TAMBEMUMA FILOSOFIA DA HISTORIA PARA A FORMA

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Johann Gottfried Herder

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'"PARA A FORMA<;AODA HUMANIDADE

Uma contribui~ao a muitas contribui~5esdo seculo

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A CG)Q. \/0 /l 0 S- G -:::r -:r~ I -::S9-r"2rc, 1'3 iftf~ /AII "Zootj

Filosofia da hist6ria para a formas;:aoda humanidade

AUCH EINE PHILOSOPHIE DER GESCHICHTE

2UR BILDUNG DER MENSCHHEIT

Johann Gottfried HerderJose M.Justo

Quanto mais se clarifica a investiga~ao das epocasmais recuadas da hist6ria universal, das suas migra~6es,das suas linguas, costumes, inventos e tradi~6es*, tantomais plausivel se torna, a cada nova descoberta, a ideiade que a origem da globalidade do genero humano foiuma s6. Estamos cada vez mais perto de compreenderque ditoso clima era esse no qual urn unico casal deseres humanos, sob as mais suaves influencias daprovidencia criadora e assistido pelo inteiro favor dascircunstancias, pode come~ar a entran~ar 0 fio quedepois, por entre tamanho emaranhado, tao longe e taolongamente havia de se desenrolar. No qual, portanto,('ada primitivo acaso pode ser entendido como institutode uma providencia maternal destinado a promover 0desenvolvimento daquela fragil dupla semente daIOlalidade' do Renero humano, com toda a sabedoria eIlI'lltlt'lllda qllt' (. nossa obriga~ao reconhecer no criadordt' I:lll 1l11lm' (,spl'Cic e no olhar que lan~a sobre osIlIlIf'lIlolI ~lI(';) ('I('l'Ilidade.

Nillllnll ('la, pois, que esses primeiros passos dodt'Nrnvolvhll('lIlll Ic Isse'lIl 1:10 simples, tao delicados eIIIiHilvlll" "IIIII 1111110CIS qlle' 1I0Ss:10 dados ver em radasilll pI'!Ilhl\'n ••/l 1hI lIillllll'/a, () l-:r;)o ('ai a terra e parece1111111'('1';II 1'111\1111111lllllllil IW ,';{'('I'('lallle'nlt'- coisa que asIIII,rlllll do rllt"IlIl" 1111111111111'1111'pC I( !c'darll a prova r a priori

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Antigona

Neograf, Artes Gcificas, Lda.Iisboa

lAG - Artes Graficas, Lda.Iisboa

1500 exemplares

© Jose M.Justo e Edi~6es AntlgonaAntlgonaApartado 4192

1504 Lisboa CodexN.O 86 149/95

972-608-082-7

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contada pelo mais antigo dos livros a hist6ria dos maisremotos passos do desenvolvimento do genero humanopode, pois, parecer-nos tao breve e ap6crifa que sejamoslevados a envergonharmo-nos de com ela nos apre-sentarmos perante 0 espirito filos6fico do nosso seculoque odeia precisamente tudo 0 que possa haver d~maravilhoso e secreto, quando e por isso mesmo queela e verdadeira. Bastara, portanto, uma unica consi-dera~ao. Nao e verdade que mesmo 0 olhar de toupeiradeste seculo iluminadissimo acha necessario que tenhahavido uma maior dura~ao da vida, uma ac~ao lenta econtinuada da natureza, resumindo, uma idade her6icade um tempo de patriarcas, para que nos remotosantepassados de toda a posteridade se tenham podidoconstituir e implantar para sempre as primeiras formaspr6prias do genero humano Cfossem elas quais fossem)?Agora, mais nao fazemos que passar pelo mundo defugida. Quais sombras pairando sobre a terra! 0 bem eomal que connosco trazemos Ce pouco e 0 que connoscotrazemos, porque e apenas aqui que tudo adquirimos)quase sempre esta destinado a desaparecer connosco:os nossos anos, 0 decurso das nossas vidas, os mode/osque adoptamos, as tarefas que empreendemos, asimpressoes que tivemos, a soma das nossas ac~oessobre 0 mundo, tudo isso nao passa de um impotentesonho de uma noite em claro ... Palavreado! Tu os levasete. Se hoje, em vista da enorme acul1lula~ao de for~as ~de capacidades que enconrramos ja desenvolvidas anossa disposi~ao, em vista da r{lpida circula~ao dasenergias que nos percorrel1l e da sucess:l0 acelerada dasnossas emo~oes, das fases da nossa vida au dos pIanosque vamos arquitectando - sucess:l0 na qual cadaetapa se apressa a perseguir e a aniquilar a que aantecede, a semelhan~a do que acontece com as bolhasde urn Iiquido -, em vista ainda da rela~ao tantas vezescontradit6ria entre a for~a e a reflex:l0, entre a capacidadee a pondera~ao, entre as disposi~oes e a boa vontade,como e pr6prio de urn seculo de decadencia, se em vistade tudo isto parece ser de uma sabedoria calculada eintencional 0 facto de urn grande conjunto de forps

pueris serem moderadas e ao mesmo tempo garantidaspor uma dura~ao breve, impotente, do jogo da vida,entao, inversamente, nao tera sido imprescindivel aquelalonga vida dos patriarcas, aquela vida comparavel a dasarvores, calma e quase eterna, para que a humanidadese pudesse enraizar e estabelecer no que toea as suasprimeiras inclina~oes, aos seus primeiros costumes einstitui~oes?

Que inclina~oes foram essas? Que haviam elas deser? As mais naturais, as mais fortes, as mais simples!Servindo de eterno fundamento a forma~ao do homemao longo de todos os seculos. Sabedoria em vez deciencia, temor a Deus em vez de sabedoria, amor pater-nal, amor dos esposos, amor filial em vez de amanei-ramento e devassidao, ordena~ao da vida, poder senhoriale governa~ao divina de uma casa, imagem primordial deloda a ordena~ao e organiza~ao social... E experimentarem tudo isto 0 prazer simples, mas profundo, de se serhumano ... Como poderia tudo isto ter sido, nao direicriado, mas apenas constituido ou desenvolvido, senaopor intermedio daquele poder sereno e eterno quedilllana de urn modelo, da autoridade que se espalha avolta de uma serie de modelos? Segundo 0 nosso padraode vida, cada inven~ao ter-se-ia perdido de cern maneirasdiferentes ... Surgiria, como uma quimera, e como quimeralogo desapareceria ... Que criatura, na sua permanente1IH'llOridade, estaria em condi~oes de se apropriar dadcsco!>erta' Qual 0 inventor que, pronto a cair de novo11:11I\('lIoricklde, estaria em condi~oes de obrigar essanlallll,l a apropriar-se da sua inven~ao? E assim, os11111111'11I l,~1.11,1IS da hUl1lanidade desmanchar-se-iam noIlIlllllt'1I11l tI.l Mia llI'igell1... Ou entao, como teria sidopn/ll/lllvl1l'1"1' 11111.I;11I fr;igeis, tao pouco desenvolvidos11111111I1I1WI,HIIII'II'I., tivCSSl'JIl chegado a formar estes11l1lt'IIhl~'II/11,/11"111till '1".lis, Illesillo :lp6s l1lilenios de1111111111,1'111,II MtllIl'lll 1\l1I11'"l0SI' dl'sllIorona por simples1'lIlJa'l"t'dlllC'lIhlf NAil! [I, IlIlIa all'j.lria 1l'IIll'rosa que me,11l,'HIlIllqlllWdlllllC' hlHlj.CIIlIlI'I'nlllll' 11111tll'SM'S palriarcastill 1I11111dll,IIlllllll1lltllllliMlIlcllll A 11"'1VI Ilia 11111101sC' llllJ:ll'I'lllt'll11 de' 111\11"11/11AIVIII('/ll'1111'111111'/111'111,1111101IIllrcsla

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bela que e ja posteridade e eterniza~ao! E reparai! 0velho cedro continua a florir. Lan~ou bem longe asraizes em redor e com a seiva e a forp que par elascirculam da vida a jovem floresta. Onde quer que apatriarca tenha ido buscar as conhecimentos de quedispoe, as suas inclina~oes e costumes, par diminutosque sejam esses conhecimentos, sejam eles quais forem,a certo e que, pela mera contempla~ao serena, poderosa,duradoura, do seu exemplo divino, se constituiu e seenraizou ja a sua volta urn mundo, uma posteridadepara tais inclina~oes e costumes! Dais milenios naocontavam mais que duas gera~oes.

Mas, mesmo desviando a nosso olhar desses iniciosheroicos da fonna~ao do genera humano, perguntar-se-a- observando as meras minas da hist6ria do mundo efazendo sabre elas urn rapidissimo raciocinio a la Voltaire- que outros estados poderiamos nos imaginar propiciosao desencadeamento, a forma~ao e a sedimenta~ao dasprimeiras inclina~oes do cora~ao humano, que naofossem aqueles que de facto encontramos ja pastas emjogo nas tradi~oes da nossa mais antiga historia. A vidade pastoricia no mais belo clima do mundo em que anatureza esta sempre pronta a prevenir au a satisfazer asmais simples necessidades, a vida nomada, mas calma,das cabanas dos patriarcas, com tudo a que da e tudo aque subtrai a vista, 0 conjunto de necessidades, deocupa~oes e de prazeres dos hOl11ensdesse tempo, aolado de tudo aquilo que, fixado na historia au numafabula, vinha orientar essas OCUlxl~'()ese prazeres ... Pense--se tudo isto debaixo da luz natural, da luz viva que lheera propria ... Que jardim divino n.l0 era esse, escolhidopara a educa~ao das primeiras, das mais delicadas plantasda especie humana! Veja-se este homem, pleno da for~ae do sentimento de Deus, mas sentindo tudo de urnmodo tao intimo e sereno! Como a seiva que anima 0

tronco da arvore, como a instinto que, repartido de milmaneiras pelas criaturas, cada uma delas singularmente

anima, com tanto poder como no homem so pode agireste impulso natural, silencioso e sao, que nele seconcentra! Em redor 0 mundo inteiro, pleno das gra~asde Deus: uma imensa e valorosa familia do pai de todosnos constituindo 0 espectaculo quotidiano desse homem!Preso a esse mundo pelas suas necessidades e pelarespectiva satisfa~ao, defrontando-o esforpdamente como seu trabalho, com os seus cuidados, com as suasdefesas mais apropriadas .... Que forma de pensamentonao havia de se constituir, que cora~ao nao teria que seformar debaixo desse ceu, em meio de urn tal ambientede vitalidade! Enorme e limpido, como a natureza! Comoela sereno e decidido em todos os seus passos! Nape;spectiva de uma longa vida, experimentando do modomais unitario 0 prazer de ser 0 que era, aceitando adivisao do dia estabelecida pelo repouso e pel a fadiga,pel a necessidade de aprender e de fixar, vede, assim eraurn patriarca por si so ... 0 que, por si s6? Onde poderiaele experimentar de modo mais intimo a ben~ao divinaque atravessava toda a natureza do que na imagem delima humanidade que, desenvolvendo-se progres-sivamente, prolongava 0 seu sentir? Na mulher, para elecriada, no filho, imagem a sua semelhante, na especiepor Deus preferida que em seu redor e depois deledevia povoar a terra. A ben~ao de Deus era pais aben~ao que ele proprio distribuia: seus eram os que elegovernava, seus aqueles que educava, seus as filhos eos filhos dos filhos, ate a terceira au a quarta gera~ao,que a sua volta se juntavam para por ele seremconduzidos dentro da religiao e da justi~a, da ordem eda felicidade ... E este 0 ideal - que nada tern de artifi-cioso - de urn tempo de patriarcas em que tudo agiadentro da natureza; fora deste ideal nao e pensavel umafinalidade da vida, nao e concebivel urn momento deconforto ou de aplica~ao das energias ... Meu Deus! Queestado podia ser mais apropriado a forma~':'10de lI1I1:1natureza nas suas mais simples, mais l1l'ccss:irias,1I1aisagradaveis inclina~oes? Sl'r hllmanll, 11I1I1Il'III,IlIlIlIwr, p;li,mae, mho, herddrll, saCCrdll((',j.lllVCrII;lIII('(' p;llriarca tit' lllllalinhagem ... Assim t'lllIS(i1l1it!op.lnt ('1111,11IIOS1I1ik'IIillS

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que se haviam de seguir! E assim - sem se confundircom 0 reino de mil anos nem com as elocubra~oes dospoetas - 0 territ6rio do patriarca, a tenda que ai ergueu,continuara a ser para todo 0 sempre a idade de ouro dainfancia da humanidade.

Que desse mundo de primitivas inclina~oes faziamtambem parte certos estados de vida que, por umaenganosa visao ditada pelo nosso tempo, somos frequen-temente levados a imaginar terem sido demasiado estra-nhos e pavorosos, e coisa que poderia mostrar-se comduas ou tres indu~oes. Por exemplo, concebeu-se urndespotismo oriental a partir das manifesta~oes maisexageradas e mais violentas de imperios, quase sempreem decadencia, que s6 no derradeiro pavor perante aaniquila~ao eminente dele se socorre;am (mostrandoprecisamente com tais medidas desp6ticas 0 seu pavorperante a aniquila~ao). Ora como, segundo os nossosconceitos (e talvez mesmo sentimentos) europeus, naose pode falar em coisa mais horrenda do que despotismo,consolamo-nos com este gesto de 0 afastar de n6s e deo situar em circunstancias em que certamente nao era acoisa horrivel que, com base no nosso actual estado,nele imaginamos*. Sera posslvel que debaixo da tendado patriarca, onde reinavam exclusivamente 0 respeito,o exemplo, a autoridade, fosse 0 medo - na estreitezado vocabulario da nossa poIitica - a mola propulsorada governa~ao ...? Oh homem, nao te deixes enganarpela palavra do fil6sofo profissional** e trata antes dever que respeito, que temor era aquele! Nao e verda deque na vida de cada homem ha uma idade em que tudose aprende pela inclina~ao, pela forma~ao orientada pelaautoridade, e em que nada se adquire pelo frio e seco

• Boulanger, Du despotisme oriental; Voltaire, Philosophie de l'hi~-toire, De la Tolerance, etc.; Helvetius, De l'Esprit, Disc. III, etc., ete.

•• A multidao de seguidores de Montesquieu e imitatorumsewum p!ecus).

('xcrcicio da razao? Uma idade em que as especula~oes,;IS ref1exoes sobre 0 bern, a verdade e 0 belo nao('onseguem penetrar os nossos ouvidos, reter a nos~a;ltcn~aO, acordar 0 nosso espirito, e em que, peIo contra-rio estamoS inteiramente receptivos aquilo a que eco~tume chamar preconceitos e impressoes inculcados edespertadas pela educa~ao? Ve bem! Como SaDfortes eprofundos, como SaD necessarios e impereciveis essespreconceitos assimiIados sem barbara celarent nemdcmonstra~oes de direito natural! Pilares que suportamtudo 0 que sobre eIes vier a ser depois construldo!Melhor ainda, germes a partir dos quais se desenvolvetuclo 0 que e posterior e mais fraco - por glorioso q~eseja 0 nome que se the atribua -, ja que _cad.a un: naoraciocina senao segundo as suas impressoes IOtenOres.Esses preconceitos sao entao os tra~os mais s6liclos,perenes, quase divinos, que encantam ou destroem todaa nossa vida e com os quais, se nos abandonam, tudonos abandona ...

Ve agora como 0 que e necessidade incontornaveIna infancia de cada individuo nao 0 e certamentemenos na infancia da globalidade do genero humano.Ve como aquilo a que, nesse tenro germinar da huma-niclade, chamas despotismo - e que de facto mai~ naoera que autoridade paterna aplicada na governa~ao dolar e cia descendencia - conseguia realizar coisas a quehoje, equipado com a frigid a filosofia do teu seculo, teyes obrigado a renunciar! Como conseguia, por certonao demonstrar, mas antes fixar em formas eternas 0

que era justo e born, ou pelo menos 0 que parecia s~-Io!E como sabia, adicionando a justip e ao bem urn bnlhode coisa divina, de fruto do amor paternal, envolvendo--os no doce tegumento dos habit os primitivos, juntando--Ihes toda a vivacidade das ideias da infancia que eramas do seu mundo e todo 0 deleite das primeiras experien-cias da humanidade, conferir-lhes 0 poder magico deuma recorda~ao, de urn memoraveI sinal, ao qual na(~a,nada neste mundo se pode compararl De um modo taonecessario tao born, tao (ItiI a globa liclade cia t'spl'Cic,Ian~avam-~e os funclamenlOs qut' pOI' oulra via mlo

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reriam podido ser lanc;ados, nao teriam sido lanc;adoscom a mesma facilidade e profundidade ... e quepermanecem lanc;ados! Seculos e seculos foram depoisedificando sobre esses fundamentos, a sucessaotempestuosa das eras soterrou-os - como as areias dodeserto soterraram a base das piramides -, sem contudoconseguir abala-Ios ... Permanecem lanc;ados! E bemlanc;ados, pois que tudo sobre eles repousa.

E tu, Oriente, que es solo de Deus, foste justamenteescolhido para tal fim! A delicada sensibilidade propriadesses territorios e a ligeireza de uma imaginac;ao quevoa e que tanto agrado experimenta em tudo revestir deum brilho divino, 0 respeitoso temor face a tudo 0 que epoder, autoridade, sabedoria, forc;a, marca de Deus, e aomesmo tempo aquela entrega pueril que neles muitonaturalmente - mas de modo incompreensfvel paranos, europeus - vem misturar-se ao sentimento derespeito, 0 estado de vida do pastoreio; despreocupado,disperso, pacifico, identico afinal ao do rebanho, e quenada mais pretende do que ser vivido suavemente e semfadiga sobre uma planfcie abenc;oada por Deus, tudoisto, recebendo, umas vezes mais, outras menos, 0 apoiodas circunstancias, nao podia por cerro deixar de vir aoferecer mais tarde importantes materiais ao despotismodos conquistadores, e tao importantes que talvez 0

despotismo se eternize de facto no Oriente, porque atehoje nunca houve nenhuma governac;ao despotic aoriental que tenha sido derrubada por forc;as exteriores,estrangeiras, e sempre aconteceu que, quando taisgovernac;6es cafram, foi debaixo do seu proprio peso,precisamente porque nada se Ihes opusera e tinhampodido desenvolver-se desmesuradamente. E certo queesse despotismo produziu muitas vezes os mais terrfveisdeitos e, como dira 0 filosofo, 0 mais terrfvel de todos e() beto de nenhum oriental, enquanto oriental, ter aindalima noc;ao aprofundada de uma constituic;ao pollticamclhor, verdadeiramente humana ... Mas, mesmo admi-lindo tudo isso, que merece ser examinado posterior-IIlt'nlc, nao sera verdade que, nos primordios da1l\lIl1anidacle,sob a equilibrada governac;ao paternal, era

Im~cisamente 0 oriental, possuidor daquele seu delicadoscntido de crianc;a, quem tinha as melhores condiC;6espara aprender com felicidade e obediencia? Tudo erasaboreadocomo se de leite materno ou de um nectarlermentado pelo pai se tratasse! Tudo era guardado numcorac;ao filial e fechado com 0 selo da autoridade divina.() espfrito humano recebeu as primeiras formas desabedoria e de virtu de com uma simplicidade, umaintensidade e uma elevac;ao que hoje - para dizer demodo abreviado -, no nosso mundo europeu, filosoficoc frio, nao tem absolutamente nenhum termo decomparac;ao. E e precisamente porque ja nao somoscapazes nem de compreender essas formas, nem deas sentir (para nao falar da nossa incapacidade de assaborear), que as ridicularizamos, as negamos ouas interpretamos mal. E com isso fornecemos a melhorclas provas!

Nao haja duvida de que a religiao era parte integrantedesse est ado de coisas, ou melhor ainda, a religiao era"0 elemento em que tudo isso vivia e se movia». Mesmoque desviemos 0 nosso olhar daquela marca divinasensivelmente impressa pela criac;ao e pelos primeiroscuidados dispensados ao genero humano (tao necessariosa especie como a cada crianc;a sao necessarios os cuidadosdos pais logo apos 0 nascimento), e uma vez que 0

anciao, 0 pai, 0 rei representava Deus de um modo taonatural, e que, com a mesma naturalidade, a obedienciait vontade paterna, a fidelidade aos antigos habitos e asubmissao respeitosa ao minimo sinal do superior -que consigo transportava a memoria dos tempos maisantigos· - se misturam com uma especie de sentimentoreligioso infantil, pergunto entao se sera obrigatorio quetenham sido (como, cheios de certeza, somos levadosafantasiar pelo espirito e a sensibilidade do nosso tempo··)autenticos impostores, verdadeiros criminosos a imp ortais ideias, a inventa-Ias astuciosamente, a usa-Ias desen-freadamente em proveito proprio. E bem possivel que,

• Montesquieu, Esprit des lois, 24, 25.•• Voltaire, Philosophie de l'hls(olre; I !l'lvt'1 illS, BOlll:1I1~t'r, t'IC.

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p;m~ 0 nosso continente fiIosofante, para a nossa epocaclIltlvada, para a nossa constitui~ao politica de livrespensadores, urn tal sentimento religioso, se se tornasseo elemento dentro do qual se movimentassem as nossasac~oes, fosse, no plano externo tanto quanto no interno,extrema mente desonroso e prejudicial (creio bem que,por infelicidade nossa, e mais que isso: e inteiramenteimpossivel) Admitamos, pois, que os mensageiros deDeus, se hoje nos aparecessem, seriam impostores ecriminosos ... Mas sera que nao vemos que para 0 espiritodaquele tempo, daquele lugar, daquele estadio do generohumann, tudo era com pI eta mente diferente? Basta verque, em toda a parte e com toda a naturalidade, a maisantiga filosofia e a mais antiga forma de governa~ao teveque ser teologia! 0 homem come~a por se espantar comtodas as coisas para s6 depois chegar de facto a ve-Ias ...56 por meio do maravilhamento chega depois a ideiac1arificada do verdadeiro e do belo: 56 por meio dasubmissao e da obediencia consegue chegar a possuirpela primeira vez a no~ao do bem. E decerto que 0

mesmo se passa com 0 genero humano na sua globa-lidade.]a alguma vez fizeste uso da gramatica fiIos6ficapara ensinar uma crianp a falar? Ou da teoria abstractado movimento para a ensinar a andar? E usaste algumademonstra~ao da teoria da moral para the poderes dar acompreender urn qualquer dever, os mais faceis e osmais diflceis? Foi-te necessario usar de tais coisas, sentiste--te no direito de as usar, pudeste usa-l as? Deus sejalouvado precisamente por ninguem ter esse direito eninguem poder fazer tal coisa! Quereras censurar a divinacria~ao a natureza delicada desta sua criatura, ignorantee por isso mesmo curiosa de tuclo 0 que a rodeiacreclula e por isso clesperta para toclas as impressoes:confiante e d6cil e portanto sempre disposta a serconduzida na direc~ao do bern, sempre pronta a rudocaptar com imagina~ao, espanto e admira~ao, e,consequentemente, a apropriar-se de maneira cleverass6licla e maravilhosa de todas as coisas, da fe, do amor,da esperanp, que «no seu tenro cora~ao clesempenhamo papel de sementes (micas de toclos os conhecimentos,

de toclas as inc1ina~oes e cle toda a felicidade». Ou sera'Iue nao consegues ver em cada urn dos teus erros -,'omo lhes chamas - 0 velculo, 0 unico velculo de todot) bem? Que loucura a tua ... Quereres marcar essa ignoran-t'ia que e toda ela admira~ao, essa imagina~ao que erespeito, esse entusiasmo que e sentido infantil dasl'oisas, com 0 ferro ignominioso clas mais negras ediab6licas imagens clo teu seculo, com as marcas daIllentira e da supersti~ao, da estupidez e da servidao, einventares urn exercito de diab6licos sacerdotes, detiranicos fantasmas que s6 existem no teu espirito! E queloucura mil vezes maior nao seria a tua se generosamentepretenclesses conceder a uma crian~a, de acorclo com 0

rcfinado gosto do teu tempo, 0 teu cleismo fiIos6fico, aIlia virtude e a tua honra esteticas, 0 teu amor geralpelos povos, todo ele carregado de uma tolerancia quet~opressao, explora~ao e iluminismo! A uma crian~a? Ah!(':s tu a crian~a, crian~a ma e estupicla como nenhuma(llltfa! Querias roubar-Ihe as suas melhores inclina~oes,a solidez e a espiritualidade cia sua natureza! Queriastransforma-Ia, se 0 teu insensato plano triunfasse, nal'oisa mais insuportavel deste mundo: urn anciao de tresanos cle idade!

o nos so seculo gravou sobre a testa, com agua--forte, uma palavra: Filosofia! Uma palavra que pareceexercer uma for~a profunda no interior cia cabe~a ...Precisei po is de responder ao olhar de relance que epr6prio dessa eritiea filosofiea exereida sobre os temposmais antigos - e do qual andam hoje cheias, como esabido, todas as Filosofias da Hist6ria e Hist6rias daFilosofia - com urn outro olhar de relance (por muitoque tal me contrarie e repugne), sem que me sintaobrigaclo a ocupar-me das eonsequeneias de um edo outro. Vai, leitor meu, avan~a e sente, aincla hoje,milenios depois, como se conservou pura a naturezaoriental, deixa que a hist6ria dos mais remotos temposIe ofere~a essa natureza como coisa viva, e «encontradsinclina(;oes que s6 podiam ter-se constituiclo //{./(/lle/as

/Iaragens, daquela maneira, clcslinadas a scrvir osRrandes designios c/O p,e//ero "///IUII/(} H'SI'/H/r!OS /11'/0

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providencia ...» Que enorme retabulo, se eu conseguissemostrar-to tal como era !

Continuou depois a providencia a desenrolar 0 fiodo desenvolvimento: do Eufrates, do Oxo, do Ganges,ate ao Nilo e ate as costas fenicias ... Passos enormes!

E quase sempre urn sentimento de respeito 0 queme deixa 0 antigo Egipto, cada vez que interrompo[Is minhas observa~6es sobre 0 pape! que desem-penhou na hist6ria do genero humano. Essa terraem que havia de se ir formando nas:suas inclina~6es enos seus conhecimentos uma parte da adolescenciada humanidade, tal como no Oriente se tinha formadoa respectiva infancia! Do mesmo modo quase imper-ceptivel, com a mesma facilidade com que ai seproduzira a genese, produzia-se agora aqui a meta-morfose.

No Egipto nao havia pastagens nem pastoreio.Perdeu-se pois 0 espirito patriarcal que reinava nastendas dos primitivos n6madas. Mas havia, quase com amesma facilidade, a possibilidade de uma riquissimavida agricola, proporcionada pelas lamas do Nilo efertilizada pe!as suas aguas. E assim se transformou 0

mundo pastoril - e com ele os respectivos costumes,inclina~()es e conhecimentos - num territ6rio de agricul-tores. Extinguiu-se 0 nomadismo e surgiram as habita~6esfixas e a propriedacle fundiaria. Foi preciso medir asterras, determinar 0 que pertencia a cacla urn, protegeros bens de cada um. Passou portanto a ser tambempossivel encontrar cada urn junto dos bens que Ihepertenciam. E passou ent;lo a haver seguranp doterrit6rio, administra\ao da illsti~a, ordem, policia, tudoo que nunca teria sido possivel na vida n6mada doOriente. Surgiu assim um novo mundo. Constituiu-se deseguida uma industria, coisa que a vida aben~oada doocioso habitante das tendas, desse eterno estrangeiroem peregrina~ao pelo mundo, nao tinha podido conhecer.Inventaram-se as artes, das quais os pastores nao tinham

lido nem a necessidade nem 0 desejo. E, como nao1)()(Iia deixar de ser, dado 0 espirito de exactidao dost'gipcios e a sua laboriosa entrega a agricultura, tais artes.Ilingiram urn grau muito elevado de perfei~ao mecanica.Tlido era atravessado pelo sentido do zelo mais diligente,(Ia seguranp e da ordem. Todos tomavam parte nalI'ia~ao das leis e cada urn estava obrigado a obedecer-liles, por necessidade e por prazer. E assim, 0 homem

l'ncontrava-se limitado por essa legisla~ao: as inclina~6es'1l1Cnoutro tempo tinham sido simplesmente as de urnpai, de urn filho, de urn pastor, de urn patriarca, tornavam-sc agora inclina~6es de cidadaos, de habitantes de uma

IIIcsma aldeia ou de uma mesma cidade. A crian~atillham-Ihe sido retiradas as vestes da inocencia. Agoral'ra ja urn rapaz que se sentava na carteira da escola para;lprender a ordem, a aplica~ao ao trabalho e a moral dos('idadaos.

Urn rigoroso confronto do espirito oriental com 0

I'spirito egipcio deveria mostrar que nao e urn mero jogoesta analogia que estabele~o com a sequencia dasdiferentes idades da vida do individuo. E evidente que,IH >1' muito que esta segunda idade tivesse em comumcom a anterior, ja se nao apresentava sob aquela tintagemcelestial que caracterizava a primeira e que estava agorasllbstituida por uma atitude terrena e pe!a colora~aopr{>pria dos campos cultivados. Os conhecimentos dosegipcios nao tinham mais aquele caracter de oraculosIlaternais da divindade, antes revestiam ja a forma dekis, de regras politicas para proporcionar a seguran~a, e(l que daque!es ainda sobrava tornara-se apenas imagemsagrada pintada sobre as tabuas, para nao desaparecerpm completo e para que 0 jovem viesse deter-se peranteda, alimentar com ela 0 seu desenvolvimento e dela;Iprender a sabedoria. As inclina~6es dos egipcios ja naolillham aquela do~ura infantil do Oriente: tinha enfra-'1l1ecido 0 sentimento da familia, transformalldo-se elllprcocupa~ao com a familia, com a condil;:)O social ecom 0 talento artislic'o, qlle -- ;) '~('IIH'lIl;1ll~'ado '1l1eacontecia com os (e'Telios :l~ricol:l.~I' COlli :l h:lhi(a~';lll- era transmilidll porll\'nlll~':l jlllll:lllll'lltl' 11l11l:1I', lI1di~';IO

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social. A tenda ociosa de outros tempos, em que 0homem dominava, tinha-se transformado agora numacasa de trabalho, na qual a mulher passara a ser tambemuma personalidade e onde 0 patriarca, tornado artista, iaganhando a sua vida. A liberdade dos prados de Deus,repletos de rebanhos, tinha sido substituida pOI' umimenso campo cultivado, ponteado pOI' aldeias e cidades.A crianp que se alimentava de leite e mel era agora umrapazito que recebia bolos como recompensa pelocumprimento das suas obriga~oes ... E certo que tudo eraanimado pOI' uma nova virtude, a que poderiamos chamaI'a entrega, a aplica~ao ao trabalho, a lealdade c1vicaegipcia, mas ja nao era 0 modo de sentiI' dos orientais.Veja-se como, ainda hoje, repugnam ao oriental aagricultura, a vida da cidade, a escravidao das oficinas!o pouco que se iniciou em todas essas praticas ao longode milenios! Continua a viver e a agir com a liberdade deum animal dos campos. Pelo contrario, veja-se como eradetestavel e repugnante aos olhos do egipcio a vida dopastor e tudo 0 que dela faz parte! Tal como depois 0grego, mais refinado, se elevou tambem acima do egipcioque the parecia um animal de carga, Era apenas arepugnancia do rapazito pelas fraldas da crianp, 06diodo adolescente pela escola que aprisiona 0 rapaz. Masno seu conjunto san tres momentos sobrepostos numainseparavel sequencia. 0 egipcio nao teria sido egipciosem 0 ensino ministrado it crian~a no Oriente e 0 gregonao teria chegado a ser grego sem a aplica~ao escolardos egipcios, A repugnancia dos que vem depois s6mostra que houvc dcsenvolvimento, progressao, que seforam subindo os dq~ralls da escada!

