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1036 “SANGUE LATINO, CORAÇÃO DE TERRA BRUTA”: A ETNOMUSICALIDADE NATIVISTA SUL-RIO-GRANDENSE REFLETINDO IDENTIDADES ATRAVÉS DOS FESTIVAIS. TAINÁ SEVERO VALENZUELA 1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM INTRODUÇÃO O Brasil que assistia o findar do século XIX vivia transformações profundas no seio de sua sociedade, cultura e política, com grandes mudanças na estruturação do seu Estado. A Monarquia, sem meios para sustentar seu império sem a mão-de-obra escrava e com suas ideologias fragilizadas, acaba cedendo ao processo de transformação do Estado, que se torna uma República dirigida, principalmente, pela classe média. Ao mesmo tempo, no cenário mundial, o século XX chega demarcando contendas comerciais entre potências européias, bem como a aberta rivalidade entre Alemanha e França na disputa territorial. Alianças se formam e a 1ª Guerra Mundial mostra ao fundo a face mais atroz da disputa pelo poder. Desta guerra, os Estados Unidos da América passam a mostrar a eficácia ainda não revelada de sua organização política e militar, até que vem se sobressair como a nova grande potência após a 2ª edição da Guerra Mundial, tirando da Europa sua hegemonia no domínio da sociedade ocidental. Os hábitos culturais dos Estados Unidos passam a ditar regras pelo Ocidente: o que comer, o que vestir, que música escutar, onde comprar. Tudo que fosse oriundo na nova potência se tornara sinônimo da modernidade e de progresso. O Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, mais especificamente na sua região leste – onde fica a capital Porto Alegre –, sofre transformações que visam inserir o estado no mesmo panorama em que estavam se organizando não apenas o restante do país, mas como o restante do ocidente. A doutrina positivista de Auguste Comte era a que norteava os valores políticos dos líderes regionais no início do século XX, representados principalmente pelo PRR, o Partido Republicano Rio-Grandense, que sucedera seus representantes no poder por cerca de 40 anos entre o final do século XIX e início do XX 2 , e tendo como principais ícones Júlio de Castilhos e seu seguidor, Borges Medeiros (Presidentes do RS nos anos de 1891/1893-1889 e 1898-1908/1914-1928 respectivamente). É neste início de século que Porto Alegre transforma seu espaço urbano com a 1 Historiadora e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Maria em 2010. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM. Orientador: Prof.º Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos. 2 A hegemonia do PRR sofreu breves interrupções, sendo elas ainda em 1891, quando Joca Tavares depõem Júlio de Castilhos da Presidência do Estado. Castilhos reassume o poder em 1892, auxiliado por uma aliança entre o PRR e o Exército. Castilhos abdica de seu posto também em 1892, mas retorna em 1893 eleito para o cargo. A fase em que Castilhos não é Presidente de Estado é conhecida por “Governicho”, quando diversos Presidentes se sucedem, sem sucesso, no governo do RS. Borges de Medeiros tem seu governo interrompido apenas entre 1908 e 1913, quando Carlos Barbosa fora eleito.

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“SANGUE LATINO, CORAÇÃO DE TERRA BRUTA”: A ETNOMUSICALIDADE NATIVISTA SUL-RIO-GRANDENSE REFLETINDO

IDENTIDADES ATRAVÉS DOS FESTIVAIS.

Tainá Severo valenzuela1

Mestranda do Programa de Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM

INTRODUÇÃO

O Brasil que assistia o findar do século XIX vivia transformações profundas no seio de sua sociedade, cultura e política, com grandes mudanças na estruturação do seu Estado. A Monarquia, sem meios para sustentar seu império sem a mão-de-obra escrava e com suas ideologias fragilizadas, acaba cedendo ao processo de transformação do Estado, que se torna uma República dirigida, principalmente, pela classe média.

Ao mesmo tempo, no cenário mundial, o século XX chega demarcando contendas comerciais entre potências européias, bem como a aberta rivalidade entre Alemanha e França na disputa territorial. Alianças se formam e a 1ª Guerra Mundial mostra ao fundo a face mais atroz da disputa pelo poder. Desta guerra, os Estados Unidos da América passam a mostrar a eficácia ainda não revelada de sua organização política e militar, até que vem se sobressair como a nova grande potência após a 2ª edição da Guerra Mundial, tirando da Europa sua hegemonia no domínio da sociedade ocidental.

Os hábitos culturais dos Estados Unidos passam a ditar regras pelo Ocidente: o que comer, o que vestir, que música escutar, onde comprar. Tudo que fosse oriundo na nova potência se tornara sinônimo da modernidade e de progresso. O Estado brasileiro do Rio Grande do Sul, mais especificamente na sua região leste – onde fica a capital Porto Alegre –, sofre transformações que visam inserir o estado no mesmo panorama em que estavam se organizando não apenas o restante do país, mas como o restante do ocidente.

A doutrina positivista de Auguste Comte era a que norteava os valores políticos dos líderes regionais no início do século XX, representados principalmente pelo PRR, o Partido Republicano Rio-Grandense, que sucedera seus representantes no poder por cerca de 40 anos entre o final do século XIX e início do XX2, e tendo como principais ícones Júlio de Castilhos e seu seguidor, Borges Medeiros (Presidentes do RS nos anos de 1891/1893-1889 e 1898-1908/1914-1928 respectivamente).

É neste início de século que Porto Alegre transforma seu espaço urbano com a

1 Historiadora e Licenciada em História pela Universidade Federal de Santa Maria em 2010. Mestranda do Programa de Pós-Graduação Profissionalizante em Patrimônio Cultural da UFSM. Orientador: Prof.º Dr. Júlio Ricardo Quevedo dos Santos.

2 A hegemonia do PRR sofreu breves interrupções, sendo elas ainda em 1891, quando Joca Tavares depõem Júlio de Castilhos da Presidência do Estado. Castilhos reassume o poder em 1892, auxiliado por uma aliança entre o PRR e o Exército. Castilhos abdica de seu posto também em 1892, mas retorna em 1893 eleito para o cargo. A fase em que Castilhos não é Presidente de Estado é conhecida por “Governicho”, quando diversos Presidentes se sucedem, sem sucesso, no governo do RS. Borges de Medeiros tem seu governo interrompido apenas entre 1908 e 1913, quando Carlos Barbosa fora eleito.

