não. Mas, também, e com mais vigor – o corpo, a ação e a poética.

O corpo do ator que já não se pretende transfigurado como perso-nagem e é um corpo que, mais que servir como suporte para uma representação, se apresenta como é, para, a partir da sua realidade corpórea, jogar com o espaço e com o olhar do espectador (não fosse toda relação ator-espectador, ainda que tangencial-mente, erótica).

A ação não é mais necessariamente a ação do drama – conceito herda-do dos gregos e maturado no chamado “teatro dramático”, do Renascimento ao início do século XX, baseado na “dialética subjetiva, que no diálogo se torna linguagem”4 . É a ação teatral, por alguns chamada “pós-dramática”, a articulação e diálogo de todos os elementos da cena – ator, espaço, som – e de fora da cena – espectador, seu corpo e subjetividade, o espaço fora do teatro.

Tal diálogo e articulação constituem uma poética, ou linguagem. E é essa linguagem cênica, que podemos traduzir simplesmente por “como se faz em cena”, que leva alguém ao teatro hoje.

Para Guenón, a maior prova disso é o grande sucesso do repertó-rio clássico. Para ele, o público vai aos clássicos não por conservadorismo, para ver o já visto. Mas, ao contrário, para ver aquilo que só pode ser visto se perso-nagens, história e ação dramática já forem conhecidos. Pois, se eu já conheço Hamlet, já sei que ele vai vingar a morte do pai e procurar uma verdade que é ao mesmo concreta e metafísica, e sei o encadeamento de ações que levará ao des-fecho de sua morte e à vitória de Fortimbrás, o que é que eu procuro ao ir numa

[ 4 ] Peter Szondi. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac e Naify, 2001, p. 34.

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montagem do Hamlet – ainda mais se ela não pretende criar a ilusão de que estou vendo as personagens e a história se desenrolar diante de meus olhos? Eu vou ver como esses elementos vão se articular ao vivo na minha frente. Em suma, eu vou ver teatro, o jogo do teatro!

Esse talvez o grande desafio do facilitador ou do pedagogo que dialo-ga com o jovem que vai ao teatro. É claro que as informações pertinentes ao texto, ao autor, à trama podem auxiliar. Mas o principal é politizar o olhar do jovem especta-dor. Não no sentido de levá-lo a fazer uma leitura reducionista da experiência teatral, interpretando-a como subproduto de uma ideologia, seja ela qual for. Mas levando-o a compreender o jogo teatral como a articulação entre corpos e ideias de cidadãos que vão jogar com elementos que são comuns a todos os que se encontram naquele espaço – sala de teatro ou não – naquele momento.

Por muitos motivos, que não cabe aqui dissecar, vivemos, produto-res culturais, artistas, críticos, jornalistas, espectadores, uma grande confusão. Não se consegue mais discernir o que é teatro profissional de teatro amador; comércio de entretenimento de criação artística. Atividades parateatrais, isto é, a utilização de técnicas e/ou linguagens teatrais com objetivos sociais (em penitenciárias ou insti-tuições de ressocialização), pedagógicos, médicos (Doutores da Alegria, teatro com portadores de deficiência cognitiva) reivindicam um espaço na pauta dos teatros em pé de igualdade com a produção dita artística.

A falta de espaços convenientes para a representação leva à prolife-ração de “espaços teatrais”, muitas vezes sem condições de apresentar dignamente o repertório escolhido. (Não confundir isso com o fim da primazia do teatro italiano, substituído pela ideia de espaço cênico; nem com experiências como a do Teatro da Vertigem, de Antônio Araújo, que ao ocupar espaços como uma igreja, uma peni-tenciária, um hospital ou, em recente projeto, o Rio Tietê, ressignifica esses lugares, teatralizando-os.)

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Todos têm direito de se manifestar como e onde quiserem. Mas o cida-dão-espectador tem o direito de saber a que tipo de manifestação está comparecendo.

Teatro amador é imprescindível para a saúde do teatro. Mas precisa permanecer amador para manter sua liberdade. O teatro chamado comercial vitamina a vida econômica da atividade, mas não pode se pretender aventura artística, se é apenas reprodução de formas, ou pior, reprodução da linguagem televisiva. O teatro dito experi-mental ou de pesquisa não pode competir no mercado com o teatro comercial, sob pena de estar vendendo gato por lebre.

Arte é risco. Entretenimento é certeza. Arte é processo. Entreteni-mento é produto. Não há nessa distinção juízo de valor. E é claro que a realidade é sempre matizada. Mas algum rigor é necessário em tempos de grande confusão.

A produção teatral do país reflete sua realidade social e política. As-sim como ainda temos relações escravagistas (disfarçadas ou não) convivendo com o sofisticado mundo virtual das finanças; nossos palcos abrigam estéticas e relações do século XIX, ao mesmo tempo que produzem realizações estéticas que dialogam de igual para igual com as criações contemporâneas de qualquer lugar do mundo.

Cabe-nos como cidadãos, artistas e educadores fazer um exercício de rigor, redefinindo radicalmente os termos de nossa equação. Para podermos, com mais propriedade, exercer a liberdade que nos foi legada pela modernidade.

O teatro é, hoje, veículo e metáfora desse processo coletivo de re-tomada do ideal iluminista e de construção de uma sociedade plural, democrática e moderna. No palco, na plateia, mas principalmente no diálogo pós-espetáculo, en-contramos uma oportunidade de retomar uma experiência pedagógica que engloba a todos nós, artistas, críticos, alunos, professores, em suma, cidadãos.

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Diretoria de Projetos EspeciaisGerente de Educação e CulturaDevanil Tozzi

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Diretoria Administrativa e FinanceiraChefe do Departamento EditorialBrigitte AubertPreparação de originais e revisão de textoLuiz Thomazi FilhoProjeto gráfico e editoração eletrônicaGlauber de Foggi

Desenhos: Vânia MignoneAcrílica sobre colagem com papel impresso, 2009

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Impressão e acabamentoGráfica Brasil

Tiragem10.000 exemplares