Espantosos, na sua silllplicidade, os caminhos daprovidencia! Caploll e educoll a nian\'a pela religiao epara proporcionar ao rap:lz 0 desellvolvimento mais naoprecisou do que atribllir-lIw lK'ccssidades e dar-Ihe abenfazeja obriga~ao escolar. () Fgipto nao dispunha depastagens; consequentemenll' os Iwbitantes tinham queaprender a agricultura. E a providencia facilitou-Iheamplamente essa dificil aprendizagem dando-l he afertilidade do Nilo. 0 Egipto nao dispunha de madeiras;

"1;1 preciso aprender a construir com pedra. E naoI.lIlilvam nem as forma~oes rochosas de onde a retirar11<'111a comodidade das aguas do Nilo para a transportar.Ii veja-se a que alturas se elevou a arte de trabalhar aI)('d ra! E como promoveu 0 desenvolvimento de outras,Illes' 0 Nilo transbordava; eram precisas medi~oes,.II'svios do curso das aguas, represas, canais, cidades,.lIdl'ias ... De quantas maneiras estavam aqueles homensI'I<'SOS <) terra! Mas quantas solu~oes nao the of ere cia1.IIIIhi'm a pr6pria terra? Vma terra que, quando olho1',11':10 mapa, me parece um autentico quadro cheio deIi}:ur:IS em cada uma das quais todos os sentidosf 1\IIilicavam. Tao original eram este territ6rio e os seus1'1"du!os que s6 podia tel' nascido ai uma particular","I'ecic humana! Muito aprendeu ai 0 entendimento1IIIIIIallo e talvez nao haja nenhuma outra regiao do1I11111doem que essa aprendizagem tenha sido tao1II.IIli!I'Slalllente uma cultura enraizada no solo. A China1"I'n'sl'l1la lima c6pia do que ai se passou: compare-se eI ,,"duil-se,

'I'ilillhi'ln aqui volta a ser loucura querer isolar das, 1IlIIIISI:iIlCi:ISde lugar e de tempo, e daquela idade1III'I'IIildo cspirito humano, uma (mica virtu de egipcia e,1\'.111.1Lt cOIll 0 instrumento de medida pr6prio de um"'llql(1 di""ren!e! Se e verdade que, como disse atras, jaI I', ~:nW IS Sl' enganavam tao flagrante mente sobre os"gql( illS I' Sl' liS orienta is detestam os egicios, parece-me,p I<' ,) IIllSSlI prillleiro pensamento deveria ser 0 de os"1'1 .q 1('1I;ISIIII sell lugar pr6prio, porque doutro modo,'••dlll'II"I" 11.11I0ssa perspectiva de europeus, nao, '11I'II'~\Iill'IIII',',1'1'1'Inais do que lima caricatura totalmente.1.'1." lll,ldll I 1.11',',('111'1Ilvillll'I1!1I kzse a partir do OrienteI' tI •• 11,111111"11'1,11I;lllIral, po 1'(;1 III0, que a religiao, 011'111111,II IIIII." Ii1,1.1"" 1I .II""1'01iSlIllI (,1I1l!inllassem a serII w'lI 11111,llIllIlllI,I\>lll 1IIltlll,lI, I1"" II\(' ('1I111lllll garoto",. ~"" ••111''.1111111,.lIa" /' I" ',"','111'1'1"hI' 111<'1I'il\'illllallllcnte• '111'" Ilf' 1111 .1111111111IIIIIlIt'lIl ,Idllll" 1111"111111111;11Il'i:'10,

" 11111111111,. '" ",It" I" 'lilt', 1',11,1II 1111','11I Yo""'!". 11111LII1"'1,11111dr 111111111\1\"1'111"\11""1111"lIvlIll'ldli )'111 11111;11,1''' 11""IIIIlIlllI"" lilli, dtlll"" 11l''I"''III''III''III'' I 11IHI'III;I

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contrariedades e padecimentos que identificamos comas brigas de rapazes ou com as guerras entre populat;oesvizinhas. Poderas descarregar fel a tua vontade sobre asuperstit;ao egipcia e 0 poderio dos sacerdotes - comofez, por exemplo, esse magnifico Platao europeu', queapenas comete 0 erro de tudo querer moldar em demasiasegundo 0 modelo grego ... sera tudo verda de! E tudoestaria certo, se 0 mundo egipcio tivesse sido feito parati, para 0 teu tempo e para 0 teu lugar. E 6bvio que asvestes do garoto sao demasiado pequenas para 0 gigante!E ao jovem que se faz acompanhar da noiva repugna 0

encarceramento da escola! Mas ve bem! Tambem 0 teutraje e demasiado comprido para 0 rapazinho! Naocompreenderas tu - supondo que alguma coisa conhecesdo espirito egipcio - que essa tua sagacidade bur-guesa, 0 teu deismo filos6fico, a tua frivolidade ficHe a tua mundanidade, a tolerancia, a gentileza, 0

direito dos povos e toda a tralha que faz parte do teuvocabulario s6 teria por consequencia, uma vez mais,transformar 0 rapaz num miseravel anciao de sete anosde idade!

o rapaz tinha que estar limitado. Tinha que haveruma certa privat;ao de conhecimentos, de inclinat;oes,de virtudes, para que pudesse desenvolver-se 0 quenele existia, para que ele pudesse desenvolver 0 queagora se seguia na ordenat;ao dos factos do mundo, ouseja, 0 territ6rio, 0 lugar! Assim, todas essas supostasdesvantagens eram para ele vantagens, ou malesincontomaveis, tanto quanto para a crianp 0 sao asideias estranhas com que vai sendo educada ou para 0

rapaz as caminhadas e a disciplina da escola. Porquehas-de querer arranca-Io ao lugar que Ihe e pr6prio, aidade que e a sua? Para matar 0 pobre garoto? E como egrande a biblioteca dos livros que assim procedem!Umas vezes tomando os egipcios demasiado antigos efazendo esfort;os tremendos para encontrar uma enormesabedoria nos seus hier6glifos, nos primeiros passosque deram nas artes, nas suas sucessivas consti-

IIIic,;oespoliciadas', outras vezes denegrindo-os profun-ILllIlente por comparat;ao com os gregos", pelo simplesI,(('to de nao serem gregos e serem egipcios, como'Illase sempre acontece com os amantes das coisas gregas1;lda vez que abandonam as suas amadas paragens.I':videntes injustit;as!

E manifesto que 0 melhor historiador da arte da.llltiguidade, Winckelmann, se limitou a ajuizar das obrasIIe arte dos egipcios segundo criterios gregos. Nao ha(1l'lvidade que as contestou muito bem nas caracterizat;oes(ille produziu, mas 0 que praticamente nao fez foi,aracteriza-Ias segundo a sua propria natureza e tIPO, delal modo que quase todas as frases que compoem 0 res-I'l'ctivo capitulo se limitam a deixar transparecer aIll1ilateralidade e a miopia das observat;oes do autor.() mesmo se passa com Webb, quando opoe a literatura('gipcia ados gregos. E 0 mesmo fazem tantos outrosqlle sobre os costumes ou sobre a govemat;ao dos('gipcios se limitam a escrever com espirito europeu ... 0(ille acontece com os egipcios e que quase sempre se(hega a eles vindo da Grecia, e portanto com uma visao('stritamente grega; e que coisa pior Ihes poderia acon-Il'cer? Mas, meu caro grego, ..! Estas estatuas - comoI>em poderias perceber em todos os pormenores -('stavam destinadas a ser tudo menos 0 modelo dasI>elas-artes segundo 0 teu ideal! Nesse teu ideal naoI'altam a sedut;ao, a act;ao, 0 movimento, tudo coisasqlle 0 egipcio desconhecia ou de que os seus objectivosprecisamente 0 desviavam. As estatuas egipcias s6 podiamser identicas as mumias! Recordat;oes dos pais, dos;lI1tepassados falecidos, com 0 maximo rigor das dimen-s()es e dos trat;0s faciais, obedecendo a centenas dercgras estabelecidas as quais 0 rapaz se encontrava pre-so ... E portanto naturalmente sem sedut;ao, sem act;ao e,';emmovimento, porque estavam na posit;ao pr6pria dascpultura em que os membros s6 conhecem a imobilidade

• Kircher, D'Origny, Blackwell, ete.•• Wood, Web, Winckelmann, Newtoll, Vollaiw, defelldelldo

<1m ou 0 outro ponlO de vista, I'm/()c() t'/ II'III/JI"'/'.

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e a morte. Etemas mumias em marmore! Ve bem, eraisso que tinham que ser! E sao-no de facto! Sao-no, noque a arte tem de mais eleva do quanto a reprodw;:aomecanica! No ideal do respectivo proposito! Eis que sedesfaz 0 belo sonho das tuas reprova~6es! Se tomas umalupa e aumentas dez vezes 0 tamanho do rapaz para 0

transformar num gigante iluminado pelos teus instru-mentos, deixas de poder explicar seja 0 que for que lhediga respeito. Perde-se por inteiro a atitude caracteristicado rapaz e 0 que fica esta muito longe de ser umgigante!

Os jenicios, por muito aparentados que estivessemcom os egipcios, eram em certa medida - ou tomaram--se - 0 seu contrario em materia de forma~ao cultural.Os egipcios, pelo menos nas epocas mais tardias, detesta-yam os mares e os estrangeiros e entregavam-se, dentro dassuas fronteiras, ao "desenvolvimento de todas as aptidoese artes do seu pais«. Os fenicios passaram montanhas edesertos, chegaram junto da costa e fundaram um novornundo sobre as aguas do mar... E que mar? Um marcomparavel a um estreito entre duas ilhas, um golfoentre diferentes paises, que, com as suas costas, ilhas eprofusao de cabos parecia ter sido destinado, ter sidocspecialmente configurado para facilitar a uma na~ao a1:lrefa de 0 sulcar e de procurar outras terras ... OhArquipelago, Mar Mediterraneo, que lugar celebre teIl'SlTVOU a historia doespirito humano! Enorme este1l0VOpasso do desenvolvimento! Um primeiro estado de(ollH'rciantes, todo ele fundado sobre a actividade( '1IlIcITial, e que pela primeira vez levava 0 mundo a,d,lIg:lr-se verdadeiramente para alem da Asia, semeandoI lIlV( ),~ c unindo os povos! Decerto que este estado que.1}l.111;1 sllrgia quase nao tinha pontos de contacto com a\' 111.1 Il:I.~I(lril do Oriente. Desapareceram 0 sentimento.J,I 1,llllili:I,:1religiilo e 0 prazer calmo da vida do campo.:\ 1"1111,1 dc governa~ao deu um poderoso passo em.1111' 1•• 111 ,I liherdade da republica, conceito que, em

rigor, nem os orientais nem os egipcios tinham tido.Numa orla maritima em que se praticava 0 comercio erainevitavel que se constituissem, por assim dizer, aristocra-cias: aristocracias de cidades, de casas, de familias. Tudoisto trazia consigo uma transforma~ao na forma da socie-dade humana. Assim, a medida que ia desaparecendo 0

6dio pelos estrangeiros e 0 fechamento face a outrospovos - e por muito que os fenicios nao visitassem ou-tras na~6es movidos pelo simples amor a humanidade -,ia-se tomando visivel uma especie de amor entre povos,de conhecimento entre povos, de direito regulando asrela~6es entre povos, e e perfeitamente natural que umatribo isolada, uma pequena popula~ao da remotaC6lquida, nao pudesse ter qualquer conhecimento detudo isso. Alargava-se 0 mundo: os diferentes gruposhumanos tomavam-se mais proximos, mais ligados entresi. Com 0 comercio desenvolveu-se um conjunto deartes e sobretudo uma habilidade totalmente nova,orientada para 0 que fosse vantajoso e c6modo, para aopulencia e para 0 fausto. De urn so golpe, a aplica~aodos homens ao trabalho regredia do plano da diflcilindustria de constru~ao de piramides e da agriculturapara 0 de um "jogo prazenteiro de pequenas ocupa~6es«.Em vez daqueles obeliscos sem utilidade pratica econstruidos de uma s6 pe~a, as tecnicas de constru~aoviravam-se agora para os navios, compostos de muitaspe~as, todas elas com uma utilidade espedfica. 0 silencioimovel da piramide cedia 0 seu lugar a eloquenciaviajada dos mastros. Depois da grandeza desmedida daescultura e dos outros oflcios dos egipcios passava-seagora a uma especie de vantajosa brincadeira com 0

vidro, com metal, purpura ou tela, recortados e dese-nhados, com artefactos trazidos do Libano, com j6ias,vasos ou adorn os... Era como se se convidassem asoutras na~oes a usar todos estes brinquedos ... Veja-seentao que mundo de diferentes ocupa~6es nao era este!De diferentes objectivos, de diferente senti do ciautilidade,de diferentes inc1ina~6es e aplica~oes da alma' Era 11:11\1-

ral que fosse preciso transformar a dil'intldade damisteriosa escrita hieroglifka "na :Irll' f:'Icil.silllplilk:lda c

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praticavel dos algarismos e do alfabeto. Aos olhos dohabitante das tendas do pastoreio ou das cabanas daagricultura este homem que agora habitava as costasmaritimas dentro de navios, este mareante sem patriadeambulando por entre os povos, havia de parecer umacriatura totalmente estranha. 0 oriental nao deixaria deIhe criticar 0 enfraquecimento do sentido ciahumanidadeeo egipcio a debiliclade clo sentimento da patria. Censura--lo-iam, um pel a perda do amor e da vida, 0 outro peloabandono da leal clade e da aplicac,:ao ao trabalho, umpor nada saber clo sagrado sentimento da religiao, 0outro por expor publicamente pelas feiras e em farraposos segredos das ciencias.» Tudo verdade! S6 que 0 queassim se desenvolvia era por outro lado qualquer coisade muito diferente (que alias nao gostaria cle compararcom 0 que antecede, porque nao e do meu agradocomparar), a irrequietude e a astucia fenicias, um novogenero de comocliclades e cle prazeres que eram ja atransic,:ao para 0 gosto grego, um novo tipo de conhe-cimento dos povos que era a antecamara da liberdadegrega. 0 egipcio e 0 fenicio eram pois, por maior quefosse 0 contraste entre os respectivos mod os de pensar,filhos gemeos de uma mesma mae oriental, destinados acolaborar na formac,:ao da Grecia e, assim, na mais amplaformac,:ao do mundo. Um e 0 outro foram portantoinstrument os de transmissao nas maos do destino. E, seme e permitido permanecer na alegoria que tenho vindoa usar, diria que 0 fenicio era aquele rapaz um poucomais crescido que clecicliu vagabundear pelas ruelas epel as prac,:as e que vendeu por poucas moedas os rest oscia sabedoria e dos talentos ancestrais. Quanto nao devea formac,:ao cultural da Europa aos fenicios e ao seuespirito de negociante pouco escrupuloso ...!Mas chegouo momento de passarmos ao belo adolescente grego.

Do mesmo modo que com prazer e alegria nosrecordamos sobretudo da nossa adolescencia, pois foiela que desenvolveu as nossas forc,:as e os nossos

1IIl'I11bros ate a flor da vida, que elevou as nossas, .Ipacidades ate aos deleites da conversac,:ao e cia amizade,, IiIe orientou todas as nossas inclinac,:6es para a liberdadeI' 0 amor, para 0 prazer e a alegria, e a todas emprestau.1doc,:ura de um primeiro acorde, do mesmo modo que',11I110Slevados a achar que esses anos da nossa vidaIIlram a nossa idade dourada e permanecem 0 Elisio dasIlllSSaSmem6rias - pois qual cle n6s consegue recordar.1,~uaprimeira infancia? -, envoltos num brilho incom-IlaraVel, precisamente porque nesse momenta a flor queI'llllpia estava prenhe de todas as nossas futuras espe-1.IIlc,:ase acc,:6es, tambem na hist6ria da humanidade a(;recia ha-de permanecer para sempre 0 local em queI'sta mesma humanidade, qual flor entre as maos daj, )vem noiva, viveu 0 mais belo periodo da sua juventude.( ) rapaz cresceu, abandonou ja a cabana e a escola, e ei-I. I...!Um nobre adolescente a quem ungiram os membros,

.Illlaclo por todas as Grac,:as, amante de todas as Musas,vt'ncedor de Olimpia e de todas as competic,:6es, espiritoI' corpo em uniao formando uma unica flor desabrochada!

Estavam ja praticamente esquecidos os oraculos daillfancia e as imagens didacticas da penosa aprendizagemI'scolar. Mas era com base em tuclo isso que 0 adolescentei:l desenvolvendo quanto pudesse fazer falta a sua,~abedoria e a sua virtude juvenil, aos seus canticos e asua alegria, aos prazeres e a vicla. Desprezava 0 grosseiro,las artes aplicadas tanto quanto a mera faustosidadeIJ(lrbara e a demasiada simplicidade da vida pastoril. Mas;1 tudo isso foi buscar alguma coisa que canalizou para 0f1orescimento de uma nova e bela natureza. Transformou, IS oficios manuais em belas-artes, a servidao do trabalho;Igricola em associac,:ao livre dos cidadaos, a complexaprofusao de significados das apertadas regras egipciaslias mais variadas, belas e simples fantasias gregas, Quecnorme grupo de novas e belas inclinac,:6es e capacidades,,las quais os tempos anteriores nada tinham conhccidot'l11bora constituissem 0 respectivo cmhriao! N:lo st'r;'1vcrdade que era preciso que 0 t'xt'rcicj,) <la g, IVt'rnal.';I,)livesse descido do plano do dt'slJlllislllll pal,'ITIO oril'lltal ate ao das ('orpora<;<,ll'slerrillll'iais dl).~eXIJll'ios " d;ls

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semi-aristocracias dos fenkios para que posteriormentepudesse surgir a beleza da ideia de republica, no sentidogrego, «aobe~ie~cia em uniao com a liberdade enla~adasna palavra patna,,? 0 botao floria: graciI fenomeno danatureza! Ficou conhecido pelo nome de «liberdadegrega»! Foi preciso que os costumes se desviassem dose~ s~ntido paternal proprio do Oriente e daquele espiritoeglp~lO de quotidiana aplica~ao ao trabalho para sesuavI~arem por intermedio da astucia do viajante fenkio.E veJa-se! 0 botao floriu em toda a sua beleza! A«~e.spreocupa~ao, a brandura e a amizade entre povosVIZlOhos". Foi preciso que 0 amor fosse lentamentediminuindo a espessura dos veus do harem para podertornar-se 0 belo jogo dos antecessores gregos de Venus,de A~or e ~as Gra~as. E foi assim que a mitologia, apoesla, a fllosofia, as belas-artes surgiram comodesenvolvimento de antiquissimos germes que aquiencont~avam 0 lugar e a esta~ao aj)fopriados ao seufloresclm~nto e a dissemina~ao de urn aroma queatravessana 0 mundo inteiro. A Grecia tornou-se pois 0

ber~o das qualidades humanas, do amor entre os povos,?o que ?ode haver de belo na legisla~ao, de tudo 0 quee agradavel na religiao, na moral, no estiIo, na literatura,nos Costumes e nas artes ... Tudo era alegria juvenilgraciosidade, jogo e amor! '

Houve ja quem desenvolvesse suficientemente, pelom~nos em parte, 0 tern a das circunstancias que contri-b~l~am para esta produ~ao unica do genero humano.Lln:lto-me a colocar essas circunstancias no contextomalS vast~ das conexoes gerais entre as epocas e ospovos. VeJa-se este formoso clima grego e a especie deho~ens .bem constituidos que nele cresceu, a frontealtlva ~ lIvre, os sentidos despertos e penetrantes ... EraautentlCamente ~m territorio de conf1uencia da civiliza~aono qual convergla tudo 0 que vinha dos dois extremos eque se tornava objecto de uma transmuta~ao conduzidacom simplicidade e nobreza. A jovem esposa via-seserv~da por dois rapazes, urn de cada lado, e tudo 0 quepreClsava de f~zer era.idealizar, emprestar beleza a quantoIhe era oferecldo. FOIprecisamente a mistura dos modos

,1('pensar fenicio e egipcio - mistura em que mutuamen-I,· se condicionavam naquiIo que urn tinha de estreitezaI\,I( ·jonal e 0 outro de desajeitada teimosia - que formouII cspirito dos gregos e 0 preparou para 0 ideal e para aIlherdade. Vede agora as circunstancias particulares que, , lilduziram as suas divisoes e alian~as desde os temposIII:ti5 remotos: separados pOI' diferentes popula~oes,1 ('p(iblicas, colonias, todas elas contudo ligadas por urn"spirito comum, pelo sentimento de serem uma so na~ao,IIIIIa so patria e de falarem uma so lingua! Vede as('speciais condi~oes da forma~ao desse espirito comum,desde a expedi~ao dos Argonautas e das campanhasI( lI1tra Troia ate a vitoria sobre os persas e a derrotaIlcnte aos macedonios que significou a morte da Grecia!Vede a institui~ao dos jogos e de outras competi~oes em'1lle todos se reuniam, sempre com pequenas diferenps(' altera~oes respeitantes a cada popula~ao e a cadaJugal' de proveniencia ...!Tudo isso e tantas outras coisasIlcram a Grecia uma unidade e uma diversidade queI.II11bemaqui constituia a mais bela totalidade. Luta e'i( llidariedade, esfor~o e modera~ao. As for~as do espiritoIlumano atingiam a mais bela propor~ao e despropor~ao:,I harmonia da lira grega! Mas quem podera negar que.ls5im for~osamente se perdia tambem uma parteIllimaginavel das antigas seivas, da primitiva energia.N:lo custa compreender que, arrancado 0 rigido tegu-lIlenta dos hieroglifos egipcios, se tivesse evaporadodurante a travessia maritima alguma coisa da profun-didade, da significa~ao, da naturalidade que constituiam(I caracter dessa na~ao. 0 que 0 grego conservou nao('ra ja senao uma formosa imagem, urn jogo, urn deleitepara os olhos - ou 0 que se queira chamar-lhe por()posi~ao a severidade egipcia. Tambem nao queria mais!i\ religiao oriental tinha sido retirado 0 veu sagrado e,Illuito naturalmente, uma vez que tudo se tinhaIransportado para 0 espectaculo, para 0 teatro, para adanp e para a pra~a publica, pouco demorou para quese transformasse "em fibula e depois, l>el:II1Il'IIIC:lmpliada, envolta num discurso sc<lulor, 1)(),'1 i/'.a<l:1crepoetizada, em sOllho (lU ,'III 1,'IHI:1 <Ie.sll'S1Il)llll'IISl'

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mulheres em idade juvenil •. A sabedoria oriental tinhasido subtraido 0 manto dos misterios que a cobriam eassim se transformou na conversa~ao facil, no en sinoinstituido e nas disputas publicas das escolas e dosmercados. A arte egipcia tinha side arrancado 0 pesadotraje do trabalho profissional e com ele se perdeu tambemtudo 0 que nela havia de demasiado medinico e deausteridade tecnica que nao constituia aspira~ao dosgregos. ° colosso reduziu-se as propor~6es da estatua eo templo gigantesco transformou-se em palco derepresenta~6es. A ordem e a seguranp egipcias foram--se gradualmente atenuando no meio da diversidadegrega. Podia pois, em mais que um sentido, 0 velhosacerdote proferir as conhecidas palavras: "Oh crian~as,eternas crian~as que sois, que nada sabeis e tanto falais,que nada fazeis e tanto brincais, que nada ten des e taobelamente tudo apresentais .• Mais violenta ainda soariaa voz do antigo oriental, de dentro'da sua cabana depatriarca, para os acusar de terem substituido a religiao,a humanidade e a virtu de por um amontoado degalanteios proprios para meretrizes. Pois seja. °homeme urn vaso onde nao cabe a perfei~ao ... Para avan~artemsempre que perder qualquer coisa. A Grecia avan~ava,logo a industria e a politica egipcias deixaram de Iheservir, pelo simples facto cle que os gregos nao eramegipcios, nao tinham um Nilo. A sagaciclade comercial .dos fenicios cleixou de Ihe servir, porque a Grecia naotinha 0 Libano ou a india atras de si. Eo tempo em quetinha sido possivel uma educa~ao oriental ja tinhapassado. Chega! Era 0 que era: a Grecia! Imagem origi-nal e imagem modelo cle toda a beleza, de tudo 0 que egracioso e simples! Botao em flor do genero humano ...Pudesse ela ter durado eternamente!

Creio bem que a posi~ao em que coloco a Greciacontribui tambem para desenredar "a eterna disputarelativa a originalidade dos gregos ou a imita~ao democlelos oriundos de na~6es estrangeiras •. Como emqualquer ourra materia, se as partes se tivessem entendidomelhor uma a outra, ha muito que teriam tambemchegado a acordo, Que a Grecia recolheu de ourros

I.ldos as sementes da cultura, da lingua, das artes e dasI 11'l1cias, parece-me coisa indesmentivel e e faeil,1('ll1onstra-Iono que toea a certos exemplos cia escultura,,I.I arquitectura, da mitologia, da literatura. Mas que osF,ll'gos nao se limitaram a recolher toclos esses elementos,'111l'Ihes conferiram uma natureza total mente nova, que('Ill cada modalidade da sua ac~ao 0 "beJo.,- no sentidoI,n'>prio da palavra - foi indubitavelmente produ~aoo.lla,creio poder demonstrar-se com a mesma seguran~a,',(' se der algum desenvolvimento as ideias. Nada clo quetillha sido oriental, fenicio ou egipcio conservava ja 0

',('ll caracter. Tudo isso se tornara grego. E em varios,Ispectos pode dizer-se que os gregos quase abusaramd;1 sua originalidade, pois tudo revestiram e recompu-',('ram a seu modo. Da maior inven~ao e da narrativa111:lisimportante ate a palavra e ao sinal mais elementares,Illdo esta cheio clessa sua ac~ao. E a cada passo, em<;I<lana~ao, eo mesmo que encontramos ... Quem quiser« lI1tinuar a construir sistemas ou a discutir palavras que() fa~a!

Veio depois a idade adulta das for~as e dos esfor~os(Ia humanidade: 0 tempo dos romanos. Por oposi~ao:IOS gregos, a quem cabiam as belas-artes e os exerciciosjllvenis, caracterizou-os Virgilio de uma maneira simples:

Com 0 que simultaneamente andava perto cle apontaro tra~o caracteristico que os distinguia dos povos nor-dicos, que talvez os superassem em dureza barbara, emvigor no ataque, em bravura bruta, Pelo contrario, comcste

o que faz e iclealizar a hraVllr:1 rol1l:lIl:l. Virilldcromana! Sentido roma no! (lrglliito rOI1l:lllo' A j.(clwros:l

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disposic;ao da alma para desviar 0 olhar da volupia, dabrandura e mesmo dos prazeres mais requintados, e agirem prol da patria. A coragem her6ica mas serena deesperar,. reflectir, preparar e fazer, em vez de avanc;artemeranamente e correr riscos desnecessarios. Era 0

inquebrantavel caminho de alguem que nao se deixaassustar por nenhum obstaculo, de alguem que sabe sergrande precisamente na desgrac;a e que nunca desespera.Era afinal 0 grandioso plano, sempre acalentado, de naose darem por satisfeitos enquanto a sua aguia nao cobrisseo mundo inteiro ... Quem for capaz de cunhar a palavraque possa captar todas estas qualidades e para alemdel.as ainda a equidade viril desse povo, a sua sagacidade,a nqueza dos seus projectos, das suas resoluc;oes, dassuas realizac;oes e de urn modo geral 0 conjunto detodos os empreendimentos que constituiram 0 mundoedificado pelos romanos, que a diga! Por mim, bastaradizer que este era 0 homem, 0 homem que aproveitandoe de~fruta?do embora das qualidades do jovem, ja s6desejava por em pratica maravilhas de bravura e virilidade.Com a cabep, com 0 corac;ao e com a forp do brac;o!

. A que alturas se elevou 0 povo romano! Que temploglgantesco levantou sobre esse cume! 0 seu edificiomilitar e estatal, os pIanos e os meios empregues narespectiva execuc;ao, que colosso universal! Poderia~ometer-se e~ Roma uma velhacaria sem que 0 sanguejorr~sse em tres partes do mundo? E os homens grandese dlgnos deste imperio, que influencia a sua! E on dechegou essa influencia! E todas as peps deste enormemecanismo que, quase sem 0 saberem, se deixavammovime~tar por forps afinal tao ligeiras! A que pincaros,a que solidez foram levados os instrumentos deste povo!? senado e a arte da guerra, as leis e a disciplina, 0

mteresse romano e 0 vigor colocado na sua execuc;ao ...!Tremo. pera~te tudo isso! 0 que nos gregos era jogo,prova juvell/l, era agora organizac;ao seria e inabalavel.Os padroes gregos, dimensionados para urn pequenopalco, para urn estreito istmo, para uma exigua republicalevados com vigor ao seu ponto mais alto, tornavam-s~agora feitos exemplares para 0 mundo inteiro.

TOll1e-se 0 assunto como se queira, 0 certo e que se11.ll.lvada «maturidade do destino do mundo antigo». 0II' '1H '() da arvore, tendo atingido 0 ponto mais elevado.I•• seu crescimento, esforc;ava-se agora por abranger,ld';lixo das sombras dos seus ramos outros povos e'"III;IS nac;oes. Rivalizar com os gregos, os fenicios, os"/l.'1lCiosou os orientais nunca foi objectivo principal,I••s romanos. Mas, ao terem aplicado com virilidadeIlldo 0 que antes deles existia, como se tornou grande 0

11'lrizonte do mundo romano! Este nome unia povos ell'gi(lCS que antes disso nunca tinham ouvido falar uns•I,IS outros. As provincias romanas! Para todas elas se,I(',s!ocaram os romanos, as legioes romanas, as leisI' Illlal1aS,os modelos romanos dos costumes, das virtudes" dos vicios. Tinha-se rompido a muralha que separava.1'. Ilac;oes entre si. Estava dado 0 primeiro passo para.1(Iestruic;ao dos diferentes caracteres nacionais, para a.I',sill1ilac;aode todos eles numa unica forma a que foi\I.ldo 0 nome de «povo romano». E evidente que 0

IIIillleiro passo nao constituia ainda a obra na sua totali-,l.ldc: cada nac;ao guardava ainda os respectivos direitos,Ill>ndades, costumes e religiao, e acontecia mesmo que\ ',sromanos lisonjeavam esses povos trazendo para RomaIdolos das suas religioes. Mas a muralha acabou por cair.~,('culos de dominac;ao romana - como se pode ver emI,Idas as partes do mundo on de estiveram - exerceram\1111 enorme efeito: uma tempestade que atravessou as(;lll1araSmais rec6nditas do modo de pensar nacional de.ada povo. Com 0 tempo estreitaram-se cada vez mais\IS lac;os, e por fim a globalidade do imperio romanoilavia de se transformar praticamente numa (mica cidade.Ie Roma e todos os subditos em cidadaos. Ate que 0

Ilr6prio imperio caiu.Abstenhamo-nos de acrescentar seja 0 que for sobre

vantagens e desvantagens. Falemos apenas da acc;ao edo seu efeito. Se, debaixo do juga romano, todos ospovos deixaram ate certo ponto de ser os povos qtle(Tam ese, desse modo, se assistiu a illtro(hl~':'io de 1I111;1

politica de estado, de uma arte cia guerra (' de 1I111 direitodos povos de que ate Cllt:'io 11:\0 tillila i1avido t'X('lllplo,

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entao, enquanto essa maquina se manteve de pe edepois, quando desabou cobrindo com as suas ruinastodas as na~oes do mundo romano ... Havera na hist6riados seculos urn outro momenta em que se obtenha umamais ampla perspeetiva? Todas as na~oes empenhadasem construir sobre essas ruinas ou com 0 que delaspodiam usar! Urn mundo inteiramente novo de linguas,de costumes, de inclina~oes, de povos! Uma outra eraque come~a! A perspectiva que se nos de para e a de urnvasto e aberto oceano de novas na~oes! Mas, chegados aesta Hnha de costa, lancemos ainda urn ultimo olharpara os povos cuja hist6ria tratamos de percorrer.

1. Ninguem no mundo sente mais que eu asfraquezasda caracterizafiio geml. Pinta-se 0 quadro de todo urnpovo, de toda uma epoca, de toda uma regiao ... Quemfoi que assim pintamos? Tomam-se povos ou periodosque se seguem uns aos outrospara os reunir numaeterna alternancia Como se fossem as vagas de urn mar...Quem foi que assim pintamos? A quem se aplica a pala-vra que procura representar? Acaba-se sempre por cap taresses povos ou esses periodos com um nada, de baixode uma palavra geral, perante a qual cada urn poderapensar e sentiI' 0 que quiser... Que imperfeito e 0 instru-mento da representac;:ao! A que incompreensoes nosexpomos!

Quem ter{l notado 0 que ha de indizivel na tarefa dedizer qual a propriedade especifica de um homem e deassim dizer clistintivamente aquilo que 0 distingue? Dedizer como sente e como vive esse homem? De dizerquanto se tornam diferentes e quanto se tornam perten~adesse homem todas as coisas que os seus olhos viram,que a sua alma avaHou, que 0 seu corac;:aoexperimentou?Ou de dizer a profundidade que reside no caracter deuma so nac;:ao, caracter que, por mais que 0 tenhamosobservado e admirado, nao deixara de escapar a palavrae que numa tal palavra quase nunca se deixarareconhecer, pelo menos 0 suficiente para poder ser

('IIIl'ndido e sentido por cada um? E, se assim e, como',t'l;i quando se trata de captar num s6 olhar, num"('l1limento, numa palavra, todo 0 oceano de povos1111l'iros,de epocas e de territ6rios? PaHda e a imagemII\('(lmpleta e descolorida das palavras! Seria preciso que111(' acrescentassemos - ou que conseguissemos fornecerl'll'viamente - todo 0 quadro vivo do modo de vida de\1111povo, dos seus habitos, das suas necessidades, daI'aisagem e do clima em que habita! Seria preciso come~arI)(II simpatizar com uma na~ao para poder chegar a',('ntir cada uma das suas inclina~oes, das suas acc;:oes,I,ala as poder sentiI' todas em conjunto, para encontrar ';l

I,alavra cuja riqueza nos permitisse pensar tudo 0 que a('ssa na~ao respeita! Caso contrario, le-se ... uma palavra!

Todos nos cremos que continuamos ainda a possuir,'s instintos patemais, domesticos, humanos dos orientais.()lIe continuamos a poder dispor da lealdade e da.qllica~ao artistica pr6prias do egipcio. Que continuamos,I ser capazes da inquietude dos fenicios, do amor pelalil>erdade tipico dos gregos, da forc;:a animica dosI'llllanos. Quem nao julga sentiI' em si toda a aptidaoI';lra tanto necessaria. Bastaria que 0 tempo, a oportu-l1iclade... Repara, leitor meu, on de nos encontramos n6sl'xactamente! Ninguem duvida de que 0 mais cobarde(Ios poltroes possui ainda uma distante aptidao, umaIl'mota possibilidade de vir a tornar-se 0 mais denodadotlos her6is ... Mas entre a aptidao ou a possibiHdade e "0

sentimento total do ser e da existencia que urn talcaracter experimenta" ... Um abismo! De igual modo,Icitor meu, ainda que nada te faltasse senao 0 tempopr6prio, a oportunidade, para transformares em capaci-(lades activas, em instintos nao contaminados, as aptidoescom que poderias igualar-te ao oriental, ao grego, aoromano ... Urn abismo! Estariamos a falar apenas deinstintos e de capacidades. E a natureza global da almaque tudo domina, que modela a sua pr6pria imagemlodas as outras inclina~oes, todas as fon;'as animicas,que da colora~ao pr6pria a cada uma clas m:lis insiRni-,Ikantes acc;:oes?Se a quiseres sl'lllir, n;)o respondas comlima palavra. Vai!Emra p()r eSS:l('J)( I('a, 1)( II' ('SS('I('rrit()ri(l,

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pela totalidade da historia e sente-te a ti mesmo em tudoo que encontrares! So entao estaras no caminho que tepodera conduzir a compreensao da palavra, Mas entaoteras tambem chegado ao momenta em que se desvane-cera a ideia de "que 0 que se te depara, cad a coisa por sie tudo tornado em conjunto, es tu proprio»! Tu, tudotornado em con junto? Quintessencia de todas as epocase povos? Eis que se revela bem a loucura do projecto!