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industrialização nascente, com os bondes elétricos, os automóveis, o futebol, o cinema, os fraques e cartolas, ainda influenciados pela Europa. Já na década de 1940, a cultura dos EUA é a que se sobrepõe, com o jeans, o rock e refrigerantes industrializados. A cidade acelera seu desenvolvimento e passa a receber pessoas de diversas regiões do próprio Estado, que migram para a capital em busca de empregos e/ou de estudo. A questão é que o interior do Rio Grande do Sul, principalmente em direção ao oeste, muito pouco havia recebido estas influências européias ou norte-americanas do século XX. A sociedade do interior vivia uma realidade baseada na cultura rural e fortemente influenciada pela colonização espanhola empreendida no oeste da América do Sul nos séculos XVII e XVIII.

1 - A IDENTIDADE DO SUL-RIO-GRANDENSE ATRAVÉS DA PROEMINÊNCIA DO TRADICIONALISMO E DO NATIVISMO

Sobre a formação hispânica que influencia o Rio Grande do Sul, é válido observar a questão de fronteira do RS, uma fronteira dita “móvel” por ter tido seus contornos alterados diversas vezes ao longo dos séculos XVII e XVIII. Com o movimento das grandes navegações europeias no início do período moderno da Europa (final do século XV e início do XVI) e a consequente conquista de novos territórios, principalmente colonizando a região do atual continente americano, o que hoje se tem como o estado do RS fora ora propriedade de Espanha e ora propriedade de Portugal.

As Coroas dos dois Estados Nacionais citados foram as que empreenderam o processo de conquista no sul da atual América, e formalizaram a disputa das terras novas através de Tratados, que determinavam até onde iriam os domínios de cada país. Em 1494, o Tratado de Tordesilhas (assinado entre Portugal e Espanha com o aval da Igreja Católica) determinava que as terras que ficassem até 370 léguas leste da ilha de Cabo Verde seriam de Portugal e à oeste seriam de Espanha. Mas as contendas entre as duas Coroas ainda não estariam solucionadas. Portugal passa a desejar ampliar seus domínios neste “Novo Mundo” quando percebe que o oeste reservava terras em maior quantidade, com possibilidades de extração de metais preciosos e com solo e clima propícios ao desenvolvimento de diversas culturas agrícolas. As potências, ao organizarem seu processo de colonização da região, passam a protagonizar disputas que fazem, do atual Rio Grande do Sul, uma região que fora habitada por distintos povos e que viveu sob o domínio espanhol por longos anos antes do efetivo domínio português. Portugal só firmara sua posse na região, dando ao RS o contorno de fronteira política tal qual o vigente, apenas em 1801 quando recebe as terras que haviam sido dos povoados missioneiros (organizado por padres espanhóis da Companhia de Jesus junto aos Guaranis, um dos povos nativos da América Pré-Colombiana) na assinatura do Tratado de Badajós. Esta situação de fronteira móvel fora o que influenciara o RS para alocar, em seu território, populações cuja identidade não é homogênea no tocante à sua origem étnica e à sua origem espacial (urbana ou rural).

Observando então que Porto Alegre formara sua identidade baseada na influência portuguesa, admitindo culturas estrangeiras e num cenário urbano, é natural entender que a cidade causara estranhamento às pessoas que fossem naturais da interior oeste do Estado. Conforme a obra “’35 CTG’ Pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho”, de Cyro Dutra Ferreira3, em 1947, um grupo de estudantes do Colégio Júlio de Castilhos (sendo eles Paixão Côrtes, Cyro Ferreira, Cyro Costa, Antônio Siqueira, Orlando Degrazzia, Cilço Campos, Fernando Vieira e João Vieira), naturais do oeste do Estado, opta por organizar um movimento que levasse até a capital os costumes rurais do interior do RS. Este

3 FERREIRA, Cyro Dutra. “35 CTG” O pioneiro do Movimento Tradicionalista Gaúcho. Porto Alegre, RS: Editora 35 CTG, n/d.

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movimento será posteriormente conhecido por Movimento Tradicionalista Gaúcho, o MTG (institucionalizado em 1966), e estes 8 estudantes passam a ser considerados os “Pioneiros do MTG”. Este mesmo MTG, através de seus Conselhos Diretores, acabara por desviar os princípios iniciais de seus geradores e acaba realizando um trabalho de preservação cultural amparado na criação de regramentos e na limitação e regularização das manifestações folclóricas.

Estes desvios aconteceram ainda nas concepções ideológicas do Movimento. O pensador que melhor definiu os ideais do ainda nascente Movimento Tradicionalista, fora João Carlos Barbosa Lessa, que apresentara, em 1954, a tese “O sentido e o valor do Tradicionalismo”, onde sistematizara o entendimento deste tradicionalismo através de sua ideologia e das dos demais considerados pioneiros deste movimento, falando sobre o sentido do tradicionalismo como uma

EXPERIÊNCIA do povo rio-grandense, no sentido de auxiliar as forças que pugnam pelo melhor funcionamento da engrenagem da sociedade. Como toda experiência social, não proporciona efeitos imediatamente perceptíveis. O transcurso do tempo é que virá dizer do acerto ou não desta campanha cultural. De qualquer forma, as gerações do futuro é que poderão indicar, com intensidade, os efeitos desta nossa - por enquanto - pálida experiência. E ao dizermos isso, estamos acentuando o erro daqueles que acreditam ser o Tradicionalismo uma tentativa estéril de “retorno ao passado”. A realidade é justamente o oposto: o Tradicionalismo constrói para o futuro. Feitas estas considerações preliminares, podemos tentar um conceito do movimento tradicionalista. E então diremos: “Tradicionalismo é o movimento popular que visa auxiliar o Estado na consecução do bem coletivo, através de ações que o povo pratica (mesmo que não se aperceba de tal finalidade) com o fim de reforçar o núcleo de sua cultura: graças ao que a sociedade adquire maior tranqüilidade na vida comum”.4

Apesar da ideologia e da origem destes Pioneiros e de seu principal pensador, a identidade do “gaúcho” que passa a ser difundida pelo MTG e alimentada pela cultura orientada por ele, é baseada no entendimento da origem lusitana do RS, entendimento este organizado e difundido, inicialmente, através do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que, fundado em 1838, visava compor, através da história e da geografia, um figura brasileira que se comovesse com menores resistências ao nacionalismo, ainda pouco influente na sociedade brasileira. Sobre o IHGB e suas tentativas de elaborar uma imagem nacional, observa-se o texto de Manoel Luís Salgado Guimarães (1988), “Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional”, na seguinte passagem:

[...] é no bojo do processo de consolidação do Estado Nacional que se viabiliza um projeto de pensar a história brasileira. A criação, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) vem apontar em direção à materialização deste empreendimento, que mantém profundas relações com a proposta ideológica em curso. Uma vez implantado o Estado Nacional, impunha-se como tarefa o delineamento de um perfil para a “Nação brasileira”, capaz de lhe garantir uma identidade própria no conjunto amplo das “Nações”, de acordo com os novos princípios organizadores da vida social do século XIX. (p. 6).

Uma situação de dificuldade para o IHGB foi incluir neste cenário nacional os espaços de fronteira, pois, como no Rio Grande do Sul, negar que parte da sua formação tem influência espanhola e não apenas portuguesa é desconhecer a realidade do Estado, principalmente na região Oeste. Sobre como foi tratada esta questão pelo IHGB, vê-se que:

4 Disponível em http://www.mtg.org.br/valor.html. Acesso em 4 de outubro de 2011.

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Se, a princípio, todas as regiões do país são definidas como igualmente importante, o material publicado revela uma clara orientação em direção às regiões de fronteira, devido à necessidade de integração dessas mesmas regiões ao poder do Estado Nacional, sediado no Rio de Janeiro (GUIMARÃES, 1988, p. 23).

Tem-se então, no IHGB, o difusor da historiografia de cunho tradicional trabalhada no Brasil e que fora utilizada pelo MTG. Mas voltar-se ao Rio Grande do Sul leva ainda à observação do Instituto Histórico e Geográfico do RS, que manteve a mesma corrente em seu surgimento, embasado ainda na exaltação de figuras particulares na busca de uma gênese gloriosa e, principalmente, portuguesa, para a população sul brasileira. Com o findar do século XIX e início do XX, ambos recebem como propulsoras as idéias então difundidas de Auguste Comte, trabalhando a história de forma linear dentro de suas concepções intitulada Positivista. Junto a estes está então o Movimento Tradicionalista Gaúcho, porta-voz das concepções de história vigentes do período, protegido, para sua validade, na idéia de gênese gloriosa ao povo sul-rio-grandense.

O movimento nativista, que ganha força e representatividade a partir da década de 1970, eclode justamente por expressar o entendimento que grande parcela da população sul-rio-grandense tinha de si mesma, contrariando os princípios ditados pelo MTG e o entendimento difundido pelos Institutos Históricos, defendendo a formação multi-étnica regional, admitindo uma cultura popular que pudesse ser mais ”flexível”, sem regramentos precisos (desde que tivesse o cuidado com os elementos que caracterizassem os costumes regionais), não aceitando o “engessamento folclórico” proposto pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho e sem institucionalizar o Nativismo, organizando suas manifestações através da arte, principalmente a música5.

2 - NOÇÕES DE FRONTEIRA E IDENTIDADE NO CASO DA TERTÚLIA MUSICAL NATIVISTA DE SANTA MARIA.

O nativismo, movimento que pode ocorrer em qualquer região do mundo, é relativo à expressar as afinidades e sentimentos de estima do indivíduo com o local de onde ele é nato. É um sentimento que existe no RS desde antes do surgimento dos festivais de música nativista, mas estes festivais foram a ponte para que se passasse a expressar este sentimento de forma mais saliente e com grande incentivo e aceitação popular.

O primeiro festival de música nativista nasce em 1971 na cidade de Uruguaiana, justamente em uma cidade da região da fronteira oeste do RS. A Califórnia da Canção Nativa traz à tona as rivalidades entre os nativistas e os tradicionalistas. Desde já, é válida a observação de que não necessariamente, os indivíduos envolvidos nestes debates posicionavam-se precisamente contra uma idéia e a favor de outra. Muitos entendiam mesclar ambas as ideologias e acreditavam que os dois movimentos poderiam se somar ao invés de rivalizarem.

Estas ideologias são relacionadas às noções de identidade, sobre as quais se observa a obra de Stuart Hall “A identidade cultural na pós-modernidade” (2006), onde Hall apresenta três concepções distintas de identidade, sendo elas através do Sujeito do Iluminismo (indivíduo centrado no seu próprio “eu”, focado na razão e ação); o Sujeito Sociológico (que aceita que seu “eu” não é auto-suficiente, tendo uma forte interação com a sociedade); e o Sujeito Pós-Moderno (sem identidade fixa, moldado a partir do ambiente cultural que o rodeia,

5 Nesse sentido, este artigo procura apresentar composições que denotam o entendimento de origem hispânica, pois observarmos que algumas composições nativistas também falam sobre o entendimento de origem lusitana, que não é o objeto de estudo deste trabalho.