Caracter das na~oes! Sao apenas os dados da respec-tiva constitui~ao, da sua historia, que tern que decidir,Sera que urn patriarca, para alem das inclina~oes que Iheatribuis, nao possuia outras? Sera que nao podia terpossuido outras? E simples a minha res posta a ambas asquestoes: "Sim, por certo! .. Por certo que possuia tra~osacessorios que facilmente se podem entender a partirdos fundamentais que acima indiquei (ou dos que naocheguei a indicar), tra~os que eu, e talvez outros comoeu, que ,temos bem presente a hisroria dos patriarcas,consegulmos reconhecer logo na palavra, E mais incli-nados ainda estaremos para reconhecer que muitos outrostra~os poderia tef. .. Numa outra regiao, num dado tempo,com 0 progresso da sua forma~ao, sob circunstanciasdiversas .. , Por que razao Leonidas, Cesar ou Abraao naohaviam de poder ser homens galantes do nosso seculo?Mas nao foram! Sobre isso interrogaras a historia, porquee disso que se trata,

E assim me deixo igualmente aprisionar nas contra-di~oes da minucia, no enorme pormenor dos povos edas eras, Que nenhum povo continuou nem poderiacontinuar por muito tempo sendo aquilo que era .., Quecada urn, como acontece com cada aIte e cada ciencia ecom qualquer outra coisa, teve 0 seu periodo de cresci-mento, a que se seguiu 0 de t1orescimento e por fim 0de declinio .., Que cada uma dessas transforma~oes duroutao somente aquele minimo de tempo que a roda dodestino humano Ihe po de atribuir... Que, por ultimo,neste mundo nao ha dois momentos que sejam identicose que portanto nem os egipcios, nem os romanos, nemos gregos foram os mesmos ao Ion go de todas as epocasque atravessaram, .. Tremo de pensar nas sapientes

, oJ ,jcq:oes que sobre tudo isto me podem ser feitas por'"Ii ,j:ISgentes, sobretudo pelos conhecedores de historia!i\ (;rccia era composta par muitos paises; atenienses eI)('(>cios, espartanos e corinteos eram tudo menos1ll('llticos.., Nao se praticava a agricultura tambem nai\~i:" Nao terao os egipcios praticado 0 comercio tao1)('111quanto os fenicios? Os maced6nios nao faram'1IIlqllistadores comparaveis aos romanos? Arist6teles11,11I tera sido senhor de urn espirito especulativo compa-1,Iwi ao de Leibniz? Nao sera verdade que os nossosI" IVOSnordicos ultrapassaram os romanos em bravura?1'1'1':10sido todos os egipcios, todos os gregos, todos os11)11I:1110S.., Serao todos os ratos iguais? Nao, mas nao,Il'ixam de ser todos eles ratos!

Que aborrecido se torna falar para urn publico,'IILilldo somos obrigados a precavermo-nos constante-1III'IIlede objec~oes desta ordem, ou ainda piares, vindas,LI'Illela parte da audiencia que gosta de gritar (porque a1',llle nobre e que pensa costuma calar-se), apresentadas'"Ii )(' Deus em que tom, e ao mesmo tempo constrangidos,\ tI('fendermo-nos do imenso rebanho que, sem saber, '1IlI('fica a direita e a esquerda, se poe a repetir as ditas, ,I'i( 'C,:oes! Podera haver urn quadro geral sem hierar-'1IIi/;l,';[O e ordena~ao do conjunto? Poder-se-a obter11111;1perspectiva vasta sem se subir a uma certa altura?"I' ('IKostas os olhos ao quadro e se 0 recortas nesseI" lillo, se te poes a dissecar esse pequeno agregado de11111:1,nunca veras a totalidade do quadro .. , Veras tudo1I11'1I0S0 quadro! E se tiveres a cabe~a totalmenteI" ('('Ilchida par urn determinado grupo que tomou conta,1('Ii, sera que 0 teu olhar esta em condi~oes de abarcar,tI(, ordenar, de seguir com cuidado a globalidade da',1'1IlIcncia das epocas em tamanha muta~ao? Seras capaz<iI' ('m cada cena isolar apenas 0 efeito principal? De,Illlillpanhar em silencio todas as tllltua<;:6es? E de, em"q~llida, atribuir a tudo isso ° nOlnc' Mas sc 0 11:101"lIscgues, cnt:lo :1 his\(lria dlllil:i ('III v:l('ilalll,'s hl'illll)sI'l'I;tnte os (ellS oll1l),~,(:olllll.~;ll) tic ('('lias, tic Ill)VC)S,<i('I·I.I.~.., COIIH','a pOl' Ic'l' C' :lI""I\lh' ;1 VI'I! Ih' II'Slo s:lI)('.~,

, 111110 eu sei, q\l(' cada qW1I11l1 W'I.II, C',II 1:1(I IIll'I'ilc) l-wral

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nao passa de abstraq:ao .. , a criador eo unico que podepensar a unidade global de uma ou de todas as na~oesem toda a multiplicidade que lhes pertence e sem queao faze-Io se desvane~a a unidade.

II. Afastemo-nos entao decididamente dessas objec-~oes mesquinhas que nao nos of ere cern nem objectivonem perspectiva. Situemo-nos na inten~ao que preside agrande sequencia na sua globalidade e verifiquemoscomo se tornam miseraveis "tantos jUlzos em mod a nonosso seculo a prop6sito das vantagens, das virtudes ouda felicidade de na~oes tao distantes e tao diferentes,todos eles estabelecidos com base em meras genera-lidades aprendidas na escola ..,

Se a natureza humana nada tern a ver com umadivindade que autonomamente se orientasse para 0

bern, se tudo tern que aprender,. se tern que se irformando por sucessivos passos, se tern que ir sempreprogredindo numa luta gradual, e natural que se vaformando, quase sempre, senao mesmo sempre, nosdomlnios em que encontra motivos que a conduzem avirtude, a luta, ao progresso. Em certo sentido dir-se-apois que toda a perfei~ao humana e nacional, secular e -se observarmos com 0 maximo rigor - individual. Nadase vai desenvolvendo sem que para tanto haja motiva~oespr6prias de uma epoca, de urn clima, das necessidades,das circunstancias envolventes, do destino. Separadasde tudo 0 resto, as inclina~oes e as potencialidades quepossam estar adormecidas no cora~ao nunca setransformam em capacidades praticas. Vma na~ao pode,pois, por urn lado possuir virtu des da mais sublimeespecie e por outro apresentar carencias, produzirexcep~oes, mostrar contradi~oes e incertezas capazes deespantar, Mas de espantar apenas aquele que transportasempre consigo uma falsa imagem ideal da virtude,extralda do compendio posto em yoga pelo seu seculo,aquele que tern filosofia suficiente para querer encontraro mundo inteiro quando olha para urn pequeno peda~ode territ6rio. De resto ninguem se espanta! Para todosaqueles que quiserem reconhecer urn cora~ao humano a

1',1rtir dos elementos que fazem parte das respectivas, II('unstancias de vida, tais excep~oes e contradi~oes",'rao perfeitamente humanas: propor~ao das for~as e,LIS inclina~oes orientadas para urn dado objectivo que1IIII1eapoderia ser a1can~ado sem elas. au seja, regra,"III vez de excep~oes,

Dar-se-a 0 casa, amigo meu, de achares que aquelaI<'ligiao oriental, ainda na infancia, aquele apego ao11I;listenro sentimento da vida humana, produziriam aoIII'"smo tempo fraquezas que condenas por compara~ao, "111padroes de outras epocas, Urn patriarca nao pode',"1'11111her6i romano, urn atleta grego, urn comerciante, I,)s mares, Menos ainda aquilo em que 0 ideal da tua, ,11('dra ou da tua disposi~ao de momenta gostaria de 0

1l,llIsf'ormar para depois 0 elogiar com falsidades ou 0

, "lIdenar com desprezo. Dar-se-a 0 caso de te parecer,II' •('(mfronto com modelos ulteriores, medroso, temeroso.1.1 Illorte, fraco, pouco industrioso, ignorante, supers-II' ioso... Talvez ate repugnante, se a doen~a que te,i1c'('la os olhos tiver suficientemente progredido ... Masdc' C' apenas aquilo para que Deus, 0 clima, a epoca e 0

,',l.ldio de desenvolvimento do mundo puderam faze-I•• Ulll patriarca! Possui, pois, contra tudo aquilo que as

•'I" was posteriores perderam, a sua inocencia, 0 seu1"lllor a Deus, a sua humanidade! Nesses aspectos, para,I', ('pocas que se the seguem, permanecera sempre urn,I, 'liS!a eglpcio parecer-te-a urn ser rastejante, servil, urn,lllilllal supersticioso e triste, duro para com os estranhqs,, Ii,llma sem esplrito, filha do habito, que poes em, •1I11rasteumas vezes com a leveza dos gregos e a sua• ,II.aeidade de emprestar beleza a tudo 0 que construlam,"lllras com 0 gosto requintado de urn filantropo dosII' ),SSOSdias que transporta na cabep toda a sabedoria eII' ) ('ora~ao 0 mundo inteiro, Que figura resulta! E aquela1',l<it~l1ciainabalavel, aquela lealdade, aquela soberana1),1/" poderas compar{l-Ia eom as amiza<les joviais <IosIi,n'gos, COIllos S('us io~os <1('s('dU~':lcI ('III I' '1'1)('d,' Illd,),) 'Iue pudess(' S('l' Iwlo 1111:ly,l:ld:IVI'P I,: I's'Ill(',"'J;'IS aIlw'ireza do,s ~rl')-l\lS, 0 Sl'II 111111111llivolo d,' 1111.11('0111a1I'Ii~i:)o, a all/j(\I1I1111H'II',~c1I' 1111111'111',111101,dl' IlIlIa

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certa disciplina e de uma certa honorabilidade, para iresal buscar urn ideal, que nao sei bem a quem pertenceria?Poderiam essas tais perfei~6es gregas ter-se desenvolvidoa tal ponto e em tal grau independentemente destascarencias? Repara bern, pois que a propria providenciaassim 0 nao exigiu, e apenas quis atingir 0 seu objectivopor via de urn processo de transforma~6es, por via deuma continuidade que se estabelece a medida que no-vas forps acordam e outras se apagam ... Sera maior asabedoria que possuis, tu, fiIosofo desterrado no extremonorte do vale do mundo, munido da balan~a infantilque 0 teu seculo te pas nas maos.

Oh, sentenps arbitrarias de louvor e de condena~aoque vamos buscar a urn povo da Antiguidade, por nosdescoberto, objecto da nossa paixao cega, para com elasaspergirmos 0 mundo inteiro! Qual 0 direito que vosassiste? Os roman os podem ter sido llma na~ao inigua-lada, podem ter feito 0 que ninguem conseguiu voltar afazer. Eram romanos. Chegados a uma eleva~ao quedominava 0 mundo e a volta deles urn (mico vale.A partir dessa eleva~ao, desde a sua infancia, agiramsobre 0 vale ... Que ha nisto de espantoso? E que ha deespantoso no facto de urn pequeno povo de pastores oude agricultores, vivendo algures no vale, nao se tertransformado numa criatura de ferro capaz de agir comoeles? Que have ria de espantoso se este outro povotivesse desenvolvido virtu des desconhecidas do maisnobre romano au no facto de a mais nobre romano nolugar elevado que ocupava, pressionado pela ne~es-sidade, se ter decidido, com sangue frio, pelo usa decrueldades que eram desconhecidas da alma do pastorno seu pequeno canto do vale. No cume dessa maquinagigantesca acontecia com triste frequencia que a sacriflciode horn ens fosse considerado coisa de menor imp or-tancia, necessidade incontornavel au mesmo (a quantachegas, pobre humanidade) urn gesto benfazejo. Precisa-IIlente a mesma maquina que tornou posslvel a ampli-Illde a que chegaram as vicios, foi capaz de elevar as111:limesalturas as virtudes, capaz de levar tao longe a:I( \':10 c1esse povo. sera que a humanidade, no estadio

eill que hoje se encontra, consegue atingir a perfei~aopura? 0 cume confina com a vale. A volta do nobreespartano habitam hilotas tratados de modo infra-humano. 0 triunfador romano traz, juntamente com as

cores vermelhas dos deuses, imperceptlveis salpicos desangue; a volta do seu carro traz pilhagens, ultrajes,volupias; a sua frente march a a opressao; atras de si:Irrasta a miseria e a pobreza ... Neste entendimento dascoisas, dir-se-a entao que na cabana dos homens avirtude e a carencia habitam sempre em conjunto.

Oh, bela poesia que crias a maravilha de urn povopreferido da terra, envolto em sobre-humano esplendor!A poesia tambem nos e util, pais que tambern parintermedio de belos preconceitos se enobrece 0 homem.Mas que dizer quando a poeta e urn historiador, urnI'ilosofo, como a maior parte se apresenta, e quandolIlodela 0 conjunto dos seculos segundo a forma espe-cifica - quase sempre tao pequena e tao fraca - que aseu tempo the oferece? Hume! Voltaire! Robertson! Osvossos cIassicos fantasmas do crepusculo! Que sois vas:1 luz da verdade?

Uma erudita sociedade dos nossos dias' propos, parcerto com a mais elevada das inten~6es, a seguinte(IUestaO: «Qual a povo mais feliz da his tori a?.. Supondoque bem compreendo tal questao e que ela se nao situafora do horizonte de uma resposta humana, mais naosaberia eu dizer que a seguinte: numa dada epoca e em(Iadas circunstancias cada povo tera encontrado urn tallIlomento de suprema felicidade, caso contrario taislilomentos nunca existiram. Repito, se de facto a naturezaIllimana nao e uma especie de recipiente destinado areceber uma felicidade absoluta, independente e imuta-vel - para usar as palavras com que os filosofos a defi-Ilem -, tratara por certo, e em todas as circunstancias, de:llrair sabre si tanta felicidade quanta the for pussivd.

• Tais senhores deverao ler lid" 11111id •.al a.',.',II.',I:"I, 11;1111<'111('devado, ja que, tanlO quanl" sd, 1I11111'adl'l;ll1l I" II , ""11 " •.1.111\"111('fl'spondida nenhurna <las '111""1(11',.,11111,"1,11<:1.' •• '1" (·.',(·IIL" LI," all1'[lbHeo.

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Dir-se-ia uma argila de grande ductilidade, disposta aganhar as mais variadas formas em diferentes situa~6es,face a diferentes necessidades, debaixo de diferentespress6es. Ate a imagem da felicidade muda com osdiferentes estados das gentes e dos territorios em quehabitam, pois que outra coisa e essa imagem senao 0

somatorio da "satisfa~ao dos desejos, da realiza~ao dosobjectivos, da do~ura alcan~ada pela liberta~ao face asnecessidades .., sendo que desejos, objectivos enecessidades se configuram total mente na dependenciado pais, do tempo, do lugar em que se vive? No fundo,toda a compara~ao se torn a duvidosa. Mal se modifiqueo sentido interior da felicidade, mal se alterem as incli-na~6es, mal aconte~a que as circunstancias e asnecessidades extemas comecem a constituir e a solidificarum diferente sentido ... Quem podera comparar entre sidiferentes satisfa~6es de diferentes se.ntidos em mundosdiferentes? 0 pastor e pai do Oriente, 0 agricultor eartista, 0 marinheiro, 0 adeta, 0 conquistador do mundo ...Quem os podera comparar? A felicidade nao reside nacoroa de louros, na contempla~ao do rebanho aben~oado,no navio comercial ou nos estandartes arrancados aoinimigo, mas sim na alma que precisou de fazer, que seesfor~ou, que conseguiu tudo aquilo que queria alcan~ar!Cada na~ao traz em si 0 centro da sua felicidade, comouma esfera traz em si 0 seu centro de gravidade!

Tudo providenciou, a nossa boa mae. No cora~aocolocou-nos disposi~6es para a cliversiclade, mas cadauma clelas em si mesma tao pouco premente que a alma,mal consegue satisfazer uma parte clas suas necessidades,logo toma os sons que nela foram despertados para osreunir na harmonia de um concerto que faz com quenao sejam senticlos os que nao chegaram a despertar, anao ser na meclida em que, mudos e obscuros, servemdeapoio ao cantico que se faz ouvir. Colocou disposi~6espara a diversidade no cora~ao humano, mas colocoutambem uma parte da multiplicidade ao nosso alcance,no circulo que nos envolve, e deu ao olhar humanouma tal propor~ao que, depois de breves momentos deadapta~ao, 0 circulo se constituiu em horizonte ... Para Ii

do qual se nao ve, para la do qual pouco se podepressentir! Tudo 0 que e identico a minha natureza,tudo 0 que nela po de ser assimilado, toma-se objecto daminha cobi~a, do meu desejo, do meu esfor~o deapropria~ao. Para tanto dotou-me a natureza das neces-sarias armas: suficiente insensibilidade, frieza e cegueira,ao ponto de poder despertar 0 desprezo e a repugnancia ...Mas 0 seu objectivo foi tao-somente 0 de me reconduzira mim mesmo, de me fazer encontrar a satisfa~ao naqueleponto central que me transporta. 0 grego apropriou-setanto quanto Ihe era necessario das produ~6es do egipcio,() romano das do grego. Uma vez saciado, 0 resto caipOI' terra, sem Ihe despertar cobi~a! Ou entao veja-se 0

que se passa quando, neste processo de constitui~ao dafelicidade nacional a partir das inclina~6es nacionais, adistancia entre dois povos se tomou ja bastante grande:o odio do egipcio pelo pastor nomada, 0 seu desprezopela ligeireza do grego! E 0 mesmo acontece comquaisquer duas na~6es cujas inclina~oes, cujos circulosdaquilo a que chamam felicidade se chocam ... E cos-tume chamar a isto preconceito, tendencia da popula~a,nacionalismo limitado! Mas, no seu tempo proprio, 0

preconceito e bom. Porque e dele que resulta a felicidade.(: ele que faz com que um povo se vire para 0 seu pontocentral, com que se fortale~a em tomo do tronco a quepertence, com que flores~a no seu caracter proprio, comque se tome mais ardente e portanto mais feliz nas suasinclina~6es e objectivos. Neste aspecto, 0 povo maisignorante e mais preconceituoso e quase sempre 0

primeiro. A epoca em que come~a a desejar deal11hlllarpor paragens dista'ntes, em que deposita as Sllasesperan~as nas viajens pelo estrangeiro, e j:l11l111t'111J)()de doen~a, de flatulencia, de riqueza ma1s:1,dt' I'n,,~sl'lltimento da morte.

III. Eo tom tipico do nosso scclIlo, lla .~\Ia »,('I1('lalidade, no seu pend or filos6fko (' fil;II1II(lpico, y,oSLItanto de conceder a uma qu:dqll('r II;I~';IOdisLII1It', ;Ismais antigas epocas da hlll1lallidad(', ..(I I\OSSII pl(lprioideal .. de virtude e de felicidad('! St'I1\('SI' l:lo capa/. dt'

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ser JUIZ, de avaliar os costumes alheios a sua pr6priaimagem! De os condenar! Ou de os embelezar poetica-mente! sera que 0 bem nao se encontra espalhado pelaterra? Precisamente porque 0 bem nao se deixa conternuma 056 forma da humanidade, num 056 territ6rio,multiplicou-se em mil formas, deambula - eterno Proteu- por todas as partes do mundo, atraves de todos osseculos ... E, a medida que assim vai deambulando etransformando-se, nao e pela maior virtu de e felicidadedos particulares que anseia ... A humanidade permanecesempre humanidade ... E contudo ha urn plano destesanseios, desta deambula~ao, que se torna vislvel." Eesse 0 meu grande tema!

Ate hoje, quando se procurou tratar 0 tema daprogressao dos seculos, quase sempre surgiu a companhiade uma ideia favorita: progressao orientada para maiorvirtude e maior felicidade dos indivl9uoS particulares.Para tanto, houve que enaltecer, senao mesmo inventar,determinados factos, houve que diminuir ou silenciar osfactos contrarios. Cobriram-se cuidadosamente certosangulos, tomaram-se as palavras por outras palavras, adifusao das luzes pOl' felicidade, certas ideias refinadaspor virtude ... E assim se transformou "0 progressivomelhoramento geral do mundo» numa quantidade deromances, em que ninguem acredita, ou pelo menosnao podem acreditar os verdadeiros disc1pulos da hist6riae do cora~ao humano.

Outros houve que, apercebendo-se dos padecimentosde urn tal sonho, sem contudo conhecerem melhor pos-sibilidacle, trataram cle vel' os vicios e as virtu des numaetema altern;lncia, como os dimas, as perfei~6es humanasaparecendo e desaparccendo, como folhas caducas, oscostumes e as indilla~'()es dos homens a voar ao sabol'do vento, como follJas do destino ... Nenhum plano!NenlJum pro~resso! Eterna revolu~ao! Tecido que se faze desfaz ... TraballlO de Penelope! Presos no remoinho,projectam 0 seu cepticismo sobre tudo 0 que e virtucle,felicidade e determina~ao do homem, injectando-o emtoda a hist<'lria, na religiao e na moral. .. 0 tom maismoderno, mais a moda, dos modernos fil6sofos, sobre-

tlilio dos franceses', e a d6vida! A d6vida sob mil formas,Iiferentes, mas sempre com urn titulo ofuse ante: »extraldoda hist6ria do mundo»! Contradi~6es e ondula~6es ...Naufraga-se. E do pouco que da moraliclade e da filosofiase consegue salvaI' do naufragio quase nao vale a penafa lar.

Nao sera manifesto que existe progresso e desen-volvimento, embora num sentido mais elevado do que:Iquele que alguns imaginaram? Repara nesta torrenteque avan~a! Yes como nasceu de uma pequena fonte,como cresceu, como arranca aqui urn peda~o de terraque acaba por depositar acola, como serpenteia paraIuraI' mais funclo e depois engrossar? Mas permanece

I G 'sempre agua! Sempre corrente! Sempre gota. ota, ate se1;II1~arno oceano ... E se fosse tambem assim com 0

genera humano? Ou repara naquela arvore que nao parade crescer! Naquele homem que se agiganta! Tern quepassar por diferentes idades, sempre em manifest.aprogressao continua, sempre num esfor~o de COntl-Iluidade! Entre cada idade parece haver momentos derepouso, revolu~6es, transforma~6es! E contudo, cadalIm dos estadios contem em si mesmo 0 ponto centralda sua felicidade! 0 adolescente nao e mais feliz que acrian~a satisfeita e inocente, nem 0 pacato anciao menosfeliz que 0 homem a<:iultoempenhado nas suas tarefas.o pendulo oscila sempre com a mesma forp, quando amaxima amplitude the imprime maior velocidade ouquando com toda a lentidao se aproxima da posi~ao derepouso, 0 esfor~o, 0 anseio, e permanente! Na era emque vive, ninguem esta 056: constr6i sobre 0 que 0

precedeu, e 0 que 0 precedeu mais na.? e, mais nao querser do que fundamento do futuro ... E assim que fala a

•0 born Montaigne, na sua honestidade, deu 0 mote; Bayle. 0

dialectico - raisonneurcujas contradi~oes ordenadas pdos aJ'liH"sda sua fonna prefelida de pensar, 0 dicionario, nao plldl'I~1I1l lll>via-mente ser corrigidas pOl' Crousaz ou Leibniz -, ('SI"lllit'li a SII;Iinfluencia ao longo de todo 0 seculo; e chl'H"II d('p"i.'". Ill<lIll"1I10dos modernos fil6sofos que de tlldo dllvidalll all 111<',':11101('1111'"('que produzem as mais ousadas opini()('s: Vllll;III", 11111111',"1'lfll1rioOiderot. Eo grande seculo da dllvida (' dll it'valll;lI lias lllldas.

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analogia na natureza, imagem de Deus discursando emtodas as obras! E evidentemente tambem no generohumano! 0 egipcio nao chegaria a poder existir sem 0

oriental, 0 grego construiu sobre 0 que egipcio lhedeixou, 0 romano elevou-se apoiado sobre os ombrosdo mundo inteiro ... Trata-se pois verdadeiramente deavan~ar, de progredir, de desenvolvimento progressivo,ainda que nenhum homem particular tivesse ganho comisso! 0 processo dirige-se para algo de maior! Toma-se -coisa de que a superficiaIidade dos nossos historiadorestanto gosta de se vangloriar, mas que tao mal demonstra- 0 palco de uma inten~ao condutora na terra! Aindaque dessa inten~ao nao consigamos enxergar a inten~aoultima. Palco da divindade, ainda que s6 possamos ve--10 pOI' entre as aberturas e os destro~os de cenasparticulares!

Mas, pelo menos, 0 que assim vemos e bem maisvasto que 0 alcance daquela fiIosofia que tudo confundee que apenas se detem aqui e aIi no particular desitua~oes intrincadas, para tudo transformar num jogode formigas, em tendencias cegas das diferentesindina~oes e for~as tomadas isoladamente, destituidasde finalidade, ou seja, num caos dentro do qual for~osose toma duvidar da virtude, da finalidade e da divindade!Conseguisse eu Iigar entre si as mais dispares cenas, semas confundir, mostrar como se relacionam umas com asoutras, como crescem umas a partir de outras, como seperdem umas dentro de outras, mostrar que cada umapOl' si e apenas urn momento, mas que todos osIlIOlllenlos IOl11ados na sua progressao sao meiosorielllados para fins ... Que perspectiva nao obteria! Queaplicl~'~)O mais no!>rc sc poderia esperar para a hist6riahuman;!? Quc t'ncoraj:IIlH'nlo n:lo se encontraria ai paraa aq':10, para a csperan~'a, para a fl~?Mesmo quandonada Sl' Vl\ ou qllando n;lo St' ('onscgue vel' tudo!Adiantc ...

Tambem a constitui~ao universal dos romanos teve(I seu fim. E, quanto mais elevado 0 ediflcio, quantofllais alto implantado, tanto maior 0 fragor da queda!Metade do mundo ficou em ruinas. Sob a arvore tinhamvivido os mais variados povos e territ6rios, mas agora,(ille a voz dos guardioes sagrados soltara 0 brado do;\I>ate,fizera-se urn imenso vazio! Como urn golpe no fio(Ios factos universais! Era preciso que surgisse nada1I1enosdo que urn mundo novo, para colmatar a brecha.

Era a Norte que se encontrava. E, sejam quais forem;\S conjecturas que a partir do estado em que essesIlOVOSse encontravam se possam fazer sobre as suas(lrigens OU os respectivos sistemas, a hip6tese maisvl'rdadeira parece ser a mais simples: vivendo em paz,nam pOI' assim dizer «regimes patriarcais, segundo 0

Illodo que tais regimes podiam revestir no Norte», Umavcz que nesses dimas nao era possivel uma vida depastoreio a maneira oriental, uma vez que a pressao dasflccessidades imediatas oprimia estes homens muito maisdo que em regioes em que quase e suficiente a simples;\('~ao da natureza, uma vez que essas mesmas neces-,~idades e os ares frios os endureceram muito mais do(ille pode acontecer aos que viviam pOI'entre os quentes;\romas das estufas do SuI ou do Oriente, muito natural-l1lente aconteceu que estes homens permaneceram numl'stado de maior rudeza, as suas sociedades permaneceramlltais separadas e mais selvagens. Mas, porque os la~'os(Ille Iigavam os individuos conservavam toda a suafor~a, porque 0 instinto e a for~a humana conscrvaV:111lloda a sua riqueza, 0 pais pode tornar-sl' aquilo qlfl'T:tcito descreve. E, quando 0 imenso O(,l':lno Il('mli('o depovos levantou as suas ondas l' sc p{lSCIIIIllovinll'nlo,;ISondas empurraram as ondas, os povos kvaralll ;'l Slla

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frente outros povos. A volta de Roma tinham caido asmuralhas e os diques. Tinham sido os pr6prios romanosa mostrar as fendas, a atrair esses povos para a tarefa deas remendar. Quando pOI' fim tudo se desmaronou, queenorme inunda\=ao do SuI pelas aguas do Norte! E depoisde todas as convulsoes e de todos os horrores, que no-vo mundo esse, misto de n6rdico e meridional!

Quem observa 0 estado em que se encontram nosultimos seculos os paises romanicos (paises que noutrotempo constituiram 0 universo culto) nao pode deixarde sentir espanto e admira\=ao perante 0 caminho que aprovidencia escolheu para preparar uma tao notavelsubstitui\=ao das for\=as humanas. Tudo tinha ficadoesgotado, sem vida, arruinado. Territ6rios abandonadospelos homens, povoados pOI' criaturas sem fibra que seafundavam na opul€mcia, no vicio, na desordem, na li-cen\=a e num orgulho guerreiro selvagem. 0 que tinhahavido de belo nas leis e nos conhedmentos dos roman osnao conseguia substituir for\=asque tinham desaparecido,recompor as fibras de corpos que nao sentiam em si 0

espirito da vida, excitar as energias prostradas.,. A morte,portanto! Um cadaver despeda\=ado no meio de umcharco de sangue ... E eis que no Norte tinha nascido umnovo homem! Sob um ceu mais frio, numa paisagemdeserta e selvagem, onde ninguem suspeitaria, amadu-recia ja uma onda primaveril de ervas robustas e cheiasque, quando transplantadas para as terras mais belas doSui - pOI' ora transformadas em terreno desolado -,haviam de tomar uma nova natureza e oferecer '10

destino do mundo uma cnorme colheita! Godos,vandalos, burglJl1dios, anglos, In1l10s,herulos, francos eblllgaros, cslavos c lombardos. Chegaram, estabeleceram--se c 0 mundn IllOderno, do Mediterraneo ao Mar Ne-gro, do At"'nti<'o ao Mar do Norte, e obra sua, gera\=aosua, constitlli~':10 politica sua!

E n:l0 tr<lllXCramapenas for\=aspara serem aplicadas.Que leis e «lie institui\=oes trouxeram tambem para 0

grande palco onde se processa a constru\=ao do mundo!E certo que desprezavam as artes e as ciencias, a opulenciae os refinamcntos ... que afinal tinham devastado a

IllImanidade. Mas, se em vez de artes traziam consigo aILllureza, em vez das ciencias a saude do seu n6rdico('Iltcndimento, em vez de refinamento costumes fortes eIII ms, ainda que selvagens, se tudo isto estava agora em« mdi\=oes de fermentar em con junto .. , Que grande,l('ontecimento! Vede as suas leis, como respiram coragemviril, sentimento de honra, confian\=a no entendimento,II;' lealdade e no respeito pelos deuses! Vede a sua(Irganiza\=aofeudal, como enterrou 0 tumulto das cidadespopulosas e opulentas para cultivar os campos e darIrabalho aos homens, criando pessoas saudaveis e, pari.~somesmo, satisfeitas! Mais tarde, resolvidas as neces-sidades, desenvolveram um ideal orientado para a('astidade e a honra que enobreceu 0 que de me1horpodia haver nas inclina\=oes humanas. Um ideal fixado('Ill romance, e certo, mas romance de e1eva\=ao: florvcrdadeiramente nova da alma humana.

Pense-se, pOI' exemplo, nos seculos que durou estaletmenta\=ao, no tempo de que a humanidade podetlispor para se restabelecer e exercitar as suas for\=as.( :onsequencia do desmembramento geral em pequenosgrupos, em pequenas sec\=oes e subdivisoes, da existenciatie um numero vastissimo de partes constituintes do"Ido! Cada membro entrava em fric\=ao com outro eludos eram obrigados a manter 0 fOlego e as far\=as. Umtempo de fermenta\=ao! Mas foi precisamente estakrmenta\=ao que impossibilitou durante tanto tempo 0

:1parecimento do despotismo, essa autentica gargantadevoradora da humanidade que tudo engole, que tuck>reduz a uniformidade e a morte - chamando-Ihes embora(lbediencia e paz! sera me1hor para a humanidade, ser-Ihe-a mais saudavel e mais recomendavel produzir sim-ples rodas sem vida de uma enorme maquina rigida csem pensamento, ou sera preferivel que desperte eexcite as for\=as que tem em si? Ainda que a custa(Iaquilo a que se costuma chamaI' constitui\=oes pollticasimperfeitas, desordem, pontos de honra barbaros,irascibilidade selvagem, ou de outras coisas parecidas ..,Se alcan\=a os seus fins, tudo isso sera sempre melhor doque, estando vivo, estar morto e apodrecer.

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Entretanto, entendera por bem a providencia juntara esta nova fermentayao de seivas nordicas e meridionaisurn outro fermento ainda: a religiao crista. Nao seranecessario comeyar por me desculpar perante este nossoseculo cristao pelo facto de falar da religiao crista comose de uma mola do mundo se tratasse. Observemo-Iaapenas como fermento, como uma levedura, para obeme para 0 mal e para 0 que mais se quiser.

Mas este ponto, sobre 0 qual ha erradas interpretayoesvindas de dois lados, merece ser aqui discutido.