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permitindo-se não manter-se num mesmo ambiente ao longo de sua existência). Quanto aos nativistas e tradicionalistas, é válido percebê-los dentro das concepções do

Sujeito Sociológico, pois os responsáveis pela produção cultural (seja ela a música, danças, literatura, etc., regradas ou não) têm a percepção da troca no momento em que produzem algo para ser dividido com um determinado público. Cabe se observar que estes grupos não se encaixam no Sujeito Pós-Moderno, pois eles se mantêm fixos às raízes de onde entendem serem natos e a sua produção é voltada especificamente à esta origem que, independente de qual seja, precisa da aceitação dos receptores para sua difusão. É o que diz Maria Izilda Mattos sobre a situação específica da difusão musical:

Se, por um lado, o compositor captava, reproduzia e explorava representações que circulavam no cotidiano, essencialmente elementos de uma experiência social vivida; por outro, seu público assumia e resistia a certas idéias, sentimentos e ressentimentos expressos pelo compositor [...], estabelecendo uma troca, uma cumplicidade, uma certa sintonia melódica entre público e autor. (MATOS, 2000, P. 80)

Para este trabalho, veremos como a Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria denotou a necessidade de expressão de gênese por parte de alguns nativistas que tentavam explicitar seus conceitos. Esta análise foi realizada através das letras de algumas composições que foram selecionadas para compor o festival em suas 6 primeiras edições (1980 -1985).

Quanto ao uso da música como fonte e objeto do estudo em história, temos Marcos Napolitano em “Fontes audiovisuais: a história depois do papel” (2005), em que o autor interliga as diversas possibilidades de fontes e as formas de utilizá-las, problematizando-as. Demonstra ter havido um atraso por parte dos historiadores em usar a música como objeto de pesquisa, já que pesquisadores de outras áreas já se valiam da análise musical para seus estudos. Este uso da música como objeto histórico é uma corrente amparada diretamente pelos estudos da história cultural6. Usar estas fontes como objeto de estudo em história faz com que o pesquisador assuma a condição de não buscar apresentar grandes verdades, mas sim complexificar as relações sociais que, neste caso, foram difundidas através das músicas de festivais, com a Tertúlia. Sandra Jatahy Pesavento enfatiza:

A cultura é uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica. [...] A realidade tornou-se mais complexa. [...]. Não mais a posse dos documentos ou busca de verdades definitivas. Não mais uma era de certezas normativas, de leis e modelos a regerem o social. Uma era da dúvida, talvez, de suspeita, por certo, no qual tudo é posto em interrogação, pondo em causa a coerência do mundo. (2003, p. 15-16)

Curioso observarmos, como a história da Tertúlia Musical Nativista explicita bem, que os tradicionalistas tentam se inserir no nativismo de forma a pregar, subliminarmente, que os princípios de ambos movimentos, na realidade, eram os mesmos. Os princípios do MTG, expressos na “Carta de Princípios” (elaborada por Glaucus Saraiva em 1961 e que hoje é cláusula pétrea do MTG através da Coletânea da Legislação Tradicionalista), são os mesmos princípios que os nativistas expressam através da música, porém com concepções diferentes no tocante à sua origem e suas compreensões da história. Ao mesmo tempo, o nativismo também oferece espaço às concepções que divergem da suas idéias, sendo que a música oferece espaço para a manifestação das mais diversas identidades (cada compositor canta sua gênese conforme ele se identifica com ela, sejam as figuras Farroupilhas, os “heróis anônimos” do RS – muitas vezes também do Movimento Farroupilha –, ainda os que se

6 Autores como José Geraldo Vinci de Moraes, Maria Izilda Mattos, Theodor Adorno, Sandra Jatahy Pesavento e Marcos Napolitano são alguns dos que abordam a teoria do uso da música como fonte e objeto de história, cujo estudo teórico mais detalhado deve ficar para outra oportunidade.

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identificam com o imigrante, o nativo, o guarani-missioneiro, com o gaucho platino, com o gaúcho lusitano, etc.).

O grande paradoxo deste estudo foi a observação de que, os nativistas, mesmo com idéias, em seu discurso, opostas às pregadas pelo MTG, precisaram do espaço adquirido por ele em termos de valorização do que fosse regional, para conquistar espaço para seus festivais. Quando os festivais surgem, já existe na população sul rio-grandense, o desejo de cantar a si mesma e sua história, independentemente de qual fosse a concepção de identidade assumida, e esse desejo e esta aceitação fora alimentada pelo movimento tradicionalista desde 19477.

Este paradoxo se apresenta, por exemplo, no livreto da 1ª Tertúlia Musical Nativista, onde há um texto sob responsabilidade da ATEM – uma entidade tradicionalista – e assinado por Antônio Carlos Machado, que diz o seguinte acerca dos objetivos da Tertúlia:

[...] a Estância do Minuano, entidade maior da cultura nativa em Santa Maria, numa promoção de envergadura sem par, fará realizar, durante a Semana de Santa Maria, paralelamente ao Rodeio Crioulo, uma Tertúlia Musica, que será o primeiro grande passo para colocar a cidade entre os grandes centros de estudos e pesquisas das tradições do Rio Grande, para que se busque nossas verdadeiras origens culturais e se preserve das agressões vazias e sem sentido que se vêm praticando contra ela, em nome de uma falsa idéia de tradição gaúcha. (1980, p.7, grifo nosso)

Estas músicas vêm então refletir diferentes identidades rio-grandenses, que são fundamentadas no entendimento de fronteira com que cada indivíduo se identifica e as formas como se confrontaram e tentaram se difundir. Cabe observarmos que a fundamentação da identidade não necessariamente nasce de uma elaboração racional. Ela muitas vezes é subjetiva e se justifica através de sentimentos que sustentam o sujeito em seu sentimento nativista. Conforme José Geraldo Vinci de Moraes, “[...] a música, além do seu estado de imaterialidade, atinge os sentidos do receptor, estando, portanto, fundamentalmente no universo da sensibilidade” (2000, p. 211).

Ainda observando esta subjetividade na escolha de uma identidade8, são válidas as observações acerca do imaginário e da representação que circunda a figura do rio-grandense. Sandra Jatahy Pesavento (1993), em “A invenção da Sociedade Gaúcha”, trabalha esta questão demonstrando inicialmente que o imaginário se constrói entre a realidade e representações atribuídas à ela. Ou seja, este imaginário alimenta a questão da identidade, onde, ligada sempre às noções de nação e/ou de região, é elaborada de forma onde não necessariamente tenha uma ligação direta com um evento real, mas também de anseios e utopias, e estes, por sua vez, fazem parte desta realidade.

2.1 - A Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria

A Gare da Estação de Santa Maria festejou, em novembro de 2011, a edição de número

7 Esta passagem não se refere ao Movimento Tradicionalista Gaúcho como instituição, até mesmo por este ter sido institucionalizado apenas na década de 1960, mas sim àqueles que se assumiram na condição de serem tradicionalistas e que organizaram um movimento em prol da divulgação desta adoção. Fala-se aqui de um movimento tradicionalista tal qual se fala de um movimento nativista.

8 Terry Eagleton (2005) em “A idéia de Cultura”, diz que “essa preferência por uma identidade cultural em vez de outra é arracional, no sentido de que optar por ser parte de uma democracia no lugar de uma ditadura não é. [...] Mas o fato de que uma escolha de identidade cultural é arracional não é um argumento contra ela. [...] De qualquer modo, nossas fidelidades culturais, seja àqueles de nosso próprio grupo ou a outros, não são necessariamente irracionais pelo fato de serem a-racionais.” (p. 89-90).

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XIX da Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria. É a 19ª edição de um Festival que não nascera há apenas 19 anos atrás. A história da Tertúlia percorre os meados da década de 80, sendo o 2º festival de música nativista surgido no RS. A 1ª Tertúlia Musical de Santa Maria aconteceu em março de 1980, na Associação Tradicionalista Estância do Minuano (ATEM), após ter sido idealizada por José Figueiredo Vasseur (mais conhecido como “Xirú Vasseur”), apoiado por Amaury Dalla Porta, patrão da Estância do Minuano da época. O festival nasce do desejo de Vasseur que, acompanhando como radialista da Rádio Universidade as edições da Califórnia da Canção de Uruguaiana desde seu surgimento em 1971, acreditava ser possível um evento deste porte em Santa Maria. Os demais envolvidos com a produção musical da década de 1970, viam em Santa Maria uma região chave para a criação de um novo festival nativista, por ser no centro do Estado e de fácil acesso para músicos de diversas localidades.

Vasseur elaborou o projeto da Tertúlia e passou às mãos de Dalla Porta, quando optaram por realizar o festival junto ao Rodeio Campeiro já tradicional da entidade. O nome “Tertúlia” fora escolhido também por Vasseur, o que gerou muita polêmica, por ser um palavra “castelhana”. Em entrevista realizada com Vasseur, ele conta da dificuldade de explicar que a cultura hispânica também era parte da cultura gaúcha, por isso o termo deveria ser mais bem quisto coletivamente. Isso demonstra que, se músicos e compositores conseguiam alimentar com certa sobriedade a idéia desta origem hispânica, isto não quer dizer que estas idéias fossem comuns à sociedade em geral, nem mesmo entre aqueles que vieram se tornar organizadores do evento. Se Vasseur era um dos que tinham clareza quanto sua origem platina, muitos tiveram de ser convencidos por ele desta situação.

No livreto da 4ª edição da Tertúlia, em 1983, consta um texto de Bicca Larré explicando o termo e os motivos que fazem com que ele se encaixe perfeitamente nos objetivos do festival, dizendo que “nos séculos XVII e XVIII ‘tertúlia’ na Espanha, significou mais restritamente uma reunião de pessoas que se reuniam para discorrer sobre matéria literária, ou para simples conversa amigável ou passatempo honesto e proveitoso”. Encerra seu texto dizendo que “não há palavra que diga tudo isso do que essa que o vocabulário riograndense foi tomar de empréstimo à cultura hispânica que, de resto, tanto influenciou as nossas tradições gaúchas”. Assim, o próprio nome escolhido por Vasseur para o festival deixa em voga o desejo de relacionar a identidade Sul Rio-Grandense com a formação espanhola.

A primeira edição acontece com o objetivo de encontrar até mesmo um hino para a Estância do Minuano, entidade que aceitou a proposta da realização do evento. Assim, todas as composições concorrentes deveriam apresentar músicas com temáticas relativas à Minuano, fosse o vento Minuano, o índio Minuano ou a Estância do Minuano. O sucesso desta primeira edição pode ser dito em seus números, pois mais de 100 composições foram inscritas para o festival. Estas dimensões fizeram com que a 2ª edição em 1981 expandisse o festival, que adquiria porte de um evento que podia acontecer isoladamente (já que fora criado para “anexar-se” à festa campeira da entidade). Josseny Nunes, artista plástico, fora chamado para trabalhar aspectos teatrais na 3ª Tertúlia, de forma que envolvesse o público ainda mais com as composições que seriam apresentadas. Foi aí que o costume de haver uma payada antes que a composição subisse ao palco nasceu. Era uma forma de envolver o público com a temática da música e, até mesmo, explicar o que ela viria a dizer, caso o tema não fosse confortavelmente conhecido pelo público.

A divisão do Festival da Festa Campeira da ATEM acontecera na 3ª edição, em 1982, acontecendo em maio e não mais no mês de março. Durante o mês do evento, era montado um escritório na Praça Saldanha Marinho, no centro de Santa Maria, com informações e materiais exclusivos da Tertúlia. Em palavras de Dinara Paixão9, “Santa Maria respirava a Tertúlia Musical Nativista todo mês de Maio”! Neste escritório, se reuniam músicos, poetas,

9 Dinara fora radialista de cobertura dos eventos, vindo a se tornar membro da comissão organizadora na 8ª edição.

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organizadores e admiradores do festival, para saberem de todas as novidades sobre o evento que estaria por acontecer.

Conforme relatado por Paixão, nestes anos iniciais, os debates sobre Nativismo versus Tradicionalismo eram ferrenhos. O fato de que todo tradicionalista é, essencialmente, um nativista, não fazia sentido se dito ao inverso. Os nativistas, em grande número, não se sentiam tradicionalistas. Rejeitavam a idéia de possíveis regramentos e limitações em sua arte, mesmo que estas dissessem ter o intuito de zelar pelos nossos costumes de forma que não perdessem a legitimidade. Os debates anuais foram alterando alguns panoramas, até que a 7ª edição do Festival traz em seu livreto, a Carta de Princípios do MTG logo em sua 2ª página. Aí já reside uma das formas como o MTG estava tentando ligar seus princípios aos princípios dos nativistas, conforme dito anteriormente.