A religiao do mundo antigo, que, partindo do Oriente,passara pelo Egipto, pel a Grecia e chegara a Italia, tinha--se tornado a todos os titulos urn produto sem forya, urncorpo sem vida, 0 autentico caput mortuum daquilo queja tinha sido e deveria ser. Se se observar a mitologiatardia dos gregos e aquela especie de espantalho politicoque era a religiao popular dos roman os, mais nao serapreciso acrescentar ... E assim, agora, praticamente «naohavia outro principio de virtu de» no mundo! A ideiaromana do sacrificio pela patria tinha tombado das alturase jazia no lodayal da devassidao e da desumanidadeguerreante. On de estava a honra juvenil e 0 amor pelaliberdade dos gregos? E 0 antigo espirito egipcio, ondese teria exilado quando os romanos e os gregos vieramaninhar-se na sua terra? Onele encontrar agora substituiyaopara esses valores? A filosofia nao a podia fornecer:tinha-se transformado el11 degenerado exercicio desofjslas, ('Ill arte de disputar, em amontoado de opinioesS('1I1for<;a11('111C<1IIvic~';'IO,tinha-se tornado uma maquinavl'iha, ("olH'rta d(' alldrajos, incapaz de agir sobre 0

("or:I~':lodo,~ hOIIl('IIS, mais inca paz ainda de reformarUIII:1('ra :IITliinad:I, um mundo tombado por terra. E:Igora ('1':1lI('n'ss:irio que se construisse sobre as ruinas,(' ('SS(' lrahallto devia partir de povos que, dado 0 estadoelll qll(' S(' ('II("ontravam, estavam ainda carenciados deUIlI:1n'lixi:\o, qlle so por ela podiam ser encaminhados,que ('lIllud() Illisturavam ainda 0 espirito da superstiyao ...Mas, 110novo cenario que tinham vindo ocupar, nada('nconl raV:lIl1que Ihes nao repugnasse, que lhes pudesseservir: IIlito!ogia e filosofia romanas, colunas de pedra e

I':lntasmas morais ... Ao mesmo tempo, a religiao nordicaque traziam, esse resto do Oriente construido a maneirado Norte, ja Ihes nao chegava ... Precisavam ele umardigiao mais viyosa, mais activa e eficaz. E, veja-se bem!A providencia tinha acabado de fazer nascer uma talrdigiao no local em que menos se poeleria esperar 0

aparecimento de algo capaz de proceder a renovayao delodo 0 mundo ocidental. Entre os montes escalvados da.Iudeia! Pouco tempo antes da queda desse povodesconhecido, no momenta mais miseravel da suahistoria ... De urn modo que nao podera deixar denmtinuar a afigurar-se-nos maravilhoso, essa religiaosurgiu, manteve-se e, nao menos espantosamente, conse-guiu romper por entre precipicios e cavernas, fazer urn('norme percurso e chegar aquele palco que tanto delal1ecessitava e onde havia de exercer tamanha e taod'icaz acyao. Certamente 0 mais espantoso facto dolIlundo!

Nao restam duvielas de que foi grandioso, notavel, 0

('spectaculo: na epoca de Juliano, 0 embate entre as(Iuas mais celebres religioes, a antiga religiao paga e aIlloderna religiao crista, lutando por nada menos que 0

(Iominio sobre 0 mundo inteiro. A religiao - viu-o ele evia-o qualquer urn -, em toda a forya da palavra, era;tbsolutamente necessaria ao seu seculo em decadencia.I':viu igualmente que a mitologia grega e as cerimoniasl'statais romanas nao eram suficientes para os fins quequeria que 0 seu seculo atingisse. Lanyou, pois, mao deludo 0 que tinha ao seu dispor: da religiao mais vigorosa(' mais antiga que conhecia, a religiao do Oriente. Tratou(Ie estimular nela tudo que ai houvesse de foryasmiraculosas, de praticas magicas, de apariyoes, tranfor-manclo-a par completo em teurgia. Recorreu ate onclep6c1e a filosofia, ao pitagorismo, ao platonismo, para('mprestar ao conjunto urn verniz cle racionaliclacle.(:olocou tuclo sobre 0 carro triunfal do mais elaboracloaparato e fe-Io puxar pelos animais mais inelomaveis eleque clispunha, a violencia e a exaltayao, concluziclo pelamais requintacla politic a cle estaclo ... Tuclo em vao! Essarcligiao sucumbiu! Porque estava clecrepita! Tuclo nao

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passara de urn miseravel enfeite colocado sobre urncadav~r que s6 em tempos idos poderia tel' feitomaravI~has. Venceu a nova religiao, a religiao crista!

Veja-se que qualquer estranho, urn mu~ulmano ouurn mameluco, podia observar os factos e escrever 0mesmo que eu. Prossigo, pois.

~inguem pode negar que essa mesma religiao,nascl~a de modo tao espantoso, devia, no senti doant~vIsto pelo seu fundador (e nao quero discutir seaSSlm aC~nteceu de facto na aplica~ao que the foi dada~m cada epoca), vir a tornar-se religiao da humanidade,lmp~lso para 0 amor, elo de liga<;:ao entre todas asna~oes capaz de as transformar num exercito fraternal.~ra esta a sua finalidade, de extrema a extremo! E e19ualmente certo que essa religiao (apesar do que delap~ssa~ tel' feito mais tarde os seus seguidores) foi apnmelra que pregou verdades tao puramente espirituaisdeveres tao fundados no cora~ao, sem recurso ~ro~pagens _desnece.ssarias, a supersti<;:6es, a ornamentos,a vlOlen:a~oes. A pnmeira que pretendeu reformar apenaso corapo humano, todos os cora<;:6es, sem excep<;:aoTodas as religi6es precedentes, nos melhores momento~e ent.re os melhores povos, nunca tinham ultrapassado aestrelteza do seu caracter nacional, carregadas de imagense de ro~pa?ens, de,ce~im6nias e de costumes nacionais,aos qU~I~so pOl'acreSClmo se vinham juntar as obriga<;:6esessenClaIS... Resumindo, tratava-se sempre de religi6es~e urn povo, de urn territ6rio, de urn legislador, de umaepoc~! Em tudo esta nova religiao mostrava ser 0 oposto,a malS depurada das filosofias morais, a mais pura teoriad~s vercIades e dos deveres, independeme de todas asleIs e das constitui~6es politicas particulares S. ... e seqUlser e p.ara abreviar, 0 delsmo mais filamr6pico ...!

E aSSll11,certameme, religiao do universo. Outroshollve, e inclusivamente sells inimigos, que 0 demons-traram: uma tal religi:l0 n:lo pocleria certamente tel' germi-nado, ou ter-se levamado, ou ter-se insinuado _ use-seo termo que se. quiser -, num outro tempo, nem maiscedo, nem malS tarcle. 0 genero humano teve de sepreparar para 0 defsmo ao longo cIe muitos seculos.

Teve de sail' progressivamente cia infancia, cia barbarie,da idolatria, do dominio da materialidade sensivel. Asfor<;:asanimicas cia humanidade tiveram que se desen-volver atraves de inumeras procIu~6es nacionais, noOriente, no Egipta, na Grecia, em Roma e noutros lados,:ltraves de diferentes graus e pOl' diferentes caminhos,antes cIe pocIer tel' sido dado 0 mais timido passo emdirec<;:aoa intui~ao, ao conceito, a aceita~ao do ideal dereligiao, de obriga<;:ao moral e de uniao dos povos.Mesmo considerando-o urn mero instrumenta, pareceevidente que 0 espirito cIe conquista dos romanos tinhaque precedeI' esse ideal, para pOl' toda a parte lhepreparar os caminhos, para estabelecer uma ate entaoinsuspeitada rela~ao politica entre os povos, para aomesmo tempo dar curso a icIeias igualmente insuspeitadasde tolerancia e de direitos dos povos ... Assim se tinhaampliado e iluminado 0 horizonte sobre 0 qual seprecipitava agora uma dezena cIenovas na<;:6estrazendoconsigo uma predisposi~ao completamente nova paraessa religiao de que precisavam e com a essencia daqual se iam fundir pOl' inteiro ... Oh, fermento! Comofoste maravilhosamente preparacIo! E como tudo te foipreparado! Como tudo foi profunda e amplamentemisturado! Longa e vigorosamente acalentado e levecIacIo!()nde vai cIesembocar entao tocIa esta fermenta~ao?

Parece-me pois que a questao (que com tantafrequencia desperta sarcasmos tao espiriruosos e taofilos6ficos) cIe saber «onde tera existido em estaclo puroeste fermento a que se chama religiao crista, onde teraexistido sem estar amassacIo com mentalidades especi-ficas, as mais dispares e muitas vezes as mais execraveis ..,faz abertamente parte cIa natureza do assunto em causa.Se esta religiao era - como de facto acontece - 0 espiritorefinado de «urn deismo da amizacIe entre os homens ..que se nao podia misturar com nenhuma lei civil emparticular, se era essa filosofia celestial que, precisamentepOl' via cIa sua eleva~ao e cIa sua pureza nao terrena,estava em condi~6es de abarcar 0 munclo inteiro, parcc('--me pOl' outro lacIo que era de todo imposslvel qll('livesse podido existir e tel' sido posto em pratica 11m lal

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aroma delicado sem ser misturado com materia terrenasem necessitar dessa materia para Ihe servir, digamo;assim, de velculo. Essa materia foi natural mente amentalidade de cada povo, os seus Costumes e as suasleis, as suas inclina~oes e capacidades... 0 que nelahouvesse de quente ou de frio, de bom e de mau, debarbaro ou de culto ... Tudo, tal como existia. A re!igiaocrista devia atravessar tudo isso e nao podia deixar de 0fazer, e todo aquele que concebe realiza~oes divinassobre este mundo e sobre 0 reino dos homens executadaspor uma Outra via que nao seja a das rodas mecanicasdeste mundo e dos homens que 0 habitam, estara porcerto mais habilitado para as abstrac~oes da inven~aout6pica do que para as da filosofia natural. Quando eque, no seio da imensa analogia da natureza, a divindadeoperou de outro modo que nao fosse por intermedio danatureza? E sera que dai se infere que nao exista a divin-d~~e? Sera que nao e precisamente assim que adlvmdade age em todas as suas obras, omnipresente, demodo uniforme e invisivel? Deixou, pois, que, sobre umpalco humano, evolufssem todas as paixoes humanas!Em cada idade do mundo de acordo com essa idade! Emcada parte do mundo, em cad a na~ao! A religiao naotem que realizar os seus fins senao por intermedio doshomens e para uso dos homens ... Fermento ou tesouro:cada qual transporta-a no recipiente que e 0 seu emistura-a Com 0 pao que amassa! E, quanto mais de-licado 0 perfume, quanto mais vohltil, mais necessario en~i_stura-Iopara poder ser utilizado. Nao vejo nas opi-nloes que a esta se op()em qualquer sentido realmentehurnano.

E assilll, para falarmos em terl110Sestritameme fisicose humanus, 0 eSlal!o de mistura em que se encontrava areligiiio cris!:! era 0 mais seleccionado que se possaimaginar. Peranle a miseria dia a dia crescente, tomoucoma dos pubres, e de tal forma que nem Juliano lhepodia negar esse merito elogioso. Mais tarde, em tem-pos de convulsao, foi 0 consolo e 0 refugio capaz defazer frente ;l penuria geral (nao me refiro ao modocomo disso sempre se aproveitou 0 clero) e, desde que

(IS barbaros se converteram, foi-se tornando progres-,';ivamente em autentico baluarte da ordem e da seguran~a(Iu mundo. E se era capaz de domar 0 fmpeto dos leoes(. de triunfar sobre os triunfadores, veja-se como era;Ipropriada essa massa, como podia penetrar fundo,como podia agir ampla e eternamente! As constitui~oespoliticas particularesem que podia abarcar tudo! Asclasses sociais tao afastadas por entre as quais se movialormando por assim dizer a classe intermedia geral! Asimensas lacunas da organiza~ao meramente feudal eguerreira que tratava de preencher com 0 seu saber, asua defesa dos direitos, a sua influencia sobre asmentalidades, tornando-se por toda a parte a almaimprescindivel dos seculos cujo corpo se resumia asinclina~oes guerreiras e a escravatura agricola ... Poderialer havido outra alma, que nao a da piedade, capaz dejuntar os membros desse corpo e de Ihe dar vida? Se 0corpo se encontrava decidido pelos decretos do destino,«(ue loucura seria querer imaginar-Ihe urn espirito amargem do espirito do tempo! Era este, assim me parece,() unico meio possive! para a progressao!

Quem nao se tera apercebido de que em cadaseculo 0 chama do "cristianismo» revestiu sempre umalorma em analogia com a da constitui~ao na qual oucom a qual existia! Veja-se por exemplo como 0 espiritog6tico se introduziu tanto nos aspectos interiores comonos aspectos exteriores da Igreja, dando forma as vestes,:1s cerim6nias, a doutrina, aos templos, transformando avara do bispo em espada, porque todos usavam espada,criando prebendas eclesiasticas, feudos e escravos,porque por toda a parte os havia. Veja-se, seculo ap6sseculo, essas tremendas organiza~6es de fun~oeshonorificas eclesiais, os mosteiros, as ordens, por fim ascruzadas e a domina~ao aberta exercida sobre 0 mundo ...Monstruoso ediflcio g6tico! Sobrecarregado, opressivo,sombrio, sem gosto ... 0 mundo parece afundar-se sob 0

seu peso ... Mas, ao mesmo tempo, grandioso, rico,meditado, poderoso! Aquilo de que vos falo e urnacontecimento hist6rico! Maravilha do espirito humanue, por certo, instrumento da providencia.

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e tivesse encontrado, sem duvida, alguns pontos desemelhanc;a. Mas, em minha opiniao, tal espirito, seobservado em si mesmo, permanece unico na sequenciade todos os seculos. Identico apenas a si mesmo! Houveigualmente quem 0 ridicularizasse impiedosamente, porse encontrar a meio caminho, entre os romanos e nos -nos, veja-se bem, quanti viri! E houve tambem quem,dotado de uma mente mais ou menos ousada, 0 elevasseacima de todas as coisas ... Ao que me parece, e nadamais nada menos do que «um estado particular peloqual 0 mundo passou·, incomparavel aos anteriores,mas, como eles, com os seus defeitos e as suas vantagens.Fundado sobre os precedentes, ele mesmo em perpetuatransformac;ao e desenvolvimento ... em direcc;ao a algode maior.

Os aspectos obscuros desse lapso de tempo encon-tram-se em todos os livros: qualquer belo espirito detendencias classicas, convencido de que 0 estado poli-ciado do nosso seculo e 0 non plus ultra da humanidade,encontra motivos para lanc;ar improperios sobre seculosinteiros daquilo a que chamara barbarie, direito publicoinfame, estupidez, imoralidade e falta de gosto, nasescolas, nas propriedades agrarias, nos templos, nosmosteiros, nos municipios, nas corporac;6es, nas cabanase nas casas, e para lanc;ar gritos de jubilo a proposito dasluzes do nosso seculo, ou seja, a proposito da frivolidadee da exuberancia, do calor das ideias e do frio queregela as acc;6es, do vigor e da liberdade aparentes e daverdadeira fraqueza, do verdadeiro cansac;o mortal queresulta da submissao deste nosso seculo a descrenc;a, aodespotismo e a opulencia. De tudo isto estao repletos oslivros dos nossos Voltaires e Humes, Robertsons e Iselins,e e tao belo 0 quadro que resulta quando mostramcomo dos conturbados tempos do deismo e do des po-tismo exercido sobre as almas se chega a difusao da:-;luzes e a reforma do mundo, ou seja, a filosofia e a pal.,que 0 corac;ao de um amante do seu tempo nao podedeixar de rejubilar.

Tudo isto e verdadeiro e falso. Verdadeiro, :-;eno:-;limitarmos, como faria uma crianc;a, a usaI' as cores llll1a:-;

E, se com as suas fermentac;6es e fricc;6es 0 corpogotico tratava de excitar forc;as, nao e menos certo que 0

espirito que animava e unia esse corpo Ihes veioacrescentar 0 seu contributo. E quando esse espiritoespalhou pela Europa uma mistura de conceitos e deinclinac;6es de grande elevac;ao, que nunca tinham agidoem tal proporc;ao e com tamanho a!cance, e certo que areligiao estava latente em tais conceitos e tais inclinac;6es.Como nao posso aqui entrar no pormenor dos diferentesperiodos pelos quais foi passando 0 espirito ao longodos tempos medievos, chamar-Ihe-ei apenas espiritogotico, espirito cavaleiresco nordico, no senti do maisamplo ... Fenomeno grandioso de tantos seculos, detantos paises e situac;6es!

De certo modo continua a tratar-se da .condensac;aode todas as inclinac;6es desenvolvidas previamente pOl'povos singulares ao longo de periodos determinados •. Emesmo possivel reduzi-Ias a estes ultimbs. Mas 0 elementoactivo que tudo unia, obtendo 0 todo vivo de umacriatura de Deus, deixara de ser, em cada particular,aquilo que tinha sido. As inclinac;6es paternais e aadorac;ao sagrada do sexo feminino, 0 indestrutivel amorpela liberdade e 0 despotismo, a religiao e 0 espiritoguerreiro, a ordem severa e 0 gosto pelas festividadesou pOI' invulgares aventuras ... Tudo isso se reunia agorana mesma corrente! Conceitos e inclinac;6es dos orientais,dos romanos, dos nordicos, dos sarracenos! Quem sabequando, onde e em que medida se reuniam ali e agoramodificando-se mutuamente? 0 espirito do seculoatravessava e interligava as mais variaclas caracteristicas,a bravura e 0 espirilo de ciausura, a aventura e agalanteria, a tirania e a l10hreza de alma. Todas elasinterligava nUIll lodo que hoje, quando olhamos paraesse tempo que Illedeia entre nos e os romanos, nossurge COlllO UIll fantasma, como aventura romantica.Tempo houve em que foi natureza, em que foi verdade.

Houve quem comparasse este espirito de «honracavaleiresca n6rdica. com os tempos heroicos dos gregos·

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em contraste com as outras para obtermos uma pequenaimagem muito clara e luminosa ... Mas infelizmente 0

nosso seculo tern tanta luz ...! Falso, se observarmosesses tempos idos na sua essencia, nos fins para que seorientava, nos seus prazeres e nos seus costumes.Sobretudo se os observarmos como instrumento nasequencia temporal. Nessas instituiyoes e associayoesaparentemente violentas havia tantas vezes factores desolidez, de ligayao, de nobreza e de grandiosidadeque n6s, com toda a nossa elaborada moral - Deus aguarde! -, com as nossas corpora~oes dissolvidas e, porisso mesmo, com os nossos paises aprisionados, com anossa inteligencia congenita e 0 nos so filantropismocapaz de se estender ate ao fim do mundo, nao sentimosnem podemos sentir. Ve bem! Ridicularizas a servidaodesses tempos, a rudeza das moradias rurais dos nobresos inumeros enclaves e subdivisoes e 0 que dai decorria ..:Nada valorizas mais do que a dissoluyao desses layos, enao conheces bem maior do que aquilo que aconteceu:1 Europa quando se tornou livre, e com ela 0 mundointeiro. Livre? Meu doce sonhador! Se ao menos isso, es6 isso, fosse verdade! Mas procura ver tambem como ascircunstancias daqueles tempos puderam desenvolvercoisas que, se assim nao tivesse sido, teriam deixadopcrplexa a inteligencia da humanidade. A Europapovoada e reconstruida. Os sexos e as familias, 0 senhor(. () servo, 0 rei e os subditos, ligados uns aos outros porLI\;oSestreitos e fortes. As moradias que achamos rudes('ram urn obstaculo contra 0 crescimento opulento e1I1.s:i1ubredas cidades, esses abismos onde se perdem asI('I'<;:ISvitais da humanidade. A ausencia de comercio e.1(' nol'inamento obstava ao abrandamento dos costumes,. IIwltinha urn sentido de vida simples: castidade e"'llilldidade dos casais, humildade, aplicayao e coesao('111(':l<la casa. As rudes corpora~oes e os costumes',('Illilll'iais conduziam ao orgulho do artesao e do cava-1('110,Illas conduziam tambem it confianya que cada urn111II LI <'III si pr6prio, it firmeza dentro do seu circulo, it\ 11111.1.1.1('cOllcentrada sobre 0 seu ponto de aCyaO,e de-"Clilli.1I11(',ssas gentes da pior praga da humanidade, 0

juga dos paises e das almas sob 0 qual tudo se afunda,de animo livre e alegre, desde que se suprimiram osisolamentos. Puderam assim surgir, um pouco mais tarde,imensas republicas guerreiras e cidades armadas para aguerra. Mas primeiro tiveram que ser lanyadas it terra ealimentadas por ela as foryas que as fricyoes haviam deeducar e sobre cujos tristes restos ainda hoje viveis. Se 0

ceu vos nao tivesse enviado previamente os temposbarbaros, se nao os tivesse conservado tanto tempo porentre ataques e golpes ... Oh, pobre Europa policiada,que devoras ou renegas os teus filhos, que serias tuentregue it tua sabedoria? Urn deserto!

«Nao havera ninguem no mundo capaz de com pre-ender que a luz nao alimenta os homens? Que a quie-tude, a opulencia e a chamada liberdade de pensamentonunca poderao constituir a felicidade e a determinayaogerais?« Mas as impressoes, 0 movimento, a ac~ao -ainda que perdendo subsequentemente a sua finalidade(sera que, sobre 0 palco da humanidade, alguma coisatern uma finalidade eterna?), ainda que acompanhadospor choques e revoluyoes, ainda que misturados comsentimentos que aqui e alem se tornam exaltados,violentos, quando nao abominaveis -, que poder, queeficacia a sua, enquanto instrumentos manuseados pelocurso dos tempos! Alimento do cora~ao e nao da cabeya!Tudo interligado com determinados impulsos einclinayoes, em vez de pensamentos doentios! Piedadee honra cavaleiresca, ousadia do amor e firmeza doscidadaos, constitui~ao politica do estado e poderlegislativo, religiao ...! Estou longe de querer fazer adefesa das constantes migrayoes foryadas, dasdevastayoes, das guerras feudais, dos conflitos desuserania, dos exercitos de monges, das peregrina~oesou das cruzadas. Mas pre tendo explica-Ios. Mostrar ()espirito que respira em tudo isso! Mostrar a fermenta~'i\odas for~as humanas! 0 enorme processo de cura pOI'que passou toda a especie human a ao atravessar 1;'10

poderosas movimentayoes! Se me e permitida a ousaclia,pretendo mostrar que 0 destino - e certo que COlliestrondo e sem ter conseguido 0 equilibrio dos pes\ IS --

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deu corda ao grande rel6gio que se encontrava para do!E as rodas do mecanisme come\=aram a fazer-se ouvir!

Que diferentes me surgem esses tempos quandovistos a esta luz! Quantas coisas lhes posso perdoar, poisse eu pr6prio os vejo em permanente luta contra ascarencias da humanidade, em combate pela transforma\=aopara melhor, e se vejo tambem que essa transforma\=aoexcede as de outros tempos! Que ultrajantes, que falsase exageradas as imputa\=oes que se lhes fazem, pois queos abusos que se lhes atribuem ou apenas existem nacabe\=a de quem os inventa, ou eram nessa epoca muitomais atenuados e inevitaveis, compensados por corres-pondentes virtudes, ou entao tedo que nos surgir hojeclaramente como instrumentos orientados para um maiorbem, destinado ao futuro, e no qual esses tempos naopodiam sequer pensar! Havera alguem que ao ler estahist6ria nao se interrogue: inclina\=oes, virtu des da homae da liberdade, do amor e da coragem, da cortesi a e dapalavra, onde vos haveis perdido? A vossa profundidadedesapareceu no loda\=al! A solidez em que assentaveistornou-se um chao de areia repleto de graos luzentesmas on de nada cresce! Mas, seja como for, tantos sao osaspectos em que desejariamos que nos desseis a vossadevo\=ao e supersti\=ao, as vossas trevas e ignorancia, avossa desordem e rudeza de costumes, e que noslibertasseis da nossa luz e da nossa descren\=a, da nossafrieza' sem vigor e dos nossos refinamentos, da nossafadiga filosNica e da nossa miseria humana! Mas afinal amonlanha e 0 vale n:10 podem deixar de confinar entresi! E aqllele arco s61ido c sombrio nfio podia ser outracoisa sell;jo ... UIlIareo s(llido e SCHlllll'ioll lm arco g6tico!

[1111 passo de xiganle na IllardJa do destino humano!Admitalllos pOl' 11111 11101 llt'Il10 quc s;jo nl'cessarias ruinaspara que depl lis pI)ssa haver mclhoramcnto e ordena\=ao ...Um cnorme pas.~o! Foi necessaria uma tao grandeobscuridadc para que pudesse haver luz? Foi necessarioque 0 n(> Sl' apcrlasse com for\=a para que pudesseseguir-se UII1 desenvolvimento liberto? Foi necessaria afermental,-;'Io para que se pudesse produzir 0 nectardivino, pum, lranslucido? Tanto quanto me parece devera

ser essa a conclusao imediata da «filosofia pr~ferida" donosso seculo. Poderieis assim demonstrar magl11fi~an:en~eI(ue foi precise come\=ar por desbastar com vlOlenCl.alima quantidade de angulos para que pudesse surglrcsta coisa redonda, lisa e delicada que n6s somos! Que,no campo da Igreja, foi preciso passar po: tant~s erros,horrores absurdos e blasfemias, que fOJ preClso queseculos inteiros lutassem por uma transforma\=ao, queclamassem por melhorias, que empenhassem todos osseus esfor\=os, para que pudesse ter-se produzido avoss a Reforma ou 0 vosso lucido e resplandecentedeismo! A ma politica de estado teria precis~do _depercorrer por inteiro 0 ciclo dos seus err.os e abomma\=oesantes de poder surgir, no pleno sentldo da palavra, anossa «arte de governar", qual sol nascente erguendo-seda noite e do nevoeiro ... Continua a tratar-se do mesmoquadro embelezado de ordena\=ao ~ progresso danatureza. E tu, brilhante fil6sofo, encavahtado aos ombrosde tudo 0 que te precedeu! .

Mas nao consigo persuadir-me de que h~ja algum:coisa no reino de Deus que seja apenas melO! Tudo esimultaneamente meio e fim. Por certo tambe~. essesseculos de que venho falando. Se a flor do eS~,lflto d~tempo, 0 «sentido cavaleiresco da vida", era Ja em SImesma um produto de todo 0 passado transposto agorapara a s6lida forma que revestia em terras .do Norte, seantes era desconhecida a mistura dos conceltos d~ homae de amor de fidelidade e de piedade, de valentla e decastidade,' que agora se transformara em ideal vige~te,veja-se ao mesmo tempo em que medida aquele se~tldose levantava contra 0 mundo antigo, pois que se .tlnha)erdido 0 antigo vigor pr6prio de cada caracter naClonal,I . f -e veja-se igualmente como essa mistura cumpna.a u~\=aode 0 substituir e de alimentar 0 progresso em dlrec\=ao aalguma coisa de maior. Do Oriente ate R~ma, 0 quevimos era um tronco. Agora, do tronco partlam ramos epequenos rebentos. Nenhum deles em si mesmo com afor a de um tronco, mas todos eles espalhados .COIll

maior amplitude, respirando melhor, atingindo .m:lIoresalturas! Apesar de toda a barbarie, os conheClmcntos,

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tratados segundo os preceitos da escoIastica, eram maisrefinados e mais elevados. Os sentimentos, aplicadosembora de modo barbaro ou segundo 0 espirito clerical,eram mais abstractos e mais elevados. Desses conheci-mentos e sentimentos decorriam os costumes que erama sua imagem. Pode dizer-se que praticamente nenhumaepoca anterior tinha conhecido uma religiao que sepudesse comparar com esta, por muito que pudesseparecer miseravel. Mesmo 0 que possa haver de maiselaborado na religiao turca - e que os nossos deistastanto the louvam - so pode surgir "por influencia ciareligiao crista", e a propria miseria das subtilezas monas-ticas e das mais romanescas quimeras mostra bem quehavia no mundo suficiente refinamento e habilidadepara as inventar e para as usaf. Tanto refinamento etanta liberdade que se come~ou de facto a respirardentro desse elemento refinado. 0 papado nunca poderiater existido na Grecia ou na Roma al1tiga, nao apenaspelas razoes que vulgarmente se invocam, mas logodevido a antiquissima simplicidade de tais povos, umavez que nao havia ai nem interesse nem espa~o para osrefinamentos desse sistema; e nao havera duvida de queo papismo do antigo Egipto era, no minimo, uma maquinabastante mais imperfeita e pesada. As novas formas clegovernal,'ao, com tudo 0 que nelas havia de gosto gotico,praticalllellte Ilullca tinham 'linda existido. Com a ideiab;irbara de hierarquia a atravessa-las dos mais pequenoselementos all' ao topo, com as tClltativas sucessivamentell1odif'icld;ls dc ludo illterligar sem que nada ficassedCluasiado l'H'so .., () aClso, ou antes a for~a bruta edescolllmlad;1 leI: COlliqlle tudo se fosse esgotando emIllllilas ll('quI'llas f'onllas de uma grande forma, segundolllll proc\'sso (I' Ie os politicos teriam dificuldade emilllagillar. 11111CIOSem que tudo aspirava a uma novacria\,';\o, Illais \'kvad'l, sem que se soubesse como, nemsob qu\' f'on1\;1 .. ) As obras do espirito e dos geniosdesses 1l'IIIpOSlambem eram assim: cheias de um aromaque era UIII somatorio das mais variadas epocas,clemasiado cheias de belezas, de refinamentos, dedescoberlas L' de orclena~ao para que possa subsistir

alguma beleza, alguma ordem, alguma descoberta ...Semelhantes aos edificios goticos! E se 0 espiritoconseguisse estender-se ate aos mecanismos mais pe-quenos, aos costumes mais infimos ... Sera erradover aparecer nesses seculos a copa do antigo tronco?Nao digo 0 tronco, porque nao seria possivel, mas osramos superiores da copa. is: precisamente a ausencia deunidade, a complexidade, a abundancia de ramos e derebentos que constituem a natureza propria de sseespirito! Desses ramos pend em os botoes do espiritocavaleiresco e, quando a tempestade lhes tiver arrancadoas petalas, tera chegado 0 momento de ver a beleza dosfrutos.

Tantas na~oes irmas e, contudo, nenhuma monarquiadominando a terra ...! Em certa medida, a partir daqui,cada urn dos ramos passou a constituir um todo. E deleiam nascendo os pequenos rebentos. Ramos e rebentoscrescendo a par, entrela~ando-se, confundindo-se, cadaqual com as suas seivas ... Esta multiplicidade de reinos,esta coexistencia de comunidades irmas, todas de umamesma estirpe alema, toclas orientadas por um mesmoideal de constitui~ao politica, todas partilhando a fenuma mesma religiao, cada uma delas em luta consigopropria e com os seus membros mas toclas elas atraves-sadas pela sagrada brisa do prestigio papal que, quasesem ser percebida, nao deixava contudo de as mover efazer crescer ... Que mudada esta a arvore! Por entrecruzadas e conversoes de povos, on de nao chegaram osramos, os rebentos, os bot6es floridos? Se os romanos,ao subjugarem 0 mundo, tinham siclo levados a dar asna~oes - certamente que nao pela melhor das vias -uma especie de "direito dos povos e de reconhecimentogeral de cicladania romana", 0 papado, com tocla a suaviolencia, tornou-se as maos clo destino a maquinacapaz de produzir uma "uniao ainda mais elevada, 0

reconhecimento geral do imperativo de ser cristao, irmao,homem,,! 0 cantico, e certo que com algumas falsasnotas e experiencias desafinadas, ganhou um tom rnaiselevado. Pelo mundo espalhou-se um certo n(ll11ero deideias, de inclina~oes e de estados de co isas que tinhalll

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vindo a ser reunidos, abstraidos, fermentados ... 0 antigoe simples tronco do genero humano, quantos ramos erebentos produzia agora!

POI'fim seguiu-se, como hoje se diz, a dissolw;:ao, 0

desenlace. A longa noite, a eterna noite deu lugar aclaridade da manha. Veio a Reforma, 0 renascimento dasartes, das ciencias e dos costumes ...! Desceram todas asimpurezas que turvavam 0 liquido! E fez-se ... 0 nossomodo de pensar! A nossa cultural A nossa filosofia! Oncommen{:oit a penser comme nous pensons aUjourd'hui:on n 'etoitplus barbare.

Nenhum outro momenta do desenvolvimento doesplrito humano foi mais belamente descrito! Uma vezque todos os nossos livros de hist6ria, os nossos Discourspreliminaires a Enciclopedia de todo' 0 conhecimentohumano e as nossas filosofias a ele se referem*, uma vezque os respectivos autores sabem perfeitamente conduzirate ele, como se do mais elevado cume da formar;aohuman a se tratasse, todos os fios que do Oriente aoOcidente, do comq:o dos tempos ate ao dia de ontem,se foram estendendo - ou que J1utuamdentro de algumascabe~;as como as teias de arallha 110 Outono -, e umavez ainda que 0 sistcma est;'l hoje (;10 aperfeir;oado e etao hrilhantc, t;10 cdehre e 1;10 hem acolhido, nao meatrevo a acrcscenl;lr ('oisa alguma ... Limito-me a fazeralguns pequellos ('Olllcnt{lrios a margem.

I. Em prillwiro lu~ar tenho que dizer, a prop6sito dadesmesurada !';una que alcanr;ou 0 entendimento hu-mano**, que ao longo dos tempos foi sempre menos ele

• IlulIll', III.I'/lj,./ade Inglaterra e Escritos var/os; Robertson,Hist6rla dtl n\c(,c/a e Carlos V; D'Alembert, Melanges de litteratureet de ph lIosojJhI/' ; Iselin, Hist6ria da human/dade, T. II, e Escritosvar/os, .. E (lido 0 que segue ap6s eles, coxeando e gaguejando.

•• GI()"~' de I'esprit humain, ses progres, revolutions, sondeveloppement, sa creation etc.

do que - se assim me posso exprimir - um destino cego,quem se encarregou de lanr;ar e de conduzir as coisasque foram acontecendo, quem exerceu de facto a acr;aoda transformar;ao geral do mundo. Porque 0 que mudouo mundo, ou foram acontecimentos tao grandes, pOl'assim dizer arremessados para dentro de uma epoca, eque ultrapassavam tudo 0 que havia em forr;as humanase em perspectivas e aos quais os homens quase semprese opuseram sem que ninguem sonhasse as conse-quencias segundo um plano reflectido, ou forampequenos acasos, mais achados que descobertos, apli-car;6es de qualquer objecto de que ha muito se dispunhamas em que nao se tinha reparado ou que se nao tinhautilizado, ou entao nada mais do que a simples mednica,um procedimento novo, uma tecnica desconhecida. Ah,fil6sofos do Seculo XVIII, se assim e, que acontece avoss a idolatria face ao espirito humano?