As ligações passaram a ser constantes, mesmo que não fossem aceitas por ambos os grupos integralmente. Dinara Paixão é umas das porta-vozes que fizera frente à uma ideologia que aceitava as manifestações nativistas em todo o seu entendimento e, ao mesmo tempo, era militante do MTG. Porém, contrariava as determinações da grande maioria dos representantes e diretores do MTG, e pregava que o Movimento era quem deveria se abrir às idéias tão bem estruturadas e embasadas dos nativistas para que, finalmente, recebesse a legitimidade que deveria ter e fizesse jus às propostas de seus pioneiros idealizadores. Esta corrente ainda é viva entre diversos militantes do tradicionalismo que ainda aguardam alterações nas diretrizes do MTG, objetivando que este continue a ser um porta-voz de manifestações culturais do gaúcho rio-grandense, porém com uma maior abertura em seu entendimento de história, cultura e folclore.

A 8ª edição da Tertúlia teve algumas características especiais. Com o passar dos anos, o festival acabara se tornando elitizado. Para cobrir os custos sem recursos que hoje existem, como a LIC, por exemplo, e arcar com as despesas de som, shows, premiação, ajuda de custo, gravação de disco, etc., era necessário que o ingresso para participar da Tertúlia fosse muito caro. A forma encontrada pela organização para que o evento adquirisse um caráter popular (popular assim como seu principal produto: a música) fora organizar, para a 8ª Tertúlia, 3 palcos: um palco no antigo cinema da cidade, onde ficariam os avaliadores (Amaury Dalla Porta, Edson Otto, Rose Marie Reis Garcia, Hugo Ramirez e Luiz Carlos Barbosa Lessa) e onde seria a gravação do disco, outro palco no Centro Desportivo Municipal, o “Farrezão”, com preços mais acessíveis e um 3º palco na Estância do Minuano, para todos os que desejassem acampar e acompanhar o festival na entidade.

Para tanto, os músicos assinaram um termo de compromisso de se apresentarem nos 3 palcos, e só recebiam a ajuda de custo após as 3 apresentações. Ao término da 1ª apresentação, em um dos palcos, uma Komb da organização do festival os aguardava para levá-los ao outro palco. Os músicos voltavam para Komb para realizarem a 3ª apresentação. A coesão da organização fora tanta que o evento começara e terminara ao mesmo tempo nos 3 palcos. Nenhuma outra edição conseguira repetir o formato da Tertúlia de 1987.

As dificuldades na realização da Tertúlia começaram a aparecer lentamente. No ano de 1995 não fora possível realizar o festival, que chegaria em sua 15ª edição. Um ano depois o festival foi retomado, e segundo Zoé Dalmora, Presidente da XV Tertúlia10, mesmo que o Festival já tivesse se realizado com sucesso em diversos locais da cidade (a 14ª fora no Cine Independência), foi na 15ª edição que se decidiu por realizá-lo novamente na Estância do Minuano. Não apenas pela conhecida beleza do local, mas também por sua representatividade no tocante à Tertúlia. Ali era nascera e ali deveria viver, em um “lonão” montado na própria Estância para abrigar o Festival que gerara.

Mas novas dificuldades apareceram. Muito em função dos gastos obtidos com os shows

10 Ver vídeo institucional elaborado na 18ª edição da Tertúlia. Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=AyQlTAX0a6U

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nacionais e internacionais que eram contratados. A Tertúlia parou novamente nos anos de 1996 e 1997. Em 1998 e 1999, ainda aconteceram as 16ª e 17ª edições, respectivamente. Porém, devido a soma dos problemas gerados nas más gestões financeiras, o festival fora finalmente paralisado para conseguir ser retomado apenas no ano de 2010. A 18ª edição selou então o retorno da Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria. Vinte composições subiram ao palco na Gare da Estação nos dias 12 e 13 de novembro, até que “Escuta o Rio” se tornou a grande vencedora no dia 14, com letra de Vinícius Brum e música de Tuny Brum. Agora está sendo promovida pela Prefeitura Municipal, em acordo firmado com a Estância do Minuano que cedera à esta o festival, conforme nos contou o senhor Lauro Bittencourt11, atual Patrão da ATEM. Assim, o destino da Tertúlia ainda é incerto. Depende agora da sucessão na Administração Municipal que tenha interesse em promover a Tertúlia e que também tenha o aval da ATEM para promovê-la.

Este breve histórico da Tertúlia Musical Nativista é o que dá embasamento para a breve análise que será traçada a seguir sobre algumas composições das 6 primeiras edições (quando as rivalidades entre nativistas e tradicionalistas foram explicitadas12).

2.2 - As noções de fronteira e identidade do gaúcho sul-rio-grandense através de algumas composições da Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria em suas 6

primeiras edições (de 1980 a 1985).

No item 2 deste trabalho, observaremos então, de forma breve, que as noções de identidade do gaúcho sul Rio-Grandense foram explicitadas em trechos de letras de composições que foram selecionadas para compor a Tertúlia em suas 6 primeiras edições. É válido ainda pontuarmos que a poesia destas composições, ou seja, as letras, compostas junto à subjetividade e ao sentimentalismo do seu autor, são diretamente relacionadas com a memória. Percebemos aqui que memória e sentimento convergem juntos para a elaboração musical, e conforme diz Jacy Seixas, “lembramos não apenas para conhecer e reconhecer, mas também para agir e criar” [(2003, p. 165.) Grifo itálico do autor. Grifo negrito nosso]. Vamos então aos trechos das composições observadas:

1ª edição, 1980 – Música fonte: “Mensagem ao Vento”, letra e música de Ataíde •Sarturi (ver anexo 1). Trecho em destaque:

“O vento bate com raivaFortemente nas taquarasrevivendo os tapejarase os atabaques guerreirosque nos pagos missioneirofizeram a história bravacantando e jogando a tavanos folguedos domingueiros”.

Mesmo com a limitação da temática na 1ª edição do festival, Ataíde Sarturi trabalhou, através do vento minuano, parte da formação hispânica do RS, ao citar os povos missioneiros em “Mensagem ao Vento” e assumi-los como componentes da história estadual. Pode parecer

11 Entrevista concedida para a autora do presente artigo em 27 de novembro de 2011, na Associação Tradicionalista Estância do Minuano.

12 Percebe-se que, apesar de os grupos manterem uma aceitação um tanto quanto maior um com o outro, as rivalidades ainda fazem parte do contexto atual.

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a alguns que seja algo muito sutil para ser considerada uma alusão à formação hispânica do RS, porém, ainda há pouco tempo (ainda neste século...), se assistia “historiadores” afirmando que a história do Rio Grande do Sul iniciava apenas em 1737, com a fundação do Forte Jesus-Maria-José e da cidade de Rio Grande, tudo organizado pelos portugueses. Sendo assim, trazer as Missões para integrar a história regional demonstra um entendimento diferenciado acerca da história e da gênese da população sul-rio-grandense, pois aceita, além da figura do espanhol, a figura do indígena. O autor articula características culturais de distintas origens, permitindo ao RS viver e exaltar sua formação multi-étnica e, consequentemente, multicultural (tava, atabaque, palavras como folguedos, tapejaras...).

Aproxima ainda o RS e a região platina com peculiaridades culturais semelhantes, representadas principalmente pelas características edafoclimáticas. De forma poética e musical, se pode observar que em 1980, havia pessoas que trabalhavam com questões culturais no RS, porém com um diálogo muito diferente com sua própria gênese.

2ª edição, 1981 – Música fonte: “Canto Alegretense”, letra de Antônio Augusto •“Nico” Fagundes e música de Bagre Fagundes (ver anexo 2). Trecho em destaque:

“Não me perguntes onde fica o Alegretesegue o rumo do teu próprio coraçãocruzarás pela estrada algum ginetee ouvirás toque de gaita e de violãoPra quem chega de Rosário ao fim da tardeou quem vem de Uruguaiana de manhãtem o sol como uma brasa que ainda ardemergulhado no rio IbirapuitanOuve o canto gauchesco e brasileirodesta terra que eu amei desde guri...”.

Antônio Augusto Fagundes diz, em Canto Alegretense, que “os corações” convergem naturalmente à região oeste do Rio Grande do Sul, e que nesta região existem gaitas e violões. Admitir ainda que a região sofre influência musical do violão é registrar o alcance da cultura hispânica no Estado, já que este é um instrumento originário da guitarra espanhola. A composição ainda cita outras cidades da mesma região, Rosário do Sul e Uruguaiana, fazendo entender que a identificação cultural de todas é a mesma, sendo estas cidades da região do pampa cuja influência da colonização espanhola é bastante evidente, desde o biótipo da população até o linguajar, com muita participação do popular “portunhol”. As características o local cantado, como o Rio Ibirapuitan, além de posicionar a composição geograficamente, também faz sua alusão aos povos autóctones, já que a toponímia do rio em questão é do tronco linguístico tupi-guarani.

O autor também diz que este canto é gauchesco e também é brasileiro, o que nos permite interpretar que o autor se sente integrado ao restante do país, mas ao ser “gauchesco e brasileiro”, se admite também que há a influência platina e ela deve ser entendida como componente da cultura popular brasileira através do estado do Rio Grande do Sul.

3ª edição, 1982 – Música fonte: “Penas”, letra de Knelmo Amado Alves e música de •Francisco Alves. Trecho em destaque:

“Uma estampa da pampa vai desaparecernão tem liberdade e não pode correrA máquina e o homem cortaram distânciase léguas de estância não existem mais

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Inhandu tuas penas, são penas que chegamnas tardes amenas as lembranças de um piá(...)O avestruz do meu pago vai desparecerSão penas que trago e nada posso fazera falta de espaço encurtou o seu passoe sem liberdade não pode viver.”

Knelmo Alves elaborou a composição “Penas” para alertar quanto aos riscos de extinção da fauna da pampa em função do uso das penas de animais (neste caso o Inhandú) para fins vulgares. O autor utiliza na composição, as palavras “pampa” ou “pago” para se referir ao habitat do animal, sem delimitar a extensão desta pampa/deste pago. Entende-se assim que o autor relaciona, através da fauna, as semelhanças da região platina.

4ª edição, 1983 – Música fonte: “Martin Fierro”, letra de Jayme Caetano Braun e •música de Talo Pereyra (ver anexo 3). Trecho em destaque:

“As entidades divinascriando homens libertosnos horizontes abertosnas pátrias continentinassem ter duas Argentinasdois Rio Grandessentindo no além dos Andeso drama dos Martins Fierrosuniram pampas e cerrosnas ‘Cordilheiras de Hernandez’”.

Este é o caso de composição que se explica por si. Braun, já no título de sua obra, traz a vivência platina na cultura do RS, pois Martin Fierro é uma obra chave que fala do gaucho acima das limitações de fronteira. É o que Braun explicita em sua obra, chamando de iguais (de “Martins Fierros”) os homens de Argentina, Uruguai e Rio Grande do Sul. Martin Fierro, originalmente, é um poema do argentino José Hernández publicado em 1872. Narra o gaúcho com um caráter heroico e sacrificado, escrito com a linguagem coloquial da Argentina à época. Na composição de Jayme Caetano Braun, ele apresenta o Sul-Rio-Grandense brasileiro como um Martin Fierro, uma figura tal qual aquela que vive do outro lado da fronteira. Entende que fazem parte de uma mesma pátria – seu continente – que, por sua vez, é a “pampa” e seus cerros, que não admitem fronteiras nem outros tipos de divisão. É um espaço que engloba, que abarca, que une, que abriga a iguais.

Como nosso objetivo neste trabalho é demonstrar trechos das composições com as revelações acerca do entendimento dos compositores nativistas quanto à ideia de uma gênese platina (vistos eles como propagadores de uma ideia bastante forte entre a população em geral), deixamos ao leitor o interesse em observar a obra em sua íntegra, junto aos anexos deste trabalho.