Quem colocou Veneza neste sltio, debaixo da amear;ada destruir;ao? E quem planeou que Veneza tinha queestar neste lugar para se tornar durante mil anos aquiloque estava destinada a ser para todos os povos domundo? Aquele que lanr;ou estas ilhas no pantano e queal conduziu um punhado de pescadores foi 0 mesmoque deixou cair uma semente que, nesse sitio e chegadoo tempo pr6prio, se havia de tornar em carvalho, 0

mesmo que na margem do Tibre foi colocar umachoupana para que dela se originasse a cidade de Roma,capital eterna do mundo. Precisamente 0 mesmo queconduz uma horda de barbaros a aniquilar a literaturade to do 0 mundo, a lanr;ar fogo a biblioteca de Alexan-dria - ou seja, a afundar todo um continente -, e queleva os mesmos barbaros a recolher como mendigos e aconservar uns quantos vestigios minusculos dessa mesmaliteratura e a traze-Ia para a Europa pOI' caminhos queninguem podia sonhar ou desejar. 0 mesmo que, noutn)ponto, lanr;a esses barbaros a destruir;ao de uma cidadeimperial para que as ciencias que ai permaneciam o('iosa.~sem que ninguem as procurasse, possam refugiar-sl' lIaEuropa. Tudo obra do imenso destino! Scm que oshomens 0 pensassem, sem que 0 tivesscl1l desl'jado,

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sem que 0 tivessem realizado! ah, formiga, sera que naoyeS que mais nao fazes que arrastar-te ao longo dagrande roda do destino?

E se procurarmos ver de mais perto as circunstanciasque deram origem aos acontecimentos que, segundo aexpressao usual, vieram iluminar 0 mundo, que vemosnos? A mesma coisa. Ha pouco em ponto grande, agoraem ponto pequeno: 0 acaso, 0 destino, a divindade.Foram sempre insignificancias que puseram em marchatodas as reformas e, no seu inicio, nenhuma delas detinhaja 0 plano grandioso que mais tarde viria a adoptar. Pelocontrario, cada vez que houve um ambicioso plano,trac;:ado pelos homens com toda a premeditac;:ao, elefalhou. ah imperadores, reis, cardeais, senhores do mun-do, todos os vossos grandiosos concllios nada modifi-caram ... Mas urn monge rude e ignorante, Lutero, haviade levar a cabo a tarefa! E partindo de insignificancias deque ele proprio nao via 0 a!cance! Corn meios que, naopiniao de qualquer sabio do nosso tempo, nuncapermitiriam, falando filosoficamente, levar a cabo taltarefa! Na maior parte das vezes quase nada executandopor si proprio, mas apenas dando impulso a outros,fazendo despertar reformadores em tantos outros paises,erguendo-se apenas para dizer: «Movo-me e portanto 0

movimento existe!.. E assim aconteceu tudo 0 queaconteceu: uma transformac;:ao do mundo! Quantas vezesantes deste homem se tinham levantado outros Luteros ...?Para de imediato desaparecerem! au porque lhesencheram a hoca de fumo e chamas ou porque as suaspalavras nao cncontravam ainda ar livre onde pudessemfazer-se ouvir. .. Mas agora e Primavera: a terra abre-se, 0

sol incuba as sementcs e milhares de ervas despontam ...Ah, homem, foste sempre, c quantas vezes contra tua'vontade, urn pequeno instrumento cego'

«Mas nao seria preferivel - exclalll<l 0 fil6sofo, nasua habitual brandura - que cada uma c1essas reformastivesse acontecido sem revoluc;:ao? Devia ter-se deixadoque 0 espirito humano se limitasse a seguir 0 seupadfico caminho em vez de se chegar ao ponto em queas paixoes, na tempestade da acc;:ao,deram a luz novos

preconceitos e em que se substituiram os males poroutros males ..... Resposta: nao, porque um tal progressopadfico do espirito humano em direcc;:ao a um mundomelhor pouco mais e do que urn fantasma nas nossascabec;:as e nunca se confundira com 0 caminho de Deusna natureza. Uma semente cai a terra! Ali fica, entorpecida.Mas chega 0 sol e acorda-a. A semente rompe. A capsulaabre-se violentamente. A planta irrompe do solo ... Eassim acontece com 0 botao que floresce, com 0 frutoque nasce. Nem um repelente cogumelo cresce de acordocom 0 teu sonho! a fundamento de cada reforma foisempre uma pequena semente. Caiu silenciosamente aterra, quase sem merecer urn comentario. Ha muito queos homens a conheciam, que olhavam para ela sem lheprestar atenc;:ao ... Mas de subito vai modificar asinclinac;:oes, os costumes, todo um enorme conjunto dehabitos, dar origem a novos habitos ... Pode tal coisapassar-se sem revoluc;:ao, sem paixao, sem movimento?a que Lutero veio dizer sabia-se ha muito. Mas eraLutero quem agora 0 dizia! A volta de Roger Bacon, deGalileu, de Descartes, de Leibniz, enquanto inventavamou descobriam, tudo era silencio. Apenas um raio deluz. Mas as suas descobertas haviam de vingar, demodificar as opinioes, de mudar 0 mundo ... Edesencadearam-se chamas e tempestades! Dir-se-a que 0

reformador tem paixoes que 0 assunto em causa, aciencia em causa, nao exigem. Mas exige-as a introduc;:aodo assunto em causa. E 0 facto de ele as ter, e de as terem quantidade suficiente para conseguir chegar porintermedio de um nada ao ponto onde seculos inteirosde preparativos, de instrumentos mecanicos ou deespeculac;:oes nao conseguiram chegar, precisamente essefacto constitui credito da sua vocac;:ao!

«Quase sempre simples descoberta mecanica de que,em parte, ha muito se dispunha, que ha muito se tinhaobservado, tendo talvez servido de brinquedo, mas quede subito, porque alguem tinha essa ideia, se aplicavade urn modo diferente e mudava 0 mundo ...Assilll, pOl'

exemplo, a aplicac;:ao das lentes na optica, do lIJaJotlH'I('na bussola, da p6lvora na guerra, da impn'nsa 11.1~.

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ciencias, do calculo num mundo mate matico inteiramentenovo. E tudo assumia forma nova! Tinha-se transformadoo instrumento, tinha-se encontrado urn lugar fora doantigo mundo, e assim se fazia avanc;ar 0 mundo!

Inventou-se a artilharia. Vede! A antiga valentia deTeseu, dos espartanos, dos romanos, dos cavaleiros, dosgigantes ...?Desapareceu! A guerra transfonnou-se. E comela quantas outras coisas!

Inventou-se a imprensa. E quanto se transformouentao 0 mundo das ciencias! Como ficou facilitado e emque medida se pade ampliar! Como se tornou claro eaplanado! Toda a gente pode leI', soletrar.., E quempode leI' pode ser instruido.

E a pequena agulha capaz de oriental' os homens nomar." Quem pode contar todas as revoluc;oes que elaoperou em todas as partes do mundo? Descobriram-seterras muito maiores que a Europa! Conquistaram-secostas onde nao faltavam 0 ouro, a' prata, as pedraspreciosas, as especiarias e a morte! Converteram-se gentes,levou-se-lhes a cultura, ao mesmo tempo que essasgentes eram metidas em minas, reduzidas a escravaturae a depravac;ao! A Europa despovoou-se, foi corroidanas suas mais intimas forc;as pelas doenc;as e pela opu-lencia! Quem pode contar, quem pode descrever astransformac;oes? Novos costumes, novas inclinac;oes, no-vas virtu des e novos vicios! Quem os pode contar edescrever? A roda em que 0 mundo se move de ha tresseculos para ca e infinita .., Equal foi 0 eixo? Que forc;a apas em movimento? A ponta de uma agulha, duas outres ideias mecanicas!

II. Dai cle("olTeprecisamcntc 0 facto de a maior parteda chamacla ("iviljza~';1(l Ill<lderll:l ser cia llIesma de caractermeGll1ico, Se se o!>snva de perll) Vl>se bem em quemedida esse ("ar:icter Illl'dlli("o se idel1tifica ("om0 espiritomoderno! Se, a maior parte das vezes, elll ("ada aspectoda vida, elll cada arte, foram novos metod os que forammudando 0 llIundo, esses novos metodos c1isponibi-lizaram certas forc;as que ate ai eram imprescindiveismas que se iam perder com 0 andar dos tempos, porque

uma forc;a que nao e utilizada adormece. Certas virtudes,nos pIanos da ciencia, da guerra, da vida burguesa, danavegac;ao ou da governac;ao, tornavam-se desnecessarias.Tudo se ia transformando em maquina ... E uma maquinae governada pOl'um s6 horn em! Com urn s6 pensamento!Com urn pequeno gesto! Em contra partida , quantas forc;asforam ficando adormecidas! Inventou-se a artilharia, ecom essa invenc;ao veja-se como enfraqueceram as seivasque alimentavam 0 rude vigor guerreiro do mundoantigo, no corpo e na alma, a bravura, a fidelidade, ainiciativa individual, 0 senti men to de honra! Urn exercitopassou a ser uma maquina contratada, destituida depensamento, de forc;a e de vontade, orientada pelacabec;a de urn s6 homem que the paga para mimar adistancia uns quantos movimentos e desempenhar afunc;ao de uma muralha viva que lanc;a e recebe balas.Urn romano ou urn espartano diria talvez que, no fundo,se extinguiram as virtu des que ardiam no fogo maisintimo do corac;ao e que murchou a coraa de louros dahonra militar. .. E em substituic;ao que temos? 0 soldado,envergando a sua libre de her6i, tern 0 estatuto de pri-meiro servidor a expensas do estado. Ai se pode vel' asua honra e a sua vocac;ao! Sem qualquer esforc;o voampel os ares os restos da existencia individual, a antigaforma g6tica da liberdade, da carreira das armas e daprapriedade ... 0 estado e hoje urn miseravel ediflciodecorado com mau gosto! Baleado e destruido nas suasfundac;oes, esta de tal forma bloqueado pelos pequenosfragmentos das suas ruin as que, talvez a patria, 0 pais,os habitantes, os cidadaos, representem ainda algumacoisa, mas tudo se resume a ser-se senhor ou criado,despota ou servidor de libre, em cada profissao, emcada tarefa ou carreira, do campones ao ministro e doministro ate ao padre. A tudo isto se chama elevac;ao dopais ou arte da polltica de estado! E a nova modalidadcfilos6fica da governac;ao! Autentico emblema principesco,coroa real dos ultimos seculos! Veja-se sobre quefundamento! A conhecida aguia solar que se encontr:lem cada moeda mostra bem que tudo assenta sobrl' ostambores, os estandartes, as balas e os barretes Sl'lllpn'disponiveis da soldadesca.

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o espirito da filosofia moderna - ou seja, 0 factode, em mais do que urn aspecto, ter que ser ele pr6priocoisa medinica - revela-se, a meu ver, na maior partedos que compbem a respectiva prole. Com quefrequencia, apesar da sua filosofia e sabedoria, se mostramignorantes e impotentes em assuntos da vida corrente edo saudavel entendimento! Em vez da antiga situa~ao,em que 0 espirito filos6fico nunca existia para si pr6prio,partindo sempre de determinados empreendimentos eorientando-se sempre para determinados empreendi-mentos, ou seja, tendo por (mica finalidade criar almasricas, saudaveis e activas, desde que se en contra isoladoe passou a ser urn oficio a parte, tornou-se isso mesmo,urn oflcio mecanico. Quantos de v6s encarais a 16gica, ametaflsica, a moral, a flsica como aquilo que de factosao: 6rgaos da alma humana, instrumentos com os quaissc deve agir, model os de formas de pensar que apenasdcvcm forneccr :) nossa alma uma forma de pensamentomais hcla e que ll1e seja adcquada? Em vez disso, 0 queSt' faz t' cncafllar llIl'callicamente os pensamentos pr6priosdelllm das disciplinas filos()ficas e exercer um jogo delu!>ilidades. 1'r:llicas de 11111aprendiz de esgrimistacin'l'nse, I':xeclila a dall~'a da espada sobre 0 arameaLldl'lIlico par:1 ;lIlrllir:I~':lo l' g{lUdio de todos quantos,~I' Sl'llLIIII ;1 voila I' 'I'll' vao aplaudindo 0 facto de 0

;11Ii,~LIILlt) p;11!il t, JlI"~I'()~'()I' as pernas. E esta a sua arte.Se qlli.~I'ldl"" vn 111;11leiLI '"l1a qualquer tarefa, entregai-;1a "' II IIIc'slIlll' No P;'I wi vI'rcis a pureza, a delicadeza,

;1 1ll'1('/.I, ;1 gl'llldlll,',id.lllt· d;1 COIlCl'P~'aol Na execw;;:aovell'i~, (, dC~',I.',lll'!A ( ;111.1p,I.',,',Ofil';!r;i pcrplexo, petrificadopera 111('as dilin IId,II11'1'o(' a,', ('(1I1.~1'qll('llcias imprevistas.Mas ,~cja COIIIOfor, a ni;IIH,'a I'ra agora '"11 grande fil6-sofo, sabia calcular c cslava Llo !>I'IIIIn-illada no uso dossilogismos, das figuras c dos illslnlllll'Il1os que comfrequencia conseguia brincar de 1111,d() a fazer surgirnovos silogismos, novos resultados t' aqllilo que apeli-dava de novas descobertas. Fruto, l10ma c Clllne doespirito humano! Tudo por intermhlio de lIm jogomecanico!

E se assim e com a filosofia diflcil, que se passaentao com a mais facil, com a que diz respeito a beleza?Deus seja louvado! Havera coisa mais mecanica? Nasciencias, nas artes, nos habitos e nos modos de vida emque se introduziu e dentro dos quais se tornou seiva eflorescimento do seculo, que coisa mais mecanica havera?Como quem se livra de um pesado jugo, libertou 0pesco~o do peso das antigas tradi~bes, daquilo queentendeu ser 0 preconceito da aprendizagem, damatura~ao lenta, da profundidade da observa~ao e dojuizo demorado, Nas salas dos tribunais substituiu osconhecimentos pormenorizados, minuciosos e poeirentos,segundo os quais cada caso tinha que ser tratado eexaminado enquanto caso (mico, por um novo tipo dejuizo, bela, leve e livre, que tudo julga e regula poranalogia com dois casos. Eleva-se assim acima do indi-vidual - no qual reside toda a species facti - para sesituar na clareza, na excelencia do geral. 0 juiz substituidopel a flor do seculo, 0 fil6sofo! 0 mesmo fil6sofo que naeconomia do estado e na arte da governa~ao substituiuos conhecimentos laboriosamente obtidos sobre asnecessidades dos cidadaos e as verdadeiras caracteristicasdo pais, por urn golpe de vista digno de uma aguia, paruma visao de conjunto que tudo situa numa cartageografica e numa tabela filos6fica! A luz de prindpiosdesenvolvidos pel a boca de Montesquieu e de acordocom os quais se contabilizam de improviso e em doistempos centenas de povos e territ6rios diferentes pormera aplica~ao da tabuada polltica ... Eo mesmo acontecenas belas-artes, nos oflcios e ate nas mais infimasactividades jornaleiras ... Quem precisa de trabalhar emprofundidade, aplicadamente, como se andasse a subire a descer dentro de urn subterd.neo? Basta raisonner!Ha dicionarios e filosofias sobre todas essas actividadcs- sem que se compreenda nenhuma delas com arespectiva ferramenta na mao - e todos eles SflO (I

abrege raisonne da pedanteria que os anima ... Espiriloabstracto! ,Filosofia de duas ideias! A mais ml'l':llli('acoisa deste mundo!

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Ser-me-a permitido demonstrar que coisa nobrementemecanica e 0 moderno espirito? Havera lingua maisculta, no vocabulario e na forma do periodo - ou seja,mol de mais apertado para 0 pensamento, para 0 estilode vida, para 0 genio e para 0 gosto - do que a daquelepovo que, sob mil formas, propagou esse espirito comtanto brilho pelo mundo inteiro? Havera teatro que,mais do que 0 desse povo, se apresente como marionetadas regras da beleza? Haved estilo de vida que 0

ultrapasse em macaqueamento de uma gentileza, grape elegancia verbal superficiais e mecanicas? Havera filo-sofia que seja, mais do que a desse povo, uma exibi~aode meia d6zia de sentimentos e uma aprecia~ao detodas as coisas do mundo segundo esses mesmossentimentos? Macacos da humanidade, do genio, daalegria, da virtu de! E precisamente porque disso naopassam e porque e facil macaquea-los" sao-no para todaa Europa ...

III. Torna-se assim compreensivel qual e 0 centro degravidade para onde tende a forma~ao dos homens,para onde e COI1stantemente conduzida. «Filosofia"pensamento, mecanica f:kil, misonnementque se estendeate aos pilares da sociedade, que ate agora estavamfinnes e a sustciltavalll!" Mas mesmo assim ha umadezena de aspcctos elll que me custa compreendercomo rudo isto p(ldl' chegar a ser confundido com 0

culminar, COlliII filII l"dlilllo, geral e 6nico, da forma~aoda hUlll:lllid:ldl', COlli a (ol:l1idade da felicidade e dohem' SI'r;i qUI' (I corpo I'St:i lodo ele destinado a serViS;'lo?Ese as 11l;IIISSI' qllisl'J"('11I(r;tnsformar em olhos eos Pl's elll c{'re!Jro, sl'!':i qlll' 11;\0so!"!'e0 corpo inteiro? 0rais()III1C'1I/1'1I1 esp;l1holi Sl' COlli desmesllrada impru-dcncia t' delliasiada inlltilidadl· ... COIlIOst' I1ao pudesseenfraqlll'cer, como se nao ellfr;lqucn 'sse e1e facto asinclin;H;()(,s, os impulsos, a actividade viva ...

E verdade que este estado de lassid.lo pode agradarao espirito de varios paises. Se os membros experimentamcansa~o, c1eixam-se levar. .. Quando muito terao um restode for~a para protestar em pensamento. As rod as de pau

ficam sempre no mesmo lugar, por medo, pOl' habito oupor desleixo derivado da opulencia ou da filosofia ...Quantos rebanhos, enormes rebanhos, governadosfilosoficamente, se limitam hoje a ser conjuntos semvontade propria ... Gado e madeira ...! Pensam ... Haveramesmo quem espalhe entre eles ideias ... Mas so ate urncerto ponto! Para que, de dia para dia, possam sentir-semais como maquina, para que possam sentir segundo osditames de preconceitos que Ihes sao fornecidos, paraque de acordo com esses mesmos preconceitos possamaprender a ranger e sejam obrigados a continuar 0

movimento ... Rangem ... Ai deles! Mais nao podernque ranger! E para se consolarem tern 0 livre pensa-mento. 0 amantissimo livre pensamento, sem vigor,aborrecido, in6til, substituto de tudo aquilo que possi-velmente Ihes faz mais falta ... 0 cora~ao, 0 calor, 0

sangue, a humanidade, a vida!Que cada urn fa~a 0 dIculo. A luz infinitamente

engrandecida e difundida, enquanto as inclina~6es e 0

impulso vital enfraquecem pOI' completo! Exaltam-se asideias de amor pelo homem, pelos povos, pelo inimigo,enquanto se enfraquece incomensuravelmente 0 calorososentimento de amor paterno, materno, fraterno ou filial!Difundem-se os fundamentos da liberdade, da honra eda virtu de tao amplamente que qualquer pessoa osreconhece com a maxima clareza e que em certos paisesnao ha individuo, nem 0 mais infimo, que os nao tragaconstantemente a bailar nos labios, ao mesmo tempoque os homens se encontram aprisionados pelas maisodiosas cadeias, as da cobardia, da vergonha, daopulencia, da subserviencia e de uma ignominiosa faltade objectivos. Difundem-se em grande escala 0 confortoe as habilidades de manipula~ao, mas quem manipula eurn so, ou urn pequeno grupo, que e 0 6nico a poderpensar. A maquina perdeu 0 gosto pela vida, pela aC~';io,o gosto de viver humanamente, com nobreza, comcaridade, com satisfa~ao. Sera que 'linda vive? No seutodo e em cada uma das pe~as nao passa de 11111pensamento do dono,

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sera este entao 0 belo ideal de vida para 0 qual tudonos forma? 0 ideal que cada vez mais se difunde pelaEuropa, que atravessa oceanos para chegar a todas aspartes do mundo e que tudo pretende policiar para quesejamos 0 que somos? Homens? Cidadaos da sua patfia?Seres capazes de por si mesmos ser alguma coisa nomundo? Talvez! Mas decerto apenas dentro dos limitesde numero, de necessidades, de fins e de designiosdeterminados pelo cdlculo politico! Cada urn envergandoo uniforme da sua condi~ao! Maquina! Para tanto aiestao os resplandecentes mercados destinados a forma~aoda humanidade, os pulpitos e os pakos, salas deaudiencias, bibliotecas, escolas e, muito em especial,coroa~ao de todos esses lugares, as ilustres academias!Que luminosidade! Para gl6ria etema dos principes! Paraquao grandes designios de forma~ao, de difusao dasluzes no mundo, de felicidade da humanidade!Inauguradas com esplendor ... E para que? Que fazemelas? Que podem fazer? ]ogam!

IV. Assim sendo, acrescente-se uma palavra sobrealguns dos ll1ais famosos meios sobre os quais recai ahoma e a l'esponsabilidade do criativo plano que e 0 de"fol'lnal' a hUll1anidade ... E assim, pelo menos, teremoscht'gado a lima p:ll'te ll1uito pratica deste livro.

SlIpCJlldCJquc desde 0 inicio nao se tern vindo aCSt'l't'Vt'l' elll V:I(I, ieI' St' '{I visto que a forma~ao e 0pl'ogresso de 11111:1 lla~';lo IHIIlCIs:10 ll1ais do que obra dodeslino. Ht'.sll!lado d(' Iltil (';IIIS:ISagilldo em conjunto e,de alglllli IIiOdo, da glol>;i1idad(' do demento em queL'ssas callsas (H'(lIn'lIl. Se ;I.SSilllt', vej;l·se a que diverti-menlo infantil SL' l'edllz a 1('Il(;lliva de tl'aduzir essaforl11a~ao numa meia dllzia dt' ideias cia l'issimas paraclepois falar pomposamente elll l'egcllel'a~';lo das ciencias!Estelivro, este autor, esta quantidadc de obras deveformar. 0 resultado destes esfor~os, a mCJsofiado nossoseculo, deve formar. E que outra coisa pode <juel'er istoclizer senao fazer clespertar e fortalecer as indina~6esque poclem tomar feliz a humanidacle? E que abismo epreciso transpor para que tal aconte~a! Em boa verdacle,

as icleias mais nao ofere cern que ideias: maior clareza nopensar, rigor, ordena~ao ... Mas pocler-se-a convictamentecontar com mais que isso? Pois, de quantos mod os semistura tudo isso na alma? Que precisa de encontrar equecoisas modifica? Que dura~ao e que vigor serao osdessa modifica~ao? E de que modo, enfim, podera tudoisso vir a entrela~ar-se e a interagir com as circunstanciase os recursos da vida humana, para ja nao dizer de umaepoca, de todo urn povo, da Europa inteira, do universo(como a nossa modestia e tentada a imaginar)? Ohdeuses, que enorme este mundo de questoes!

Urn homem que conhecesse 0 modo de pensarartificioso do nos so seculo, que lesse todos os livrosque desde crian~as lemos, elogiamos e aprendemos adizer que nos formaram, que juntasse os prindpios quetodos nos aberta ou veladamente aceitamos e queadaptamos mediante determinadas for~as da alma, sedesse conhecimento quisesse concluir alguma coisa sobreo conjunto clo mecanismo vivo que move 0 nossoseculo ... que deploravel seria 0 seu el'ro! Precisamenteporque esses prindpios san moeda corrente, porqueandam de mao em mao como urn brinquedo ou de bocaem boca como coisa recitada, e muito provavel que janao possam exercer qualquer ac~ao. Sera que se necessitade facto daquilo com que se brinca? E quando se temtanto cereal que ja se nao pode semear nem plantar 0terreno e que se precisa de cobri-Io como se fosse todoele uma eira - eira seca e arida -, podera alguma coisalanpr raizes e crescer? Havera urn s6 grao capaz depenetrar a terra?

De que serve procurar um exemplo de uma certaverdade, se a minha volta - infelizmente - quase tudoe dela exemplo: a religiao e a moral, a legisla~ao c ()Scostumes comuns? Tudo inundado por bel os prindpios,por desenvolvimentos varios, sistemas e interpreta \'()t'S,ao ponto cle quase se nao ter pe e quasc St' II;\()vislumbrar terra, ao ponto portanto de se passal' pOIcima de tudo, a nado! 0 te610go mergulha em p:igill;IS ('paginas das mais comoventes exposi~6cs da l'digi;\o,estuda, sabe, demonstra e esquece ... Desde niallp qllt'

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somas todos instruidos para as teologos. 0 pulpito fazressoar principios que todos nos aceitamos, que todosnos sabemos e achamos serem belos e que claro estalemos junto ao pulpito. Temos pais uma filo~ofja e um~moral a custa de leituras. Quem nao andara enfastiadode tais leituras? E qual a escritor que nao entende sersua principal tarefa envolver a material numa boaroupagem, dourar e embelezar a pilula ineficaz? A cabe~ae a cora~ao separaram-se! 0 homem chegou, infelizmente,ao ponto de agir, nao de acordo com a que sabe, massegundo a que the agrada. De que serve ao doente umamontanha de iguarias que a doen~a the nao permitecomer e de cujo excesso precisamente adoeceu?

Aos divulgadores do instrumento desta forma~aopoder-se-ia sempre deixar a usa da sua linguagem e ailusao de estarem a formar ..a humanidade», e em espe-cial aos filosofos de Paris a de estarem a tratar daforma~ao de toute l'Europe e de tout I'Univers.]a se sabea que significa essa linguagem: urn certo tom, frasesconvencionais, uma bela expressao, quando muito ilusaolucrativa! Mas quando tais divulgadores se lan~am tambemsabre outros aspectos da cuhura livresca, que requereminstrumentos muito diferentes, e tratam de com elesfornecer ao seu seculo uma bela nuvem de fumo e deorientar os olhos do publico para a brilho de uma luzineficaz de moc!o a ficarem com as maos ou as cora~oesmais livrcs ... Ent;10 0 erro e 0 prejuizo sao deploraveis!

HOllvc lIllIa ('pOCI em que se acreditou que acxcrclcio da artt' kgislativ:1 era 0 lmico meio de darfOrlll:li,::"IO:"l.slIavws (' elll que se llIanipulou esse meioda fon lIa 1I1:lis('sl ral1l1a COIIIOse de se devesse tornarpraticallll'nle ullla filo.sofia g('r:il dol hUll1anidade, urnc6c!igo da raz:lo ou da Illllll:ll1idade e sei 1:1 que mais! Acoisa era selll dllvicla mais ofusca 11(' que (Ilil. E tratava--se de, dcsse modo, "esgotar os lug:II'l's cOllluns da justi-~a e clo bem, as maximas do amor entre os hOll1ens e ciasabedoria, e as perspectivas que resultando da obselva~aode todos os tempos e povos se deviam aplicar a lodos astempos e povos ...» A todos as tempos e povos ...? Econsequentemente, ai de nos, inaplicaveis precisamente

ao povo a quem este codigo legal devia assentar comourn vestido feito por medida! sera que para urn talesgotamento geral nao se poderia utilizar talvez a espumaque tambem esvoa~a pelos ares de todos as tempos epovos? Como seria diferente a trabalho de prepararalimento para as veias e para as tendoes cia povo a quese pertence para the dar a possibilidade de fortalecer acora~ao e renovar a medula dos ossos!

Entre tudo 0 que possa dizer-se em geral - aindaque seja a mais bela verda de - e a minima aplica~aopratica vai urn abismo! Que pensar, pais, de uma aplica~aono lugar unico e exacto, para fins exactos, do unicomodo possivel? 0 Solon de uma alcleia que tenhaconseguido abolir de facto urn unico habito pernicioso,que tenha conseguido par em movimento urn unicofluxo de sentimentos e de ac~oes humanas, fez milvezes mais que todos vas, raisonneurs do poder legis-lativo, para quem tudo e verdadeiro e tudo e falso,permanecenclo pais na miseria da sombra geral...

Houve urn tempo em que se chamou forma~aouniversal a cria~ao de academias, de bibliotecas, desaloes de arte ... Muito bem! A academia e a titulo dacorte, respeitavel pritaneu de homens de merito, apoiodas preciosas ciencias, salao inigualavel para asfestividades do aniversario cia monarca ... Mas que fazela pela forma~ao do pais, das pessoas, dos subclitos? Emesmo que tudo fizesse, a que distancia ficaria de lhesdar a felicidade? sera que essas estatuas - ainda que ascolocasseis ao longo de todo a caminho e a entrada dascasas - sao capazes de transformar cada passante numgrego e de faze-Io rever-se nelas e sentir-se grego aoolhar para elas? E dificil! sera que esses poemas, eSS:ISbelas li~oes ao gosto atico, sao capazes de criar 11111

tempo em que as poemas e as discursos academicosvenham a produzir milagres? Nao creio! E as chamad()srestauradores das ciencias, me sma sendo papas Oil

cardeais, nunca se importaram que Apolo, as musas (' ()resto dos deuses desempenhassem a seu p:lJwl II:I.Snovas composi~oes poeticas latinas ... Porquc s:,lJi,lII1que se tratava de urn papel teatral, cle um jogo. A ('suill/a

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de Apolo pode sempre permanecer ao lado da imagemde Cristo e de Leda. Os tres juntos tinham urn s6 efeito,ou seja, nenhum! Se as representa<;6es, os espectaculospudessem de facto produzir 0 heroismo romano e criarhomens como Bruto e Catao, acreditais v6s que osvossos palcos e os vossos pulpitos ficariam de pe? POl'fim, nas mais nobres ciencias, procura-se encastelar 0

Ossa sobre 0 Pelion ... Grande empreendimento! Maspraticamente nao se sabe para que se fazem os castel os?Os tesouros ficam pOI' ali e nao chegam a tel' uso. Pelomenos e certo que quem deles precis a nao e ahumanidade.

Houve urn tempo em que todos se precipitavampara a instru<;ao ... E em que a instru<;ao se orientavapara belos conhecimentos praticos, para a inicia<;ao,para a difusao das luzes, para a facilidade de apreensaoe inclusivamente para 0 refinamento precoce dos cos-tumes. Como se tudo isso pudesse modificar ou formal'as inclina<;6es! Sem que se pensasse num unico dosmeios despreziveis que poderiam levar ao restabele-cimento ou a cria<;ao dos bons habitos ou mesmo depreconceitos, ao treino e ao exerdcio das for<;as, ouseja, ao que e necessario para formal' "urn mundomelhor» ... 0 texto, 0 plano, foi redigido, impresso eesquecido! Urn manual de instru<;ao entre os mil de queja dispomos! Urn c6digo de boas regras igual a mais unsmilh6es que ainda se produzirao. E 0 mundo ha-de ficartal como esta.

Como eram diferentes as ideias que sobre essa materiatinham os tempos e os povos quando tudo possuiaainda urn estreito caracter nacional. A forma<;ao de cadaurn elcvava-sc a partir da necessidade mais espedfica eparticular e voltava a desembocar ai: pura experiencia,actividade, ap!icar,::10da vida no mais determinado dosdrculos. Na c!Joupana patriarcal, na estreiteza de urnterreno cultivado, numa pcqucna rcpliblica em que todosse conhecem, em quc lodos sclltcm as coisas e em quepOI' isso mesmo todos as podclll dar a sentiI' aos outros,em que todos trazem 0 corar,.:10nas maos e SaGcapazesde abarcar 0 que se diz! Torna-se portanto elogiosa a

censura que 0 nosso iluminado seculo faz aos menosiluminados gregos que nao seriam capazes de filosofarsobre coisa nenhuma em termos verdadeiramente geraise puramente abstractos e que, pelo contrario, semprepresos a natureza das suas pequenas necessidades,falavam a partir da estreiteza do palco em que seencontravam. Falavam de modo aplicado, cada palavraencontrava 0 seu lugar pr6prio. Enos melhores tempos,quando ainda nao se falava com palavras mas com osactos, com os habitos, com os exemplos e com as maisvariadas formas de influencia, que diferen<;a! Diferen<;ana defini<;ao, no vigor, na permanencia da eficacia! N6sfalamos ao mesmo tempo de uma centena de gruposhumanos, de epocas, de classes ou de condi<;6es sociaise nada dizemos sobre cada uma delas. A nossa sabedoria,tao refinada e imaterial, e urn espirito abstracto prontopara se evaporar par nao tel' utilidade. Em contrapartidanesses outros tempos era sabedoria de cada cidadao,hist6ria de urn objecto humano real, seiva prenhe dealimento ...

Se a minha voz tivesse, pois, poder e ressonanciasuficientes, gritaria a todos os que trabalham para afarma<;ao da humanidade que deixassem de lado oslugares comuns sobre 0 chamado melhoramento. Bastade cultura livresca! Tanto quanto possivel pratiquem-seactos! Deixai falar os que desgrapdamente outra coisanao sabem fazer! Deixai-os praticar forma<;ao no azuldos ceus! Nao tera 0 noivo aos olhos da noiva urn lugarmais belo do que 0 poeta que a canta ou 0 pretendenteque ainda pede a sua mao? Vede se aquele que maisbelamente canta a amizade entre os homens, 0 amorentre os povos e a fidelidade dos filhos para com os paisnao tera porventura a inten<;ao de desferir sobre ahumanidade urn profundo golpe capaz de a imobilizardurante seculos. Aparentando ser 0 mais nobre legislad<II',

sera talvez 0 causador da mais profunda ruina do S('\I

seculo! Que nos nao fale em melhoramento interior, ('Ill

humanidade, em felicidade! Porque vem empurrado 1)('lacorrente do seculo, parque se tornou salvador d<I W')Il'Il)

humano segundo as regras da fantasia do S('\I s(·('\110 ('

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bem ~equeno e 0 premio a que po de aspirar: os lourosda val~ade, hoje ja murchos, amanha poeira e cinzas! At~r~fa .lmensa, divina, de formal' a humanidade - emsI1encl~, com vigor, no que ela tern de mais intimo, paraa etermdade - nao podia confinar com uma vaidademais baixa!

V. Depois do que escrevi, nao me restam duvidas deque ha:rera quem me lance 0 argumento vulgar de quese elogla sempre 0 que e distante e se lamenta sempre 0

presente, ~u de que sao as crian~as que se apaixonampOI' urn bnl.ho entrevisto a distancia, sendo capazes de,pOI' esse bnl~o desconhecido, dar em troca a ma~a quetrazem na mao. Mas talvez eu nao seja essa crian~a. Vejobem t~d? 0 que 0 nosso seculo tern de grande, de beloe de umco. E apesar de toda a minha censura tenhose.mpre guardado tudo isso como pano de fundo.«FI1osofia!Clareza difundida! Capacidades mecanicas eespantosa facilidade! Brandura!» Quanto nao se elevou 0

nosso seculo em todos estes aspectos desde 0 renasci-men to das ciencias! Com que espantosa facilidade demeios atingiu essas alturas! Com que vigor solidificouessa.s conquistas e as garantiu para a posteridade! Creiotel' fornecido variadas observa~iSes sobre tudo isso emsubstituil,ao das exageradas declama~iSes elogiosas' quese podem cncontrar em todos os livros que se tornarammoda, a COIIll'~'ar pelos franccses ...

. Fill vt'rdade, que grandioso seculo este, enquanto1lIt'IOt' t'nquanlo l'inalidadc: Sl'1lldllvida 0 mais elevadoponl~ I da ;irvorc, ;'1 ViSI;'de lodos os tempos anterioresque pzcm sol> n(IS!Vut' quanlidade de seiva extraimos(~as raizes, do tronco c dos ramos para nosso beneficio!1anta quanto os pequcnos mas clev;ldissimos rebentosem que nos encontralllos podialll receher! 0 nossoolhar domina os orientais, os gregl IS, os romanos esobretudo os g6ticos barbaros da Idadc M('dia! Dominaportanto todo 0 mundo! Em certa medida a nossa sombracobre todos os povos e continentes e, se na I':uropa umatempestade sacode dois raminhos, veja-se como treme esangra 0 mundo inteiro! Alguma vez como agora se

encontrou 0 mundo tao generalizadamente ligado pOl'urn conjunto tao pequeno e tao estreitamente unido defios? Alguma vez se dispos em tal quantidade de poder ede maquinas capazes de fazer cair na~iSes inteiras comurn s6 movimento da ponta de um de do? Tudo seencontra suspenso da ponta de do is ou treS pensamentas!

E em simultineo poder-se-ia perguntar quando eque a terra se encontrou tao generalizadam~nte .ilum!nadacomo hoje, E progredindo sempre nessa llumma~ao. Seantes a sabedoria tinha sempre urn caracter estreitamentenacional, veja-se como alcan~am longe, nos dias dehoje, os raios luminosos! Havera ,algum sitio .em .que senao leia 0 que Voltaire escreve? E 0 planeta mtelro quebrilha com uma claridade quase identica a de Voltaire!

E como parece imparavel tudo isto! Estabelecem-se,e vao continual' a estabelecer-se, col6nias europeias pOl'toda a parte! E pOl' tada a parte os selvagens, a medidaque aprendem a gostar da nossa aguardente e da nossaopulencia, vao ficando maduros para a conversao! POl'tada a parte se vao aproximando, pois, da nossa cultura,sobretudo pOl'via da aguardente e da opulencia ... De talmodo que nao tardara, assim Deus ajude, que se tornernhomens como n6s! Homens bons, vigorosos e felizes!

Comercio e papado, quanto have is v6s contribuidoja para tao grandiosa empresa! Es~anh6is, jesuita: eholandeses, v6s, desinteressados fI1antropoS, na~oesnobres e virtuosas, quanto vos deve, em tados oscontinentes, a forma~ao da humanidade! _

E se assim e nos restantes continentes, que razoeshavera para que assim nao seja na Europa? E uma ver-gonha para a Inglaterra que a Irlanda tenha ~erm;l~necido tanto tempo selvagem e barbara: hOJe eslapoliciada e e feliz. E uma vergonha para a Inglaterra qllt'os habitantes do Norte da Esc6cia tenham passado tanlotempo sem roupa capaz de lhes cobrir as permls: hoje,se a nao envergam, trazem-na pelo menos penduradanum pau e sao felizes. Havera algum reino, nesll' III ISSI1seculo, que se nao tenha tornado grande e feliz'! IlO\lVl'urn unico, que para vergonha da humanidadl' ;di li(~HI,

bem ao meio ... Sem academias, sem sociedadl's agr:ln;\S,

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usando barbas e consequentemente produzindo regicidas.Mas veja-se! 0 que conseguiram fazer - a semelhanp doque a generosa Fran~a tinha empreendido sozinha emfavor da selvagem C6rsega - tres barbudos? Formar essereino para 0 transformar num pais de homens como n6s!Homens bons, vigorosos e felizes!

E como chegaram alto todas as artes que hoje sepraticam! Sera possivel imaginar alguma coisa capaz deultrapassar a actual arte da governa~ao, 0 verdadeirosistema, a ciencia destinada a forma~ao da humanidade?'Veja-se a mola propulsora dos nossos estados, 0 medo eo dinheiro! Sem necessidade de recorrer minimamente areligiao (a mola da infancia), a honra, a liberdade daalma, a felicidade real dos homens! Como somos capazesde surpreender 0 deus unico de todos os deuses, 0 espi-rito ganancioso de riqueza, qual segundo Proteu! Emetamorfosea-Io! E obriga-Io a dar-nos tudo 0 quepossamos querer! Oh felidssima arte ae governar!

Contemplai urn exercito! A mais bela, a mais originalimagem da sociedade humana! Todos tao bem vestidoscom tanta cor e leveza, alimentados com tanta levez~tam bern, pensando todos com tanta harmonia livres econfortaveis das maos ate aos pes! Movimedtando-seCOIll nobreza! Com instrumentos tao brilhantes taoespeciais, ao ombro! Que soma de virtu des aprendidasno treino quc diariamcnte fazem com esses instrumentos!Ill1agell1da mais elcvada excelencia do espirito humanoe cia governar,:lO do Illundo ... A resigna~ao!

E 0 equilibrio cia Europa! Oh grandiosa descobertade que nenhuma idade tinha lido ainda conhecimento!Como se friccionam hojc, scm sc dcstrufrem mutuamentesem poderem destruir-se, essl'S cnorlllcs corpos estatai~dentro dos quais, sem qualquer dllvida, a humanidadeencontra os melhores cuidaclos! Em contraste com ostristes exemplos ciamiseravel arte cle govcrnar dos goclos,clos hunos, clos vanclalos, clos gregos, dos persas, closromanos, ou seja, cle toclos os tempos que nos prece-

• Escritos politicos de Hurne; ensaios 4, 9, 25, 26. E a suaHist6rla.

cleram! E como avan~am estes estaclos pela estracla realque os leva a poderem engolir 0 imenso charco antigocle aguas pejadas cle insectos para alcan~arem a paz e aseguranp! Uma pobre ciclacle? Uma alcleia torturada?Gl6ria nossa, pois que se trata de manter a obecliencia, apaz e a seguranp, as virtucles carcleais e a feliciclacle!Mercenarios! Aliaclos! Equilibrio cia Europa! Gl6ria nossa!A paz, a seguran~a e a obecliencia ficarao eternamentecom a Europa!

Aos nossos historiaclores politicos, aos epic os dahist6ria cia monarquia, mais nao resta que pintar 0

quaclro clo crescimento clesta situa~ao ao longo clostempos!' «Tristes tempos esses em que se agia apenassegundo as necessiclacles e 0 sentimento pr6prio. Tristestempos em que 0 pocler clos governantes estava longede ser ilimitaclo. Tristissimo entre toclos aquele em queos proventos clos governantes aincla nacla tinham clearbitrario. E em que ... E tao pouco 0 que 0 epico dahist6ria filos6fica encontra para pocler elaborar os seusraisonnements gerais ou para se pocler lan~ar a pintar 0

quaclro da globalidacle cia Europa ...! Em que nao haviaexercitos com capaciclade para inquietar clistantesfronteiras, em que nao havia soberanos capazes de seafastar clo seu pais para irem a conquista. Em que tuclo,portanto, estava orientaclo no senticlo cia miseravelresistencia e autodefesa! Sem poHtica! Sem perspectivasobre tempos clistantes e terras longinquas! Sem especu-la~ao assente na lua! Sem que houvesse, pois, qualquerliga~ao entre os paises estabelecida por estas olhaclelasfilantr6picas lan~aclas sobre 0 vizinho! Resuminclo, semque houvesse - e esta e a clesigna~ao clo mais elevacloprocluto do gosto moclerno - vicia social na Europa!Deus seja louvaclo! Louvado pelo que temos descle queforam suprimidas as for~as indivicluais e os membrosinclividuais clo estaclo, clescle que a nobreza foi tao

• Veja-se a Hist6rla de Carlos V de Robertson, na introd\l~·;\o.da qual fac;:oapenas urn extracto, acornpanhado de urn circunsta III 'jaIjuizo sobre 0 respectivo juizo. TUPUO'O'EIto\}<; uv9pu)7tOlJ<;0\) tn1tpu)1..lUtU,u'A.'A.utU 1tEpl trov 1tpu)1..lUtrovIiO)1..lUtu.EpictCIO.

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gloriosamente suplantada e submergida pelas cidades,as cidades pel os paises libertos do feudalismo, e a no-breza, as cidades eos paises pelos povos, des de quetudo isso foi engolido pela maquina e ja ninguem sabe,nem tern 0 direito de saber seja 0 que for sobre 0

sentido pessoal da justiya, da dignidade e da autodeter-minayao ... GI6ria nossa! Que grande vida social por todaa Europa! Numa Europa em que 0 monarca traz 0 estadode tal forma debaixo do seu poder que 0 estado deixoude ser 0 fim que 0 monarca tern em vista para passar aser urn neg6cio estrangeiro executado pelo monarca!Em que este, portanto, ve tao longe, calcula, aconselha,negoceia tao distantemente, em que cada subdito emovido e conduzido ao entusiasmo por sinais de quenada entende e nada sabe, em que nenhum estadopode tocar numa pena sem que 0 vizinho esteja aolhar ... E sem que as mais longinquas causas desenca-deiem de pronto uma sangria geral em todos os conti-nentes! A grande generalizar;ao! E quantas guerras profun-damente humanas, destituidas de paixoes, dai resultam!E quantas negociar;oes justas, humanas, equitativas, dairesultam!» E que promo\-'ao nao se obtem assim da maiselevada das virtudes, a resignar;ao ... Que elevada e avida social da Europa!

E que gloriosos os meios que ai permitiram chegar!*..Pois que 0 poder da 1110narquia cresceu na mesmaproporc;;ao el11que enfraqueceram os particulares e emque ganhou fon,:a a condi\-'ao de mercenario! Com quemeios 0 poder do llIon;lrca all1pliou os seus privilegios,multiplicou as suas rcccit;ls, suhjugou ou domesticou osseus inimigos inlcrnos, alargou as suas fronteiras, ecoisa que fica bem ~l visla quando sc olha para a hist6riamedieval e para a hist(lria Illais rccente, sobretudo paraa hist6ria recente <.lessaprecursora de toda a Europa quee a Franya!»Meios gloriosos! I': que grandioso 0 objectivo!Balanr;a da Europa! Fdicid;lcle cia Europa! Sobre ospratos da balanya e dentm do mecanismo da felici-

dade nao pode cada grao de areia deixar de significarmuito ...!

E "0 nosso sistema comercial»! Sera possivel imaginarcoisa capaz de superar 0 refinamento da ciencia quetudo abarca? Que miseraveis esses espartanos queprecisavam de hilotas para os seus empreendi~entosagrarios, e que barbaros es~es romanos que men.am osescravos em prisoes subterraneas! Na Europa abohu-se aescravatura* porque se fez 0 calculo de quanto os escravoscustam a mais e de quanto produzem menos do que aspessoas livres! Permitimo-nos apenas dispor de tres co~ti-nentes de escravos onde os negociamos, on de os eXlla-mos em minas de prata ou em refinarias de ar;ucar ... Masnao se trata de europeus, de cristaos ... E em trocaobtemos prata, especiarias ou ar;ucar e, de vez em q~a~-do, alguma doenya intima. Tudo pOI' causa do comerclOe para incremento da fraternal ajuda mutua entre ospovos e da comunidade dos paises!

..Sistema comercial!» E evidente 0 caracter grandiosoe unico desta instituir;ao! Tres continentes devastados epoliciados por n6s, e n6s despovoados e red~zi~os aimpotencia por ell'S, afundados na nossa opulenCla, ~aexplorayao vergonhosa dos outros e na morte, ou se~a,muito ricos em comercio e em felicidade! Quem naodesejara partilhar a imensa nuvem negra, carregada deagua, de que a Europa se amamenta? Quem nao ~esejamergulhar nela e tornar-se 0 maior dos comerClantesque, se outros nao puder, explorara os seus pr6priosfilhos? 0 antigo nome de »pastor dos povos» transformou--se hoje em ..monopolista» ... E quando, soprada por ntilventos tempestuosos, a nuvem enfim se abrir, bellipodemos pedir ajuda ao grande deus, ao dinheiro aquem todos hoje servimos ...!

E ..a nossa maneira de viver e os nossos costunws»!Que miseria a daqueles tempos em que ainda havianayoes e caracter nacionaW* Tantos 6dios recipro('os,tanta antipatia pelos estrangeiros, tanto fechament<) l!< IS

• Millar, Sobre a diferenya das condiyoes sociai.~,cap. S.•• Hume, Escritos varios, parte 4, XXIV.

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povos sobre si proprios, tantos preconceitos ancestrais,tanto apego ao torrao que nos vira nascer e onde seacabaria por apodrecer! Um modo de pensar preso nasorigens! Um estreito cfrculo de ideias! Eterna barbarie!Hoje em dia, Deus seja !ouvado, nao ha caracter nacionalque se nao tenha dissolvido! Amamo-nos todos ... Ou,melhor ainda, ja ninguem precisa de amar 0 outro ...Usamo-nos uns aos outros, somos todos inteiramenteiguais, todos muito morais, muito educados e felizes! Ecerto que nao temos patria, patria que seja nossa e paraa qual vivamos, mas somos todos filantropos ecosmopolitas. Se ja hoje todos os governantes da Europao fazem, amanha seremos todos nos a falar a linguafrancesa! E entao ... Entao sera a felicidade! Recomep aidade do ouro «em que 0 mundo inteiro tinha uma solingua, um so falar»! «Havera um so rebanho e um sopastor»! Oh, caracter nacional, on de ja.vais!

«Maneira de viver e costumes da Europa!» Era taotardio, nos tempos goticos do Cristianismo, 0 amadu-recimento dos jovens! Nao atingiam a maioridade senaoaos trinta anos! Perdia-se meta de da vida numa infanciamiseravel. A filosofia, a instrw;:ao, os bons costumes,que nova criat;:ao have is conseguido! Hoje, aos trezeanos e-se maduro e aos vinte a planta murchou, par viade uns tantos pecados surdos e uns quantos mais sonoros.Gozamos a vida no exacto momenta da aurora, quandoo botao desponta!

«Maneira de viver e costumes da Europa!» Vejam-seas virtu des goticas, a modestia, a parvoice juvenil, 0

modo envergonhado desses tempos!" Nos libertamo-nosmuito cedo desse manto ambiguo e desajeitado que e avirtude. As reuni6es sociais, as mulheres (que hoje SaGquem melhor tira a vergonha e quem menos del a precisa)e mesmo os nossos pais tratam de nos retirar das facestae>cedo quanto podem a respectiva marca. E se naoforem esses, entao serao os professores de bons cos-tumes. Partimos em viagem e, como e natural, naoregressamos envergando 0 traje infantil que ja nos nao

serve e que passou de moda! Dispomos de segurant;:aem nos mesmos, de um tom adequado a vida emsociedade, de facilidade em nos servirmos de qualquercoisa! Dispomos da beleza da filosofia! Da «delicadezado gosto e das paix6es»!" Os gregos e os romanos foramsempre tao rudes em materia de gosto! Sobretudo faltava--lhes aquele tom que se adquire no convivio com 0 belosexo! Platao e Cicero conseguiram escrever numerososvolumes de dialog os sobre metafisica ou sobre outrasartes viris sem nunca darem a palavra a uma mulher.Qual de nos, ainda que em situat;:ao comparavel a deFilocteto na sua ilha deserta, resistiria sem 0 amar deuma mulher? Voltaire ...!Ah, mas leiam-se os serios avisosque nos faz sobre as consequencias! As mulheres SaG 0

nos so publico, a nossa Aspasia do gosto e da filosofia.Somos mesmo capazes de obrigar os remoinhos carte-sianos e as atract;:6es newtonianas a usar espartilho.Somos capazes de escrever historias, predicas e 0 quemais se queira para mulheres e como se fOssemos mu-lheres. Esta, pois, demon strada a finissima ternura quecaracteriza 0 nosso gosto.

E «as bel as artes e as ciencias»!"· E certo que as maisrudes puderam ser ate certo ponto desenvolvidas pelosantigos e nomeadamente sob aquela miseravel forma degovernat;:ao agitada que foi a das pequenas republicas.Mas veja-se ate que ponto era por isso mesmo grosseiraa eloquencia de Demostenes! Como era grosseiro 0

teatro romano! E toda a arte da Antiguidade, por muitoque se costume elogia-Ia! A pintura ou a musica dessestempos era uma especie de fabula inchada, de gritariacontinua! 0 delicado botao em flor das artes teve queesperar pela felicidade da monarquia! Nos palacios deLuis, Corneille e Racine haveriam entao de levar a caboa sua tarefa de copistas, 0 primeiro criando os seusherois e 0 segundo os sentimentos! Descobriu-se uma

" Hume, Ensaiospo!fticos, 1, 17, 23." " Hume, Ensaios, parte 4, XVIe XVII;Voltaire, Seculo de Luis

XlV, XV e XX; e todo 0 exercito de panegiristas da modernaliteratura.

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categoria completamente nova de verdades, de emor;6ese de objectos do gosto, da qual nao tinham podidosuspeitar os antigos, mergulhados que andavam nassuas fabulas, na sua frieza, na sua falta de esplendor: a6pera! Gloriosa 6pera! Tu, local de reuniao e de despiquede todas as nossa belas-artes!

S6 na monarquia, na felicidade por ela proporcionada,e ainda possivel fazerem-se descobertas e invenr;6es.·Para substituir 0 pedantismo das antigas universidadesdescobriram-se as academias. Bossuet inventou urn modode escrever a hist6ria que a transforma por inteiro emdeclamar;ao, em predica, em registo de datas, e quesupera completamente a monotonia de Xenofonte e deTito LIvio. Bourdaloue inventou urn genero orat6riocom que nao pode comparar-se 0 de Dem6stenes!Inventou-se uma nova musica, uma harmonia que naonecessita de melodia! Uma nova arquite~tura que ninguemacreditava ser possivel, com urn novo tipo de colunas ...E, coisa que mais admirarao os seculos futuros, umaarquitectura sobre 0 plano que utiliza todas as produr;6esda natureza, a jardinagem, com toda a sua proporr;ao esimetria, repleta de prazeres eternos e preenchida poruma natureza sem natureza. GI6ria nossa! Quantas coisass6 pudemos inventar sob a monarquia!

Por fim comer;ou a filosofar-se.·· E com que novidade!Sem sistema e sem principios fundamentais, para quepudesse fiear em aberto a possibilidade de em qualquermomento se acreditar no contrario do que se afirma!Sem demonstra\"ao, envolvendo tudo em espirituosidade,pois que "a filosofia rigorosa nunca conseguiu melhoraro mundo".··· E, a culminar, a magnifica invenr;ao: filosofarem Memoires e em dicionarios que cada um pode lerpara ai descobrir tudo ° que quiser na quantidade queentender... E a mais magnifica das magnifieas, a Enciclo-pedia de todas as ciencias e artes! "Se um clia 0 fogo e a

• Voltaire, Seculo de Luis XlV.•• Discours preliminalre da Enciclopedia; Voltaire, Tableau

encyclopedique des connoissances humaines.••• Hume, Ensaios, parte I, primeiro ensaio.

agua fizerem desaparecer todos os livros, todas as artese todas as ciencias, em ti, oh Enciclopedia, e no teuconteudo, 0 espirito humano pod era encontrar tudo!» 0que a imprensa tinha sido para as ciencias, e-o agora aEnciclopedia relativamente a imprensa': cume maiselevado de toda a divulgar;ao, perfeir;ao completa,conservar;ao eternal

Faltar-me-ia ainda celebrar 0 que de melhor seproduziu, os espantosos progress os no dominio dareligiao. Pois se comer;amos ja a contar pelos dedos asinterpretar;6es da Biblia! E os progressos quanto aosprincipios da honra, des de que eliminamos os ridiculosideais da cavalaria e elevamos as condecorar;6es aonivel de trela para encaminhar os rapazes ou de presentepara trocar na corte ... E faltar-me-ia sobretudo celebraresse elevadissimo cume atingido pelas virtudes humanas,as virtu des dos pais, das mulheres e dos filhos ... Masquem pode, vivendo num seculo como 0 nosso, celebrartudo 0 que tern os? Basta dizer que somos "0 ponto maisalto da copa da arvore! Ondulando aos ventos celestiais!Esta ja pr6xima a idade do ouro!»

• Discours preliminaire e Melanges de litteraturede D'Alembt'r1 .partes I e IV.

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o ar dos ceus e tao refrescante que somos tentadosa pairar demasiado longamente por sobre os montes eas arvores. Des~amos entao ate as agruras do solo elancemos urn olhar sobre 0 conjunto ou sobre a falta deconjunto.

Grande cria~ao de Deus! Obra de tres continentes ede quase seis mil anos! A delicada raiz, prenhe de seivas,a planta fresca e delgada, acabada de nascer, 0 poderosotronco, os ramos entrela~ados, cheios de vigor, osrebentos tardios amplamente abertos ao ar ... Veja-secomo cada urn deles repousa sobre 0 que 0 antecede,como cada urn deles cresce a partir do que 0 precede!Enorme cria~ao de Deus! Mas para que? Com quefinalidade?

Que urn tal crescimento, uma tal progressao demomento para momento nao se confunde com «umaperfectibilidade, no senti do limitado e escolastico dotermo, mostra-o - a meu ver - a visao de conjunto queprocuramos tra~ar». Quando a planta nasce ja nao esemente, quando chega a ser arvore ja deixou de ser urncaule delicado. Sobre 0 tronco eleva-se a copa; ondeestaria ainda a arvore se cada ramo, cada novo rebentoquisesse ser raiz ou tronco? Os orientais, os gregos, osromanos s6 existiram uma vez; s6 haviam de interferiruma vez, num s6 ponto, com a cadeia electrica que 0

destino ia estendendo! E n6s, quando queremos ser aomesmo tempo orientais, gregos e romanos, somoscertamente coisa nenhuma.

«NaEuropa hayed hoje mais virtude do que algul11:1vez houve no mundo?» Por que razao havia de ser assim?

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Por haver nela maior difusao das luzes ...? Creio bem quepor isso mesmo tera que haver menos virtude.

a que e - perguntar-se-a tao somente aosadoradores deste seculo -, em que consiste afinal esseacrescimo de virtude resultante da difusao das luzes?Resposta: 'Nas luzes! Sabemos hoje tanta coisa que senao sabia, ouvimos e lemos incomparavelmente mais, eem resultado somos hoje mais pacificos, mais pacientes,mais brandos e inactivos ... Sim, e certo ... E verdade ...Embora ... Sim, tambem ... Mas apesar de tudo, no fundodo nosso cora~ao, permanecemos sempre tao brandos!»Ah, etemo embelezador, 0 que tudo isso afinal significae apenas que no topo da arvore somos uns rebentosdelgados lan~ados no espa~o, agitados pelo vento queos faz murmurar, e que mesmo assim e belo ver os raiosde sol que brincam ao atravessar-nos! Que estamos laem cima, sobre urn ramo, sobre urn tronco sobre umaraiz, tao alto, com urn tao largo horiz~nte, ~as que naonos devemos esquecer que so podemos ver ate ondevemos e que, bel amente embora, so podemos murmurar!

Sera que nao se ve que so nao temos os vicios e asvirtu des do passado porque nada temos da condi~ao,das for~as e da seiva, do espa~o e do elemento envolventedos homens de outros tempos? Decerto que nao se tratade urn erro, mas para que iludirmo-nos fazendo dissoll1otivo de louvor c de pretensao despropositada? Porquehavcll10s de nos ludibriar relativamente aos meios deqllc dispOlIlOS para a nossa forma~ao, como se elesliV('SSt'lIl Jlor si S(·)produzido alguma coisa? E porqueh:IV('11I1IS de llido usar para nos enganarmos quanto allililidade da nossa propria importancia? E porquelIaV('1I10S1I(IS,pOI' fim, de transportal' para dentro detodos os sl'l'lllos que nos precederam 0 "nosso romanceparcial de IIll'lltiras desdenhosas .., com 0 qual ridicula-riZ:llIlOSt' l'llxovalhamos os costumes de todos os outrospI IVIISl' ('Jl(1(';\S,de tal modo que uma pessoa sa, modesta(' dt',spn'vellida quase nao pode abrir uma das chamadashisl(lria,s 1I1liversais pragmaticas sem se deparar com 0

rcpliHllalllt' deserto que e a contrapartida do "celebradoideal do 1l0,SSOtempo ..? Transformamos 0 planeta numa

estrumeira, catamos os graos e soltamos 0 nosso cantarde galo! Filosofia do seculo!

,]a nao ha ladroes de estrada, ja nao ha guerras civis,Ja nao ha crimes ... Mas onde, como e por que razaopoderia haver rudo isso? as nossos paises estao tao bempoliciados, dilacerados por grandes estradas, ocupadospor guami~oes, os campos tao sabiamente repartidos, ajusti~a e tao sabia e vigilante ... Como poderia 0 pobregaruno exercer a sua rude profissao, mesmo que tivessecoragem e vigor suficientes? E para que? Porque a luzdos costumes do nosso seculo e tao facil, e ate motivode homa e de gloria, assaltar casas, camaras e camas, eser pago pelo estado por esses servi~os ... Porque naoreceber urn pre? Para que exercer 0 oficio na inseguran~a?Numa inseguran~a para a qual - e e este 0 aspectofundamental - nao se dispoe nem de coragem, nem devigor, nem de oportunidade? Proteja Deus as vossasvirtu des tao novas e tao voluntarias!

E se "nao temos guerras civis» sera porque somostodos nos subditos tao satisfeitos, tao saciados e taofelizes? au sera que as causas sac as inversas? "Naotemos vicios» porque estamos todos tao bem providosde virtudes arrebatadoras, de liberdade grega, de patrio-tismo romano, de piedade oriental e de ideais cava-leirescos, ou precisamente porque nao temos nada dissoe porque assim, infelizmente, tambem nao podemos teros vicios que cada urn desses povos tinha? N6s, unsramitos del gad os e oscilantes!

E porque e isso que somos, temos entao tambem,entre outros, 0 privilegio de estarmos aptos precisamentepara "esta filosofia debil, miope, carregada de desprezo,que se compraz apenas consigo mesma, que nada produze que so fomece consolo na exacta medida em que einactiva e ineficaz ...as orientais, os gregos e os romanosIlao tinham este privilegio.

E porque e isso que somos, temos 0 privilegio deavaliar com tanta modestia os meios de que dispomospara a nossa forma~ao. a clero pode entender queIllll1Ca0 munclo foi iluminado de urn modo tao humano(' leologico; os laicos podem achar que 0 mundo nunca

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foi tao humano, tao uniforme, tao rico em obediencia eordena\=ao; a nossa justi\=a pode dizer que 0 mundonunca foi tao humano e tao respeitador da liberdade;por fim, a nossa filosofia pode pensar que 0 mundonunca foi tao humano e tao divino como hoje ... E tudoisto por ac\=ao de quem? Eis que todos se poem aapontar para si proprios! ..Somos nos os medicos, ossalvadores, os iluminadores, os responsaveis pela novacria\=ao... Terminaram enfim os tempos do delirio!» Deusseja, pois, louvado! E 0 doente, tisico, prostrado noleito, geme e ... agradece! Agradece! Mas sera que defacto agradece? E mesmo que assim seja, sera que 0 seureconhecimento nao funciona como sinal do estado dedegrada\=ao que atingiu, da sua falta de coragem, deuma humanidade vacilante? Sera que 0 prazer que possaexperimentar no que the dao the nao retira a possibilidadede experimentar outro tipo de melhoras? Sera que euproprio, ao escrever estas linhas, nao me exponho asdeforma\=oes mais venenosas e sarcasticas? Ah! Se bastassepensar que se dispoe de manufacturas, do comercio, dasartes, da paz, da seguran\=a e da ordem ...! Se bastasseacreditar que os nossos govern os nao tem lutas internaspara travar ...! Ou que as nossas constitui\=oes politicassao grandiosas ...! Quc imcnsa paisagem a nossa volta!Que mltra (~poca conscglliu tao imensa paisagem, eficaciade tao longo alcll1ce? E assim ...! Assim fala a nossahist()ria politica, a l10ssa hist6ria das rela\=oes comerciais,a nossa hist()ria da ai'll' . ./ulgamos ler satiras, e afinallcmos penS:lIlll'llt<)S.~ill(,l'ros.Para que he i-de prosseguir?Ainda Sl' ross<, :lpl'llaS llllla doen~'a, se nao Fosse aoI1wsmo tempo 11111ol>sl;'inllo llUl' impede a utiliza\=ao detodo l' lluallllll'r 1'<'1l1('tlio,..' Nos estertores da agoniadelirase COlli0 ()pio .. , Par:1 qllc.'"'illcol\1odar 0 paciente,sc cm nada 0 p<)dl'Il\(I.~ajudar

'

Vale lIlais dizer ao paciente alguma coisa que Ihe deprazer. Pois que tambem nao restarao dllvidas de que,no lugar que ocupamos dentro do processo, somasfinalidade e instrumento do destino.

Vulgarmente 0 filosofo transforma-se tanto mais emanimal quanto mais esta convencido de que e Deus. E 0

mesmo acontece com quem esta convencido de quepode fazer calculos sobre 0 aperfei\=oamento do mundo.Com aquele que se convence de que tudo progridebelamente segundo uma linha recta e de que cadaindividuo e cada gera\=ao se limitam a enfileirar numabela progressao da qual so ele conhece a formula devirtudes e felicidade que regula 0 aperfei\=oamento gerala imagem do seu proprio ideal. Tudo viria afinal adesembocar nell', ultimo e mais elevado elo da cadeia,com 0 qual tudo se termina ...Vede a que i1umina\=ao, aque virtu de e felicidade se guindou a humanidade!Olhai para mim! Aqui, em cima do mecanismo! Eu, fieldourado da balan\=a do mundo!»

E 0 sabio nao reflecte sobre aquilo que poderiaafinal aprender com 0 mais tenue eco que do ceu chegaa terra, ou seja, sobre 0 facto de provavelmente 0

homem permanecer sempre homem e de, segundo aanalogia que tudo regula, nunca chegar a ser outra coisasenao homem. Urn homem em figura de anjo ou dediabo? Sao figuras de romance ...!0 homem nao e senaouma coisa intermedia entre os dois. Arrogante e timorato,afligido pelas necessidades e estiolado pel a opulencia epela inac\=ao, ser que nada e sem exerdcio e opor-tunidade, que so progride lentamente por via dessasmesmas oportunidades e desse exerdcio, mas que poressa via quase tudo consegue ser. .. Hieroglifos do beme do mal a encher toda a historia ... Homens! Sempre eapenas instrumento!

E nao reflecte sobre 0 facto de esta criatura dupla eoculta se poder modificar em milhentas formas, ou deser praticamente obrigada a modificar-se em face dadisposi\=ao deste nosso planeta. Sobre 0 facto de haveruma cria\=ao que e da responsabilidade do clima e dascircunstancias de tempo, 0 que faz com que haja virtudl'sque pertencem a uma na\=ao ou a uma epoca, flores <[UCdebaixo de urn dado ceu crescem e prosperam quasl'sem nada precisarem, mas que morrem ou amarc!cCl'1l1miseravelmente se estiverem noutro local (rod a uma

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flsica da hist6ria, da moral e da politica, a prap6sito daqual 0 nosso seculo, aWis, ja se encarregou de tantofantasiar e cismar). Sobre 0 facto de - ao mesmo tempoque tudo isso pode ou tem que existir -, de um pontode vista interior, por baixo do inv6lucra sujeito a intimerasmodifica~6es, poder ser sempre 0 mesmo ntic1eo es-

, sencial, a mesma aptidao para a felicidade, que seconserva e que, segundo aquilo que nos e dado esperar,talvez nao possa deixar de existir.