5ª edição, 1984 – Música fonte: “Orelhano”, letra e música de Mário Eleú Silva (ver •anexo 4). Trecho em destaque:

“Orelhano de marca e sinalfulano de talde charlas campeiras

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mesclando fronteirasretrata na estamparigores do pampa e serenas maneirasOrelhanobrasileiro ou argentinocastelhano, campesinogaúcho de nascimentosão tranças de um mesmo tentosustentando um idealsem sentir a marca quentenem o peso do buçalOrelhanoao paisano de tua estampanão se pede passaportenestes caminhos do pampa.”

Eleú fez de “Orelhano” um clássico da música Nativista justamente na voz do uruguaio Dante Ramon Ledesma. A escolha do intérprete que imortalizou a composição já denota a existência de um diálogo aberto com a região do Prata, sendo que um artista uruguaio pôde cantar, com maestria, um tema que fala do Rio Grande do Sul. Evidentemente que este Rio Grande do Sul trabalhado por Eleú é um local de mescla e hibridismo cultural. É uma composição que fala em fronteiras mescladas devido à inexistência de uma diferenciação entre os habitantes da região do Prata determinada pela fronteira política que os divide (as “tranças de um mesmo tento”). Para o compositor, qualquer tentativa de diferenciar ou separar o Rio-Grandense dos demais que vivem tão próximos à sua fronteira, é uma tentativa vão, pois as relações são evidentes e perpassam muitos anos de história e de entendimento de um com o outro.

Acreditamos também que o ideal que o autor enfatiza que deve ser sustentado, esteja ligado à ideia de autonomia da região do Prata, realidade esta que sofre influência direta da demarcação dos limites da Fronteira, contextualizada com a atuação da Monarquia no Brasil. A influência platina no Rio Grande de São Pedro e a força existente nos chefes da fronteira, alicerçadas em suas milícias, é reflexo direto da força do poder privado na região (GUAZELLI, 2004). Eleú avisa ao “Orelhano” que, nos caminhos do pampa, não se pede passaporte à quem lhe for igual (“paisano de tua estampa”), enfatizando a necessidade de um trânsito livre entre as fronteiras platinas (“caminhos do pampa”). Mário Eleú também fala sobre uma aproximação dos anônimos como “soldados”, independentemente da região que habitem, que lutariam por ideais comuns, dadas as suas influências platinas semelhantes.

6ª edição, 1985 – Música fonte: “Pampa do amanhã”, letra e música de Dante •Ramon Ledesma (ver anexo 5). Trecho em destaque:

“Irmanando céu e terra,a pampa aqui nos gerousem marcar-nos com bandeirascom sotaque, ou religiãoentrelaçando querênciaspor rios de tradiçãodeu luz a uma raça,hoje uma grande nação.(...)Ninguém vai nos separarsob a ilusão das fronteirassó temos uma bandeira

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e o mesmo céu pra cantar.Ninguém poderá impedirque formemos uma pátria,se a pampa irmana estas terrase o gaúcho é uma raça.”

O mesmo cantor uruguaio que firmava uma carreira de sucesso cantando motivos platinos, volta à 6ª Tertúlia com uma composição de sua autoria. A letra da música já fala por si, dos ideais do compositor em unir a região platina (independentemente de fronteiras e bandeiras) conforme seus costumes e de alimentar a idéia de aceitação de serem todos herdeiros de ancestrais comuns.

Desta forma, estas composições revelam um sentimento que permeara grande parcela da população Rio-Grandense no início da década de 1980 acerca de seus entendimentos quanto à própria identidade, esta relacionada com a situação de fronteira e expressa por compositores nativistas através, por exemplo, da Tertúlia Musical Nativista de Santa Maria, conforme o apresentado neste estudo. A licença poética do qual o autor pode se valer não traz, no caso desta composição, nenhum tipo de subjetividade quanto àquilo que se deseja ser transmitido. Ledesma deixa claro e explícito de que há uma tentativa constante de dividir o Rio-Grandense do platino, e que tal concepção é, no mínimo, uma tolice. As fronteiras são consideradas uma “ilusão”, e ele demonstra que esta ilusão é incapaz de fazer com que o “gaúcho” se separe dos seus iguais. São todos filhos de uma mesma pampa, na visão de Ledesma.

Ainda, o fato de o autor de elaborado esta composição para o festival de 1985, demonstra que o debate ainda estava em aberto, que ainda se insistia na ideia de dividir culturalmente (já que politicamente já o estava) os habitantes desta pampa que, por sua vez, são tão semelhantes.

CONCLUSÃO

Este trabalho quis demonstrar que as noções de fronteira e de identidade do gaúcho Sul Rio-Grandense foram explicitadas através de músicas, principalmente com o surgimento dos Festivais de Música Nativista no RS. Neste artigo demonstrou-se que os movimentos tradicionalista e nativista rivalizaram (e ainda rivalizam) em muito devido à concepção de gênese que cada um destes grupos tem de si e do outro, utilizando como exemplo a Tertúlia Musical Nativista da cidade de Santa Maria, o 2º festival do gênero do RS. Desejou-se também comprovar as potencialidades da música como fonte e objeto de história, por carregar concepções de história, memória e identidade de uma população, que ou compõem músicas ou que as aceitam e expandem sua difusão. Muitos destes debates estão explicitados nos livretos dos festivais, que falam abertamente sobre estas rivalidades, desentendimentos e entendimentos de origem, porém nossa proposta é observar como estas questões se alojam nas composições musicais e se popularizam.

Afinal a música não admite fronteiras. Em seu cerne, são carregadas as mais diversas ideologias, cujas barreiras que possam querer detê-las são infimamente menores do que os domínios que envolvem sua difusão.

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VASSEUR, José Figueiredo: depoimento [out.2011]. Entrevistadoras: T. Valenzuela e A. Lautenchleger. Santa Maria, RS, 2011. 2 arquivos em mp4. Entrevista concedida ao Departamento Jovem Regional da13ª Região Tradicionalista.

ANEXOS

Páginas dos livretos com as composições na íntegra.

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Anexo 1

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Anexo 2

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Anexo 3

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Anexo 4

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Anexo 5