Nao reflecte sobre 0 facto de que, se assim for, tudoisso indica infinitamente melhor os cuidados do Paicomum. Se na humanidade, em todos os lugares e emtodas as epocas, houver um mesmo germen invislvel dereceptividade a felicidade e a virtu de, podendo ocorrerem diferentes formas porque se desenvolve de modosdiferentes, mas que interiormente e sempre uma me smaprapor~ao de for~as misturadas.

E finalmente - criatura omnissapiente - nao reflectesobre 0 facto de 0 genera humano poder ser parte deum plano mais amplo de Deus, um plano que nao podeser abarcado por uma criatura isolada porque afinalnada desemboca em (I!tima analise sobre criaturas isoladas(c muito menos sobre 0 fil6sofo ou 0 soberano doSeculo xVI/n. Um plano do qual as diferentes cenas, emque cada aclor apenas tem que representar 0 seu papele nas ljuais Il'II1;1 possihilidade de se esfon;:ar e ser feliz,podl'11l consl iluir IIJUlodo IIIais vasto, uma representa~aoprincipal da ljll:lI 0 aclor isolado, virado para si mesmo,nada s;t1H'l' lIada Vl\ 11l:ISqUl' pode ser observada comIrallljuilid;ldl', na l'Xlll'cl;lliva do desenvolvimento glo-bal, pclo l'slK'l"Ial!or qut' st' silllL'na perspectiva correcta.

Observc-se 0 universo inleiro ... Do ceu ate a terra.De tudo isso, quantas coisas S;'IO UIIIIlleio e quantas sanum fim? Nao sera cada coisa lllll nll'i<) para milh6es defins? Nao sera cada coisa um fim de Illill]()l's de meios? Acadeia da suprema e omnisciente bondade mil vezesrevolvida e emaranhada. Mas cada elo da cadeia esta noseu lugar e desempenha apenas a sua funr;ao de elo.Preso a cadeia nao ve onde ela, na extremidade, se vaiprender. Cada um tem a ilusao de ser 0 centra, a ilusao

de s6 sentir 0 que 0 radeia na medida em que tudo issoconcentra raios ou ondas sobre si. Bela ilusao! Mas, e agrande circunferencia que envolve todas essas ondas,todos esses raios e todos os aparentes centras ... an deesta? Quem e? Que finalidade persegue?

Dar-se-ia 0 caso de poder ser deoutra modo no querespeita a hist6ria do genera humano? Poderiam asondas ou os perlodos que uns aos outras se seguem seroutra coisa que nao ..planifica~ao da sabedoria omni-potente.? Se a habitar;ao mostra ser ate ao seu mais Infi-mo pormenor um ..quadra pintado por Deus», como naoo havia de ser a hist6ria do habitante? A habita~ao eapenas um cenario, uma decora~ao! a habitante e ..umdrama infinito, composto por muitas cenas! Uma epopeiade Deus atraves dos milenios, dos continentes e dasgera~6es! Uma fabula de mil configura<;:6es preenchidapor um sentido grandioso ...!.

Que um tal sentido, uma tal visao global tenha queescapar pelo menos ao genera humano ... Ah, insecto,levanta uma vez mais os olhos do torrao onde permanecese olha para 0 planeta e para 0 ceu! Parece-te que sejas tuo exc1usivo centra sobre 0 qual tudo age, todo 0 universona sua tarefa de tecer a morte e a vida? au sera que naoes tu que ages juntamente com tudo 0 resto em direcr;aoa fins mais altos que desconheces? Sem que ninguem tetenha perguntado nem onde, nem quando, nem como?Em direc~ao a fins que a estrela da manha e a pequenanuvem que a seu lado paira, tu e 0 verme que agoraesmagas, perseguem em conjunto? Tudo isto e inegavele insondavel no imenso universo de urn s6 instante!Poderias esperar que 0 fosse menos, que fosse de outromodo, na imensidao que retine a sequencia dos tempos,dos acontecimentos e dos desenvolvimentos da humani-dade? E mesmo se 0 con junto fosse para ti urn labirintocom uma centena de passagens fechadas e outra centenade passagens abertas ...? a labirinto e ..urn palacio deDeus, para integral realiza~ao dos seus deslgnios, desti-nado talvez a agradar ao seu olhar, mas nao ao teu»!

a mundo inteira, a visao que dele Deus possa ternum s6 momento, e um abismo. Abismo em que me

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encontro perdido. Por todos os lados! Vejo uma enormeobra sem nome e por toda a parte cheia de nomes!Cheia de vozes e de for~as! Sinto que nao ocupo 0 lugaronde a harmonia de todas essas vozes e audlvel, mas 0

que aqui, neste meu lugar, consigo captar, os sonsabreviados e confusos que me chegam dao-me a certezade que 0 que escuto tern uma harmonia pr6pria! Acerteza de que soara como cantico de louvar aos ouvidosdaquele para quem 0 espa~o e 0 tempo nada sao ...! 0ouvido humano pouco se demora nos sons, ouve umapequena gama de sonoridades, a maior parte das vezesapenas as dissonancias pr6prias da afina~ao dos instru-mentos, porque este nosso au vida abriu-se precisamenteno momenta em que se afinavam os intrumentos eporque, desgra\adamente, se encontrava talvez noremoinho provocado por um qualquer recanto ... 0homem esclarecido, nascido em tempos mais tardios,nao quer apenas scr capaz de ouvir tudo, mas estaconvencido dc <jue l~elc pr6prio a ultimo sam, no qualviriam junlar-sc lodas as sonoridades anteriores! Espelhode todo 0 passadt) c rcprcsentante da finalidade quepresidiu :) ('olliposit;:lo de todas as cenas! Esta crian~a,que assim se illlaXina 11111s;H>ioadulto, blasfema! Ai dele!(lorquc lalvel 11;10seja sC<jucr um eco do ultimo sus-piro do Illorihulldo, lalvL'I. nem sequer uma parte daafina~·;\o..,!

I)ehaixo da xralHle :irvllI'e do Pai de todas as coisas',cuja copa S(' ('Slt'IHle pL'io Cl'U inteiro, cujas ralzesalravcssalll os 1I11llldost' dll'gam aos infernos ... Serei eua aguia que sc cleva :1('ill1ada :irvllI'c?Serei a corvo que,nela empolcirado, llle fal ouvir lodas as tardes as boas--noites clos mundos <jm' da domina? Ou que pequenls-sima fibra da folhagem dessa :lrvlll'c poderei eu ser?Uma infima virgula no livro dos 1I11lllLlos!

Seja 0 que for! Urn grito lan\ado do Cl'U para a terra!Porque assim terei no meu lugar, COIIIOcada coisa noseu, 0 meu significado. Talhado com fon;as que medireccionam para a todo, mas dotado de lllll scntimento

da felicidade apenas proporcional as minhas for~as!Qual dos meus irmaos teve sabre mim privilegio antesde existir? E se a finalidade e a harmonia dos interessesdo lar exigissem que a meu irmao fosse urn pate deouro e eu a pate de barra, poderia eu - agora pate debarra, nos meus objectivos, no sam que produzo, nalimita~ao da minha dura~ao, nos meus sentimentos enas minhas habilidades - entrar em disputa com 0 mes-tre que assim me fez? Nao fui esquecido, nem preferidoa ninguem. A sensibilidade, a actividade, as habilidadesestao repartidas pelo genero humano. A torrente queaqui arranca a terra, ha-de deposita-l a mais alem. Aquelea quem muito foi dado, tem tambem muito que dar.Aquele que foi provido de mais sentidos, com maissentidos tera que se esfor~ar... Nao creio que urn unicopensamento, com aquilo que diz e que cala, com aquiloque da aver e com 0 que cobre de nuvens, possaoferecer sentimentos mais elevados do que este, a luzde toda a hist6ria!

Que ele possa surgir a essa luz, a tanto chega pelomenos 0 meu desejo! Grandiosa corrida ollmpica! Sea tempo em que vivemos e digno de ser usado paraalgum fim, se-lo-a certamente pelo seu «caracter tardio,pela altura atingida, pelas perspectivas de que disp6e ..!Quanto the foi preparado ao longo de milenios! Paraque ele volte a preparar outro tempo, em sentidoainda mais elevado! Passos que a ele conduzem e delepartem ... Fil6sofo, se quiseres hamar e servir a condi~aopr6pria do teu seculo, a livra da hist6ria que a precedeuesta a tua disposi~ao! Fechado com sete selos; livromaravilhoso repleto de prafecias! Veio ate ti a fim dosdias! Le!

Alem, a Oriente! Ber~o do genera humano, dasinclina~6es humanas e de toda a religiao. Se e certo quemais tarde, num mundo arrefecido, a religiao havia deser desprezada e de se ir extinguindo, nao e menosverdade que foi dali que nos chegou a sua palavra, que

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assim nao havia de acontecer! Pois se a Grecia estavaainda tao distante do Norte, fechada sobre aquele seubelo arquipelago de paisagens, e se 0 espirito humanoque ai habitava era ainda tao fragil, tao pouco robusto!Como havia esse espirito de poder lutar contra todos ospovos? De Ihes impor que 0 seguissem? Como poderia acasca rude dos frutos do Norte captar a delicadeza doaroma grego? A peninsula italica teve, portanto, queservir de ponte. Roma foi 0 tempo intermedio necessarioa consolida\=ao do fruto e a respectiva partilha ... Mesmoa lingua sagrada do novo mundo cristao foi, em toda aEuropa e durante um milenio, a lingua romana, comtudo 0 que isso implicava.

Mesmo mais tarde, quando chegou 0 momento de aGrecia exercer uma segunda influencia sobre a Europa,tal nao aconteceu de forma directa. A Arabia forneceuum canal, por muito a\=oreado que fosse ... A Arabia, 0

under-plot da hist6ria da forma\=ao na Europa! Se everdade que Arist6teles estava destinado - como aliashoje acontece - a reinar sozinho sobre tantos seculos e aproduzir em todos os dominios os vermes e as tra\=as dopensamento escolastico, imagine-se como teria sido se 0

destino tivesse querido que Platao, Homero, os liricos,os historiadores e os orad ores gregos tivessem exercidomais cedo a sua influencia sobre a Europa! Teria sidotudo infinitamente diferente! Mas nao tinha que serassim. 0 circulo tinha que passar pelos arabes e a reli-giao e a cultura nacional arabes tinham repugnancia poresse tipo de flores. E e bem possivel que nem sequertivessem podido prosperar na Europa daquele tempo,uma vez que 0 espirito do tempo se adaptou tao bem assubtilezas aristotelicas e as caracteristicas do gostomourisco ... Destino!

Na Europa far-se-ia apenas a secagem e a prensagemda planta produzida ao longo dos seculos que durou 0

mundo antigo. Mas foi passando por ai que ela havia dechegar a todos os povos do mundo. Como e estranhovermos na\=oes inteiras lanprem-se ao trabalho semsaberem para que nem como proceder! 0 destino cha-mou-as ao trabalho nesta vinha. Uma ap6s outra, caela

soprou ate n6s 0 espirito do fogo e das chamas.* Comuma dignidade paternal e uma simplicidade que aindahoje comove, sobretudo "0 cora\=ao de uma inocentecrian\=a»!A inf:1ncia da especie humana ha-de agir sempresobre a inf:1ncia do individuo: 0 ultimo inocente nasceainda no primeiro Oriente ...!

Os adolescentes de tudo aquilo a que chamamosbelas-letras e belas-artes SaG os gregos. Aos olhos donosso seculo, 0 que estiver para alem disto e talvezdemasiado profundo ou demasiado infantil. Mas os gre-gos, na verdadeira aurora dos factos universais, queenorme influencia exerceram sobre os tempos que haviamde se seguir! E deles que nos chega 0 mais belo botaoflorido do espirito humano: a coragem her6ica, 0 amorda patria, 0 sentimento da liberdade, 0 amor pelas artes,o canto, a sonoridade da poesia, 0 tom da narrativa, 0

trovao da eloquencia, 0 desabrochar da cidadania quehoje se implantou. Os gregos, ali, on de [oram colocados ...Foi-lhes dado um ceu, um pais, uma constitui\=ao, ummomenta apropriado ... E eles construiram, descobriram,nomearam ... E n6s continuamos a construir e a nomearsegundo 0 que eles nos ensinaram ... 0 seculo gregorealizou! Mas realizou apenas uma vez! E quando 0

espirito humano empenhou todas as suas forps para 0

acordar pela segunda vez ... 0 espirito tinha-se trans-formaclo em pocira, 0 rchento em cinza, e afinal a Gre-cia nao regrcssou!

as romallOS, o.~ «ue primeiro recolheram e distri-buiram os f'nllos «lit' otltms hem longe haviam cultivacloe quc agora Iht's ('alalll Illallums nas maos! E verda deque f'oralll ohrigados ;1 dt'ixar as seivas e os botoesIloridos JlOS scus lugares de origt'1l1,Illas rambem e certoque rcdislrihlliram os f'rlllos: reliquias do mais antigomundo envoltas em roupagcm romana, em modosromanos c em linguagem romana ... Como tudo teriasido diferente na Europa, se todos esses frutos nostivessem chegado directamente da Grecia? Sob a formado espiriro grego, da cultura grega, da lingua grega? Mas

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uma na sua hora. Possivelmente ja estava inventado,experimentado e finamente imaginado tudo 0 que 0

podia ser ... Tratava-se agora apenas de introduzir metodo,forma de ciencia ... Vieram entao as novas inven~oes,mecanicas e frias, capazes de tudo ampliar: maquinas daabstraq:ao fria da Europa do Norte, grandiosos instru-mentos nas maos daquele que tudo dirige! E eis que assementes se propagaram por entre quase todas as nar;oesdo mundo, pelo men os por entre todas as que sanconhecidas ou acessiveis. Todas elas as recebem quandochega 0 seu momento. A Europa tratou de secar essassementes, de as unir com urn fio, de as eternizar ... Quesingular planeta! Oh, pequeno continente do Norte,outrora abismo de bosques e ilhas geladas, 0 que estavasdestinado a ser...! E que viras tu ainda a ser ...?

Aquilo a que costumamos chamar as luzes e a forma-~ao cultural do mundo apenas atingiu uma pequenafaixa do globo. E tambem nada podemos mudar no seucurso, no seu estado ou na sua circula~ao sem que depronto tudo se altere. Que teria acontecido se, porexemplo, a introdur;ao das ciencias, ou da religiao ou daReforma se tivesse processado de outra maneira? Se ospovos do Norte se tivessem misturado de outro modoou se se tivessem sucedido por uma outra ordem? au seo papado nao tivesse sido urn veiculo tao duradouro? Enao poderia eu multiplicar por dez estas perguntas ...?Sonhos! Nao foi assim! E sera que olhando para traspodemos cntrever uma parte das razoes que levaram aque assim n;10 acontecesse? Decerto, mas apenas umapequena parte!

o que sc vc lamhcm e a razao pela qual de factonenhuma nal.·:10que a outra sc sucede, mesmo quandodesta tenha herdado lodos os seus instrumentos,consegue lornar-se 0 que a sua antecessora foi. Aindaque possam ser os 1l1CSlllOS os meios da sua cultura, acultura nunca ser:i a mesma porque entretanto faltaraotodas as influenci:ls da antiga natureza que se modificou.As ciencias gregas, uma vez absorvidas pelos roman os ,tornaram-se romanas. Arist6teles tornou-se arabe eescolastico. E em que coisa lamentavel se transformaram

os gregos e os romanos dos tempos modernos? Marsilio,es Platao? E tu, Upsio, seras Zenao? Onde estao os teusEst6icos? as teus her6is que tanto fizeram na antigapatria? V6s todos, Homeros, oradores e artistas dosnovos tempos, onde esta 0 mundo das vossas maravilhas?

E tambem nao houve pais em que a forma~ao cul-tural tenha podido arrepiar caminho e voltar a ser pelasegunda vez aquilo que ja antes tinha sido. A estrada dodestino e rigida, como 0 Ferro! Se 0 cenario de umaepoca, do mundo dessa epoca, ja ficou para tras, se osfins, fossem eles quais fossem, se perderam tambem ...sera que 0 dia de hoje ainda pode vir a ser 0 de ontem?Se a rnarcha de Deus avanp a passos de gigante porentre as na~oes, sera possivel que as forr;as humanasconsigam gatinhar no senti do contrario? V6s, Ptolomeus,nao have is podido reerguer 0 Egipto! V6s, Adrianos,nao haveis conseguido reconstituir a Grecia! NemJulianorefundar Jerusalem! Egipto, Grecia, e ate tu, terra deDeus, em que miseria vos encontrais! Montes escalvadossem vestigio da voz do genio que em tempos vagueoupor essas paragens deixando palavras que haveriam decorrer mundo ...! Porque? Porque esse espirito disse tudoo que tinha a dizer! A marca que tinha que imprimirsobre os tempos foi impressa! A espada gastou-se eficou apenas a bainha vazia, feita em pedar;os! Talvezisto constitua resposta suficiente para a inutilidade detantas duvidas, admira~oes e perguntas.

«Amarcha de Deus por entre as na~oes! a espiritodas leis, dos tempos, dos costumes e das artes! Em quesequencia tudo isso foi surgindo, se foi preparando demomenta para momento, se foi desenvolvendo e esgo-tando!» Pudessemos n6s dispor de urn espelho do genet'<)humano que nos oferecesse com toda a fidelidade, CPIII

toda a riqueza e sentimento, a revelar;ao de Deus! TrahaIhos preparat6rios temos que cheguem, mas tudo t:l( I

em bruto, tudo tao envolto em desordem! Hebol:illlO-nos ou rastejamos pelo presente e pela hist6ria passada

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de quase todas as na~6es e epocas, praticamente semsaber para que. Dispomos dos factos e das investiga~6eshist6ricas, de descobertas e de relatos de viagens ...Quem se entregara a tarefa de os examinar e classificar?

,A marcha de Deus por entre as na~6es!» A tarefagigantesca a que se lan~ou Montesquieu nao conseguiuchegar a ser 0 que devia ter sido, pois que estava postanas maos de urn s6 homem. Resultou urn edificio g6ticoao gosto filos6fico do seu seculo ... Esprit e pouco mais!Factos arrancados ao respectivo lugar, em ruinas, postosa venda em tres ou quatro mercados publicos sob aetiqueta de tres palavras gerais - ah, as palavras! -, e,para cumulo, de palavras cheias de esprit e portantovazias, inuteis, indefinidas e que tudo confundem. Todaa obra atravessada, pois, por urn remoinho de tempos,na~6es e linguas, comparavel ao que envolveu a torrebabelica ... E tres frageis pregos onde cada urn a chegadapode pendurar 0 que trouxer, as suas miserias, as suasriquezas, 0 seu alforge ... A hist6ria de todos os povos ede todos os tempos, essa imensa obra viva de Deus, emtoda a sua continuidade, transformada num monte deruinas encimado por tres bicos e tres capsulas vazias ... E,contudo, oferecendo tambem os mais nobres, os maisdig nos materiais ... Montesquieu!

Quem podera restaurar-nos 0 templo de Deus talcomo e de facto na sua continuidade atraves dos seculos?Ja la van os antigos tempos da infancia da humanidade!Mas abundam pOl' ai os vestigios, os monumentos ...Magnificos restos, evidenciando alias 0 acompanhamentodispensa<!o pclo 1':1ia cssa idade infantil. .. Revela~ao!Dir;ls tu, hOIlH'll1,que e1a tc parcce muito envelhecida,hoje, que atingislt' j:i IIl1la clapa demasiado avanpda,demasia<!o avis:1<1:tda tua vi<!:I'vt~:)Iua volta! A maiorparte cbs na\;<')('sc'nconlra ..sc ainda na sua infancia, falaa linguagclll da infancia, lem os costullles da infancia,da-nos 0 modelo do grau de forma~'ao pr6prio da infan-cia ... Se viajares por entre os povos a que chamamosseIvagens e se presta res aten~ao, escutaras sons queesclarecem a interpreta~ao das Escrituras, ouviras soprarcomentarios vivos a revela~ao!

A idolatria de que disfrutaram os gregos e os romanosdurante tantos seculos, 0 zelo tantas vezes fanatico comque se investigou, clarificou, defendeu e louvou tudo 0

que dissesse respeito a esses povos... Que enormeconjunto de contributos, de trabalhos preparat6rios!Quando se tiver dissipado este espirito de desmesuradavenera~ao, quando se tiver reequilibrado razoaveImenteo partidarismo com que cad a urn costuma acariciar 0 seupr6prio povo como se fosse a sua Pandora, entao sim,gregos e romanos, havemos de poder conhecer-vos eclassificar-vos!

Descobriu-se urn desvio que passa pelos arabes eno qual existe urn mundo de monumentos capazes denos ajudar a conhecer os gregos e os romanos ...Descobriram-se, ainda que com fins totalmente diferentes,monumentos da hist6ria medieval... Talvez nao sejapreciso esperar mais do que meio seculo para que sedesenterre 0 que ainda esta coberto pela poeira dostempos (assim pudessemos ter n6s outras certezasrelativamente a nossa iluminada epoca) ... Os nossosreIatos de viagens aumentam em quantidade e melhoramem qualidade, ja que nao ha quem - estando desocupadona Europa - se nao ponha a correr mundo munido deuma especie de furor filos6fico ... Recolhemos «materia isde todos os confins do planeta» e urn dia acabaremospor descobrir neles aquilo que menos procuravamos,comentarios a margem da hist6ria do mundo humanoque mais nos importa.

Nao tarda que este nosso tempo abra os olhos demuita gente e que nos leve a procurar as fontes - peInmenos as fontes idea is - que hao-de matar-nos a seckdo deserto. Aprenderemos a valorizar os tempos quehoje desprezamos. Excitar-se-a em n6s 0 sentimenlogeral da humanidade e da felicidade. Da hist6ria CIIIruinas resultara a perspectiva de uma existencia hUlllall.1mais elevada que a terrena e essa perspectiva l11ostra.--nos-a que existe plano onde ate hoje apenas VillHI,'.confusao. Tudo encontrara 0 seu verdadeiro luga!'. I",,~t:l."

prestes a existir, oh hist6ria da humanidadc' no 111;11.••nobre dos sentidos! Enquanto ela nao c!wga, <!('iXI'IlHI'"

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que 0 grande mestre e legislador dos reis nos conduza eseduza. Pois se nos deu urn modelo tao belo que tudopermite avaliar com duas ou tres palavras, tudo permiteremeter para duas ou tres formas de regime politico quefacilmente se situam quanto a sua limitada origem edurac;:ao... Que agradavel se toma segui-lo atraves doespirito das leis de todos os tempos e povos, menos urn,o seu ... Tambem isso e destino! Quantas vezes acontecesegurarmos demoradamente 0 novelo entre as maos eentretermo-nos a puxar uma ponta deixando tudo maisemaranhado! Feliz a mao daquele que se entregar aoprazer de lenta e delicadamente desenovelar 0 fio destaconfusao! Ver-se-a como se estende longe e uniforme-mente 0 fio! A hist6ria do mundo! A hist6ria em queparticipa a grandeza dos imperios e a pequenez dosninhos das aves ...

Todos os acontecimentos do nosso tempo seencontram num plano de grande e1evac;:aoe tendem aultrapassa-lo ... Tanto quanto posso ver, ambas as coisasconstituem compensac;:ao para 0 facto indubitave1 decada urn de n6s, enquanto individuo, estar mais limitadona forc;:ae no sentimento de alegria com que age. Trata--se, pois, de urn verdadeiro encorajamento, de revita-liza\·ao.

Tu, Socrates clo nosso tempo, nao podes ja agircomo Socrates. Porque te falta aquele cenario estreito,concentrado, motivante em que ele se movimentava! Auniformidade dos tempos, dos costumes e do caracternacional! A clara determina\'ao cia tua esfera cle acc;:ao...!Se es LIllI cidad:lo do planeta, e ja nao cidaclao cleAtenas, e natural que Ie bite a perspectiva claquilo queem Atenas devias levar a cabo, 0 sentimento convictodaquilo que fazias, a alegria de teres conseguiclo 0 quefizeste ... Falta-te 0 teu dem6nio! Mas ve bem! Se agirescomo S6crates, se te opuseres com toda a humildacleaos preconceitos, se espalhares a verclacle e a virtuclecom sincericlade, pOI'amor clos homens e com sacrificio

da tua pessoa, como cle facto es capaz, talvez 0 ambitoda esfera em que te moves venha a ultrapassar a inclefi-nic;:ao e as limitac;:oes que marcaram 0 teu ponto cleparticla! Dos teus leitores, uma centena nao te entendera,uma centena ha-cle bocejar, uma centena desprezar-te-a,uma centena blasfemara, uma centena preferira osatractivos da serpente do habito e ficara exactamentecomo e ... Mas repara que talvez possa sobrar ainda umacentena em quem as mas palavras deem frutos ... E,quando ha muito tiveres apodrecido, havera umaposteridade capaz de te ler e de me1hor te aplicar. Ama Atenas e 0 mundo inteiro e toda a postericlade!Fala, pois!

o mundo inteiro e toda a postericlade! EtemoS6crates, agindo! E ja nao este busto morto, coroadocom umas quantas folhas de chou po a que chamamosimortaliclade! Cacla urn falava de modo concreto, vivo,no seu estreito circulo, e as suas palavras encontravamurn lugar exacto ... Xenofonte e Platao retrataram-no nassuas Memoraveis e Dialogos. Eram apenas manuscritos,que - para sorte nossa -, sendo me1hores que muitosoutros, puderam ser arrancados a torrente avassaladorados tempos. As palavras que escreves deviam ser, uma auma, objecto de valor para 0 mundo e para a etemiclade,porque tu - pelo menos segundo os materiais de quedispoes e as possibilidades que te assistem - escrevespara a etemidade e para 0 mundo. A que maos poderachegar 0 que escreves! Em que circulos de homensdignos, capazes de avaliar 0 que dizes, deverias falar!Ensinar a virtude, a luz do dia, em plena claridade, comoo nao podia ainda fazer S6crates no seu tempo! E incitarao amor dos homens, a urn amor que, se pudesseexistir, deveria ser verdadeiramente mais do que amorpela pitria e pela cidade! Espalhar a fe1icidade, mesmoem condic;:oes, mesmo em situac;:oes que s6 dificilmentese poderiam comparar com as claque1es trinta salvadoresda patria, a quem nao deixaram de ser erguidas estatuas.S6crates da humanidade!

Tu, que ensinas as coisas da natureza! Quantoultrapassas Arist6teles e Plinio! Quantas maravilhas,

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quantas obras te estao abertas com que eles nao sonha-yam! Que meios tens a tua disposi~ao para abrires osolhos dos que te rodeiam! Que alto 0 ponto em que teencontras! Pensa em Newton, no que conseguiu por sis6 realizar para beneficio de todo 0 espirito humano,pensa no que isso transformou, na eficacia e nos frutosque teve! A que alturas fez esse homem subir tada a suaespecie ...! Tu ocupas 0 ponto mais alto! E, em vez dereduzires a imensa cria~ao divina, para a meteres numaprodu~ao da tua cabe~a, no pequeno edificio dacosmogonia, da genese dos animais e da constitui~aodas formas*, esforps-te por seguir apenas a for~a dacorrente divina, por senti-I a e da-Ia a sentir profunda everdadeiramente em todas as formas, em tadas asconfigura~6es, em todas as coisas criadas! Esfor~as-tepor servir 0 criador elll vez de te servires a ti pr6prio ...!Mensageiro da gl6ria que atravessa todos os reinos dosseres! S6 do ponlo que ocupas, no cume dos tempos,poderias lan<,'ar-lc elll vtlO pelos ceus, fazer as tuasdescobertas c falar com IOI:i1propriedade, com nobrezae sabedoria! Ikssedelllar COllia visao inocente, poderosae bondosa de ()eus os COr;I\;(>eshumanos que nenhumaoutra fonte teria podi<!o rdrescar! E isto que fazes, emfavor do ll1un<!oe <!aposlcridade! Decerto apenas maisurn nome, tun pequeno nl )Jlle a juntar aos de todos osque descohreJll e investig:1I11... Mas em favor do mundoe da poslerid:lde! I':a <ill\' :i1lura' Corn que esplendor-que Plinio e Arisl(lll'il's 11:10 lograraJl1 alcan~ar. ..!Anjo deDeus enlre os II<Hlll'IISdl) Il'lI 1l'lllpO!

De qll:1I1I:ISl'('I1I\'l1aSdl' relllt'dios disp6e hoje 0

medico e conll\'cedor d:1 JI:lllln'/,a humana que naoexistialll ao 1l'IIIIHl de Ilip(I('\,;lll'S ou de Macaon?Comparado COlliell's (~('1'1'1:111\('1111'11111 mho de Jupiter,mho do deliS! E COIllOseria se pa ra aIt'lll disso 0 fossecom lodo 0 sentimento c1esses It'JllPOS mais humanos?Um deus, um desvendador de mislt:rios, um salvadorpara lOtio aquele que pade~a clo corpo ou cla alma!Capaz de salvar urn jovem que ao julg<lr colher as

primeiras rosas da vida foi mordido por uma serpente defogo e de 0 devolver (porque talvez s6 ele 0 possafazer) a si pr6prio, aos seus pais, a descendencia que den6s espera uma existencia plena de vida ou de morte,ao mundo, a virtude. Capaz de mais alem dar apoio aurn homem que 0 trabalho ou a af1i~ao tarnaram vitimados seus pr6prios meritas, capaz de Ihe oferecer a maisdoce recompensa que talvez Ihe seja dado sabarear empaga de tada uma vida: uma velhice serena! Capaz de 0

salvar, de 0 manter vivo par apenas alguns anos mais,constituindo talvez a unica protec~ao contra mil acidentesda humanidade que 0 ultimo olhar desse homem teraque acompanhar! Capaz de ser 0 bem desses poucosanos, de ser a consola~ao, a serenidade que esse homemlevantado dos mortos espalha a sua volta ...! Num tempoem que urn homem que foi salvo pode fazer tanto e emque a inocente humanidade pode padecer tao misera-velmente e de tantas formas diferentes, que seras tu? Tu,medico com cora~ao de horn em!

Para que haveria eu de percorrer ainda as diferentescondi~6es e classes sociais? Passar pela justi~a, pelareligiao, pelas ciencias, por cada uma das artes? Quantomais cada uma delas tiver subido naquilo que e 0 seugenero pr6prio, tanto mais amplamente podera agir!Agir mais e melhor! Pois que s6 tiveste que agir volun-tariamente, ja que nada te obrigou ou far~ou a agir juntados da tua condi~ao e classe com tanta grandeza ebondade, pois se nada de exterior a ti te veio despertar ese, pelo contrario, tudo te empurraria para te tornaresurn mero servidor mecanico da tua arte e para deixaresadormecer qualquer sentimenta mais profundo que emti houvesse - talvez mesmo ate esse facto pouco ha-bitual de teres preferido substituir na tua cabe~a oslouros por espinhos -, pois se assim foi, tanto maispura, tranquila e divina e a tua virtucle secreta mascomprovada. Ela e muito mais que aquelas virtu des deoutros tempos que, despertadas por estimulos ourecompensas, acabavam por ser apenas instrumentos dacidadania e nobre esplendor do corpo! A tua virtu de eseiva vivificante do cora~ao!

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Como deveria eu falar se quisesse descrever 0 meritodaqueles que constituem de facto 0 pilar do nossoseculo, 0 eixo em torno do qual tudo se move? Soberanos!Pastores! Homens que olham pelos povos! A fort;a decada urn aliada ao impulso que recebem do tempo emque vivemos coloca-os a meio caminho da omnipotencia!Logo pela sua imagem, pelo seu modo de encarar ascoisas, pelas suas preferencias, pela sua maneira depensar, silenciosa mas motivando os acontecimentos! 0genio que os anima diz-lhes apenas que existem parauma tarefa mais nobre do que urn mero jogo em queusassem 0 rebanho como urn mecanismo orientado parafins pessoais - pOI'gloriosos que fossem tais fins -, queexistem para tomar 0 rebanho pOI'finalidade e apascenta--10, senao mesmo para atender as necessidades dahumanidade inteira ...! Soberanos, pastores, homens queolham pelos povos! Na mao tern 0 ceptro da omnipo-tencia! Basta-lhes uma pequena quantidade de fort;ashumanas! Em poucos anos, pondo em jogo apenas a suaintent;ao e a sua capacidade de encorajar, podem fazerinfinitamente mais do que faz aquele mongol sentadosobre 0 trono de ouro ou do que quer fazer esse outrodespota empoleirado sobre urn assento de cabet;ashumanas! Quem, ocupando talvez a mais alta condit;aosocial, sucumbe as meras intent;oes politicas e uma almatao vulgar como aquele semeador de lentilhas quedependia da sorte ou 0 flautista que se limita a colocarbem os dedos sohre os huracos ...

I'refiro falar conti).:o, pastor do teu rebanho, pai,m,le, hahitando nUllla pohre choupana! Tambem a ti terouhar,lIll mil ('oisas que Ie eSlilllulavam, que te atraiam,que noutros tl'mpos tranSfOl'lllaValllllulI1ceu os cuidadospaternos . .I:i n;\o pmks dett'l'Illillar 0 que sera 0 teu filho!Desde cello, talvt'z ainda no 1lL'I\,o,Illarcam-no com 0

honroso lav) da liberdade, 0 mais aho ideal dos nossosfil6sofos!.J{1n,lo podes educa-lo para 0 Jar paterno, paraos teus costumes, virtudes e modo de existencia ... Falta--te cada vez mais 0 espat;o em que possas agir e, comotudo corre em confusao, falta-te 0 mecanismo que maisfacilita a educat;ao: a tua pr6pria intent;ao. Tens que

cuidar de que, uma vez arrancado aos teus brat;os, seafunde imediatamente no grande oceano de luz do nos-so seculo! No abismo ...! Uma j6ia que se afunda! Ainsubstituivel existencia de uma alma humana! Umaarvore em flor, arrancada demasiado cedo a terra-mae etransplantada para urn mundo de tempestades as quaistantas vezes s6 a custo resistem os troncos ja endurecidos!Quem sabe ate se transplantada ao contrario, com acopa no lugar da raiz e a triste raiz exposta ao ar! Estasdebaixo da ameat;a de que te aparet;a, pouco tempodepois, ressequido, abominavel, como a arvore quedeixou cair por terra as flores e os frutos ...! Nao desesperesda fermentat;ao do seculo! Sejam quais forem as ameapsou os obstaculos, continua a educar! Educa melhor,educa com mais vigor e mais certeza ... Educa-o paratodos os ambientes, para todas as atribulat;oes em quesera lant;ado! Para as tempestades que 0 esperam! Naopodes ficar inactivo e teras que educar, melhor ou pior!Pois que seja bem! E hayed maior virtu de? Haved maiorrecompensa em qualquer paraiso de objectivos maisfaceis em que a format;ao seja coisa uniformizada? Ah,como 0 mundo necessita, hoje mais que noutro tempo,de cad a homem que possa tel' sido educado nas simplesvirtudes! Quando os costumes SaDtodos iguais e quandoSaD todos igualmente convenientes, justos e bons, queesfort;o nao e necessario! Porque se e 0 habito a educar,entao a virtude perde-se no mero habito! Mas eis que seve uma estrela brilhando na noite! Um diamante queaflora sob um monte de terra e de pedras! Educar umhomem entre multi does de macacos e de mascaraspoliticas ...!Quanto nao podera esse homem fazer com 0

seu exemplo silencioso, divino! Ampliar ondas a suavolta, talvez mesmo a sua frente, pelo futuro ...! Maspensa tambem em como e tanto mais pura e mais nobrea tua virtude, em como e tanto maior 0 instrumento deque dispoes para educar quanto menores SaDos impulsosexternos que te movem a ti e ao teu filho! Pensa emcomo a virtude que Ihe ensinas e mais elevada do <jueas que Licurgo e Platao alguma vez estiveram em condi·t;oes de ensinar! Este e 0 seculo mais belo para a virtude

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silenciosa, calada, quase sempre ignorada, mas ao mesmotempo tao elevada e de tao longo alcance!

Parece-me, pois, que e certa esta propor~ao: quantomenores sac as condi~6es do nosso seculo para que seveja uma bondade grande e global, quanto mais diffcilse nos toma a suprema virtude, quanto mais silen-ciosamente e em segredo tern hoje que ser praticada,tanto mais elevada sera, tanto mais nobre, quando existir,e tanto mais se poderao tomar infinitas a sua utilidade eas suas consequencias! E verdade que se renunciamosabnegadamente a nos mesmos nao poderemos saborearmuitas recompensas imediatas, e e verdade queespalhamos as sementes pelo mundo sem podermos veronde caem, onde lanpm raizes e sequer se chegam adar bons frutos ... Mas esta e a tarefa nobre, a de semearsecretamente na imensidao sem esperar que a colheitaseja nossa! E podemos estar certos de que tanto maiorsera a vastidao da colheita! Confiem'os as sementes aoZefiro que sopra e ele as levari tanto mais longe! Equando urn dia tiverem despertado todos os germespara os quais contribuiu a parte mais nobre do nossoseculo ... Ah, como sac ditosos os tempos em que seperde 0 meu olhar...!

E pois nos ramos mais altos da arvore que nascem ecrescem os frutos! Veja-se a bel a imagem antecipada damaior das obras de Deus! A difusao das luzes! Se e certoque nem sempre nos e dado ve-la concretizar-se, se ecerto que, sendo grande a superficie e 0 alcance, a cor-rente perde em profun<lidade e em vigor, nao e menoscerto que por seu intermedio nos aproximamos de urngrande oceano e que, pelo menos, constituimos ja urnpequeno mar. Conceitos de todo 0 mundo em associa~ao!Urn conhecimento da natureza, do ceu, da terra, dogenero humano, quase tao grande como 0 que algumavez 0 nosso universo nos podera dar! 0 espirito detodas essas coisas, 0 seu conjunto, os respectivos frutos,ficam para a posteridade! Passou 0 seculo em que a

peninsula italica construiu a sua lingua, os seus cos-tumes, a sua poesia, a sua politica e as suas artes porentre a confusao e a opressao, por entre revoltas eimposturas ... Mas 0 que foi construido ficou, sobreviveua esse seculo, continuou activo e tomou -se a primeiraforma da Europa! Passaram ja, pelo menos em parte, amiseria e 0 sofrimento que abalaram 0 seculo do granderei da Fran~a. Os fins para os quais tudo pretendiaorientar e usar foram esquecidos ou ficaram para ali,sem prestimo, como bonecos que representassem avaidade e a loucura. Os mares de bronze, que eleproprio tinha trazido, e as paredes, em que estava pessoal-mente presente, ficaram entregues aos pensamentos dequem pode hoje pensar nao exactamente aquilo queLuis queria ... Mas 0 espirito das artes que se exerceu emtodas essas coisas ficou! Como ficarao os resultados dasviagens dedicadas a botanica, a numismatica, as pedraspreciosas, a nivelamentos ou a medi~6es, quando jativer desaparecido tudo 0 que delas fez parte, tudo 0

que padeceu par causa delas, tudo 0 que constituiu asua finalidade imediata! 0 futuro pega em nos comonum fruto, tira-nos a casca e fica com a polpa. 0raminho no topo da arvore nada recebe, mas e dele quepend em os adoraveis frutos!

Como seria entao se urn dia toda est a luz quesemeamos pelo mundo - e com a qual hoje cegamos osolhos de tanta gente e espalhamos tanta miseria eobscuridade - se tomasse por toda a parte uma apropriadaluz da vida, urn calor vital? Se urn dia 0 con junto deconhecimentos claros mas mortos de que dispomos,este campo de ossadas que nos rodeia por todos oslados, se levantasse - sabe-se la porque e para que -vivo e fecundado? Que imenso mundo novo! Quefelicidade a de poder saborear nele 0 trabalho dasnossas maos! Tudo a nossa volta, as descobertas, osprazeres, a necessidade, 0 destino e 0 acaso, nos impul-siona para que nos elevemos acima de uma certa sensi-bilidade mais rude, propria de epocas que passaram, epara que atinjamos uma abstrac~ao mais elevada nopensamento, na vontade, na vida e na ac~ao ... 0 que

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nem sempre nos sera aceiUivel e talvez mesmo muitasvezes desagradavei! Perderam-se ja a sensibilidade dooriental, 0 sentido da beleza do homem grego e 0 vigordo romano ... E como e miseravel a consola~ao quevamos buscar a essas detestaveis maximas abstractas emque tantas vezes for~osamente consistem as nossasmotivap3es, os nossos impulsos e os nossos momentosde felicidade! Tambem a crian~a se desabitua comdificuldade dos ultimos prazeres da sensibilidade ...! Masvede a idade que se aproxima, a altura de que ela nosacena! Ninguem seria suficientemente louco para negarque, se SaD possiveis it natureza humana motiva~oesdelicadas, virtudes celestiais, superiores, formas maispuras de saborear os encantos terrenos, entao elasexercem uma extrema influ€mcia que nos eleva e enobre-ce! Acontecera que junto a este roche do muitos seafundem ... Acontecera por certo tambem que os quehoje dispoem desta virtude feneloneana sejam infinita-mente menos do que aqueles que, entre os espartanos,os roman os ou os cavaleiros medievais, dispunhamdos botoes em flor do espirito do seu tempo e do seumundo ... As amplas estradas vao-se tornando caminhoscad a vez mais estreitos, veredas por onde nao ha muitosque possam passar! Mas SaDcaminhos elevados, veredasque conduzem ao cume! E, subindo pelo caminho tortuo-so da providencia, deixando para tras a pele e toda asorte de impedirnentos, que regioes atingira um dia essacrialura renovada vivendo a sua nova Primavera ...! Vmahumanidade menos presa aos sentidos e mais igual a simesilla! I{odeada, a~ora sim, pelo mundo inteiro, etendo j{ldentro dc si a forl:a vital co principio a que nostao penosamente ainda ;lspiramos! Que cria~ao! Quemquereria negar-Ihe possibilidade ou probabilidade? Eevidente 0 aperfei\=oamento e depural,ao continuas dosconceitos de virtude a partir dos tempos da infilncia e darespectiva sensibilidade dominante e ao longo de toda ahistoria. E evidente a sua amplifica\=ao e 0 seu desenvolvi-mento continuos. E tudo isto sem fins? Sem uma inten~ao?

E sabido que se clarificam e difundem os conceitosde liberdade humana, de sociabilidade, de igualdade e

de felicidade universal. Para nos nem sempre com asmelhores consequencias imediatas, muitas vezes - itprimeira vista - acontecendo que 0 mal come~a portriunfar sobre 0 bem ... Mas vejamos ...!

A sociabilidade e 0 convivio f:icil entre os dois sexosnao tera diminuido 0 sentido da honra, da decencia e dahonestidade de ambas as partes? Nao tera feito com quese desmantelassem os castelos do mundo em busca deposi~ao social, de dinheiro e de refinamentos? Quantosofreram os primeiros rebentos floridos do sexo masculinoe os primeiros frutos do sexo feminino no que ao amorconjugal e maternal respeita e no que toea it educa~ao?Ate onde se estendeu 0 prejuizo? Todo um abismo demales irreparaveis, po is se ate as fontes de cura ou depossiveis melhoras ficaram obstruidas: a juventude, afor~a vital, uma mais saudavel educa~ao ...! as rebentosmais delgados, os que com facilidade SaD deslocadospelo vento, nao tem outra possibilidade senao secar aosraios do sol que os apanha demasiado cedo e despro-tegidos no jogo da vida! Perda irreparavel...! Irremediaveltalvez aos olhos de qualquer politica ... Deploravel comonenhuma outra aos olhos do filantropo ... Mas, nas maosda providencia, uma vez mais um instrumento! Porque,se a mira gem da primeira Fonte da vida, da sociabilidadee da alegria, engana centenas de criaturas de gargantaseca que mergulham nas areias sem conseguir matar asede, a verdadeira fonte, que os infelizes julgavam terencontrado, vai ficando mais pura! E veja-se como maistarde, em idade mais avan\=ada, se poem a procurar-talvez ainda com exagero - outros frutos que lhes possamdar satisfa\=ao, como idealizam novos mundos e comoajudam a melhorar 0 mundo com a sua desgra~a! Aspasiaschegadas ao fim da vida a darem forma aos seus Socrates!Inacio formando os seus jesuitas ... as Epaminondas detodos os tempos criando batalhas de Leuctra ... Herois,filosofos, sabios e monges de tao elevadas e raodesinteressadas virtu des e aspira\=oes, de tanto merilo!Quantos 0 nao SaGpor essa simples razao! Quem quiscrpesar e calcular a vantagem que dai tira 0 mundo, que 0

fa\=a!Tem perante si grande quantidade de resultados

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que na maior parte dos casos nao deixam duvidas. Oscaminhos da providencia passam tambem por milh6esde cadaveres para chegarem ao seu termo!

A liberdade, a sociabilidade e a igualdade, tal comohoje germinam por toda a parte, tern produzido e vaocontinuar a produzir 0 mal, sob a forma de mil abusos.No tempo de Lutero os anabaptistas e outros fanaticosdevastaram a Alemanha. Hoje, com a generalizada misturadas condi~6es sociais, com a subida dos pequenos aospostos dos grandes - que se tornaram inuteis, debeis eimpantes -, para rapidamente chegarem a ser piores doque os seus antecessores, os lugares fundamentais dahumanidade, os mais necessarios e solidos, estao vazios.A quantidade de seiva vital baixou abruptamente, poisque foi malbaratada. E se alguem, em nome desseenorme corpo, por via de urn momentaneo acrescimode apetite ou de urn aparente crescimento das for~as,lan~ar urn olhar aprovador, urn louvor, urn estimulo ...Ou mesmo que esse alguem manifestasse a sua violentaoposi~ao ... Uma coisa e certa, nao conseguiria fazerdesaparecer a causa do «continuo refinamento, da atrac~aopara 0 raisonnement, para a opulencia, para a liberdadee para a afronta»! Urn rapido confronto mostra-nos deimediato quanto decaiu de ha urn seculo para ca averdadeira considera~ao, a voluntaria considera~ao pelaautoridade, pelos pais, pel as condi~6es sociais maiselevadas. E tudo a que, grande au pequeno, e conside-rado grande par este nosso seculo contribui de umadezena de maneiras para esse recuo: a destrui~ao doslimites e das barreiras, 0 espezinhamento e a ridiculari-za~ao dos chamados preconceitos sociais, educativos ereligiosos ... Por meio da uniformiza<Jio da educa~ao, dafilosofia, da irreligiao, da difusao das luzes, dos vicios e,como complemento, por intermedio ainda da opressao,da violencia sanguinaria e da avidez insaciavel que jacome~a a acordar os animos e a eleva-Ios ao sentimentode si proprios, havemos todos de ser... Gloria nossa!E depois de tanta desordem e miseria, gritemos ainda:gloria nossa! Porque vamos atingir 0 que a nossa filosofiatanto anseia: 0 senhor eo servo, 0 pai e 0 filho, 0 jovem

e a virgem mais distante, havemos todos de ser irmaos!Esses senhores profetizam como Caifas, mas nao haduvida de que 0 fazem por sua conta e risco, ou pararisco dos seus proprios filhos!

Se a nossa «governa~ao dos homens» nao tivesseganho outras coisas para alem de urn belo revestimento_ a boa aparencia, 0 born aspecto, uma linguagem apro-priada, os principios, as opini6es e as regras que hoje sepodem encontrar em qualquer livro e que qualquerjovem principe traz na boca como se fosse urn livroaberto -, que enorme progresso! Que alguem tente lerem conjunto Maquiavel e 0 Anti-Maquiavel... 0 filosofoe 0 filantropo venerarao este ultimo, tratarao de naoreparar nas passagens bolorentas ou nas feridas inson-daveis on de se torn a impossivel encontrar qualquerfundamento, e que deverao ficar intocadas e cobertaspor flores e ramos verdes, e dido: que livro! QuePrincipe, aquele que fosse capaz de pensar como 0

livro! Capaz de admitir, de reconhecer, de saber, de agirsegundo opini6es de momento! Que Principe para 0

mundo de hoje e para a posteridade! Em vez de umaloucura inumana e rude, poderiam reinar doen~as quesao mais opressivas e mais perniciosas porque se insinuamfurtivamente! Doen~as que sao celebradas, que nao saoreconhecidas como tal e que devoram tudo ate a alma!o vestido que em geral cobre a filosofia e a filantropiapode esconder opress6es e ataques a verdadeira liberdadedos individuos, dos paises, do cidadao ou dos povos,que so se comparariam aos de Cesar Borgia ... Mas tudoisso em conformidade com os principios aceites destenosso seculo, e com a conveniente aparencia de virtude,de sabedoria, de amor pelos homens e de desvelo pelospovos, para que, portanto, se torne possivel, senaamesmo inevitavel. ..! Nao estou disposto a fazer 0 elogiode todos esses disfarces, como se mdo isso fosselllfactos. Nao duvido de que Maquiavel nao teria escritono nosso seculo como escreveu no seu. E Cesar, elll

circunstancias novas, nao teria podido agir como fez Ill)

seu tempo. No fundo toda a modifica~ao seria no veslid(),Mas, mesmo assim sendo, ja e urn bern, Um bem, salH'r

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que aquele que no nosso seculo escrevesse comoMaquiavel seria lapidado ... Mas nao! Retiro estas palavras ...Porque quem escrever pior ainda que Maquiavel, masem favor da virtude, esse nao e lapidado ... Escrevefilosoficamente, com espirito, a francesa e, decerto, semreligiao. Escreve portanto como "urn de n6s»! E depois ...Depois renega os seus escritos!

E a licen~a com que se pode pensar, des de que talaconte~a dentro de certas conven~6es necessarias aobem-estar (0 que significa que 0 verdadeiro bem-estardeve ficar tanto mais distante)! Mas tambem nesta arvorevenenosa e libertina crescem frutos bons! Nao acreditaisq~e to~as essas coisas que sensata e insensatamente poral se dlzem com tanto descaramento contra a religiaovirao urn dia a ter urn efeito positivo? Abstraindo dasexplica~6es, das justifica~6es e das provas da religiao(que quase sempre pouco provam), nao sei ja quem foio grande homem que profetizou que <:> pr6ximo seculoseria 0 da supersti~ao porque 0 nosso se esgotou namais estupida incredulidade ... Mas seja como for (e seriamau, se s6 a supersti~ao pudesse vir substituir a incredu-lidade e se 0 drculo vicioso da nossa miseria naopudesse ser rompido), a religiao, a razao e a virtude terninfalivelmente que chegar urn dia a veneer os loucosataques dos seus adversarios! E ver-se-a entao que 0jogo espirituoso, a filosofia e a liberdade de pensamento,contra sua vontade e sem 0 saberem, foram 0 andaimenecessario a eonstru~ao deste trono. Urn dia, de subito,a nllvelll rasgar-se-a e surgira aos olhos em toda a suagl6ria 0 sol quc illlminari 0 mundo ...

All~0 illll'Ils0 aka nee, a generalidade com que tudoisso cOI"rcIlIUlldo, COllStilui scm dtivida urn desconhecidoandaime. Quanto Illais Il1cios n6s, europeus, des co-brirmos para subjugar os outToS continentes, para osenganar e pilhar, tanto mais St' aproximara 0 dia em quev6s, povos desses contincntes, podereis talvez triunfarsobre n6s! N6s lan~amos as grilhetas COIllas quais urndia nos arrastareis! As invertidas piralllidcs· das nossas

• 0 cavaleiro de Temple comparou uma cerIa forma degoverna\;iio com esta imagem.

constitui~6es politicas serao postas de pe sobre 0 solodos voss os paises! V6s connosco! Resumindo, e visivelque tudo se orienta para um grandioso fim! N6s abra~a-mos, seja de que modo for, 0 di:'imetro da terra e 0 que aseguir vier nao podera certamente estreitar este fundamen-to! Aproximamo-nos de urn novo acto do drama, aindaque 0 fa~amos, e certo, pelo caminho do apodrecimento ...!

Precisamente porque 0 nosso modo de pensar serefina, tanto no bem como no mal, e precisamenteporque assim vao ficando desgastados os nossosprindpios e impulsos mais vigorosos e mais sensiveis,sem que a massa dos homens tenha ate agora encontradofor~a ou vontade para os substituir, perguntar-se-a ondenos conduziri tudo isto. Ha muito que se dissolveram osla~os fortes, sensfveis, das antigas republicas e de outrostempos (urn triunfo do nosso tempo). E estes la~osdelicados que sac os de hoje, tudo trata de os corroer: afilosofia, a liberdade de pensamento, a opulencia e umaeduca~ao que s6 para elas prepara e que se propagacada vez mais ampla e profunda mente de individuo paraindivfduo ... A maior parte dos actuais impulsos politicosja nao pode deixar de ser condenada e desprezada pelaerudi~ao, no seu quietismo, e 0 conflito entre 0 cristianis-mo e a mundanidade e urn conjunto ainda mais antigode censuras e escrupulos mutuos ... Ora, uma vez que afraqueza nao pode conduzir senao a fraqueza, e umavez que uma atrac~ao demasiado intensa ou urn abusodo derradeiro e paciente esfor~o da nossa vitalidade naopode resultar senao no seu completo esgotamento ...Mas nao me compete a mim fazer profecias!

E muito menos profetizar "0 que possa ser, 0 quevenha a ser ou 0 que tenha que ser 0 remedio, a fontede novas forps vita is para este tao amplo palco. Ondedevera um novo espirito ir buscar toda a luz, toda adisposi~ao que e necessaria para que possamos produzircalor, existencia e felicidade geral?» Nao ha duvida deque falo de tempos muito distantes ainda!

Com coragem e alegria nos nossos cora~6es, traba-Ihemos, pois, irmaos meus, dentro desta nuvem. Porquetrabalhamos para urn grande futuro.

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E tratemos de escolher os nossos fins com quantapureza e c1aridade nos for possive!. Porque enganosa ea luz que vemos e tudo 0 que nos rodeia e crepusculo enevoa.

Quando vejo as aq:6es ou, melhor dizendo, quandopress into os silenciosos sinais das aq:6es de urn espiritodemasiado grande para envergar 0 disfarce do seu tempoe demasiado discreto e timido para suscitar gritantesaplausos, quando vejo como semeia por entre as trevassementes que, como todas as obras e todas as cria~6esde Deus, come~am por ser apenas pequenos germes,mas que, logo que nasce 0 primeiro rebento, deixamperceber pelo seu cheiro e pela sua cor que san criaturade Deus formada em segredo ... Nao ~era que tudo cons-titui 0 campo apropriado a nobre planta da humanidade,a sua forma~ao, a sua educa~ao, ao fortalecimento dasua natureza nas fibras mais carentes, as do amor peloshomens, da simpatia, da felicidade fraternal? Oh, plantassagradas, quem sera que pode passar por vos sem sentiro arrepio de pressentir urn futuro melhor e sem aben~oar,nos sacrificios silenciosos que ao longo do dia elevamosaos CellS,0 vosso semeador, seja ele grande ou pequeno,rei ou servo? Os fins meramente materiais ou politicoscaem em ruinas, como cacos Oll cadaveres ... A alma, 0

cspiri(o, 0 cOl1!clldo de toda a humanidade, essepcrmanccc! E feliz aquele a quem muito foi dado beberda fOl1!cpura da vida quc nada pode turvar!

E praticamente inevitavel quc tudo quanto 0 nossoseculo tern de mais elevado, de amplamente difundido,tenha por consequencia ambiguidades qllanto as aq:6esmelhores ou piores, ambiguidades que nao existiriamem esferas mais estreitas ou mais profundas. Veja-se 0

simples facto de quase ja ninguem saber para quefinalidade age ... Tudo e urn mar onde se movem ondas

e mares! Mas para onde? Com que for~a e estrondo! Massaberei eu onde me leva a minha pequena vaga? E naosan apenas os inimigos, os caluniadores a colocar osprimordios do mais activo e melhor dos horn ens debaixode uma luz duvidosa ... Talvez aconte<;a que mesmo aosolhos do seu mais caloroso admirador, em momentos demaior frio, ele surja envolto em nevoa, sob uma luzequivoca. Porque os raios desta circunferencia seafastaram ja tanto do seu centro! E dirigem-se todos paraonde? E quando la chegarao?

E sabido que todos os reformadores de todos ostempos foram acusados de, ao darem urn passo, deixaremsempre atras de si espa~os vazios, de levantarem a suafrente poeira e sobressaltos e de passarem por cima deinocentes. Tudo isto se aplica visivel e duplamente aosreformadores dos ultimos seculos. Lutero! Gustavo Adolfo!Pedro 0 Grande! Tera havido nos tempos modern os treshomens que mais transforma<;6es tenham feito? Trans-forma<;6es de sentido mais nobre? E sera que asconsequencias dos seus actos, sobretudo as imprevistas,representaram sempre para a posteridade urn acrescimode felicidade, destituido de contradi<;6es? Quem conhecea historia posterior nao experimentara de vez em quandoserias duvidas?

Em trinta breves anos, que nova cria~ao da Europanao conseguiu, a partir do seu pequeno territorio, levara cabo urn monarca, cujo nome se tornou 0 do nossotempo, com mais merecimento do que no seu 0 nomede Luis,

Na arte da guerra e da governa~ao, no tratamentoque deu a religiao e na organiza<;ao das leis, enquantoApolo das Musas e na sua vida privada de homemcoroado - segundo a aparencia geral, modelo dasmonarquias -, quanto de bem nao praticou! A difuS;lOdas luzes, 0 espirito filosofico e a modera<;ao, (udoamplamente promovido a partir do trono! Desmanll'lamento exemplar da estupida pompa oriental, das or~ias,

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para envolver os assuntos nas melhores roupagens, coma sua facilidade, com 0 impero das suas ideias floridas ...Sobretudo com a sorte de ter nascido no sitio cerro parapoder aproveitar 0 mundo, aproveitar os seus precursorese os seus rivais, aproveitar as oportunidades, ascircunstancias e acima de rudo as fraquezas preferidasdo seu tempo, as rentaveis fraquezas das mais belasnoivas do seu tempo, as regentes da Europa inteira ...Este grande escritor, quanto nao fez ele indubitavelmentepelo bem do seu seculo! Espalhou a luz, a chamadafilosofia da humanidade, a tolerancia, a facilidade decada um pensar por si mesmo! Deu-nos 0 brilho davirtude sob mil formas amantissimas, as mesquinhasinclina~6es humanas diluidas e ado~adas! Tudo istoenquanro escritor e, sem duvida, escriror que ocupa 0

ponto mais alto do seculo ... ! E ao mesmo tempo quantode miseravel em tudo isso, quanta frivolidade, fraquezae incerteza, quanto frio! Que ausencia de profundidadee de plano, quanro cepticismo face a virtude, a felicidadee ao meriro! Quantas coisas ridicularizou 0 seu espiritosem querer de facto ridiculariza-las? Quanros la~os temos,agradaveis, necessarios, veio a sua mao ultrajantedesmanchar sem em troca nada nos dar, a n6s que naoresidimos au Chateau de Fernay? E por que meios, porque caminhos chegou ele ao melhor que produziu? Emque maos nos entrega com toda a filosofia e rodo 0

amor do belo que acompanham 0 seu modo de pensardestituido de moral e de sentimentos humanos firmes ...?E conhecida a cabala que a sua volta se desenvolveu,contra ele e a seu favor... E sabe-se como e diferente aprega~ao de Rousseau ... Sera talvez um bem que tenhamque pre gar longe um do outro e que em varios aspectospreguem anulando-se um ao outro ... E esse muitas vezeso fim daquilo que os homens come~am! As linhas anulam--se, mas 0 ponto para onde se dirigiam permanece ...

E certo que nenhum grande espirito, por intermediodo qual 0 destino tenha operado as suas transforma~6es,po de ser medido - com tudo aquilo que pensa e quesente - pela regra vulgar que serve para julgar as almasmedianas. Existem excep~6es de especie superior e a

do luxo, que ate entao constituiam tantas vezes 0 unicointeresse dourado das cortes! Que profundos golpes portoda a parte desferidos sobre a ignorancia pregui~osa,sobre 0 fanatismo cego e sobre a supersti~ao! Queenorme promo~ao da economia e da ordem, daregularidade e da aplica~ao no trabalho, das belas-artese do chamado gosto pelo pensamento livre ...!°nossoseculo transporta consigo a sua imagem como transportao seu uniforme! E 0 seculo tomou-se ele mesmo 0

melhor discurso que em louvor do seu nome se poderafazer...! Mas se examinarmos a moeda, se a virarmos dolado contrario para observarmos 0 simples resultado dassuas cria~6es de filantropo e fil6sofo, nao tenhamosduvidas de que nos mostrara mais alguma coisa e algumacoisa de diferente! Mostrar-nos-a possivelmente que, porvia de uma lei natural da imperfei~ao do genero humano,a difusao das luzes arrasta consigo outro tanto de luxuosadebilidade do cora~ao; que a econo~ia traz consigouma pobreza que dela e sinal e consequencia; que afilosofia conduz a incredulidade miope; que a liberdadede pensamento implica sempre escravidao na ac~ao edespotismo das almas sob florid as cadeias; que 0 grandeespirito guerreiro, her6ico e conquistador, espalha con-sigo a morte, como a constirui~ao romana, ao tempo emque tudo era exercito, espalhou a miseria e a decadencia!Mostrara que consequencias, para 0 seu tempo, para 0

munclo e para a posteridade, e mesmo para reinos deconstituir,;ao C ordem interna tao diferentes das nossas,que conscqucncias n;10 podcrao deixar de advir doamor dos lWlllens, da jusli<;a, da moderac;:ao, da religiaoe do hCIll-cslar dos s(lIlditos, sc rudo isso for usadocomo lIlcio para alc;ln~'ar oulros fins ...! A balan~a vai os-cilar? °pralo suhir;i? /)cs('cr~"?Qual dell's? Que sei eu ...?

,,0 escri(or de cem am.ls"., que SCIllconresrac;:ao nemconrracli\';lo agiu como um 1110narcasohre 0 seu seculoque foi lido, aprendido, admiraclo e - 0 que e mais ~seguiclo, de Lisboa a Camechateca, de Semlia as col6niasda India ... Com a sua lingua, com os seus cem talentos

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E necessariamente muito grande 0 todo dentro doqual cada particularidade se manifesta ja como urn todo!Mas em cada particularidade 0 que encontramos e semprelima singularidade indefinida que s6 se revela quando avemos no todo de que faz parte! No todo onde aspcqllenas partlclilas ofere cern ja urn enorme sentido,Illas no qual os seclilos sao apenas silabas, as na~6es:1J1Cnasletras, ou talvez meros sinais de pontua~ao que('111 si mesmos nada significam, mas que tanto contribuem1':lra qlle se possa ver facilmente 0 senti do desse todo!( >11, individuo particular, que es tu, com as tuas inclina-~on, ;IS tuas habilidades e os teus contributos ...? E pre-1<'lldl'l:\S III que a perfei~ao absoluta se esgote em ti...?

A estreiteza do ponto que ocupo no planeta, alimita~ao do meu olhar, 0 insucesso dos meus objec~ivos,o enigma das minhas inclina~6es e dos meus deseJos, aderrota das minhas for~as que sucubem perante 0 todode urn seculo, de uma na~ao, de urn ano, de urn dia ...Tudo isso me garante que nada sou e que 0 todo tudo e!Que imensa obra esta onde se alinham tantos grupos desombras, de diferentes na~6es e de diferentes epocas,tantas figuras colossais quase sem ponto de vista, semperspectiva, tantos instrumentos cegos agindo na ilusaoda liberdade sem saberem 0 que fazem ou para quefazem, sem nada conseguirem abarcar e contudo agindocada urn com tanto empenho como se 0 seu pequenoformigueiro fosse 0 universo ...! Que imensa obra, estetodo! Na minuscula por~ao que dele vemos, quantaordena~ao, e ao mesmo tempo quanto tumulto, quantosn6s complicados, quantos motivos para 0 desenlace daac~ao ... Mas uma e outra coisa sao certeza e garantia doesplendor transbordante que caracteriza 0 conj~nto! Seriapreciso que a obra fosse miseravel e mesqum~a p~r~que a mosca que eu sou a pudesse abarcar por mtelro.Como seria pequena a sabedoria e a diversidade da obrase aquele que atravessa 0 mundo cambaleando e comtanta dificuldade de fixar uma s6 ideia, nela nao encon-trasse nenhuma coisa complicada ...! Colocado nestaminuscula por~ao que nada e e onde, contudo, seagitam mil pensamentos e mil sementes ... Colocado nointervalo de tempo que medeia entre do is sons, mas noqual talvez se produza precisamente a mistura que fazdos sons mais penosos uma doce harmonia ... Quem soueu, que assim ajuizo? Pois que me limito a atravessar 0

grande salao e a olhar, debaixo da mais escura sombra,para urn canto do quadro coberto... a que S6cratesdisse dos escritos de urn homem que, limitado comoele tinha escrito com for~as identicas as suas ... Quepocterei eu dizer do grande livro de Deus, que seestende pel os mundos e pela imensidao dos tempos?Do qual mal chego a ser uma letra! Do qual mal chego aver tres letras a minha volta ...!

maior parte das vezes tudo 0 que no mundo acontecede notavel e fruto dessas excep~6es. As linhas rectaslimitam-se a seguir sempre a direito e tudo ficaria porelas intocado se a divindade nao criasse tambem homensinvulgares, cometas que atravessam as esferas sempreiguais do movimento solar, se os nao fizesse cair e se osnao deixasse depois levantarem-se da mais profundaqueda para chegarem a alturas onde nenhum olharterreno os consegue seguir. E tambem s6 Deus pode -ou, entre n6s homens, urn parvo - colocar uma distanteconsequencia moral ou imoral de uma dada ac~ao naconta em que se avaliam os meritos e as primeirasinten~6es daquele que a praticou. Senao, quem teriamais dedos de acusa~ao virados contra si do que aqueleque praticou a primeira ac~ao, 0 criador...! Mas, irmaosmeus, procuremos nao perder 0 eixo em torno do qualtudo gira: a verdade, a consciencia de querer 0 bern, afelicidade da humanidade! Acima de tudo, neste imensomar alto em que agora erramos, debaixo de uma luznevoenta e enganosa que e talvez mais perigosa que anoite cerrada, procuremos aplicadamente encontrar asestrelas que nos possam dar pontos de direc~ao, deseguran~a e de tranquilidade, para fazermos com fideli-dade e zelo 0 nosso percurso.

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Infinitamente pequeno para 0 orgulho que tudoquer ser, saber, fazer e formar!Infinitamente grande paraa pusilanimidade que nada ousa ser! Mas, uma coisa eoutra apenas instrumentos particulares dentro do planoda incomensuravel providencia!

E se um dia nos fosse possivel atingir um ponto deonde pudessemos ao menos abarcar 0 todo da nossaespecie! Ver ate onde, por entre povos e territ6rios,conduz esta cadeia, que come~ou por se estender taolentamente, para depois envolver as nac;:6escom tantoruido de ferros e por fim as enlac;:arnum abrac;:ofirme,mas suave ... Ver onde chega esta cadeia! Porque, aosnossos olhos, a seara madura das sementes quecegamente lan~amos por entre os povos germinou taoestranhamente, floresceu de modos tao dispares, ofere-ceu-nos esperanps tao equivocas quanto aos seusfrutos... Foi isso que vimos... Mas temos que ser n6spr6prios a provar 0 sabor que por fim resultara dofermento que durante tanto tempo, pelo meio de tantaefervescencia e repugnancia nossa, levedou a massapara finalmente a conduzir a formac;:ao geral dahumanidade ... Fragmento da vida, que foste tu?

.., quanta sub nocte iacebatNostra dies!

Mas, feliz aquele que nesse dia nao tiver que searrepender do seu fragmento de vida!

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